A Vírgula #056 28 Maio

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#056 | 28 de maio de 2023 2

CPMI do 8 de Janeiro: palco pequeno,


muitos atores

Ulysses Guimarães afirmava que


toda Comissão Parlamentar é
ambientada pelo seguinte bordão:
“A gente sabe como começa, mas
jamais como termina”.

As proféticas palavras de Ulysses,


um dos maiores parlamentares da
história brasileira, mais do que
nunca fazem sentido.

Hoje, a comunicação de modo instantâneo e todas as


interferências e manipulações intrínsecas a ela fazem
parte do espetáculo. Essencialmente,
a CPMI é instrumento do Poder Legislativo,
dotado de competências investigativas próprias das
autoridades judiciais, para apurar fatos impactantes
na vida nacional e fiscalizar a administração pública.

Entre a letra da Constituição e o desenrolar


do processo, entretanto, o pragmatismo e a disputa
de poder moldaram essas comissões como verdadeiros
instrumentos de luta política. O resultado: assassinato
de reputações, promoção pessoal, defesa de interesses.

Nova jornada começou nessa quinta-feira, 25,


no Congresso Nacional.
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CPMI do 8 de Janeiro: palco pequeno,


muitos atores

Os parlamentares instalaram a tão esperada Comissão


Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) para investigar
os atos antidemocráticos de 8 de janeiro, quando os
edifícios sede do Congresso, do Palácio do Planalto e
do Supremo Tribunal Federal (STF) foram invadidos
e depredados.

Agora, os 32 membros da CPMI, 16 deputados e


16 senadores, têm 180 dias para investigar os atos de
ação e omissão ocorridos nas sedes dos três Poderes.
No contexto, mais de 300 pessoas já foram presas,
entre elas o ex-secretário de Segurança Pública do
Distrito Federal Anderson Torres, um que deve ser
convocado.

O que esperar do início


dos trabalhos?
Apontamento fundamental é a diferença entre Comissão
Parlamentar de Inquérito (CPI) e Comissão Parlamentar
Mista de Inquérito (CPMI) – esta última o caso das
investigações dos atos golpistas.

As duas têm as mesmas prerrogativas, com poder


de investigação, mas a segunda é aquela que une
deputados e senadores nos trabalhos, e não apenas
uma das duas Casas – como a CPI.
Mais relevante que isso para esta análise:
a CPMI, com a união bicameral, é a opção para
os casos de grande comoção nacional.
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CPMI do 8 de Janeiro: palco pequeno,


muitos atores

Neste momento, portanto, o palco está apto à guerra


polarizada, com todas as bombas que atravessam
o país desde 2018.

Em sua coluna de O Globo na quarta, 24,


Bela Megale advertiu para a primeira divergência entre
os próprios governistas: convocar ou não o ex-presidente
Jair Bolsonaro (PL) no início dos trabalhos.

Como apontou Megale, parte dos senadores, “inclusive


alguns do PT”, defende o início da comissão em um
“nível mais elevado” de debate. Convocar Bolsonaro,
só no final. Outra ala do próprio PT, continua a colunista,
trabalha para que as ações gravitem em torno do
ex-presidente desde o início da comissão.

Seja qual for a estratégia, a pólvora vai queimar.


O debate de alto nível estará presente em alguns
momentos. Mas os tapas e beijos, tchutchucas
e tigrões marcarão presença. E vão alimentar esquema
“moderno” de repercussão:

1 O parlamentar dá uma declaração absurda



ou polêmica;

2 O declaratório invade a imprensa;



3 E sequestra a internet com tuítes, recortes de vídeo,

guerra de comentários e confusão;
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CPMI do 8 de Janeiro: palco pequeno,


muitos atores


4 Além da mídia tradicional, os canais de YouTube
polarizados, que aprenderam a triunfar nesse esquema,
repercutem (com ironias e piadas) o caso, cada um de
acordo com sua linha editorial declarada;

5 A população consome essas informações de forma



apocalíptica, direcionada pela inteligência programada
do algoritmo.

A depender dos nove escolhidos da oposição,


esse cenário será exatamente como descrito.
Estão escalados para a briga homens-bomba como
Eduardo Girão (Novo-CE) e os capixabas Magno Malta
(PL-ES) e Marcos do Val (Podemos-ES), a turma do
barulho que não tem medo de falar e, muito menos,
de ser ridicularizada em público.

O time do governo, com 18 membros e boa vantagem,


em uma de suas frentes mostrou-se estrategicamente
ponderado neste início. A posição é que a CPMI não é
tão relevante como foi a CPI da Covid. E o argumento
é que não há mais para onde ir: as investigações já estão
postas; a Justiça e a Polícia Federal agem com eficiência;
e as imagens e provas já reunidas até aqui são
incontestáveis.

Nesse clima calculadamente morno, mas com articulação


deficiente, o governo, apesar da vantagem numérica,
perdeu entre os membros da CPMI nomes como
Eduardo Braga e Renan Calheiros, ambos do MDB.
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CPMI do 8 de Janeiro: palco pequeno,


muitos atores

Por outro lado, o acordo de instalação da CPMI emplacou


a senadora Eliziane Gama (PSD-MA) como relatora,
governista experiente e de oratória forte. “Radicais
tentaram golpe”, afirmou ela, em seu primeiro ato.

E daí nasceu a primeira guerra. Durante a instalação da


CPMI, o senador capixaba Marcos Do Val apresentou
questão de ordem (seu primeiro factoide) questionando
o fato de Eliziane ser “amiga do ministro da Justiça”,
Flávio Dino, “um dos investigados”.

O pedido do capixaba para rifar a senadora, por suposta


incompatibilidade ética com o cargo, foi indeferido.
E o senador Omar Aziz (PSD-AM), em seguida, alfinetou
Do Val, que teria sido cooptado “até para gravar ministro”.

O deputado Arthur Maia (União-BA) foi eleito presidente


do colegiado, indicação do presidente da Câmara,
Arthur Lira (PP-AL), cada vez mais empoderado no
Congresso e sobre os rumos do governo federal.
Magno Malta ocupará o posto de segundo vice-presidente.
E o senador Fabiano Contarato (PT), também do Espírito
Santo, é membro da comissão, completando a trinca
capixaba no colegiado – D Val, Magno e Contarato.

Vale rememorar que a esquerda trabalhava para refutar


a CPMI do 8 de janeiro. Até que a CNN Brasil revelou
imagens do general Gonçalves Dias, ex-ministro do
Gabinete de Segurança Institucional (GSI) do presidente
Lula (PT), interagindo, no Palácio do Planalto, com os
golpistas que invadiram a sede do governo.
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CPMI do 8 de Janeiro: palco pequeno,


muitos atores

G Dias, como é conhecido, circulava calmamente no


andar do gabinete presidencial e indicava a saída do
prédio aos invasores. A resposta, naquele momento,
seria esclarecer os fatos na Comissão Mista.

O senador Girão foi o responsável por iluminar o assunto


na quinta: “O governo Lula não queria a CPMI. Foram
ofertados cargos a parlamentares, emendas em troca de
retiradas de assinatura. Quando veio a imagem do general,
o governo quis se apoderar da relatoria”, protestou.

Em meio ao cenário bélico, as investigações podem também


levar a perda de mandatos, indiciamento de militares e civis
de toda espécie, de toda patente e de qualquer capital.
Os próprios membros da CPMI podem cair sob o
andamento das inquirições. E não espantaria se o STF
for instado a se pronunciar. Há ainda a possibilidade de
a agenda do Congressoser prejudicada pelo
andamento da CPMI, direção indesejável para Lula.

Se Ulysses Guimarães nunca soube como termina uma


CPI ou CPMI, certamente não há quem saiba. Fato é que
esta será barulhenta e confusa, independentemente
da estratégia de cada espectro político. O cidadão vai
se engajar no processo, mas talvez não tenha respostas
concretas no final.
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CPMI do 8 de Janeiro: palco pequeno,


muitos atores
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CPMI do 8 de Janeiro: palco pequeno,


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CPMI do 8 de Janeiro: palco pequeno,


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CPMI do 8 de Janeiro: palco pequeno,


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Votação do arcabouço foi recado a Lula:


Congresso agora é protagonista

Os jornais da quarta-feira, 24, uma enorme gama de


colunistas de política e toda a internet celebrava a
“vitória” de Lula na votação do texto base do arcabouço
fiscal, aprovado por 372 votos a 108, na noite de terça,
23. Foi inegavelmente uma conquista, mas com gostinho
de derrota.

A equação dessa grande margem que garantiu a aprovação


da proposta das novas regras fiscais com 125 votos a
mais que o necessário é clara como a luz dos céus
quentes do cerrado da capital federal. Lula venceu
porque contou com o empenho não da articulação
política do Palácio do Planalto, que há cinco meses tem
se mostrado insuficiente, e sim pela movimentação de
uma figura política que não faz parte do governo, mas é
hoje como uma espécie de primeiro-ministro garantidor
da estabilidade do governo no Legislativo: o presidente da
Câmara dos Deputados, Artur Lira (Progressistas).

Sem Lira, Lula dificilmente teria alcançado esse potencial


de votos de mais de três terços da Câmara.
Foram as movimentações do presidente da Câmara
que garantiram uma votação tranquila e segura para
o Planalto. E Arthur Lira sabe disso. Em entrevista
à Globonews, no dia seguinte à votação, salientou que
“todos têm que entender que o Congresso brasileiro
conquistou maior protagonismo”e que “é importante
o governo entender que tem que participar do processo
de discussão”, chamando a atenção para as faltas que
a articulação política do Planalto tem tido.
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Votação do arcabouço foi recado a Lula:


Congresso agora é protagonista

Nos bastidores, são muitas as reclamações sobre


o não-atendimento a pleitos dos deputados,
que passam horas nas antessalas de ministros,
aguardando por uma audiência e sem respostas
a pedidos feitos via aplicativos de mensagens.
O governo, por sua vez, bate cabeça internamente.
As rusgas entre ministros – parte delas já tratadas
por este A Vírgula, inclusive na análise de capa
desta edição – tem refletido em uma piora nas
relações com o mundo exterior (leia-se o Congresso
Nacional).

Outro episódio recente foi a desidratação da ministra


do Meio Ambiente, Marina Silva, cuja pasta perdeu
muita água em praça pública e, junto com ela,
certo protagonismo durante a análise, pelo mesmo
Congresso, da Medida Provisória que realizava uma
reforma administrativa. Com interferências severas
do centrão, que quer enfraquecer as pastas com
caráter mais cristalino à esquerda, Lula entregou
os anéis para preservar os dedos e assim permitiu
a retirada do Cadastro Ambiental Rural (CAR),
que regula moradias fora da zona urbana, e a Agência
Nacional de Águas (ANA) do Meio Ambiente; ambas
passaram, respectivamente, para os ministérios da
Agricultura e da Integração Nacional.
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Votação do arcabouço foi recado a Lula:


Congresso agora é protagonista

O Congresso tem hoje mais destaque e deve isso


a Jair Bolsonaro, que afrouxou a corda da articulação
em seu governo, conferindo esse papel ao próprio
Legislativo. É como um orifício aberto em um tecido:
à medida que ele vai ganhando mais e mais espaço,
fica cada vez mais difícil retornar ao seu tamanho
original.

E nessa trama mal-costurada por Bolsonaro lá atrás


quem sofre os reveses é Lula, seu antecessor,
que em seus governos passados estava habituado
com casas parlamentares mais obedientes e de fácil
manipulação. Emendas e cargos já não são mais
suficientes para barganhar o apoio de deputados
e senadores; eles querem ser protagonistas da própria
história e da História do país.

Lula ganhou perdendo muito, sobretudo o controle.


Não será exagero dizer que o presidente está
se tornando quase um refém do Legislativo.
E nessa Síndrome de Estocolmo às avessas
o que não faltam são apaixonados.
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BOLA EM CAMPO
Haddad joga sozinho pela Presidência

“É a economia, estúpido”, vociferou James Carville,


marqueteiro de Bill Clinton, ao sinalizar qual era a área
do governo que garantiria a vitória (ou a derrota) do
presidente norte-americano na eleição. Desde então,
ficou mais cristalino, inclusive para políticos canarinhos,
algo que desde a época do Império era óbvio, embora
mesmo o “óbvio”, como se sabe, precise ser dito.
E Carville o fez.

Fernando Haddad (PT) é um dos favoritos para suceder


Lula (PT) na Presidência da República. Por motivos
também óbvios. Apesar de seu perfil mais tucano,
é puro-sangue petista, e Lula já demonstrou,
com seu fisiologismo, não confiar em aliados de casas
partidárias vizinhas. Haddad disputou o cargo em 2018,
quando Lula estava preso, e perdeu para Jair Bolsonaro
(PL) no segundo turno.

Mas Haddad é, até o momento, apenas um potencial


candidato. Seu projeto depende, primeiramente,
de Lula: se ele decidir se candidatar à reeleição,
as portas para sucessores se fecharão, por ora.
Em um segundo momento, à não se candidatar Lula,
Haddad vai precisar apostar no crescimento da
economia brasileira, na redução do endividamento
público e das taxas de juros, na consequente geração
de postos de trabalho e no aquecimento dos setores
de comércio, serviços e turismo. É bastante coisa.
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BOLA EM CAMPO
Haddad joga sozinho pela Presidência

O Congresso Nacional está analisando o arcabouço


fiscal, o plano econômico cujo discurso petista promete
dar um salto ao país. O projeto deve passar sem maiores
sobressaltos, apesar de algumas emendas ao texto original
enviado pelo Poder Executivo. Com o país – e o
setor produtivo – clamando por uma reforma, nem
mesmo a direita tem se oposto às novas metas fiscais.
Ganhar um pouco de simpatia do mercado parece ser
o que move o coração da oposição, que, é claro, não
morre de amores pelo governo de centro-esquerda atual.

Haddad é estudioso, quase um intelectual,


mas não entende de economia. Fernando Henrique
Cardoso (PSDB), quando assumiu o Ministério da
Fazenda, em 1993, durante o governo de Itamar Franco,
também não entendia do tema, no entanto tinha um time
de colegas ministros jogando com ele. No campo
petista, Haddad não recebe passe de bolas dos
jogadores, no ataque está sozinho e a defesa cruzou
os braços. Todos esses que deveriam ajudar a conquistar
a taça querem agarrá-la sozinhos. A sucessão de Lula
começou bem antes do primeiro dia de governo.

Em dezembro do ano passado, as divergências já


começaram a aparecer, antes da formação do novo
governo, entre os ministeriáveis, sobretudo no campo
econômico, área de atuação de Haddad e também
da agora ministra Simone Tebet (Planejamento),
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BOLA EM CAMPO
Haddad joga sozinho pela Presidência

que à época
refutou qualquer
desentendimento mais
duro, apesar de reco-
nhecer uma diferença
de pensamento entre
Temos divergências, os dois: “Temos
mas não temos divergências, mas não
antagonismo. temos antagonismo,
e isso faz toda a
Simone Tebet, diferença”, disse
ministra do Planejamento, a ministra sobre Lula.
em 4 de fevereiro Em outro momento,
afirmou: “Tenho encontrado em Haddad um grande
parceiro, apesar de termos algumas diferenças na
visão econômica”.

O mercado político relata inúmeras desavenças,


embora sempre abafadas pelo governo ou
não-confirmadas publicamente depois pelos colegas
ministros, que só falam com os “microfones desligados”.
Uma delas foi com o ministro Rui Costa (Casa Civil)
durante a discussão do arcabouço fiscal,
por conta da apresentação do projeto diretamente ao
presidente Lula, sem a Casa Civil.

Haddad também sofreu derrotas dentro de seu próprio


time. Em 31 de dezembro de 2022, as notícias apontavam
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BOLA EM CAMPO
Haddad joga sozinho pela Presidência

que o ministro brigara pelo fim da isenção do Pis/Cofins sobre


gasolina e álcool, mas foi vencido pelo núcleo político,
e Lula prorrogou a medida no primeiro dia do ano.

Em outro revés, Haddad defendia a correção da tabela


do Imposto de Renda em 2024. Mas Lula antecipou para
2023, com anúncio em 16 de fevereiro. A presidente do
PT, Gleisi Hoffmann, foi coro surpreendente contra o
ministro da Fazenda. Ela e outros petistas correram às
redes sociais para
antecipar os movimentos
do governo e esvaziar
as ideias de Haddad.
As relações entre
Haddad e Gleisi
se mostraram
“O problema não é a estremecidas desde
questão do tributo, a campanha eleitoral.
é a política de preços,
a dolarização. A presidente nacional
A Petrobras virou uma do PT também voltou
empresa de à cena em 15 de abril
distribuição de lucros deste ano: garantiu
e dividendos, e o povo que foi pega de
pagou a conta.” surpresa com uma
declaração do
Gleisi Hoffmann, secretário do Tesouro,
presidente nacional do PT,
em 30 de dezembro, ao esvaziar Rogério Ceron,
as ideias do então indicado de subordinado a Haddad,
Lula para a Fazenda sobre “de que iriam modifi-
impostos federais.
car ou desconstituciona-
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BOLA EM CAMPO
Haddad joga sozinho pela Presidência

lizar os pisos da educação e saúde”. “O ministro (Haddad)


nunca falou sobre isso conosco”, reclamou.

O ministro da Fazenda também teve de recuar por


causa da repercussão negativa sobre a taxação de
empresas asiáticas. Dia 18 de abril, Lula convocou
reunião, pressionou e a pasta cedeu.

Haddad tem pela frente como principal missão recolocar


de pé a economia brasileira com foco no social, marca
dos governos do PT. E depende desse feito para se
posicionar na linha de frente da sucessão presidencial.
Mas isso só não será suficiente. Vai depender dos
desejos de Lula e da sobrevivência do próprio Haddad
ao fogo-amigo dos colegas ministros. É um jogo que
não acaba no segundo tempo.
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Lula e o futuro

No início de 2027, o presidente Lula encerra seu terceiro


mandato. Desde sempre, se especula sobre o futuro
desse personagem histórico, se permanecerá na cena
política, candidato ou não, e qual o peso eleitoral que
manterá nos anos vindouros. O fator Lula, de fato,
provoca movimentos tectônicos no mercado político,
tendo em vista sua comprovada capacidade agregadora
de apoios e catalizadora das aspirações de parcelas
consideráveis do eleitorado.

Seu capital político, até o momento, é altamente


significativo, capaz de decidir um pleito eleitoral,
como comprovam as pesquisas de opinião já realizadas
nesses primeiros cinco meses de terceiro governo.
Não há novidade nisso, só um elemento de corroboração,
haja vista que, em 2018, preso e impedido de disputar o
pleito, apesar de liderar as pesquisas, seu capital político
foi capaz de levar ao segundo turno um candidato
lançado quase ao fim do período de inscrição das
candidaturas. Mas aquelas eleições fragilizaram
a democracia, sagrando vitorioso, por uma série de
fatores conjugados, o candidato da extrema direita,
Jair Bolsonaro, apoiado maciçamente pelos grupos
mais reacionários e por uma massa bombardeada
numa guerra de narrativas que visava à criminalização
da política e o assassinato de reputações.
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Lula e o futuro

Muito se discute, e desde sempre, a capacidade de Lula


em se manter ativo e determinante na cena política,
ainda que não mais ocupando a Presidência da
República, como um player de primeira grandeza.
Lula é o político mais exitoso em termos eleitorais
da história republicana brasileira e, também,
o de maior projeção e importância na cena geopolítica
internacional. Despertasentimentos extremados,
do amor ao ódio, dificultando, no tempo presente,
que seu papel histórico seja delineado e analisado
de forma mais acurada, desprovida das paixões
políticas.

Tomando como ponto inicial a sua emergência como


líder das grandes greves dos metalúrgicos do ABC
paulista, em meados da década de 1970, Lula foi se
impondo no mercado político brasileiro como um player
que reúne em si uma enorme capacidade de arregimentar
em seu entorno o apoio das massas, de negociação e de
diálogo, além de um férreo cumprimento da liturgia
democrática, no respeito à Constituição e às instituições
republicanas.

Aos 78 anos, venceu um pleito eleitoral contra Jair


Bolsonaro, em 2022, por uma diferença de menos de 2%
dos votos no segundo turno, em um contexto de grande
acirramento e de forte ação do Executivo de então na
operação da máquina pública em favor do candidato oficial.
#056 | 28 de maio de 2023 25

Lula e o futuro

Lula venceu, ainda que sem poder contar com uma base
sólida no Congresso Nacional, hoje controlado pelos
partidos pragmáticos, de “adesão”, no dizer do cientista
político Claudio Couto, que constituem o “Centrão”,
coadjuvado, quando conveniente, pela forte bancada
de extrema direita nas duas Casas.

Os mecanismos clássicos do “presidencialismo de


coalizão” – a formação de maiorias legislativas em prol
da governabilidade da República, em troca da entrega,
ao maior número de partidos políticos, do controle do
aparato estatal –, estão tendo uma certa dificuldade em
serem operados nos novos tempos. O Congresso, fruto
de experiências recentes, deseja manter um “maior
protagonismo”, o que pode ferir os mecanismos de
pesos e contrapesos entre os Poderes da República.
O atual líder dos “partidos de adesão”, o Deputado
Arthur Lira (PP-AL), Presidente da Câmara, vem impondo
ao atual governo uma “conta” cujos valores vão além
daqueles clássicos, que lastrearam a formação das
maiorias parlamentares anteriores a 2018.

Lula tenta se equilibrar nesse cenário, atacado pela


oposição de extrema direita, reacionária e radicalmente
contrária a qualquer diálogo com o atual governo;
por grupos variados de diferentes matizes ideológicas;
e por setores que controlam o grande capital,
para ficarmos naqueles mais estridentes em suas
intervenções, desprovidas, no mais das vezes,
dos liames com a verdade tangível.
#056 | 28 de maio de 2023 26

Lula e o futuro

Um equilíbrio que o desgasta, haja vista a brutalidade e a


insanidade dos ataques e as dificuldades de efetivar seu
programa de governo, liderando a coalização política
mais ampla já montada na história da República,
o que por si só já é um complicador.

Uma coalização que, mesmo ampla, não conseguiu


formar bancadas parlamentares significativas ou que
demonstrem unidade na defesa do governo que
integram. E esse vem sendo, sem dúvida, um dos
maiores problemas enfrentados pelo atual governo,
ainda incapaz (será em algum momento?) de requalificar
o “presidencialismo de coalização” em novas bases,
mantendo o mínimo de institucionalidade necessária.

Há muito, o Partido dos Trabalhadores (PT), a agremiação


fundada pelo presidente Lula, padece dos sintomas de
forte paralisia burocrática, da obstrução de transições
geracionais e de uma dinâmica interna que leva à não
emergência de novos quadros com penetração social.
Ressaltamos que tais males atingiram e atingem,
na Europa, os Partidos Sociais Democratas e Socialistas,
nascidos das lutas operárias, e que passaram, ao longo do
século XX e no início do XXI, por diversas crises oriundas
de denúncias as mais variadas.
#056 | 28 de maio de 2023 27

Lula e o futuro

As votações obtidas pelo PT oscilam ao longo da última


década, sempre aquém da liderança que Lula exerce na
política brasileira. Mas o partido é, de longe,
a mais sólida agremiação partidária, a única que podemos
classificar como de massas, o que lhe credencia à difícil
tarefa de tentar liderar o campo progressista – liberal
democráticos, esquerda e centro-esquerda,
do eleitorado brasileiro.

Já passou da hora de pensarmos na transição geracional


da maior liderança desse campo, e, principalmente,
a de legitimarmos aquelas que surgem a cada instante.
Essa discussão sofre uma interdição por parte dos
setores interessados em manter tudo como está.
Entretanto, não podemos ser cegos ao fato de que
lideranças como Lula não se constroem em
gabinetes refrigerados e confortáveis,
nem se fabricam nas linhas de montagem de uma fábrica
ou nasmesas de negociação. Ele é um político, ao que
parece, ainda analógico, mas que encanta e atrai o mundo
digital, e sua terceira eleição é uma prova disso.

Nela, disputou-se não a Presidência da República,


mas a hegemonia de um projeto civilizacional para o Brasil,
que corria o risco de, em um novo governo de extrema
direita, tomar a forma de modelo iliberal, autocrático,
com flertes teocráticos, e com ligações mais que suspeitas
com grupos igualmente suspeitos. Venceu a Democracia
e, com Lula liderando, para além de seu campo tradicional,
setores os mais variados e antagônicos.
#056 | 28 de maio de 2023 28

Lula e o futuro

A polarização exacerbada da disputa política provocou,


em 2018 e em 2022, a retração do campo político de
centro, centro-direita e da direita, que viu seu eleitorado
clássico subsumir no caldo reacionário da candidatura
de extrema direita – a primeira a se assumir como tal
e a catalisar em torno de si um forte apoio popular.
Sobreviveram os pragmáticos, os adesistas,
desde sempre prontos a se perfilar com o governo.

Mas voltemos ao futuro. Nas eleições de 2026, teremos,


de novo, Lula a disputar seu quarto mandato presidencial,
quer pela incapacidade de surgimento e consolidação
de novas lideranças, quer pela força que a extrema
direita poderá ter, e que o colocará, de novo, como a
única candidatura possível de enfrentá-la com sucesso?
Acreditamos que essa é a pergunta que ronda, silenciosa
e sorrateira, o mercado político brasileiro, e que
persistirá sem resposta até o delineamento claro do
quadro eleitoral de aqui em diante. Até lá, persistirão
os embates brutais entre as forças políticas, e a tentativa,
sempre requentada, de desgaste da imagem do atual
presidente, um homem público acostumado a sobreviver
às intempéries da vida.

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