O Coração de Cristo - Thomas Goodwin
O Coração de Cristo - Thomas Goodwin
O Coração de Cristo - Thomas Goodwin
Goodwin
Traduzido do original em inglês The Heart of Christ in Heaven, to Sinners on Earth, 1651.
© Editora Os Puritanos 2020
1.a edição em português, 2020
Reservados os direitos desta edição. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida
por quaisquer meios sem permissão por escrito dos editores, salvo em breves citações, com indicação
da fonte.
PRODUÇÃO EDITORIAL
Editor: Manoel Canuto
Tradução: Helio Kirchheim
Revisão: Christopher Vicente, Cesare Turazzi, Gerson Júnior, Waldemir Magalhães
Designer: Heraldo Almeida
Imagem da capa regulada nos termos da licença Creative Commons disponível em
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SUMÁRIO
1. Capa
2. Créditos
3. Sumário
4. PREFÁCIO
5. QUEM FOI THOMAS GOODWIN
1. Formação
2. A Obra “O Coração de Cristo”
6. INTRODUÇÃO
7. PRIMEIRA PARTE
1. I. Provas extraídas do discurso de despedida que o Salvador proferiu
aos seus discípulos.
1. 1. O contexto da passagem (Jo 13.1)
2. 2. O que estava na mente de Cristo, é-nos revelado em seu
sermão de despedida.
2. II. Provas extraídas de passagens bíblicas e expressões de Cristo
depois de sua ressurreição
3. III. Provas extraídas de passagens bíblicas por ocasião da ascensão
de Cristo ao céu e depois dela
8. SEGUNDA PARTE
1. Porque não temos sumo sacerdote que não possa compadecer-se das
nossas fraquezas; antes, foi ele tentado em todas as coisas, à nossa
semelhança, mas sem pecado (Hebreus 4.15).
2. I. Provas extraídas da doutrina da Trindade
1. Provas a partir da relação e da influência de Deus, o Pai, sobre
Cristo.
2. Provas a partir da natureza, da disposição e do amor de Deus, o
Filho.
3. Provas a partir da habitação de Deus, o Espírito Santo, no Filho
4. Considerações sobre a proposição (1)
5. Considerações sobre a proposição (2)
3. II. Provas extraídas das funções desempenhadas por Cristo no céu e
de vários compromissos por ele assumidos
1. O exemplo de José
2. O exemplo de Ester
3. Primeiro Compromisso
4. Segundo Compromisso
5. Terceiro Compromisso
6. Primeiro ponto do raciocínio
7. Segundo ponto do raciocínio
8. Quarto Compromisso
9. Quinto Compromisso
9. TERCEIRA PARTE
1. I. Algumas noções gerais a respeito de como se deve entender que o
coração de Cristo é “influenciado” pela percepção das nossas
fraquezas, e de como nossas fraquezas alcançam e comovem seu
coração.
1. Primeiro Passo
2. Segundo Passo
3. Terceiro Passo
2. II. Caracterização do tipo de aflição presente no coração de Cristo.
1. Negativamente
2. Positivamente
3. Especificamente
3. III. Resposta à objeção de que Cristo jamais soube o que é estar sob
o pecado.
4. IV. Aplicações Práticas
10. ÍNDICE DE REFERÊNCIAS BÍBLICAS
PREFÁCIO
É fato que a herança teológica e literária legada pelos reformadores,
gigantes do passado, dá frutos espirituais em abundância aos que nela
porfiam. Pode-se dizer que, em essência, a necessidade continua a mesma:
voltar-se às Escrituras, assim como nat época da Reforma, quando o
verdadeiro caminho se sedimentou pelo estudo da Bíblia, pelo retorno à
fonte que é Deus e com o abandono das opiniões dos homens.
Ora, de igual modo com os reformadores, também os puritanos são
excelentes guias nesse “caminho de volta”. Seguindo os antecessores
espirituais, seus escritos são de extrema valia, cujas doutrinas nos
direcionam à verdadeira luz que é Cristo.
Os puritanos têm muito que nos ensinar sobre a vida de piedade.
Foram homens fiéis cujo testemunho de vida pode nos servir de inspiração
e, ao lado dos reformadores, foram servos de Deus cuja mente e coração
eram cativos à Palavra do Senhor.
Por isso, ainda hoje, séculos depois, é necessário tornar conhecidos
aqueles que tanto serviram à Igreja de Deus no passado. Seguindo os
mesmos passos, damos, portanto, toda a glória somente a Deus, e não ao
homem. Contudo, reconhecemos o valor da tradição e da vida desses
homens, sabendo, porém, que foi a graça e a misericórdia de Deus neles
operando, tornando-os instrumentos hábeis no ensino da Palavra de Cristo.
Agora, conscientes de que o interesse pelos escritos dos puritanos tem
aumentado, afirmamos sem medo que a teologia reformada, ou as doutrinas
da graça, e a piedade puritana deixaram de ser um tesouro esquecido.
Muitos cristãos evangélicos, hoje, estão se identificando com os ensinos dos
reformadores e dos puritanos.
Buscando, assim, contribuir — e olhando para o mesmo alvo que os
puritanos tanto apontaram, isto é, o coração do Salvador —, a Editora Os
Puritanos se esforça por publicar os escritos de expositores da Bíblia como
Thomas Goodwin. Nosso propósito é oferecer traduções fiéis dos escritos
originais desses homens de Deus, mas em linguagem simples, a fim de que
mesmo o leitor mais modesto consiga conhecer e entender a espiritualidade
e a piedade da tradição, da literatura e da teologia puritanas.
Que Deus, segundo a sua misericórdia e graça, faça uso de nossos
esforços, para sua glória e por amor do seu nome, e que nós, pela fé,
possamos ver “o Coração de Cristo” e experimentar, em nossa própria vida,
“o cuidado do Salvador no céu para com os pecadores na terra”.
— Os Editores
QUEM FOI THOMAS GOODWIN
Filho do pastor Richard Goodwin e de Katherine Goodwin, Thomas
Goodwin, que nasceu em 5 de outubro de 1600, em Rollesby, condado de
Norfolk, Inglaterra, foi, sem dúvida, um dos maiores teólogos puritanos da
Inglaterra. Influenciado pelos puritanos William Perkins e John Owen —
fato evidente àqueles que leem os seus escritos, marcados por simplicidade,
profundidade, clareza e piedade — suas obras marcaram profundamente
outros puritanos como Jonathan Edwards e George Whitefield.
De fato, Goodwin teve uma participação bastante significativa no
conhecido Movimento Puritano. Além de ter sido um dos integrantes da
Assembleia de Westminster, ele também foi um dos líderes da chamada
Independência Eclesiástica (Congregacionalismo), que teve considerável
influência teológica e política na Inglaterra do século XVII. É
surpreendente o fato de que esse movimento é pouco conhecido pelos
evangélicos e até mesmo por boa parte dos cristãos reformados.
Goodwin também participou da agitação política e religiosa na
Inglaterra durante as décadas de 1640 e 1650, que culminou com a Grande
Ejeção de 1662, a qual foi o resultado de um Ato do Parlamento, que
expulsou os “não conformistas” da Igreja da Inglaterra. Nomeadamente,
esse Ato refere-se ao Ato de Uniformidade baixado pelo parlamento inglês,
em 24 de agosto de 1662, e ficou conhecido como A Grande Ejeção porque
cerca de 2 mil ministros puritanos foram arrancados do púlpito e proibidos
de pregar em público. Naquela época, a Igreja Anglicana, que era a religião
oficial, queria forçar os puritanos a cessarem suas pregações ou então a se
“conformarem” com a natureza do culto e da liturgia anglicanas decretadas
por lei. Por causa disso, os “não conformistas” foram excluídos dos
ambientes políticos, culturais e intelectuais e, inclusive, da Igreja da
Inglaterra. Esse último fato é uma das razões por que Goodwin ficou um
tanto esquecido, resultando em certo descaso para com a leitura de suas
obras.
FORMAÇÃO
Goodwin estudou no Christ’s College, em Cambridge, que, à época, era
bastante influenciado pelos escritos dos puritanos William Perkins (1558-
1602) e William Ames (1576-1633). Para a época, Goodwin teve uma
formação bastante sólida. Dentre as diversas áreas do conhecimento
humano por ele estudadas estão o humanismo, a filosofia escolástica, a
linguística, a lógica e a retórica.
Foi também em Cambridge que Goodwin conheceu o Catecismo de
Heidelberg, escrito, em 1563, por Zacarias Ursino (1534-1583) e Gaspar
Oleviano (1536-1587). Merece destaque o fato de ele ter acompanhado os
debates entre calvinistas e arminianos no famoso Sínodo de Dort (1618-
1619), nos Países Baixos. Ao fim dos debates, Goodwin concluiu que os
calvinistas estavam com a razão. Além disso, convém ressaltar que ele foi
diretamente influenciado pelos escritos do reformador francês João Calvino
(1509-1564), sobretudo pelas Institutas da Religião Cristã.
Em 1620, Goodwin assumiu o cargo de professor na St. Catharine’s
College, e o seu ministério foi tão duradouro e frutífero quanto o de seu
colega de ofício e amigo, John Owen.
1 A presente obra faz parte de um conjunto de escritos de Thomas Goodwin e, por isso, ele faz
referência a assuntos anteriormente tratados. – N. do E.
PRIMEIRA PARTE
I. Provas extraídas do discurso de despedida que o Salvador proferiu aos
seus discípulos.
O EXEMPLO DE JOSÉ
A continuidade inerente a toda sorte de relações humanas não é dissolvida
nem mesmo pela glória do próprio Cristo; portanto, seu coração e seu amor
permanecem inalterados quanto a tudo aquilo que é exigido de tais relações.
Considere as relações naturais, por exemplo entre pai e filho, marido e
mulher, e entre irmãos, e veja para qual mundo elas se destinam. Aqui, na
terra, elas perduram, jamais serão dissolvidas. Contudo, esses
relacionamentos carnais, na verdade, cessam naquele outro mundo, pois
foram criados unicamente para esta existência — assim como “a mulher
casada está ligada pela lei ao marido, enquanto ele vive” (Rm 7.2).
Entretanto, a relação de Cristo com os seus foi feita para “o mundo
vindouro”, como diz a Carta aos Hebreus. Trata-se de um relacionamento
em pleno vigor e força, portanto, aperfeiçoado. Essa é a razão para afirmar
que “Jesus Cristo, ontem e hoje, é o mesmo e o será para sempre” (Hb
13.8).
Para ilustrar esse fato por meio dos laços permanentes e indissolúveis
pertencentes às relações neste mundo, as quais nenhuma condição (seja
pobreza, seja riqueza) alterará sua essência, vejamos a história de José. Ele,
então exaltado, manteve sua filiação intacta, cujos afetos permaneceram os
mesmos tanto por seus pobres irmãos, que o haviam prejudicado, quanto
por seu pai. É isso que lemos em Gênesis 45. Durante o seu discurso, José
menciona sua própria nobreza e exaltação: “Deus [...] me pôs por pai de
Faraó, e senhor de toda a sua casa, e como governador em toda a terra do
Egito” (Gn 45.8), não obstante demonstrando não ter se esquecido dos seus
laços de sangue: “Eu sou José, vosso irmão” (Gn 45.4), ainda a mesma
pessoa. Suas afeições revelaram-se de igual maneira as mesmas, pois ele
“não se podendo conter diante de todos os que estavam com ele [...]
levantou a voz em choro”, de acordo com Gênesis 45.1–2. Da mesma
forma, ele se expressa ao pai: “Apressai-vos, subi a meu pai e dizei-lhe:
Assim manda dizer teu filho José: Deus me pôs por senhor em toda terra do
Egito” (Gn 45.9), pois, apesar disso, ainda era seu filho José.
O EXEMPLO DE ESTER
Considere outro exemplo, agora em Ester, no qual não havia senão a relação
conterrânea e sob a mesma aliança. Ela — mesmo quando exaltada rainha
de 127 províncias, nos braços do maior monarca da terra, e desfrutando do
mais elevado favor — veio a declarar: “como poderei ver o mal que
sobrevirá ao meu povo? E como poderei ver a destruição da minha
parentela?” (Et 8.6). Ester considerou apenas sua relação de sangue com seu
próprio povo e o quanto fez diferença essa afinidade sanguínea! Isso é
muito mais verdadeiro com respeito a marido e mulher, pois ambos se
encontram num relacionamento ainda mais íntimo. Se a noiva houvesse
sido pobre e carente, e o noivo uma pessoa importante e ilustre, à
semelhança de Salomão em toda a sua realeza, todos considerariam
vergonhoso o seu proceder caso ele, agora marido, a abandonasse, não
dando todo amor, respeito e cuidado a ela devidos.
PRIMEIRO COMPROMISSO
Acima de todo relacionamento, porém, a relação entre cabeça e membros é
não só a mais natural, mas também a que mais traz obrigações. “Porque
ninguém jamais odiou a própria carne”, diz o apóstolo, ainda que doentia e
leprosa, “antes, a alimenta e dela cuida” (Ef 5.29). É lei natural: “se um
membro sofre, todos sofrem com ele; e, se um deles é honrado, com ele
todos se regozijam” (1Co 12.26). Assim também com respeito a Cristo
(1Co 12.12). São essas relações que instigam Cristo a assumir o primeiro
compromisso de manter seu amor por nós. João diz: “[...] sabendo Jesus que
era chegada a sua hora de passar deste mundo para o Pai, tendo amado os
seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim” (Jo 13.1). A razão disso é
atribuída à sua relação com eles: eram “os seus”, em todos os sentidos
possíveis: “seus próprios irmãos”, “sua própria esposa”, “sua própria
carne”. Se “o próprio mundo ama os que são seus”, como o próprio Cristo
diz, quanto mais o Salvador! “Ora, se alguém não tem cuidado dos seus [...]
é pior do que o descrente”, diz o apóstolo Paulo (1Tm 5.8).
Agora, apesar de Cristo estar no céu, o seu povo ainda é sua família;
eles lhe são ligados, ainda que estando na terra, tão verdadeiramente quanto
aqueles que dele estão próximos agora, na glória. O texto de Efésios 3.15
declara de forma evidente: “de quem toma o nome toda família, tanto no
céu como sobre a terra”. Todos eles compõem uma só família, tendo a
Cristo por Senhor, o fundamento, a essência e o mais perfeito exemplo e
padrão de todo tipo de relacionamento que há neste mundo.
Cristo é, portanto, o fundamento de todos os relacionamentos e
afeições de que o seu povo participa, tanto os naturais quanto os da graça.
Assim como o salmista argumenta: “o que formou os olhos será que não
enxerga?”, do mesmo modo argumento eu. Será que aquele que infundiu
todas essas afeições nos pais e nos irmãos, cada qual adequadamente, não
as possui, em si mesmo, em muito maior proporção? “[...] ainda que Abraão
não nos conhece [estando no céu], e Israel não nos reconhece; tu, ó Senhor,
és nosso Pai; nosso Redentor é o teu nome desde a antiguidade” (Is 63.16).
O profeta, além de referir-se a uma profecia acerca da vocação dos judeus,
fala isso a respeito de Cristo (como fica evidente em Isaías 63.1–2) como
quem está no céu, pois ele diz também: “Atenta do céu e olha da tua santa e
gloriosa habitação” (Is 63.15). Existem apenas duas coisas que o fariam
desprezar os pecadores: sua santidade, pelo fato de ter de lidar com o
pecado, e sua glória, por serem eles criaturas inferiores e corrompidas. Mas
o profeta menciona ambas as coisas ali, para mostrar que, apesar de serem
pecadores, Cristo não os rejeita; e, mesmo sendo inferiores e corrompidos,
ele não os despreza.
Cristo também é a essência de todos os relacionamentos, o que criatura
nenhuma é. Em certo sentido, o marido não é, ao mesmo tempo, pai e
irmão, mas Cristo é; nenhuma relação expressa suficientemente o amor com
que o Salvador nos ama e de nós cuida. É por isso que o Filho chama sua
igreja tanto de irmã como de esposa (Ct 5.1).
Cristo é o padrão e o modelo para os nossos relacionamentos, todos
esses sendo meros reflexos dele. Assim, em Efésios 5, Jesus é apresentado
como padrão para o relacionamento e o amor dos maridos. “Maridos”, diz o
apóstolo, “amai vossa mulher, como também Cristo amou a igreja” (Ef
5.25). De fato, em Efésios 5.31–33, o casamento de Adão e as próprias
palavras que ele pronunciou a respeito de unir-se conjugalmente são
apresentados como tipos e sombras do casamento de Cristo com sua igreja.
“Grande é este mistério, mas eu me refiro a Cristo e à igreja”, diz o
apóstolo Paulo. Em primeiro lugar, um mistério, isto é, o casamento de
Adão foi ordenado secretamente, para representar e significar o casamento
de Cristo com sua igreja. Em segundo lugar, é um grande mistério porque a
coisa por ele significada é, em si mesma, tão elevada, que ele acaba por ser
uma sombra. Por isso, todos esses relacionamentos e suas devidas afeições,
bem como os efeitos desses sentimentos (que você percebe existir nos
homens e a respeito dos quais lê), tudo foi designado para ser, à semelhança
das demais coisas neste mundo, somente sombra daquilo que é real em
Cristo — o único que é a verdade e a substância não só de todas as
analogias do mundo natural como também dos tipos cerimoniais.
Portanto, se não há glória que altere a essência relação entre os
homens, quanto menos ainda em Cristo. “[...] ele não se envergonha de lhes
chamar irmãos” (Hb 2.11). Contudo, o apóstolo havia pouco antes afirmado
a respeito dele, em Hebreus 2.9: “vemos [...] Jesus [...] coroado de glória e
de honra”. De fato, assim como quando um membro sofre e os demais se
compadecem, do mesmo modo Cristo. Paulo perseguiu os santos, os
membros, e a Cabeça, Cristo, lamentou no céu: “Saulo, Saulo, por que me
persegues?” (At 9.4). Alguém pisou o pé, mas a Cabeça sentiu, apesar de
“coroada de glória e honra”.
Somos “carne da sua carne, e osso dos seus ossos” (Ef 5.30). Por isso,
como falou Ester, assim diz Cristo: “como poderei ver o mal que sobrevirá
ao meu povo?”. Se o homem estiver casado com mulher simples, e vier a
ser rei, promovê-la lhe será glória, não vergonha. Sim, lhe seria ignomínia
negligenciá-la, especialmente se, antes do noivado, ela fosse rica e
abastada, filha de rei, mas, depois, pobre e miserável. A esposa de Cristo,
apesar de agora encontrar-se caída em pecado e miséria, quando, no
princípio, foi dada ao Salvador por Deus o Pai (que desde toda a eternidade
operou essa união), foi vista totalmente gloriosa. Na eleição, no princípio,
tanto Cristo quanto nós fomos eleitos por Deus para essa glória que ele há
de derramar sobre o Filho e em nós na consumação de todas as coisas, que
se cumprirá nos propósitos divinos.
Pois Deus, já desde o princípio, vê o fim das suas obras e aquilo que
pretende operar. Dessa forma, então, buscando, desde o início, fazer-nos
assim gloriosos, como haveremos de ser, o Pai nos trouxe e apresentou ao
Filho pela ótica dos seus decretos, com a aparência da glória com a qual,
por fim, pretende nos revestir. Ele nos apresentou ao Filho como que
ornamentado de todas as joias de graça e glória com que estaremos
revestidos no céu. Ele o fez, então, no momento em que apresentou Eva a
Adão, cujo casamento era, em tudo, tipificação de Cristo. De forma que,
assim como Deus nos viu primeiro sob essa aparência e com tal semblante
comparecemos diante dele ao nos apresentar a Cristo (e foi dito: “essa é a
esposa que lhe darei”), assim a Segunda Pessoa da Trindade nos toma por
esposa e se encarrega de nos conduzir àquele estado.
O fato de Deus incluir nos seus decretos a nossa queda no pecado e na
miséria se deu unicamente para exemplificar a história do amor de Cristo, e
por meio dos seus desígnios apresentar o nosso amado esposo de forma
ainda mais gloriosa em seu amor por nós. Deus assim o fez para tornar
ainda mais notável e gloriosa a condição original à qual ele há de nos
restaurar. Por isso é que, casados com ele no tempo em que éramos de
modo tal gloriosos no propósito original de Deus, embora, em seus decretos
sobre a execução desse propósito (ou seja, no processo de levar-nos a essa
glória), tenhamos caído em pecado e miséria antes que a alcançássemos,
ainda assim o matrimônio permanece indissolúvel.
Cristo toma parte da nossa semelhança, e, embora devêssemos
retribuir-lhe a atitude, agora, visto que estamos caídos em pecado, e nossa
carne é frágil e sujeita a enfermidades, o Salvador “tem participação
comum” de carne e sangue com os seus, conforme Hebreus 2.14. Por outro
lado, Cristo, agora exaltado, na glória que lhe foi designada, jamais
descansará enquanto não nos tiver restaurado àquela beleza com que no
início lhe fomos apresentados, e enquanto não nos tiver purificado para nos
“apresentar a si mesmo igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem coisa
semelhante, porém santa e sem defeito” (Ef 5.26–27). Seremos à
semelhança de quando Deus, em seu propósito original, nos apresentou a
Cristo na forma que deveríamos ser, com a beleza natural e original,
detentores daquele estado em que nos contemplou quando a primeira vez se
afeiçoou por nós e nos desposou, o que se evidencia pelo relacionamento
entre Cristo e os homens, pelo fato de ser o nosso esposo (Ef 5.25–26).
Portanto, embora o Salvador agora esteja na glória, não deixa que isso
o desanime, pois seu sentimento marital é: “desposar-te-ei comigo em
justiça, e em juízo, e em benignidade, e em misericórdias” (Os 2.19), e a
concepção daquela beleza encontra-se de tal maneira impressa no coração
de Cristo (beleza que desde a eternidade nos foi designada) que ele jamais
cessará de santificar-nos e purificar-nos até que nos tenha restaurado àquela
beleza que no princípio viu em nós.
SEGUNDO COMPROMISSO
O segundo compromisso assumido por Cristo decorre do fato de esse seu
amor ser ainda mais intensificado por sua obra e seus sofrimentos por nós
aqui na terra, antes de subir ao céu. “Tendo amado os seus”, a ponto de
morrer, ele certamente vai “amá-los até o fim” (Jo 13.1), inclusive por toda
a eternidade. Em todo tipo de relacionamento, tanto espiritual quanto
natural, o fato de fazermos muito por alguém que amamos gera ainda maior
cuidado e amor. Dessa mesma forma, os mais terríveis sofrimentos de
Cristo em nosso favor com certeza produziram nele terna empatia. Coisa
que ocorre com os pais, pois, junto da afeição natural implantada nas mães
por seus filhos, uma vez que a elas pertencem as dores de parto, o difícil
trabalho de parto e os incômodos que sofreram para trazê-los à luz
certamente nutrem afeição, e num grau muito maior do que nos pais. Por
isso, a sublimidade da afeição é atribuída à mãe para com seu filho porque
ele é o “filho do seu ventre” (Is 49.15).
O desempenho da função e do trabalho que é amamentar os filhos — o
que, por vezes, é feito com muita aflição e inquietação —, portanto,
valoriza-os ainda mais. A afeição aumenta de tal forma que o sentimento e
o amor da mãe para com o filho distinguem-se daqueles sentimentos por
outras crianças, a quem não amamentam. Por isso, no mesmo texto de
Isaías, junto do “filho do seu ventre”, menciona-se o “filho que ainda
mama” como sendo a mais elevada instância desse amor. E, igualmente
com a afeição paterna, assim também acontece na afeição conjugal, no
desempenho desse amor mútuo em que ocorrem dificuldades e tribulações;
além disso, quanto mais as pessoas envolvidas tiverem sofrido umas pelas
outras, mais profundos serão seus sentimentos e mais crescerá seu amor, e
aquele por quem sofreram por isso lhes será ainda mais precioso.
Assim como acontece nos relacionamentos naturais, de igual modo
ocorre com relacionamentos espirituais. Fato que se vê em homens santos,
como no caso de Moisés, que foi, para os judeus, um mediador, assim como
Cristo o é para nós. Moisés era tipo e sombra de Cristo, por essa razão faço
menção dele. Abaixo de Deus, foi ele quem libertou o povo de Israel do
Egito, arriscando a própria vida; foi ele quem os conduziu pelo deserto e
deu-lhes a boa Lei; ele era a sabedoria deles à vista de todas as nações, e,
por meio das suas orações, evitou que a ira de Deus se derramasse sobre o
povo. De todos os heróis de que se tem notícia, nenhum fez tanto por uma
nação, cujo povo continuamente murmurava e, por pouco, não o submeteu
ao apedrejamento. E, mesmo assim, aquilo que Moisés havia feito por eles
cativou-lhes de tal forma o coração e de tal maneira os guiou e os
estabeleceu para o bem deles que, embora Deus em sua ira contra o povo
tivesse lhe oferecido a oportunidade de torná-lo uma nação maior e mais
poderosa do que Israel, Moisés recusou a oferta (a mais elevada que
qualquer filho de Adão já recebeu), e, apesar de tudo, manteve-se
intercedendo em favor deles. Entre outros, ele, diante do Senhor, valeu-se
mesmo do argumento cujo âmago era afirmar para Deus os favores que já
havia operado por seu próprio povo, mostrando-lhe de que forma os tirou
“da terra do Egito com grande fortaleza e poderosa mão”, visando comovê-
lo a permanecer benevolente (Êx 32.11s). Deus escutou a intercessão de
Moisés, de acordo com Êxodo 32.14. Sim, o coração de Moisés estava de
tal modo fixado no povo, que não apenas recusou a oferta anterior, mas ele
mesmo propôs algo a Deus, a saber, de sacrificar a sua própria participação
na vida eterna em favor deles: “Agora, pois, perdoa-lhe o pecado; ou, se
não, risca-me, peço-te, do livro que escreveste” (Êx 32.32).
Vemos o mesmo tipo de amor e zelo no apóstolo Paulo por todos os
seus filhos espirituais, nas epístolas que lhes escreveu; as afeições do
apóstolo tornaram-se caríssimas por causa das duras penas, do custo, das
dores de parto, do cuidado e dos sofrimentos que teve para trazê-los a
Cristo. Logo, quão cuidadoso era ele com os gálatas! Como temia perder os
esforços empregados neles! “Receio de vós tenha eu trabalhado em vão
para convosco”, assim o apóstolo declara em Gálatas 4.11, exprimindo de
forma ainda mais profunda poucos versículos adiante: “Meus filhinhos, por
quem de novo sinto as dores de parto, até que Cristo seja formado em
vós”(Gl 4.19). O apóstolo confessa satisfação por outra vez sentir as dores
de parto em favor deles, a fim de não perder aquilo por que, sofrendo, já
havia labutado em outra ocasião.
Agora, desses dois exemplos, dos quais um deles era tipo de Cristo e o
outro uma exata expressão e modelo do sentimento que há no Salvador,
podemos ter segurança a respeito do amor e da afeição que,
necessariamente, existem no coração de Cristo — devido ao que ele fez e
sofreu em nosso lugar.
Primeiro, com respeito a Moisés. Será que Moisés operou em favor do
seu povo aquilo que Cristo fez e sofreu por você? Moisés reconheceu não o
ter concebido, mas Cristo gerou a todos nós; somos o penoso trabalho da
sua alma; em nosso favor, o Filho suportou as ânsias da morte (como Pedro
as chama em At 2.24). E quanto a Paulo? Ele mesmo pergunta a respeito de
si: “Foi Paulo crucificado por vós?”. Não, mas o Senhor Jesus Cristo o foi,
e o apóstolo o diz para destacar ainda mais o amor do Salvador. Ou, se
Paulo tivesse sido crucificado, será que nos seria de algum proveito? Não!
Por isso, se o apóstolo, temendo que os gálatas estivessem se desviando,
estava disposto a novamente suportar as dores de parto por eles, quanto
mais o coração de Cristo se move em direção aos pecadores!
Havendo Cristo suportado tão infinito sofrimento em nosso favor,
cujas cicatrizes jamais serão apagadas, seu grande amor que tem por nós —
se pudéssemos pensar que de outra forma não seríamos salvos — o faria
disposto a sofrer as dores de parto outra vez. O Salvador, contudo, precisou
morrer uma única vez, conforme o apóstolo declara na Carta aos Hebreus,
visto que o seu sacerdócio é perfeito. Esteja seguro, portanto, de que o seu
amor não se esgotou nem se exauriu em sua morte; pelo contrário, por meio
dela só o fez crescer. Foi seu amor que o levou a morrer e a dar a “vida
pelas ovelhas” (Jo 10.15), e, antes de entregá-la, declarou: “Ninguém tem
maior amor do que este” (Jo 15.13). Mas, agora, uma vez morto e
ressurreto, sua entrega necessariamente o deixou ainda mais apegado
àqueles por quem fez sacrifício.
O amor e o zelo para aquele que se compromete por uma pessoa ou
causa são proporcionais à intensidade do sofrimento recebido para sustê-
los. De outra sorte, o indivíduo perde a gratidão e o respeito por tudo aquilo
que foi feito em seu favor e pelas circunstâncias passadas. “Terá sido em
vão que tantas coisas sofrestes?”, pergunta o apóstolo aos gálatas (Gl 3.4),
fazendo disso motivo e incentivo para que, visto terem suportado tanta
coisa por causa de Cristo e por tê-lo professado, eles, assim, não perdessem
tudo, no desejo de fazer algo mais.
Será que não perdura em Cristo essa mesma disposição? Em especial,
quando considerado o penoso trabalho para o qual foi enviado a este
mundo, e o fato de que o trabalho que agora deve cumprir no céu é muito
mais suave e cheio de glória — pois Jesus está “colhendo com alegria”
aquilo que aqui “semeou com lágrimas”. Se o seu amor foi tão grande a
ponto de suportar tanto, então, agora que a dor já passou e seu afeto foi
comprovado, será que esse amor não vai continuar? Se, quando provado
pela adversidade (e esse é o mais seguro e forte amor), a maior adversidade
que jamais existiu, seu amor perdurou, será que não vai perdurar agora que
seu estado é de exaltação? Será que seu coração se apegou a nós na maior
tentação que jamais ocorreu, e agora seu estado glorioso e próspero vai
remover ou diminuir seu amor por nós? Não, jamais! “Jesus Cristo, ontem e
hoje, é o mesmo e o será para sempre” (Hb 13.8).
O Salvador, tomado de dor, recebeu as palavras de um daqueles por
quem estava sofrendo: “Senhor, lembra-te de mim quando vieres no teu
reino”. Será que Jesus considerou esse pedido? Conforme sabemos, Jesus o
fez, dizendo-lhe: “Em verdade te digo que hoje estarás comigo no paraíso”
(Lc 23.42–43). Havendo chegado lá, Cristo certamente se lembrou dele, tão
certo quanto a mais segura prova de todas as provas, cuja existência o
Salvador jamais esquecerá, a saber, as dores que ele mesmo então suportou
por aquele homem. Jesus tanto se lembra dessas dores quanto de nós,
conforme declara o profeta Isaías. Além do mais, se o Senhor deseja que
nos lembremos de sua morte até que ele venha (1Co 11.24–26), a fim de
levar nosso coração a amá-lo, quanto mais Cristo no céu! Ele se lembra de
nós, e não há dúvida disso, mesmo agora, que está na glória do seu reino,
seguindo a mesma promessa que fez a um dos ladrões na cruz. Encerro aqui
a apresentação desse segundo compromisso.
TERCEIRO COMPROMISSO
O terceiro compromisso assumido por Cristo é o compromisso do
cumprimento de um ofício que ainda depende dele e requer de sua parte
toda misericórdia e graça pelos pecadores que a ele se achegam. Por essa
razão, permanecendo nessa posição e ainda incumbido desse ofício (e para
todo o sempre), seu coração mantém-se necessariamente cheio de ternura e
afetos profundos. Tal ofício é o seu sacerdócio, cuja menção no texto de
Hebreus 4 se dá para demonstrá-lo como o fundamento a encorajar que nos
acheguemos “confiadamente, junto ao trono da graça, a fim de recebermos
misericórdia e acharmos graça para socorro em ocasião oportuna”, visto que
temos “grande sumo sacerdote que penetrou os céus” (Hb 4.14–16).
A seguir, quero apresentar dois pontos para melhor expor esse
raciocínio: (1)o ofício do sumo sacerdócio tem por objetivo, antes de tudo,
manifestar graça e misericórdia; (2)tal ofício atribui a Cristo o dever de
manifestar-se, em todo o seu proceder, cheio de graça e de misericórdia, de
fato conservando, portanto, seu coração pronto e disposto para as
manifestar.
QUARTO COMPROMISSO
O quarto compromisso assumido por Cristo é expresso num argumento que,
acrescentado ao compromisso anterior, muito pode ajudar nossa fé nesse
quesito. Trata-se do benefício que o próprio Cristo obtém tanto pelo fato de
nossa salvação ter sido comprada por seu sangue quanto pelo fato de ter seu
próprio deleite, bem-estar, alegria e glória aumentados e ampliados
enquanto manifesta graça e misericórdia, quando perdoa, alivia e conforta
seus membros aqui na terra — que estão sujeitos a toda sorte de fraquezas.
Dessa forma, aliado à obrigatoriedade do ofício que Jesus assumiu em
nosso favor, acrescenta-se um poderoso benefício próprio, isto é, firmar seu
coração com fidelidade em nosso favor, em tudo o que nos diz respeito.
Advogados e procuradores atuam em favor de outra pessoa, apesar de não
terem participação na propriedade daquilo que estão pleiteando, nem direito
de posse, nem sociedade. Mas, se forem honestos, com que tamanho
empenho e diligência eles se esforçarão pelo benefício daquele que os
contratou, simplesmente porque essa é a função e o dever que lhes cabe por
profissão. Não obstante, todavia, não recebem eles pouca remuneração, se
comparada com o patrimônio que estava em jogo? Sendo assim, quanto
mais teriam sido estimulados à diligência se as terras e propriedades em
favor das quais pleiteavam pertencessem a eles ou fossem compradas como
dote para suas esposas ou herança para seus filhos!
Ora, assim é o perdão dos nossos pecados, a salvação da nossa alma e
a conformação de nosso coração à imagem de Cristo. Isso tudo foi
comprado pelo sangue de Cristo, e, no momento em que os desperta e
estimula, o Salvador faz bem aos “próprios filhos” e à “própria esposa”, o
que, na verdade, é fazer bem a si mesmo. Sim, proceder dessa maneira
confere mais bem-estar e glória a Cristo do que para seus membros. Por
essa razão, o apóstolo afirma, no início do capítulo 3 da Carta aos Hebreus,
que Cristo está inteiramente comprometido a cumprir com o seu ofício, não
apenas como simples servo, em quem seu senhor confia, mas como
proprietário, que é dono das coisas confiadas a seu cuidado, e que recebe
rendimentos dali.
O apóstolo declara em Hebreus 3.5: “E Moisés era fiel, em toda a casa
de Deus, como servo [...] Cristo, porém, como Filho, em sua casa; a qual
casa [ou família] somos nós”. Se um médico, em troca dos seus honorários,
trabalha com fidelidade ainda que desconheça o paciente, muito mais agirá
dessa forma se este for seu próprio filho, uma vez que a própria vida e bem-
estar do doutor estão ali, atados àquele que é sangue do seu sangue, ou se
muito dos seus bens e sustento procedem da vida daquele que está tratando.
Numa situação dessas, o paciente pode ficar seguro de que não passará por
falta de cuidado, nem haverá sacrifício por parte do médico, nem falta dos
medicamentos que lhe trarão melhora. Não faltarão recursos para curá-lo e
mantê-lo saudável, e não faltará alimentação apropriada para nutri-lo e
fortalecê-lo — assim como ocorreu com o chefe dos eunucos, no primeiro
capítulo do livro de Daniel, o qual era responsável pelos jovens, e cabia a
ele fazê-los comer e beber do melhor, pois sua posição dependia da boa
aparência daqueles rapazes. Ora, Deus ordenou a realidade de tal forma
que, mesmo como dever perpétuo do coração de Cristo voltado aos seus, o
fato de ele nos conceder graça, misericórdia e paz é grande parte da sua
glória e da fonte da alegria e da herança nos céus.
A fim de explicar como isso se dá, considere que a natureza humana
de Cristo, que está no céu, possui capacidade de porção dobrada de glória,
alegria e prazer: uma capacidadetal que provém da companhia e comunhão
com o Pai e com seus irmãos, mediante sua união pessoal com a Divindade.
O próprio Cristo fala, no Salmo 16.11, a respeito da alegria que ele desfruta
nessa comunhão: “na tua presença há plenitude de alegria, na tua destra,
delícias perpetuamente”. Há plenitude de prazer, constante e estável, de tal
forma que não existe espaço para acréscimo ou diminuição, permanecendo
sempre a mesma, absoluta e completa em si mesma, por si só suficiente, de
modo que o Filho de Deus e herdeiro de todas as coisas de nada mais
precisa para viver, mesmo que não tivesse nenhuma outra fonte de alegria e
prazer vindos de qualquer outra criatura. Essa é sua herança natural.
Deus, contudo, também pôs sobre o Filho mais uma coroa de glória e
outra fonte de prazer, provindas de outro lugar, outra plenitude, ou seja,
provenientes de sua igreja e esposa, a qual constitui seu próprio corpo. Essa
é a razão por que o apóstolo, em Efésios 1, depois de mencionar as mais
elevadas coisas que se podem dizer sobre a glorificação pessoal de Cristo
no céu, que foi exaltado à direita do Pai “nos lugares celestiais, acima de
todo principado, e potestade, e poder, e domínio, e de todo nome que se
possa referir” (Ef 1.20–21), ainda acrescenta: “e para ser o cabeça sobre
todas as coisas, o deu à igreja, a qual é o seu corpo, a plenitude daquele que
a tudo enche em todas as coisas” (Ef 1.22–23). Assim, apesar de em si
mesmo ser tão pleno, e embora habite nele a plenitude da Divindade, de
forma que ele próprio a tudo completa em todas as coisas, Cristo se agrada
de considerar — e assim é de fato — a sua igreja e a salvação dela como
outra plenitude para si, acrescentada àquela primeira.
Visto ser o Filho de Deus, ele é plenamente completo em seu ser;
contudo, como Cabeça, há nele plenitude dobrada de alegria, esta
proveniente do bem-estar e da felicidade dos seus membros. Assim como
todo prazer acompanha a ação e é resultado dela, de igual modo essa
plenitude se completa nele pelo exercício de atos de graça e por
constantemente fazer o bem para seus membros. Ou, nas palavras do
apóstolo, sua plenitude provém de enchê-los de toda misericórdia, graça,
bem-estar e felicidade, tornando-se ele mesmo ainda mais pleno quando os
supre. Essa também é sua herança, tal qual no outro estado de plenitude.
Cristo, portanto, tem dobrada herança: uma pessoal, que lhe é devida
por ser o Filho de Deus, anterior à sua encarnação, antes que tivesse feito
qualquer obra em favor de nossa salvação; e outra adquirida, comprada e
recebida como recompensa por ter executado grandiosa obra e obediência.
Certamente, unida à glória de sua pessoa, existe a glória de seu ofício de
Mediador e Cabeça da igreja. E, apesar de pleno e completo em si mesmo,
Jesus Cristo não menospreza essa porção dos seus benefícios, advinda deste
mundo.
Dito isso, desejo agora apresentar a confirmação e exposição do
presente raciocínio. Essa glória e felicidade que superabundam em Cristo
são acrescentadas, e também ampliadas e intensificadas, à medida que seus
membros têm mais e mais consciência daquilo que foi adquirido por sua
morte. Quando nossos pecados são perdoados, nosso coração é santificado e
nosso espírito consolado, então, desse modo, o Salvador vê o fruto do seu
penoso trabalho e é consolado, pois ele mesmo é mais glorificado por meio
dessa obra. Sim, o Filho de Deus tem mais prazer e alegria nela do que os
próprios discípulos. Cabe a ele conservar no coração o cuidado e o amor
pelos seus pequeninos que ainda estão neste mundo, para alimentá-los e
revigorá-los a cada momento (Is 27.3).
Quando age com graça e favor e faz o bem aos seus, Cristo faz bem a
si mesmo — essa é a maior garantia que poderia haver. Eis o porquê de o
apóstolo exortar os homens a que amem suas esposas com base neste fato
— ao fazê-lo, eles amam a si mesmos: “Quem ama a esposa a si mesmo se
ama” (Ef 5.28), pois tão próxima e íntima é a relação! Ora, o mesmo é
verdade em relação ao sentimento de Cristo por sua igreja, razão por que,
no mesmo lugar, o amor do Salvador por ela é apresentado como o modelo
e exemplo do nosso amor (como declara Efésios 5.25: “como também
Cristo amou a igreja”). Pode-se deduzir, inclusive, comparando um texto
com o outro, que, quando ama sua igreja, Cristo, portanto, ama a si mesmo.
Então, quanto mais amor e graça manifesta aos membros do seu corpo,
maior é o amor demonstrado a si mesmo.
Em decorrência disso, também é acrescentado em Efésios 5.27 que
Jesus “lava e purifica sua igreja” diariamente, isto é, a purifica tanto da
culpa quanto do poder do pecado, “para a apresentar a si mesmo igreja
gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem coisa semelhante, porém santa e sem
defeito”. Observe que é para apresentá-la a si mesmo. Dessa forma, tudo o
que faz por seus membros, é para si mesmo que ele o faz, de fato, mais do
que para eles próprios. Sua participação na glória provinda dos seus é maior
que a deles, assim como maior é a glória da causa do que a do efeito. De
fato, essa é a forma pela qual a Escritura se refere a essa verdade, como
quando diz que os santos são “a glória de Cristo”, em 2Coríntios 8.23.
Em João 17.10, 22–23, Cristo declara que é “glorificado neles”. O
Salmo 45, no qual Jesus é representado como Salomão em toda a sua
realeza e majestade, afirma que o rei “cobiçará [...] aformosura” da rainha, a
saber, as graças dos santos; e não se trata de mera admiração, mas “cobiça”,
desejo este que se intensifica à medida que formosura e beleza aumentam.
Esse é o motivo que lhe é apresentado para ser mais santa e conformada ao
seu Senhor: “vê, dá atenção; esquece o teu povo e a casa de teu pai. Então,
o Rei cobiçará a tua formosura” (Sl 45.10–11). Cristo possui tal beleza e ela
o torna agradável, e de igual modo nós também, embora de modo diferente.
Essa é a razão por que ele não descansará enquanto não tiver removido toda
mancha e ruga da face de sua esposa, segundo o apóstolo: “para a
apresentar a si mesmo igreja gloriosa”, ou seja, encantadora e agradável aos
olhos.
De acordo com isso, para nos firmar e solidificar ainda mais, Cristo, no
sermão que foi sua solene despedida antes de partir para o céu, assegura os
discípulos de que seu coração estava longe de alienar-se, garantindo que sua
alegria encontrava-se depositada neles, por vê-los prosperar e dar fruto (Jo
15.9-11). Seu propósito foi deixá-los seguros de que o amor por eles haveria
de permanecer depois de ter partido (Jo 15.9-10): “Como o Pai me amou,
também eu vos amei; permanecei no meu amor”. É como se o Salvador
dissesse: “Não temam por meu amor, nem por perdê-lo na minha ausência;
mas o que lhes cabe é desempenhar cada um o seu dever”.
Além do mais, a fim de conferir-lhes segurança, Cristo acrescenta que,
mesmo quando estivesse no céu, na maior plenitude do seu deleite, à destra
de Deus, ainda ali sua alegria estaria sobre eles e seu bem-estar: “Tenho-vos
dito estas coisas para que o meu gozo esteja em vós, e o vosso gozo seja
completo” (Jo 15.11). Ele fala exatamente como um pai que se despede dos
filhos, confortando-os por ocasião de sua partida, dando-lhes conselhos
úteis para tomarem boas decisões quando não mais estivesse com eles, para
guardarem seus mandamentos e amarem uns aos outros (Jo 15.10, 12). Ele
tudo fundamenta com a seguinte motivação: “Tenho-vos dito estas coisas
para que o meu gozo esteja em vós”. É assim que os pais costumam falar,
desejando aos filhos plenitude de paz e alegria.
Para mais profunda explicação acerca de os discípulos permanecerem
em seu amor e sua alegria permanecer neles, algumas palavras são usadas
para indicar que essa realidade perdurará também no céu. Quando Cristo
diz: “para que meu gozo permaneça em vós”, é como se dissesse: “para que,
mesmo no céu, eu tenha motivo para alegrar-me em vocês quando souber a
respeito de suas obras: que estão em harmonia e em amor uns pelos outros,
e guardando meus mandamentos”. Aquilo que Cristo chama de “minha
alegria” não é o fato de os discípulos estarem nele; a ênfase está, pelo
contrário, no fato de Cristo estar neles, ou seja, tal alegria é a alegria que
Cristo sente por estar nos discípulos. É assim que Agostinho já há muito
tempo interpretou. Quidnam, diz ele, est illud gaudium Christi in nobis, nisi
quod ille dignatur gaudere de nobis? (O que é a alegria de Cristo em nós
senão aquela que ele se digna e se propõe a ter de nós e por nossa causa?).
O que fica evidente ao entender que de outra forma, fosse à alegria deles
que se referisse naquela primeira frase, logo, a frase seguinte, “e a vossa
alegria seja completa”, seria de natureza tautológica. Por isso, Cristo fala da
própria alegria e da deles como de duas coisas distintas; e as duas juntas
eram os maiores motivos que poderiam ser apresentados para encorajar e
despertar seus discípulos à obediência.
Faça, pois, uma avaliação do coração de Cristo a partir das atitudes dos
santos apóstolos Paulo e João, que eram “imagens menores” dessa
disposição do Salvador. Qual era, após a direta comunhão com o próprio
Senhor, a maior alegria e conforto deles para viverem neste mundo senão o
fruto do seu ministério manifesto nas graças tanto da vida quanto do
coração daqueles que ambos haviam gerado em Cristo?
Observe como Paulo se expressa em 1Tessalonicenses 2.19–20: “Pois
quem é a nossa esperança, ou alegria, ou coroa em que exultamos, na
presença de nosso Senhor Jesus em sua vinda? Não sois vós? Sim, vós sois
realmente a nossa glória e a nossa alegria!”. E, em 3João 3, João fala o
mesmo, a saber, que ele se deleitava grandemente com o bom testemunho
sobre Gaio: “Pois fiquei sobremodo alegre pela vinda de irmãos e pelo seu
testemunho da tua verdade, como tu andas na verdade. Não tenho maior
alegria do que esta, a de ouvir que meus filhos andam na verdade”. Ora,
quem eram Paulo e João senão instrumentos por meio dos quais eles tinham
crido e sido gerados? Nenhum deles foi crucificado por eles, nem eram
esses filhos seus o penoso fruto das suas almas. Quanto mais, então, há de
estar sobre Cristo, cujo interesse em nós e em nossa paz é tão infinitamente
maior, sua alegria e coroa por seus membros. E vê-los achegando-se em
busca de graça e misericórdia, e andando na verdade, faz com que o
Salvador se deleite ainda mais, pois assim vê o penoso trabalho de sua alma
e fica satisfeito.
Com efeito, aquilo que Salomão diz a respeito dos pais, em Provérbios
10.1 (“O filho sábio alegra a seu pai”), é muito mais verdadeiro acerca de
Cristo. Nossa santidade, frutificação e conforto espiritual alegram o coração
de Cristo, nosso “Pai da Eternidade”. Ele mesmo o afirma, e eu suplico que
você creia nele e se comporte de acordo com o que ele próprio disse. Além
do mais, se parte da alegria de Cristo provém do nosso crescimento e bem-
estar, logo não duvide: suas afeições permanecem, visto que o amor por si
mesmo fará com que elas sejam duradouras por nós. Da parte do Salvador,
haverá prontidão para nos abraçar e receber quando formos em busca de
graça e misericórdia.
QUINTO COMPROMISSO
O quinto compromisso assumido por Cristo diz respeito a um compromisso
determinado pelo Pai, o qual Cristo deveria assumir para sempre, pelo fato
de possuir nossa natureza, a qual ainda conserva no céu. O ofício
misericordioso do sumo sacerdote também foi alvo da eterna união pessoal
entre a natureza humana e a Divindade na Segunda Pessoa da Trindade.
Assim como seu ofício impõe sobre ele tal dever, assim também o fato de
ter-se tornado homem o qualifica para essa posição e seu cumprimento, a
fim de suprir fundamento para nosso raciocínio. Eis uma característica
essencial de nosso Sumo Sacerdote, que tanto o qualifica para exercer
profunda misericórdia quanto para, ao tomar para si nossa natureza, cumprir
um dos grandiosos propósitos de Deus.
Em primeiro lugar, é uma característica essencial de suas
misericórdias. É isso que se lê em Hebreus 5.1–2: “Porque todo sumo
sacerdote, sendo tomado dentre os homens, é constituído nas coisas
concernentes a Deus, a favor dos homens, para oferecer tanto dons como
sacrifícios pelos pecados, e é capaz de condoer-se dos ignorantes e dos que
erram”, ou seja, capaz de, naturalmente, exercer misericórdia e bondade,
como aquelas que o homem manifesta por alguém da sua própria estirpe.
De outra forma, os anjos, considerando sua natureza, teriam produzido
maior e mais ilustre sumo sacerdote. Contudo, eles não teriam condições de
ter piedade dos homens, à semelhança daqueles que se compadecem por
seus consanguíneos, por seres da mesma natureza.
Em segundo lugar, esse era também o objetivo e a intenção de Deus ao
ordenar que Cristo assumisse nossa natureza, de acordo com Hebreus 2.16–
17: “Pois ele, evidentemente, não socorre anjos, mas socorre a descendência
de Abraão”, ou seja, a natureza humana, de igual essência, e “convinha que,
em todas as coisas, se tornasse semelhante aos irmãos, para ser
misericordioso e fiel sumo sacerdote”; eis a ἴνα ὲλεήμων γένηται (hina
eleēmōn genētai), isto é, “a finalidade por que ele veio a existir”, a saber:
“tornar-se misericordioso”.
Talvez alguém diga: “mas não era o Filho de Deus tão misericordioso
tanto antes quanto depois de assumir nossa natureza? Ou será que sua
misericórdia ficou maior do que seria caso não tivesse assumido a natureza
humana?”.
Respondo que sim, pois ele é tão misericordioso agora quanto era já
antes, mas:
(1) O fato de ter tomado para si a natureza humana manifestou (da
forma mais notória possível a olhos humanos) a eterna permanência das
misericórdias de Deus pela humanidade, visto que o Filho tornou-se homem
para todo o sempre. Desta forma, estamos seguros de que ele será
misericordioso com os homens, porquanto possui uma natureza igual a
deles (e isso por toda a eternidade). Pois, assim como a sua união com
nossa natureza é para todo o sempre, assim também por meio dela são
garantidas as suas misericórdias por toda a eternidade; de forma que Cristo
não pode, e não pretende, deixar de ser misericordioso com os homens,
assim como não pode, agora, deixar de ser homem — o que jamais deixará
de ser.
(2) O fato de Jesus Cristo tomar para si nossa natureza não apenas
incrementa nossa fé, mas, de uma forma ou de outra, acresce ao fato de ser
ele misericordioso, o porquê do registro: “para ser misericordioso”. Ou seja,
misericordioso de modo tal que de outra maneira o próprio Deus jamais
havia sido — isto é, como homem. Assim, essa união das duas naturezas,
Deus e homem, foi projetada por Deus para revelar o mais extraordinário
composto de graça e misericórdia de magnitude jamais vista, o qual é
plenamente adequado e justo para a cura e a salvação de nossa alma.
A natureza humana que Cristo assumiu nada acrescenta nem pode
acrescentar ao total e à grandeza dessa misericórdia que estava em Deus,
que constitui o âmago e tesouro das misericórdias manifestadas ao homem.
Pelo contrário, a humanidade de Cristo recebeu toda a sua imensidão de
misericórdia da própria Divindade. De sorte que, se o Salvador não contasse
com as misericórdias de Deus para alargar seu coração em nosso favor, ele
jamais teria condições de nos ser misericordioso por todo o sempre. Mas,
então, uma vez assumida essa natureza humana, tem-se uma nova maneira
de ser misericordioso. Ela assimila todas essas misericórdias e faz delas as
misericórdias de um homem, faz delas misericórdias humanas, e dessa
forma lhes concede uma naturalidade e amabilidade apropriadas à nossa
condição. De forma que, doravante, Deus, amável e bondosamente,
compadece-se de nós, que somos carne da sua carne e osso dos seus ossos,
assim como um homem se compadece de outro, e isso nos encorajaa ir a
ele, a fim de sermos feitos amigos íntimos de Deus, relacionando-se com
ele por meio da graça e da misericórdia (do mesmo modo como um homem
faria com seu próximo), cientes de que Deus habita no homem Cristo Jesus
(em quem nós cremos), cujas misericórdias operam em seu coração e por
meio dele à maneira humana.
Por ora não insistirei nesse conceito, porque terei oportunidade de
tratar dele novamente, complementando-o na terceira e última parte deste
tratado, na qual trataremos do modo como o coração de Cristo está
predisposto aos pecadores. Simplesmente considere o consolo que isso pode
trazer à nossa fé, que Cristo teria de deixar de ser Deus para cessar com
suas misericórdias, visto que o exato motivo de ter-se tornado homem foi
para que estivesse apto a manifestar misericórdia aos homens, e isso de
forma familiar às nossas percepções, como o próprio bater do nosso
coração, que como Deus ele não teria condições de manifestar. A isso,
acrescente-se o seguinte raciocínio, ousado, embora verdadeiro: é mais fácil
Cristo deixar de ser Deus do que deixar de ser homem. A natureza humana,
depois que a tomou sobre si, sendo elevada a todos os direitos naturais de
Filho de Deus, e que lhe foi tornada natural, permanecerá eternamente
unida à sua natureza divina. É mais fácil que o Salvador deixe de ser Deus e
homem do que não estar pronto a demonstrar misericórdia. De sorte que
não só o propósito do ofício de Cristo, mas também a intenção com que
tomou para si nossa natureza deposita sobre ele outra responsabilidade,
sendo esta ainda mais profunda do que as anteriores.
TERCEIRA PARTE
I. Algumas noções gerais a respeito de como se deve entender que o
coração de Cristo é “influenciado” pela percepção das nossas fraquezas, e
de como nossas fraquezas alcançam e comovem seu coração.
PRIMEIRO PASSO
Esse sentimento de compaixão, ou o fato de Cristo ser apto a “compadecer-
se das nossas fraquezas”, não deve ser entendido no sentido metafórico ou
de antropopatia,2 como se entende nas vezes em que Deus se utiliza desse
meio no Antigo Testamento (quando sentimentos de compaixão lhe são
atribuídos e é dito que seus afetos “se misturaram”, ou quando é dito que
Deus se arrependeu e se afligiu em todas as aflições do seu povo).
Todas essas expressões se referem a Deus (o que todos sabemos), mas
simplesmente como kαθ ἀνθρωπωπάθειαν (kath anthrōpōpatheian), isto é,
segundo o falar dos homens, a fim de transmitir e representar à nossa
compreensão, por meio de sentimentos, aquilo que costuma estar nos pais
ou amigos em determinados casos (sentimentos que os levam a agir de
determinada forma), e a fim de explicar a maneira de Deus agir com os seus
quando os vê em aflição. Assim, esses sentimentos são mencionados mais
per modum effectus do que affectus, ou seja, mais pelo efeito que Deus
produz do que pelo tipo de afeição que realmente há em seu coração, o qual
não corresponde a nenhum desses sentimentos. Agora, quanto ao correto
entendimento desse tópico, a primeira coisa que afirmo é a seguinte: não é
nesse sentido que Cristo é descrito, e justificarei essa minha afirmação por
meio dos dois pontos que seguem abaixo.
O primeiro deles é o de que a afeição de Cristo por nós, mencionada
pelo versículo, refere-se inequivocamente à sua natureza humana, e não só à
sua Divindade — visto que é mencionada com relação à natureza na qual
ele foi tentado como nós somos agora. Isso fica evidente no texto, de modo
tal que só é possível referir-se à sua natureza humana.
O segundo ponto é o de que não consigo conceber que esse tipo de
expressão, usada com referência a Deus antes de assumir nossa natureza —
unicamente em forma de metáfora e similitude, “conforme a maneira de
falar dos homens” —, não deva ser usada em sentido mais real e próprio a
respeito de Cristo e de sua natureza, agora que assumiu forma humana, e é
homem de forma tão verdadeira e completa como nós. Digo isso com base
naquilo que já apresentei: que um dos propósitos de Cristo ao tomar para si
a natureza humana era para que estivesse apto a “ser misericordioso e fiel
sumo sacerdote”, de tal forma que, fosse ele somente Deus, isso não
aconteceria.
Confesso que muitas vezes me vi perplexo com a expressão usada em
Hebreus 2.16–17:3 “Ele tomou sobre si a descendência de Abraão para
tornar-se sumo sacerdote de misericórdias”. À primeira vista, o texto parece
dizer que Deus tornou-se deveras mais misericordioso pelo fato de assumir
nossa natureza. Mas essa questão foi resolvida quando vi que o fato
acrescentou uma nova forma de Deus mostrar-se misericordioso, de
maneira que agora se pode dizer, para consolo e alívio da nossa fé, que, de
fato, Deus é misericordioso enquanto homem.
Toda essa análise ajuda a esclarecer nosso tópico: por ser em si mesmo
assaz glorioso e perfeito, sua glória não podia ser tocada pelo menor
sentimento de nossas fraquezas, nem ele em seu próprio Ser era suscetível a
qualquer dessas afeições de piedade e compaixão: “a Glória de Israel [...]
não é homem, para que se arrependa” (1Sm 15.29). Contudo, o Senhor
agora pode, de fato, apiedar-se de nós quando estamos sob tormenta, à
semelhança de um homem que se compadece dos seus. As afeições e os
sentimentos em si mesmos, porém, não o afetam. Um dos porquês de Deus
tê-la escolhido, entre outros fins para assumir a natureza humana, foi para
que, dessa forma, ele pudesse ser amoroso e misericordioso com os
homens, à semelhança do homem que assim age com o seu próximo.
Desse modo, aquilo que, no Antigo Testamento, foi proferido de
maneira inadequada e em forma de metáfora e semelhança, a fim de que
entendêssemos, pode agora ser, de fato e realmente, atribuído ao Salvador.
Pode-se, para sempre, dizer que Deus, como homem, se compadece de
nossas fraquezas e se comove com nossas enfermidades como homem.
Sendo assim, por meio dessa feliz união de ambas as naturezas, a
linguagem do Antigo Testamento, total e unicamente como figura de
linguagem, comprova-se e consuma-se como realidade — bem como as
sombras que representavam Cristo foram nele mesmo cumpridas. Esse é o
primeiro passo em direção à compreensão do que se diz aqui a respeito de
Cristo, a partir dessa comparação com as mesmas realidades atribuídas ao
próprio Deus.
SEGUNDO PASSO
Além disso, uma segunda medida para compreender esse tópico é a
comparação com os anjos e com os sentimentos de amor e compaixão que
certamente se encontram neles. Em comparação com os anjos, as afeições
da natureza humana de Cristo, conquanto glorificada, necessariamente hão
de ser muito mais semelhantes às nossas, mais ternas e mais humanas. Essa
é a razão por que Hebreus 2.16 declara claramente: “Porque ele com certeza
não assumiu a natureza dos anjos, para poder ser um misericordioso sumo
sacerdote”. Em parte, essas palavras pretendem não só provar a razão pela
qual Cristo tomou para si nossa natureza, em um corpo tão frágil (embora o
apóstolo mencione isso em Hebreus 2.14), mas também dar a razão de ter
assumido a natureza humana — devido à sua essência —, e não a natureza
dos anjos, uma vez que, em suas afeições de misericórdia, o Senhor haveria
de, eternamente, aproximar-se de nós, e ter os mesmos tipos de afeto que
nós. Com respeito a outros aspectos, um anjo, pelo contrário, teria sido um
sumo sacerdote muito mais distinto e glorioso do que seriam os homens.
Agora, sendo nossos conservos, como o anjo a si mesmo denominou
(Ap 22.9), eles têm afeições mais semelhantes às nossas do que as de Deus,
tendo, portanto, melhor condição de compreender nossos sofrimentos.
Embora sejam espíritos, eles partilham de algo análogo ou semelhante que
reage aos afetos de aflição e compaixão, que se encontram em nós. De fato,
assim como essas afeições estão em nossa alma, à parte das paixões do
corpo, cuja união é com a alma, elas são semelhantes àquelas que os anjos
possuem. Por essa razão é dito que as mesmas concupiscências que estão no
homem estão também nos demônios (Jo 8.44). Por isso, também, é dito que
os demônios temem e tremem. Assim, antagonicamente, as mesmas
afeições que estão no homem, por serem de origem espiritual — e é no
espírito e alma que eles estão —, necessariamente estão também nos anjos
de luz.
Cristo, porém, tendo natureza humana, da mesma substância que a
nossa, constituída de alma e corpo, embora transformado em corpo
espiritual quando glorificado, não se tornou, contudo, um espírito somente:
“um espírito não tem carne nem ossos, como vedes que eu tenho”, diz
Cristo a respeito de si mesmo, depois de ressurreto (Lc 24.39). E é por essa
razão que o Salvador tem afeições por nós, mais próximas e semelhantes às
nossas que as dos anjos.
Após essas duas análises, devemos compreender duas coisas: primeiro,
que, na natureza humana, embora glorificada, as afeições compostas de
misericórdia e compaixão são verdadeiras e reais, mas não atribuídas de
forma metafórica, quando outrora se referiam à natureza divina. Segundo,
tais afeições são mais próximas e semelhantes às nossas do que aquelas que
estão nos anjos; são afeições próprias da natureza do homem e
verdadeiramente humanas. Cristo possuía essas afeições, apesar de sua
natureza humana ter sido, desde o momento em que a assumiu (no estado
de humilhação), tão gloriosa quanto agora que ele está no céu.
TERCEIRO PASSO
Agora, acrescente a isso tudo que Deus ordenou a realidade de tal forma
que, antes mesmo que assumisse sua natureza humana com a glória que
tinha no céu e sobre aquela depositasse esta, o Filho teria de vestir sua
própria humanidade com todas as nossas fraquezas, as mesmas com que
lidamos de perto, e de viver, à semelhança de homem, por muitos anos
neste mundo. Nesse ínterim, Deus preparou para Cristo toda sorte de
aflições e sofrimentos, iguais àquelas com as quais nós nos deparamos. Em
todo esse tempo, Jesus conheceu de perto os mesmos infortúnios e os
experimentou. Deus o submeteu a essa fraqueza e fragilidade de espírito,
para que assim experimentasse todo tipo de aflição com a mesma
intensidade que sentimos (mas sem pecado), e pudesse desenvolver as
mesmas afeições sob as aflições que em todo tempo vemos se agitando em
nosso coração.
Deus ordenou tudo isso visando preparar-lhe o coração para que,
estando na glória, Cristo pudesse ter o tipo de afeições que o texto
menciona, o qual o afirma como propósito de Deus — bem como assevera a
referência anterior, Hebreus 2.14: “Visto, pois, que os filhos [ou seja, os
seus membros] têm participação comum de carne e sangue”,frase que
destaca as debilidades da natureza humana. Também vemos isso em
1Coríntios 15.50: “destes também ele, igualmente, participou [...] para ser
misericordioso e fiel sumo sacerdote” (Hb 2.17).
O apóstolo, assim, apresenta a seguinte razão para tanto: “Pois, naquilo
que ele mesmo sofreu, tendo sido tentado, é poderoso” — como já
explicado, poderoso para ter um coração apto e habilitado por experiência
própria, para ter compaixão “para socorrer os que são tentados”. Quer dizer,
não seria o simples assumir da natureza humana, já desde o princípio
gloriosa, que o capacitaria para a compaixão e ternura experimentais.
Apesar do quê, conforme já exposto, o conhecimento de nossos sofrimentos
obtidos dessa forma o torna verdadeira e realmente terno com os homens,
com afeições humanas (próprias de um ser humano) e, dessa forma, mais
próximas e semelhantes às nossas do que as existentes nos próprios anjos,
ou às atribuídas à Divindade quando é dito que ele se compadece de nós.
Além disso, contudo, o fato de assumir nossa natureza o revestiu de
fragilidades e, ao viver neste mundo, à semelhança de homem, isso
capacitou para sempre o seu coração pela experiência para identificar-se
com nosso coração e com os nossos mais profundos sentimentos. Não
apenas ou simplesmente para conhecer a aflição e, como homem, ser
influenciado por afeições humanas por alguém da mesma espécie, mas de
forma experimental, trazendo à memória os sentimentos que já havia
provado em si mesmo.
O texto também dá a entender que esse foi o meio pelo qual nossas
aflições influenciaram com mais profundo vigor o coração de Cristo, agora
que está no céu. “Porque não temos sumo sacerdote que não possa
compadecer-se das nossas fraquezas; antes, foi ele tentado em todas as
coisas, à nossa semelhança, mas sem pecado” (Hb 4.15). Com o propósito
de nos confortar com essa verdade, veja como o apóstolo fala sobre a
profundidade e amplitude das tentações de Cristo aqui na terra.
Inicialmente, ele trata do tipo de tentação, ou das inúmeras formas de
tentação com as quais, conforme é dito, Cristo foi tentado, isto é, “em todas
as coisas”, ou em coisas de todo tipo, nas quais nós somos tentados. Além
disso, ele aborda a maneira como Cristo é tentado. É acrescentado, também,
que tudo isso foi “à nossa semelhança”. Tendo o seu coração de tal modo
afetado, ferido, traspassado e angustiado em todas as provações com as
quais estamos acostumados (mas sem pecado), Deus fez com que todos os
sentimentos de Cristo permanecessem em plena e prontamente sensível com
respeito ao pecado. Cristo considerou com a maior gravidade tudo o que lhe
sucedeu. Ele não menosprezou nenhuma aflição, quer viesse de Deus, quer
dos homens; mas as recebeu e as sentiu com plena intensidade. Sim, seu
coração tornou-se mais terno do que o de qualquer um de nós, em toda sorte
de sentimentos, incluindo o amor e a compaixão. Isso fez de Cristo um
“homem de dores”, conforme Isaías 53.3 — e isso mais do que qualquer
outro homem já foi ou pode vir a ser.
Daquilo que acabo de dizer e daquilo que o texto continua a falar, não
é difícil explicar a maneira como nossos sofrimentos comovem o seu
coração e despertam em Cristo esses sentimentos de piedade e compaixão.
(1) O fato de compreender e conhecer a natureza humana confere a
Cristo, a Cabeça, senso e percepção de tudo o que acontece com seus
membros aqui na terra. Quanto a isso o texto é claro, pois o apóstolo
menciona, para nosso encorajamento, que “Cristo se compadece das nossas
fraquezas”, o que não nos serviria de auxílio caso o Salvador não as
conhecesse de forma pessoal e integral; e, caso não as conhecesse todas,
não teríamos consolo, porque não saberíamos quais ele conhece e quais lhe
seriam desconhecidas.
O apóstolo corrobora nossa análise acerca da natureza humana, porque
ele se refere à natureza que foi tentada neste mundo. Por isso “o Cordeiro
que foi morto” e, portanto, “o homem Cristo Jesus” (Ap 5.6), é apresentado
como quem tem “sete olhos” e “sete chifres”, sendo os sete olhos “os sete
Espíritos de Deus enviados por toda a terra”. Seus olhos, olhos da
Providência, por meio da unção com o Espírito Santo, estão em todos os
lugares do mundo e enxergam todas as coisas que são feitas debaixo do sol.
Da mesma forma, ele é descrito como quem possui “sete chifres” de poder,
e “sete olhos” de conhecimento, e ambos são sete, para mostrar a perfeição
deles, cujo alcance abrange todas as coisas. Assim, porquanto “todo o poder
no céu e na terra” é concedido a ele como Filho do Homem, conforme diz a
Escritura (Mt 28.18), assim também todo o conhecimento lhe é dado a
respeito de todas as coisas operadas no céu e na terra — e isso também
como Filho do Homem.
Seu conhecimento e poder são de igual amplitude. Ele é o Sol tanto
com respeito ao conhecimento quanto com respeito à justiça, e não existe
coisa alguma oculta de sua luz e brilho, os quais sondam os lugares mais
obscuros do coração dos filhos dos homens. Ele conhece as aflições, como
Salomão diz, e as angústias do coração. Como um espelho em forma de
globo pendurado no centro de uma sala reflete tudo o que é feito dentro de
determinado ambiente, assim também o entendimento ampliado da natureza
humana de Cristo percebe as preocupações deste mundo, as quais ele foi
designado a governar, em especial os sofrimentos dos seus membros — e
isso de forma direta e imediata.
(2) Sua natureza humana, tendo o conhecimento de todas as coisas —
“Conheço as tuas obras, tanto o teu labor como a tua perseverança” (Ap
2.2) —, lhe traz à memória e evoca a maneira como ele próprio já se viu
atacado e se sentiu angustiado enquanto esteve aqui na terra, sob os mesmos
sofrimentos. Ele ainda mantém a lembrança das coisas deste mundo, assim
como acontece com todos os que morreram, tanto os que estão no paraíso
quanto os que estão no inferno. “Filho, lembra-te de que recebeste os teus
bens em tua vida, e Lázaro igualmente, os males”, diz Abraão à alma do
rico no inferno (Lc 16.25). “Jesus, lembra-te de mim quando vieres no teu
reino”, disse o ladrão a Cristo (Lc 23.42). E, em Apocalipse 1.17–18, Jesus
declara: “eu sou [...] aquele que vive; estive morto, mas eis que estou vivo”.
Ele ainda se lembra da própria morte e dos próprios sofrimentos, e, assim
como deles se recorda para apresentá-los ao Pai, assim também deles se
lembra de modo a ter seu coração tocado por aquilo que sentimos. Visto que
a sua memória lhe traz nitidamente a lembrança daquilo que já lhe
aconteceu, Cristo sabe exatamente o que nos sucede e, assim, é
“influenciado” por tal afeição. Do mesmo como aconteceu com Dido,4 na
Eneida de Virgílio: “Haud ignara mali, miseris succurrere disco”
(“Conhecendo por experiência própria a desventura, sei socorrer os
infelizes”).
Assim como Deus disse aos israelitas que, quando fossem tomar posse
de Canaã, como sua própria terra, se compadecessem dos estrangeiros e os
tratassem bem (“vós conheceis o coração do forasteiro, visto que fostes
forasteiros na terra do Egito” (Êx 23.9), o Salvador conhece o coração dos
seus em seu sofrimento, uma vez que ele mesmo já esteve na mesma
situação. Ou, como o apóstolo exorta: “Lembrai-vos dos encarcerados,
como se presos com eles; dos que sofrem maus tratos, como se, com efeito,
vós mesmos em pessoa fôsseis os maltratados” (Hb 13.3), visto que o
mesmo poderia acontecer com eles. Igualmente Cristo, Cabeça do corpo,
fonte de todos os seus sentimentos, lembra-se dos membros que estão
presos e em adversidade, uma vez que ele mesmo já esteve e sofreu isso no
corpo, portanto apto a, com propriedade, compadecer-se deles.
Estamos, então, em um solo ainda mais profundo. Aprendemos isto
também: Cristo não só possui essas afeições reais e próprias à natureza
humana, mas também elas, à medida que despertadas nele a partir da
similar experiência por que já passou sob a mesma fragilidade, são o
caminho de entrada dos nossos sofrimentos para o coração de Cristo agora,
de forma que aquilo que sentimos e aquilo por que passamos atinge e afeta
o coração do Salvador.
II. Caracterização do tipo de aflição presente no coração de Cristo.
NEGATIVAMENTE
É certo que esse sentimento de empatia ou misericórdia em Cristo não é, em
todas as formas, o tipo de afeição que havia nele, nos dias da sua carne — o
que fica claro por meio das palavras do apóstolo acerca das afeições do
Salvador naquele tempo: “O qual, nos dias da sua carne, oferecendo, com
grande clamor e lágrimas, orações e súplicas ao que o podia livrar da morte,
foi ouvido quanto ao que temia” (Hb 5.7 – ARC). Vê-se assim seu estado e
sua situação aqui na terra, denominada de “os dias da sua carne” (como
forma de estabelecer a diferença e distinção da sua posição agora no céu),
querendo dizer por “carne” não a essência da natureza humana, pois ele
ainda a conserva agora, mas sua frágil sujeição à mortalidade ou à sua
possibilidade. É assim que a palavra “carne” costuma ser usada, por
exemplo, “toda a carne é erva”. A natureza humana é descrita dessa forma
por estar sujeita ao desvanecimento, ao desgaste, à decadência, por causa
dos infortúnios exteriores ou devido às paixões interiores.
Assim, em Hebreus 2.14: “Visto, pois, que os filhos”, ou seja, nós, os
irmãos do Filho, “têm participação comum de carne e sangue”, isto é, as
fragilidades da natureza humana, “destes também ele igualmente
participou”. Consequentemente, o apóstolo cita como exemplo, nas palavras
seguintes de Hebreus 2.14, que, assim como Cristo estava sujeito à morte
nos dias de sua carne, da mesma forma também esses frágeis sentimentos e
afeições causavam-lhe sofrimento, exaustão e debilidade, profunda tristeza,
acrescida de forte clamor e lágrimas e temor, bem como o que o apóstolo
menciona: “foi ouvido quanto ao que temia”. Agora que os “dias da sua
carne” passaram (pois, de acordo com o apóstolo, foram coisas exclusivas
àquele tempo), suas intensas manifestações de tristeza e temor acabaram, e
não mais lhes é suscetível nem sujeito.
POSITIVAMENTE
Por que não é possível afirmar que, devido à essência, a mesma
misericórdia e compaixão que operavam em sua completa humanidade,
corpo e alma, quando aqui neste mundo, permanecem operando agora, que
Cristo está no céu? Isso pode ser afirmado, mas com as devidas cautelas e
considerações a seguir. Depois da ressurreição, Cristo apareceu aos
discípulos em carne e osso (Lc 24.39; Jo 20.27), uma vez que somente essas
partes podiam ser tocadas e sentidas. Não obstante, o sangue e a afeição
estão contidos naquela carne e — porquanto caro vitalis (carne viva) —
nela correm e se movem.
Então por que não estão ali, agora que está no céu, também as mesmas
afeições? Porque elas não só se movem na alma, mas operam também no
corpo. E, exatamente por esses domínios estarem unidos um ao outro, tais
afeições permanecem como sentimentos humanos reais. A função do
sangue e do seu vigor é nutrir (função essa que, para mim, agora cessou) o
coração e o âmago do corpo, deslocando-se nele todo, quando a alma
demonstra afeição. Não sei por que tal função não haveria de permanecer
(e, se não for esse o seu papel, não faço ideia de qual seria). Também não
vejo por que esses sentimentos deveriam restringir-se apenas ao espírito ou
à alma de Cristo, nem por que suas capacidades físicas deixariam de
participar deles. Porque, assim como o Filho é verdadeiramente homem, o
mesmo homem de outrora, tanto no corpo quanto na alma (pois de outra
forma a sua ressurreição não seria verdadeira ressurreição), assim também
ele ainda mantém os mesmos sentimentos humanos, tanto no corpo quanto
na alma, afeições cuja base e instrumento são o corpo e a alma. Visto que
esse homem, que em sua inteireza é corpo e alma, foi tentado, e porque ele
se comoveu naquela natureza que foi tentada, logo é necessário que isso
ocorra no homem inteiro, isto é, corpo e alma.
Lendo a respeito da “ira do Cordeiro” (Ap 6.16) contra seus inimigos,
e acerca da sua misericórdia e compaixão por seus amigos e membros, por
que deveria isso ser atribuído apenas à sua Divindade (que, num certo
sentido, não está suscetível à ira) ou apenas à sua alma ou espírito? E por
que não se pode pensar que Cristo está de fato irado como homem, em sua
integralidade, com ira tal que esteja relacionada também com seu corpo e
sua alma (uma vez que ele tomou sobre si nossa natureza de forma integral,
tornando-a útil a todos os propósitos de sua natureza divina)?
Agora, contudo, com respeito à nossa capacidade de compreender, a
dificuldade reside em saber até que ponto devemos distinguir a fraqueza e a
fragilidade que havia nessas afeições dos “dias da sua carne”, e como
devemos diferenciar os sentimentos que Cristo tinha aqui e os que ele
agora tem no céu. Tenho pouco a dizer a esse respeito.
Em primeiro lugar, devo estabelecer este axioma incontestável, de que,
na mesma extensão ou sentido em que seu próprio corpo tornou-se
espiritual (como é chamado em 1Co 15.44), nessa mesma acepção, todos
esses sentimentos operantes em sua carne foram feitos espirituais — em
oposição à maneira carnal e frágil como operavam neste mundo. E assim
como seu corpo tornou-se espiritual, e não espírito (espiritual com respeito
ao poder e à semelhança de um espírito, mas não à essência ou natureza),
assim também suas afeições compostas de misericórdia e compaixão
operam não apenas em seu espírito ou alma, mas também em seu corpo,
enquanto lugar e instrumento — embora com operação mais espiritual, e
mais semelhante aos espíritos do que os sentimentos que operam num corpo
de carne, que é um corpo frágil. São afetos não inteiramente espirituais,
pois não só a alma lhes está sujeita, nem ela unicamente é que os manifesta,
de modo que essa é a diferença entre os seus sentimentos agora e os que
tinha nos “dias da sua carne”.
Não pensemos que o corpo de Cristo transformou-se numa substância
semelhante à luz do sol, para que assim a alma, como que num recipiente de
vidro, ali resplandecesse de forma gloriosa. Mas, sim, que o corpo está
unido à alma e é por ela influenciado diretamente, sobre ele exercendo
algum tipo de efeito. O corpo é chamado de espiritual não por cessar de sê-
lo, mas porque não mais é o mesmo. Ele está de tal forma adequado à alma
que, sem intermediários, agora se mantém integralmente sujeito debaixo do
seu comando e domínio, à bel-prazer do seu uso, dirigindo-o e movendo-o
instantaneamente, sem embaraço nem impedimento, como se movem os
próprios anjos ou como se movimenta a própria alma. De forma que esta
talvez seja uma diferença: as afeições do corpo de Cristo não mais
influenciam sua alma como outrora, ainda que, nos “dias da sua carne”,
estivessem sob o controle da graça e da razão, refreadas, assim, da
desordem e da pecaminosidade. Além do mais, a alma, doravante poderosa
por seu próprio arbítrio, imediata e integralmente anima e desperta tanto
esses afetos quanto a si mesma.
Em segundo lugar, e consequentemente, afeições de compaixão e
misericórdia, despertados assim pela alma, embora induzam seu íntimo e
influenciem seu coração físico ainda da mesma maneira, já não o afligem
nem o perturbam de forma alguma; nem se tornam um fardo ou carga para
seu espírito, enchendo-o de pesar ou tristeza — à semelhança desta vida, no
caso de Lázaro, e no momento das angústias finais, que o entristeceram até
morte. Digo, portanto, que suas afeições têm agora outro modo de operar,
porquanto diferem da forma como eram aqui neste mundo. É que o seu
corpo, seu sangue e seu vigor, seus instrumentos de influência, são, agora,
totalmente impassíveis; ou seja, nesse sentido, não estão suscetíveis à
menor variação ou aflição. Dessa forma, nem seu corpo nem sua disposição
estão sujeitos ao desgaste, deterioração ou perda. Todos estão aptos a servir
a alma em suas afeições, conforme o fizeram enquanto Cristo esteve aqui na
terra. Mas isso apenas por movimentos internos, isto é, circulando nas veias
e artérias, para influenciar-lhe o coração e o íntimo, sem deixá-lo perder o
vigor e nem desfalecer.
O processo é o seguinte: embora seu sangue e vigor ainda despertem
os mesmos sentimentos em seu coração, não é mais como antes. Agora,
porém, agem sem a menor perturbação, dano ou prejuízo. Visto que, nesta
vida, o Filho foi atribulado e angustiado, mas “sem pecado” ou excesso,
agora, estando no céu, ele se compadece sem a menor influência de
preocupação ou perturbação, as quais necessariamente acompanhavam seus
sentimentos aqui na terra, devido à fragilidade da estrutura do seu corpo e
disposição. Sua perfeição não anula suas afeições, mas as corrige e
aperfeiçoa. Os melhores eruditos reconhecem que, agora, encontram-se em
Cristo as passiones perfectivas (perfeitas paixões).
Em terceiro lugar, tanto os eruditos como os teólogos reconhecem que
existem em Cristo todos os sentimentos naturais que não têm em si o status
indecentiam, qualquer coisa imprópria ao estado e condição de glória nos
quais agora se encontra. Como disse Justiniano:
Esses sentimentos, naturais no ser humano, e que não têm relação com o pecado ou degradação,
mas são totalmente governados pela razão e, em última instância, estão isentos de qualquer
efeito pernicioso sobre a alma e o corpo, não há por que pensar que não possam condizer com o
estado das almas que já se encontram na glória.
ESPECIFICAMENTE
Tais afeições do coração de Cristo não lhe causam sofrimento nem
tormento, mas é preciso dizer que, quando nos vê sofrendo e sujeitos a
fraquezas, há uma menor plenitude de alegria e bem-estar em seu coração,
se comparado a quando lhe somos apresentados livres disso tudo.
Para maior esclarecimento, devo relembrar a distinção que fiz (quando
expus o Quarto Compromisso, na seção 2 daparte II) de glória dobrada, ou
dupla plenitude de alegria, proposta a Cristo: uma, que é natural e devida à
sua pessoa considerada por si só; a outra, que provém da plena alegria e
glória de toda a sua Igreja, com a qual ele, de forma mística, é um com ela.
É isso que encontramos em Efésios 1.23, embora, devido à sua plenitude
pessoal, seja dito que ele “a tudo enche em todas as coisas”. Ele é o Cabeça
da Igreja, a qual é o seu corpo, assim como dizem os versículos anteriores,
de forma que a perfeição da bem-aventurança desse seu corpo é,
reciprocamente, chamada de sua plenitude. Por isso, até que os tenha
enchido de toda a felicidade e os tenha libertado de todo sofrimento, Cristo,
e também suas afeições, permanecem sob certo tipo de “imperfeição”,
condizentes com esse relacionamento. Há determinada imperfeição
enquanto os membros do seu corpo estão expostos ao sofrimento, a qual
findará quando, tendo eles recebido plenitude, seu coração estiver satisfeito.
Pode-se dizer, com segurança, que Cristo estará mais satisfeito (e já
está!) à medida que os seus não estiverem mais sujeitos às fraquezas e
conforme se tornam mais obedientes e satisfeitos no espírito (Jo 15.10–11).
Desejo ilustrar isso com a seguinte comparação (a qual, apesar de não se
aplicar em todos os detalhes, pode ao menos dar uma ideia do que estamos
falando). Em Hebreus 12.23, lemos que são perfeitos os espíritos dos
homens justos que já morreram. Contudo, pelo fato de terem corpos que
lhes pertencem, e aos quais lhes é ordenado que estejam unidos, a esse
respeito se pode dizer que são imperfeitos, até que sejam reunidos e
glorificados, o que lhes acrescentará maior plenitude. É assim, de certa
forma, que acontece entre Cristo, como a Segunda Pessoa da Trindade, e
Cristo considerado de “forma mística”, isto é, unido à sua igreja. Embora o
Filho, em sua própria pessoa, desfrute de plena alegria por seus membros,
ele é “imperfeito” nesse aspecto; suas afeições são apropriadas à relação do
Salvador com os homens, o que não o deprecia de forma alguma. Essa é a
razão por que a Escritura lhe atribui alguns sentimentos que se associam a
algumas imperfeições, e que estarão em Cristo até o Grande Dia. Assim,
são-lhe atribuídos esperança e desejo, que não passam de sentimentos
imperfeitos em comparação com aquela alegria que se encontra na plena
fruição do esperado ou desejado. Esses sentimentos lhes são atribuídos
como homem até o Dia do Juízo.
É assim que Hebreus 10.12-13 diz que Cristo encontra-se assentado no
céu “aguardando [...] até que os seus inimigos sejam postos por estrado dos
seus pés”, cuja destruição aumentará a glória manifesta do seu Reino. Ora,
do mesmo modo como esse evento expandirá a plenitude da sua grandeza,
assim também a completa salvação dos seus membros alargará a
completude da sua glória. Assim como se pode dizer que a expectativa da
destruição dos seus inimigos é um sentimento “imperfeito” em comparação
com o triunfo que no futuro obterá sobre eles, assim também é “imperfeita”
a alegria que Cristo agora tem em sua esposa, se comparada àquela que
encherá seu coração no grande dia das bodas.
Por essa mesma razão, a Escritura chama de satisfação o cumprimento
desse seu desejo, conforme Isaías 53.11: “Ele verá o fruto do penoso
trabalho de sua alma e ficará satisfeito”, deixando claro que o Salvador tem
anseios, que “sente falta” de algo a obter. Dito isso, lembremo-nos de que o
Senhor Jesus Cristo certamente sabe e vê o tempo exato quando será
completada essa sua plenitude mediante a exaltação dos seus membros em
sua glória e quando será o dia de pisar e esmagar todos os seus inimigos.
Ele vê aproximar-se esse dia, conforme diz o salmista, ocasião que acabará
com a imperfeição dessa sua expectativa e demora.
Resolvida essa questão, pergunto agora: como pode o seu coração se
compadecer por causa dos nossos pecados (nossa maior fraqueza), uma vez
que ele foi tentado em todas as coisas, mas sem pecado?
III. Resposta à objeção de que Cristo jamais soube o que é estar sob o
pecado.
Resta ainda uma grande questão que precisa ser esclarecida, questão
essa que se levanta em todo coração sincero. Alguém poderá dizer: “Se as
fraquezas são nossos pecados, e que o objetivo do apóstolo era encorajar-
nos quanto a eles também, os quais são nossa maior preocupação e
desencorajamento, acima de quaisquer outros, o que o apóstolo nos diz aqui
ajuda pouco com respeito aos pecados, uma vez que Cristo não consegue
compadecer-se de nós de forma experimental nesse aspecto, pois ele ‘não
conheceu pecado’. O próprio apóstolo ressalta isso: ‘foi ele tentado em
todas as coisas, à nossa semelhança, mas sem pecado’ (Hb 4.15). Na
verdade, somos confortados porque Cristo se compadece de nós em todas as
outras fraquezas, pois ele mesmo esteve sujeito a elas. Entretanto, Jesus
Cristo jamais soube o que é estar sob o pecado e ser importunado pela
concupiscência como acontece comigo. E de que maneira posso me
consolar quanto a isso, considerando o que o apóstolo diz a respeito de
Cristo?”. Quanto a essa objeção, apresentarei algumas explicações a seguir.
Em primeiro lugar, o apóstolo declara que, de fato, “ele foi tentado,
mas sem pecado”. Ele não cometeu pecado, e isso é boa notícia, pois, do
contrário, não seria um sacerdote apropriado para salvar-nos: “Com efeito,
nos convinha um sumo sacerdote como este, santo, inculpável, sem mácula,
separado dos pecadores” (Hb 7.26). Contudo, para nosso consolo, devemos
levar em consideração o fato de que ele chegou tão próximo a esse estágio
quanto possível. “Ele foi tentado em todas as coisas”, diz o texto, mas “sem
pecado”. Ele, porém, foi tentado a cometer todo tipo de pecado, a ponto de
ser atormentado durante as tentações, e de compreender o sofrimento
daqueles que são tentados, sabendo compadecer-se deles em cada ocasião.
Assim como o Salvador, ao tomar para si a nossa natureza humana,
aproximou-se de nós o máximo que pôde, sem ser maculado pelo pecado
original, tendo seu corpo feito da mesma matéria com que é feito o nosso,
de igual modo, quanto ao pecado em si, ele padeceu tentações até onde seria
possível padecer para conservar-se puro. Ele sofreu todo tipo de tentação da
parte de Satanás, assim como alguém que tomou um poderoso antídoto e é
submetido às experiências de um médico charlatão. E, de fato, porque ele
foi tentado por Satanás, o apóstolo acrescenta conscientemente: “mas sem
pecado”, como se ele dissesse que o pecado jamais maculou Cristo, apesar
de ter sido exteriormente tentado a cometê-lo. Satanás o tentou com todo
tipo de concupiscência, visto que as três tentações do deserto são o tema de
toda sorte de tentações, conforme nos ensinam os intérpretes dos
Evangelhos.
Em segundo lugar, para ser capaz de compadecer-se de nós no caso do
pecado, Cristo foi incomodado com a corrupção e poder do pecado
naqueles com quem convivia, mais do que qualquer de nós se incomoda
com o pecado no próprio ser. “Sua alma justa se afligia” com a situação,
assim como acontecia com a alma justa de Ló, no meio das companhias
impuras dos sodomitas. Ele “suportou tamanha oposição dos pecadores
contra si mesmo” (Hb 12.3). “As injúrias dos que te ultrajavam”, ou seja,
ultrajavam ao seu Deus, “caíram sobre mim” (Rm 15.3). O salmista disse
isso a respeito de Cristo e, por essa razão, o apóstolo cita o texto referindo-
se ao Salvador; ou seja, todo pecado atingiu seu coração. Ora, entre Jesus e
nós só existe a seguinte diferença: nossa parte regenerada é atormentada
tanto pelo pecado em si quanto pelo pecado que nos assola, mas o coração
de Cristo se atormenta tão só com o pecado que há nos outros. O tormento
pelo qual o Senhor passou era muito maior porque sua alma é mais justa do
que a nossa, o que torna maior o incômodo. Sim, porque presta socorro aos
eleitos, os pecados que Cristo os vê cometendo o perturbam como se
fossem seus próprios. A palavra grega πεπειραμένον (pepeiramenon), aqui
traduzida como “tentado”, é traduzida por alguns como “irritado”.
Em terceiro lugar, para melhor fortalecer a argumentação contra a
objeção, devo dizer que Cristo, enquanto estava neste mundo, “carregou as
nossas doenças” (Mt 8.17), mas nunca se viu pessoalmente maculado por
chaga alguma; pode-se dizer, portanto, neste mesmo sentido ou da mesma
forma, que ele carregou nossos pecados. Em outras palavras, quando se
dirigia a um eleito que estava doente e o curava, Cristo costumava primeiro,
por simpatia e compaixão, afligir-se a si mesmo com o doente, como se ele
próprio dela padecesse. Por isso é que, quando ressuscitou Lázaro, “agitou-
se no espírito e comoveu-se”. Isso acontecia porque tomava sobre si mesmo
a doença com sentimento de misericórdia, removendo-a deles, sendo por
eles afligido, como se ele mesmo estivesse doente.
Essa me parece a melhor interpretação do difícil texto em Mateus
8.16–17: “Chegada à tarde, trouxeram-lhe muitos endemoninhados; e ele
meramente com a palavra expeliu os espíritos e curou todos os que estavam
doentes; para que se cumprisse o que fora dito por intermédio do profeta
Isaías: Ele mesmo tomou as nossas enfermidades e carregou as nossas
doenças”. Agora, de forma semelhante, Cristo não só carrega nossas
doenças, mas também carrega nossos pecados; pois, sendo um conosco, e
com a finalidade de responder por todos os nossos pecados, quando vê
qualquer dos seus pecando, o Filho é movido, como se ele próprio pecasse.
Eis a razão de o problema do pecado estar resolvido.
Em quarto lugar, quanto à culpa do pecado e às tentações que nos
sobrevêm, Cristo as conhece melhor do que qualquer um de nós. Ele provou
a amargura do pecado quando este lhe foi imputado, mais profundamente
do que nós poderíamos suportar, e por ele bebeu do cálice da ira do Pai.
Jesus, portanto, tem condições, de forma experimental, de compadecer-se
de um coração ferido pelo pecado, e que se debate sob tentações. Ele
conhece muito bem o coração daquele que pensa ter sido abandonado por
Deus, visto que ele mesmo o sentiu quando bradou: “Deus meu, Deus meu,
por que me desamparaste?” (Mt 27.46).
IV. Aplicações Práticas
Primeira Aplicação Prática. Tudo o que foi dito até aqui serve de
forte consolação e encorajamento, mais do que qualquer outra coisa, para a
vitória sobre nossos pecados; além disso, nos concede a suprema segurança
de que foram afastados de nós, com base nos seguintes pontos:
(1) O próprio Cristo considera nossos pecados seus inimigos, dos quais
ele certamente se livrará. Seu coração não descansará enquanto não os tiver
eliminado. Como Deus fala por boca do profeta, assim também Cristo com
ainda mais intenso vigor: “ternamente me lembro dele; comove-se por ele o
meu coração” (Jr 31.20).
(2) Há consolo com respeito a essas fraquezas, uma vez que nossos
pecados despertam em Cristo antes compaixão que ira. O texto é claro a
esse respeito, pois o Filho sofre conosco sob tais fraquezas. Por “fraquezas”
o apóstolo quer dizer tanto pecados quanto todas as outras aflições,
conforme já argumentei. Por essa razão, podemos contemplá-los como
fraquezas, como o próprio Deus os contempla e fala deles, como se a
doença fosse do próprio Salvador, e podemos lamentar-nos perante Cristo a
respeito deles, e clamar: “Miserável homem que sou; quem me livrará?”
(Rm 7.24).
Por isso, deixemos de lado todo o medo. Cristo se identifica conosco e,
longe de indispor-se, ele volta a sua ira santo contra o nosso pecado, para
extirpá-lo. Sim, a compaixão do Senhor por nós aumenta ainda mais, tal
qual o coração de um pai para com o filho que padece de alguma doença
repugnante, ou como o leproso, que não odeia seu próprio membro afetado
pela lepra (pois é sua própria carne), mas odeia a doença em si, que causa
ainda maior compaixão pelo membro enfermo. Nossos pecados, que são
inimigos tanto de Cristo quanto de nós mesmos, motivam-no a compadecer-
se ainda mais de nós. Aquele a quem amamos e que se encontra em aflição
é o objeto de nossa compaixão; e, quanto maior a aflição, maior é a
compaixão, se o aflito é objeto do nosso amor.
Agora, de todas as aflições, o pecado é a maior, e enquanto nós o
consideramos dessa forma, Cristo o considerará assim, tão só por encontrar-
se em nós. Ele, por amar os seus, mas odiar unicamente o pecado que ainda
se encontra neles, dirige seu ódio exclusivamente para o pecado, para livrá-
los dele derrotando-o e destruindo-o. Contudo, seu afeto para conosco será
contínuo; e mesmo quando estivermos debaixo da influência de algum
pecado e enquanto estivermos sob alguma outra aflição. Por isso, não
temamos: “Quem nos separará do amor de Cristo?” (Rm 8.35).
2 Termo usado na teologia para indicar uma atribuição de sentimentos humanos a Deus, a fim de
comunicar verdades divinas em linguagem humana. Ver explicação de Thomas Goodwin mais
adiante. – N. do E.
3 O Autor segue o texto da Bíblia King James Version, que registra o versículo 16 da seguinte forma:
“Porque ele com certeza não assumiu a natureza dos anjos; mas tomou sobre si a descendência de
Abraão”, assinalando com itálico o texto que não consta no original grego, tradução que, pelo
contexto anterior e posterior do versículo, parece muito mais coerente e esclarecedora do que a
tradução que diz: “Pois ele, evidentemente, não socorre anjos, mas socorre a descendência de
Abraão”. – N. do T.
4 De acordo com antigas fontes greco-romanas, Dido foi a fundadora e primeira rainha de Cartago
(atual Tunísia). Quem primeiro registrou informações sobre ela foi o poeta romano Virgílio, em sua
obra Eneida. – N. do E.
ÍNDICE DE REFERÊNCIAS BÍBLICAS
ANTIGO TESTAMENTO
Gênesis
45—82
45.4—40, 82
45.8—82
45.9—82
Êxodo
23.9—127
32.11s—90
32.14—90
32.32—90
Levítico
4.2, 5—98
6.2–3—98
6.6—98
1Samuel
15.29—120
Ester
8.6—82
Salmos
16.11—78, 106
40.8—62
45—78, 104, 109
45.2—103
45.4—78, 104
45.6—104
45.7—78
45.10–11—109
81.10—34
Provérbios
10.1—112
25.5—103
Cantares
5.1—85
Isaías
11.2—77
27.3—108
49.15—88
53.3—125
53.10—29
53.11—139
61.1–2—102
63.1–2—84
63.15—84
63.16—84
Jeremias
31.20—143
Ezequiel
34.16—102
Oseias
2.19—88
NOVO TESTAMENTO
Mateus
6.10—145
8.16–17—142
8.17—142
11.27—69
11.28–29—68, 69
12.18–19—75
12.20—75
27.46—143
28.18—126
Marcos
16.14—43
16.15–16—42
Lucas
1.78—71
2.49—26
4.1—74
4.14—74
4.18—75
12.36—23
12.36–37—23
16.25—127
23.42—92, 127
23.42–43—92
24.21—39
24.25—43
24.39—122, 131
24.49—42
24.50—45
24.51—45
João
1.11—21
6.37—61
6.39–40—61
7.37—52
7.38—52
7.39—79
8.44—122
10.15—61, 62, 91
10.15–18—61
10.16—44, 102
10.17–18—63
10.18—61, 64
11.16—43
13—17, 20, 21, 23, 24
13.1—17, 20, 21, 83, 88
13.1-5—20
14—26, 28, 29, 32, 33, 34, 77
14.2—26
14.3—26, 28
14.11—33
14.12—33
14.12—47
14.13—34
14.14—34
14.16—30, 33
14.16–17—32
14.17—32, 33
14.19—29
14.20—32
15.9-10—110
15.9-11—110
15.10—65
15.10–11—138
15.10, 12—110
15.11—110
15.13—91
16.4—19
16.7—26, 30, 31
16.13—31, 32
16.14—31
16.16—29
16.21—41
16.23—34
16.26—35
17—36
17.4—36
17.10—37
17.10, 22–23—109
17.13—37
17.15—22
17,15,16—35
17.20—25
17.23—64
17.24—36, 37
20.17—39
20.19—41
20.21—41
20.27—131
20.29—43
20.30—44
21.15—43
Atos
2—78, 79
2.24—91
2.33—45
2.36—78
4.29–30—47
9.4—86
10.37—74
10.38—78
26.16–18—49
Romanos
7.2—81
7.24—143
8.26—46
8.35—144
12—101
12.8—101
15.3—141
15.8—102
1Coríntios
2.12, 16—32
11.24–26—93
12.12—83
12.26—83
15.44—132
15.50—123
2Coríntios
8.23—109
11.30; 12.5—56
12.16, 13—35
Gálatas
1.11–12—48
3.4—92
4.11—90
4.19—90
Efésios
1—104, 107, 135, 137
1.13—104
1.20–21—107
1.21—58
1.22–23—107
3.15—84
3.19—137
4.8, 12—45
4.15–16—46
5.25—25, 85, 87, 109
5.25–27—25
5.26–27—87
5.27—109
5.28—108
5.29—83
5.30—86
5.31–33—85
Filipenses
1.8—70
Colossences
2.18—129
3.12—66
3.12—63
1Tessalonicenses
2.8—70
2.19–20—111
3.6–7—72
3.8—72
1Timóteo
1.13—48
1.15—48
5.8—83
Hebreus
1.8—104
2.3–4—47
2.9—85
2.11—40, 85
2.14—67, 87, 121, 123, 130
2.16—113, 120, 121
2.16–17—113, 120
2.17—100, 123
2.18—97, 100
3—105
3.2—101
3.5—105
4—17, 55, 57, 93
4.14—57
4.14–16—93
4.15—17, 55, 118, 124, 140
4.16, 5.1—95
5—56, 94, 96, 97, 101, 113
5.1—96
5.1–3—94
5.2—56, 96
5.4—97
5.7—130
6.20—27
7.24—102
7.25—35
7.26—103, 140
8.6–7—63
10.5—67
10.12–13—138
10.37—29
12.3—141
12.22–24—27
12.23—21, 138
12.25—46
13.3—128
13.8—82, 92
1Pedro
1.4—27
2.25—102
3João
3—112
Apocalipse
1.1—49
1.4—79
1.17–18—127
1.18—50
2.2—126
5.6—126
6.16—132
21.6—51
22.9—122
22.16–17—50
22.17—50, 51
22.20—51, 52
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