UMA Uma Proposta para A Analise Historica Dos Cont
UMA Uma Proposta para A Analise Historica Dos Cont
UMA Uma Proposta para A Analise Historica Dos Cont
Seção Miscelânea
Resumo: Este artigo tem como objetivo analisar os contos populares russos da década de 1880 do escritor e pedagogo russo
Liev Tolstói, destinados aos camponeses de Iásnaia Poliana, sua propriedade em Tula, ao sul de Moscou, na qual foi criada uma
escola gratuita em 1859. Para tal intento, apresenta-se a história da Rússia naquele período, com o propósito de expor o contexto
histórico-social em que os contos foram escritos, bem como a vida do escritor, a fim de compreender a fase mística pela qual estava
passando no período, sua dedicação à educação dos mujiques e sua proposta de uma nova moral social.
Palavras-chave: Tolstói. Contos. Iásnaia Poliana. Rússia.
Abstract: The goal of this article is to analyze the Russian folk tales from the decade of 1880 by the Russian writer and pedagogue
Lev Tolstoy, intended for the villagers from Yasnaya Polyana, his property in Tula, southern Moscow, in which a free school was
created in 1859. For such intent, the Russian history from that period is presented, in order to clarify the social-historic context
in which the tales were written, as well as the writer’s life, to understand the mystical phase he was going through in the time, his
dedication to the moujik education and his proposal for new social morals.
Keywords: Tolstoy. Folk tales. Yasnaya Polyana. Russia.
Introdução
Para que seja possível compreender e interpretar os contos populares russos
da década de 1880 escritos por Liev Tolstói, torna-se necessário refletir sobre a relação
entre História e Literatura. Nesse sentido, este artigo mobiliza as obras literárias de
Tolstói, estudando-as de forma integral, considerando-se tanto a vida pessoal do autor
quanto o momento histórico de produção dos referidos contos.
1 Mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP)
- Universidade de São Paulo. Possui graduação em Pedagogia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto -
Universidade de São Paulo (2016).
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2 Bakhtin, nascido em 1895, primeiro ano do governo de Nicolau II, filho de Alexandre III, era contra a homogeneização da
língua, por acreditar em sua modificação conforme os signos ideológicos, que também mudavam de acordo com as interações
sociais e o compartilhamento de horizontes sociais. Segundo sua teoria, é impossível homogeneizar a língua do maior país do
mundo (e não só dele), uma vez que cada região possui seu próprio horizonte social, sua própria linguagem, que se move e se
modifica constantemente.
Por sua vez, a perseguição contra os judeus se deu de forma ainda mais intensa,
pois o governo impôs limitações em seus comércios e permitiu sua agressão pelos
demais cidadãos, mesmo diante das autoridades policiais (GRUNWALD, 1988). No
sul do país, foram realizados pogroms, massacres do povo judeu, cujos sobreviventes se
interessavam, cada vez mais, pelos movimentos revolucionários daquele período. Além
do que, colaborando ainda mais para o clima de caos, o país passou por um agravo na
escassez de alimentos em 1890-1891.
Plantando sua ira em terreno fértil, Alexandre III rapidamente colheu frutos.
A população fez emergir grande ódio contra o czarismo, porém sem que se preparasse
revolta ou ataque (como ocorrera contra seu pai). Em 1894, Alexandre III faleceu
em decorrência de nefrite, deixando como sucessor Nicolau II (1868-1918), o último
Romanov a governar a Rússia.
Naquele momento, o império estava em difíceis condições não só pela trágica
perseguição ao próprio povo, mas por conta das derrotas em guerras, das revoltas
emergentes e dos desentendimentos entre o czar e a nobreza quanto às decisões
referentes ao império. Assim, Nicolau II não contou com o apoio popular, antes seguro,
para a dinastia Romanov.
Por seu turno, a Igreja ainda possuía influência sobre os imperadores, apesar
de menor poder – se comparado ao que tinha na dinastia Rurik –, o que se fazia sentir
pela “russificação” imposta por Alexandre III. Ainda se propagava o discurso de que
deus havia imputado aos pobres suas condições, e que a divindade erguera o czar como
líder a conduzir o povo.
Os mujiques sob regime de servidão até 1861 foram libertos pelo czar
Alexandre II, pai de Alexandre III, que estava no poder na década de 1880. Entretanto,
continuaram em condições miseráveis, ficando com as piores terras para plantio e
trabalhando em troca de moradia e comida, o que explica suas péssimas condições de
vida mesmo depois da liberdade.
O escritor Tolstói, em sua fase mística3, permeada por questionamentos
religiosos, posicionou-se contra o governo czarista pregando a não violência, a
abolição do serviço militar e o regresso ao cristianismo de origem, fato que levou-o a
ser excomungado da Igreja Ortodoxa. Outros intelectuais e progressistas uniram-se e
escreveram obras sobre a situação do império, com soluções para o governo prevenir
uma revolução, mas seus escritos foram posteriormente proibidos.
3 No total, podemos identificar quatro fases pelas quais o autor passou: infância, na qual demonstra a inocência; juventude, com
orgulho e vícios, quando iniciou sua carreira militar e literária; romancista, em que escreveu duas de suas grandiosas obras, Guerra
e Paz (1863-1869) e Anna Kariênina (1873-1877), e mística, na qual sobressaíram-se seu estado espiritual e sua redenção moral.
Em 1841, quando Liev tinha apenas 13 anos de idade, faleceu também sua
tia Alieksandra. Assim, Tolstói, os irmãos e os tutores passaram a morar com outra
tia, Pelageia Ilinitchina Tolstáia (1797-1875), em Kazan (aproximadamente 800 km a
leste de Moscou). Liev entrou na universidade da cidade aos 16 anos, porém desistiu
dos estudos e, sofrendo constantes recriminações da tia, escolheu voltar para Iásnaia
Poliana. Nesse período, o escritor se deparou com uma contradição que o incomodava
profundamente: ao mesmo tempo em que usufruía do luxo por pertencer à aristocracia,
pensava em seus servos e em dar-lhes melhores condições de vida. Tal questão seria,
então, trabalhada pelo escritor durante toda sua existência.
Aos 23 anos, a pedido do irmão Nikolai, alistou-se no exército e lutou na Guerra
do Cáucaso. No mesmo ano, publicou Infância (1852) na revista O Contemporâneo de
São Petersburgo. Nessa obra, descreveu a infância de um personagem, que apesar de ter
inspiração em sua própria história, afirmava não se tratar de uma autobiografia.
No ano seguinte, a Rússia enfrentou uma nova guerra, a Guerra da Crimeia.
Liev novamente combateu, porém, decepcionado com a guerra e com as atitudes do czar
Nicolau I (1796-1825-1855), escreveu Relatos de Sebastopol (1854-1855), que narra o
cotidiano de uma cidade sitiada em período de guerra. Pela primeira vez, uma obra fez
com que Tolstói se destacasse na Rússia e, em seu regresso ao país, foi recebido como
herói. Mais tarde, escreveu Adolescência (1854) e Juventude (1857), também baseados
em sua história e em sua família.
Em 1859, aos 31 anos de idade, Tolstói abriu uma escola para os filhos de
camponeses a fim de melhorar as condições de vida dos servos de Iásnaia Poliana. No
início de suas atividades, a escola atendia apenas filhos dos servos e alguns adultos.
Algum tempo depois, crianças da vizinhança também passaram a frequentá-la. Na
pausa de verão, quando as crianças ajudavam os pais nos campos, o escritor viajou para
diversos países da Europa e retornou à propriedade com grande bagagem de filosofia e
pedagogia.
Quanto à metodologia de ensino, aplicava-se o que Tolstói havia estudado em
suas viagens ao Ocidente, mas seguia-se, principalmente, as ideias de Rousseau, com a
prática de compreensão, bondade e liberdade, e a exclusão de castigos físicos.
Entretanto, na segunda viagem para o Ocidente em 1860, antes de iniciar o
trabalho de educador, Liev viajou à Alemanha para visitar o irmão Nikolai, que passava
por tratamento contra a tuberculose. Nikolai auxiliou Tolstói na obra Os cossacos (1863),
que resgatava suas lembranças da Guerra do Cáucaso.
No ano seguinte, Tolstói festejou a emancipação dos servos da Rússia, decretada
pelo czar Alexandre II em 1861. Por conta disso, ao retornar ao território russo, Liev
Contudo, por meio da visão bakhtiniana, o que mais chama atenção nos
contos não se concentra apenas nas narrativas, mas a escolha de linguagem feita pelo
autor com vistas ao público-alvo: as crianças camponesas. Para isso, Tolstói deixou a
linguagem aristocrática com que escreveu Guerra e Paz e Anna Kariênina, por exemplo,
e escolheu uma linguagem mais simples, com orações diretas, palavras no diminutivo,
visando às crianças camponesas em processo de alfabetização.
Logo pelos títulos de alguns contos, percebe-se o teor religioso: Do que vivem
os homens?; Os dois irmãos e o ouro; Iliás; Onde está o amor, está Deus; Fogo aceso não se
apaga; O Diabo insiste, mas Deus resiste; Meninas são mais inteligentes do que velhos; Um
grão do tamanho de um ovo de galinha; De quanta terra precisa um homem?; O pecador
arrependido; Dois velhos; Os três eremitas; A velhinha; Contos sobre Ivan Bobo e seus dois
irmãos: Semion Guerreiro e Tarás Barrigudo, e sobre a irmã muda Matânia, o Diabo
Velho e os três capetinhas; Como um capetinha resgatou um pedaço de pão; O afilhado; O
trabalhador Emelian e o tambor vazio.
Dos dezessete contos, sete possuem partes do Antigo ou do Novo Testamento
(ou ambos) em suas introduções. Todos fazem referência aos ensinamentos cristãos,
como se pode ver ao final do conto Um grão do tamanho de um ovo de galinha: “As duas
coisas aconteceram porque as pessoas pararam de viver do próprio trabalho, passaram a
cobiçar o que é dos outros. No tempo antigo, não viviam desse jeito: no tempo antigo,
viviam como Deus quer; tinham o que era seu e não queriam o que é dos outros”
(TOLSTÓI, 2015, p. 489).
Acerca desse excerto, talvez a expressão “no tempo antigo” remeta ao
cristianismo de origem, que o autor defendia. Nesse mesmo sentido, os personagens
do conto Dois velhos peregrinam para Jerusalém, base para que o autor descrevesse os
acontecimentos do mesmo conto, relativos à missa dos outros e à missa ortodoxa.
De igual maneira, no conto Os três eremitas, Tolstói descreve o poder do
bispo que “salvou” as almas dos eremitas ao ensiná-los rezar o Pai-nosso. Além disso,
personagens como anjos e diabos aparecem nas narrativas: “E o corpo do anjo se
desnudou, vestiu-se todo de luz, de tal modo que não era possível olhar para ele; e
começou a falar mais alto, como se falasse do céu e sua voz viesse do céu” (TOLSTÓI,
2015, p. 432). E também:
O Diabo Velho ficou aborrecido porque os irmãos não brigaram por causa da partilha,
mas entraram num acordo por amor. E então gritou para os três capetinhas: - Vejam
só – disse -, são três irmãos: Semion Guerreiro, Tarás Barrigudo e Ivan Bobo. Eles
tinham de brigar uns com os outros, mas vivem em paz: se dão bem e amigavelmente.
O Bobo estragou todos os meus planos. Agora vocês três vão até lá dominem aqueles
três e deixem todos tão perturbados que fiquem com vontade de arrancar os olhos uns
dos outros. Podem fazer isso? (TOLSTÓI, 2015, p. 565)
[...] E também a gente começou a ter vergonha de pedir: todo mundo estava em
dificuldade, sem dinheiro, sem farinha, sem pão. Procurei trabalho para mim – disse o
mujique –, mas não tem trabalho. O povo, em toda parte, se oferece para trabalhar só
pela comida. Um dia de trabalho, dois dias andando para achar trabalho. (TOLSTÓI,
2015, p. 523)
Como é que vamos fazer agora? – disseram. – Ele vai arrancar nosso couro. Vai matar a
gente de trabalhar: não tem dia nem noite, nem nós nem as mulheres temos descanso.
Se alguma coisa não anda como ele quer, logo pula em cima, manda chicotear. O
Semion morreu por causa dele. O Aníssim foi torturado no tronco [...]. (TOLSTÓI,
2015, p. 552)
(TOLSTÓI, 2015, p.528). Portanto, o trabalho é o cerne da nova moral proposta por
Tolstói.
De igual maneira, é possível ver contradição nas qualidades que o autor coloca
em seus personagens. Conforme aqui já exposto, no Conto sobre Ivan Bobo e seus dois
irmãos: Semion Guerreiro e Tarás Barrigudo, e sobre a irmã muda Malánia, o Diabo Velho
e os três capetinhas, Ivan é retratado como bobo para as coisas materiais, mas inteligente
para as coisas espirituais. Assim, depois de se tornar rei, Ivan deixa sua mordomia
para permanecer no trabalho braçal, zombando do Diabo Velho quando ele tentou
ensiná-lo o trabalho intelectual. Entretanto, em O afilhado, constam nas qualidades do
personagem “[...] era forte, trabalhador, inteligente e pacífico” (TOLSTÓI, 2015, p.
606). Ou seja, a inteligência torna-se uma qualidade.
Outra questão que se pode destacar nesses contos é a figura da mulher,
que aparece nos contos de maneira preconceituosa e submissa. Em Iliás, quando o
personagem homônimo ao conto é questionado acerca de sua vida, tem-se a seguinte
resposta: “Se for falar com você sobre minha felicidade e infelicidade, não vai acreditar;
é melhor perguntar à minha mulher; ela é mulher: o que traz no coração traz também
na língua; ela vai contar toda a verdade sobre o assunto” (TOLSTÓI, 2015, p. 441).
Aqui, fica clara a associação da mulher ao ofício de fofoqueira, ou mesmo tagarela.
Já em Fogo aceso não se apaga, o autor escreve: “No início, os mujiques
caluniavam uns aos outros, depois começaram de verdade a pegar para si qualquer coisa
que encontrassem largada fora do lugar. E assim as mulheres e as crianças aprenderam a
fazer a mesma coisa” (TOLSTÓI, 2015, p. 464). O trecho em tela confere às mulheres
a mesma condição das crianças: aquelas que, por estarem em fase de aprendizagem,
copiam o que os mais velhos – os mais experientes, os homens – fazem.
Por seu turno, em Contos sobre Ivan Bobo e seus dois irmãos: Semion Guerreiro e
Tarás Barrigudo, e sobre a irmã muda Malánia, o Diabo Velho e os três capetinhas, quando
Semion e Tarás requerem ao pai a parte da terra que herdariam, o genitor pede para
que eles conversem com Ivan, pois ele e a irmã eram quem de fato sustentavam a casa
e usavam a terra. Apesar disso, Malánia foi excluída da conversa, cabendo tal decisão
somente a Ivan.
Além desses, em O afilhado, quando o personagem que dá título ao conto
descobre a traição do marido de sua madrinha e avisa-a, ele é penalizado pelo padrinho,
que lança a seguinte desculpa: “Olhe – disse ele –, já faz um ano que o marido de
sua madrinha deixou a esposa, vive na farra com outras, e ela, por causa do desgosto,
passou a beber, e a amante que ele tinha antes sumiu no mundo. Aí está o que você fez
com sua madrinha” (TOLSTÓI, 2015, p. 612). Aqui, é possível afirmar que a moral
deixada por Tolstói é de que é melhor ser traída e sequer saber disso, tendo assim o
marido apenas uma amante (ao invés de várias), do que passar a beber por desgosto dos
encontros amorosos do cônjuge.
Por último, em Fogo aceso não se apaga, a justiça aparece em vários momentos,
mostrando a mudança do sistema pós-libertação dos servos em 1861. Assim, os recém-
libertos poderiam recorrer à justiça, como se lê nos trechos que discorrem sobre a
briga entre duas famílias de mujiques. O primeiro deles: “E sua esposa se gabava com
os vizinhos, dizendo que agora iam condenar Ivan na Justiça e ele ia para a Sibéria. E
a inimizade não parou mais” (TOLSTÓI, 2015, p. 463). Já o segundo: “E Ivan foi
ao tribunal. O caso foi julgado pelo juiz de paz e pelo juiz do distrito. Enquanto eles
eram julgados, sumiu a cravija da charrete de Gavrilo. As mulheres da casa de Gavrilo
acusaram o filho de Ivan de ter pego a cravija” (TOLSTÓI, 2015, p. 464). E quando
Ivan foi ameaçado, logo na saída do tribunal: “Senhores juízes! Ele ameaçou pôr fogo
na minha casa. Podem perguntar, ele falou diante de testemunhas” (TOLSTÓI, 2015,
p. 466).
Nesses contos, vê-se a significação utilizada, ou seja, a forma como Tolstói
utilizou o discurso para alcançar o tema da moralidade (ainda que distante da Igreja
Ortodoxa Russa de sua época). Nos casos aqui citados, o contexto religioso não possui
a mesma significação dada por essa instituição religiosa, uma vez que, conhecendo o
contexto histórico e as condições de produção do autor, bem como a forma como ele
utiliza a língua em um determinado lugar, para uma determinada pessoa ou grupo,
sobre determinado assunto, é possível concluir que as ideias que o escritor defendia iam
contra os ideais da Igreja e, por isso mesmo, foi excomungado. Nem por isso deixou de
escrever e publicar textos contra as atitudes e rituais dessa organização.
Volóchinov/Bakhtin (2017) cita a importância dos aspectos situacionais,
já que, sem eles, o enunciado é de difícil compreensão. Assim, quando se pensa na
compreensão de um enunciado, deve-se questionar o sentido que está ali expresso, o
que não necessariamente é o sentido dado pelo enunciador, bem como pode não ser a
compreensão de uma terceira pessoa.
É muito simples compreender isso quando fazemos uma analogia com a
oralidade. Por exemplo: quando se ouve o enunciado “bobo”, há vários sentidos
possíveis à palavra: em conjunto com contexto histórico, ele pode se referir a uma
pessoa engraçada ou tola. Entretanto, no contexto histórico de Tolstói, e por meio do
estudo de sua biografia, “bobo” acaba por se tornar um elogio, uma vez que as pessoas
ligadas à matéria é que seriam tolas, pois não se preocupam com a moral e com o
espírito. Assim, de acordo com o Círculo de Bakhtin, a palavra em si é neutra até que
seja enunciada, e é no contexto da enunciação que a palavra passa a ter sentido.
Na mesma obra, Bakhtin ainda afirma que não existe um enunciado sem
avaliação (VOLÓCHINOV, 2017). Cada indivíduo avaliará, por meio do discurso
interior, os enunciados. Por isso, há múltiplas compreensões: as informações que
chegam a cada um passam por uma avaliação interna, juntam-se aos seus horizontes
sociais4 e transformam-se em novas compreensões. Portanto, é com o compartilhamento
dessas avaliações, nas interações sociais – de forma dialética – que o horizonte social
amplifica-se e realiza outras tantas compreensões, o que mantém a língua sempre em
movimento, nunca estática, sem que para isso seja necessária uma convenção ou um
tratado político para assim acontecer. Em cada troca de enunciados, ou seja, em cada
conversa de corredor, há a troca de signos ideológicos e a mudança de todos os sujeitos
ali envolvidos, a cada segundo de conversa. Nas palavras do autor, “Um sentido novo
se revela em um antigo e com a ajuda dele, mas com o objetivo de entrar em oposição
a ele e o reconstruir” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 238).
Nesse sentido, Tolstói, ao se questionar sobre os ideais da Igreja Ortodoxa
Russa, decidiu aprender grego, a fim de traduzir, por conta própria, o Evangelho de
Jesus, pois assim daria ênfase às passagens de Jesus enquanto homem, em detrimento a
Jesus enquanto santidade. Nas palavras de Bartlett (2013, p. 359):
Não se trata de um mero resumo banal do Novo Testamento, pois Jesus Cristo no
Evangelho segundo Tolstói é um cristão bem ao estilo tolstoiano: um homem comum
que tem uma visão crítica da religião organizada, e que não tem medo de denunciar
as tentativas de obstruir sua mensagem ética. O Jesus projetado por Tolstói é um
cavaleiro solitário, um paladino nadando contra a corrente da opinião pública, um
“humilde sectário” com quem o conde se identificava e em quem podia se espelhar
como exemplo de conduta moral.
4 Podemos compreender por horizontes sociais os grupos que compartilham do mesmo espaço/tempo social e as diferentes
linguagens que resultam dessa interação. Um exemplo que pode lançar luzes sobre tal questão é o de pessoas que possuem formação
em Direito e possuem a mesma linguagem, o “juridiquês”, que é incompreendida por pessoas de outros horizontes sociais por não
possuírem, em seus grupos, as mesmas definições construídas socio-historicamente.
Considerações Finais
Deve-se levar em conta que a compreensão aqui apresentada não é a única
existente. Sendo a linguagem algo incessantemente mutável, tanto quem escreveu
quanto quem leu podem ter compreensões diferente. Assim, o objetivo do artigo
não foi trazer a veracidade dos fatos, mas sim o de mostrar para quem lê, uma das
possibilidades de compreensão dos contos. Ou seja, as informações contidas nos contos
de Tolstói não se limitam às apresentadas neste artigo. Mesmo assim, essa pequena
compreensão deu indícios da cultura russa, pois demonstrou como o contexto histórico
é refletido na literatura, bem como os signos ideológicos do autor. Além disso, a teoria
do círculo de Bakhtin pôde ser apontada e alguns conceitos do filósofo puderam ser
trabalhados por meio dos contos.
Entende-se que a apresentação do contexto histórico é primordial para
a apresentação do enunciado: apenas com a leitura superficial dos contos não seria
possível compreender o discurso. Foram necessárias, então, várias leituras: do contexto
histórico-social da Rússia, da vida do escritor, além do período em que foram escritos
os contos, pois a partir dessas informações tornaram-se explícitos os discursos alheios,
as condições de produção do autor, dentre outras peculiaridades que fomentaram a
leitura integral do discurso .
Assim, é importante lembrar que o sujeito é múltiplo, ou seja, cada indivíduo
possui diferentes funções na sociedade, e em cada uma delas, em cada tempo/espaço
onde se encontra, a linguagem pode se modificar. No caso de Tolstói, além de sujeito
autor, era também sujeito marido, sujeito pai, sujeito professor, sujeito profeta. Dessa
forma, para a compreensão do todo, o sujeito, a linguagem e a história são e não devem
deixar de serem vistos como uma costura.
Tolstói reuniu nesses dezessete contos um plano de vida a ser seguido, e
mostrou-os aos camponeses, adultos e crianças, bem como a seus seguidores. Em tais
escritos, foi possível reconhecer a influência do cristianismo, das políticas da época,
do tratamento dado aos mujiques nas fazendas e o papel da mulher naquele período
histórico. Além disso, foi possível ver, nos contos, os pontos contraditórios da escrita de
Tolstói aliados a toda sua dedicação para a população camponesa.
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Recebido em 21/06/2019
Aprovado em 03/08/2019 5