O Coração de Cristo - Thomas Goodwin

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O Coração de Cristo: o cuidado do Salvador no céu para com os pecadores na terra — Thomas

Goodwin
Traduzido do original em inglês The Heart of Christ in Heaven, to Sinners on Earth, 1651.
© Editora Os Puritanos 2020
1.a edição em português, 2020
Reservados os direitos desta edição. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida
por quaisquer meios sem permissão por escrito dos editores, salvo em breves citações, com indicação
da fonte.
PRODUÇÃO EDITORIAL
Editor: Manoel Canuto
Tradução: Helio Kirchheim
Revisão: Christopher Vicente, Cesare Turazzi, Gerson Júnior, Waldemir Magalhães
Designer: Heraldo Almeida
Imagem da capa regulada nos termos da licença Creative Commons disponível em
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/6/6c/Agnus_Dei_Zurbarán.jpg
SUMÁRIO
1. Capa
2. Créditos
3. Sumário
4. PREFÁCIO
5. QUEM FOI THOMAS GOODWIN
1. Formação
2. A Obra “O Coração de Cristo”
6. INTRODUÇÃO
7. PRIMEIRA PARTE
1. I. Provas extraídas do discurso de despedida que o Salvador proferiu
aos seus discípulos.
1. 1. O contexto da passagem (Jo 13.1)
2. 2. O que estava na mente de Cristo, é-nos revelado em seu
sermão de despedida.
2. II. Provas extraídas de passagens bíblicas e expressões de Cristo
depois de sua ressurreição
3. III. Provas extraídas de passagens bíblicas por ocasião da ascensão
de Cristo ao céu e depois dela
8. SEGUNDA PARTE
1. Porque não temos sumo sacerdote que não possa compadecer-se das
nossas fraquezas; antes, foi ele tentado em todas as coisas, à nossa
semelhança, mas sem pecado (Hebreus 4.15).
2. I. Provas extraídas da doutrina da Trindade
1. Provas a partir da relação e da influência de Deus, o Pai, sobre
Cristo.
2. Provas a partir da natureza, da disposição e do amor de Deus, o
Filho.
3. Provas a partir da habitação de Deus, o Espírito Santo, no Filho
4. Considerações sobre a proposição (1)
5. Considerações sobre a proposição (2)
3. II. Provas extraídas das funções desempenhadas por Cristo no céu e
de vários compromissos por ele assumidos
1. O exemplo de José
2. O exemplo de Ester
3. Primeiro Compromisso
4. Segundo Compromisso
5. Terceiro Compromisso
6. Primeiro ponto do raciocínio
7. Segundo ponto do raciocínio
8. Quarto Compromisso
9. Quinto Compromisso
9. TERCEIRA PARTE
1. I. Algumas noções gerais a respeito de como se deve entender que o
coração de Cristo é “influenciado” pela percepção das nossas
fraquezas, e de como nossas fraquezas alcançam e comovem seu
coração.
1. Primeiro Passo
2. Segundo Passo
3. Terceiro Passo
2. II. Caracterização do tipo de aflição presente no coração de Cristo.
1. Negativamente
2. Positivamente
3. Especificamente
3. III. Resposta à objeção de que Cristo jamais soube o que é estar sob
o pecado.
4. IV. Aplicações Práticas
10. ÍNDICE DE REFERÊNCIAS BÍBLICAS
PREFÁCIO
É fato que a herança teológica e literária legada pelos reformadores,
gigantes do passado, dá frutos espirituais em abundância aos que nela
porfiam. Pode-se dizer que, em essência, a necessidade continua a mesma:
voltar-se às Escrituras, assim como nat época da Reforma, quando o
verdadeiro caminho se sedimentou pelo estudo da Bíblia, pelo retorno à
fonte que é Deus e com o abandono das opiniões dos homens.
Ora, de igual modo com os reformadores, também os puritanos são
excelentes guias nesse “caminho de volta”. Seguindo os antecessores
espirituais, seus escritos são de extrema valia, cujas doutrinas nos
direcionam à verdadeira luz que é Cristo.
Os puritanos têm muito que nos ensinar sobre a vida de piedade.
Foram homens fiéis cujo testemunho de vida pode nos servir de inspiração
e, ao lado dos reformadores, foram servos de Deus cuja mente e coração
eram cativos à Palavra do Senhor.
Por isso, ainda hoje, séculos depois, é necessário tornar conhecidos
aqueles que tanto serviram à Igreja de Deus no passado. Seguindo os
mesmos passos, damos, portanto, toda a glória somente a Deus, e não ao
homem. Contudo, reconhecemos o valor da tradição e da vida desses
homens, sabendo, porém, que foi a graça e a misericórdia de Deus neles
operando, tornando-os instrumentos hábeis no ensino da Palavra de Cristo.
Agora, conscientes de que o interesse pelos escritos dos puritanos tem
aumentado, afirmamos sem medo que a teologia reformada, ou as doutrinas
da graça, e a piedade puritana deixaram de ser um tesouro esquecido.
Muitos cristãos evangélicos, hoje, estão se identificando com os ensinos dos
reformadores e dos puritanos.
Buscando, assim, contribuir — e olhando para o mesmo alvo que os
puritanos tanto apontaram, isto é, o coração do Salvador —, a Editora Os
Puritanos se esforça por publicar os escritos de expositores da Bíblia como
Thomas Goodwin. Nosso propósito é oferecer traduções fiéis dos escritos
originais desses homens de Deus, mas em linguagem simples, a fim de que
mesmo o leitor mais modesto consiga conhecer e entender a espiritualidade
e a piedade da tradição, da literatura e da teologia puritanas.
Que Deus, segundo a sua misericórdia e graça, faça uso de nossos
esforços, para sua glória e por amor do seu nome, e que nós, pela fé,
possamos ver “o Coração de Cristo” e experimentar, em nossa própria vida,
“o cuidado do Salvador no céu para com os pecadores na terra”.
— Os Editores
QUEM FOI THOMAS GOODWIN
Filho do pastor Richard Goodwin e de Katherine Goodwin, Thomas
Goodwin, que nasceu em 5 de outubro de 1600, em Rollesby, condado de
Norfolk, Inglaterra, foi, sem dúvida, um dos maiores teólogos puritanos da
Inglaterra. Influenciado pelos puritanos William Perkins e John Owen —
fato evidente àqueles que leem os seus escritos, marcados por simplicidade,
profundidade, clareza e piedade — suas obras marcaram profundamente
outros puritanos como Jonathan Edwards e George Whitefield.
De fato, Goodwin teve uma participação bastante significativa no
conhecido Movimento Puritano. Além de ter sido um dos integrantes da
Assembleia de Westminster, ele também foi um dos líderes da chamada
Independência Eclesiástica (Congregacionalismo), que teve considerável
influência teológica e política na Inglaterra do século XVII. É
surpreendente o fato de que esse movimento é pouco conhecido pelos
evangélicos e até mesmo por boa parte dos cristãos reformados.
Goodwin também participou da agitação política e religiosa na
Inglaterra durante as décadas de 1640 e 1650, que culminou com a Grande
Ejeção de 1662, a qual foi o resultado de um Ato do Parlamento, que
expulsou os “não conformistas” da Igreja da Inglaterra. Nomeadamente,
esse Ato refere-se ao Ato de Uniformidade baixado pelo parlamento inglês,
em 24 de agosto de 1662, e ficou conhecido como A Grande Ejeção porque
cerca de 2 mil ministros puritanos foram arrancados do púlpito e proibidos
de pregar em público. Naquela época, a Igreja Anglicana, que era a religião
oficial, queria forçar os puritanos a cessarem suas pregações ou então a se
“conformarem” com a natureza do culto e da liturgia anglicanas decretadas
por lei. Por causa disso, os “não conformistas” foram excluídos dos
ambientes políticos, culturais e intelectuais e, inclusive, da Igreja da
Inglaterra. Esse último fato é uma das razões por que Goodwin ficou um
tanto esquecido, resultando em certo descaso para com a leitura de suas
obras.

FORMAÇÃO
Goodwin estudou no Christ’s College, em Cambridge, que, à época, era
bastante influenciado pelos escritos dos puritanos William Perkins (1558-
1602) e William Ames (1576-1633). Para a época, Goodwin teve uma
formação bastante sólida. Dentre as diversas áreas do conhecimento
humano por ele estudadas estão o humanismo, a filosofia escolástica, a
linguística, a lógica e a retórica.
Foi também em Cambridge que Goodwin conheceu o Catecismo de
Heidelberg, escrito, em 1563, por Zacarias Ursino (1534-1583) e Gaspar
Oleviano (1536-1587). Merece destaque o fato de ele ter acompanhado os
debates entre calvinistas e arminianos no famoso Sínodo de Dort (1618-
1619), nos Países Baixos. Ao fim dos debates, Goodwin concluiu que os
calvinistas estavam com a razão. Além disso, convém ressaltar que ele foi
diretamente influenciado pelos escritos do reformador francês João Calvino
(1509-1564), sobretudo pelas Institutas da Religião Cristã.
Em 1620, Goodwin assumiu o cargo de professor na St. Catharine’s
College, e o seu ministério foi tão duradouro e frutífero quanto o de seu
colega de ofício e amigo, John Owen.

A OBRA “O CORAÇÃO DE CRISTO”


O Coração de Cristo: o cuidado do Salvador no céu para com os pecadores
na terra foi publicado em 1651, e logo se tornou a obra mais conhecida de
Goodwin. A obra é um monumental exemplo de que ele era eminentemente
cristocêntrico em sua teologia, traço que forjou seu coração pastoral.
No geral, o que Goodwin apresenta nessa obra é a verdade de que
Cristo, mesmo glorificado no céu, não está distante dos pecadores
redimidos que ainda estão aqui na terra. Ao contrário, apesar do seu estado
glorificado, Cristo cuida dos seus e manifesta as mais profundas afeições
por eles. Com base nessa rica cristologia, Goodwin proclama ao leitor que o
Senhor Jesus Cristo continua a nos amar e cuidar de nós muito mais do que
podemos compreender.
O Coração de Cristo, que é dividido em três partes, tem o objetivo de
assegurar às pobres almas pecadoras que recorrem à cruz para a sua
salvação, que, apesar de toda a glória e santidade de que desfruta no céu, o
nosso Senhor Jesus Cristo não está distante do seu povo aqui na terra, que o
seu coração continua o mesmo de quando o Salvador estava aqui na terra.
Na verdade, o grandioso coração do Salvador expressa, do céu, amor e
cuidado por nós que ainda estamos aqui neste mundo.
Portanto, ler os escritos de Thomas Goodwin é ser cativado pela
teologia cristocêntrica e pela profundidade experimental desse pastor
puritano quase esquecido.
INTRODUÇÃO
Depois de apresentar1 nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo em todas as
suas grandes e solenes obras — sua obediência até a morte, sua
ressurreição, sua ascensão ao céu, o assentar-se à destra de Deus, e, a mais
destacada dentre elas, a sua intercessão por nós. O presente tratado expõe o
seguinte tema: o coração de Cristo em seu estado glorificado no céu,
sentado à mão direita de Deus, intercedendo por nós; e como ele está
predisposto e graciosamente inclinado aos pecadores que, na terra, se
achegam a ele; quão disposto a recebê-los, quão pronto a acolhê-los, e de
que forma se compadece ternamente de todas as fraquezas deles, tanto dos
pecados quanto das aflições. O alvo e a aplicação disso é: animar e ajudar o
crente a chegar com maior confiança ao trono da graça, ao Salvador e Sumo
Sacerdote; ajudá-lo a saber a doçura e ternura com que o coração de Cristo,
apesar de estar agora em sua glória, inclina-se aos homens e, assim, remove
a pedra de tropeço que encontramos (embora não a vejamos) nos
pensamentos dos homens diante do caminho para a fé. Essa pedra é a
dificuldade que o homem tem de compreender como deve tratar com Cristo
a respeito da salvação de sua própria alma com toda a liberdade e na
esperança de obtê-la, à semelhança dos pobres pecadores que estiveram
com ele aqui neste mundo. Para aqueles, a dificuldade reside no fato de
Cristo estar agora ausente, exaltado a excelsa e infinita distância, “sentado à
direita de Deus”. Os que padecem dessa dificuldade supõem que, se
tivessem a oportunidade de acompanhá-lo nos “dias da sua carne”, do
mesmo modo como Maria, Pedro e os outros discípulos, poderiam,
portanto, pensar em ir até o Salvador confiadamente e sem empecilhos.
Segundo eles, diante dos seus contemporâneos, Cristo estava em carne e,
embora de igual humanidade, era um homem cheio de mansidão e bondade,
que se fez pecado, e sensível a todo tipo de miséria; mas, agora, está numa
“terra distante”, revestido de glória e imortalidade, e não se tem ideia de
como estão as inclinações e afeições do seu coração pelos pecadores aqui
na terra.
O objetivo deste livro é, portanto, assegurar às pobres almas que o
coração de Cristo, quanto à misericórdia e compaixão, continua o mesmo de
quando o Salvador estava aqui na terra; que, mesmo na glória, ele intercede
com o mesmo coração e permanece igualmente manso e gentil, acessível e
profundamente terno, de entranháveis afetos. Pelo que os pecadores podem,
de igual forma, lidar com o Salvador a respeito do importante assunto da
salvação, com a mesma esperança e sob iguais condições de gratuidade,
com tanta facilidade de recebê-la como se estivessem juntos a ele neste
mundo, tratando, com igual intimidade, de todas as suas necessidades. Nada
pode servir de maior conforto e encorajamento para aqueles que se devotam
plenamente à vida de fé e cuja alma anseia forte e plena comunhão com seu
Salvador, o Cristo.
São duas as principais provas que podem auxiliar nossa fé a respeito
desse assunto. A primeira é mais extrínseca e exterior; já a segunda, mais
intrínseca e interior: uma delas afirma o modo de ser; a outra, as razões de
necessariamente ser assim.
Em primeiro lugar, quanto às provas extrínsecas (eu as denomino
assim), elas são deduzidas de várias passagens que descrevem o
comportamento e o estado de Cristo em todas as suas mais variadas
condições, a saber: em sua despedida antes de passar pela morte, sua
ressurreição, sua ascensão e sua posição assentado à destra de Deus. Meu
desejo é conduzi-los por tópicos bíblicos concernentes aos ofícios do
Senhor Jesus Cristo e extrair reflexões das coisas que o Salvador falou e
fez, em todas as circunstâncias pelas quais passou. Com isso, meu objetivo
é persuadir nosso coração a respeito do assunto que estamos tratando, ou
seja, que mesmo estando no céu, o coração de Cristo está agora tão
graciosamente inclinado para os pecadores que vêm até ele como esteve
quando estava aqui na terra. Como base ou introdução para esse primeiro
tipo de provas, considerarei a passagem de João 13.1 (“Ora, antes da Festa
da Páscoa, sabendo Jesus que era chegada a sua hora de passar deste mundo
para o Pai, tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até ao
fim”); para o segundo tipo de provas, considerarei a passagem de Hebreus
4.15, que é um texto muito apropriado para essa parte de nosso estudo.

1 A presente obra faz parte de um conjunto de escritos de Thomas Goodwin e, por isso, ele faz
referência a assuntos anteriormente tratados. – N. do E.
PRIMEIRA PARTE
I. Provas extraídas do discurso de despedida que o Salvador proferiu aos
seus discípulos.

Muito antes de abrir o coração para os seus discípulos, o Senhor Jesus


Cristo já tinha o propósito de deixá-los e retornar ao céu, pois em João 16.4
ele afirma: “Não vo-las disse desde o princípio, porque eu estava
convosco”. Mas, quando começa a deixá-los cientes da sua partida, Cristo,
imediata e plenamente, permite que vejam o que está em seu coração. Não
apenas quais eram suas intenções para com eles naquele momento, mas
também como seria quando ele estivesse em sua glória. Com essa
finalidade, examinemos brevemente sua última mensagem e seu sermão na
última Ceia que tomou com os seus discípulos — registrada e narrada
intencionalmente pelo evangelista João — e assim percebamos que era esse
o alvo do longo discurso de Cristo, dos capítulos 13 a 18 do evangelho de
João. Não pretendo apresentar um comentário desse longo discurso, mas
apenas fazer breves observações para expor nosso ponto.

1. O CONTEXTO DA PASSAGEM (JO 13.1)


O início do texto de João 13 é o prefácio de todo o discurso que vem a
seguir (ou seja, do lavar os pés dos discípulos e o subsequente sermão), o
qual por conseguinte apresenta o argumento e a essência do discurso.
O texto nos diz: “Ora, antes da Festa da Páscoa, sabendo Jesus que era
chegada a sua hora de passar deste mundo para o Pai, tendo amado os seus
que estavam no mundo, amou-os até ao fim. Durante a ceia, tendo já o
diabo posto no coração de Judas Iscariotes, filho de Simão, que traísse a
Jesus, sabendo este que o Pai tudo confiara às suas mãos, e que ele viera de
Deus, e voltava para Deus, levantou-se da ceia, tirou a vestimenta de cima
e, tomando uma toalha, cingiu-se com ela. Depois, deitou água na bacia e
passou a lavar os pés aos discípulos e a enxugar-lhos com a toalha com que
estava cingido” (Jo 13.1-5). Ora, esse prefácio foi colocado pelo evangelista
com o propósito de abrir “uma janela” no coração de Cristo, para
descortiná-lo por ocasião da sua partida e, dessa forma, mais adiante lançar
luz sobre as coisas ditas e feitas, clareando e interpretando tudo o que vem a
seguir. O objetivo é demonstrar quais são os sentimentos que, mesmo da
glória dos céus, Cristo manifesta pelos seus. O apóstolo nos diz quais foram
os pensamentos do Salvador naquela ocasião e como estava o seu coração
diante daquelas considerações — tudo isso provocou e motivou os eventos
posteriores.
De imediato, João revela a maneira de Cristo pensar, considerando, de
modo vívido, quão próximo estava o momento de se ausentar deste mundo
— “Sabendo Jesus”, diz o texto (isto é, enquanto meditava a respeito), “que
era chegada a sua hora de passar deste mundo para o Pai” — indicando que
estava pronto para revestir-se da glória que lhe era devida. Em seguida,
João 13.3 diz: “sabendo este [Jesus]” (ou seja, sua mente de fato ocupou-se
destas coisas) “que o Pai tudo confiara às suas mãos”, isto é, que todo o
poder do céu e da terra lhe pertenceria tão logo subisse ao céu; daí, em meio
a isso, o Senhor foi e lavou os pés dos discípulos, depois de considerar para
onde haveria de ir e, neste destino, o que ele próprio haveria de ser.
Qual era o principal objeto da atenção do coração de Cristo em meio a
todas essas sublimes meditações? Não era tanto a sua própria glória —
embora nos seja dito que isso foi considerado, para assim enfatizar ainda
mais o seu amor por nós —, mas sua atenção concentrou-se no amor pelos
“seus” e sobre eles repousava. “Tendo amado os seus”, diz o texto de João
13.1. A expressão os seus é a tradução dos termos gregos τόυς ἰδίους (tus
idius), que denota a mais profunda proximidade, afeto e intimidade por
aquilo que é de posse, pertencimento. Os eleitos, por sua vez, pertencem ao
próprio Cristo, fazem parte dele, mas não como nas palavras de João 1.11 (a
saber, “Veio para o que era seu, e os seus não o receberam”), isto é, como
“meras posses” que não o receberam; pelo contrário, as palavras de João
13:1 mostram que Jesus estima os eleitos como sua “propriedade
particular”, ou seja, seus próprios filhos, seus próprios membros, sua
própria esposa, sua própria vida, sua própria carne.
O Senhor Jesus Cristo estava consciente de que, embora fosse partir,
os seus ainda permaneceriam neste mundo. Por isso é acrescentado
propositadamente: “que estavam no mundo”, ou seja, que permaneceriam
aqui. Cristo tinha outros que também eram seus e que já estavam no lugar
para onde estava partindo, os “espíritos dos justos aperfeiçoados” (Hb
12.23), os quais ainda não o haviam visto em sua carne. Talvez alguns
achem que, enquanto meditava sobre partir deste mundo, o coração de
Cristo certamente direcionava sua atenção para Abraão, Isaque e Jacó, para
quem estava indo. Mas, não! O Senhor se preocupa mais com os seus que
permanecem aqui neste mundo — um mundo cheio de males (como ele
mesmo afirma em João 17.15), pecado e miséria, contra o qual, mesmo em
sua presença, nada podem fazer senão serem contaminados e afligidos.
Mesmo que naquele tempo seu coração estivesse repleto de
pensamentos a respeito da sua própria glória, era isto que o Senhor
guardava no mais íntimo quanto aos discípulos: “tendo amado os seus que
estavam no mundo, amou-os até o fim”. Tais palavras foram registradas a
fim de demonstrar a constância do amor de Cristo e como este se portaria
quando estivesse na glória. “Até o fim”, ou seja, até a perfeição — εἰς
τελείωσιν (eis teleiōsin), diz Crisóstomo; tendo começado a amá-los, o
Senhor aperfeiçoará e consumará seu amor pelos seus. E, novamente, “até o
fim”, isto é, para sempre. No grego, por vezes, se utiliza a expressão εἰς
τέλος (eis telos), aqui empregada pelo evangelista em conformidade com a
fraseologia bíblica, como no Salmo 103.9: “Não repreende perpetuamente,
nem conserva para sempre a sua ira” — assim nós o traduzimos, mas, no
original, a ideia é: “Ele não reserva [ou guarda] a ira até o fim”. Dessa
forma, o objetivo do texto é mostrar como o coração e o amor de Cristo,
estando então junto ao Pai, estariam voltados para sempre aos seus
discípulos, além de expor a atitude do seu coração enquanto estava aqui na
terra, uma vez que eles eram sua propriedade. E, tendo amado os seus,
porque o Senhor não muda, porque permanece o mesmo, amou-os para
sempre.
Para testificar, com um real testemunho, como seria, estando em glória
no céu, esse amor de Cristo pelos seus que estariam ainda neste mundo, o
evangelista mostra que, em meio àqueles sublimes pensamentos sobre a
glória que se aproximava e a posição soberana que lhe seria dada, Cristo
pegou água e uma toalha e lavou os pés dos discípulos. Perceba a coerência
entre os períodos de João 13.4–5: “sabendo [Jesus] que o Pai tudo confiara
às suas mãos”, então “levantou-se da ceia, tirou a vestimenta de cima e,
tomando uma toalha, cingiu-se com ela” e, por fim, “deitou água na bacia e
passou a lavar os pés aos discípulos”; veja que, com isso, fica evidente o
objetivo do evangelista de revelar que, mesmo tendo seus pensamentos
voltados à glória que lhe seria dada, e ainda que meditando a respeito e se
concentrando nessas verdades naquele exato momento, contudo o Senhor
lavou os pés dos seus discípulos. E qual era o propósito de Cristo nisso tudo
senão evidenciar que ele mesmo não poderia dar manifestações externas e
visíveis do seu próprio coração quando estivesse no céu?
Por essa razão, ao prestar-lhes humilde serviço enquanto meditava no
seu futuro estado, Jesus (por assim dizer) prova que poderia alegrar-se ao
operar em favor deles, mesmo depois de tomar plena posse da glória que
lhe era devida. Sim, tamanho é o seu amor por eles! Há outra expressão de
Cristo semelhante em Lucas 12.36–37, a qual confirma que esse é o sentido
aqui e que assim está o seu coração no céu. Em Lucas 12.36, Jesus se
compara com um noivo prestes a chegar ao céu para as bodas do
casamento; um senhor cujos servos permanecem o tempo todo aqui na terra,
como que do lado de fora, aguardando por ele. Nessa ocasião, uma vez que
espera, há muito tempo para pensar, e assim Cristo acrescenta: “Bem-
aventurados aqueles servos a quem o senhor, quando vier [alegre e
contente], os encontre vigilantes; em verdade vos afirmo que ele há de
cingir-se, dar-lhes lugar à mesa e, aproximando-se, os servirá”. Não
entendamos tais palavras como se Cristo os fosse servir no última dia, ou
nos céus; elas manifestam, contudo, profundo significado, como que numa
hipérbole, construindo o cenário do coração do Salvador, cujo amor
superabunda e transborda, e manifestando a felicidade inefável que
haveremos de desfrutar, infinitamente superior ao que podemos pensar ou
imaginar — e é nesse cenário que Cristo assevera suas palavras, indicando
um acontecimento incomum, a saber, um Senhor servindo seus servos, e na
expectativa de que estes o estivessem aguardando. Com essa expressão de
amor, ele lhes abriu seu próprio coração, mostrando o bem que lhes
desejava fazer. Aqui, mesmo em meio a pensamentos acerca da glória que o
esperava no porvir, conseguimos enxergar como era o coração de Cristo,
antes de ascender aos céus, cujas inclinações se revelam afáveis mesmo
após gloriosa ascensão, prontas a lavar os pés de pecadores, e servir aqueles
que lhe vêm ao encontro após aguardar seu retorno.
O que havia por trás desse seu ato de lavar os pés dos discípulos? O
objetivo era dar-lhes o exemplo de amor e humildade mútuos, bem como
fazê-los saber que os estava purificando dos pecados. É dessa forma que a
própria passagem de João 13.8,10 interpreta esse ato. De fato, agora que
está no céu, o Salvador não virá para lavar-lhes os pés. Contudo, com esse
ato, Cristo quis tornar conhecida a verdade de que ele mesmo, assentado em
glória, purificará os pecados de todo aquele que vier a ele. Jesus “amou a
igreja e a si mesmo se entregou por ela, para que a santificasse, tendo-a
purificado por meio da lavagem de água pela Palavra, para a apresentar a si
mesmo igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem coisa semelhante,
porém santa e sem defeito” (Ef 5.25–27).

2. O QUE ESTAVA NA MENTE DE CRISTO, É-NOS REVELADO


EM SEU SERMÃO DE DESPEDIDA.
Façamos agora uma análise das características do longo sermão que nosso
Senhor proferiu nesse momento de despedida, e percebamos que o principal
propósito de Cristo era assegurar aos discípulos qual seria a atitude do seu
coração para com eles.
Seria muito trabalhoso entrar em todos os pormenores, mas,
certamente, nenhum marido, por mais amoroso que seja, jamais se
empenhou tanto para confortar o coração da esposa durante sua ausência
como fez o Senhor para confortar o coração dos discípulos — e da mesma
forma o faz com todos os crentes. Portanto, consideremos, de uma vez por
todas, que aquilo que Cristo disse aos discípulos, ele também disse para
todos nós, conforme lemos em João 17.20: “Não rogo somente por estes,
mas também por aqueles que vierem a crer em mim, por intermédio da sua
palavra”. E, da mesma maneira que essa oração vale para todos os crentes,
assim também as coisas que Cristo disse naquela ocasião se referem a
todos.
Em primeiro lugar, consideremos os seguintes pontos:
a) Cristo dá aos discípulos um vislumbre de como e quão inclinado
lhes seria o seu coração quando estivesse no céu, cumprindo o ofício que
prometeu exercer em favor deles. A respeito disso, observe, antes de tudo,
que ele amorosamente lhes dá a saber de antemão o que quer dizer com
aquelas palavras, indicando cuidado e ternura, como de um marido para
com a sua esposa. Além disso, com grande franqueza de coração, o Senhor
fala como alguém que nada deseja ocultar! Ele diz: “Mas eu vos digo a
verdade: convém-vos que eu vá” (Jo 16.7).
b) Cristo lhes diz que será assim para o próprio bem e felicidade deles:
“Eu vou para enviar-lhes outro Consolador”, que estaria com eles enquanto
permanecessem neste mundo, e “vou para preparar-lhes lugar” (Jo 14.2),
para quando vocês saírem deste mundo. “Na casa de meu Pai há muitas
moradas”, o Filho diz, asseverando que as iria preparar e lhes reservar
morada. E, outra vez, com que tamanha clareza e sinceridade Jesus fala aos
discípulos! “Se assim não fora, eu vo-lo teria dito”, diz nosso Senhor. Ele
pediu que cressem nele. Por causa da glória para onde Cristo estava por ir,
ele jamais os enganaria. Quem não se deixaria persuadir por tal sinceridade
e clareza?
c) Uma vez que esse tópico se refere a nós e à nossa própria felicidade,
tudo faz ainda mais sentido. E, de fato, o próprio Cristo extrai daí um
argumento para comprovar a constância do seu amor pelos discípulos. João
14.3 diz: “E, quando eu for e vos preparar lugar” —, ou seja, se essa era a
sua missão, então não duvidemos do seu amor, mesmo agora que ele está
exaltado nos céus. É como se Cristo dissesse: “nem toda a glória daquele
lugar jamais fará com que eu me esqueça do meu propósito”.
Quando esteve aqui na terra, Jesus não se esqueceu do porquê de ter
vindo a este mundo: “Não sabeis que me convém tratar dos negócios de
meu Pai?” (Lc 2.49, ARC), disse ele quando era apenas um menino; sim, e
o Senhor o fez da melhor maneira possível, cumprindo toda a justiça. Por
isso, com certeza ele não se esquecerá de nenhuma das atribuições das quais
estava encarregado quando foi para o céu, que é, de longe, uma obra mais
agradável. Ou seja (conforme expus num sermão meu baseado em Hebreus
6.20), “onde Jesus, como precursor, entrou por nós”, um arauto que nos
abriu o caminho e nos garantiu um lugar.
Agora, mesmo que Jesus se esquecesse de nós, ainda assim nossos
nomes estão escritos no céu, junto dele, e continuamente diante dos seus
olhos, escritos ali, não só pela eleição de Deus (conforme Hebreus 12.22–
24: “Mas tendes chegado ao monte Sião e à cidade do Deus vivo, a
Jerusalém celestial, e a incontáveis hostes de anjos, e à universal assembleia
e igreja dos primogênitos arrolados nos céus, e a Deus, o Juiz de todos, e
aos espíritos dos justos aperfeiçoados, e a Jesus, o Mediador da nova
aliança, e ao sangue da aspersão que fala melhor do que o de Abel.”), mas
também porque o próprio Cristo os grava, outra vez, com seu sangue, em
cada mansão ali encontrada, que ele mesmo preparou para cada um dos
seus. Sim, Cristo carrega no coração o nome de cada um dos seus, tal qual o
sumo sacerdote fazia ao entrar no Santo dos Santos com os nomes das doze
tribos de Israel em seu peito.
O Senhor está assentado no céu e zela pelos seus, garantindo que
ninguém se aposse do lugar que lhes foi preparado. Por essa razão, está
escrito em 1Pedro 1.4 que a salvação lhes está “reservada nos céus”, ou
seja, lhes está guardada pelo Senhor Jesus Cristo. No passado, os demônios
tinham ali seu lugar, mas foram despojados assim como a terra de Canaã foi
tomada dos cananeus. Isso aconteceu porque não tinham um Cristo que
intercedesse por eles, assim como nós temos.
Em segundo lugar, a fim de evidenciar que, mesmo estando em sua
glória, zelaria por eles e por todos os demais crentes, o Senhor Jesus
prometeu que, depois de realizar essa obraem favor deles e de lhes preparar
o céu bem como para todos os demais eleitos por vir, então ele voltaria. O
texto de João 14.3 diz: “E, quando eu for e vos preparar lugar, voltarei”, o
que é uma singela expressão de amor, pois, se quisesse, o nosso Senhor
poderia simplesmente ordenar que os seus fossem até a sua presença. Mas,
pelo contrário, Jesus diz que ele mesmo voltará — e isso quando “estiver
pronto” (como se costuma dizer); e, na plenitude da sua glória no céu, o
Senhor a deixará por certo tempo para retornar, e desta vez se encontrar
com sua esposa. E com que propósito? Tanto para vê-la: “Eu vou tornar a
vê-los”, pelo que o seu coração se alegrará, quanto com o objetivo de
buscá-la, conforme João 14.3: “Virei outra vez e os receberei para mim
mesmo”.
Nosso Senhor consente com as “leis dos noivos”, uma vez que, por
mais grandioso que seja o sentimento, não há noivo que supere suas
expressões de amor verdadeiro. É costume do noivo — depois de
providenciar tudo adequadamente na casa do seu pai — ir pessoalmente ao
encontro da noiva. Ele não confiava essa tarefa a ninguém — já que essa é
uma ocasião singular de amor. É mais próprio do amor se humilhar que se
exaltar, e assim também acontece com o amor de Cristo, ele que, na
verdade, é o amor em pessoa, e, por isso, desce pessoalmente até nós:
“Voltarei outra vez e vos receberei para mim mesmo”, diz Cristo, “para que,
onde eu estiver, estejais vós também”.
Essa última parte do discurso revela sua razão de ser, e também mostra
sua verdadeira afeição. É como se Jesus dissesse: “Oh! Quanto anseio trazê-
los para junto de mim. Meu anseio é que vocês estejam onde estou, de
modo a permanecermos juntos para sempre. Esse é o desejo do meu
coração. Deixo o céu e a companhia de meu Pai, a fim de trazê-los para
junto de mim. Essa é a estima do meu coração por vocês! E, na minha
glória, vocês terão participação”.
Consideremos outra passagem. Em João 14.19, nos é dito: “porque eu
vivo, vós também vivereis”. Cristo apresenta uma explicação e, ao mesmo
tempo, faz um juramento. Quando Deus faz um juramento, ele diz: “Assim
como eu vivo”. Quando Cristo o faz, ele diz: “Porque eu vivo”. O nosso
Senhor dá a sua própria vida como penhor da sua promessa e não deseja
viver sob outro fundamento a não ser este: “verá a sua posteridade e
prolongará os seus dias” (Is 53.10).
Mais adiante, com o objetivo de expressar os anseios e as inclinações
que continuamente regiam o seu coração, o Senhor lhes diz que não
demoraria a voltar. Jesus disse em João 16.16: “Um pouco, e não mais me
vereis; outra vez um pouco, e ver-me-eis”. “Não o ver” não se refere ao
breve momento em que estaria ausente enquanto morto e sepultado, mas se
refere àquele tempo após sua ascensão aos céus, quarenta dias depois de ter
ressuscitado, para nunca mais ser visto neste mundo até o dia do Juízo. A
partir do momento da ascensão, “um pouco”, diz ele, “e ver-me-eis”, ou
seja, no dia do Juízo. Hebreus 10.37 diz: “Porque, ainda dentro de pouco
tempo, aquele que vem virá e não tardará”. A expressão grega no original
traz a ideia de algo “tão breve quanto é possível ser breve”. Embora
demorado quanto ao tempo em si, mas tão breve quanto possível com
respeito à sua vontade, sem a menor protelação. O Senhor Jesus não se
deterá nem sequer um momento a mais do que o necessário para executar
tudo o que nos diz respeito.
Depois, a repetição da expressão “Vindo, ele virá” dá a entender a
intensidade dos seus pensamentos e o anseio de voltar; Cristo ainda está por
vir, ele anseia e espera intensamente por isso. A equivalência hebraica dessa
expressão igualmente indica uma urgência, veemência e intensidade de
alguma ação, como “aguardando, tenho aguardado”, “desejando, tenho
desejado”, assim também “vindo, ele virá”. E, não bastassem essas
manifestações de expectação, o Senhor ainda acrescenta: “e não vou
demorar”, tudo para evidenciar o infinito anseio do seu íntimo e o desejo do
seu coração em conceder aos seus eleitos que estão neste mundo a bênção
de estar junto de si. Nosso Senhor não vai se demorar nem mesmo um
minuto além do necessário, ele se demorará só até haver, no decorrer dos
séculos mediante intercessão, preparado cada morada para cada santo, para
poder acolhê-los todos juntos ao mesmo tempo, e tê-los todos junto de si.
Em terceiro lugar, Cristo manifesta a atitude que o seu coração teria,
durante a sua ausência, para com os discípulos, por meio de cuidadosa
provisão. Estas são as providências tomadas pelo Senhor relacionadas ao
conforto deles em sua ausência: “Não os deixarei como órfãos”; isto é, não
os deixaria desamparados como crianças que não têm nem pai nem amigos.
Cristo basicamente quis dizer: “Meu Pai e eu temos somente um amigo, que
está bem junto de nós, e que de nós dois procede, o Espírito Santo. Nesse
meio-tempo, ele lhes será enviado; procederei assim como um marido
amoroso costuma fazer quando precisa ausentar-se: confiar os cuidados da
esposa ao amigo mais chegado e confiável”. Assim Cristo o faz quando diz:
“E eu rogarei ao Pai, e ele vos dará outro Consolador” (Jo 14.16). E
também, em João 16.7, ele diz: “eu vo-lo enviarei”.
Com essas palavras, Cristo quis dizer que: “O Espírito Santo será um
melhor Consolador para vocês do que eu poderia ser neste tipo de
dispensação, uma vez que, enquanto estou aqui na terra, tenho minhas
limitações para com vocês”. Dessa forma, em João 16.7, o Senhor anuncia:
“convém-vos que eu vá, porque, se eu não for, o Consolador não virá para
vós outros”, o qual, devido ao próprio ofício, haveria de confortá-los com
mais propriedade do que Cristo em presença física. Esse Espírito, uma vez
que é o “penhor do céu”, como diz o apóstolo, é a maior prova e garantia
que já houve do amor de Cristo, amor tão profundo que “o mundo não o
pode receber”.
Além do quê, diz o Senhor, todo o conforto que o Espírito Santo desse
aos discípulos durante a sua ausência física deste mundo, seria a
manifestação do seu coração em favor deles; assim como o Espírito não
teria vindo sem que Cristo o enviasse (Jo 16.7), assim também o “Espírito
da verdade [...] não [falaria] por si mesmo, mas [diria] tudo o que [tivesse]
ouvido” (Jo 16.13). Além disso, em João 16.14: “Ele [...] há de receber do
que é meu e vo-lo há de anunciar”. Isto é, diz o Salvador: “eu o enviarei
para que ele esteja em meu lugar, substituindo-me em benefício de vocês,
minha noiva, minha esposa; ele tão só transmitirá os relatos do meu amor
— se vocês lhe derem ouvidos e não o entristecerem”.
Essa é a razão por que Cristo diz: “Ele me glorificará [...] junto de
vocês (visto que eu já estou glorificado no céu)”. Ao dizer isso, Cristo,
naquele momento, estava dizendo que tudo o que o Consolador lhes
anunciasse seria com a finalidade de glorificar o Filho e de exaltar sua
dignidade e seu amor à vista dos discípulos. Para o Espírito, fazê-lo seria
um prazer. O Espírito Santo poderia vir num instante do céu, quando lhe
aprouvesse, e trazer novas percepções acerca das obras de Cristo, trazendo-
lhes seus mais recentes pensamentos a respeito deles, no mesmo instante
em que o Salvador estivesse assim pensando, mostrando-lhes diretamente
quais e como são estes raciocínios. É por isso que 1Coríntios 2.12, 16 diz
que, uma vez que recebemos o Espírito, temos a mente de Cristo, pois ele
habita no coração do Senhor e, também, no nosso, revelando quais são os
pensamentos de Jesus a nosso respeito, e o que para ele significam nossas
orações e nossa fé.
É como se o Salvador dissesse: “Assim, vocês saberão o que tenho no
coração de forma tão segura e rápida como se eu estivesse junto de vocês; e
o Espírito continuamente lhes quebrantará o coração com o meu amor por
vocês ou com o amor de vocês por mim, ou ambas as coisas; de toda a
forma, vocês estarão seguros do meu amor”. E, visto que Cristo disse aos
discípulos que eles já tinham recebido o Espírito no coração, e que esse
mesmo Espírito fazia neles morada (Jo 14.17), quanto maior e mais plena
seria, depois da ascensão, a medida sobre eles (conforme o texto declara na
sequência). E, naquele dia (Jo 14.20), os discípulos saberiam (ou seja, por
meio do Espírito) que Cristo estava no Pai, eles em Cristo, e Cristo neles.
As palavras de Cristo poderiam ser parafraseadas assim: “O Espírito lhes
dirá, quando eu [Cristo] estiver no céu, que existe entre nós [Cristo e os
discípulos] uma ligação tão verdadeira e um afeto tão verdadeiro da minha
parte quanto há entre mim e o Pai, e que é impossível desatar esse laço e
desviar meu coração de vocês, bem como é impossível desviar o coração do
Pai de mim, ou desviar meu coração do coração do meu Pai”. E, assim, suas
palavras poderiam continuar: “Vocês podem ficar seguros de que é verdade
aquilo que o Espírito diz sobre meu amor por vocês, pois ‘ele é o Espírito
da verdade’ (Jo 16.13). [Também em João 14.16–17, Cristo diz que ele
próprio é um Consolador]. “Assim como vocês creem em mim quando lhes
falo a respeito do meu Pai, pelo fato de eu ter vindo dele, assim vocês
podem crer em tudo o que o Espírito anunciar a meu respeito e a respeito do
meu amor por vocês, pois ele procede de mim”.
Mas suponhamos que os discípulos perguntassem: “Será que o
Consolador também não nos deixará por um tempo, assim como o Senhor o
fez?”. “Não”, diz Cristo: “o Pai lhes dará outro Consolador, e ele estará
para sempre com vocês” (Jo 14.16). Jesus faz um contraste consigo mesmo,
pois ele lhes tinha sido um Consolador, mas agora teria de ausentar-se. Mas
isso não aconteceria com o Espírito. Jesus prometeu: “Ele estará para
sempre com vocês” e, assim como o Espírito agora “habita em vocês”, do
mesmo modo ele “estará com vocês” (Jo 14.17).
Como se isso não fosse suficiente para assegurá-los do afeto que havia
em seu coração, Cristo ainda garante que lhes concederia uma experiência
diária disso. “Confiem em mim”, diz o Senhor, “provem-me depois de eu
partir, expressem essa confiança me dizendo tudo o que vocês querem que
eu faça por vocês, e eu deixarei meu Espírito para ser ministro e ‘copista’
de todas as vossas petições”. “Até agora nada [ou seja, pouco] tendes
pedido em meu nome” — o Senhor os recrimina por não terem pedido que
ele fizesse mais por eles — “pedi e recebereis”. Se de outra forma vocês
não creem, creiam naquilo que estão vendo. Peçam e serão atendidos no
presente momento. Creiam, diz o Senhor, “por causa das obras” (Jo 14.11).
Jesus diz isso por causa das obras que faria por eles em resposta às suas
orações, quando tivesse partido — o que seria como muitas “cartas do seu
coração” escritas em resposta às “cartas” deles.
Em João 14.12 (“aquele que crê em mim fará também as obras que eu
faço e outras maiores fará, porque eu vou para junto do Pai”) é evidente que
Jesus fala das obras realizadas depois de sua ascensão. E como é que eles
conseguiriam que essas obras fossem executadas? Pela oração! É isso que
diz João 14.13: “E tudo quanto pedirdes em meu nome, isso farei”. O
Senhor está falando de quando já tivesse partido. E, outra vez, Jesus diz em
João 14.14: “Se me pedirdes alguma coisa em meu nome, eu o farei”. Quer
dizer, “se eu ouvir sua oração durante a semana, durante o dia, durante uma
hora que seja, esteja certo de uma resposta”. “Abre bem a boca, e ta
encherei” (Sl 81.10). “Suas orações me serão como sinais contínuos do
coração de vocês por mim, enquanto minhas respostas serão indícios do
meu coração por vocês”.
Pelo fato de Cristo ordenar-lhes que direcionassem suas “cartas” (suas
orações) ao Pai, apenas enviando-as em nome dele, como se vê em João
16.23, talvez os discípulos não soubessem tão claramente que o coração
dele se dispunha a atendê-los, pensando, entretanto, que a decisão estivesse
unicamente nas mãos do Pai. Então, Cristo acrescenta duas vezes, em João
14: “Eu vou... eu vou”. Ele fala como alguém que se compromete de
antemão a cumprir e executar em favor deles (assim como seu Pai está
igualmente desejoso), querendo que saibam que sua mão está envolvida. É
como se o nosso Senhor tivesse dito: “Embora vocês peçam ao Pai em meu
nome, tudo vem das minhas mãos, e eu lhes responderei — é preciso que
minha mão seja a garantia de tudo o que é executado. Meu coração não
falhará”.
Para deixar ainda mais evidente o seu amor, Cristo não apenas lhes
ordena que orem a ele e em seu nome, em todas as ocasiões, mas também
dá a garantia de que ele mesmo vai interceder por suas petições. E perceba a
maneira como o Senhor fala sobre essa verdade: é por meio das mais
afetuosas e persuasivas expressões, para tornar conhecido seu coração aos
discípulos, expressões que os homens usam para revelar e manifestar o mais
profundo cuidado e propósito.
Em João 16.26, é dito: “Naquele dia [isto é, depois de ascender aos
céus], pedireis em meu nome. E não vos digo que rogarei [no futuro] ao Pai
por vós”; mas ele já estava a rogar. É como ele dissesse: “Não, eu não vou
fazer isso no futuro, mas já o faço agora”. Eu já mencionei isso antes, mas
desejo acrescentar um esclarecimento. Esse é o tipo de discurso que se usa
quando a intenção é expressar o maior dos motivos para que alguém
descanse confiante e seguro no afeto proposto: “Eu não vos amarei; na
verdade eu já vos amo agora”. Trata-se de expressar-se dizendo o contrário,
de forma negativa, como forma de dar maior ênfase. Assim como quando
ironicamente dizemos a respeito de alguém que recebeu o maior dos
benefícios: ‘ele não recebeu quase nada!”. É uma expressão como a que
Paulo usou com os coríntios: Eu converti a alma de vocês sem vocês o
perceberem; “sendo astuto, vos prendi com dolo [...] Perdoai-me esta
injustiça” (2Co 12.16, 13).
É isto que Cristo diz aqui: “Não digo que vou orar por vocês”,
enquanto a verdade é que esse é o seu principal ofício no céu: “[…] vivendo
sempre para interceder por eles” (Hb 7.25). O Senhor vive eternamente,
para sempre interceder, sem cessar, até que os pecadores sejam salvos. Mas
a obra de Cristo no céu é um tema que merece estudo específico e mais
profundo. Por ora não dissertarei a respeito, nem mencionarei detalhes
desse seu sermão. Leia os capítulos 14, 15 e 16 do evangelho de João, pois
neles você encontrará o registro do mais longo sermão do Senhor Jesus
Cristo. Ele se demorou mais nesse tópico porque, de fato, seu coração
estava mais nele do que em qualquer outro ponto sobre o qual ele já havia
pregado. Jesus disse todas essas coisas aos seus discípulos a fim de acalmá-
los e tranquilizá-los. Ele o fez mais por consideração à agitação deles; não
fosse isso, Jesus não teria se alongado tanto nessa pregação.
Leia o capítulo 17 do evangelho de João e perceba que Cristo então se
retira, sozinho, para junto do Pai, e torna ainda outra vez a lhe falar tudo
aquilo que já havia dito aos discípulos. O Senhor diz acerca deles, agora à
parte, as mesmas coisas que já havia dito presencialmente. Leia o texto e
veja que Cristo dizia amá-los quando estava aqui na terra; ele diz o mesmo,
agora que está no céu. Por isso, nosso Senhor não só era sincero nas
palavras, mas também seu coração estava cheio desse mesmo sentimento.
Sabemos que o capítulo 17 do livro de João contém uma oração
proferida por Jesus antes do seu sofrimento e, ali, o registro do seu
testamento e último pedido, pois a oração é feita nos seguintes termos: “Pai,
a minha vontade é...” (Jo 17.24) — ele verá essa vontade ser executada no
céu. E, acertadamente, Armínio disse que essa oração nos foi deixada por
Cristo como resumo de sua intercessão por nós na glória. Jesus disse como
pretendia agir no céu, como alguém que cumpriu seu trabalho e agora
aguardava seu salário: “Eu te glorifiquei na terra, consumando a obra que
me confiaste para fazer”, declara o Senhor em João 17.4. Embora Jesus
mencione uma ou duas coisas a respeito de si mesmo (nos primeiros cinco
versículos), ele menciona os discípulos favoravelmente por cinco vezes (e
todo o restante do capítulo é uma oração em favor dos discípulos).
Cristo usa todo tipo de argumento para persuadir seu Pai em favor dos
seus filhos. “Eu concluí a obra que me confiaste”, e, diz ele, “salvá-los é
obra tua, que resta ser executada por ti para o meu deleite”. “Eles são teus, e
tu os deste a mim”; e, palavras dele, “eu lhes confio, propriedade tua; todos
os meus são teus, e os teus são meus”. Cristo dá a entender que, por si
mesmo, não acrescentou ninguém, mas expressa toda a sua afeição
exclusivamente por aqueles que o Pai lhe havia concedido. Eis um imenso
encorajamento! Ele declara que não abre a boca para interceder por
ninguém mais: “Não oro pelo mundo”, diz ele. Ao pronunciar essas
palavras, era como se Cristo dissesse: “não abrirei meus lábios em favor de
nenhum filho da perdição; mas empregarei meu suor, minhas orações e todo
o meu empenho apenas em favor daqueles que o Pai me deu; apesar de ter
me concedido particular glória, aquela glória que tive antes que o mundo
fosse formado, ainda existe outra glória que considero tanto quanto a
primeira. Essa glória é: que sejam salvos aqueles que o Pai me deu. “Eu sou
glorificado neles”, diz Cristo (Jo 17.10), e “eles são minha alegria” (Jo
17.13) e, por isso, “desejo tê-los comigo onde quer que eu esteja” (Jo
17.24). É como que Cristo dissesse: “Pai, o Senhor fixou meu coração
neles, amou-os como amou a mim, e determinou que eles sejam um em nós,
assim como nós somos um, e por isso com eles almejo viver; o Senhor está
ao meu lado, e por isso quero que eles também estejam: ‘Eu quero que eles
estejam onde eu estou’ (Jo 17.24). Se eu tenho qualquer glória, eles
precisam fazer parte dela”. Assim diz o versículo já citado: “Para que eles
possam contemplar a glória que tu me deste”. Jesus diz tudo isso como se
ele já estivesse no céu e na posse de toda essa glória. Essa, portanto, é uma
expressão do seu coração no céu, na qual você encontra bom solo sobre o
qual edificar.
II. Provas extraídas de passagens bíblicas e expressões de Cristo depois de
sua ressurreição

As provas bíblicas até aqui apresentadas para fundamentar o nosso


assunto foram extraídas da atitude e do sermão de Cristo, antes da sua
morte, desde a primeira vez em que abriu o coração a seus discípulos a
respeito de partir e deixá-los aqui. Contemplemos, pois, o comportamento
do nosso Salvador depois de ressuscitar; dele podemos extrair uma visão
mais ampla de: (1) o que passava pelo seu coração; (2) qual seria o seu
sentimento para com os pecadores quando estivesse no céu; e (3) a
demonstração do seu amor. Pois a sua ressurreição foi o primeiro passo em
direção à glória, e, de fato, foi sua porta de entrada nela.
Quando Jesus entregou seu corpo, entregou toda a fraqueza terrena e
as paixões da carne e do sangue. “Ele foi semeado”, como também é o
nosso caso, “em fraqueza”; mas, havendo ressurgido, tomou sobre si as
disposições e atributos de um corpo imortal e glorioso, porquanto foi
“ressuscitado em poder”. E “os dias da sua carne”, ou esse estado de
fragilidade, como diz o autor da Carta aos Hebreus, ficaram no passado e
deixaram de existir por ocasião da ressurreição. A “vestimenta” do Salvador
recebeu nova coloração e, foi dotada de novas qualidades, sendo
reconstruída com material apropriado para suportar e conter a glória
celestial. Portanto, aquilo que o seu coração, logo após a ressurreição, nos
revelou, é a demonstração clara e definitiva daquilo que será para sempre
no céu.
A fim de mais profunda ilustração, considere que, se houvesse um
julgamento para provar se o amor de Cristo por pecadores permaneceria ou
não, a sentença seria dada com base na ressurreição. Pois, todos os
discípulos de Jesus (sobretudo Pedro) haviam se comportado da maneira
mais indigna possível contra ele nesse contexto — na ocasião em que, em
favor deles, consumava o maior ato de amor jamais demonstrado por
alguém, ou seja, morrendo por eles. E, a propósito, Deus, com frequência,
ordena as coisas de forma a derramar as maiores misericórdias em nosso
favor e prover nosso bem maior justamente quando mais estamos pecando
contra ele. Assim o Senhor o faz para magnificar ainda mais o seu amor.
Sabemos como todos abandonaram o Filho de Deus e, no meio da sua
agonia no jardim, quando desejou a companhia dos seus discípulos para
aliviar seu espírito oprimido, eles dormiram como se estivessem muito
longe dali, completamente insensíveis às aflições do seu Senhor — coisa
que, se tivessem qualquer afeição, jamais teriam feito. “Não puderam vocês
vigiar nem por uma hora?”, pergunta Jesus. Além do mais, sabemos quão
vil foi o modo com o qual Pedro o negou com juramentos e pragas; e como,
depois disso, quando Jesus foi sepultado, todos os discípulos abriram mão
da fé nele: “Tínhamos certeza de que esse seria o redentor de Israel”,
disseram dois deles (Lc 24.21). Eles ficaram cheios de dúvidas quanto a ser
ou não ele o Messias.
Ora, assim que Cristo ressurgiu de entre os mortos, com o coração e o
corpo dos quais está revestido agora que se encontra no céu, quais foram as
suas primeiras palavras? A tendência é pensar que, assim como eles não
permaneceram com Jesus em seus sofrimentos, da mesma forma ele, então
glorificado, se mostraria um estranho; ou, no mínimo, suas primeiras
palavras seriam de repreensão por aquela falta de fé e infidelidade. Mas não
encontramos nada disso, pois sua primeira palavra a respeito deles é esta:
“vai ter com os meus irmãos e dize-lhes...” (Jo 20.17).
Em outra passagem bíblica, vemos quão grande foi aquela
demonstração de amor e compaixão ao chamá-los assim: “Ele [Cristo] não
se envergonha de lhes chamar irmãos” (Hb 2.11). Com toda a certeza, seus
irmãos se envergonharam dele. Agora, o fato de Jesus lhes dar tal
designação, desde o momento em que entrou na glória, reforça mais ainda o
seu amor por eles. Jesus age como José, que, estando exaltado, revelou a
seus irmãos os seus pensamentos: “Eu sou José, irmão de vocês”, diz ele
(Gn 45.4). Assim também Cristo diz aqui: “diga-lhes que você viu Jesus,
irmão deles; eu ainda os considero como meus irmãos”.
Essa foi sua primeira saudação. Mas qual foi a impressão que o Senhor
quis passar para os discípulos? “Que eu vou para meu Pai, que também é
vosso Pai”, diz ele. Sem dúvida, essas são palavras extremamente afetuosas,
manifestando infinitamente mais amor do que as de José (embora também
cheia de sentimentos). Pois, José, depois de se revelar a seus irmãos,
acrescenta: “a quem vocês venderam para o Egito” — ele os lembra da
crueldade cometida. Cristo, porém, não age assim, pois não diz nem uma só
palavra a respeito; não os faz lembrar do que fizeram contra ele.
Pobres pecadores, cheios de lembranças dos próprios pecados, não
sabem como, no Dia Final, fitarão o rosto de Cristo quando o virem pela
primeira vez. Mas, que sosseguem o coração quanto aos cuidados e ao
medo, considerando de que modo Cristo agiu com seus discípulos, que
haviam pecado contra ele. Que não temam, pois “dos seus pecados o
Senhor jamais se lembrará”. Sim, mais que isso. Veja que o Senhor os
lembra não tanto daquilo que fez em favor deles. Cristo não diz: “diga-lhes
que morri por eles” ou “eles quase não conseguem se lembrar de que eu
sofri em favor deles”. Cristo não profere nem uma só palavra a respeito.
Seu coração e seu cuidado, contudo, estão prontos para realizar ainda mais:
ele não olha para trás, para o que já passou, mas se esquece dos próprios
sofrimentos assim como “a mulher se esquece dos seus sofrimentos, pela
alegria de ter dado à luz um menino” [Jo 16.21].
Havendo consumado sua grandiosa obra neste mundo em favor dos
discípulos, Cristo se apressa para o céu tão logo que possível para consumar
ainda outra obra. E, embora soubesse que ainda tinha muito que fazer aqui,
assuntos que o faria permanecer ainda por mais quarenta dias, para mostrar
o que desejava e queria realizar por eles no céu, ele então lhes diz: “Eu
vou”, e manifesta sua alegria não só pelo fato de ir para “o seu Pai”, mas
também que ele vai para o “Pai deles”, a fim de ser, ele próprio, em favor
dos seus, advogado diante do Pai. O que, aliás, já mencionei anteriormente.
Jesus é, de fato, nosso irmão que ressuscitou e está vivo? Ele nos chama de
irmãos? Ele nos fala, assim, de modo tão amoroso? Qual é o coração que
não se deixa dominar por isso?
Essa, porém, foi apenas uma mensagem enviada a seus discípulos
antes de se encontrarem com ele. Observemos, pois, seu comportamento e o
que ele disse quando se reúnem. Quando Cristo se encontrou com os
discípulos pela primeira vez após a ressurreição, esta foi a sua saudação:
“Paz seja convosco” (Jo 20.19), a qual é repetida em João 20.21. Essa é
exatamente a mesma coisa que ele disse em seu discurso antes de partir:
“Deixo-vos a minha paz”. Depois disso, “soprou sobre eles”, comunicando-
lhes o Espírito Santo numa medida mais plena, dando-lhes assim uma
evidência daquilo que ele faria de modo ainda mais completo quando
estivesse no céu. O mistério do seu sopro era para lhes mostrar que essa era
a máxima expressão do seu coração, isto é, conceder-lhes o Espírito, e que
isso procedia do mais profundo íntimo (como acontece com a respiração),
da mesma forma como o Espírito Santo procede dele e do Pai. Esse foi o
sentido de todas essas coisas. E, com que finalidade Cristo lhes soprou o
Espírito? Não para eles só, mas para que, pela dádiva e assistência desse
Consolador, pudessem proclamar perdão de pecados aos homens,
convertendo-os ao Senhor. “A quem vocês perdoarem — ou seja, pelo
ministério da Palavra —, serão perdoados”. Note que os pensamentos de
Cristo continuam voltados para os pecadores, e seu cuidado voltado para a
conversão de almas. Por isso, no evangelho de Marcos, suas últimas
palavras registradas são estas: “Ide por todo o mundo e pregai o evangelho
a toda criatura. Quem crer e for batizado será salvo” (Mc 16.15–16). E, de
acordo com Lucas 24.46–47, suas últimas palavras neste mundo são:
“Assim está escrito que o Cristo havia de padecer e ressuscitar dentre os
mortos no terceiro dia e que em seu nome se pregasse arrependimento para
remissão de pecados a todas as nações”; e acrescenta: “começando de
Jerusalém”, onde ele estava poucos dias antes de ser crucificado.
Ao dizer “a todas as nações”, poderíamos equivocadamente pensar que
Jesus omitiria especificamente a cidade de Jerusalém, ordenando-lhes que a
evitassem. Contudo, Cristo lhes ordena que comecem exatamente por ela. É
como se Jesus dissesse: “que eles, os que provocaram a minha morte e dela
participaram, colham os primeiros frutos e os benefícios do meu sacrifício”.
E, com essa finalidade, ele também diz: “Eis que envio sobre vós a
promessa de meu Pai” (Lc 24.49). Noutro momento, ele aparece a dois
deles, e os repreende, dizendo: “Ó néscios e tardos de coração”. Mas, por
quê? Simplesmente porque não creram; não por algum outro pecado ou pelo
fato de o terem abandonado. O texto segue: “Ó néscios e tardos de coração
para crer tudo o que os profetas disseram!” (Lc 24.25). E isso porque o
Salvador se alegra quando cremos, como em João 11.16.
Depois disso, Jesus aparece a todos os onze e os reprova, diz o texto;
mas, por quê? Por causa da sua “incredulidade e dureza de coração” —
ainda pelo fato de não crerem (Mc 16.14). Nenhum pecado deles o
perturbava, exceto a incredulidade, mostrando que o Senhor deseja acima
de tudo que os homens creiam nele; e ainda mais agora, que está glorificado
no céu. Depois disso, ele se encontra com Tomé, e mal o repreende por
causa da sua grave incredulidade, apenas lhe diz que fez bem em “ter crido
porque viu”; contudo, Cristo vai além: “Bem-aventurados os que não viram
e creram” (Jo 20.29), e assim Tomé é repreendido.
Em outra ocasião, Jesus aparece aos discípulos e lida de forma
particular com Pedro; contudo, não diz nem mesmo uma palavra sobre os
seus pecados, nem a respeito de tê-lo negado, mas apenas busca dele um
testemunho do seu amor. “Pedro”, o Senhor pergunta, “tu me amas?”.
Cristo se compraz em ouvir isso! São palavras que lhe soam agradáveis aos
ouvidos, quando lhe é declarado amor, embora ele já o soubesse; e assim
Pedro responde: “Tu sabes todas as coisas, tu sabes que te amo” (Jo 21.15).
Cristo pergunta por três vezes, cuja intenção, ao conseguir de Pedro a sua
confissão de amor, era garantir que, se ele o amasse como estava
confessando e fosse sempre demonstrar isso, então que “apascentasse os
seus cordeiros”. Esse era o grandioso testemunho que Cristo, quando
estivesse no céu, queria que Pedro desse de seu amor. E assim o apóstolo
foi uma última vez incumbido pelo seu Senhor.
Eis outro grandioso testemunho de como o coração de Cristo estava
comovido e em que consistia a sua maior preocupação. Seu coração se
inclina totalmente às suas ovelhas, às almas que vão se converter. Jesus já
havia dito: “Ainda tenho outras ovelhas, não deste aprisco; a mim me
convém conduzi-las” (Jo 10.16). Ele designou seus apóstolos para essa
obra. Contudo, essa expressão era ainda mais comovente e afetuosa, pois as
ovelhas conseguem sobreviver sozinhas, mas os pobres cordeirinhos não.
Por isso é que Cristo diz a Pedro: “apascenta os meus cordeiros”, assim
como João, para expressar com maior intensidade seu amor por aqueles a
quem escreve, os chama de “meus filhinhos”.
E com que finalidade o evangelista registra essas coisas a respeito de
Cristo depois da ressurreição? Um dos textos explica. Em João 20.30 é dito:
“Na verdade, fez Jesus diante dos discípulos muitos outros sinais”, ou seja,
depois de ressuscitar — pois, em meio à narrativa daquilo que Cristo fez
após sua ressurreição, o autor diz: “que não estão escritos neste livro”, ou
seja, em parte registrado pelos outros evangelistas, em parte omitido.
“Estes, porém, foram registrados para que creiais que Jesus é o Cristo”, de
forma que nos acheguemos a ele como Messias, o Salvador do mundo. Por
isso, a maior parte das coisas registradas tem por objetivo revelar o coração
de Cristo e suas obras em favor de pecadores, de forma que creiamos nele e
“crendo, tenhamos vida em seu nome”.
III. Provas extraídas de passagens bíblicas por ocasião da ascensão de
Cristo ao céu e depois dela

Agora, olhemos para Cristo no exato momento da sua ascensão: a


maneira como ele se comportou naquela ocasião também trará conforto ao
nosso coração. A passagem de Lucas 24.50 declara: “Então […] erguendo
as mãos, os abençoou”; e, para dar ainda maior ênfase, e para que déssemos
maior atenção a isso, como havendo algum grande mistério, é acrescentado
em Lucas 24.51: “Aconteceu que, enquanto os abençoava, ia-se retirando
deles, sendo elevado para o céu”. Cristo reservou essa bênção como seu
último ato. E não há outro sentido para tanto, senão (como mostrei
anteriormente) o de os abençoar assim como Deus abençoou Adão e Eva,
ordenando-lhes “crescei e multiplicai-vos”, e, dessa forma, abençoar toda a
raça humana que procederia deles. De igual modo Cristo, ao abençoar seus
discípulos, abençoa todos os que creriam por meio da palavra deles até o
fim dos tempos. Faço menção, porém, apenas para fins ilustrativos. Esse
mistério Pedro o interpreta em Atos 3.26, quando fala com os judeus,
dizendo: “Tendo Deus ressuscitado o seu Servo, enviou-o primeiramente a
vós outros para vos abençoar” (como?) “no sentido de que cada um se
aparte das suas perversidades”, dessa forma lhes perdoando, pois “bem-
aventurado é o homem cujos pecados são perdoados”. Eis um manifestar de
Cristo no momento da sua ascensão.
A seguir, consideremos o que Cristo fez quando chegou ao céu e ali foi
exaltado: de que maneira abundante ele cumpriu tudo o que havia
prometido em seu último sermão!
Em primeiro lugar, ele imediatamente derramou seu Espírito, e
“abundantemente” (como diz Paulo a Tito), e “exaltado, pois, à destra de
Deus, tendo recebido do Pai a promessa do Espírito Santo, derramou isto
que vedes e ouvis”, diz o apóstolo Pedro, em seu primeiro sermão depois da
ascensão (At 2.33). Jesus, então, o recebeu e o derramou de forma visível.
Em Efésios 4.8, 12 é dito: “Quando ele subiu às alturas, levou cativo o
cativeiro e concedeu dons aos homens [...] para o desempenho do seu
serviço”; e “cresçamos em tudo naquele que é a cabeça, Cristo, de quem
todo o corpo, bem ajustado e consolidado pelo auxílio de toda junta,
segundo a justa cooperação de cada parte, efetua o seu próprio aumento
para a edificação de si mesmo em amor” (Ef 4.15–16), ou seja, para a
conversão dos pecadores eleitos, tornando-os santos. E os dons ali
mencionados (alguns deles) permanecem até hoje em “pastores e mestres”.
O Espírito permanece ainda em nossa pregação e em nosso coração, no
ouvir da Palavra, na oração, e convence os pecadores do amor de Cristo até
hoje; e nisso tudo está a garantia de que, mesmo no céu, o afeto de Cristo
por pecadores permanece. Todos os nossos sermões e as suas orações lhes
são evidências de que o coração de Cristo ainda é o mesmo para com os
pecadores como sempre foi, pois o Espírito que nos assiste em tudo isso
vem em nome e no lugar dele, e opera tudo por designação de Jesus. Vocês
não sentem o coração comover-se quando ouvem alguém pregar sobre tais
verdades? E quem é que os comove? É o Espírito que fala em nome de
Cristo, que está no céu, assim como se diz que ele “dos céus nos adverte”
(Hb 12.25). E, quando você ora, é o Espírito que formula (compõe ou dita)
as suas orações, e que “intercede por nós sobremaneira”, em nosso próprio
coração (Rm 8.26). Sua intercessão nada mais é que a evidência e o eco da
intercessão de Cristo, que está no céu. O Espírito ora em você pelo fato de
Cristo orar por você. Ele é um intercessor na terra pelo fato de Cristo ser
um intercessor no céu. Do mesmo modo que o Espírito tomou as palavras
do próprio Cristo e as usou, quando falou nos discípulos e para eles as
palavras de vida, assim ele toma também as orações de Cristo quando ora
em nós. O Espírito toma as palavras como que da boca de Cristo, ou
melhor, do seu coração, e dirige nosso coração a fim de oferecê-las a Deus.
Ele também nos visita no sacramento: no cálice nos mostra a face sorridente
de Cristo e, por meio do seu semblante, o seu coração; dessa forma,
ajudando-nos a contemplá-lo, saímos dali maravilhados pelo fato de termos
visto nosso Salvador.
Em segundo lugar, todas essas obras, tanto milagres quanto a
conversão de pecadores, em resposta às orações dos apóstolos, manifestam
o ponto em questão. Quão abundante foi o primeiro sermão de Pedro após a
ascensão de Cristo, quando três mil pessoas se converteram! Sabemos que
os apóstolos passaram a pregar o perdão por meio de Cristo e, em seu
nome, também passaram a chamar os homens a se achegarem ao Salvador.
Quão grandiosos eram os sinais e as maravilhas que os acompanhavam para
confirmar sua pregação! E tudo isso era fruto da intercessão de Cristo após
a ascensão, de forma que se cumpriu plenamente aquilo que ele havia
prometido (Jo 14.12) como evidência do seu trabalho no céu pelos seus.
Com base nos pedidos de Cristo, os discípulos fizeram “obras maiores
do que ele”. Isso vemos em Atos 4.29–30 em resposta às orações de Pedro.
E, em Hebreus 2.3–4, o apóstolo apresenta isso em forma de argumento:
“como escaparemos nós, se negligenciarmos tão grande salvação? A qual,
tendo sido anunciada inicialmente pelo Senhor, foi-nos depois confirmada
pelos que a ouviram; dando Deus testemunho juntamente com eles, por
sinais, prodígios e vários milagres”. Sim, permita-me acrescentar: considere
também o Novo Testamento e todas as promessas nele contidas e as
expressões do amor do Senhor. O Novo Testamento foi todo escrito depois
de Cristo estar no céu e, pelo seu Espírito, por ele comissionado; tudo o que
encontramos ali, por conseguinte, pode ser reputado como aquilo que está
em seu coração. Dessa forma, vê-se que nada do que Jesus disse aqui na
terra anula uma só palavra agora que ele está no céu — sua mente continua
a mesma. Medite nessas coisas, pois elas podem acrescentar grande
confirmação à fé em tudo o que foi dito.
Em terceiro lugar, alguns dos apóstolos conversaram com o Salvador
depois de tudo isso, alguns até muitos anos depois do momento da
ascensão. Isso ocorreu com os apóstolos João e Paulo. Este até esteve no
céu com Cristo. Ambos os apóstolos declaram o mesmo a seu respeito.
Paulo não ouviu nenhum sermão da parte de Cristo (que ele o
soubesse) enquanto esteve aqui, na terra, e não recebeu o evangelho de
nenhum homem, fosse apóstolo ou não, mas o recebeu por revelação direta
de Jesus Cristo, que está no céu, conforme a carta aos Gálatas 1.11–12. O
apóstolo foi convertido pelo próprio Cristo, que se manifestou do céu, por
palavras e encontro direto, e isso bem depois da sua ascensão. Nessa
ocasião, Jesus abriu seu coração e mostrou abundantemente seu propósito
em favor de todo tipo de pecador, até os confins da terra. É isso que, em
dois lugares, esse grande apóstolo nos diz. O primeiro encontra-se em
1Timóteo 1.13: “Eu era um perseguidor, um blasfemador”, diz ele, “mas
obtive misericórdia e a graça de nosso Senhor”, ou seja, de Jesus Cristo, a
qual, porém, “transbordou”; e, com base nisso, em 1Timóteo 1.15, ele
declara, “de boca cheia”, por assim dizer, da parte do próprio Cristo que lhe
falou do céu, que essa é “a palavra mais fiel” que jamais foi pronunciada,
“que Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores, dos quais eu [o
apóstolo Paulo] sou o principal”, e para testificar que esse era o exato
propósito de Cristo ao convertê-lo, e o propósito do próprio Paulo também
para com Timóteo ao dizer-lhe essa palavra. Isso é possível deduzir do que
está escrito no versículo seguinte: “Mas, por esta mesma razão, me foi
concedida misericórdia, para que, em mim, o principal, evidenciasse Jesus
Cristo a sua completa longanimidade, e servisse eu de modelo a quantos
hão de crer nele para a vida eterna”. Note que essas palavras foram
registradas para o encorajamento de todos os pecadores, até o fim dos
tempos, a respeito do coração de Cristo para com eles. Esse era o seu alvo.
“Por esta mesma razão”, diz Paulo.
Além disso, apresento como prova a história da conversão de Paulo, na
qual ele, cuidadosamente, declara as próprias palavras que Cristo lhe dirigiu
diretamente do céu: “porque por isto te apareci, para te constituir ministro e
testemunha [...] livrando-te do povo e dos gentios, para os quais eu te envio,
para lhes abrires os olhos e os converteres das trevas para a luz e da
potestade de Satanás para Deus, a fim de que recebam eles remissão de
pecados e herança entre os que são santificados pela fé em mim” (At 26.16–
18). Irmãos, essas são as palavras do próprio Cristo depois que subiu ao
céu! Ele diz a Paulo que lhe apareceu para dar testemunho delas. Essas são
as coisas referentes à manifestação de Cristo ao apóstolo Paulo.
Mais tarde, sessenta anos depois da ascensão do Salvador, o apóstolo
João recebe uma revelação da parte de Cristo, o Apocalipse, quando todos
os apóstolos já haviam morrido — pois esse livro foi escrito depois da
morte deles —, e tal Revelação é apresentada do modo mais direto que
qualquer outro escrito apostólico, porquanto é “a revelação de Jesus Cristo”
(Ap 1.1). Nesse livro sagrado, lemos que Cristo apareceu pessoalmente ao
apóstolo e disse: “[Eu sou] aquele que vive; estive morto, mas eis que estou
vivo pelos séculos dos séculos” (Ap 1.18).
Consideremos as últimas palavras de Cristo nesse último livro do
Novo Testamento, as últimas palavras que Cristo pronunciou desde que
subiu ao céu, ou, podemos dizer, até o Dia do juízo. Elas se encontram em
Apocalipse 22.16–17: “Eu, Jesus, enviei o meu anjo para vos testificar estas
coisas às igrejas. Eu sou a Raiz e a Geração de Davi, a brilhante Estrela da
manhã. O Espírito e a noiva dizem: Vem! Aquele que ouve, diga: Vem!
Aquele que tem sede venha, e quem quiser receba de graça a água da vida”.
Essas são as suas últimas palavras, como eu já disse. A ocasião em que
foram proferidas é a seguinte: Cristo estava então no céu, não obstante já
havia prometido voltar para levar-nos ao céu. Entretanto, preste atenção no
desejo mútuo dos corações, o de Jesus, no céu, e o dos pecadores
arrependidos, aqui na terra. Os daqui apelam para o céu, e o céu chama os
da terra, como diz o profeta. A noiva, aqui da terra, diz a Cristo: “Venha me
buscar”; e o Espírito, no coração dos santos aqui, também diz: “Vem”.
Cristo clama em alta voz do céu: “Vem”, em resposta ao desejo que há
neles, de forma que céu e terra ressoam o mesmo sentimento. “Aquele que
tem sede venha, e quem quiser receba de graça a água da vida” (Ap 22.17).
Isso é o que Cristo diz aos homens que ainda se encontram neste mundo.
Daqui, eles o chamam para executar juízo, e, de lá, Cristo chama pecadores
ao céu para, junto dele, receberem misericórdia. Mas o desejo dos
pecadores de que Jesus venha até eles não é maior do que o desejo do
Senhor de que eles venham ao seu encontro.
Agora, qual é o significado disto, a saber, que assim como eles clamam
por sua vinda, ele também os chama para si? Na verdade, é como se Cristo
tivesse dito claramente: “Eu quero muito reencontrá-los, mas é preciso que
todos vocês, meus eleitos que estão na terra, venham a mim primeiro. Vocês
querem que eu volte, mas preciso ficar aqui até que todos aqueles que o Pai
me deu venham a mim. Estejam certos de que logo os verei outra vez”. E é
dessa forma que Cristo expressa o quanto o seu coração anela estar com os
seus.
Apocalipse 22.20 deixa claro que é este o sentido: “Aquele que dá
testemunho destas coisas [Cristo] diz: Certamente, venho sem demora”.
Além do mais, veja o contexto e perceba como suas palavras revelam o que
está em seu coração quando as profere. Esse livro tinha o propósito de ser
apenas uma profecia dos tempos do evangelho até a volta do Salvador; no
final desse período, depois de ter apresentado essa história profética, João
apresenta a noiva desejando a volta de Cristo: “A noiva diz: vem”. E assim
que ela diz isso, Cristo imediatamente, em resposta, diz igualmente a ela:
“Vem”. Sim, chama a nossa atenção o fato de ele já ter dito palavras
semelhantes em Apocalipse 21.6, entretanto ele as repete depois, em
Apocalipse 22.17, tornando-as as suas derradeiras palavras.
Tudo isso manifesta com que intensidade o coração de Cristo estava
voltado a essa parte do evangelho, isto é, a de convidar os pecadores a que
venham, de forma que, quando está para pronunciar ainda uma frase a mais,
até o dia em que ouviremos o som do Juízo, ele fez questão de escolher tais
palavras. Apegue-se a elas para sempre, considerando-as dignas dos seus
últimos pensamentos quando morrer, no dia em que estiver rumo ao
Salvador.
Na verdade, Cristo ainda abre sua boca outra vez, mas agora para selar
suas próprias palavras e as demais Escrituras, sendo que selar as Escrituras
era o objetivo maior nesse caso. Além disso, a fim de esclarecer que essas é
que foram escolhidas para serem as suas últimas palavras e que não
pretendia dizer mais nada até o Dia do Juízo, Cristo também acrescenta uma
maldição dirigida àquele que “fizer algum acréscimo a essas palavras ou
delas retirasse alguma coisa”. Em seguida, o Senhor ainda apresenta outra
palavra, mas apenas para destacar seu desejo de voltar depressa, quando
todos os seus eleitos, à uma, irão até ele (Ap 22.20). E tudo isso nos
assegura de que é dessa maneira que o Senhor está disposto, sem hesitar, até
o dia da sua volta.
Agora, a fim de ficar claro que o Senhor escolheu intencionalmente
suas últimas palavras, e para que assim elas se apeguem a nós, permita-me
acrescentar outra observação.
Noutra ocasião, enquanto ainda estava aqui, Cristo destacou as
mesmas palavras (quero dizer, o assunto de que elas tratam) para concluir
vários dias de pregação. João 7.37 diz: “No último dia, o grande dia da
festa, levantou-se Jesus e exclamou: ‘Se alguém tem sede, venha a mim e
beba’”. Ele as proferiu no “último dia da festa”, depois do qual não mais
pregou àquelas pessoas durante um bom tempo. Ele pregou durante todos
os dias que antecederam a festa, conforme lhe era de costume; e foi no
“grande dia da festa” quando o Senhor contou com maior audiência.
Jesus escolhe justamente aquele momento visando ao seu último
pronunciamento, para proferir o seu último sermão. Enquanto se despedia, o
Senhor quis dar-lhes provisões para a viagem; como suprimento, ele
sobretudo lhes entregou as suas palavras, ditas em alta voz: “Se alguém tem
sede, venha a mim e beba”, passagem que ele mesmo interpreta como a
postura de crer nele (Jo 7.38). Sim, Cristo “clamou”, diz o texto; ele
exclama com toda veemência, a fim de que todos ouçam sobre todas as
demais coisas ditas anteriormente. E, de igual forma, nesse mesmo
momento, já pronto para não mais dizer palavra, prestes a fechar a boca até
o Dia do Juízo, cessada a revelação das Escrituras, ele, então, envia seu anjo
para testificar que essas de fato são suas últimas palavras, embora já as
tivesse dito anteriormente. Todas essas coisas certamente aconteceram para
que Cristo demonstrasse o que sente pelos seus. Essas foram, portanto, suas
últimas palavras, e são também as minhas no final desta exposição. Ora, a
elas o que se poderia acrescentar?
SEGUNDA PARTE
Porque não temos sumo sacerdote que não possa compadecer-se das nossas
fraquezas; antes, foi ele tentado em todas as coisas, à nossa semelhança,
mas sem pecado (Hebreus 4.15).

Meu propósito agora é usar as palavras desse versículo para fundamentar a


segunda parte do tema que tratamos até o momento, ou seja, a graciosa
disposição e o cuidado de Cristo para com os pecadores, agora que ele está
no céu.
Na primeira parte deste livro, já tratei das manifestações externas dessa
disposição. Para fundamentar essas demonstrações mais intrínsecas, as
quais constituirão esta segunda parte, escolhi o texto supracitado como
sendo, acima de qualquer outro, aquele a revelar o coração de Cristo, sua
disposição e obra em favor dos pecadores. Ele o faz de maneira tão evidente
que, por assim dizer, pega a nossa mão, coloca-a no peito do Salvador e nos
permite sentir como o seu coração bate e seu íntimo se compadece por nós,
mesmo agora que está na glória. Essas palavras claramente pretendem dar
ânimo aos crentes diante de tudo o que possa desencorajá-los, mostrando-
lhes o cuidado de Cristo, agora que está no céu, para com os seus aqui na
terra.
Vamos expor essas palavras com o intuito de mostrar de que modo elas
servem ao nosso propósito.
Inicialmente, devemos considerar que tudo aquilo que de alguma
forma possa nos desencorajar, o autor da carta aos Hebreus chama, aqui, de
fraqueza, com isso significando ambas as coisas, a saber, tanto os pecados
quanto os sofrimentos. Ou seja:
1. O mal das aflições ou perseguições externas, quaisquer que sejam
elas;
2. A malignidade dos pecados internos, que, acima de tudo, nos
desencoraja.
Comprovaremos, pois, que esses são, de fato, os significados
pretendidos no texto.
É evidente que por “fraquezas” o autor quer dizer perseguições e
aflições. Não apenas pelo fato de essa palavra ser usada repetidas vezes
nesse sentido (por exemplo, 2Co 11.30; 12.5), mas também porque o termo
é assim usado, uma vez que o alvo é confortá-los e, por conseguinte,
resguardá-los daquilo que poderia desviá-los da firme confissão,
evidenciado pela exortação do versículo anterior: “conservemos firmes a
nossa confissão”. Perseguições e oposições externas tentavam roubar-lhes a
confiança no que professavam, o que fica claro também pelo argumento
usado para confortá-los das fraquezas por meio do exemplo de Cristo:
“antes, foi ele tentado em todas as coisas, à nossa semelhança, mas sem
pecado”.
Contudo, a palavra “fraquezas” refere-se também ao ato de pecar; pois,
no decorrer do texto, o termo é usado para designar os pecados e faz deles o
principal objeto da misericórdia do nosso Sumo Sacerdote. Em Hebreus 5.2,
o autor apresenta quais eram as qualificações do sumo sacerdote no período
da Lei mosaica, qualificações essas que eram tipificações do nosso grande
Sumo Sacerdote. Usando o exemplo do Antigo Testamento, o autor de
Hebreus mostra como isso se aplica a Cristo, demonstrando que o sumo
sacerdote era alguém “capaz de condoer-se dos ignorantes e dos que
erram”, ou seja, dos pecadores — uma vez que pecar é desviar-se e ser
ignorante de Deus.
Depois, o autor acrescenta: “pois também ele mesmo está rodeado de
fraquezas”, ou seja, de pecados. Ora, embora se afirme que Cristo não
cometeu pecado, ele, à semelhança dos homens, foi tentado por Satanás a
pecar de todas as formas. Sabemos que o termo “fraquezas” faz referência
sobretudo ao pecado por causa do remédio apresentado para as combater,
remédio esse que o homem é encorajado a buscar junto ao trono da graça,
ou seja, graça e misericórdia: “Acheguemo-nos, portanto, confiadamente,
junto ao trono da graça, a fim de recebermos misericórdia e acharmos graça
para socorro em ocasião oportuna”. É isso que encontramos nas palavras
subsequentes. Graça contra o poder do pecado, e misericórdia contra sua
culpa e castigo. Essas duas coisas são as que mais nos dissuadem de nos
achegarmos confiadamente a esse trono. Por isso, com certeza é a esse tipo
de fraqueza que ele se refere nessa palavra de encorajamento e conforto.
Agora, além do mais, para combater essas fraquezas, o autor aos
Hebreus nos faz entender o quanto o coração de Cristo, agora no céu, está,
terna e afetuosamente, inclinado aos pecadores que se encontram sob tais
fraquezas — pois é do Senhor após a ascensão que ele trata aqui, conforme
Hebreus 4.14.
Se prestarmos atenção no contexto, veremos que o autor antecipa e
impede um pensamento que pode surgir a respeito da elevada e gloriosa
descrição de Cristo nesse mesmo versículo: nós temos o “grande sumo
sacerdote que penetrou os céus”. O Salvador sabia que, ouvindo isso,
seríamos capazes de considerá-lo elevado demais para ser um sumo
sacerdote com quem pudéssemos tratar de nossas dificuldades, cuja
grandeza de poder o levaria a nos esquecer. Ou, caso lembrasse e se
atentasse às nossas misérias, uma vez que “adentrou os céus” (desfazendo-
se das fraquezas da sua carne, às quais estava sujeito aqui na terra, e tendo
revestido sua natureza humana com tão elevada glória), certamente ele não
teria condições de se compadecer de nós como anteriormente o fez, quando
habitava neste mundo, nem tampouco de se compadecer de nossas misérias,
movendo-se e comovendo-se ternamente. Jesus, poderíamos pensar, pode
sentir tristeza, mas sem empatia. Seu estado e condição agora estão acima
desse tipo de sentimento (sentimento este que o faria nos ajudar sincera e
prontamente); e, se estivesse sujeito a esse tipo de afeição, representaria
fraqueza, um tipo de fragilidade, no sentido essencial da palavra, coisas que
sua condição no céu teria superado. O poder e a glória de Cristo são de tal
modo grandiosos que, à semelhança dos anjos, ele não pode ser acometido
ou afetado por essas afeições. Ele está “acima de todo principado, e
potestade, e poder” (Ef 1.21).
É com isso que o apóstolo se preocupa. É exatamente essa objeção que
ele rebate. Ele declara: “Porque não temos sumo sacerdote que não
possa...”, ou seja, ele se utiliza de duas negações para fazer uma afirmação.
Não apenas isso: duas negativas não só equivalem a uma afirmação, mas
afirmam com mais intenso vigor. Elas fazem com que uma afirmação
contradiga um pensamento oposto. É como se o escritor houvesse dito:
“Ora, admitamos que o céu operou uma mudança em Cristo, glorificando
sua natureza humana, libertando-a de suas afeições carnais, conferindo a
seu corpo roupagem celestial, tornando-o livre de influências daqui da terra;
não obstante, ele conserva no coração um local terno e afetuoso, por assim
dizer, para ter empatia, para sofrer com você”.
A palavra grega συμπαϑῆσαι (sympathēsai), usada aqui pelo escritor
aos Hebreus, é muito significativa e traz a ideia de “alguém que sofre ao
lado de outro”. Ele sofre ao seu lado. O íntimo do Salvador permanece tão
terno quanto outrora, de forma que ele ainda se inclina para exercer
misericórdia. Jesus está, por assim dizer, disposto a encontrar o lugar de
sofrimento, tanto que seu coração permanece exposto, pois ainda é de
carne, e está disposto a “ferir-se” pelas dores dos seus, de forma que, assim,
pode ser misericordioso sumo sacerdote.
Alguns talvez pensem que aqui nos deparamos com algum tipo de
fraqueza em Cristo. O apóstolo, contudo, afirma que é o poder e a evidente
virtude e intensidade do amor de Cristo, conforme o significado da palavra
δυνάμενον (dynamenon). Ou seja, é isso que o torna capaz e poderoso para
tomar nossas misérias em seu coração, embora glorificado, e, assim, deixar-
se por elas ser movido, como se ele próprio sofresse conosco e, dessa
forma, nos concedesse alívio por meio do princípio pelo qual ele
“socorreria a si mesmo”.
O texto de Hebreus nos apresenta duas coisas a serem tratadas
separadamente. A primeira, de modo mais geral, é que o coração de Cristo,
agora no céu, inclina-se graciosamente em favor dos pecadores como
sempre o fez quando esteve aqui na terra. A segunda, mais especificamente,
é de que forma isso acontece. Ou seja: por um lado, que Cristo se comove
quando se trata de nós, ou seja, ele se compadece; por outro lado, a maneira
como isso acontece, pois ele foi tentado em todas as coisas, à nossa
semelhança.
Para lidar com o primeiro ponto, apresentarei as provas internas e
essenciais que ainda faltam. Ao tratar do segundo ponto, explanarei mais
detalhadamente o texto.
Trataremos, então, em primeiro lugar, das provas essenciais dessa
doutrina, cujo fundamento eu coloco sobre esta afirmação que sobressai
naturalmente, a saber, que a disposição do Senhor Jesus Cristo, estando
agora no céu, ainda se encontra ternamente voltada aos pecadores, como
sempre esteve enquanto ele habitava neste mundo.
I. Provas extraídas da doutrina da Trindade

O primeiro conjunto de provas essenciais pode ser extraído da relação


existente entre as três Pessoas da Trindade, mais especificamente da
influência que o Pai e o Espírito exercem sobre o coração do Filho, que está
no céu, para incliná-lo a nosso favor.

PROVAS A PARTIR DA RELAÇÃO E DA INFLUÊNCIA DE DEUS,


O PAI, SOBRE CRISTO.
Inicialmente, consideremos a relação e a influência de Deus, o Pai, sobre
Cristo. Tal prova pode ser dividida em duas partes: (1) Deus, o Pai, deu ao
Filho um mandamento eterno, a saber, o de amar os pecadores; e, por essa
razão, (2) o coração de Cristo continua o mesmo para sempre.
Quanto à primeira parte, Deus Pai deu a Jesus Cristo uma ordem
específica: a de amar os pecadores; e, mais do que isso, implantou em seu
coração uma disposição misericordiosa e cheia de graça por eles. Menciono
e provo isso porque é exatamente o que Cristo alega, em João 6.37, como
fundamento original de tal disposição: “o que vem a mim, de modo nenhum
o lançarei fora”. Em seguida, ele diz: “Porque eu desci do céu, não para
fazer a minha própria vontade, e sim a vontade daquele que me enviou” (Jo
6.38). E essa responsabilidade ainda está sobre Cristo, agora que ele está no
céu, sem nenhuma mudança, uma vez que ele declara, em João 6.39–40: “E
a vontade de quem me enviou é esta: que nenhum eu perca de todos os que
me deu; pelo contrário, eu o ressuscitarei no último dia. De fato, a vontade
de meu Pai é que todo homem que vir o Filho e nele crer tenha a vida
eterna; e eu o ressuscitarei no último dia”. Por isso, é necessária a
continuidade dessa disposição, mesmo agora que ele está no céu.
Compare essas palavras com o texto de João 10.15–18, em que, depois
de discorrer a respeito do seu cuidado e amor por suas ovelhas, de “dar sua
vida” por elas, de “conhecê-las” e ser dono delas, e de “conduzi-las ao
aprisco”, o Salvador conclui, em João 10.18: “Este mandato recebi de meu
Pai”. Essa é a vontade do Pai, diz João 6. E, se um bom filho sabe de que
forma o pai pensa e sabe qual é a vontade dele, isso é suficiente para movê-
lo a satisfazer essa vontade, ainda mais se ela é expressa mediante uma
ordem. Em João 10, Cristo diz mais, isto é, que essa é a ordem que ele
próprio recebeu da parte do Pai. Uma ordem é a vontade expressa de
maneira categórica, de forma que é transgressão se não for executada.
Assim, também, é o mandamento que o Pai deu a Cristo a nosso respeito.
A partir dessas duas passagens bíblicas, observo três coisas que
constituem a vontade e a ordem de Deus. A primeira delas é que Cristo
deveria morrer por suas ovelhas. Com respeito a esse mandamento, o
Salvador as amou a ponto de entregar sua vida por elas (é o que diz João
10.15). Jesus, não obstante, tomou-a de volta e ascendeu ao céu, e por essa
razão as duas outras coisas que lhes foram ordenadas dizem respeito ao
Senhor já na glória, ou seja, “receber a todos os que se achegam a ele”, que
é a segunda observação; quanto à terceira, cabe-lhe cuidar para que “não
perca nenhum daqueles por quem morreu”, mas deve “ressuscitá-los”. O
mandamento do Pai em favor dos seus diz respeito ao Filho, agora que está
no céu, tanto quanto morrer por eles quando estava aqui na terra. “Esse
mandamento recebi de meu Pai, e essa é a sua vontade”.
Importa notar que, junto com esse mandamento, Deus implantou no
coração do Filho, como sempre o faz com seus mandamentos, um impulso
de amor transcendente pelos seus, de forma a incliná-lo fortemente à
execução e, por conseguinte, não precisar de outras ordenanças. O Pai
infundiu no íntimo de Cristo um amor especial, o amor στοργή [storguê], do
mesmo modo como ele colocou esse amor no coração dos pais por seus
filhos, amor maior do que aquele que eles sentem pelos filhos dos outros,
mesmo sendo estes mais belos e graciosos do que os seus próprios filhos.
Tanto esse mandamento quanto essa inclinação de amor pelos seus estão
expressos no Salmo 40.8, passagem na qual, apresentando a razão pela qual
se tornou nosso Mediador e se sacrificou por nós, Cristo não apenas diz:
“Eu vim para fazer a tua vontade, ó Deus”, mas também diz: “Tua lei está
dentro de mim, no meu íntimo”. Nessa declaração, são mencionadas duas
coisas: que o mandamento que mencionei está aí expresso, porquanto é
chamado de lei; e que essa lei tornou-se agradável ao coração de Cristo e,
por isso, ele diz que é uma “lei em seu coração”, ou seja, em seu íntimo.
É fácil perceber de que tipo de lei se tratava justamente por se
encontrar no íntimo, o centro das mais ternas afeições, conforme
Colossenses 3.12: “ternos afetos de misericórdia [bondade]”. Foi essa lei do
amor, da misericórdia e da compaixão pelos pobres pecadores que Deus
nele infundiu a fim de designá-lo como Mediador. Essa lei especial lhe foi
imposta na posição de “segundo Adão”, como aquela que foi dada ao
“primeiro Adão” (uma lei non concedendi, isto é, acima e além da lei
moral), de não comer o fruto proibido. Essa foi a lei a qual ele se referiu. A
lei de ser Mediador e sacrifício, pois é isso que é dito claramente em
Hebreus 8.6–7 — acima e além da lei moral, a qual era comum tanto para
ele como para nós. A expressão, no original, é: “no âmago das minhas
entranhas”, para mostrar que a lei estava gravada no mais profundo;
encontrava-se no centro do seu ser, estava no íntimo do seu coração.
Ora, e assim como essa lei específica, de não comer o fruto proibido,
era para Adão um præceptum symbolicum, como os teólogos a chamam,
dada além dos Dez Mandamentos, para servir de teste, um sinal ou símbolo
da obediência ao todo, assim também é no caso da lei confiada a Cristo, o
segundo Adão, como se o Pai fosse julgar toda a obediência do Filho por
meio desta lei em específico. Sim, essa foi a seriedade com que Deus
incumbiu Cristo, e assim lhe foi ordenado, de forma que, para amar a Deus,
Cristo teria de nos amar. É por isso que, na passagem de João 10.17–18, já
citada, Jesus se consola com esse fato por causa de sua obediência: “Por
isso, o Pai me ama”. Cristo diz isso com relação ao fato de ele mesmo
cumprir o mandamento do Pai, que anteriormente foi citado.
Note quão importante é essa atitude de Cristo. É como se Deus fosse
amar a Cristo ainda mais por causa do amor que este demonstrasse por nós;
tamanha é a satisfação de Deus em ver Cristo nos amando. É como se o Pai,
quando deu a Jesus o mandamento de João 10.18, tivesse dito: “Filho, se
quiseres que o meu amor permaneça sobre ti, manifesta o teu amor por mim
sendo afável com aqueles que eu te dei”, porquanto os “amei com o mesmo
amor com que te amei”, conforme lemos em João 17.23. Assim como Deus
quer que demonstremos nosso amor por ele mediante o nosso amor por seus
demais filhos, de igual modo Cristo demonstraria seu amor pelo Pai
mediante o seu amor por nós.
Agora, consideremos a segunda parte de toda essa argumentação, isto
é, quanto ao amor que Cristo, quando esteve aqui na terra, deixou claro
existir em seu coração, o qual fez com que ele morresse pelos pecadores
para cumprir esse mandamento do Pai. Tal amor ainda permanece em seu
coração, agora que está no céu, cuja prontidão e ternura permanecem iguais
a quando esteve neste mundo, mesmo enquanto pendurado na cruz, em
devida obediência ao mandamento do Pai. Isso nos é evidente porque,
sendo escrita pelo Pai no seu mais profundo íntimo, tal lei se lhe torna
natural e indelével, tão perpétua quanto qualquer das outras leis morais de
Deus escritas no coração. Quando estivermos no céu, ainda que a fé não
mais tenha efeito e a esperança se extinga, o amor haverá de continuar,
como diz o apóstolo, e de igual maneira o amor no coração de Cristo
também perdura, não sofre dano ou perda, e é demonstrado agora quando
recebe os pecadores e por eles intercede, compadecendo-se deles, como
quando em sua morte.
Esse amor pelos pecadores, tendo sido assim ordenado e imposto sobre
o Salvador, como dissemos — para que, se quisesse que o Pai o amasse,
teria de amá-los, dessa forma ressaltando o grandioso amor que existe entre
ele e o Pai —, necessariamente produz em Cristo um vigoroso amor pelos
pecadores, o mais constante e permanente que poderia existir. Deduzimos
isso da analogia que estabelece o princípio a partir do qual Cristo nos incita
a amá-lo, conforme João 15.10. O Salvador instrui seus discípulos a
“guardarem os mandamentos” que ele mesmo lhes deu, e usa o seguinte
argumento: “Se guardardes os meus mandamentos, permanecereis no meu
amor”, fundamentando-o com seu próprio exemplo: “assim como também
eu tenho guardado os mandamentos de meu Pai e no seu amor permaneço”.
Por essa razão, sendo esse o grande mandamento que Deus lhe confiou —
amar e morrer pelos pecadores, continuar amando e recebendo aqueles que
vêm até ele, e ressuscitá-los no último dia —, Cristo, em sua perfeição,
certamente continua realizando essa obra, sendo esse um dos grandes
vínculos permanentes do amor entre o Pai e o Filho.
Por conseguinte, uma vez que Cristo permanece no amor do Pai, agora
que está no céu e à sua destra, ele necessariamente precisa permanecer no
seu mais alto favor, de forma que por certo Jesus cumpre continuamente o
mandamento de nos amar. E, desse modo, cabe a Cristo continuar nos
amando, porque tanto o seu amor pelo Pai quanto por si mesmo o exigem.
Estejamos seguros, portanto, das afeições do seu coração, pois ele nos ama
agora e nos amará para sempre. Oh! Que conforto é saber que, assim como
os filhos são compromisso e vínculo mútuos de amor entre marido e
mulher, assim também somos nós com relação a Deus, o Pai, e o Filho! E
essa prova é extraída da influência e da relação da Primeira Pessoa da
Trindade, ou seja, de Deus, o Pai, sobre Cristo.

PROVAS A PARTIR DA NATUREZA, DA DISPOSIÇÃO E DO


AMOR DE DEUS, O FILHO.
Além disso, em segundo lugar, esse amor do Filho não é forçado, mas
busca tornar-se evidente, visto que o Pai ordenou-lhe que nos “tomasse por
esposa”. Contudo, é a sua natureza, sua disposição que, unidas ao
mandamento, proveem o segundo fundamento para a argumentação aqui
tratada. Tal fundamento diz respeito a Deus, o Filho, e é intrínseco à sua
natureza, pois de outra forma ele não seria o Filho de Deus, nem a
expressão exata do Pai, a quem é natural mostrar misericórdia e não ira,
porque tem prazer na misericórdia. Ele é o “Pai das misericórdias”, e as
concede com naturalidade.
Cristo é o próprio Filho de Deus, ἴδιος ὑιὸς[idios huios]; e ele é assim
chamado para fins de distinção — é o Filho natural do Pai. Ora, sua
natureza humana, unida com a Segunda Pessoa, tornou-se, assim, o Filho de
Deus por natureza, e não adotado, como nós. E, se sua filiação é natural
quanto aos privilégios, logo os atributos do Pai são, de igual modo,
naturalmente dele — mais naturais do que para nós, que somos filhos
adotivos. E, se nós, “como eleitos de Deus”, que somos filhos adotivos,
somos exortados a revestir-nos “de ternos afetos de misericórdia, de
bondade, de humildade, de mansidão, de longanimidade” (cf. Cl 3.12), tal
postura precisa ser encontrada ainda mais em Cristo, que é Filho por
natureza. São-lhes, portanto, tão naturais quanto sua própria filiação. “Deus
é amor”, como o apóstolo João diz, e Cristo é o amor revestido de carne,
sim, carne humana.
Além disso, é certo que, assim como formou o coração de todos os
homens e dotou alguns com mais misericórdia e compaixão do que outros
— e por sua vez o Espírito Santo que, vindo a eles para santificar suas
disposições naturais, costuma operar de acordo com o caráter de cada um
—, assim também é certo que Deus preparou o coração de Cristo e o fez
segundo um molde mais afável e “temperado” do que toda a ternura e
brandura de toda a humanidade.
Estando pronto para assumir sua natureza humana, Cristo disse: “um
corpo me formaste” (Hb 10.5), ou seja, uma natureza humana adequada,
tanto nas demais coisas quanto em seu caráter, para a Divindade operar e
mostrar plenamente suas virtudes. E, uma vez que o Salvador assumiu a
natureza humana com o propósito de ser um misericordioso sumo
sacerdote, de acordo com Hebreus 2.14, assim essa natureza humana, seu
caráter e disposição especiais poderiam ser mais misericordiosos do que os
de todos os homens e anjos. Sua natureza humana foi “feita sem o auxílio
de mãos”, ou seja, não foi formada como o coração dos demais homens.
Apesar de a substância ser a mesma, não era a mesma a disposição do seu
espírito. O coração de Cristo foi feito “sob medida” com o propósito de ser
um vaso, ou melhor, uma fonte de misericórdia, abundante e
suficientemente capaz de transbordar a ponto de nos alcançar, e outra vez
comunicar as misericórdias de Deus — as misericórdias que o Pai quis
manifestar aos eleitos.
Por essa razão, sejam homens, sejam anjos, mais que todos o coração
de Cristo tem por natureza em sua disposição mais compaixão, o qual é
agente das misericórdias do grande Deus e por meio do qual tais
misericórdias nos são dispensadas. Então, quão natural devem ter sido essas
misericórdias para esse homem, e seu coração, unido ao Pai e feito por
natureza Filho de Deus, e assim ainda permanece, mesmo estando agora no
céu! Porque, apesar de ver-se livre de todas as fraquezas da nossa natureza
quando ressuscitou, o mesmo não aconteceu com as virtudes do Cristo
quando ainda habitava corporalmente neste mundo. Ainda hoje, e para
sempre, elas lhe pertencem. Sendo essa a sua natureza (e sabemos que a
natureza é algo constante em essência), logo compreendemos que tais
virtudes permanecem.
Perceba que, assim como Cristo, enquanto esteve neste mundo,
argumentou com base no fato de o Pai ter-lhe dado mandamento, no intuito
de persuadir os pecadores a terem bons pensamentos a seu respeito, assim
também ele deixa clara a sua própria disposição em Mateus 11.28–29:
“Vinde a mim, todos os que estais cansados e sobrecarregados [...] porque
sou manso e humilde de coração”.
Os homens são propensos a conceitos contrários a respeito do Senhor,
mas ele lhes apresenta suas inclinações, procurando atraí-los para si e, desse
modo, evitar que tenham pensamentos equivocados acerca da sua pessoa,
vendo-o como alguém severo. Tendemos a pensar que Cristo, sendo tão
santo, dispõe-se de tal maneira e tamanha severidade e dureza diante dos
pecadores, que é incapaz de relacionar-se com eles. Não, diz o Salvador:
“Eu sou manso”; e mais ainda: “a bondade faz parte da minha natureza e do
meu caráter”. Semelhantemente, Moisés, o qual era um tipo de Cristo,
quanto à virtude e a outros aspectos, não se vingou de Miriã e de Arão, mas
intercedeu por ambos. Dessa mesma forma, diz Cristo, “os insultos e as
injúrias não me tornam irreconciliável. Perdoar faz parte da minha natureza:
‘Eu sou manso’”.
Sim, mas (talvez pensemos), sendo o Filho de Deus e herdeiro do céu,
ainda mais agora, especialmente cheio de glória, assentado à destra de
Deus, pode ser que ele não faça caso da nossa indignidade aqui na terra.
Não que seja o caso de estar irado, mas pelo fato de estar tão elevado e
exaltado, tão distante, a ponto de sermos desprezíveis demais para com ele
casarmos ou nos tornarmos íntimos dele. Podemos estar certos de que o
Salvador tem coisas mais importantes a considerar do que pensar em
indivíduos tão inferiores e vis como nós. Dessa forma, embora de fato o
julguemos manso e sem rancor pelas injúrias sofridas, talvez o Senhor seja
ilustre e grandioso demais para voltar sua atenção e prestá-la a pobres
criaturas como nós. “Não”, diz Cristo: “Sou humilde, desejo conceder meu
amor e favor, mesmo aos mais necessitados e desprezíveis”.
Além disso, toda essa postura não é mera aparência de uma disposição
afável, nem algo unicamente externo — não se assemelha àqueles de classe
elevada que desejam soar gentis e corteses. No caso de Cristo, é ἐν τῇ
kαρδίᾳ [en tē kardia], “no coração”; esse é o seu caráter, sua disposição.
Sua natureza é ser gracioso, natureza essa da qual jamais se despojará. Sua
majestade, quando chegou ao céu, em nada alterou suas inclinações. Por
isso, parece que, proferindo tais palavras, Cristo considerou toda a sua
glória futura e, na mesma ocasião, tanto a mencionou como ressaltou sua
mansidão. É o que lemos em Mateus 11.27: “Tudo me foi entregue por meu
Pai”. E, logo em seguida: “Vinde a mim, todos os que estais cansados e
sobrecarregados [...] porque sou manso e humilde de coração” (Mt 11.28–
29).
Considere, então, os pensamentos amorosos, afetuosos e agradáveis
que você costuma ter por um amigo que lhe seja querido, cuja natureza é
amigável, ou por alguém santo e humilde, acerca de quem você pode dizer:
“Eu poderia confiar minha alma nas mãos dessa pessoa, confiando-lhe a
minha salvação”. Ou veja quão encorajados nos sentiríamos para lidar com
Moisés acerca do perdão — esse que foi o homem mais manso da terra; ou
se fôssemos tratar com José, pelo que lemos sobre sua atitude para com
seus irmãos. Perceba os pensamentos que temos a respeito dos ternos
sentimentos de Paulo e Timóteo pela alma dos homens ao gerá-los na fé,
nutri-los e fazê-los crescer em vida: “assim, querendo-vos muito, estávamos
prontos a oferecer-vos não somente o evangelho de Deus, mas, igualmente,
a própria vida; por isso que vos tornastes muito amados de nós” (1Ts 2.8), e
isso “sinceramente”, termo utilizado em Filipenses 2.20. Se é assim, muito
mais, então, deveríamos nós perceber a doçura e a pureza que há em Jesus
Cristo como algo ainda mais natural a ele!
Esse mesmo apóstolo, portanto, faz do sentimento íntimo de Cristo o
padrão para o seu próprio sentimento: “Pois minha testemunha é Deus, da
saudade que tenho de todos vós, na terna misericórdia de Cristo Jesus” (Fp
1.8). A expressão “na terna misericórdia de Cristo Jesus” possui, segundo
alguns intérpretes, dois sentidos, e ambos servem para esclarecer o que
estou propondo aqui.
Em primeiro lugar, a expressão “terna misericórdia de Cristo Jesus” é
considerada surpreendente, pois é como se o apóstolo pretendesse mostrar
que o Senhor infundiu nele essa misericórdia ou compaixão e, dessa forma,
estivesse com saudade deles com esse sentimento íntimo operado por
Cristo. Sendo esse o caso, o fato de Cristo ter infundido tal sentimento no
apóstolo não significa que o próprio Salvador o possui ainda mais em si
mesmo? Paulo tinha razão ao dizer “nas ternas misericórdias de Cristo
Jesus”, pois (nesse sentido) estou certo de que, no passado, o apóstolo
dificilmente tinha o coração e o sentimento terno de um simples homem.
Ou seja, estando fora de Cristo, quão furioso e selvagem vivia ele contra os
santos, e que devastação não provocou contra eles, disposto até a matá-los!
E como é que Paulo, agora, se expressa com sentimentos tão ternos? Quem
foi que lhe deu agora esses ternos afetos? Foi Jesus Cristo, foi o Senhor
quem fez desse leão um cordeiro. Então, se em Paulo tais sentimentos não
eram naturais, mas natural era sentir o oposto, e esses ternos afetos
passaram a nele abundar, e com naturalidade e sinceridade, como ele bem
diz, quanto mais isso tudo deve necessariamente abundar em Cristo, em
quem tais afetos são inerentes e inatos!
Em segundo lugar, a expressão “a terna misericórdia de Cristo Jesus”
pode ser traduzida, de acordo com o texto original, da seguinte maneira:
“como a terna misericórdia” ou “segundo a terna misericórdia”. Logo, o
significado seria este: assim como o sentimento do Salvador anela por
vocês, assim também o meu.
As “ternas misericórdias” são uma metáfora para significar ternas
afeições e misericórdias como que de uma mãe. É isso o que encontramos
em Lucas 1.78: “graças à entranhável misericórdia de nosso Deus”. No
original, a expressão refere-se às entranhas, aos intestinos: “entranhas de
misericórdia”. Assim Paulo, quando quer mostrar quão ternas são as suas
afeições, recorre aos sentimentos mais profundos do Senhor (fazendo de
Cristo o seu padrão, como em todas as coisas: “Sede meus imitadores,
como também eu sou de Cristo”).
Agora, quão desejoso estava esse grande apóstolo de gerar homens em
Cristo! Ele não se importava com nada que porventura perdesse, desde que
ganhasse alguns para o Reino. Ele “não considerava sua vida como
preciosa”. Não, nem mesmo a sua própria salvação, mas preferiria “ser
amaldiçoado pelo bem dos seus irmãos”, que eram os maiores inimigos de
Cristo na terra. Quão alegre o apóstolo ficava quando uma alma era salva!
Quão triste quando qualquer alma se perdia! Sentia outra vez “dores de
parto” (ele não sabia como expressar melhor a angústia do seu espírito em
favor dos gálatas) até Cristo ser formado neles.
Como o apóstolo se sentia confortado quando ouvia notícias de que os
irmãos estavam perseverando e crescendo na fé (1Ts 3.6–7)! Ele diz em
1Tessalonicenses 3.8: “porque, agora, vivemos, se é que estais firmados no
Senhor”. Leia suas epístolas por inteiro e perceba a essência de seu caráter.
Em seguida, olhe para a natureza humana de Cristo no céu, e pense: “Cristo
é um homem assim”. Paulo canta suas afeições como ecos dos sentimentos
mais profundos de Cristo, que agora está no céu, todavia num tom mais
baixo. Todos esses sentimentos são naturais em Cristo; todos são
infinitamente mais sublimes nele. E isso nos conduz ao terceiro fundamento
da nossa argumentação, extraído da relação de Cristo como Filho natural de
Deus com o Espírito Santo.

PROVAS A PARTIR DA HABITAÇÃO DE DEUS, O ESPÍRITO


SANTO, NO FILHO
Apresentaremos esse fundamento da nossa argumentação a partir da
Terceira Pessoa da Trindade, o Espírito Santo. Se esse mesmo Espírito
estava sobre e em Cristo aqui na terra, e ainda está sobre ele, agora que está
no céu, logo tais disposições necessariamente ainda permanecem
plenamente nele. Tal fundamento consiste em duas proposições: (1) o fato
de o Espírito Santo habitar nele concorre para tornar seu coração
graciosamente voltado para pecadores; e (2) o mesmo Espírito habita em
Cristo e permanece sobre ele para todo o sempre.

CONSIDERAÇÕES SOBRE A PROPOSIÇÃO (1)


Quanto a proposição (1), foi o Espírito que cobriu com sua sombra a mãe de
Jesus e, nesse ínterim, criou o vínculo indissolúvel entre a natureza humana
e a natureza divina da Segunda Pessoa da Trindade — o que também uniu o
coração do Salvador a nós. Foi o Espírito que o santificou no ventre da sua
mãe. Foi o Espírito que repousou sem medida sobre Cristo, e o muniu de
um espírito manso para realizar as suas obras de mediação; de fato, devido
a essa mesma virtude de mansidão é que o Espírito se manifestou de modo
especial em Cristo.
De modo que, quando solenemente foi introduzido nesse ofício, na
ocasião do batismo (para, em seguida, iniciar visível e abertamente a
execução dessa função), o Espírito Santo desceu sobre Cristo. E como o
fez? Em forma de pomba; assim é o relato de todos os evangelistas
inspirados. Mas, por que razão em forma de pomba? Sempre que Deus se
manifesta, ele não só o faz a fim de revelar-se a si mesmo, mas também
para demonstrar a sua predisposição aos homens, para anunciar os feitos
que ele opera em nós. Essa forma de pomba repousando sobre Cristo serviu,
portanto, para manifestar as especiais e graciosas disposições com as quais
o Espírito Santo capacitou o nosso Salvador a ser o Mediador.
Sabemos que a pomba é a mais inocente e mansa criatura, sem rancor,
sem garras, sem ferocidade, a qual ininterruptamente expressa tão só amor e
amizade pelos seres ao seu redor, igualmente lamentando com eles em suas
dificuldades. Por isso, ela é um símbolo apropriado para expressar a
disposição e a inclinação com que o Espírito Santo desceu sobre Cristo,
enchendo-lhe o coração com essa mesma inclinação (e sem medida), a fim
de que, assim como as pombas se relacionam docemente umas com as
outras, compadecendo-se e condoendo-se mutuamente, assim também
aconteça entre nós e Cristo, pois é dessa forma que ele se compadece de
nós.
Embora o Salvador já tivesse o Espírito, agora, pois, no seu batismo,
Cristo foi ungido com o Espírito Santo quanto aos motivos que acabo de
mencionar, que diziam respeito ao cumprimento dos seus ofícios, sob
medida mais ampla e distinta do que a anterior. Esse é o porquê de o
evangelista Lucas destacar isso: “Jesus, cheio do Espírito Santo, voltou do
Jordão...” (Lc 4.1). Pedro também enfatiza isso, segundo Atos 10.37; pois,
ao falar ali a respeito do batismo de João, ele mostra como “depois do
batismo que João pregou” e “como Deus ungiu a Jesus de Nazaré com o
Espírito Santo”, ou seja, quando foi batizado, Cristo “andou por toda parte,
fazendo o bem”. Eis o principal significado da descida do Espírito Santo na
forma de pomba sobre Cristo, a saber, destacar sobretudo o seu coração
manso e compadecido para com os pecadores, operado nele por meio do
próprio Espírito Santo. Isso fica mais evidente em duas passagens em que o
próprio Salvador diz que essa foi a intenção.
Depois de registrado que Cristo recebeu o Espírito Santo, é narrado,
em Lucas 4.1, que ele voltou do batismo “cheio do Espírito Santo” e foi
levado ao deserto para ser tentado. Depois, em Lucas 4.14, lemos que Jesus
retornou da tentação “no poder do Espírito Santo” e pregou seu primeiro
sermão. Nessa ocasião, ele mesmo explica o mistério do porquê ter recebido
o Espírito na forma de uma pomba. Esse é o principal assunto do primeiro
texto que expôs em seu primeiro sermão, quando, na sinagoga de Nazaré,
lhe deram o livro do profeta Isaías e, abrindo o livro, achou o lugar onde
estava escrito: “O Espírito do Senhor está sobre mim, pelo que me ungiu
para evangelizar os pobres” — ou seja, os pobres de espírito, os de
consciência atormentada por causa do pecado —, “enviou-me para
proclamar libertação aos cativos e restauração da vista aos cegos, para pôr
em liberdade os oprimidos” (Lc 4.18). Quando terminou de ler aquilo que
expressava a compassiva disposição do seu Espírito para com os pecadores,
cuja miséria é definida com todo tipo de males, ele para de ler e fecha o
livro, como que declarando que esses eram os principais motivos de ter
recebido o Espírito. “O Espírito do Senhor está sobre mim, pelo que me
ungiu para evangelizar os pobres”, ou seja, com esse propósito, ou por essa
razão específica, foi-me concedido seu Espírito, porque fui designado ou
ungido para essa obra, e por meio dele fui ungido ou capacitado com tais
dons e disposições, apropriados para cumprir todo o propósito que me foi
designado.
Mateus 12.18–19, outra citação do livro do profeta Isaías, também
manifesta que o recebimento do Espírito em seu batismo frutificou e teve
seus motivos nas ternas disposições de Cristo pelos pecadores: “Eis aqui o
meu servo, que escolhi, o meu amado, em quem a minha alma se compraz.
Farei repousar sobre ele o meu Espírito, e ele anunciará juízo aos gentios”.
Essa parece uma palavra terrível, mas não a receamos, visto que “juízo”
significa a doutrina da livre graça e do evangelho, que transforma e restaura
os homens. Dessa mesma forma (de acordo com o texto original), em
Mateus 12.20, pelo termo “juízo” é significada a obra da graça de Deus no
coração dos homens, quando diz: “até que faça vencedor o juízo”, sendo a
obra da graça o efeito da doutrina da graça.
Ao pregar essa doutrina (que, por si só, representa as boas novas), o
profeta mostra como o Filho a susteria com disposição adequada e
apropriada, cheia de toda brandura, tranquilidade, calma e moderação, que
ele expressa por meio de ditos proverbiais comuns à época: “Não
contenderá, nem gritará, nem alguém ouvirá nas praças a sua voz”, ou seja,
com toda suavidade e brandura, sem violência, sem impetuosidade.
A voz de João era a de um arauto, homem de espírito austero. Cristo,
porém, veio “tocando flauta e dançando”. Seu ministério e disposição eram
doce harmonia, no decorrer do qual se dedicou com grande ternura. O
Salvador foi de tal modo cuidadoso com as almas quebrantadas e
manifestou tanta consideração por aquilo que as desanimava, que a respeito
dele foi dito: “Não esmagará a cana quebrada”; ou seja, ele seria tão
cauteloso com sua maneira de andar que não pisaria num caniço quebrado
no chão, Cristo caminharia com tamanha brandura ou gentileza que, se o
caniço estivesse em seu caminho, ainda que tivesse de passar por sobre ele,
o Senhor não o esmagaria, nem pisaria na “torcida que fumega” (o que é
fácil fazer), nem se moveria de modo a produzir vento o suficiente para
apagar a chama de uma vela, como alguns traduzem o texto, fumegante e
rarefeita, fadada a apagar-se com o mais leve deslocamento de ar.
Tudo para manifestar o seu coração cuja ternura se dava ao fato de ter
ele recebido o Espírito, especialmente a partir do batismo. Foi nessa ocasião
que o Pai pronunciou as seguintes palavras: “Este é o meu Filho amado, em
quem me comprazo”. São as mesmas que, unidas ao fato de Deus ter-lhe
concedido o Espírito, se encontram em Isaías 40. O nosso Senhor Jesus
Cristo foi cheio do Espírito a fim de ter essas amorosas afeições pelos
pecadores.

CONSIDERAÇÕES SOBRE A PROPOSIÇÃO (2)


Quanto à proposição (2), é certo que o mesmo Espírito que estava sobre
Cristo e agiu em seu espírito enquanto aqui na terra permanece sobre ele no
céu. Não se deve jamais dizer que o Espírito do Senhor apartou-se de
Cristo, pois foi o Salvador que enviou o Espírito Santo sobre nós e no-lo
concedeu. Se o Espírito, vindo sobre os membros de Cristo, “habita com
eles para sempre”, segundo prometido em João 14.16, quanto mais sobre o
próprio Cristo, o Cabeça, que está no céu, de quem todos nós o recebemos
— e visto que o Espírito permanece em Cristo, Cristo permanece habitando
em nós. Por essa razão, é dito a respeito do Salvador em Isaías 11.2:
“Repousará sobre ele o Espírito do Senhor”.
Ora, e quanto ao fato de o Espírito Santo descer sobre o Salvador por
ocasião do seu batismo, não é dito apenas que “desceu sobre Cristo”, mas,
além disso, é acrescentado: “e pousou sobre ele”. Sim, mais do que isso,
para dar ainda maior ênfase a esse fato, há uma repetição em João 1.32: “Vi
o Espírito”, diz o evangelista, “descer do céu como pomba”, acrescentando
ainda o que havia observado: “e pousar sobre ele”. Então outra vez em João
1.33: “Eu não o conhecia”, diz ele; “aquele, porém, que me enviou a batizar
com água me disse: aquele sobre quem vires descer e pousar o Espírito,
esse é o que batiza com o Espírito Santo”. E, além disso, como é
mencionado ali, o Espírito “pousou sobre ele” com essa finalidade, para que
Cristo nos pudesse batizar com o Espírito Santo até o fim dos séculos. Ele
relata: “Esse é o que batiza com o Espírito Santo”.
O Espírito Santo desce em forma de pomba sobre Cristo e, desde
então, da mesma forma permanece para sempre sobre ele. Essa mesma
pomba veio do céu e, portanto, agora que o próprio Cristo foi para o céu,
tanto mais o Espírito está e permanece sobre o Filho como pomba, mesmo
ali, nesse seu estado glorificado. Além disso, permita-me acrescentar:
apesar de o Espírito ter pousado sobre ele enquanto habitava neste mundo, e
sem medida se comparado à medida recebida pelos homens, é seguro dizer
que o Espírito Santo, com respeito ao seu desempenho em dons da graça e
glória, repousa mais abundantemente em Cristo no céu do que aqui na terra
— da mesma forma que, no batismo de Cristo, como foi dito, o Espírito
repousou em Cristo com maior abundância do que o fez antes do batismo,
antes do seu ministério público. Pois, assim como, após a ascensão, Cristo
foi instituído Rei e Sacerdote, por assim dizer, como que em uma nova
etapa, da mesma forma, tendo em vista a obra por realizar estando agora no
céu, foi ele outra vez ungido com esse “óleo de alegria, como a nenhum dos
[seus] companheiros”, conforme o Salmo 45.7.
A respeito desse lugar onde Cristo agora está, à destra do Pai, é dito
ser de plenitude de alegria, segundo o Salmo 16.11. É dito, também, acerca
de Cristo: “cinge a tua glória e a tua majestade” (Sl 45.4). A “humildade”,
contudo, não está distante, mas se torna uma das insígnias de sua glória e
majestade. Eis a sequência do versículo acima mencionado: “E nessa
majestade cavalga prosperamente, pela causa da verdade e da justiça”. Essa
é a razão por que Pedro diz, em Atos 2.36, que “a este Jesus, que vós
[judeus] crucificastes”, e que ressuscitou e ascendeu ao céu, “Deus o fez
Senhor e Cristo”. “Senhor”, ou seja, o exaltou Rei no céu; e “Cristo” porque
do mesmo modo o ungiu. Esse óleo não é outro senão o Espírito Santo, com
o qual, o mesmo Pedro nos diz, ele foi ungido por ocasião do seu batismo
(At 10.38). Sim, e porquanto o recebeu na mais plena medida que havia de
recebê-lo, é que ele o derramou sobre seus apóstolos e “os batizou com o
Espírito”, como registrado em Atos 2.
É seguro afirmar que tudo aquilo que recebemos de Cristo, ele próprio
primeiro recebe por nós. E, assim, uma razão por que esse óleo se derramou
tão plenamente pelas vestes do nosso Sumo Sacerdote, ou seja, sobre seus
membros, os apóstolos e santos, e assim continua até hoje, é porque nosso
Sumo Sacerdote e Cabeça foi outra vez ungido. Por isso é que Pedro, em
Atos 2.33, explicando de que modo eles foram cheios do Espírito Santo, diz
que Cristo, “tendo recebido do Pai a promessa do Espírito Santo, derramou
isto que vedes e ouvis”; recebimento esse que não deve ser entendido
apenas como o simples ato de receber a promessa do Espírito Santo para
nós, por ter recebido o poder de então derramá-lo sobre os seus, como Deus
havia prometido — apesar de ser verdade. Mas, vai além: Cristo o recebeu
primeiro; o Espírito foi derramado sobre o próprio Cristo, que, depois, o
derramou sobre os apóstolos, de acordo com a regra de que tudo o que Deus
faz em nós por meio do Filho, ele primeiro o faz com o próprio Cristo.
Todas as promessas são feitas e cumpridas primeiro em Cristo e, em
seguida, em nós no Filho. Tudo o que nos concede, antes Jesus recebe para
si. E essa pode ser uma das razões por que, conforme João 7.39, “o Espírito
até aquele momento não fora dado, porque Jesus não havia sido ainda
glorificado”. Contudo, agora ele está no céu.
O livro de Apocalipse, que retrata o Salvador como ele é desde que foi
para o céu, diz que Cristo tem “os sete espíritos” (Ap 1.4). Os tais são o
Espírito Santo, pois necessariamente é esse o significado, e não qualquer
outra criatura, pois na mesma passagem desejam-se graça e paz “da parte
dos sete espíritos”. Embora seja uma só Pessoa, o Espírito Santo é assim
denominado, por causa dos diversos frutos que produz tanto em Cristo
como em nós. “Sete” é o número da perfeição e, por isso, é mencionado ali
para mostrar que agora Cristo possui o Espírito na mais plena medida em
que a natureza humana é capaz de possuir.
Seu conhecimento (que é fruto do Espírito) foi ampliado desde que
ascendeu aos céus — pois antes de ascender, ele, estando em seu estado de
humilhação, não sabia quando seria o Dia do juízo, mas agora, em sua
exaltação e enquanto revela o livro do Apocalipse, ele o sabe. Assim
também sua disposição (falo da natureza humana) se ampliou. Todas as
misericórdias que Deus agora concede provêm das mãos de Cristo, por sua
ordem específica, que as concede não apenas aos judeus, mas também aos
gentios que viriam a se converter depois da sua ascensão. O Senhor Jesus
Cristo tem agora um coração unido ao próprio coração do Pai, na mais
ampla extensão para demonstrar misericórdia para com qualquer pessoa a
quem Deus assim o desejar.
Esse é, portanto, o terceiro fundamento, tendo por base o habitar do
Espírito em Cristo, por meio do qual podemos fortalecer nossa fé,
experimentando o Espírito Santo habitar em nosso coração, que opera não
só a mansidão diante do próximo, mas também compaixão por almas —
com esse fim, inspirando incessantes “gemidos inexprimíveis” diante do
trono da graça, em busca de graça e misericórdia. Ora, uma vez que o
mesmo Espírito que habita no coração de Cristo, que está no céu, também
habita no coração dos santos que ainda se encontram neste mundo, tudo
aquilo que esse mesmo Espírito opera, ele o faz primeiramente no coração
de Cristo em favor dos santos para, só depois, operar no coração dos
crentes, cumprindo assim o mandamento do Filho; descansem, portanto, no
fato de que o mesmo Espírito desperta Cristo a ter por nós sentimentos e
percepções de misericórdia infinitamente mais profundosdo que seríamos
capazes de ter por nós mesmos.
II. Provas extraídas das funções desempenhadas por Cristo no céu e de
vários compromissos por ele assumidos

Existe ainda um segundo conjunto de provas que se pode inferir das


funções desempenhadas por Cristo e de vários compromissos por ele
firmados, os quais necessariamente inclinam seu coração aos homens tanto
agora, que ele está no céu, quanto antes, ainda neste mundo; mas, claro,
ainda mais agora. Antes de tratarmos diretamente do assunto, considere os
dois exemplos a seguir.

O EXEMPLO DE JOSÉ
A continuidade inerente a toda sorte de relações humanas não é dissolvida
nem mesmo pela glória do próprio Cristo; portanto, seu coração e seu amor
permanecem inalterados quanto a tudo aquilo que é exigido de tais relações.
Considere as relações naturais, por exemplo entre pai e filho, marido e
mulher, e entre irmãos, e veja para qual mundo elas se destinam. Aqui, na
terra, elas perduram, jamais serão dissolvidas. Contudo, esses
relacionamentos carnais, na verdade, cessam naquele outro mundo, pois
foram criados unicamente para esta existência — assim como “a mulher
casada está ligada pela lei ao marido, enquanto ele vive” (Rm 7.2).
Entretanto, a relação de Cristo com os seus foi feita para “o mundo
vindouro”, como diz a Carta aos Hebreus. Trata-se de um relacionamento
em pleno vigor e força, portanto, aperfeiçoado. Essa é a razão para afirmar
que “Jesus Cristo, ontem e hoje, é o mesmo e o será para sempre” (Hb
13.8).
Para ilustrar esse fato por meio dos laços permanentes e indissolúveis
pertencentes às relações neste mundo, as quais nenhuma condição (seja
pobreza, seja riqueza) alterará sua essência, vejamos a história de José. Ele,
então exaltado, manteve sua filiação intacta, cujos afetos permaneceram os
mesmos tanto por seus pobres irmãos, que o haviam prejudicado, quanto
por seu pai. É isso que lemos em Gênesis 45. Durante o seu discurso, José
menciona sua própria nobreza e exaltação: “Deus [...] me pôs por pai de
Faraó, e senhor de toda a sua casa, e como governador em toda a terra do
Egito” (Gn 45.8), não obstante demonstrando não ter se esquecido dos seus
laços de sangue: “Eu sou José, vosso irmão” (Gn 45.4), ainda a mesma
pessoa. Suas afeições revelaram-se de igual maneira as mesmas, pois ele
“não se podendo conter diante de todos os que estavam com ele [...]
levantou a voz em choro”, de acordo com Gênesis 45.1–2. Da mesma
forma, ele se expressa ao pai: “Apressai-vos, subi a meu pai e dizei-lhe:
Assim manda dizer teu filho José: Deus me pôs por senhor em toda terra do
Egito” (Gn 45.9), pois, apesar disso, ainda era seu filho José.

O EXEMPLO DE ESTER
Considere outro exemplo, agora em Ester, no qual não havia senão a relação
conterrânea e sob a mesma aliança. Ela — mesmo quando exaltada rainha
de 127 províncias, nos braços do maior monarca da terra, e desfrutando do
mais elevado favor — veio a declarar: “como poderei ver o mal que
sobrevirá ao meu povo? E como poderei ver a destruição da minha
parentela?” (Et 8.6). Ester considerou apenas sua relação de sangue com seu
próprio povo e o quanto fez diferença essa afinidade sanguínea! Isso é
muito mais verdadeiro com respeito a marido e mulher, pois ambos se
encontram num relacionamento ainda mais íntimo. Se a noiva houvesse
sido pobre e carente, e o noivo uma pessoa importante e ilustre, à
semelhança de Salomão em toda a sua realeza, todos considerariam
vergonhoso o seu proceder caso ele, agora marido, a abandonasse, não
dando todo amor, respeito e cuidado a ela devidos.

PRIMEIRO COMPROMISSO
Acima de todo relacionamento, porém, a relação entre cabeça e membros é
não só a mais natural, mas também a que mais traz obrigações. “Porque
ninguém jamais odiou a própria carne”, diz o apóstolo, ainda que doentia e
leprosa, “antes, a alimenta e dela cuida” (Ef 5.29). É lei natural: “se um
membro sofre, todos sofrem com ele; e, se um deles é honrado, com ele
todos se regozijam” (1Co 12.26). Assim também com respeito a Cristo
(1Co 12.12). São essas relações que instigam Cristo a assumir o primeiro
compromisso de manter seu amor por nós. João diz: “[...] sabendo Jesus que
era chegada a sua hora de passar deste mundo para o Pai, tendo amado os
seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim” (Jo 13.1). A razão disso é
atribuída à sua relação com eles: eram “os seus”, em todos os sentidos
possíveis: “seus próprios irmãos”, “sua própria esposa”, “sua própria
carne”. Se “o próprio mundo ama os que são seus”, como o próprio Cristo
diz, quanto mais o Salvador! “Ora, se alguém não tem cuidado dos seus [...]
é pior do que o descrente”, diz o apóstolo Paulo (1Tm 5.8).
Agora, apesar de Cristo estar no céu, o seu povo ainda é sua família;
eles lhe são ligados, ainda que estando na terra, tão verdadeiramente quanto
aqueles que dele estão próximos agora, na glória. O texto de Efésios 3.15
declara de forma evidente: “de quem toma o nome toda família, tanto no
céu como sobre a terra”. Todos eles compõem uma só família, tendo a
Cristo por Senhor, o fundamento, a essência e o mais perfeito exemplo e
padrão de todo tipo de relacionamento que há neste mundo.
Cristo é, portanto, o fundamento de todos os relacionamentos e
afeições de que o seu povo participa, tanto os naturais quanto os da graça.
Assim como o salmista argumenta: “o que formou os olhos será que não
enxerga?”, do mesmo modo argumento eu. Será que aquele que infundiu
todas essas afeições nos pais e nos irmãos, cada qual adequadamente, não
as possui, em si mesmo, em muito maior proporção? “[...] ainda que Abraão
não nos conhece [estando no céu], e Israel não nos reconhece; tu, ó Senhor,
és nosso Pai; nosso Redentor é o teu nome desde a antiguidade” (Is 63.16).
O profeta, além de referir-se a uma profecia acerca da vocação dos judeus,
fala isso a respeito de Cristo (como fica evidente em Isaías 63.1–2) como
quem está no céu, pois ele diz também: “Atenta do céu e olha da tua santa e
gloriosa habitação” (Is 63.15). Existem apenas duas coisas que o fariam
desprezar os pecadores: sua santidade, pelo fato de ter de lidar com o
pecado, e sua glória, por serem eles criaturas inferiores e corrompidas. Mas
o profeta menciona ambas as coisas ali, para mostrar que, apesar de serem
pecadores, Cristo não os rejeita; e, mesmo sendo inferiores e corrompidos,
ele não os despreza.
Cristo também é a essência de todos os relacionamentos, o que criatura
nenhuma é. Em certo sentido, o marido não é, ao mesmo tempo, pai e
irmão, mas Cristo é; nenhuma relação expressa suficientemente o amor com
que o Salvador nos ama e de nós cuida. É por isso que o Filho chama sua
igreja tanto de irmã como de esposa (Ct 5.1).
Cristo é o padrão e o modelo para os nossos relacionamentos, todos
esses sendo meros reflexos dele. Assim, em Efésios 5, Jesus é apresentado
como padrão para o relacionamento e o amor dos maridos. “Maridos”, diz o
apóstolo, “amai vossa mulher, como também Cristo amou a igreja” (Ef
5.25). De fato, em Efésios 5.31–33, o casamento de Adão e as próprias
palavras que ele pronunciou a respeito de unir-se conjugalmente são
apresentados como tipos e sombras do casamento de Cristo com sua igreja.
“Grande é este mistério, mas eu me refiro a Cristo e à igreja”, diz o
apóstolo Paulo. Em primeiro lugar, um mistério, isto é, o casamento de
Adão foi ordenado secretamente, para representar e significar o casamento
de Cristo com sua igreja. Em segundo lugar, é um grande mistério porque a
coisa por ele significada é, em si mesma, tão elevada, que ele acaba por ser
uma sombra. Por isso, todos esses relacionamentos e suas devidas afeições,
bem como os efeitos desses sentimentos (que você percebe existir nos
homens e a respeito dos quais lê), tudo foi designado para ser, à semelhança
das demais coisas neste mundo, somente sombra daquilo que é real em
Cristo — o único que é a verdade e a substância não só de todas as
analogias do mundo natural como também dos tipos cerimoniais.
Portanto, se não há glória que altere a essência relação entre os
homens, quanto menos ainda em Cristo. “[...] ele não se envergonha de lhes
chamar irmãos” (Hb 2.11). Contudo, o apóstolo havia pouco antes afirmado
a respeito dele, em Hebreus 2.9: “vemos [...] Jesus [...] coroado de glória e
de honra”. De fato, assim como quando um membro sofre e os demais se
compadecem, do mesmo modo Cristo. Paulo perseguiu os santos, os
membros, e a Cabeça, Cristo, lamentou no céu: “Saulo, Saulo, por que me
persegues?” (At 9.4). Alguém pisou o pé, mas a Cabeça sentiu, apesar de
“coroada de glória e honra”.
Somos “carne da sua carne, e osso dos seus ossos” (Ef 5.30). Por isso,
como falou Ester, assim diz Cristo: “como poderei ver o mal que sobrevirá
ao meu povo?”. Se o homem estiver casado com mulher simples, e vier a
ser rei, promovê-la lhe será glória, não vergonha. Sim, lhe seria ignomínia
negligenciá-la, especialmente se, antes do noivado, ela fosse rica e
abastada, filha de rei, mas, depois, pobre e miserável. A esposa de Cristo,
apesar de agora encontrar-se caída em pecado e miséria, quando, no
princípio, foi dada ao Salvador por Deus o Pai (que desde toda a eternidade
operou essa união), foi vista totalmente gloriosa. Na eleição, no princípio,
tanto Cristo quanto nós fomos eleitos por Deus para essa glória que ele há
de derramar sobre o Filho e em nós na consumação de todas as coisas, que
se cumprirá nos propósitos divinos.
Pois Deus, já desde o princípio, vê o fim das suas obras e aquilo que
pretende operar. Dessa forma, então, buscando, desde o início, fazer-nos
assim gloriosos, como haveremos de ser, o Pai nos trouxe e apresentou ao
Filho pela ótica dos seus decretos, com a aparência da glória com a qual,
por fim, pretende nos revestir. Ele nos apresentou ao Filho como que
ornamentado de todas as joias de graça e glória com que estaremos
revestidos no céu. Ele o fez, então, no momento em que apresentou Eva a
Adão, cujo casamento era, em tudo, tipificação de Cristo. De forma que,
assim como Deus nos viu primeiro sob essa aparência e com tal semblante
comparecemos diante dele ao nos apresentar a Cristo (e foi dito: “essa é a
esposa que lhe darei”), assim a Segunda Pessoa da Trindade nos toma por
esposa e se encarrega de nos conduzir àquele estado.
O fato de Deus incluir nos seus decretos a nossa queda no pecado e na
miséria se deu unicamente para exemplificar a história do amor de Cristo, e
por meio dos seus desígnios apresentar o nosso amado esposo de forma
ainda mais gloriosa em seu amor por nós. Deus assim o fez para tornar
ainda mais notável e gloriosa a condição original à qual ele há de nos
restaurar. Por isso é que, casados com ele no tempo em que éramos de
modo tal gloriosos no propósito original de Deus, embora, em seus decretos
sobre a execução desse propósito (ou seja, no processo de levar-nos a essa
glória), tenhamos caído em pecado e miséria antes que a alcançássemos,
ainda assim o matrimônio permanece indissolúvel.
Cristo toma parte da nossa semelhança, e, embora devêssemos
retribuir-lhe a atitude, agora, visto que estamos caídos em pecado, e nossa
carne é frágil e sujeita a enfermidades, o Salvador “tem participação
comum” de carne e sangue com os seus, conforme Hebreus 2.14. Por outro
lado, Cristo, agora exaltado, na glória que lhe foi designada, jamais
descansará enquanto não nos tiver restaurado àquela beleza com que no
início lhe fomos apresentados, e enquanto não nos tiver purificado para nos
“apresentar a si mesmo igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem coisa
semelhante, porém santa e sem defeito” (Ef 5.26–27). Seremos à
semelhança de quando Deus, em seu propósito original, nos apresentou a
Cristo na forma que deveríamos ser, com a beleza natural e original,
detentores daquele estado em que nos contemplou quando a primeira vez se
afeiçoou por nós e nos desposou, o que se evidencia pelo relacionamento
entre Cristo e os homens, pelo fato de ser o nosso esposo (Ef 5.25–26).
Portanto, embora o Salvador agora esteja na glória, não deixa que isso
o desanime, pois seu sentimento marital é: “desposar-te-ei comigo em
justiça, e em juízo, e em benignidade, e em misericórdias” (Os 2.19), e a
concepção daquela beleza encontra-se de tal maneira impressa no coração
de Cristo (beleza que desde a eternidade nos foi designada) que ele jamais
cessará de santificar-nos e purificar-nos até que nos tenha restaurado àquela
beleza que no princípio viu em nós.

SEGUNDO COMPROMISSO
O segundo compromisso assumido por Cristo decorre do fato de esse seu
amor ser ainda mais intensificado por sua obra e seus sofrimentos por nós
aqui na terra, antes de subir ao céu. “Tendo amado os seus”, a ponto de
morrer, ele certamente vai “amá-los até o fim” (Jo 13.1), inclusive por toda
a eternidade. Em todo tipo de relacionamento, tanto espiritual quanto
natural, o fato de fazermos muito por alguém que amamos gera ainda maior
cuidado e amor. Dessa mesma forma, os mais terríveis sofrimentos de
Cristo em nosso favor com certeza produziram nele terna empatia. Coisa
que ocorre com os pais, pois, junto da afeição natural implantada nas mães
por seus filhos, uma vez que a elas pertencem as dores de parto, o difícil
trabalho de parto e os incômodos que sofreram para trazê-los à luz
certamente nutrem afeição, e num grau muito maior do que nos pais. Por
isso, a sublimidade da afeição é atribuída à mãe para com seu filho porque
ele é o “filho do seu ventre” (Is 49.15).
O desempenho da função e do trabalho que é amamentar os filhos — o
que, por vezes, é feito com muita aflição e inquietação —, portanto,
valoriza-os ainda mais. A afeição aumenta de tal forma que o sentimento e
o amor da mãe para com o filho distinguem-se daqueles sentimentos por
outras crianças, a quem não amamentam. Por isso, no mesmo texto de
Isaías, junto do “filho do seu ventre”, menciona-se o “filho que ainda
mama” como sendo a mais elevada instância desse amor. E, igualmente
com a afeição paterna, assim também acontece na afeição conjugal, no
desempenho desse amor mútuo em que ocorrem dificuldades e tribulações;
além disso, quanto mais as pessoas envolvidas tiverem sofrido umas pelas
outras, mais profundos serão seus sentimentos e mais crescerá seu amor, e
aquele por quem sofreram por isso lhes será ainda mais precioso.
Assim como acontece nos relacionamentos naturais, de igual modo
ocorre com relacionamentos espirituais. Fato que se vê em homens santos,
como no caso de Moisés, que foi, para os judeus, um mediador, assim como
Cristo o é para nós. Moisés era tipo e sombra de Cristo, por essa razão faço
menção dele. Abaixo de Deus, foi ele quem libertou o povo de Israel do
Egito, arriscando a própria vida; foi ele quem os conduziu pelo deserto e
deu-lhes a boa Lei; ele era a sabedoria deles à vista de todas as nações, e,
por meio das suas orações, evitou que a ira de Deus se derramasse sobre o
povo. De todos os heróis de que se tem notícia, nenhum fez tanto por uma
nação, cujo povo continuamente murmurava e, por pouco, não o submeteu
ao apedrejamento. E, mesmo assim, aquilo que Moisés havia feito por eles
cativou-lhes de tal forma o coração e de tal maneira os guiou e os
estabeleceu para o bem deles que, embora Deus em sua ira contra o povo
tivesse lhe oferecido a oportunidade de torná-lo uma nação maior e mais
poderosa do que Israel, Moisés recusou a oferta (a mais elevada que
qualquer filho de Adão já recebeu), e, apesar de tudo, manteve-se
intercedendo em favor deles. Entre outros, ele, diante do Senhor, valeu-se
mesmo do argumento cujo âmago era afirmar para Deus os favores que já
havia operado por seu próprio povo, mostrando-lhe de que forma os tirou
“da terra do Egito com grande fortaleza e poderosa mão”, visando comovê-
lo a permanecer benevolente (Êx 32.11s). Deus escutou a intercessão de
Moisés, de acordo com Êxodo 32.14. Sim, o coração de Moisés estava de
tal modo fixado no povo, que não apenas recusou a oferta anterior, mas ele
mesmo propôs algo a Deus, a saber, de sacrificar a sua própria participação
na vida eterna em favor deles: “Agora, pois, perdoa-lhe o pecado; ou, se
não, risca-me, peço-te, do livro que escreveste” (Êx 32.32).
Vemos o mesmo tipo de amor e zelo no apóstolo Paulo por todos os
seus filhos espirituais, nas epístolas que lhes escreveu; as afeições do
apóstolo tornaram-se caríssimas por causa das duras penas, do custo, das
dores de parto, do cuidado e dos sofrimentos que teve para trazê-los a
Cristo. Logo, quão cuidadoso era ele com os gálatas! Como temia perder os
esforços empregados neles! “Receio de vós tenha eu trabalhado em vão
para convosco”, assim o apóstolo declara em Gálatas 4.11, exprimindo de
forma ainda mais profunda poucos versículos adiante: “Meus filhinhos, por
quem de novo sinto as dores de parto, até que Cristo seja formado em
vós”(Gl 4.19). O apóstolo confessa satisfação por outra vez sentir as dores
de parto em favor deles, a fim de não perder aquilo por que, sofrendo, já
havia labutado em outra ocasião.
Agora, desses dois exemplos, dos quais um deles era tipo de Cristo e o
outro uma exata expressão e modelo do sentimento que há no Salvador,
podemos ter segurança a respeito do amor e da afeição que,
necessariamente, existem no coração de Cristo — devido ao que ele fez e
sofreu em nosso lugar.
Primeiro, com respeito a Moisés. Será que Moisés operou em favor do
seu povo aquilo que Cristo fez e sofreu por você? Moisés reconheceu não o
ter concebido, mas Cristo gerou a todos nós; somos o penoso trabalho da
sua alma; em nosso favor, o Filho suportou as ânsias da morte (como Pedro
as chama em At 2.24). E quanto a Paulo? Ele mesmo pergunta a respeito de
si: “Foi Paulo crucificado por vós?”. Não, mas o Senhor Jesus Cristo o foi,
e o apóstolo o diz para destacar ainda mais o amor do Salvador. Ou, se
Paulo tivesse sido crucificado, será que nos seria de algum proveito? Não!
Por isso, se o apóstolo, temendo que os gálatas estivessem se desviando,
estava disposto a novamente suportar as dores de parto por eles, quanto
mais o coração de Cristo se move em direção aos pecadores!
Havendo Cristo suportado tão infinito sofrimento em nosso favor,
cujas cicatrizes jamais serão apagadas, seu grande amor que tem por nós —
se pudéssemos pensar que de outra forma não seríamos salvos — o faria
disposto a sofrer as dores de parto outra vez. O Salvador, contudo, precisou
morrer uma única vez, conforme o apóstolo declara na Carta aos Hebreus,
visto que o seu sacerdócio é perfeito. Esteja seguro, portanto, de que o seu
amor não se esgotou nem se exauriu em sua morte; pelo contrário, por meio
dela só o fez crescer. Foi seu amor que o levou a morrer e a dar a “vida
pelas ovelhas” (Jo 10.15), e, antes de entregá-la, declarou: “Ninguém tem
maior amor do que este” (Jo 15.13). Mas, agora, uma vez morto e
ressurreto, sua entrega necessariamente o deixou ainda mais apegado
àqueles por quem fez sacrifício.
O amor e o zelo para aquele que se compromete por uma pessoa ou
causa são proporcionais à intensidade do sofrimento recebido para sustê-
los. De outra sorte, o indivíduo perde a gratidão e o respeito por tudo aquilo
que foi feito em seu favor e pelas circunstâncias passadas. “Terá sido em
vão que tantas coisas sofrestes?”, pergunta o apóstolo aos gálatas (Gl 3.4),
fazendo disso motivo e incentivo para que, visto terem suportado tanta
coisa por causa de Cristo e por tê-lo professado, eles, assim, não perdessem
tudo, no desejo de fazer algo mais.
Será que não perdura em Cristo essa mesma disposição? Em especial,
quando considerado o penoso trabalho para o qual foi enviado a este
mundo, e o fato de que o trabalho que agora deve cumprir no céu é muito
mais suave e cheio de glória — pois Jesus está “colhendo com alegria”
aquilo que aqui “semeou com lágrimas”. Se o seu amor foi tão grande a
ponto de suportar tanto, então, agora que a dor já passou e seu afeto foi
comprovado, será que esse amor não vai continuar? Se, quando provado
pela adversidade (e esse é o mais seguro e forte amor), a maior adversidade
que jamais existiu, seu amor perdurou, será que não vai perdurar agora que
seu estado é de exaltação? Será que seu coração se apegou a nós na maior
tentação que jamais ocorreu, e agora seu estado glorioso e próspero vai
remover ou diminuir seu amor por nós? Não, jamais! “Jesus Cristo, ontem e
hoje, é o mesmo e o será para sempre” (Hb 13.8).
O Salvador, tomado de dor, recebeu as palavras de um daqueles por
quem estava sofrendo: “Senhor, lembra-te de mim quando vieres no teu
reino”. Será que Jesus considerou esse pedido? Conforme sabemos, Jesus o
fez, dizendo-lhe: “Em verdade te digo que hoje estarás comigo no paraíso”
(Lc 23.42–43). Havendo chegado lá, Cristo certamente se lembrou dele, tão
certo quanto a mais segura prova de todas as provas, cuja existência o
Salvador jamais esquecerá, a saber, as dores que ele mesmo então suportou
por aquele homem. Jesus tanto se lembra dessas dores quanto de nós,
conforme declara o profeta Isaías. Além do mais, se o Senhor deseja que
nos lembremos de sua morte até que ele venha (1Co 11.24–26), a fim de
levar nosso coração a amá-lo, quanto mais Cristo no céu! Ele se lembra de
nós, e não há dúvida disso, mesmo agora, que está na glória do seu reino,
seguindo a mesma promessa que fez a um dos ladrões na cruz. Encerro aqui
a apresentação desse segundo compromisso.

TERCEIRO COMPROMISSO
O terceiro compromisso assumido por Cristo é o compromisso do
cumprimento de um ofício que ainda depende dele e requer de sua parte
toda misericórdia e graça pelos pecadores que a ele se achegam. Por essa
razão, permanecendo nessa posição e ainda incumbido desse ofício (e para
todo o sempre), seu coração mantém-se necessariamente cheio de ternura e
afetos profundos. Tal ofício é o seu sacerdócio, cuja menção no texto de
Hebreus 4 se dá para demonstrá-lo como o fundamento a encorajar que nos
acheguemos “confiadamente, junto ao trono da graça, a fim de recebermos
misericórdia e acharmos graça para socorro em ocasião oportuna”, visto que
temos “grande sumo sacerdote que penetrou os céus” (Hb 4.14–16).
A seguir, quero apresentar dois pontos para melhor expor esse
raciocínio: (1)o ofício do sumo sacerdócio tem por objetivo, antes de tudo,
manifestar graça e misericórdia; (2)tal ofício atribui a Cristo o dever de
manifestar-se, em todo o seu proceder, cheio de graça e de misericórdia, de
fato conservando, portanto, seu coração pronto e disposto para as
manifestar.

PRIMEIRO PONTO DO RACIOCÍNIO


Quanto ao primeiro ponto, a função do sumo sacerdote é integralmente
graciosa. Podemos chamá-la de “ofício de perdoar”, cujo senhor e mestre é
Cristo, erigido, fundado e mantido por Deus no céu. Uma vez que seu ofício
real é de poder e domínio, e seu ofício profético é de conhecimento e
sabedoria, logo a sua posição de sacerdote é de graça e misericórdia. O
sumo sacerdote não lida com nada além disso. Se não houvesse um trono de
misericórdia no Santo dos Santos, jamais o sumo sacerdote teria sido
indicado para ali entrar. Essa sua entrada era para lidar com a misericórdia,
a reconciliação e a expiação em favor dos pecadores, para atuar em favor
dessas graças junto ao trono de misericórdia. Se não fosse assim, ele não
teria nenhuma obra, nem trabalho algum quando entrasse no santíssimo
lugar.
Sua posição, contudo, era apenas uma típica alusão ao ofício de Cristo
no céu. De modo que o apóstolo, quando declara que nosso Sumo Sacerdote
foi elevado às alturas, menciona o trono da graça — fazendo referência ao
tipo representado pelo sumo sacerdote em Israel e do trono da graça no
Santo dos Santos. E, para corroborar isso, o apóstolo prossegue explicando
essa tipificação, aplicando-a a Cristo, com o propósito aqui exposto. No
texto seguinte, em Hebreus 5.1–3, Paulo faz uma descrição completa do
sumo sacerdote e de todas as características e requisitos necessários, além
de precisar a eminente e principal finalidade deste ofício. As mais sublimes
e essenciais qualificações ali especificadas, exigências essenciais ao sumo
sacerdote, são a misericórdia e a graça. Ou seja, ele era escolhido para
exercer obras de misericórdia e de graça.
Além daquilo que as palavras em seu sentido natural indicam com essa
finalidade, veja que elas são apresentadas para dar suporte e confirmar a
exortação do nosso texto, em que o autor apresentou Cristo como o Sumo
Sacerdote que pode “compadecer-se das nossas fraquezas”. Por essa razão é
que devemos nos achegar “confiadamente, junto ao trono da graça, a fim de
recebermos misericórdia e acharmos graça para socorro em ocasião
oportuna. Porque todo sumo sacerdote, sendo tomado dentre os homens, é
constituído nas coisas concernentes a Deus, a favor dos homens, para
oferecer tanto dons como sacrifícios pelos pecados” (Hb 4.16, 5.1). O sumo
sacerdote deveria ser alguém que tivesse as condições de compadecer-se.
Essas palavras confirmam aquilo que já havia sido dito, e apresentam
Cristo, a substância, em sua graça e misericórdia, por meio de Arão e seus
filhos, as sombras — e tudo isso para o conforto dos crentes.
Quanto à finalidade com que esses sumos sacerdotes foram indicados,
todos proferem unicamente graça e misericórdia aos pecadores. A respeito
do sumo sacerdote é dito que ele era alguém “constituído nas coisas
concernentes a Deus, a favor dos homens, para oferecer tanto dons como
sacrifícios pelos pecados”. Encontramos, nesse texto, tanto o finis cujus,
isto é, em “favor de quem”, quanto o finis cui, isto é, o “fim para o qual foi
ordenado”.
Em favor de quem (finis cujus). Ele foi ordenado em favor dos
homens, ou seja, pela causa dos homens e para o bem deles. Se não fosse
para a salvação dos homens, Deus jamais teria feito de Cristo sacerdote.
Dessa forma, o Salvador há de empregar toda a sua diligência e poder em
favor daqueles por cuja causa foi ordenado sacerdote, em todas as coisas
que dizem respeito à mediação entre Deus e o homem. Ele há de levar todos
os nossos deveres diante de Deus, conforme a expressão grega τὰ πρὸς τὸν
ϴεὸνta pros ton theon), isto é, “para Deus” e nos prover tudo de que
precisamos perante o Pai. Ele toma para si todas as nossas inimizades com
Deus, e media a reconciliação. O Filho nos conquista todo o favor da parte
do Pai e consuma tudo aquilo que a Divindade fez para nos salvar. E, a fim
de que agisse voluntária, bondosa e naturalmente em nosso favor, visto que
todo sumo sacerdote era “tomado dentre os homens”, assim também Cristo,
para que desse modo fosse sacerdote da nossa própria natureza, e assim
mais afável com os homens do que a natureza dos anjos jamais seria. Devo,
com brevidade, demonstrar de que maneira todas essas coisas o tornaram
um sumo sacerdote de misericórdias.
O fim para o qual foi ordenado (finis cui). O fim para o qual o sumo
sacerdote era ordenado é este: cabia-lhe “oferecer tanto dons como
sacrifícios pelos pecados”. Sacrifícios a fim de aplacar a ira de Deus contra
o pecado; e dons para buscar o seu favor. O apóstolo, anteriormente,
menciona “graça e misericórdia”, e nos encoraja a ir com ousadia junto a
esse sumo sacerdote para buscarmos ambas as coisas; além disso, para
ainda maior encorajamento, Paulo afirma que cabia ao sumo sacerdote, por
meio de seu ofício, oferecer ambas as coisas: dons para buscar toda a graça,
e sacrifícios para buscar toda a misericórdia em nosso favor, por causa de
nossos pecados. Dessa forma, perceba que Cristo foi ordenado para
manifestar “graça e misericórdia” — assim, portanto, encorajando-nos a
obtê-las (Hb 5.1).
Além disso, do sumo sacerdote era exigido que fosse “capaz de
condoer-se”. Isso nos é apresentado em Hebreus 5.2. A escolha para esse
ofício não se baseava na profunda sabedoria, grande poder ou excessiva
santidade, mas sim na misericórdia e compaixão outorgadas. Manifestar
misericórdia e compaixão é a qualidade aqui tornada especial e, por isso, a
única mencionada — a ser essencialmente apresentada pelo sumo
sacerdote. Era a característica fundamental exigida, uma atitude interior,
para exercer sua função, tão certa quanto a ordenação exterior de Deus,
conforme Hebreus 5.4.
A palavra δυνάμενος (dynamenos), que pode ser traduzida por “que
pode” ou “é capaz”, indica uma capacidade interior, um espírito, uma
disposição, um coração que sabe compadecer-se. É a mesma palavra que o
apóstolo usou no texto para descrever o coração de Cristo: δυνάμενον
συμπαθῆσαι (dynamenon sympathēsai), ou seja, “que pode compadecer-se
das nossas fraquezas”. O apóstolo já havia usado a palavra δύναται
(dynatai) em Hebreus 2.18, na expressão “é poderoso para socorrer”, que
não significa poderes externos (o que, normalmente, chamamos de
habilidade), mas uma disposição interior em sua vontade; seu coração é
pronto a perdoar e a oferecer socorro.
Agora, portanto, se essa é uma qualidade tão essencial para um sumo
sacerdote terreno, quanto mais o é para Cristo. Assim como Cristo não teria
sido digno de ser o Rei dos reis se não possuísse em si todo poder e força,
essenciais para fazer dele rei, de igual maneira ele não seria Sumo
Sacerdote de Deus, caso não tivesse tão misericordioso coração. Sim, de
modo que o próprio Jesus não mais seria sacerdote se perdesse sua
disposição. Da mesma forma, o que qualifica interiormente o ministro para
o ministério são os seus dons; e uma vez carente destes, ele se torna incapaz
de exercer sua função. Assim também a razão faz do homem ser humano,
cuja perda conduziria à bestialidade. Por fim, da mesma maneira, Cristo não
poderia permanecer sacerdote se não tivesse um coração que “possa
compadecer-se”, conforme diz o segundo versículo de Hebreus 5.
À palavra traduzida por “ter compaixão” é dada intensa ênfase, e a sua
força é notável. O termo no original é μετριοπαθεῖν (metriopathein), e
significa “ter compaixão de acordo com a medida e a proporção de cada
um”. Acerca de Cristo, nesse mesmo texto, também foi dito que ele “se
compadece de nossas fraquezas”, ou que “ele sofre conosco em todos os
nossos males”. Tais palavras também implicam sofrimento.
Agora, alguns sob profunda aflição podem questionar: embora o
Salvador tenha piedade de mim e se comova, apesar da enormidade da
minha miséria e dos meus pecados, acaso ele os remove por completo,
compadecendo-se de mim com sinceridade, e proporcionalmente ao
tamanho das minhas iniquidades? Para tratar desse tipo de raciocínio e
evitar objeções quanto à compaixão de Cristo, o apóstolo apresenta o
Salvador por aquilo que era o dever do sumo sacerdote, o qual tipificava o
Cristo: o fato de o sumo sacerdote ser alguém “capaz de compadecer-se de
acordo com a medida da miséria de cada um”; alguém que considera cada
circunstância relacionada ao caso, oferecendo compaixão e socorro. E,
ainda que grande seja a miséria, igualmente grande é a compaixão do
Salvador (pois ele é um grande Sumo Sacerdote). Nossa miséria jamais
excederá a misericórdia de Cristo.
A palavra aqui usada é derivada dos termos gregos μετρὸν (metron),
medida, e παθεῖν (pathein), sofrer. O propósito do apóstolo ao usá-la fica
evidente por aquilo que vem a seguir, a saber, a menção deliberada das
várias classes e tipos de pecadores que havia sob a lei, os quais eram objeto
de misericórdia e compaixão: “capaz de condoer-se dos ignorantes e dos
que erram”. Na lei havia várias categorias e tipos de pecadores, pelos quais
Deus designou ou providenciou diferentes sacrifícios, proporcionais
segundo a medida necessária (Lv 4.2, 5) e outros para pecados conscientes
ou intencionalmente cometidos (Lv 6.2–3, compare com 6.6).
Quando o pecador ia ao sumo sacerdote para dele receber expiação,
este precisava avaliar o tipo e a dimensão do pecado cometido: se um
simples pecado de ignorância ou se cometido de forma consciente e
deliberada. De acordo com o diagnóstico feito, ele então providenciaria um
sacrifício e faria mediação em favor do culpado. Dessa forma, o sacerdote
fazia μετριοπαθεῖν (metriopathein), isto é, “exercia compaixão de acordo
com a medida necessária”, ou de acordo com a razão ou o entendimento,
segundo o que se pode entender. A Carta aos Hebreus, assim, menciona
tanto os ignorantes (aqueles que pecam por pura ignorância) quanto aqueles
que saem do caminho (a saber, por iniquidade voluntária e deliberada).
Cristo, aqui, nos é apresentado por meio das qualidades essenciais a
um sumo sacerdote. Uma vez que a necessidade e a aflição se medem
segundo o pecado e a miséria de cada um, é de acordo com esse mesmo
peso e medida que o Salvador se dirige individualmente aos homens. Assim
como nossos pecados são de tamanhos diversos, assim também são as
misericórdias de Cristo, o qual apresenta uma mediação proporcional —
independentemente se forem pecados por ignorância ou pecados cometidos
diariamente ou mesmo pecados mais grosseiros e de presunção. Não
permita, portanto, que nem mesmo um só desses pecados o desencoraje de
vir a Cristo em busca de graça e misericórdia!
Por fim, eis aqui tanto o devido requisito que o qualifica para esse
ofício (compaixão misericordiosa) quanto o seu propósito, isto é, lidar de
forma misericordiosa com toda sorte de pecadores segundo a dimensão e a
medida dos pecados e misérias deles. De ambas as verdades, surgem os
seguintes corolários, que dão fundamento e substância ao raciocínio que
estamos desenvolvendo: (1) Cristo deixaria de ser a pessoa apropriada para
ocupar tal ofício, a não ser que mantenha sua disposição graciosa e tenha
condições de exercer compaixão; (2) Cristo não exerceria fielmente seu
ofício de acordo com o fim para o qual foi ordenado, a não ser que
manifeste toda graça e misericórdia àqueles que se achegam ao trono da
graça para as receber.

SEGUNDO PONTO DO RACIOCÍNIO


Voltemos a nossa atenção agora para o segundo ponto que expus acima: que
esse ofício lhe impõe o dever de sentir compaixão, sentimento esse que
necessariamente resulta de seu ofício. A fim de prover plena confirmação
dessa verdade, esses aspectos nos são apresentados em um mesmo lugar,
num texto paralelo ao que acabo de comentar. Hebreus 2.17: “[...] convinha
que, em todas as coisas, [Cristo] se tornasse semelhante aos irmãos, para ser
misericordioso e fiel sumo sacerdote”. Jesus é declarado misericordioso e
fiel; ambas as insígnias lhe são atribuídas com respeito ao ofício de sumo
sacerdote: “fiel sumo sacerdote” — e para ser exercido no céu, depois que
se encerrassem os seus dias na terra. Pois o apóstolo, apresentando o porquê
do ofício e aquilo que o qualifica para tal, acrescenta, em Hebreus 2.18:
“naquilo que ele mesmo sofreu”, referindo-se ao tempo depois que
cessaram seus sofrimentos. Agora, acerca de ser declarado misericordioso,
isso se refere à disposição interna do seu coração, anteriormente citada, a
qual o qualificou para o ofício. Quanto ao fato de ser fiel, diz respeito às
obras por ele consumadas: Cristo é fiel na execução do dever que essa
posição lhe impõe.
Aqui, portanto, temos um ponto que vai além do primeiro argumento
apresentado no raciocínio, pois expõe que exercer misericórdia é o dever
dessa posição, e que, se quiser ser fiel, Cristo necessariamente deve ser
misericordioso. Desempenha-se fielmente uma função quando o
encarregado efetua de modo exato aquilo que lhe foi ordenado por aquele
que o designou. Essa é a verdadeira definição de fidelidade, que, assim
descrita, se encontra em Cristo. Vemos isso ser imediatamente sugerido
pelo que segue em Hebreus 3.2: “o qual é fiel àquele que o constituiu, como
também o era Moisés em toda a casa de Deus”. O mesmo é dito
explicitamente em Hebreus 5.3: “E, por esta razão, deve oferecer sacrifícios
pelos pecados”. O autor diz isso a respeito daquele sumo sacerdote, que era
um tipo de Cristo (assim como o fez também no texto anterior), mostrando
que também é dever de Jesus ser o mediador de todos os que se achegam a
ele — “e por esta causa ele carrega esse dever”.
Assim, para reforçar ainda mais nosso argumento, a fim de auxiliar-
nos no aprofundamento de nossa fé, poderíamos dizer que: se desse ofício,
pela ordem de Deus, se exige isso, e uma vez que esse é o dever de quem
ocupa tal posição, logo, é certo que Cristo o desempenhará da maneira mais
perfeita — do contrário, aquilo que lhe cabe não seria cumprido. Nosso
consolo é que a sua fidelidade consiste em ser misericordioso; por essa
razão é que ambas as coisas estão unidas. Cada um deve executar de modo
apropriado as suas obrigações, e zelar com cuidado por aquilo que é devido.
Por essa razão, o apóstolo Paulo, em Romanos 12, exortando ao
cumprimento das obrigações de cada função na igreja, declara no versículo
7: “se ministério, dediquemo-nos ao ministério”; e, dentre outras
possibilidades, se no lugar de “ministério” fosse colocado “exercer
misericórdia”, conforme Romanos 12.8 (que também é função da igreja, à
qual cabe cuidar dos pobres e doentes), tal obrigação devia ser cumprida
“com alegria”. É isso que Cristo declara a respeito de si mesmo em Isaías
61.1–2: “O Espírito do Senhor Deus está sobre mim, porque o Senhor me
ungiu para pregar boas-novas aos quebrantados, enviou-me a curar os
quebrantados de coração, a proclamar libertação aos cativos e a pôr em
liberdade os algemados”, para visitá-los e socorrê-los, e “apregoar boas
novas aos mansos”. É para os tais que o Salvador dirige o seu cuidado. Ele
é o grande Pastor e Bispo das nossas almas (1Pe 2.25); e os doentes, os
quebrantados são suas ovelhas, seu compromisso, sua congregação,
conforme Ezequiel 34.16. Zelando por elas, o Pastor tomou para si o dever
de preservá-las até o fim, de importar-se com cada uma delas; nas palavras
de João 10.16: “Tenho também outras ovelhas”, diz Cristo, “estas também é
necessário que eu as traga”.
Veja que Cristo usa a expressão με δεῖ (me dei), ou seja, “eu preciso”.
Isso ele considera dever próprio, que lhe foi atribuído pelo fato de ser
pastor. E, uma vez que expressar misericórdia é o dever característico do
sumo sacerdócio, Cristo age com alegria, como descreve o apóstolo. É a
misericórdia que conduz o indivíduo a fazer o que é preciso com alegria.
Cristo é tanto Bispo quanto Diácono, pois exerce todas as funções dadas à
sua igreja. Da mesma forma, ele é ministro da circuncisão e também da
incircuncisão, conforme Romanos 15.8. Mesmo no céu, Cristo ainda exerce
o ofício de Sumo Sacerdote, Pastor e Bispo, visto que “tem o seu sacerdócio
imutável” (Hb 7.24).
Portanto, para concluir esse tópico, afirmo: não tema, receando que
Cristo, agora majestosamente exaltado no céu, vá mudar de alguma forma
sua disposição, pois é exatamente o seu estado de exaltação que o
compromete ainda mais para cumprir as suas obrigações. Porque, apesar de
“ter entrado nos céus”, leve em consideração que, como nos é dito, Cristo
subiu justamente para ser Sumo Sacerdote; não receie, pois sua posição
requer dele misericórdia por aqueles que a ele se achegam. Embora, nos
céus, Jesus esteja “exaltado acima de todos os principados e poderes”, ainda
assim o seu sumo sacerdócio permanece e o acompanha, pois “nos
convinha um sumo sacerdote como este, santo, inculpável, sem mácula,
separado dos pecadores e feito mais alto do que os céus” (Hb 7.26).
Além disso, embora assentado à destra de Deus, e no trono do seu Pai,
o fato é que o Filho está assentado num “trono de graça”, conforme o texto
relata. E assim como o propiciatório, tipificação do trono de Deus, era o
objeto mais distante e elevado no Santo dos Santos, assim também o trono
da graça (o que é um enorme encorajamento para nós) é o mais elevado
assento no céu. De forma que, se Cristo quiser ocupar e manter a mais
importante posição no céu, a maior distinção que o céu pode conceder, isso
o compromete com a graça e com a misericórdia. A mais elevada honra ali
tem esse atributo da graça incorporado em seu próprio nome: “Um trono de
graça”. E Salomão diz que o trono do rei “se firmará na justiça” (Pv 25.5),
ele permanecerá firme por meio dela; assim acontece com o trono de Cristo
mediante a graça. Foi a graça que fundou o seu trono, e é a graça que o
mantém.
A graça é o fundamento desse trono. Deus exaltou seu Filho a essa
posição porque ninguém jamais seria capaz de ter um coração mais gracioso
e misericordioso do que o dele. É normal ser promovido por algum
destaque pessoal — beleza, inteligência, retórica ou qualquer coisa
parecida. Agora, se você perguntar o que levou Deus a exaltar Cristo a esse
trono, a resposta é: a graça. Se “nos teus lábios [de Cristo] se extravasou a
graça” (Sl 45.2), quanto mais em seu coração! O Salmo continua: “por isso,
Deus te abençoou para sempre”, ou seja, com todas as glórias do céu, que
são as bênçãos de Deus para o Filho.
A graça é o sustentáculo do seu trono. Conforme o Salmo 45.4: “Na
tua majestade monta prosperamente pela causa da verdade, da mansidão e
da justiça”, a graça é o sustentáculo do seu trono. Essa é a palavra da
verdade, “o evangelho da nossa salvação”, conforme Paulo o expõe de
forma exegética em Efésios 1.13. Esses são os pilares do seu trono e da sua
majestade. Perceba que dois desses fundamentos referem-se à graça (a
mansidão e o evangelho da nossa salvação) e um à justiça ou retidão — e
até esse diz respeito a nós. São esses os pilares que firmam o trono de
Cristo. É assim que prossegue o Salmo 45.6: “O teu trono, ó Deus, é para
todo o sempre”, e isso se aplica a Cristo (Hb 1.8). Logo não tenha medo,
visto que a mansidão sustenta sua majestade e a graça, o seu trono — ele
retém sua posição as manifestando. Essas são as insígnias atribuídas a
Cristo por ser ele sacerdote.

QUARTO COMPROMISSO
O quarto compromisso assumido por Cristo é expresso num argumento que,
acrescentado ao compromisso anterior, muito pode ajudar nossa fé nesse
quesito. Trata-se do benefício que o próprio Cristo obtém tanto pelo fato de
nossa salvação ter sido comprada por seu sangue quanto pelo fato de ter seu
próprio deleite, bem-estar, alegria e glória aumentados e ampliados
enquanto manifesta graça e misericórdia, quando perdoa, alivia e conforta
seus membros aqui na terra — que estão sujeitos a toda sorte de fraquezas.
Dessa forma, aliado à obrigatoriedade do ofício que Jesus assumiu em
nosso favor, acrescenta-se um poderoso benefício próprio, isto é, firmar seu
coração com fidelidade em nosso favor, em tudo o que nos diz respeito.
Advogados e procuradores atuam em favor de outra pessoa, apesar de não
terem participação na propriedade daquilo que estão pleiteando, nem direito
de posse, nem sociedade. Mas, se forem honestos, com que tamanho
empenho e diligência eles se esforçarão pelo benefício daquele que os
contratou, simplesmente porque essa é a função e o dever que lhes cabe por
profissão. Não obstante, todavia, não recebem eles pouca remuneração, se
comparada com o patrimônio que estava em jogo? Sendo assim, quanto
mais teriam sido estimulados à diligência se as terras e propriedades em
favor das quais pleiteavam pertencessem a eles ou fossem compradas como
dote para suas esposas ou herança para seus filhos!
Ora, assim é o perdão dos nossos pecados, a salvação da nossa alma e
a conformação de nosso coração à imagem de Cristo. Isso tudo foi
comprado pelo sangue de Cristo, e, no momento em que os desperta e
estimula, o Salvador faz bem aos “próprios filhos” e à “própria esposa”, o
que, na verdade, é fazer bem a si mesmo. Sim, proceder dessa maneira
confere mais bem-estar e glória a Cristo do que para seus membros. Por
essa razão, o apóstolo afirma, no início do capítulo 3 da Carta aos Hebreus,
que Cristo está inteiramente comprometido a cumprir com o seu ofício, não
apenas como simples servo, em quem seu senhor confia, mas como
proprietário, que é dono das coisas confiadas a seu cuidado, e que recebe
rendimentos dali.
O apóstolo declara em Hebreus 3.5: “E Moisés era fiel, em toda a casa
de Deus, como servo [...] Cristo, porém, como Filho, em sua casa; a qual
casa [ou família] somos nós”. Se um médico, em troca dos seus honorários,
trabalha com fidelidade ainda que desconheça o paciente, muito mais agirá
dessa forma se este for seu próprio filho, uma vez que a própria vida e bem-
estar do doutor estão ali, atados àquele que é sangue do seu sangue, ou se
muito dos seus bens e sustento procedem da vida daquele que está tratando.
Numa situação dessas, o paciente pode ficar seguro de que não passará por
falta de cuidado, nem haverá sacrifício por parte do médico, nem falta dos
medicamentos que lhe trarão melhora. Não faltarão recursos para curá-lo e
mantê-lo saudável, e não faltará alimentação apropriada para nutri-lo e
fortalecê-lo — assim como ocorreu com o chefe dos eunucos, no primeiro
capítulo do livro de Daniel, o qual era responsável pelos jovens, e cabia a
ele fazê-los comer e beber do melhor, pois sua posição dependia da boa
aparência daqueles rapazes. Ora, Deus ordenou a realidade de tal forma
que, mesmo como dever perpétuo do coração de Cristo voltado aos seus, o
fato de ele nos conceder graça, misericórdia e paz é grande parte da sua
glória e da fonte da alegria e da herança nos céus.
A fim de explicar como isso se dá, considere que a natureza humana
de Cristo, que está no céu, possui capacidade de porção dobrada de glória,
alegria e prazer: uma capacidadetal que provém da companhia e comunhão
com o Pai e com seus irmãos, mediante sua união pessoal com a Divindade.
O próprio Cristo fala, no Salmo 16.11, a respeito da alegria que ele desfruta
nessa comunhão: “na tua presença há plenitude de alegria, na tua destra,
delícias perpetuamente”. Há plenitude de prazer, constante e estável, de tal
forma que não existe espaço para acréscimo ou diminuição, permanecendo
sempre a mesma, absoluta e completa em si mesma, por si só suficiente, de
modo que o Filho de Deus e herdeiro de todas as coisas de nada mais
precisa para viver, mesmo que não tivesse nenhuma outra fonte de alegria e
prazer vindos de qualquer outra criatura. Essa é sua herança natural.
Deus, contudo, também pôs sobre o Filho mais uma coroa de glória e
outra fonte de prazer, provindas de outro lugar, outra plenitude, ou seja,
provenientes de sua igreja e esposa, a qual constitui seu próprio corpo. Essa
é a razão por que o apóstolo, em Efésios 1, depois de mencionar as mais
elevadas coisas que se podem dizer sobre a glorificação pessoal de Cristo
no céu, que foi exaltado à direita do Pai “nos lugares celestiais, acima de
todo principado, e potestade, e poder, e domínio, e de todo nome que se
possa referir” (Ef 1.20–21), ainda acrescenta: “e para ser o cabeça sobre
todas as coisas, o deu à igreja, a qual é o seu corpo, a plenitude daquele que
a tudo enche em todas as coisas” (Ef 1.22–23). Assim, apesar de em si
mesmo ser tão pleno, e embora habite nele a plenitude da Divindade, de
forma que ele próprio a tudo completa em todas as coisas, Cristo se agrada
de considerar — e assim é de fato — a sua igreja e a salvação dela como
outra plenitude para si, acrescentada àquela primeira.
Visto ser o Filho de Deus, ele é plenamente completo em seu ser;
contudo, como Cabeça, há nele plenitude dobrada de alegria, esta
proveniente do bem-estar e da felicidade dos seus membros. Assim como
todo prazer acompanha a ação e é resultado dela, de igual modo essa
plenitude se completa nele pelo exercício de atos de graça e por
constantemente fazer o bem para seus membros. Ou, nas palavras do
apóstolo, sua plenitude provém de enchê-los de toda misericórdia, graça,
bem-estar e felicidade, tornando-se ele mesmo ainda mais pleno quando os
supre. Essa também é sua herança, tal qual no outro estado de plenitude.
Cristo, portanto, tem dobrada herança: uma pessoal, que lhe é devida
por ser o Filho de Deus, anterior à sua encarnação, antes que tivesse feito
qualquer obra em favor de nossa salvação; e outra adquirida, comprada e
recebida como recompensa por ter executado grandiosa obra e obediência.
Certamente, unida à glória de sua pessoa, existe a glória de seu ofício de
Mediador e Cabeça da igreja. E, apesar de pleno e completo em si mesmo,
Jesus Cristo não menospreza essa porção dos seus benefícios, advinda deste
mundo.
Dito isso, desejo agora apresentar a confirmação e exposição do
presente raciocínio. Essa glória e felicidade que superabundam em Cristo
são acrescentadas, e também ampliadas e intensificadas, à medida que seus
membros têm mais e mais consciência daquilo que foi adquirido por sua
morte. Quando nossos pecados são perdoados, nosso coração é santificado e
nosso espírito consolado, então, desse modo, o Salvador vê o fruto do seu
penoso trabalho e é consolado, pois ele mesmo é mais glorificado por meio
dessa obra. Sim, o Filho de Deus tem mais prazer e alegria nela do que os
próprios discípulos. Cabe a ele conservar no coração o cuidado e o amor
pelos seus pequeninos que ainda estão neste mundo, para alimentá-los e
revigorá-los a cada momento (Is 27.3).
Quando age com graça e favor e faz o bem aos seus, Cristo faz bem a
si mesmo — essa é a maior garantia que poderia haver. Eis o porquê de o
apóstolo exortar os homens a que amem suas esposas com base neste fato
— ao fazê-lo, eles amam a si mesmos: “Quem ama a esposa a si mesmo se
ama” (Ef 5.28), pois tão próxima e íntima é a relação! Ora, o mesmo é
verdade em relação ao sentimento de Cristo por sua igreja, razão por que,
no mesmo lugar, o amor do Salvador por ela é apresentado como o modelo
e exemplo do nosso amor (como declara Efésios 5.25: “como também
Cristo amou a igreja”). Pode-se deduzir, inclusive, comparando um texto
com o outro, que, quando ama sua igreja, Cristo, portanto, ama a si mesmo.
Então, quanto mais amor e graça manifesta aos membros do seu corpo,
maior é o amor demonstrado a si mesmo.
Em decorrência disso, também é acrescentado em Efésios 5.27 que
Jesus “lava e purifica sua igreja” diariamente, isto é, a purifica tanto da
culpa quanto do poder do pecado, “para a apresentar a si mesmo igreja
gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem coisa semelhante, porém santa e sem
defeito”. Observe que é para apresentá-la a si mesmo. Dessa forma, tudo o
que faz por seus membros, é para si mesmo que ele o faz, de fato, mais do
que para eles próprios. Sua participação na glória provinda dos seus é maior
que a deles, assim como maior é a glória da causa do que a do efeito. De
fato, essa é a forma pela qual a Escritura se refere a essa verdade, como
quando diz que os santos são “a glória de Cristo”, em 2Coríntios 8.23.
Em João 17.10, 22–23, Cristo declara que é “glorificado neles”. O
Salmo 45, no qual Jesus é representado como Salomão em toda a sua
realeza e majestade, afirma que o rei “cobiçará [...] aformosura” da rainha, a
saber, as graças dos santos; e não se trata de mera admiração, mas “cobiça”,
desejo este que se intensifica à medida que formosura e beleza aumentam.
Esse é o motivo que lhe é apresentado para ser mais santa e conformada ao
seu Senhor: “vê, dá atenção; esquece o teu povo e a casa de teu pai. Então,
o Rei cobiçará a tua formosura” (Sl 45.10–11). Cristo possui tal beleza e ela
o torna agradável, e de igual modo nós também, embora de modo diferente.
Essa é a razão por que ele não descansará enquanto não tiver removido toda
mancha e ruga da face de sua esposa, segundo o apóstolo: “para a
apresentar a si mesmo igreja gloriosa”, ou seja, encantadora e agradável aos
olhos.
De acordo com isso, para nos firmar e solidificar ainda mais, Cristo, no
sermão que foi sua solene despedida antes de partir para o céu, assegura os
discípulos de que seu coração estava longe de alienar-se, garantindo que sua
alegria encontrava-se depositada neles, por vê-los prosperar e dar fruto (Jo
15.9-11). Seu propósito foi deixá-los seguros de que o amor por eles haveria
de permanecer depois de ter partido (Jo 15.9-10): “Como o Pai me amou,
também eu vos amei; permanecei no meu amor”. É como se o Salvador
dissesse: “Não temam por meu amor, nem por perdê-lo na minha ausência;
mas o que lhes cabe é desempenhar cada um o seu dever”.
Além do mais, a fim de conferir-lhes segurança, Cristo acrescenta que,
mesmo quando estivesse no céu, na maior plenitude do seu deleite, à destra
de Deus, ainda ali sua alegria estaria sobre eles e seu bem-estar: “Tenho-vos
dito estas coisas para que o meu gozo esteja em vós, e o vosso gozo seja
completo” (Jo 15.11). Ele fala exatamente como um pai que se despede dos
filhos, confortando-os por ocasião de sua partida, dando-lhes conselhos
úteis para tomarem boas decisões quando não mais estivesse com eles, para
guardarem seus mandamentos e amarem uns aos outros (Jo 15.10, 12). Ele
tudo fundamenta com a seguinte motivação: “Tenho-vos dito estas coisas
para que o meu gozo esteja em vós”. É assim que os pais costumam falar,
desejando aos filhos plenitude de paz e alegria.
Para mais profunda explicação acerca de os discípulos permanecerem
em seu amor e sua alegria permanecer neles, algumas palavras são usadas
para indicar que essa realidade perdurará também no céu. Quando Cristo
diz: “para que meu gozo permaneça em vós”, é como se dissesse: “para que,
mesmo no céu, eu tenha motivo para alegrar-me em vocês quando souber a
respeito de suas obras: que estão em harmonia e em amor uns pelos outros,
e guardando meus mandamentos”. Aquilo que Cristo chama de “minha
alegria” não é o fato de os discípulos estarem nele; a ênfase está, pelo
contrário, no fato de Cristo estar neles, ou seja, tal alegria é a alegria que
Cristo sente por estar nos discípulos. É assim que Agostinho já há muito
tempo interpretou. Quidnam, diz ele, est illud gaudium Christi in nobis, nisi
quod ille dignatur gaudere de nobis? (O que é a alegria de Cristo em nós
senão aquela que ele se digna e se propõe a ter de nós e por nossa causa?).
O que fica evidente ao entender que de outra forma, fosse à alegria deles
que se referisse naquela primeira frase, logo, a frase seguinte, “e a vossa
alegria seja completa”, seria de natureza tautológica. Por isso, Cristo fala da
própria alegria e da deles como de duas coisas distintas; e as duas juntas
eram os maiores motivos que poderiam ser apresentados para encorajar e
despertar seus discípulos à obediência.
Faça, pois, uma avaliação do coração de Cristo a partir das atitudes dos
santos apóstolos Paulo e João, que eram “imagens menores” dessa
disposição do Salvador. Qual era, após a direta comunhão com o próprio
Senhor, a maior alegria e conforto deles para viverem neste mundo senão o
fruto do seu ministério manifesto nas graças tanto da vida quanto do
coração daqueles que ambos haviam gerado em Cristo?
Observe como Paulo se expressa em 1Tessalonicenses 2.19–20: “Pois
quem é a nossa esperança, ou alegria, ou coroa em que exultamos, na
presença de nosso Senhor Jesus em sua vinda? Não sois vós? Sim, vós sois
realmente a nossa glória e a nossa alegria!”. E, em 3João 3, João fala o
mesmo, a saber, que ele se deleitava grandemente com o bom testemunho
sobre Gaio: “Pois fiquei sobremodo alegre pela vinda de irmãos e pelo seu
testemunho da tua verdade, como tu andas na verdade. Não tenho maior
alegria do que esta, a de ouvir que meus filhos andam na verdade”. Ora,
quem eram Paulo e João senão instrumentos por meio dos quais eles tinham
crido e sido gerados? Nenhum deles foi crucificado por eles, nem eram
esses filhos seus o penoso fruto das suas almas. Quanto mais, então, há de
estar sobre Cristo, cujo interesse em nós e em nossa paz é tão infinitamente
maior, sua alegria e coroa por seus membros. E vê-los achegando-se em
busca de graça e misericórdia, e andando na verdade, faz com que o
Salvador se deleite ainda mais, pois assim vê o penoso trabalho de sua alma
e fica satisfeito.
Com efeito, aquilo que Salomão diz a respeito dos pais, em Provérbios
10.1 (“O filho sábio alegra a seu pai”), é muito mais verdadeiro acerca de
Cristo. Nossa santidade, frutificação e conforto espiritual alegram o coração
de Cristo, nosso “Pai da Eternidade”. Ele mesmo o afirma, e eu suplico que
você creia nele e se comporte de acordo com o que ele próprio disse. Além
do mais, se parte da alegria de Cristo provém do nosso crescimento e bem-
estar, logo não duvide: suas afeições permanecem, visto que o amor por si
mesmo fará com que elas sejam duradouras por nós. Da parte do Salvador,
haverá prontidão para nos abraçar e receber quando formos em busca de
graça e misericórdia.

QUINTO COMPROMISSO
O quinto compromisso assumido por Cristo diz respeito a um compromisso
determinado pelo Pai, o qual Cristo deveria assumir para sempre, pelo fato
de possuir nossa natureza, a qual ainda conserva no céu. O ofício
misericordioso do sumo sacerdote também foi alvo da eterna união pessoal
entre a natureza humana e a Divindade na Segunda Pessoa da Trindade.
Assim como seu ofício impõe sobre ele tal dever, assim também o fato de
ter-se tornado homem o qualifica para essa posição e seu cumprimento, a
fim de suprir fundamento para nosso raciocínio. Eis uma característica
essencial de nosso Sumo Sacerdote, que tanto o qualifica para exercer
profunda misericórdia quanto para, ao tomar para si nossa natureza, cumprir
um dos grandiosos propósitos de Deus.
Em primeiro lugar, é uma característica essencial de suas
misericórdias. É isso que se lê em Hebreus 5.1–2: “Porque todo sumo
sacerdote, sendo tomado dentre os homens, é constituído nas coisas
concernentes a Deus, a favor dos homens, para oferecer tanto dons como
sacrifícios pelos pecados, e é capaz de condoer-se dos ignorantes e dos que
erram”, ou seja, capaz de, naturalmente, exercer misericórdia e bondade,
como aquelas que o homem manifesta por alguém da sua própria estirpe.
De outra forma, os anjos, considerando sua natureza, teriam produzido
maior e mais ilustre sumo sacerdote. Contudo, eles não teriam condições de
ter piedade dos homens, à semelhança daqueles que se compadecem por
seus consanguíneos, por seres da mesma natureza.
Em segundo lugar, esse era também o objetivo e a intenção de Deus ao
ordenar que Cristo assumisse nossa natureza, de acordo com Hebreus 2.16–
17: “Pois ele, evidentemente, não socorre anjos, mas socorre a descendência
de Abraão”, ou seja, a natureza humana, de igual essência, e “convinha que,
em todas as coisas, se tornasse semelhante aos irmãos, para ser
misericordioso e fiel sumo sacerdote”; eis a ἴνα ὲλεήμων γένηται (hina
eleēmōn genētai), isto é, “a finalidade por que ele veio a existir”, a saber:
“tornar-se misericordioso”.
Talvez alguém diga: “mas não era o Filho de Deus tão misericordioso
tanto antes quanto depois de assumir nossa natureza? Ou será que sua
misericórdia ficou maior do que seria caso não tivesse assumido a natureza
humana?”.
Respondo que sim, pois ele é tão misericordioso agora quanto era já
antes, mas:
(1) O fato de ter tomado para si a natureza humana manifestou (da
forma mais notória possível a olhos humanos) a eterna permanência das
misericórdias de Deus pela humanidade, visto que o Filho tornou-se homem
para todo o sempre. Desta forma, estamos seguros de que ele será
misericordioso com os homens, porquanto possui uma natureza igual a
deles (e isso por toda a eternidade). Pois, assim como a sua união com
nossa natureza é para todo o sempre, assim também por meio dela são
garantidas as suas misericórdias por toda a eternidade; de forma que Cristo
não pode, e não pretende, deixar de ser misericordioso com os homens,
assim como não pode, agora, deixar de ser homem — o que jamais deixará
de ser.
(2) O fato de Jesus Cristo tomar para si nossa natureza não apenas
incrementa nossa fé, mas, de uma forma ou de outra, acresce ao fato de ser
ele misericordioso, o porquê do registro: “para ser misericordioso”. Ou seja,
misericordioso de modo tal que de outra maneira o próprio Deus jamais
havia sido — isto é, como homem. Assim, essa união das duas naturezas,
Deus e homem, foi projetada por Deus para revelar o mais extraordinário
composto de graça e misericórdia de magnitude jamais vista, o qual é
plenamente adequado e justo para a cura e a salvação de nossa alma.
A natureza humana que Cristo assumiu nada acrescenta nem pode
acrescentar ao total e à grandeza dessa misericórdia que estava em Deus,
que constitui o âmago e tesouro das misericórdias manifestadas ao homem.
Pelo contrário, a humanidade de Cristo recebeu toda a sua imensidão de
misericórdia da própria Divindade. De sorte que, se o Salvador não contasse
com as misericórdias de Deus para alargar seu coração em nosso favor, ele
jamais teria condições de nos ser misericordioso por todo o sempre. Mas,
então, uma vez assumida essa natureza humana, tem-se uma nova maneira
de ser misericordioso. Ela assimila todas essas misericórdias e faz delas as
misericórdias de um homem, faz delas misericórdias humanas, e dessa
forma lhes concede uma naturalidade e amabilidade apropriadas à nossa
condição. De forma que, doravante, Deus, amável e bondosamente,
compadece-se de nós, que somos carne da sua carne e osso dos seus ossos,
assim como um homem se compadece de outro, e isso nos encorajaa ir a
ele, a fim de sermos feitos amigos íntimos de Deus, relacionando-se com
ele por meio da graça e da misericórdia (do mesmo modo como um homem
faria com seu próximo), cientes de que Deus habita no homem Cristo Jesus
(em quem nós cremos), cujas misericórdias operam em seu coração e por
meio dele à maneira humana.
Por ora não insistirei nesse conceito, porque terei oportunidade de
tratar dele novamente, complementando-o na terceira e última parte deste
tratado, na qual trataremos do modo como o coração de Cristo está
predisposto aos pecadores. Simplesmente considere o consolo que isso pode
trazer à nossa fé, que Cristo teria de deixar de ser Deus para cessar com
suas misericórdias, visto que o exato motivo de ter-se tornado homem foi
para que estivesse apto a manifestar misericórdia aos homens, e isso de
forma familiar às nossas percepções, como o próprio bater do nosso
coração, que como Deus ele não teria condições de manifestar. A isso,
acrescente-se o seguinte raciocínio, ousado, embora verdadeiro: é mais fácil
Cristo deixar de ser Deus do que deixar de ser homem. A natureza humana,
depois que a tomou sobre si, sendo elevada a todos os direitos naturais de
Filho de Deus, e que lhe foi tornada natural, permanecerá eternamente
unida à sua natureza divina. É mais fácil que o Salvador deixe de ser Deus e
homem do que não estar pronto a demonstrar misericórdia. De sorte que
não só o propósito do ofício de Cristo, mas também a intenção com que
tomou para si nossa natureza deposita sobre ele outra responsabilidade,
sendo esta ainda mais profunda do que as anteriores.
TERCEIRA PARTE
I. Algumas noções gerais a respeito de como se deve entender que o
coração de Cristo é “influenciado” pela percepção das nossas fraquezas, e
de como nossas fraquezas alcançam e comovem seu coração.

Depois de apresentar tão plenas e amplas provas acerca da ternura e


semelhança do coração de Cristo com respeito aos homens, agora que ele
está no céu, em comparação com a atitude do seu coração enquanto estava
neste mundo — tanto de forma extrínseca (na Primeira Parte) como de
forma intrínseca (na Segunda Parte) —, chego agora à última parte a que
me propus no início deste livro, ou seja, a maneira como Cristo é
“influenciado” pela compaixão por nós. Exponho também como devemos
compreender tal realidade e de que modo tais afeições chegam ao seu
coração para operar seus afetos de compaixão.
No início da Segunda Parte, propus lidar com isso tanto por
necessidade de expor e esclarecer as palavras do texto principal do tema
abordado como também para lançar luz ao assunto em si. Naquela ocasião,
demonstrei que essas palavras foram proferidas antecipando e prevenindo
uma objeção, como se o estado em que Cristo se encontra agora, no céu,
não permitisse esse tipo de afeição que o movesse ternamente à compaixão
e misericórdia — uma vez que agora, tanto sua alma quanto seu corpo,
estão glorificados. Contra esse tipo de pensamento, que com facilidade
surge na mente dos homens, o apóstolo afirma: “Porque não temos sumo
sacerdote que não possa compadecer-se”, isto é, Cristo pode e é capaz de
fazê-lo, e de fato se compadece, não obstante toda a sua glória. O autor da
Carta aos Hebreus ainda acrescenta outra razão de ser, ou demonstra de que
forma se cumpre, visto que “foi ele tentado em todas as coisas, à nossa
semelhança, mas sem pecado” (Hb 4.15).
Agora, ao tratar desse assunto e expô-lo, o que é de profunda
dificuldade, com toda a cautela começarei investigando que tipo de afeição
é esse que Cristo tem. Analisarei isso por meio dos seguintes passos:

PRIMEIRO PASSO
Esse sentimento de compaixão, ou o fato de Cristo ser apto a “compadecer-
se das nossas fraquezas”, não deve ser entendido no sentido metafórico ou
de antropopatia,2 como se entende nas vezes em que Deus se utiliza desse
meio no Antigo Testamento (quando sentimentos de compaixão lhe são
atribuídos e é dito que seus afetos “se misturaram”, ou quando é dito que
Deus se arrependeu e se afligiu em todas as aflições do seu povo).
Todas essas expressões se referem a Deus (o que todos sabemos), mas
simplesmente como kαθ ἀνθρωπωπάθειαν (kath anthrōpōpatheian), isto é,
segundo o falar dos homens, a fim de transmitir e representar à nossa
compreensão, por meio de sentimentos, aquilo que costuma estar nos pais
ou amigos em determinados casos (sentimentos que os levam a agir de
determinada forma), e a fim de explicar a maneira de Deus agir com os seus
quando os vê em aflição. Assim, esses sentimentos são mencionados mais
per modum effectus do que affectus, ou seja, mais pelo efeito que Deus
produz do que pelo tipo de afeição que realmente há em seu coração, o qual
não corresponde a nenhum desses sentimentos. Agora, quanto ao correto
entendimento desse tópico, a primeira coisa que afirmo é a seguinte: não é
nesse sentido que Cristo é descrito, e justificarei essa minha afirmação por
meio dos dois pontos que seguem abaixo.
O primeiro deles é o de que a afeição de Cristo por nós, mencionada
pelo versículo, refere-se inequivocamente à sua natureza humana, e não só à
sua Divindade — visto que é mencionada com relação à natureza na qual
ele foi tentado como nós somos agora. Isso fica evidente no texto, de modo
tal que só é possível referir-se à sua natureza humana.
O segundo ponto é o de que não consigo conceber que esse tipo de
expressão, usada com referência a Deus antes de assumir nossa natureza —
unicamente em forma de metáfora e similitude, “conforme a maneira de
falar dos homens” —, não deva ser usada em sentido mais real e próprio a
respeito de Cristo e de sua natureza, agora que assumiu forma humana, e é
homem de forma tão verdadeira e completa como nós. Digo isso com base
naquilo que já apresentei: que um dos propósitos de Cristo ao tomar para si
a natureza humana era para que estivesse apto a “ser misericordioso e fiel
sumo sacerdote”, de tal forma que, fosse ele somente Deus, isso não
aconteceria.
Confesso que muitas vezes me vi perplexo com a expressão usada em
Hebreus 2.16–17:3 “Ele tomou sobre si a descendência de Abraão para
tornar-se sumo sacerdote de misericórdias”. À primeira vista, o texto parece
dizer que Deus tornou-se deveras mais misericordioso pelo fato de assumir
nossa natureza. Mas essa questão foi resolvida quando vi que o fato
acrescentou uma nova forma de Deus mostrar-se misericordioso, de
maneira que agora se pode dizer, para consolo e alívio da nossa fé, que, de
fato, Deus é misericordioso enquanto homem.
Toda essa análise ajuda a esclarecer nosso tópico: por ser em si mesmo
assaz glorioso e perfeito, sua glória não podia ser tocada pelo menor
sentimento de nossas fraquezas, nem ele em seu próprio Ser era suscetível a
qualquer dessas afeições de piedade e compaixão: “a Glória de Israel [...]
não é homem, para que se arrependa” (1Sm 15.29). Contudo, o Senhor
agora pode, de fato, apiedar-se de nós quando estamos sob tormenta, à
semelhança de um homem que se compadece dos seus. As afeições e os
sentimentos em si mesmos, porém, não o afetam. Um dos porquês de Deus
tê-la escolhido, entre outros fins para assumir a natureza humana, foi para
que, dessa forma, ele pudesse ser amoroso e misericordioso com os
homens, à semelhança do homem que assim age com o seu próximo.
Desse modo, aquilo que, no Antigo Testamento, foi proferido de
maneira inadequada e em forma de metáfora e semelhança, a fim de que
entendêssemos, pode agora ser, de fato e realmente, atribuído ao Salvador.
Pode-se, para sempre, dizer que Deus, como homem, se compadece de
nossas fraquezas e se comove com nossas enfermidades como homem.
Sendo assim, por meio dessa feliz união de ambas as naturezas, a
linguagem do Antigo Testamento, total e unicamente como figura de
linguagem, comprova-se e consuma-se como realidade — bem como as
sombras que representavam Cristo foram nele mesmo cumpridas. Esse é o
primeiro passo em direção à compreensão do que se diz aqui a respeito de
Cristo, a partir dessa comparação com as mesmas realidades atribuídas ao
próprio Deus.

SEGUNDO PASSO
Além disso, uma segunda medida para compreender esse tópico é a
comparação com os anjos e com os sentimentos de amor e compaixão que
certamente se encontram neles. Em comparação com os anjos, as afeições
da natureza humana de Cristo, conquanto glorificada, necessariamente hão
de ser muito mais semelhantes às nossas, mais ternas e mais humanas. Essa
é a razão por que Hebreus 2.16 declara claramente: “Porque ele com certeza
não assumiu a natureza dos anjos, para poder ser um misericordioso sumo
sacerdote”. Em parte, essas palavras pretendem não só provar a razão pela
qual Cristo tomou para si nossa natureza, em um corpo tão frágil (embora o
apóstolo mencione isso em Hebreus 2.14), mas também dar a razão de ter
assumido a natureza humana — devido à sua essência —, e não a natureza
dos anjos, uma vez que, em suas afeições de misericórdia, o Senhor haveria
de, eternamente, aproximar-se de nós, e ter os mesmos tipos de afeto que
nós. Com respeito a outros aspectos, um anjo, pelo contrário, teria sido um
sumo sacerdote muito mais distinto e glorioso do que seriam os homens.
Agora, sendo nossos conservos, como o anjo a si mesmo denominou
(Ap 22.9), eles têm afeições mais semelhantes às nossas do que as de Deus,
tendo, portanto, melhor condição de compreender nossos sofrimentos.
Embora sejam espíritos, eles partilham de algo análogo ou semelhante que
reage aos afetos de aflição e compaixão, que se encontram em nós. De fato,
assim como essas afeições estão em nossa alma, à parte das paixões do
corpo, cuja união é com a alma, elas são semelhantes àquelas que os anjos
possuem. Por essa razão é dito que as mesmas concupiscências que estão no
homem estão também nos demônios (Jo 8.44). Por isso, também, é dito que
os demônios temem e tremem. Assim, antagonicamente, as mesmas
afeições que estão no homem, por serem de origem espiritual — e é no
espírito e alma que eles estão —, necessariamente estão também nos anjos
de luz.
Cristo, porém, tendo natureza humana, da mesma substância que a
nossa, constituída de alma e corpo, embora transformado em corpo
espiritual quando glorificado, não se tornou, contudo, um espírito somente:
“um espírito não tem carne nem ossos, como vedes que eu tenho”, diz
Cristo a respeito de si mesmo, depois de ressurreto (Lc 24.39). E é por essa
razão que o Salvador tem afeições por nós, mais próximas e semelhantes às
nossas que as dos anjos.
Após essas duas análises, devemos compreender duas coisas: primeiro,
que, na natureza humana, embora glorificada, as afeições compostas de
misericórdia e compaixão são verdadeiras e reais, mas não atribuídas de
forma metafórica, quando outrora se referiam à natureza divina. Segundo,
tais afeições são mais próximas e semelhantes às nossas do que aquelas que
estão nos anjos; são afeições próprias da natureza do homem e
verdadeiramente humanas. Cristo possuía essas afeições, apesar de sua
natureza humana ter sido, desde o momento em que a assumiu (no estado
de humilhação), tão gloriosa quanto agora que ele está no céu.
TERCEIRO PASSO
Agora, acrescente a isso tudo que Deus ordenou a realidade de tal forma
que, antes mesmo que assumisse sua natureza humana com a glória que
tinha no céu e sobre aquela depositasse esta, o Filho teria de vestir sua
própria humanidade com todas as nossas fraquezas, as mesmas com que
lidamos de perto, e de viver, à semelhança de homem, por muitos anos
neste mundo. Nesse ínterim, Deus preparou para Cristo toda sorte de
aflições e sofrimentos, iguais àquelas com as quais nós nos deparamos. Em
todo esse tempo, Jesus conheceu de perto os mesmos infortúnios e os
experimentou. Deus o submeteu a essa fraqueza e fragilidade de espírito,
para que assim experimentasse todo tipo de aflição com a mesma
intensidade que sentimos (mas sem pecado), e pudesse desenvolver as
mesmas afeições sob as aflições que em todo tempo vemos se agitando em
nosso coração.
Deus ordenou tudo isso visando preparar-lhe o coração para que,
estando na glória, Cristo pudesse ter o tipo de afeições que o texto
menciona, o qual o afirma como propósito de Deus — bem como assevera a
referência anterior, Hebreus 2.14: “Visto, pois, que os filhos [ou seja, os
seus membros] têm participação comum de carne e sangue”,frase que
destaca as debilidades da natureza humana. Também vemos isso em
1Coríntios 15.50: “destes também ele, igualmente, participou [...] para ser
misericordioso e fiel sumo sacerdote” (Hb 2.17).
O apóstolo, assim, apresenta a seguinte razão para tanto: “Pois, naquilo
que ele mesmo sofreu, tendo sido tentado, é poderoso” — como já
explicado, poderoso para ter um coração apto e habilitado por experiência
própria, para ter compaixão “para socorrer os que são tentados”. Quer dizer,
não seria o simples assumir da natureza humana, já desde o princípio
gloriosa, que o capacitaria para a compaixão e ternura experimentais.
Apesar do quê, conforme já exposto, o conhecimento de nossos sofrimentos
obtidos dessa forma o torna verdadeira e realmente terno com os homens,
com afeições humanas (próprias de um ser humano) e, dessa forma, mais
próximas e semelhantes às nossas do que as existentes nos próprios anjos,
ou às atribuídas à Divindade quando é dito que ele se compadece de nós.
Além disso, contudo, o fato de assumir nossa natureza o revestiu de
fragilidades e, ao viver neste mundo, à semelhança de homem, isso
capacitou para sempre o seu coração pela experiência para identificar-se
com nosso coração e com os nossos mais profundos sentimentos. Não
apenas ou simplesmente para conhecer a aflição e, como homem, ser
influenciado por afeições humanas por alguém da mesma espécie, mas de
forma experimental, trazendo à memória os sentimentos que já havia
provado em si mesmo.
O texto também dá a entender que esse foi o meio pelo qual nossas
aflições influenciaram com mais profundo vigor o coração de Cristo, agora
que está no céu. “Porque não temos sumo sacerdote que não possa
compadecer-se das nossas fraquezas; antes, foi ele tentado em todas as
coisas, à nossa semelhança, mas sem pecado” (Hb 4.15). Com o propósito
de nos confortar com essa verdade, veja como o apóstolo fala sobre a
profundidade e amplitude das tentações de Cristo aqui na terra.
Inicialmente, ele trata do tipo de tentação, ou das inúmeras formas de
tentação com as quais, conforme é dito, Cristo foi tentado, isto é, “em todas
as coisas”, ou em coisas de todo tipo, nas quais nós somos tentados. Além
disso, ele aborda a maneira como Cristo é tentado. É acrescentado, também,
que tudo isso foi “à nossa semelhança”. Tendo o seu coração de tal modo
afetado, ferido, traspassado e angustiado em todas as provações com as
quais estamos acostumados (mas sem pecado), Deus fez com que todos os
sentimentos de Cristo permanecessem em plena e prontamente sensível com
respeito ao pecado. Cristo considerou com a maior gravidade tudo o que lhe
sucedeu. Ele não menosprezou nenhuma aflição, quer viesse de Deus, quer
dos homens; mas as recebeu e as sentiu com plena intensidade. Sim, seu
coração tornou-se mais terno do que o de qualquer um de nós, em toda sorte
de sentimentos, incluindo o amor e a compaixão. Isso fez de Cristo um
“homem de dores”, conforme Isaías 53.3 — e isso mais do que qualquer
outro homem já foi ou pode vir a ser.
Daquilo que acabo de dizer e daquilo que o texto continua a falar, não
é difícil explicar a maneira como nossos sofrimentos comovem o seu
coração e despertam em Cristo esses sentimentos de piedade e compaixão.
(1) O fato de compreender e conhecer a natureza humana confere a
Cristo, a Cabeça, senso e percepção de tudo o que acontece com seus
membros aqui na terra. Quanto a isso o texto é claro, pois o apóstolo
menciona, para nosso encorajamento, que “Cristo se compadece das nossas
fraquezas”, o que não nos serviria de auxílio caso o Salvador não as
conhecesse de forma pessoal e integral; e, caso não as conhecesse todas,
não teríamos consolo, porque não saberíamos quais ele conhece e quais lhe
seriam desconhecidas.
O apóstolo corrobora nossa análise acerca da natureza humana, porque
ele se refere à natureza que foi tentada neste mundo. Por isso “o Cordeiro
que foi morto” e, portanto, “o homem Cristo Jesus” (Ap 5.6), é apresentado
como quem tem “sete olhos” e “sete chifres”, sendo os sete olhos “os sete
Espíritos de Deus enviados por toda a terra”. Seus olhos, olhos da
Providência, por meio da unção com o Espírito Santo, estão em todos os
lugares do mundo e enxergam todas as coisas que são feitas debaixo do sol.
Da mesma forma, ele é descrito como quem possui “sete chifres” de poder,
e “sete olhos” de conhecimento, e ambos são sete, para mostrar a perfeição
deles, cujo alcance abrange todas as coisas. Assim, porquanto “todo o poder
no céu e na terra” é concedido a ele como Filho do Homem, conforme diz a
Escritura (Mt 28.18), assim também todo o conhecimento lhe é dado a
respeito de todas as coisas operadas no céu e na terra — e isso também
como Filho do Homem.
Seu conhecimento e poder são de igual amplitude. Ele é o Sol tanto
com respeito ao conhecimento quanto com respeito à justiça, e não existe
coisa alguma oculta de sua luz e brilho, os quais sondam os lugares mais
obscuros do coração dos filhos dos homens. Ele conhece as aflições, como
Salomão diz, e as angústias do coração. Como um espelho em forma de
globo pendurado no centro de uma sala reflete tudo o que é feito dentro de
determinado ambiente, assim também o entendimento ampliado da natureza
humana de Cristo percebe as preocupações deste mundo, as quais ele foi
designado a governar, em especial os sofrimentos dos seus membros — e
isso de forma direta e imediata.
(2) Sua natureza humana, tendo o conhecimento de todas as coisas —
“Conheço as tuas obras, tanto o teu labor como a tua perseverança” (Ap
2.2) —, lhe traz à memória e evoca a maneira como ele próprio já se viu
atacado e se sentiu angustiado enquanto esteve aqui na terra, sob os mesmos
sofrimentos. Ele ainda mantém a lembrança das coisas deste mundo, assim
como acontece com todos os que morreram, tanto os que estão no paraíso
quanto os que estão no inferno. “Filho, lembra-te de que recebeste os teus
bens em tua vida, e Lázaro igualmente, os males”, diz Abraão à alma do
rico no inferno (Lc 16.25). “Jesus, lembra-te de mim quando vieres no teu
reino”, disse o ladrão a Cristo (Lc 23.42). E, em Apocalipse 1.17–18, Jesus
declara: “eu sou [...] aquele que vive; estive morto, mas eis que estou vivo”.
Ele ainda se lembra da própria morte e dos próprios sofrimentos, e, assim
como deles se recorda para apresentá-los ao Pai, assim também deles se
lembra de modo a ter seu coração tocado por aquilo que sentimos. Visto que
a sua memória lhe traz nitidamente a lembrança daquilo que já lhe
aconteceu, Cristo sabe exatamente o que nos sucede e, assim, é
“influenciado” por tal afeição. Do mesmo como aconteceu com Dido,4 na
Eneida de Virgílio: “Haud ignara mali, miseris succurrere disco”
(“Conhecendo por experiência própria a desventura, sei socorrer os
infelizes”).
Assim como Deus disse aos israelitas que, quando fossem tomar posse
de Canaã, como sua própria terra, se compadecessem dos estrangeiros e os
tratassem bem (“vós conheceis o coração do forasteiro, visto que fostes
forasteiros na terra do Egito” (Êx 23.9), o Salvador conhece o coração dos
seus em seu sofrimento, uma vez que ele mesmo já esteve na mesma
situação. Ou, como o apóstolo exorta: “Lembrai-vos dos encarcerados,
como se presos com eles; dos que sofrem maus tratos, como se, com efeito,
vós mesmos em pessoa fôsseis os maltratados” (Hb 13.3), visto que o
mesmo poderia acontecer com eles. Igualmente Cristo, Cabeça do corpo,
fonte de todos os seus sentimentos, lembra-se dos membros que estão
presos e em adversidade, uma vez que ele mesmo já esteve e sofreu isso no
corpo, portanto apto a, com propriedade, compadecer-se deles.
Estamos, então, em um solo ainda mais profundo. Aprendemos isto
também: Cristo não só possui essas afeições reais e próprias à natureza
humana, mas também elas, à medida que despertadas nele a partir da
similar experiência por que já passou sob a mesma fragilidade, são o
caminho de entrada dos nossos sofrimentos para o coração de Cristo agora,
de forma que aquilo que sentimos e aquilo por que passamos atinge e afeta
o coração do Salvador.
II. Caracterização do tipo de aflição presente no coração de Cristo.

Agora, faremos uma reflexão mais específica a respeito de que tipo de


afeição é essa: onde ela ocorre, se no espírito de Cristo ou na sua alma
somente, ou se em toda a sua natureza humana — hei de acrescentar
algumas advertências.
Quanto a esse sentimento de clemência e compaixão, de empatia e
misericórdia, ou de sofrer como se o sofrimento fosse seu (de acordo com o
texto bíblico), que é o produto, o resultado ou aquilo que é produzido em
seu coração pelos nossos sofrimentos, ainda há algo mais específico que
devemos examinar, ou seja, que tipo de sentimento é esse, visto que, por
aquilo que podemos inferir do texto bíblico, o sentimento despertado em
Cristo é muito mais do que um simples entendimento ou lembrança daquilo
por que outrora ele mesmo passou.
O apóstolo afirma que o Salvador não só se lembra de ter sido tentado
pelas mesmas fraquezas com que nós somos (embora seja algo
subentendido, necessariamente), mas que também se comove ao ser
consciente de nossas enfermidades, sentimento esse que suas memórias
ajudam a suscitar. Ele afirma que Cristo é capaz de sentir compaixão e seu
coração é suscetível a esse tipo de afeto. Isso fica claro pelo uso da palavra
grega συμπαθῆσαιs (sympathēsais), que é um termo profundo e significa:
“sofrer junto até que o objeto do sofrimento tenha obtido alívio”. Esse
sentimento, assim despertado, é que move o seu coração para nos socorrer.
Além do mais, de acordo com o que tenho exposto, penso que
ninguém neste mundo seja capaz de medir até onde se estende e quão
profunda é a afeição de Cristo. Se, como diz Salomão, cor regis (o coração
do rei) é inescrutável, quanto mais o coração do Rei dos reis, agora na
glória! Não pretendo “intrometer-me em coisas que não vi” (Cl 2.18 –
ARC), mas procurarei falar de modo seguro e, por isso, com cautela até
onde a luz da Escritura e o correto uso da razão me permitem.
Apresento isso de três formas: Negativamente; Positivamente;
Especificamente.

NEGATIVAMENTE
É certo que esse sentimento de empatia ou misericórdia em Cristo não é, em
todas as formas, o tipo de afeição que havia nele, nos dias da sua carne — o
que fica claro por meio das palavras do apóstolo acerca das afeições do
Salvador naquele tempo: “O qual, nos dias da sua carne, oferecendo, com
grande clamor e lágrimas, orações e súplicas ao que o podia livrar da morte,
foi ouvido quanto ao que temia” (Hb 5.7 – ARC). Vê-se assim seu estado e
sua situação aqui na terra, denominada de “os dias da sua carne” (como
forma de estabelecer a diferença e distinção da sua posição agora no céu),
querendo dizer por “carne” não a essência da natureza humana, pois ele
ainda a conserva agora, mas sua frágil sujeição à mortalidade ou à sua
possibilidade. É assim que a palavra “carne” costuma ser usada, por
exemplo, “toda a carne é erva”. A natureza humana é descrita dessa forma
por estar sujeita ao desvanecimento, ao desgaste, à decadência, por causa
dos infortúnios exteriores ou devido às paixões interiores.
Assim, em Hebreus 2.14: “Visto, pois, que os filhos”, ou seja, nós, os
irmãos do Filho, “têm participação comum de carne e sangue”, isto é, as
fragilidades da natureza humana, “destes também ele igualmente
participou”. Consequentemente, o apóstolo cita como exemplo, nas palavras
seguintes de Hebreus 2.14, que, assim como Cristo estava sujeito à morte
nos dias de sua carne, da mesma forma também esses frágeis sentimentos e
afeições causavam-lhe sofrimento, exaustão e debilidade, profunda tristeza,
acrescida de forte clamor e lágrimas e temor, bem como o que o apóstolo
menciona: “foi ouvido quanto ao que temia”. Agora que os “dias da sua
carne” passaram (pois, de acordo com o apóstolo, foram coisas exclusivas
àquele tempo), suas intensas manifestações de tristeza e temor acabaram, e
não mais lhes é suscetível nem sujeito.

POSITIVAMENTE
Por que não é possível afirmar que, devido à essência, a mesma
misericórdia e compaixão que operavam em sua completa humanidade,
corpo e alma, quando aqui neste mundo, permanecem operando agora, que
Cristo está no céu? Isso pode ser afirmado, mas com as devidas cautelas e
considerações a seguir. Depois da ressurreição, Cristo apareceu aos
discípulos em carne e osso (Lc 24.39; Jo 20.27), uma vez que somente essas
partes podiam ser tocadas e sentidas. Não obstante, o sangue e a afeição
estão contidos naquela carne e — porquanto caro vitalis (carne viva) —
nela correm e se movem.
Então por que não estão ali, agora que está no céu, também as mesmas
afeições? Porque elas não só se movem na alma, mas operam também no
corpo. E, exatamente por esses domínios estarem unidos um ao outro, tais
afeições permanecem como sentimentos humanos reais. A função do
sangue e do seu vigor é nutrir (função essa que, para mim, agora cessou) o
coração e o âmago do corpo, deslocando-se nele todo, quando a alma
demonstra afeição. Não sei por que tal função não haveria de permanecer
(e, se não for esse o seu papel, não faço ideia de qual seria). Também não
vejo por que esses sentimentos deveriam restringir-se apenas ao espírito ou
à alma de Cristo, nem por que suas capacidades físicas deixariam de
participar deles. Porque, assim como o Filho é verdadeiramente homem, o
mesmo homem de outrora, tanto no corpo quanto na alma (pois de outra
forma a sua ressurreição não seria verdadeira ressurreição), assim também
ele ainda mantém os mesmos sentimentos humanos, tanto no corpo quanto
na alma, afeições cuja base e instrumento são o corpo e a alma. Visto que
esse homem, que em sua inteireza é corpo e alma, foi tentado, e porque ele
se comoveu naquela natureza que foi tentada, logo é necessário que isso
ocorra no homem inteiro, isto é, corpo e alma.
Lendo a respeito da “ira do Cordeiro” (Ap 6.16) contra seus inimigos,
e acerca da sua misericórdia e compaixão por seus amigos e membros, por
que deveria isso ser atribuído apenas à sua Divindade (que, num certo
sentido, não está suscetível à ira) ou apenas à sua alma ou espírito? E por
que não se pode pensar que Cristo está de fato irado como homem, em sua
integralidade, com ira tal que esteja relacionada também com seu corpo e
sua alma (uma vez que ele tomou sobre si nossa natureza de forma integral,
tornando-a útil a todos os propósitos de sua natureza divina)?
Agora, contudo, com respeito à nossa capacidade de compreender, a
dificuldade reside em saber até que ponto devemos distinguir a fraqueza e a
fragilidade que havia nessas afeições dos “dias da sua carne”, e como
devemos diferenciar os sentimentos que Cristo tinha aqui e os que ele
agora tem no céu. Tenho pouco a dizer a esse respeito.
Em primeiro lugar, devo estabelecer este axioma incontestável, de que,
na mesma extensão ou sentido em que seu próprio corpo tornou-se
espiritual (como é chamado em 1Co 15.44), nessa mesma acepção, todos
esses sentimentos operantes em sua carne foram feitos espirituais — em
oposição à maneira carnal e frágil como operavam neste mundo. E assim
como seu corpo tornou-se espiritual, e não espírito (espiritual com respeito
ao poder e à semelhança de um espírito, mas não à essência ou natureza),
assim também suas afeições compostas de misericórdia e compaixão
operam não apenas em seu espírito ou alma, mas também em seu corpo,
enquanto lugar e instrumento — embora com operação mais espiritual, e
mais semelhante aos espíritos do que os sentimentos que operam num corpo
de carne, que é um corpo frágil. São afetos não inteiramente espirituais,
pois não só a alma lhes está sujeita, nem ela unicamente é que os manifesta,
de modo que essa é a diferença entre os seus sentimentos agora e os que
tinha nos “dias da sua carne”.
Não pensemos que o corpo de Cristo transformou-se numa substância
semelhante à luz do sol, para que assim a alma, como que num recipiente de
vidro, ali resplandecesse de forma gloriosa. Mas, sim, que o corpo está
unido à alma e é por ela influenciado diretamente, sobre ele exercendo
algum tipo de efeito. O corpo é chamado de espiritual não por cessar de sê-
lo, mas porque não mais é o mesmo. Ele está de tal forma adequado à alma
que, sem intermediários, agora se mantém integralmente sujeito debaixo do
seu comando e domínio, à bel-prazer do seu uso, dirigindo-o e movendo-o
instantaneamente, sem embaraço nem impedimento, como se movem os
próprios anjos ou como se movimenta a própria alma. De forma que esta
talvez seja uma diferença: as afeições do corpo de Cristo não mais
influenciam sua alma como outrora, ainda que, nos “dias da sua carne”,
estivessem sob o controle da graça e da razão, refreadas, assim, da
desordem e da pecaminosidade. Além do mais, a alma, doravante poderosa
por seu próprio arbítrio, imediata e integralmente anima e desperta tanto
esses afetos quanto a si mesma.
Em segundo lugar, e consequentemente, afeições de compaixão e
misericórdia, despertados assim pela alma, embora induzam seu íntimo e
influenciem seu coração físico ainda da mesma maneira, já não o afligem
nem o perturbam de forma alguma; nem se tornam um fardo ou carga para
seu espírito, enchendo-o de pesar ou tristeza — à semelhança desta vida, no
caso de Lázaro, e no momento das angústias finais, que o entristeceram até
morte. Digo, portanto, que suas afeições têm agora outro modo de operar,
porquanto diferem da forma como eram aqui neste mundo. É que o seu
corpo, seu sangue e seu vigor, seus instrumentos de influência, são, agora,
totalmente impassíveis; ou seja, nesse sentido, não estão suscetíveis à
menor variação ou aflição. Dessa forma, nem seu corpo nem sua disposição
estão sujeitos ao desgaste, deterioração ou perda. Todos estão aptos a servir
a alma em suas afeições, conforme o fizeram enquanto Cristo esteve aqui na
terra. Mas isso apenas por movimentos internos, isto é, circulando nas veias
e artérias, para influenciar-lhe o coração e o íntimo, sem deixá-lo perder o
vigor e nem desfalecer.
O processo é o seguinte: embora seu sangue e vigor ainda despertem
os mesmos sentimentos em seu coração, não é mais como antes. Agora,
porém, agem sem a menor perturbação, dano ou prejuízo. Visto que, nesta
vida, o Filho foi atribulado e angustiado, mas “sem pecado” ou excesso,
agora, estando no céu, ele se compadece sem a menor influência de
preocupação ou perturbação, as quais necessariamente acompanhavam seus
sentimentos aqui na terra, devido à fragilidade da estrutura do seu corpo e
disposição. Sua perfeição não anula suas afeições, mas as corrige e
aperfeiçoa. Os melhores eruditos reconhecem que, agora, encontram-se em
Cristo as passiones perfectivas (perfeitas paixões).
Em terceiro lugar, tanto os eruditos como os teólogos reconhecem que
existem em Cristo todos os sentimentos naturais que não têm em si o status
indecentiam, qualquer coisa imprópria ao estado e condição de glória nos
quais agora se encontra. Como disse Justiniano:
Esses sentimentos, naturais no ser humano, e que não têm relação com o pecado ou degradação,
mas são totalmente governados pela razão e, em última instância, estão isentos de qualquer
efeito pernicioso sobre a alma e o corpo, não há por que pensar que não possam condizer com o
estado das almas que já se encontram na glória.

Cristo, então, agora na glória, tem os sentimentos humanos de


misericórdia e compaixão em sua plenitude, de forma que o despertam e
instigam a ajudar-nos e socorrer-nos; tais afeições não fazem dele outra vez
homem de dores (porquanto seria impróprio e conflitante), mas fazem com
que seja um homem que nos socorre, uma vez que este é o seu ofício.
Lembremo-nos, pois, de que, estando agora no céu, Cristo deve ser
considerado não só nos termos da alegria que tem em seu Pai, mas também
quanto ao seu relacionamento e suas funções como nosso Cabeça. É nesse
estado que ele agora se encontra, conforme Efésios 1.21–22; e a cabeça é o
centro de todos os sentimentos para o bem-estar do corpo, e, por isso, mais
sensível do que qualquer outra parte.
Assim sendo, porque seus membros, com os quais mantém tal relação,
ainda se encontram sujeitos ao pecado e ao sofrimento, não é de forma
alguma inadequado que o Salvador, no estado em que agora se encontra,
possua sentimentos apropriados a essa relação. Se tão só o seu trono de
glória fosse a causa toda de sua felicidade, logo essas afeições
remanescentes não teriam razão de ser. Contudo, seu relacionamento com
os homens, sendo parte e componente da sua glória, validam-nas. Sim,
seria-lhe inadequado não as ter. Esses sentimentos não constituem fraqueza
em Cristo, nem são assim considerados; são, porém, parte da sua força,
como o apóstolo os chama: poder (dynamis, no grego) — e ainda que por
um lado fossem tratados como imperfeição, por outro são a sua perfeição e
plenitude, isto é, em seu relacionamento e ofício de mediador. Cristo é,
como homem, o nosso Cabeça, cuja glória é ser verdadeiramente homem,
sensível a todos os nossos sofrimentos; sim, seria uma imperfeição de sua
parte caso não o fosse.
Em quarto lugar, permitam-me acrescentar, para nosso conforto, que
(1) embora esses afetos e afeições não mais lhe sejam adequados, ainda que
peso algum causem em seu espírito nem dano algum ao seu corpo; e (2)
mesmo que sua alma tenha deixado de operar sentimentos desse tipo, de
fragilidade e fraqueza, que o instigavam a, enquanto neste mundo,
compadecer-se dos homens que se encontravam em sofrimento e a socorrê-
los, sofrendo a pena em si mesmo; não obstante essas realidades, suas
afeições são as mesmas em essência, havendo, portanto, no lugar de
impetuosa fragilidade, maior capacidade, amplidão e também prontidão em
seus sentimentos agora no céu, de forma a constituir compensação,
despertando-o e incitando-o de modo mais eficaz a socorrer no presente
momento, sobrepujando os efeitos da sua carne.
Tão certo quanto seu conhecimento foi ampliado ao entrar na glória,
assim também seus sentimentos humanos de amor e compaixão alargaram-
se em solidez, vigor e realidade — o que também costuma acontecer com o
amor conjugal, mais abundante e deleitoso no princípio do matrimônio. Não
são menos intensos agora; tornaram-se, contudo, mais espirituais. E, tal
qual o coração de Salomão era abundante tanto em generosidade e
majestade quanto em sabedoria, de igual forma o amor manifesto de Cristo
é amplo em sabedoria e poder. Sua feição de amar tem sempre a mesma
extensão e medida. Proporcional à vontade de Deus em querer manifestar
misericórdia (quem porventura conhece os limites da riqueza de suas ternas
misericórdias?) é a disposição de Cristo para concedê-la — “o amor de
Cristo”, o Deus-Homem, “excede todo entendimento” (Ef 3.19). Jesus não
o perdeu, o Salvador não o cessou quando foi para o céu. Embora, em
natureza divina, Cristo tenha à disposição mais misericórdia que em
natureza humana, a operação e o exercício das afeições de Jesus são tão
amplos quanto são os propósitos e decretos da misericórdia de Deus. Todos
esses sentimentos e afetos tornaram-se misericórdias de natureza humana,
misericórdias de homem para homem.

ESPECIFICAMENTE
Tais afeições do coração de Cristo não lhe causam sofrimento nem
tormento, mas é preciso dizer que, quando nos vê sofrendo e sujeitos a
fraquezas, há uma menor plenitude de alegria e bem-estar em seu coração,
se comparado a quando lhe somos apresentados livres disso tudo.
Para maior esclarecimento, devo relembrar a distinção que fiz (quando
expus o Quarto Compromisso, na seção 2 daparte II) de glória dobrada, ou
dupla plenitude de alegria, proposta a Cristo: uma, que é natural e devida à
sua pessoa considerada por si só; a outra, que provém da plena alegria e
glória de toda a sua Igreja, com a qual ele, de forma mística, é um com ela.
É isso que encontramos em Efésios 1.23, embora, devido à sua plenitude
pessoal, seja dito que ele “a tudo enche em todas as coisas”. Ele é o Cabeça
da Igreja, a qual é o seu corpo, assim como dizem os versículos anteriores,
de forma que a perfeição da bem-aventurança desse seu corpo é,
reciprocamente, chamada de sua plenitude. Por isso, até que os tenha
enchido de toda a felicidade e os tenha libertado de todo sofrimento, Cristo,
e também suas afeições, permanecem sob certo tipo de “imperfeição”,
condizentes com esse relacionamento. Há determinada imperfeição
enquanto os membros do seu corpo estão expostos ao sofrimento, a qual
findará quando, tendo eles recebido plenitude, seu coração estiver satisfeito.
Pode-se dizer, com segurança, que Cristo estará mais satisfeito (e já
está!) à medida que os seus não estiverem mais sujeitos às fraquezas e
conforme se tornam mais obedientes e satisfeitos no espírito (Jo 15.10–11).
Desejo ilustrar isso com a seguinte comparação (a qual, apesar de não se
aplicar em todos os detalhes, pode ao menos dar uma ideia do que estamos
falando). Em Hebreus 12.23, lemos que são perfeitos os espíritos dos
homens justos que já morreram. Contudo, pelo fato de terem corpos que
lhes pertencem, e aos quais lhes é ordenado que estejam unidos, a esse
respeito se pode dizer que são imperfeitos, até que sejam reunidos e
glorificados, o que lhes acrescentará maior plenitude. É assim, de certa
forma, que acontece entre Cristo, como a Segunda Pessoa da Trindade, e
Cristo considerado de “forma mística”, isto é, unido à sua igreja. Embora o
Filho, em sua própria pessoa, desfrute de plena alegria por seus membros,
ele é “imperfeito” nesse aspecto; suas afeições são apropriadas à relação do
Salvador com os homens, o que não o deprecia de forma alguma. Essa é a
razão por que a Escritura lhe atribui alguns sentimentos que se associam a
algumas imperfeições, e que estarão em Cristo até o Grande Dia. Assim,
são-lhe atribuídos esperança e desejo, que não passam de sentimentos
imperfeitos em comparação com aquela alegria que se encontra na plena
fruição do esperado ou desejado. Esses sentimentos lhes são atribuídos
como homem até o Dia do Juízo.
É assim que Hebreus 10.12-13 diz que Cristo encontra-se assentado no
céu “aguardando [...] até que os seus inimigos sejam postos por estrado dos
seus pés”, cuja destruição aumentará a glória manifesta do seu Reino. Ora,
do mesmo modo como esse evento expandirá a plenitude da sua grandeza,
assim também a completa salvação dos seus membros alargará a
completude da sua glória. Assim como se pode dizer que a expectativa da
destruição dos seus inimigos é um sentimento “imperfeito” em comparação
com o triunfo que no futuro obterá sobre eles, assim também é “imperfeita”
a alegria que Cristo agora tem em sua esposa, se comparada àquela que
encherá seu coração no grande dia das bodas.
Por essa mesma razão, a Escritura chama de satisfação o cumprimento
desse seu desejo, conforme Isaías 53.11: “Ele verá o fruto do penoso
trabalho de sua alma e ficará satisfeito”, deixando claro que o Salvador tem
anseios, que “sente falta” de algo a obter. Dito isso, lembremo-nos de que o
Senhor Jesus Cristo certamente sabe e vê o tempo exato quando será
completada essa sua plenitude mediante a exaltação dos seus membros em
sua glória e quando será o dia de pisar e esmagar todos os seus inimigos.
Ele vê aproximar-se esse dia, conforme diz o salmista, ocasião que acabará
com a imperfeição dessa sua expectativa e demora.
Resolvida essa questão, pergunto agora: como pode o seu coração se
compadecer por causa dos nossos pecados (nossa maior fraqueza), uma vez
que ele foi tentado em todas as coisas, mas sem pecado?
III. Resposta à objeção de que Cristo jamais soube o que é estar sob o
pecado.

Resta ainda uma grande questão que precisa ser esclarecida, questão
essa que se levanta em todo coração sincero. Alguém poderá dizer: “Se as
fraquezas são nossos pecados, e que o objetivo do apóstolo era encorajar-
nos quanto a eles também, os quais são nossa maior preocupação e
desencorajamento, acima de quaisquer outros, o que o apóstolo nos diz aqui
ajuda pouco com respeito aos pecados, uma vez que Cristo não consegue
compadecer-se de nós de forma experimental nesse aspecto, pois ele ‘não
conheceu pecado’. O próprio apóstolo ressalta isso: ‘foi ele tentado em
todas as coisas, à nossa semelhança, mas sem pecado’ (Hb 4.15). Na
verdade, somos confortados porque Cristo se compadece de nós em todas as
outras fraquezas, pois ele mesmo esteve sujeito a elas. Entretanto, Jesus
Cristo jamais soube o que é estar sob o pecado e ser importunado pela
concupiscência como acontece comigo. E de que maneira posso me
consolar quanto a isso, considerando o que o apóstolo diz a respeito de
Cristo?”. Quanto a essa objeção, apresentarei algumas explicações a seguir.
Em primeiro lugar, o apóstolo declara que, de fato, “ele foi tentado,
mas sem pecado”. Ele não cometeu pecado, e isso é boa notícia, pois, do
contrário, não seria um sacerdote apropriado para salvar-nos: “Com efeito,
nos convinha um sumo sacerdote como este, santo, inculpável, sem mácula,
separado dos pecadores” (Hb 7.26). Contudo, para nosso consolo, devemos
levar em consideração o fato de que ele chegou tão próximo a esse estágio
quanto possível. “Ele foi tentado em todas as coisas”, diz o texto, mas “sem
pecado”. Ele, porém, foi tentado a cometer todo tipo de pecado, a ponto de
ser atormentado durante as tentações, e de compreender o sofrimento
daqueles que são tentados, sabendo compadecer-se deles em cada ocasião.
Assim como o Salvador, ao tomar para si a nossa natureza humana,
aproximou-se de nós o máximo que pôde, sem ser maculado pelo pecado
original, tendo seu corpo feito da mesma matéria com que é feito o nosso,
de igual modo, quanto ao pecado em si, ele padeceu tentações até onde seria
possível padecer para conservar-se puro. Ele sofreu todo tipo de tentação da
parte de Satanás, assim como alguém que tomou um poderoso antídoto e é
submetido às experiências de um médico charlatão. E, de fato, porque ele
foi tentado por Satanás, o apóstolo acrescenta conscientemente: “mas sem
pecado”, como se ele dissesse que o pecado jamais maculou Cristo, apesar
de ter sido exteriormente tentado a cometê-lo. Satanás o tentou com todo
tipo de concupiscência, visto que as três tentações do deserto são o tema de
toda sorte de tentações, conforme nos ensinam os intérpretes dos
Evangelhos.
Em segundo lugar, para ser capaz de compadecer-se de nós no caso do
pecado, Cristo foi incomodado com a corrupção e poder do pecado
naqueles com quem convivia, mais do que qualquer de nós se incomoda
com o pecado no próprio ser. “Sua alma justa se afligia” com a situação,
assim como acontecia com a alma justa de Ló, no meio das companhias
impuras dos sodomitas. Ele “suportou tamanha oposição dos pecadores
contra si mesmo” (Hb 12.3). “As injúrias dos que te ultrajavam”, ou seja,
ultrajavam ao seu Deus, “caíram sobre mim” (Rm 15.3). O salmista disse
isso a respeito de Cristo e, por essa razão, o apóstolo cita o texto referindo-
se ao Salvador; ou seja, todo pecado atingiu seu coração. Ora, entre Jesus e
nós só existe a seguinte diferença: nossa parte regenerada é atormentada
tanto pelo pecado em si quanto pelo pecado que nos assola, mas o coração
de Cristo se atormenta tão só com o pecado que há nos outros. O tormento
pelo qual o Senhor passou era muito maior porque sua alma é mais justa do
que a nossa, o que torna maior o incômodo. Sim, porque presta socorro aos
eleitos, os pecados que Cristo os vê cometendo o perturbam como se
fossem seus próprios. A palavra grega πεπειραμένον (pepeiramenon), aqui
traduzida como “tentado”, é traduzida por alguns como “irritado”.
Em terceiro lugar, para melhor fortalecer a argumentação contra a
objeção, devo dizer que Cristo, enquanto estava neste mundo, “carregou as
nossas doenças” (Mt 8.17), mas nunca se viu pessoalmente maculado por
chaga alguma; pode-se dizer, portanto, neste mesmo sentido ou da mesma
forma, que ele carregou nossos pecados. Em outras palavras, quando se
dirigia a um eleito que estava doente e o curava, Cristo costumava primeiro,
por simpatia e compaixão, afligir-se a si mesmo com o doente, como se ele
próprio dela padecesse. Por isso é que, quando ressuscitou Lázaro, “agitou-
se no espírito e comoveu-se”. Isso acontecia porque tomava sobre si mesmo
a doença com sentimento de misericórdia, removendo-a deles, sendo por
eles afligido, como se ele mesmo estivesse doente.
Essa me parece a melhor interpretação do difícil texto em Mateus
8.16–17: “Chegada à tarde, trouxeram-lhe muitos endemoninhados; e ele
meramente com a palavra expeliu os espíritos e curou todos os que estavam
doentes; para que se cumprisse o que fora dito por intermédio do profeta
Isaías: Ele mesmo tomou as nossas enfermidades e carregou as nossas
doenças”. Agora, de forma semelhante, Cristo não só carrega nossas
doenças, mas também carrega nossos pecados; pois, sendo um conosco, e
com a finalidade de responder por todos os nossos pecados, quando vê
qualquer dos seus pecando, o Filho é movido, como se ele próprio pecasse.
Eis a razão de o problema do pecado estar resolvido.
Em quarto lugar, quanto à culpa do pecado e às tentações que nos
sobrevêm, Cristo as conhece melhor do que qualquer um de nós. Ele provou
a amargura do pecado quando este lhe foi imputado, mais profundamente
do que nós poderíamos suportar, e por ele bebeu do cálice da ira do Pai.
Jesus, portanto, tem condições, de forma experimental, de compadecer-se
de um coração ferido pelo pecado, e que se debate sob tentações. Ele
conhece muito bem o coração daquele que pensa ter sido abandonado por
Deus, visto que ele mesmo o sentiu quando bradou: “Deus meu, Deus meu,
por que me desamparaste?” (Mt 27.46).
IV. Aplicações Práticas

Primeira Aplicação Prática. Tudo o que foi dito até aqui serve de
forte consolação e encorajamento, mais do que qualquer outra coisa, para a
vitória sobre nossos pecados; além disso, nos concede a suprema segurança
de que foram afastados de nós, com base nos seguintes pontos:
(1) O próprio Cristo considera nossos pecados seus inimigos, dos quais
ele certamente se livrará. Seu coração não descansará enquanto não os tiver
eliminado. Como Deus fala por boca do profeta, assim também Cristo com
ainda mais intenso vigor: “ternamente me lembro dele; comove-se por ele o
meu coração” (Jr 31.20).
(2) Há consolo com respeito a essas fraquezas, uma vez que nossos
pecados despertam em Cristo antes compaixão que ira. O texto é claro a
esse respeito, pois o Filho sofre conosco sob tais fraquezas. Por “fraquezas”
o apóstolo quer dizer tanto pecados quanto todas as outras aflições,
conforme já argumentei. Por essa razão, podemos contemplá-los como
fraquezas, como o próprio Deus os contempla e fala deles, como se a
doença fosse do próprio Salvador, e podemos lamentar-nos perante Cristo a
respeito deles, e clamar: “Miserável homem que sou; quem me livrará?”
(Rm 7.24).
Por isso, deixemos de lado todo o medo. Cristo se identifica conosco e,
longe de indispor-se, ele volta a sua ira santo contra o nosso pecado, para
extirpá-lo. Sim, a compaixão do Senhor por nós aumenta ainda mais, tal
qual o coração de um pai para com o filho que padece de alguma doença
repugnante, ou como o leproso, que não odeia seu próprio membro afetado
pela lepra (pois é sua própria carne), mas odeia a doença em si, que causa
ainda maior compaixão pelo membro enfermo. Nossos pecados, que são
inimigos tanto de Cristo quanto de nós mesmos, motivam-no a compadecer-
se ainda mais de nós. Aquele a quem amamos e que se encontra em aflição
é o objeto de nossa compaixão; e, quanto maior a aflição, maior é a
compaixão, se o aflito é objeto do nosso amor.
Agora, de todas as aflições, o pecado é a maior, e enquanto nós o
consideramos dessa forma, Cristo o considerará assim, tão só por encontrar-
se em nós. Ele, por amar os seus, mas odiar unicamente o pecado que ainda
se encontra neles, dirige seu ódio exclusivamente para o pecado, para livrá-
los dele derrotando-o e destruindo-o. Contudo, seu afeto para conosco será
contínuo; e mesmo quando estivermos debaixo da influência de algum
pecado e enquanto estivermos sob alguma outra aflição. Por isso, não
temamos: “Quem nos separará do amor de Cristo?” (Rm 8.35).

Segunda Aplicação Prática. Qualquer que seja a provação, tentação


ou sofrimento em que nos encontremos, podemos nos consolar com o fato
de Cristo ter estado sob as nossas mesmas condições ou alguma semelhante
a elas, o que nos pode trazer consolo nos seguintes aspectos:
(1) Por meio dessas circunstâncias, somos conformados ao seu
exemplo, pois ele foi tentado em todas as coisas e isso é um grande consolo
para nós.
(2) Podemos olhar para essa ocasião específica em que Cristo esteve
sob a mesma circunstância como razão digna de procurar e obter socorro
para nós que estamos na mesma situação; e, dessa forma, a esse respeito,
também podemos nos consolar ainda mais.
(3) O fato de ele ter sofrido a mesma coisa deve nos consolar pelo
seguinte: Jesus, por experiência própria, conhece experiencialmente a nossa
dor e agonia e, por essa razão, se vê impelido e estimulado a nos socorrer.

Terceira Aplicação Prática. Assim como a doutrina acima exposta é


um grande conforto, assim também a maior motivação contra o pecado e a
favor da obediência é considerar que o coração de Cristo, embora não se
aflija com isso (e até que ponto ele sofre conosco não sabemos), ainda
assim certamente se alegra mais ou menos em nós, conforme pecamos mais
ou pecamos menos, ou somos mais ou somos menos obedientes. Não temos
a menor ideia dos golpes que o nosso pecado desfere no coração de Cristo!
Pode não passar disso, mas o prazer do Salvador por nós diminui; devemos,
portanto, comover-nos com zelo e diligência. Consideremos isto como
incentivo à obediência: se ele conserva por nós o mesmo coração e atitude
de misericórdia que tinha aqui na terra, então, em resposta ao seu amor,
esforcemo-nos para manter aqui na terra o mesmo coração pelo Senhor que
esperamos ter no céu. Para isso, oremos todos os dias: “Seja feita a tua
vontade assim na terra como no céu” (Mt 6.10).

Quarta Aplicação Prática. Em todos os sofrimentos e angústias,


saibamos, com segurança, que temos um Amigo que nos ajuda e que se
compadece de nós. Alguém que está no céu, Cristo; aquele cuja natureza,
ofício, interesse, relacionamento, tudo enfim converge para o nosso socorro.
Sabemos que as pessoas, mesmo os amigos, por vezes são injustas, e que os
seus sentimentos vão-se embora. Por isso, devemos dizer: “Tudo bem, se
não quiserem compadecer-se de mim, conheço alguém que me oferecerá
misericórdia, aquele que está no céu, cujo coração se compadece de minhas
fraquezas, e, sendo assim, vou apresentar minhas queixas diretamente a
ele”.
Portanto, “acheguemo-nos confiadamente”, diz o texto bíblico, isto é,
aproximemo-nos dele de coração aberto, para expor diante dele nossas
queixas, e encontraremos graça e misericórdia para socorro no tempo
oportuno. A maioria gosta de receber a compaixão de seus amigos, mesmo
quando estes não os conseguem ajudar. O nosso Salvador, contudo, há de
compadecer-se de nós e nos socorrer em ocasião oportuna.

2 Termo usado na teologia para indicar uma atribuição de sentimentos humanos a Deus, a fim de
comunicar verdades divinas em linguagem humana. Ver explicação de Thomas Goodwin mais
adiante. – N. do E.
3 O Autor segue o texto da Bíblia King James Version, que registra o versículo 16 da seguinte forma:
“Porque ele com certeza não assumiu a natureza dos anjos; mas tomou sobre si a descendência de
Abraão”, assinalando com itálico o texto que não consta no original grego, tradução que, pelo
contexto anterior e posterior do versículo, parece muito mais coerente e esclarecedora do que a
tradução que diz: “Pois ele, evidentemente, não socorre anjos, mas socorre a descendência de
Abraão”. – N. do T.
4 De acordo com antigas fontes greco-romanas, Dido foi a fundadora e primeira rainha de Cartago
(atual Tunísia). Quem primeiro registrou informações sobre ela foi o poeta romano Virgílio, em sua
obra Eneida. – N. do E.
ÍNDICE DE REFERÊNCIAS BÍBLICAS
ANTIGO TESTAMENTO
Gênesis
45—82
45.4—40, 82
45.8—82
45.9—82

Êxodo
23.9—127
32.11s—90
32.14—90
32.32—90

Levítico
4.2, 5—98
6.2–3—98
6.6—98

1Samuel
15.29—120

Ester
8.6—82

Salmos
16.11—78, 106
40.8—62
45—78, 104, 109
45.2—103
45.4—78, 104
45.6—104
45.7—78
45.10–11—109
81.10—34

Provérbios
10.1—112
25.5—103

Cantares
5.1—85

Isaías
11.2—77
27.3—108
49.15—88
53.3—125
53.10—29
53.11—139
61.1–2—102
63.1–2—84
63.15—84
63.16—84

Jeremias
31.20—143

Ezequiel
34.16—102

Oseias
2.19—88
NOVO TESTAMENTO
Mateus
6.10—145
8.16–17—142
8.17—142
11.27—69
11.28–29—68, 69
12.18–19—75
12.20—75
27.46—143
28.18—126

Marcos
16.14—43
16.15–16—42

Lucas
1.78—71
2.49—26
4.1—74
4.14—74
4.18—75
12.36—23
12.36–37—23
16.25—127
23.42—92, 127
23.42–43—92
24.21—39
24.25—43
24.39—122, 131
24.49—42
24.50—45
24.51—45

João
1.11—21
6.37—61
6.39–40—61
7.37—52
7.38—52
7.39—79
8.44—122
10.15—61, 62, 91
10.15–18—61
10.16—44, 102
10.17–18—63
10.18—61, 64
11.16—43
13—17, 20, 21, 23, 24
13.1—17, 20, 21, 83, 88
13.1-5—20
14—26, 28, 29, 32, 33, 34, 77
14.2—26
14.3—26, 28
14.11—33
14.12—33
14.12—47
14.13—34
14.14—34
14.16—30, 33
14.16–17—32
14.17—32, 33
14.19—29
14.20—32
15.9-10—110
15.9-11—110
15.10—65
15.10–11—138
15.10, 12—110
15.11—110
15.13—91
16.4—19
16.7—26, 30, 31
16.13—31, 32
16.14—31
16.16—29
16.21—41
16.23—34
16.26—35
17—36
17.4—36
17.10—37
17.10, 22–23—109
17.13—37
17.15—22
17,15,16—35
17.20—25
17.23—64
17.24—36, 37
20.17—39
20.19—41
20.21—41
20.27—131
20.29—43
20.30—44
21.15—43

Atos
2—78, 79
2.24—91
2.33—45
2.36—78
4.29–30—47
9.4—86
10.37—74
10.38—78
26.16–18—49

Romanos
7.2—81
7.24—143
8.26—46
8.35—144
12—101
12.8—101
15.3—141
15.8—102

1Coríntios
2.12, 16—32
11.24–26—93
12.12—83
12.26—83
15.44—132
15.50—123

2Coríntios
8.23—109
11.30; 12.5—56
12.16, 13—35
Gálatas
1.11–12—48
3.4—92
4.11—90
4.19—90

Efésios
1—104, 107, 135, 137
1.13—104
1.20–21—107
1.21—58
1.22–23—107
3.15—84
3.19—137
4.8, 12—45
4.15–16—46
5.25—25, 85, 87, 109
5.25–27—25
5.26–27—87
5.27—109
5.28—108
5.29—83
5.30—86
5.31–33—85

Filipenses
1.8—70

Colossences
2.18—129
3.12—66
3.12—63

1Tessalonicenses
2.8—70
2.19–20—111
3.6–7—72
3.8—72

1Timóteo
1.13—48
1.15—48
5.8—83

Hebreus
1.8—104
2.3–4—47
2.9—85
2.11—40, 85
2.14—67, 87, 121, 123, 130
2.16—113, 120, 121
2.16–17—113, 120
2.17—100, 123
2.18—97, 100
3—105
3.2—101
3.5—105
4—17, 55, 57, 93
4.14—57
4.14–16—93
4.15—17, 55, 118, 124, 140
4.16, 5.1—95
5—56, 94, 96, 97, 101, 113
5.1—96
5.1–3—94
5.2—56, 96
5.4—97
5.7—130
6.20—27
7.24—102
7.25—35
7.26—103, 140
8.6–7—63
10.5—67
10.12–13—138
10.37—29
12.3—141
12.22–24—27
12.23—21, 138
12.25—46
13.3—128
13.8—82, 92

1Pedro
1.4—27
2.25—102

3João
3—112

Apocalipse
1.1—49
1.4—79
1.17–18—127
1.18—50
2.2—126
5.6—126
6.16—132
21.6—51
22.9—122
22.16–17—50
22.17—50, 51
22.20—51, 52
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• A Ceia do Senhor (Thomas Watson)

• Adoração Evangélica (Jeremiah Burroughs)

• Adoração Reformada: A Adoração que é de Acordo com as Escrituras (Terry Johnson)

• A Confissão de Fé Belga (Guido de Brès)

• A Família na Igreja (Joel Beeke)

• A Feminilidade Bíblica e a Esposa de Lutero (Valdecélia Martins)

• A Igreja Apostólica (Thomas Witherow)

• A Igreja de Cristo (James Bannerman)

• A Igreja no Velho Testamento (Paulo Brasil)

• A Palavra Final (O. Palmer Robertson)

• A Queda dos Iluminados (Moisés Bezerril)

• A Unção com Óleo e a Exegese de Tiago 5.14 (Moisés Bezerril)

• A Vida do Profeta Elias (A. W. Pink)

• A Visão Federal e os Padrões de Westminster (Alan Rennê)

• As Bases Bíblicas para o Batismo Infantil (Dwight Hervey Small)

• As Obras de João Calvino — Volume 1 (João Calvino)

• As Três Formas de Unidade das Igrejas Reformadas

• Calvino e Seus Inimigos: Memórias da Vida, Caráter e Princípios do Reformador (Thomas Smyth)

• Catecismo Maior de Westminster: Comentário (Johannes Geerhardus Vos)

• Catecismo Maior de Westminster: Origem e Composição (Chad B. Van Dixhoorn)

• Crente Também Tem Depressão (David Murray)

• Cristianismo e Liberalismo (J. Gresham Machen)

• Discipando a Tirania (Piet Prins)


• Diretório de Culto de Westminster (Teólogos de Westminster)

• Fazendo a Fé Naufragar: Evangélicos e Católicos Juntos (Kevin Reed)

• Figuras do Varão, um diálogo... (Manoel Canuto)

• Gênesis (Série Comentários Bíblicos Livro 1)

• Gênesis (Série Comentários Bíblicos Livro 2)

• Governo Bíblico de Igreja (Kevin Reed)

• João Calvino era Assim: A Vibrante História de um dos Grandes Líderes da Reforma (Thea B. Van
Halsema)

• Nada se Acrescentará — O que dizer de novas revelações hoje? (Josafá Vasconcelos)

• Neocalvinismo — Uma avaliação crítica (Cornelis Pronk)

• No Esplendor da Santidade (Jon Payne)

• O Berçário do Espírito Santo: Acolhendo as Crianças no Culto (Daniel Hyde)

• O Catecismo de Heidelberg (Zacarias Ursinos e Gaspar Olevianus)

• O Cristo dos Profetas (O. Palmer Robertson)

• O Espírito Santo (John Owen)

• O Espírito Santo: Esboço de Teologia Cristã (Sinclair B. Ferguson)

• O Herege Glorioso e Três Homens Chegaram a Heidelberg (Thea Van Halsema)

• O Livro da Vida (Valter Graciano)

• O Modernismo e a Inerrância Bíblica (Brian Schwertley)

• O Presbítero Regentes: Natureza, Deveres e Qualificações (Samuel Miller)

• O Que é a Fé Reformada (John De Witt, Terry Johnson e F. Solano Portela )

• O Uso de Imagens de Jesus (Manoel Canuto)

• Os Cânones de Dort (Teólogos do Sínodo de Dort)

• O Pacto da Graça: Um Estudo Bíblico-Teológico (John Murray)

• Os Puritanos e a Lei Moral (Alan Rennê)


• Perspectivas Sobre o Pentecostes: Estudos sobre o Ensino do Novo Testamento Acerca dos Dons
(Richard Gaffin)

• Por Que Devemos Cantar os Salmos (Joel Beeke, Terry L. Johnson e Daniel Hyde)

• Predestinação no Antigo Testamento (Moisés Bezerril — Os Cinco Pontos do Calvinismo em


Gênesis)

• Quando o Dia Nasceu (Pieter Jongeling)

• Que é um Culto Reformado (Daniel Hyde)

• Reforma Ontem, Hoje e Amanhã (Carl Trueman)

• Saudades de Casa: Uma Jornada Através dos Salmos dos Degraus (J. Stephen Yuille)

• Todo o Conselho de Deus... (Ryan McGraw)

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