A HISTÓRIA ENSINADA Ana Monteiro
A HISTÓRIA ENSINADA Ana Monteiro
A HISTÓRIA ENSINADA Ana Monteiro
RESUMO
37-62,
1
Foram muito frequentes pesquisas que buscavam identificar as concepções de História subjacentes
aos saberes ensinados e que muitas vezes identificavam a multiplicidade como problema e não
como altemativa possível ou necessária aos objetivos propostos,
9-35,
HISTÓRIA & ENSINO, Londrina, v. 9, p. out. 2003 11
Na primeira parte, desenvolvo uma discussão com autores que operam
com o conceito de transposição didática para compreender os processos de
elaboração do saber escolar. Na segunda parte, faço a análise de algumas
configurações da História ensinada utilizando o instrumental conceitual
relacionado ao saber escolar conforme discutido anterionnente. 1
0 saber escolar
As perspectivas de abordagem das questões educacionais têm sido
objeto de importante renovação teórica principalmente aquelas relacionadas
à dimensão cognitiva/cultural dos processos educativos, e que são objeto do
campo do currículo. Nas análises realizadas em diferentes perspectivas:
sociológica, dos estudos culturais, da história das disciplinas escolares ou da
didática, considero relevante destacar aquelas desenvolvidas com base no
reconhecimento da especificidade e complexidade do campo educacional
como objeto de pesquisa.2
Esse movimento implicou e expressou uma ressignificação do
conceito de cultura que fundamenta a ação educativa. De uma concepção
universal, individualista, elitista, prescritiva e normativa passou-se a uma
concepção compreensiva, relativista, pluralista, baseada na perspectiva
antropológica e sociológica. A escola, mais do que um local de instrução e
transmissão de saberes, passou a ser considerada como um espaço
configurado e configurador de uma cultura escolar, onde se confrontam
diferentes forças e interesses sociais, econômicos, politicos e culturais
(FORQUIN, 1993).
No contexto dessas mudanças, os sabetes, antes inquestionados, passaram a ser
objeto de uma série de indagações que se voltaram, de um lado, para aspectos
relacionados aos processos de seleção cultural — quais saberes, motivos de opção,
implicações culturais e repercussões sociais e políticas das opções, negações,
ocultamentos, ênfases,etc. em estudos Mlizados em perspectiva sociológica ou
sociohistórica (YOUNG,1971; APPLE, 1982; CHERVEL, 1990; GOODSON, 1998).
1 Esse artigo foi elaborado apartir de subsídios obtidos com a pesquisa realizada para Tese de
Doutoramento, intitulada"Ensino de História: entre saberes e práticas"realizada no Departamento de
Educação da PUC/ RIO e defendida em agosto de 2002, sob a orientação do Professor Francisco Creso
Franco.
2 Para um balanço das tendências mais recentes dos estudosepesquisas no campo docurrículoem
educação, ver Santos, 1990, Moreira, 1997 e Silva, 1999. Para uma análise da evolução recente das
tendências dentro do debate sol)l? as relações entre escola, cultura e desigualdades sociais na França, em
pelspectiva sociológica, ver Forquin, 2001.
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Por outro lado, estudos foram realizados para investigar os processos
de constituição desses saberes, os percursos realizados nos processos
didatização, utilizando uma abordagem orientada por perspectiva
epistemológica, buscando superar a visão instrumental e técnica
predominante até então. No bojo desses estudos emergiu a formulação do
conceito de saber escolar enquanto um saber com configuração cognitiva
própria e original da cultura escolar (FORQUIN 1992, 1993; LOPES, 1997,
p. 97-98).
Como afirma Forquin (1992), existem diferenças substanciais entre a
exposição teórica e a exposição didática. A primeira deve levar em conta o
estado do conhecimento, a segunda, o estado de quem conhece, os estados de
quem aprende e de quem ensina, sua posição respectiva com relação ao saber
e a forma institucionalizada da relação que existe entre um e outro, em tal ou
qual contexto social. Não se trata apenas de fazer compreender, mas de fazer
aprender, de fazer incorporar ao habitus (FORQUIN, 1992, p. 34).
Assim, a perspectiva de constituição de um saber escolar tem por base a
compreensão de que a educação escolar não se limita a fazer uma seleção entre
o que há disponível da cultura num dado momento histórico, mas tem por
função tornar os saberes selecionados efetivamente transmissíveis e
assimiláveis. Para isso, exige-se um trabalho de reorganização, reestruturação
ou de transposição didática que dá origem a configurações cognitivas
tipicamente escolares, capazes de compor uma cultura escolar sui generis, com
marcas que transcendem os limites da escola (FORQUIN, 1993, p. 16-17).
Os estudos voltados para a questão do saber escolar receberam
importante contribuição através do uso do conceito de transposição didática
enunciado, pela primeira vez, por Verret em sua tese Les Temps des Études,
defendida em 1975 na França (FORQUIN, 1993, p. 16). Posteriormente,
Chevallard e Joshua (1982) utilizaram este conceito no campo do ensino da
matemática para examinar as transformações sofridas pela noção matemática
de distância entre o momento de sua elaboração por Fréchet, em 1906, e o
momento de sua introdução nos programas de geometlia franceses, em 1971
(LOPES, 1999, p.
De acordo com Chevallard (1991), seu ponto de partida é o interesse em
inscrever a "didática das matemáticas" (p. 14), campo de voluntarismos, como
4
Neste trabalho optei por trabalhar com o conceito de transposição didática que atende melhor 'as
exigências das questões da pesquisa. Portanto, embora tus considere muito relevantes e férteis,
não estou trabalhando com as proposições de Chervel sobre a história das disciplinas escolares.
5
A emergência desse conceito ocorre no contexto das lutas intemas pela afirmação do campo da
didática na França, na década de 1980, opondo defensores de uma didática geral e aqueles
defensores das didátic•as específicas. Nesse sentido, o autor não opera com o conceito de saber
escolar (que traz implícita a dimensão cultural) e sim "saber a ensinar "e "saber ensinado
6
Uma tendência dominante entre as pesquisas educacionais nos anos 60 e 70 do século XX focalizava os processos
de aprendizagem numa perspectiva orientada pelas concepções da psicologia e da psicogênese como base para a
compreensão e melhor realização dos processos de ensino. Atualmente, pesquisas orientadas pelo entendimento
de que o ensino implica em processo com características próprias que precisam ser melhor conhecidas têm sido
realizadas. Como afirma Berliner(1980, p. 80) citado por Gauthier(1998, p. 52) ,"Assim como os princípios da
afle culinária não provêm do estudo das maneiras de comer, assim também os princípios do ensino não podem
derivar do estudo da aprendizagem. " Ou, como afirma Moniot "a didática de uma disciplina não é alguma coisa
que vem antes dela, a mais ou ao lado, para lhe dar uma espécie de suplemento pedagógico útil... .A didática se
ocupa de racionalizar, de muito perto, o ensino. Ela envolve as operações que se tealizam quando se aprende uma
disciplina, a serviço dessa aprendizagem, para melhor focalizar e dominar os problemas que se apresentam
3 Observe-se, mais uma vez, que o autor está preocupado com a questão didática e não
propriamente com a questão educativa do ponto de vista sociológico e político.
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com o saber acadêmico venha a ser relativizada abrindo espaço para a
compreensão do papel da dimensão educativa em sua estruturação.
Nesse sentido, Develay (1992) traz para a análise o conceito de prática
social de referência, originalmente formulado por Martinand (1986), que se
refere "a atividades sociais diversas (atividades de pesquisa, de produção, de
engenharia, domésticas e culturais) que podem servir de referência N as
atividades escolares e a partir das quais se pode examinar, no interior de
uma disciplina dada, o objeto de trabalho, ou seja, o domínio empírico que
constitui a base de experiência real ou simbólica sobre a qual irá se basear o
ensino" (DEVELAY, 1992, p. 22-23) 4
Para Develay 'o saber a ensinar, na maior parte das disciplinas, tem
como ascendentes os saberes acadêmicos e as práticas sociais de referência,
práticas sociais essas que podem estabelecer ou não relações com os saberes
acadêmicos — dos quais elas constituem, muitas vezes uma aplicação"
(1993, p. 24). Develay propõe uma representação dos fluxos das referências
durante a transposição didática que reproduzimos aqui por considerá-la
bastante elucidativa (1993, p. 25):
PRÁTICAS SOCIAIS
SABER ACADÉMICO
DE REFERÊNCIA
SABER A ENSINAR
4 Moniotvêem Martinand uma contribuição mais rica e menos preconceituosa que ade Chevallard.
Assim,
"no lugar da denúncia de uma perversão da referência acadêmica e ao desvelamento de uma ilusão,
ele (Martinand) apresenta a criação de um terreno novo onde se pode analisar a transposição
incluindo um concorrente positivo à referência acadêmica." (MONIOT, 1993, p. 25)
18 HISTÓRIA & ENSINO, Londrina, v. 9, p. 9-35, out. 2003
(CHERVEL, 1991). As práticas sociais podem, por sua vez também, influir
na formulação de saberes acadêmicos.
Tendo por base essas considerações, acredito que uma alternativa para
superar a insuficiência do conceito de transposição didática, inclusive no que
diz respeito à sua própria denominação, pode ser a utilização do conceito de
mediação didática conforme proposto por Lopes que afirma: "prefiro referir-
me a um processo de mediação didática, todavia não no sentido genérico
conferido a mediação: ação de relacionar duas ou mais coisas, de servir de
intermediário ou ponte, de permitir a passagem de uma coisa a outra. Utilizo
o termo mediação" em seu sentido dialético: um processo de constituição de
uma realidade através de mediações contraditórias, de relações complexas,
não imediatas, com um profundo senso de dialogia" (LOPES, 1997, p. 106).
Além do trabalho de didatização, Develay chama a atenção para o fato
de que a transposição didática implica num trabalho de axiologização, que
expressa os valores escolhidos pelo agentes da transposição, que é mais
visível, por exemplo, no ensino da História e da Língua, mas que está
presente em todas as disciplinas escolares. Os valores são transmitidos não
apenas através dos métodos de ensino (que podem induzir 'a passividade ou
a posturas ativas e críticas) ,mas também através dos conteúdos selecionados
para serem ensinados. Eles estão presentes em forma de "filigrana" nos
conteúdos escolares e revelam as escolhas éticas de uma sociedade. "Assim,
os saberes escolares remetem a valores que, mesmo implícitos, revelam em
última análise as escolhas éticas de uma sociedade. Elas merecem ser
investigadas porque permitem revelar, a partir dos conteúdos, a filosofia de
educação subjacente" (DEVEIAY, 1992, p. 26).
Cabe destacar que o processc de axiologização, inerente ao processo
de produção dos saberes escolares, ocorre tanto na transposição djdática
externa como interna, expressando e possibilitando leituras, apropriações e
opções dos diferentes atores — agentes da noosfera, professores e alunos.
No caso da História, esse processo de axiologização é inerente também ao
processo de produção do saber acadêmico, expressando opções e afinidades
dos pesquisadores. A axiologização representa a opção feita no que tange à
dimensão educativa, podendo expressar-se através da seleção cultural —
ênfases — omissões — negações, através de aspectos inerentes ao chamado
currículo oculto e também as fomnas como os professores mobilizam os
saberes que ensinam.
Esse aspecto, que remete ao entendimento deste autor sobre a
autonomia relativa dos professores no momento da transposição didática
interna, nos permite destacar outra contribuiuição importante de sua proposta
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teórica: ela cria instrumentos para se considerar a questão da autoria dos
docentes no seu fazer, evitando uma supervalorização romântica de sua
atuação.
Didatização e axiologização são, portanto, dois conceitos que
articulados, permitem trazer a discussão da transposição didática para o
campo da teoria educacional crítica e pos-crítica, através da análise
epistemológica.
Conforme nos diz Lopes "não podemos nos furtar a discutir o que é
fundamental ser ensinado na escola. Não podemos negar o papel
preponderante da escola como socializadora de saberes, nem a importância
de combatermos tendências relativistas que se negam a admitir alguns
saberes como mais fundamentais do que outros, em função do
desenvolvimento histórico do conhecimento e em função do modelo de
sociedade que desejamos. Mas o papel da epistemologia não se resume à
discussão da validade epistemológica dos saberes, mas na possibilidade de
introduzir uma nova forma de compreender e questionar o conhecimento,
internamente, na sua própria forma de se constituir. Assim a epistemologia
contribui diretamente para a definição dos diferentes saberes sociais e de
suas relações. Ao questionarmos a razão instrumental, os conhecimentos
absolutizados, a unidade e universalidade da razão, não devemos desmerecer
a razão, a epistemologia, a relação dialética entre objetividade e
subjetividade" (LOPES, 1999, p. 166-167).
A história ensinada
9
Martins. Ilistória 6. São Paulo, FTD, 1997. Edição reformulada. Livro distribuído pelo Programa Nacional do
Livro l)idático do Ministério da Educação e que é utilizado pelíts professoras de forma incidental, conforme a
necessidade por textos se apresenta. Os livros ficam guardados na sala de História e são distribuídos aos alunos
durante as aulas e recolhidos ao final, 0 capítulo 16 corresponde 'as páginas 136 a 145.
10
Utilizo o conceito de transposição didática considerando as observações feitas anteriormente neste texto e que
implicam no entendimento de que este processo é umamediação didática e não um simples deslocamento do
campo acadêmico para o campo educacional.
"Mas eu tenho que tirar a idéia principal . . . .Alguém tem uma idéia de como
eu posso fazer isso? Quem me ajuda? Será que era uma boa começar pelo sujeito
desse negócio aí? Sim .. Portugal e Espanha trouxeram escravos para trabalhar
na agricultura e na mineração... .. Qual é a razão, por que?Aluna responde:
Porque o trabalho assalariado não era generalizado.... A professora comenta:
Puxa, muito bem, vê como ela falou difícil... Pode ser.. .não era comum.
Depois de fazer duas frases resumo, ela propôs que eles começassem a
trabalhar sozinhos, em grupo. Ela ia, de grupo em grupo, para atender 'as
solicitações dos alunos, os elogiava e, num certo momento, sentou junto
deles para resolver a situação em que dois alunos trabalhavam e dois não
faziam nada.
0 trabalho de construção continuou, na aula seguinte, com a leitura de
dois resumos por ela elaborados, onde eles puderam encontrar semelhanças e
diferenças entre a escravidão antiga e no Brasil. Depois da leitura, eles
encontraram uma linha de tempo onde deveriam pintar de azul o período da
escravidão antiga e de vermelho, aquele referente à escravidão moderna.
11
Trechos extraídos de registros feitos por mim durante a obselvação da aula da professora da
turma 601, no dia 07/04/2001, Pode-se perceber nestes dois exemplos que a explicação
construída ficou em um nível de generalização muito grande, gerando uma simplificação que
pode levar a construção de idéias equivocadas sobre o tema em estudo.
5 Koselleck, explicando o que é a história dos conceitos, destaca que uma palavra apresenta
potencialidades de significado, um conceito une em si mesmo uma plenitude de significados.
Portanto, um conceito pode ter claridade mas será sempre ambiguo. Nenhum conceito pode ser
definido de forma que sintetize semioticamente um processo inteiro; somente o que não tem
história pode ser definido. Por outro lado, embora os conceitos tenham relação com os contextos com
os quais se relacionam, sua função e performance semântica não é unicamente derivada das
circunstâncias sociais e políticas com as quais se relacionam. Um conceito não é apenas
indicativo das funções que explica;ele é também um fator dentro delas (KOSELLECK, 1985, p. 84).
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Além disso, o trabalho do historiador implica a exigência de traduzir
na linguagem de hoje o significado passado de palavras e, através delas, das
realidades expressas. E mais ainda, o significado dos conceitos atuais deve
ser redefinido se pretendemos traduzir o passado através deles. (PROST,
1996, p. 141-142)
Um outro aspecto relevante que precisa ser destacado é que, no
âmbito da História, a construção conceitual implica numa dimensão
temporal, pois os tempos de mudança nos conceitos não coincide com o
tempo de mudanças da realidade. Como diz Koselleck, "As palavras que
duram não constituem um índice suficiente da estabilidade das realidades"
(KOSELLECK, 1990, p. 106 apud PROST, 1996, p. 141). Mas, também, as
mudanças de terminologia não constituem um indício seguro de mudança
na realidade (como podemos ver em várias situações do contexto
brasileiro).
Os conceitos em História raramente são usados em sua forma
absoluta. Geralmente eles são complementados por adjetivos que procuram
explicitar a situação a que se referem. () sentido mais preciso é*explicitado
pelo adjetivo que ele recebe e o "jogo" comparativo implica também em
buscar o adjetivo pertinente. Rssim, em História, no lugar de se falar de
revolução, falamos da revolução francesa, ou da industrial, ou da russa, ou
da chinesa, ou da tecnológica, agrícola, etc., cada uma referindo-se a um
contexto específico num tempo determinado. Assim, "a conceitualização
em História opera uma organização do real histórico, mas uma organização
relativa e sempre parcial, porque o real não se deixa jamais reduzir ao
racional; ele comporta sempre uma parte de contingência, e as
particularidades concretas tumultuam, necessariamente, a bela ordem dos
conceitos" (PROST, 1996, p. 137).
Os conceitos em História implicam, portanto, em considerar sua
relação com o real em perspectiva analógica e numa dimensão temporal
sincrônica e/ ou diacrônica, o que possibilita o trabalho com a história dos
conceitos (KOSELLECK, 1992).
Assm eles contêm, estruturalmente, potencialmente, elementos que
abrem perspectivas para comparações, possibilitando o trabalho com as
analogias, em uma "inteligibilidade comparativa" (PASSERON, 1991
apud PROST, 1996,
p. 131) , comparações estas que vão permitir avaliar se as características
implícitas no conceito se encontram na coisa ou se é preciso reformular o
conceito para dar conta de novas realidades criadas. De acordo com
Passeron, nas ciências sociais a 'demarche' comparativa permite que se
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utilize a analogia controlada. "A validade da racionalidade científica
repousa sobre a capacidade de exercer o controle da comparação"
(LAUTIER, 1997, p. 75).
Essas considerações aqui apresentadas em relação ao uso dos
conceitos no conhecimento histórico stricto sensu, estão baseadas,
principalmente, no trabalho de Prost(1996), especialmente o capítulo 6-
"Les concepts", que, por sua vez, utiliza como referenciais os trabalhos de
Koselleck, Weber, Veyne e Marrou. Concluindo, convém lembrar Marrou
quando este afirma que "não se deve esquecer que toda a comparação
coxeia, que nunca existe em História, esse domínio do singular, paralelo
perfeito nem recomeço absoluto. 0 uso de tais processos analógicos ou
metafóricos requer precauções, habilidades. . , (MARROU, 1974, p. 140).
Que relações podem ser estabelecidas entre essas considerações de ordem
teórica e o trabalho de construção de conceitos na História — conhecimento escolar?
Acredito que temos, nas aulas observadas, um exemplo claro do
diálogo realizado com o saber acadêmico, no processo de mediação
didática(LOPES, 1999) e que dá origem ao conhecimento escolar. Temos a
definição de um saber a ensinar (decidido no âmbito da noosfera) — as
relações sociais escravistas. Este saber a ensinar vai sendo transformado
em saber ensinado a partir de decisões tomadas pelos professores que
escolhem alternativas que julgam mais apropriadas para o seu ensino.
Aqui, a opção pelo construtivismo e pelo trabalho com a construção ds
conceitos. São definidas situações de aprendizagem que levam os alunos a
identificar características, diferenças e semelhanças, em diferentes tempos
e espaços, incluindo o seu próprio tempo e espaço. Esse processo, que está
referenciado ao processo de produção do conhecimento histórico, é
realizado descontextualizado das questões específicas da pesquisa e de seus
pesquisadores. E recontextualizado para atender aos objetivos educacionais
de formação da cidadania daqueles alunos e por isso, são dessincretizados
e programados de acordo com necessidades, interesses e características
culturais (CHEVALLARD 1991, p. 69-73). As referências aos
pesquisadores e autores não são feitas nem é explicado o trabalho com as
fontes. Á preocupação com a pesquisa se concentra no ensino da atividade,
como uma metodologia a ser apropriada pelos alunos. Como já foi
comentado, o saber ensinado, a história escolar me pareceu muito
subordinada 'as preocupações mais evidentes com a formação de atitudes e
dos procedimentos de pesquisa. Às referências feitas pelas professoras na
entrevista são aos PCNs e ao livro didático.
6 Faço aqlli uma inferência a partir da situação observada. Não faz parte desta pesquisa investigar
concepções e pressupostos de autores de livros didáticos.
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ainda utilizado porque os professores não dominam recursos alternativos
que possam melhor dar conta das demandas que o trabalho com a noção de
tempo impõe?.
Concluindo, considero que o trabalho desenvolvido apresentou
qualidade uma vez que atendeu aos objetivos propostas do ponto de vista
educativo e manteve um diálogo com o conhecimento historiográfico que
respeitou suas características do ponto de vista epistemológico-como pode
ser visto no trabalho com os conceitos. Do ponto de vista dos conteúdos
abordados, merecem ser atualizados com base nas pesquisas sobre
escravidão. Aspectos culturais não foram explorados mas cabe considerar o
caráter introdutório, de fundamentação, das aulas observadas.
A dimensão educativa pemneou todo o trabalho realizado ao
possibilitar que os alunos tivessem contato com experiências históricas
diferentes das suas, e também através da perspectiva crítica que orientava
de forma incidental todo o estudo. Junte-se a isso a orientação sobre
procedimentos de pesquisa escolar de forma autônoma e o trabalho de
desenvolvimento da leitura e da escrita.
Outros exemplos poderiam ser citados, mas isto implicaria em alongar
em demasia o texto. Aqueles que foram analisados permitem configurar a
construção do saber escolar realizada na história ensinada pelas duas
professor'as, que revela sua originalidade face ao conhecimento acadêmico e
qualidade na sua realização pois permitiu a construção de conhecimentos de
uso cotidiano pelos alunos, conhecimentos estes informados pelas
contribuições científicas, superando equívocos e preconceitos presentes no
senso comum.
Bibliografia
KOSELLECK, R. (l)." Historia Magistra Vitae: The Dissolution of the Topos in the
of a Modernized Historical Process" in KOSELLECK,R. Futures Past. On the Semantics of
Historical Time. Cambridge (Mass.) and London, The MIT Pless, 1985.( 21-38)