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Ciência Política

Autores: Prof. Adilson Rodrigues Camacho


Prof. Maurício Felippe Manzalli
Colaboradores: Prof. Maurício Felippe Manzalli
Profa. Viviane Paes Macedo
Professores conteudistas: Adilson Rodrigues Camacho / Maurício Felippe Manzalli

Adilson Rodrigues Camacho

Doutor em Ciências pelo Programa de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo – FFLCH-USP (2008), com mestrado em Geografia pela Universidade Estadual Paulista
Júlio de Mesquita Filho – FCT-Unesp (1994) e graduação em Geografia (bacharelado e licenciatura) pela Universidade
de São Paulo (1990). Professor titular na UNIP e na Fundação Armando Alvares Penteado, em cursos de graduação e
pós-graduação. Tem experiência em estudos socioambientais municipais e regionais. Atua principalmente nas linhas
de pesquisa ligadas a epistemologia da geografia, metodologias de planejamento, qualificação dos usos de recursos
(diagnóstico e prognóstico socioambiental) associada à adequação das políticas públicas às demandas locais.

Maurício Felippe Manzalli

Possui graduação em Economia pela UNIP (1995) e é mestre em Economia Política pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (2000). Atualmente é professor da UNIP nos cursos de Ciências Econômicas e Administração
e coordenador do curso de Ciências Econômicas na mesma universidade, tanto na modalidade presencial quanto
na Educação a Distância. Tem experiência em administração e finanças, notadamente nas áreas ligadas ao setor de
transporte de passageiros, atuando há 29 anos no ramo.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

C172c Camacho, Adilson Rodrigues.

Ciência Política / Adilson Rodrigues Camacho, Maurício Felippe


Manzalli – São Paulo: Editora Sol, 2018.

224 p., il.

Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e


Pesquisas da UNIP, Série Didática, ano XXIV, n. 2-005/18, ISSN 1517-9230.

1. Política. 2. Estado. 3. Filosofia. I. Manzalli, Maurício Felippe.


II. Título.

CDU 32

A-XIX

© Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou
quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem
permissão escrita da Universidade Paulista.
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Unip Interativa – EaD

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Prof. Marcelo Souza
Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar
Prof. Ivan Daliberto Frugoli

Material Didático – EaD

Comissão editorial:
Dra. Angélica L. Carlini (UNIP)
Dra. Divane Alves da Silva (UNIP)
Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR)
Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT)
Dra. Valéria de Carvalho (UNIP)

Apoio:
Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD
Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos

Projeto gráfico:
Prof. Alexandre Ponzetto

Revisão:
Vitor Andrade
Ricardo Duarte
Lucas Ricardi
Sumário
Ciência Política

APRESENTAÇÃO.......................................................................................................................................................7
INTRODUÇÃO............................................................................................................................................................7

Unidade I
1 A POLÍTICA: O QUE É, COMO ACONTECE E POR QUÊ .........................................................................9
1.1 O fenômeno político: poderes, política e ciência política ................................................... 10
1.2 Como o poder aparece: diferenças e desigualdade social.................................................... 14
1.3 Política no plano da existência........................................................................................................ 29
2 CIÊNCIA DO PODER E DA POLÍTICA........................................................................................................... 39
2.1 A política e sua institucionalização: das formas elementares de poder
aos arranjos sociais de Estado ................................................................................................................ 42
3 O FENÔMENO POLÍTICO: PODERES, CONTRATOS, REGRAS E NORMAS..................................... 43
3.1 Classificações de grupos políticos.................................................................................................. 46
4 ORIGENS E CONCEITOS DO ESTADO......................................................................................................... 51

Unidade II
5 ESTADO, HISTÓRIA E ELEMENTOS ESSENCIAIS..................................................................................... 57
5.1 Teoria geral do Estado......................................................................................................................... 67
5.1.1 População e demografia....................................................................................................................... 85
5.1.2 Território: aspectos físicos, biológicos e culturais...................................................................... 90
5.1.3 Governo: soberania e autonomia...................................................................................................... 95
5.1.4 Fronteiras internas.................................................................................................................................. 97
6 O ESTADO CONTEMPORÂNEO: POPULAÇÃO OU POVOS? FRACASSO
DA AUTODETERMINAÇÃO ..............................................................................................................................111
6.1 Povos: quem são o povo, a nação e os estrangeiros.............................................................112
6.2 Estado‑nação como solução e problema..................................................................................117

Unidade III
7 A POLÍTICA NO ÂMBITO INTERNACIONAL ...........................................................................................132
7.1 Colonização e autodeterminação: decolonização ................................................................133
7.2 Blocos, grupos e demais associações de poder por interesses,
“espaço interestatal”................................................................................................................144
7.2.1 Governança supranacional: a Organização das Nações Unidas........................................ 150
8 O PENSAMENTO CLÁSSICO SOBRE A POLÍTICA E A VARIEDADE DE
ORGANIZAÇÕES DE PODER: O CRIVO DA FILOSOFIA..........................................................................160
8.1 Platão e o nascimento da reflexão sobre a política..............................................................163
8.2 Aristóteles, as constituições e a dinâmica da polis ..............................................................171
8.3 Maquiavel, a política e o Estado moderno ..............................................................................175
8.4 Hobbes e os pressupostos da teoria do contrato social......................................................178
8.5 Locke, a comunidade política e o direito à propriedade.....................................................189
8.6 Montesquieu e a distribuição social dos poderes..................................................................194
8.7 Rousseau e as bases do Estado democrático...........................................................................198
APRESENTAÇÃO

Este livro-texto foi pensado como mais um meio de comunicação entre professores e alunos, com o
propósito de estimular dúvidas nos discentes. Sim, dúvidas. As dúvidas são preciosas e merecem muito
respeito do educador, pois, além de colocá-lo em movimento, permitem que esteja alerta, sempre à
procura de melhores soluções. É preferível questionar a dar respostas prontas de terceiros. O poder da
dúvida, da curiosidade que a enraíza, do enfrentamento do erro (que nos afasta de nossas ignorâncias)
é proporcional à abertura ao incômodo, à estranheza, ao desconcerto. De fato, traz sensações com
imenso potencial de aprendizado efetivo. Aproveite as provocações (bifurcações e incertezas) para sentir
e experimentar portas e caminhos. Trata-se de ter experiências.

A obra parte dos saberes vividos e de experiências, no plano comum da existência (política), e segue
em direção aos principais elementos e temas da ciência política, pois avaliamos que desse modo os
conceitos adquirem mais sentido.

Tais caminhos devem-se à nossa grande preocupação com a distância entre os estudantes e os
assuntos analisados. A leitura pode ser uma mediação ineficiente entre aluno e conhecimento, quando
o texto é mero desfile de questões e temas indistintos. Como transformar essa relação?

Nossa pequena contribuição nessa imensa maratona em direção ao conhecimento envolve algumas
escolhas. As principais delas são: preferimos sempre as alternativas às certezas; o debate a doutrinas;
preferimos, portanto, a exposição de lados e versões a uma racionalidade única. E, mais importante, queremos
que o estudante tenha genuíno interesse pela política, que o atravessa em todas as suas relações, bem como
pelos assuntos institucionais do poder, que definem, também, sua existência como ser social, cidadão.

Assim, examinaremos os temas poder e política, primeiramente, no nível da vida cotidiana, do mundo
da vida, bem como os rumos do poder no plano das questões de Estado, povo, nação e território. Desse
modo, devem surgir questões para o aluno sobre suas relações com as formas e ações da política.

As discussões sobre o Estado envolvem a dimensão nacional (“o dentro” do país), o “entre-nações” e
o espaço internacional (“o fora” do país, o global).

O texto traz, por fim, os autores responsáveis pelas bases do pensamento político clássico e moderno,
perfilado durante os demais capítulos, que examinam seus fundamentos filosóficos.

Ótima leitura a todos!

INTRODUÇÃO

A ideia condutora deste livro-texto é a política, a arte e a técnica de alcançar aquilo de que se
precisa, o que se deseja.

Destacaremos o valor da política nas diversas fases da vida. Veremos como ela se manifesta em
situações cotidianas e nas relações internacionais.
7
É fato que não podemos sobreviver sem água, do mesmo modo que não conseguimos construir
relações sociais e melhorar a condição de vida de um povo sem a política, tamanha a sua relevância.

Falaremos do nascimento da política e o que motivou sua existência. Vamos trazer à tona a discussão
sobre natureza e cultura, como bases de nossas necessidades psicossociais. Também abordaremos como
as práticas políticas tornam-se objeto de interesse científico, com as ciências políticas.

Em nossa análise, ilustraremos as formas sociais, instituições, que construímos para alcançar o
progresso. Passaremos, então, ao plano mais elaborado da engenharia política de congregação das
necessidades e dos desejos, o Estado nacional. Com isso, não estamos afirmando sua excelência ou
superioridade sobre outras alternativas de organização social, muito pelo contrário, esclarecemos suas
mazelas e vícios, muito maiores que suas virtudes.

Trataremos da política na escala internacional, ou seja, entre os Estados-nações, ressaltando o nível


de operação dos agentes globais.

Encerraremos nosso estudo acentuando os olhares dos clássicos do pensamento político, recorrendo
aos temas tratados durante o livro-texto, porém com o crivo filosófico. Assuntos que terão destaque
são: liberdade, organização, economia, sobrevivência, força, propriedade e convivência.

8
CIÊNCIA POLÍTICA

Unidade I
1 A POLÍTICA: O QUE É, COMO ACONTECE E POR QUÊ

A Terra é a própria quintessência da condição humana e, ao que sabemos, sua


natureza pode ser singular no universo, a única capaz de oferecer aos seres
humanos um habitat no qual eles [possam] mover-se e respirar sem esforço
nem artifício. O mundo – artifício humano – separa a existência do homem
de todo ambiente meramente animal, mas a vida, em si, permanece fora
desse mundo artificial, e através da vida o homem permanece ligado a todos
os outros organismos vivos. Recentemente, a ciência vem-se esforçando
por tornar “artificial” a própria vida, por cortar o último laço que faz do
próprio homem um filho da natureza. O mesmo desejo de fugir da prisão
terrena manifesta-se na tentativa de criar a vida em uma proveta, no desejo
de misturar, “sob o microscópio, o plasma seminal congelado de pessoas
comprovadamente capazes a fim de produzir seres humanos superiores” e
“alterar(-lhes) o tamanho, a forma e a função”; e talvez o desejo de fugir
à condição humana esteja presente na esperança de prolongar a duração
da vida humana para além do limite dos cem anos. Esse homem futuro,
que, segundo os cientistas, será produzido em menos de um século, parece
motivado por uma rebelião contra a existência humana tal como nos foi
dada – um dom gratuito vindo do nada (secularmente falando) –, que ele
deseja trocar, por assim dizer, por algo produzido por ele mesmo. Não há
razão para duvidar de que sejamos capazes de realizar essa troca, tal como
não há motivo para duvidar de nossa atual capacidade de destruir toda a
vida orgânica da Terra. A questão é apenas se desejamos usar nessa direção
nosso novo conhecimento científico e técnico – e esta questão não pode ser
resolvida por meios científicos: é uma questão política de primeira grandeza
e, portanto, não deve ser decidida por cientistas profissionais nem por
políticos profissionais (ARENDT, 1981, p. 1-2).

Falar sobre política nos leva a um dualismo (caráter antagônico, irreconciliável, das forças
constitutivas). Foquemos essa dualidade: um lado representa os planos da ação efetiva, das práticas; o
outro, os planos da crença e da teoria, das instituições.

Dito de outro modo, a política está no mundo da vida, no cotidiano de todos, bem como nas
instituições, com regras e objetivos abstratos.

Nossos pensadores clássicos da política tratam-na evidenciando a vida comum e as instituições.


Mais adiante também o faremos, mais ou menos ao modo de Paulo Sérgio Peres (2008).
9
Unidade I

1.1 O fenômeno político: poderes, política e ciência política

Neste livro-texto, destacaremos a política como condição humana (tudo é ligado à diversidade de
posições, divergências e convergências) e como dimensão social (uma via de realização social dos poderes).
Vamos traçar duas perspectivas sobre a distribuição do poder, no âmago da relação indivíduo‑sociedade,
das escalas locais às internacionais.

Como encontrar a unidade, as conexões entre a política individual (interna), dos sujeitos privados,
agentes em busca de realização social, e a política coletiva (externa), dos agregados de interesses,
associações de agentes com interesses convergentes, ou não, reunidos pela democracia?

Política é, então, o exercício individual e coletivo do poder, está em toda parte, com regras, normas
e contratos (direito e legalidade) e seus graus de legitimidade. O que há de bastante palpável na política
é sua condição existencial e reflexiva, portanto, objeto teórico da filosofia e da ciência.

Dahl (1988, p. 5-6) sugere que todo o conhecimento acumulado não é “panaceia para compreensão”
e solução de questões políticas, pois algumas perguntas, desde as muito antigas ou clássicas até as
mais contemporâneas, permanecem sem respostas. “Exigem novas perspectivas e problematizações e
reflexões, baseando-se de modo crítico em Aristóteles, Weber e Lasswell”.

Como podemos ver em Dahl,

Sobre esta questão, um importante ponto de partida (embora não


inteiramente claro) é a obra de Aristóteles, Política, escrita entre 335 e 332
a.C. Na primeira parte da Política, Aristóteles argumenta contra os que
alegam que todos os tipos de autoridade são idênticos. Procura distinguir a
autoridade do líder político, em uma associação ou polis (cidade), de outros
tipos de autoridade, tais como a exercida pelo senhor sobre o escravo, pelo
marido sobre a esposa, pelos pais sobre os filhos.

Aristóteles admite, porém, que pelo menos um aspecto da associação


política é a existência de autoridade, ou governo. Com efeito, Aristóteles
define a polis, ou associação política, como “a associação mais soberana
e inclusiva”. Para ele, a constituição é “a organização de uma polis, com
respeito a seus órgãos, de modo geral, mas especialmente com referência
àquele órgão particular, que é soberano em todos os assuntos”.

Um dos critérios utilizados por Aristóteles para classificar as constituições é


a determinação da parte do corpo coletivo em que se localiza a autoridade
ou o governo.

Desde os tempos de Aristóteles, acreditava-se que uma relação política


devia implicar de algum modo a autoridade, o governo ou o poder. Assim,
por exemplo, um dos mais importantes sociólogos modernos, o alemão Max
10
CIÊNCIA POLÍTICA

Weber (1864-1920), afirmou que uma associação devia ser considerada


política na medida em que “a implementação da sua ordem é levada a cabo
continuamente, dentro de uma certa área, mediante a aplicação e a ameaça
da força física por parte dos administradores”. Portanto, embora Weber
tenha acentuado o aspecto territorial da associação política, do mesmo
modo como Aristóteles, ele especificou que uma relação de autoridade ou
de governo constituía uma das suas características essenciais.

Para dar um último exemplo, um importante cientista político contemporâneo,


Harold Lasswell, define a ciência política, enquanto disciplina empírica, como
“o estudo da formação do poder e da participação do poder”, afirmando que
um “ato político” é uma ação executada “em uma perspectiva de poder”
(DAHL, 1988, p. 4).

O autor reconhece as bases teóricas que vêm da Antiguidade grega, assim como os nomes
consagrados do pensamento sobre política. Nessa linha, seleciona os citados representantes (três) de
diferentes períodos, afirmando que, “indubitavelmente, tudo que Aristóteles e Weber chamariam de
‘político’ seria ‘político’ também para Lasswell”, mas este estenderia a abrangência da sua definição de
modo a “incluir algumas coisas que Weber e Aristóteles deixariam de fora: uma empresa e um sindicato,
por exemplo, teriam aspectos ‘políticos’” (DAHL, 1988, p. 4).

O trabalho de Dahl é um clássico. Se, por um lado, como dissemos, ele relativiza a importância da
reflexão clássica, por outro, corrobora a expansão do conceito de política ao conceituá-la como sistema
político: “Vamos definir, portanto, um sistema político, audaciosamente, como qualquer estrutura
persistente de relações humanas que envolva controle, influência, poder ou autoridade, em medida
significativa” (DAHL, 1988, p. 13-14).

Zygmunt Bauman, na obra Em Busca da Política, expõe o absurdo da vida social baseada em
crenças contraditórias.

As crenças não precisam ser coerentes para que se acredite nelas. E as que
costumam ter crédito hoje – nossas crenças – não são exceção. Com efeito,
achamos que a questão da liberdade, por exemplo, pelo menos na “nossa
parte” do mundo, está concluída e (descontando correções menores aqui
e acolá) resolvida da melhor maneira possível. De qualquer forma, não
sentimos necessidade (de novo, salvo irritações menores e fortuitas) de ir
para as ruas protestar e exigir maior liberdade do que já temos ou achamos
ter. Mas, por outro lado, tendemos a crer com a mesma convicção que pouco
podemos mudar – sozinhos, em grupo ou todos juntos – na maneira pela
qual as coisas ocorrem ou são produzidas no mundo. Acreditamos também
que, se pudéssemos mudar alguma coisa, seria inútil e até irracional pensar
em um mundo diferente do que existe e aplicar os músculos em fazê-lo
surgir por acharmos que é melhor do que este aqui. Como cultivar essas
duas crenças ao mesmo tempo é um mistério para qualquer pessoa treinada
11
Unidade I

no raciocínio lógico. Se a liberdade foi conquistada, como explicar que


entre os louros da vitória não esteja a capacidade humana de imaginar um
mundo melhor e de fazer algo para concretizá-lo? E que liberdade é essa
que desestimula a imaginação e tolera a impotência das pessoas livres em
questões que dizem respeito a todos?

As duas crenças não combinam, mas cultivar ambas não é sinal de inépcia
lógica. Nem uma nem outra é, de forma alguma, fantasiosa. Nossa
experiência comum tem mais do que o suficiente para sustentar cada uma
delas. Somos bem realistas e racionais ao acreditar no que acreditamos.
Por isso, é importante saber por que o mundo em que vivemos continua a
nos enviar esses sinais evidentemente contraditórios. E é importante saber
também como podemos viver com essa contradição; e, sobretudo, por que
a maior parte do tempo não a notamos e, quando o fazemos, não ficamos
particularmente preocupados (BAUMAN, 2000, p. 10).

O filósofo polonês afirma que estamos sem pontes e sem lugares prontos para empreender os
desafios de reanimação da política, identificando os impasses.

O aumento da liberdade individual pode coincidir com o aumento da


impotência coletiva na medida em que as pontes entre a vida pública e
a privada são destruídas ou, para começar, nem foram construídas; ou,
colocando de outra forma, uma vez que não há uma maneira óbvia e fácil
de traduzir preocupações pessoais em questões públicas e, inversamente, de
discernir e apontar o que é público nos problemas privados. Em nosso tipo
de sociedade, as pontes estão de modo geral ausentes e a arte da tradução
raramente é praticada em público.

Enquanto a arte da tradução se encontra no atual e lamentável estágio,


as únicas queixas ventiladas em público são um punhado de agonias e
ansiedades pessoais que, no entanto, não se [tornam] questões públicas
apenas por estarem em exibição pública (BAUMAN, 2000, p. 10-11).

Concluindo seu raciocínio, destaca: “À falta de pontes firmes e permanentes e com as habilidades
de tradução não praticadas ou completamente esquecidas, os problemas e agruras pessoais não se
transformam e dificilmente se condensam em causas comuns” (BAUMAN, 2000, p. 11).

Para Bauman (2000, p. 11), vivemos em um tempo de política esvaziada. Com “pessoas que se sentem
inseguras, preocupadas com o que lhes reserva o futuro e temendo pela própria incolumidade, [elas] não
podem realmente assumir os riscos que a ação coletiva exige”. E continua:

As instituições políticas existentes, criadas para ajudá-las a combater


a insegurança, são de pouca ajuda. Em um mundo que se globaliza
rapidamente, em que grande parte do poder – a parte mais importante
12
CIÊNCIA POLÍTICA

– foi retirada da política, essas instituições não podem fazer muito para
fornecer segurança ou garantias. O que podem fazer e o que fazem o mais
das vezes é deslocar a ansiedade difusa e dispersa para um único elemento
de Unsicherheit – o da segurança, único campo em que algo pode ser feito
e visto. O problema, porém, é que se fazer algo efetivamente para curar ou
ao menos mitigar a inquietude e incerteza exige ação unificada, a maioria
das medidas empreendidas sob a bandeira da segurança são divisórias,
semeiam a desconfiança mútua, separam as pessoas, dispondo-as a farejar
inimigos e conspiradores por trás de toda discordância e divergência,
tornando, por fim, ainda mais solitários os que se isolam. O pior de tudo:
se tais medidas nem chegam perto da verdadeira fonte da ansiedade,
desgastam toda a energia que essas fontes geram, energia que poderia
ser utilizada de modo muito mais efetivo se canalizada para o esforço
de trazer o poder de volta ao espaço público politicamente administrado
(BAUMAN, 2000, p. 11).

Observação

Unsicherheit, para Zygmunt Bauman (2000, p. 11), é uma palavra


poderosa e um sinal dos tempos. Diz o seguinte: “o mais sinistro e
doloroso dos problemas contemporâneos pode ser mais bem entendido
sob a rubrica Unsicherheit, termo alemão que funde experiências
para as quais outras línguas podem exigir mais palavras – incerteza,
insegurança e falta de garantia”.

Para ele, “o verdadeiro poder ficará à distância segura da política e a política permanecerá impotente
para fazer o que se espera da política”. Seu projeto de resgate da política afirma, explicitamente, que
esta deve “exigir de toda e qualquer forma de união humana que se justifique em termos de liberdade
humana para pensar e agir, e pedir que deixe o palco caso se recuse ou não consiga fazê-lo” (BAUMAN,
2000, p. 11-14).

A busca de Zygmunt Bauman é a de uma ágora possível, de um espaço público de qualidade, com “o
poder de volta ao espaço público politicamente administrado”. Para ele, o poder foi retirado da política.
Diz que isso implica um corte entre a imanência do poder republicano e seu plano institucional, abstrato.
Acentua que há um declínio do questionamento, que devemos pensar em liberdades individuais e
coletivas, debatendo o assunto.

Nesse contexto, Bauman traz à tona duas questões:

• Qual é a relação entre globalização capitalista, esvaziamento da política (com a retirada do poder),
incerteza, insegurança e falta de garantias?

— Unsicherheit.
13
Unidade I

• Qual é o seu projeto de sociedade?

— Pontes! Assevera que elas são necessárias para refazer os caminhos cortados.

A política no plano existencial, em seu sentido mais concreto, das relações sociais cotidianas, é o
que ocupa Bauman. Põe-se de frente com o descrédito generalizado com a política, o fazer político
institucionalizado, embora também enxergue esperança na política (re)conquistada, ressignificada; daí,
o título de seu livro – Em Busca da Política.

Assim como o professor emérito Giannotti, Bauman vê a contradição como pedra de toque para
a discussão, a reflexão. Seu ponto de partida é a constatação de crenças contraditórias perfazendo
as tramas da modernidade: uma crença desmedida na liberdade; a outra, na impossibilidade de que
essa liberdade sirva à mudança. O autor assume as dificuldades lógicas e ontológicas em lidar com
essas perspectivas.

Observação

Bauman se refere a uma expectativa próxima daquela que um garoto


tem de fazer 18 anos para emancipar-se, tornar-se independente. Retrata
uma idealização de ruptura, de liberdade sem medidas. Normalmente,
desmentida, insatisfeita.

As estruturas sociais (horizontais e verticais), tomadas do ponto de vista histórico, são


formas‑conteúdo cujas dimensões vêm continuamente reelaborando e aprofundando laços
pessoais e coletivos – desenraizando-se culturalmente – conforme sua organização política.
A direção, a fisionomia e a territorialidade de um povo e/ou de uma nação dependem da
configuração do poder, como bem acentua o geógrafo Paul Claval (1979), figura que estudaremos
mais adiante. Ele é um dos grandes responsáveis por integrar as racionalidades antropológicas,
etnológicas, geográficas, econômicas e políticas, encadeando fenômenos complexos de modo
simples e didático, sem reducionismos.

Lembrete

A política está no mundo da vida, no cotidiano de todos, bem como nas


instituições, com regras e objetivos abstratos.

1.2 Como o poder aparece: diferenças e desigualdade social

Poder alguma coisa é estar em condições de realizá-la. A análise do


poder é, em um primeiro sentido, a análise da gama de ações que se
sabe aplicar à modificação do meio, explorá-lo e dele retirar o que é
necessário para a vida.
14
CIÊNCIA POLÍTICA

O poder não é apenas sobre poder fazer as coisas por si mesmo, é também
fazer com que sejam realizadas por outros. Ao império direto sobre o
mundo, acrescenta-se, assim, um império indireto, que é ao mesmo tempo
um império sobre os outros (CLAVAL, 1979, p. 11-12).

Os fatos do poder têm uma dimensão espacial que se relaciona com os


elementos que eles incorporam. São fatos organizacionais que envolvem
a mobilização de recursos físicos e dependem indiretamente da maneira
como são explorados e utilizados pela sociedade; são fatos relacionados,
cujo alcance varia muito com a quantidade de informação, cuja troca
promove a legibilidade dos códigos adotados. A geometria das formas mais
puras de poder, relação hierárquica absoluta e autoridade, é relativamente
simples, porque coloca apenas um pequeno número de elementos. A
geometria dos fatos de influência aparece como mais complexa e mais
variável: a cada figura da dominação associa-se um tipo particular de
configuração. É importante analisar esta geometria das formas básicas de
poder (CLAVAL, 1979, p. 21).

Paul Claval (1979, p. 11) sublinha a todo momento que “a vida social está inscrita no espaço e no
tempo”, lembra em toda a sua obra que “é feita de ação sobre o meio e interação entre os homens.
Conecta pessoas que, para sobreviver, devem obter do meio ambiente a alimentação, a energia e as
matérias-primas de que precisam”.

Há unidade em sua concepção de vida social, pois o ambiental e o social transformam-se nas
dimensões física, biológica e cultural do poder. E há ubiquidade da política, como quer e acerta Robert
Dahl (CLAVAL, 1979, p. 13).

Paul Claval abriu as trilhas antropológicas e geográficas (estatuto do humano e de sua territorialidade
diversa) da reflexão e espacialização do poder. Assim, a cultura, marca original de cada grupo, requer
“comunicações que reduzem a viscosidade natural e a opacidade do espaço”, somente desse modo
sendo mantida e reproduzida (1979, p. 11).

O poder sobre a natureza está na base da economia elementar e da evolução, produzindo toda a
degradação ambiental a que estamos sujeitos, ao passo que o poder de uns sobre outros se reflete nas
relações pelo surgimento de dissimetrias e desequilíbrios acintosos:

Vários níveis podem ser distinguidos:

1) A situação mais simples é a do poder puro: a relação é perfeitamente


dissimétrica, o que comanda não deve nada àqueles que ele dirige; ele pode
usá-los como meios para alcançar os fins que ele estabeleceu para si mesmo;
ele age dando ordens e executando-as sem hesitação.

15
Unidade I

2) O exercício do poder é facilitado quando aqueles que a ele estão


submetidos aceitam a situação como natural e reconhecem a legitimidade
da autoridade.

3) A dissimetria nem sempre é tão marcada como no poder puro e na


autoridade; aparece nas relações em que cada qual dá e recebe, mas
desigualmente: aí estamos lidando com jogos de influência.

4) Finalmente, há casos em que o desequilíbrio não é percebido pelos atores do


relacionamento: a liberdade de alguns é reduzida sem que se apercebam; então,
falamos sobre o efeito da dominação inconsciente (CLAVAL, 1979, p. 12).

Para o autor, as dificuldades em pesquisar e estudar as questões diretamente ligadas ao poder


dão‑se porque assumem múltiplas formas: “para alcançar os mesmos resultados, as sociedades utilizam
tipos de relação muito diferentes, o que explica a variedade de organizações espaciais dos grupos e a
complexidade de sua arquitetura” (CLAVAL, 1979, p. 12). Ele diz que as raízes do poder estão nesse duplo
eixo: submissão ecológica antropocêntrica (toda a natureza está à mercê dos interesses humanos) e
sujeição de outros seres humanos (o que contraria as principais máximas éticas de igualdade).

Assim, o geógrafo destaca uma questão de ordem fundamental:

A igualdade de filósofos e moralistas é postulada: é o que qualquer


indivíduo merece, qualquer que seja sua idade e suas forças, na medida
em que seja, será ou estará na posse das capacidades que tornam a
dignidade humana. Situações reais têm desigualdades de fato. O poder
é a consequência: é muito natural, mesmo que vá contra as aspirações
idealistas (CLAVAL, 1979, p. 12).

Ele passa a enumerar os casos gerais com a finalidade de exemplificar e apontar um panorama de
relações comuns de poder, no seio da vida humana.

a) A criança chega em um estado de dependência absoluta. Ela tem habilidades,


mas estas não se desenvolvem automaticamente. Potencialidades exigem,
para se revelar, estímulos fornecidos pelo ambiente material e social. Sem
relações com o mundo e com os outros, a aculturação seria impossível: os
modelos que permitem entender o que está acontecendo e se preparar para
as escolhas são feitos pela sociedade, em particular a sociedade próxima dos
pais, o grupo primário (CLAVAL, 1979, p. 12).

O autor detalha o modo como essas relações ocorrem:

A criança vive muito fortemente sua dependência: ela precisa de proteção,


amor e carinho para resistir ao ambiente que a rodeia e ameaça. Ela é, desde
cedo, a experiência ambígua das relações de poder: ela constantemente se
16
CIÊNCIA POLÍTICA

confronta com a vontade de seus pais em sua conquista do meio ambiente;


este traz-lhe, no entanto, a segurança que lhe é necessária. A atitude
resultante é composta de revoltas e submissão aceita porque expressa
humilhação e alívio: é nesse sentido que Pierre Legendre fala do amor da
censura que lhe parece caracterizar a nossa sociedade.

A relação de poder assume sua dimensão social através dos conflitos que
a criança vive com seu pai. Seus impulsos profundos a transformam em
direção a sua mãe, mas ela encontra em seu pai um rival com quem é
invejável; ela aspira a eliminá-lo para permanecer mestre do que é mais
caro para ela. O pai aparece como o intruso, o outro, o representante de uma
ordem externa que é violenta, mas devemos aceitar se queremos entrar no
jogo dos adultos e nos tornar adultos.

Fora do grupo primário, o poder tem outras raízes [além] das dificuldades da
aculturação – mas tira proveito, quando se manifesta, dos reflexos ambíguos
que a socialização criou para todos.

b) O poder às vezes nasce do uso do constrangimento físico: a imposição


da força obriga sua vontade. Enquanto somente podem confiar em seus
músculos e sua determinação, sua ação rapidamente encontra um limite:
aqueles que são dominados podem unir-se e libertar-se.

O poder também nasce da capacidade de alguns para influenciar aqueles que


os atendem: ao serem atraentes, convincentes... Pressionando, eles aceitam
seus pontos de vista, provocam dedicação, despertam anexos. Assim, vemos
que nos grupos emergem líderes cuja autoridade é reconhecida pela maioria
e que [eles] conseguem influenciar o comportamento de todos.

Que o poder assim tem raízes psicológicas individuais e coletivas é


indubitável, mas, se não encontrasse outra justificativa, permaneceria tão
limitado em suas manifestações que dificilmente mereceria ser estudado.
Além disso, implementando uma multidão de relações opostas, seus efeitos
quase se cancelariam.

c) O poder é indispensável para a solução de um grande número de problemas.


O ambiente resiste à iniciativa dos homens: quando estão isolados, algumas
empresas lhes são proibidas. Para tirar o máximo partido do meio ambiente,
as ações devem ser organizadas. No campo da vida de relação, é o mesmo:
desde que não tenhamos certeza dos termos de uma troca, desde que não
existam convenções para dar valor constante aos bens, os signos ou os seres
que passam de um a outro, as questões são exaustivamente solucionadas
uma a uma; cada transação pode avançar ou recuar na escala de prestígio
de consideração e de influência; a preocupação igualitária dá-lhe um valor
17
Unidade I

político: você não deve permitir que outros ganhem mais do que você ganha
(CLAVAL, 1979, p. 12-13).

Claval (1979, p. 14) caracteriza o contrato social como “metáfora” ou “mito” fundador do pensamento
sobre o social da modernidade. Assevera que “a aceitação de regras comuns facilita a vida social, libera
o indivíduo da obsessão da má-fé: ele sabe que será tratado com justiça enquanto as convenções forem
respeitadas pelas partes. Isso permite ampliar a esfera da vida de relação” (p. 128). Contrato social,
fundado no movimento contratualista, ou ainda jusnaturalista, como um grande acordo que a todos
envolve tanto nas obrigações quanto nos direitos, é fundamental ao raciocínio político, por isso será
tratado de modo crítico em vários trechos do livro-texto.

A síntese de seu raciocínio deveria estar na base da reflexão, das ações e intervenções na realidade,
pois Paul Claval, já em suas primeiras linhas, aponta a divisão entre os que insistem “nos mecanismos,
nos automatismos, nas regulações inconscientes e benéficas” e os que, como ele próprio em seu livro,
pretendem mostrar que “o jogo social nunca é inocente”, pois, “atrás das retroações que limitam
aparentemente o poder dos indivíduos, desmascara-se a ideologia que oculta os mecanismos reais e
leva a esquecer o peso desigual dos participantes e os que instituíram as regras sociais e com elas se
beneficiam” (CLAVAL, 1979, p. 7).

A referida cisão está na base do pensamento moderno, separando a realidade, posta, de um lado, sob
o foco de perspectivas naturalizantes que, no limite, instituem o funcionamento perfeito de sistemas
(os referidos automatismos, mencionados por Claval) e, de outro, sob o foco de perspectivas de fundo
político (que não deixam de ser filosóficas e/ou científicas). São visões de mundo diferentes por serem
baseadas em equilíbrio ou conflitos; são determinantes das práticas sociais.

Paul Claval (1979), ao tratar o que chama de “geometria das formas elementares de poder”, apresenta os
dois tipos básicos de relação de poder, o que se submete ao “poder puro” e o que se conforma à “autoridade”.

• o poder puro: caracterizado pela ação da força no alcance dos objetivos de uns sobre os outros, o que
também define a escala necessária ao estabelecimento das estruturas e dos instrumentos de aplicação;
• a autoridade: de base ideológica e econômica, aceita, portanto, sob efeito de acordos quanto à
delegação e representatividade, bem como de discursos indutores das ações.

Claval procura dar conta das espacializações do poder nas várias escalas, além de se debruçar sobre
o que denomina “geometria das formas complexas de poder”, demonstrando como é erigida a trama
social. Para tanto, aponta as relações:

• entre indivíduo e sociedade;


• sociais ou impessoais;
• societais ou customizados;
• societárias, pertinentes às instituições políticas.

18
CIÊNCIA POLÍTICA

A principal busca de Paul Claval, articuladora das demais, é pelas territorialidades (regiões mantidas,
ocupadas) e territorializações (em processo de ocupação).

Os conceitos espaciais são fundamentais para a reflexão sobre a realidade e para nela interferir.
Eles são vitais em razão da condição espacial de todos os seres e coisas. São eles: lugar, território,
região e espaço geográfico. Eles têm papel crucial na lida com as estratégias dos agentes em exercício
de seus poderes.

Saiba mais

A respeito dos conceitos elencados, recomendamos o texto de


Werther Holzer:

HOLZER, W. Uma discussão fenomenológica sobre os conceitos de paisagem


e lugar, território e meio ambiente. Território, ano lI, n. 3, p. 77-85, jul./dez. 1997.

Lembrete

O poder sobre a natureza está na base da economia elementar e da


evolução, produzindo toda a degradação ambiental a que estamos sujeitos,
ao passo que o poder de uns sobre outros se reflete nas relações pelo
surgimento de dissimetrias e desequilíbrios acintosos.

Para Paul Claval (1979), estudioso da vida social, nossa sociedade indaga ansiosamente sobre o
poder. Ele comenta obras que marcaram seu tempo em busca de esclarecimento das origens, formas e
papéis do poder no mundo contemporâneo. Contudo, elas tratam, infelizmente, de agregados abstratos
(índices estatísticos isolados, indicadores de atividade econômica, política, cultural), sem suas raízes
ecológicas, sem os habitat, sem as distâncias a percorrer, sem dispersões a organizar, concebendo as
entidades sociais como desprovidas de território, de modo “a-espacial”. É nessa frente que Paul Claval
quer atuar, compreendendo as estruturas de “grandes grupos em grandes países”, garantindo “sua
colaboração em tarefas de monitoramento e controle” dos recursos planetários.

Há organizações hierárquicas emergentes, e Claval (1979) as chama de poder puro, designando‑as


como incapazes de criar a coesão indispensável às sociedades modernas. Também a questão da
autoridade é trazida à reflexão, por fornecer a liga simbólica necessária a quaisquer projetos de expansão
de grupos e sociedades. Todavia, Paul Claval adverte que o jogo de influências e o alargamento de
domínios desencadeiam tensões que, o mais das vezes, confrontam-na. A autoridade, em meio aos
sistemas de crença que lhe dão amparo e algum sentido, materializa-se (ou “espacializa-se”) no mundo
como divisões em espaços, mais fechados e privativos que abertos. Entra em cena a discussão sobre a
função do público, suas definições e expressões.

19
Unidade I

A autoridade desempenha uma atribuição geográfica elementar em nosso mundo. Na medida em


que os sistemas de crença nos quais se baseia são questionados, toda a divisão do mundo em grandes
espaços é colocada em xeque (se trouve en porte à faux).

Há uma discussão essencial sobre a vitalidade política e cultural dos espaços públicos, em especial
com Jürgen Habermas, Richard Sennett, Roberto DaMatta e Nelson Saldanha.

A relevância dos espaços públicos para o exercício social de construção histórica e simbólica do
humano (sociabilidade, convivência, trocas em geral) é expressa tanto em atividades locais, como ganhar
as ruas, em blocos de carnaval ou manifestações políticas, quanto em eventos regionais, nacionais e
globais, como movimentos sociais de maior alcance por educação, saúde e políticas públicas.

Quando escrevia Espaço e Poder, Paul Claval (1979) via uma retomada das questões de poder pelos
pesquisadores, colocando em primeiro plano o papel do poder, da dominação, da influência ou da
autoridade. Contudo, segundo o autor, “insistia-se sobretudo nos mecanismos, nos automatismos, nas
regulações inconscientes e benéficas”.

O autor reitera continuamente a intenção de clarificar “o jogo social”, que “nunca é inocente”, o
que se descobre analisando movimentos e estratégias históricas (determinantes, em diferentes graus)
que interferem limitando, deslocando e neutralizando o poder de cada indivíduo. Daí a importância
dos estudos territoriais dos processos sociais no desmascaramento das racionalidades e ideologias que
ocultam as intenções reais dos agentes promotores da dinâmica institucional (os que instituíram as
regras sociais e com elas se beneficiam), fazendo-nos esquecer o peso político desigual entre estes
e os participantes comuns. O problema maior é que se comuns são alguns, não há comunicação que
unifique. Então, surge a questão: como ser povo além da artificialidade de nação?

Para ele:

O poder surge, assim, como um elemento de explicação indispensável,


que é, porém, mais invocado do que analisado: denunciam-se os modelos
clássicos de equilíbrio para ressaltar a existência de conflitos e tensões onde
antes não se viam a harmonia e o entendimento. Na massa considerável
das publicações que dão destaque ao papel dos fatos da dominação, é
surpreendente constatar a pobreza das reflexões sobre a natureza do poder,
a diversidade de suas manifestações e seu lugar no conjunto da arquitetura
social (CLAVAL, 1979, p. 7).

Uma constante de seu raciocínio é o interesse pelos “aspectos concretos da vida social, pela articulação
espacial dos grupos, pelas redes que os unem, pelas fronteiras que os separam, pelos domínios por onde
se estendem” (CLAVAL, 1979, p. 7-8).

O geógrafo francês aponta a satisfação corrente no meio acadêmico com respostas superficiais do
tipo: “uma coletividade, uma classe ou um indivíduo são capazes de impor sua vontade aos outros”.
Então, ele diz: tudo fica explicado? Apenas aparentemente, segundo ele, porque
20
CIÊNCIA POLÍTICA

Seria esquecer a influência da distância e da extensão: dependendo


de como um homem age sobre os outros, impondo-lhes sua vontade
pela força, ou levando-os a aceitar a autoridade de que está investido,
ou jogando com seus dons e a simpatia que sabe criar à sua volta, ou
tirando partido de sua posição econômica, de sua situação geográfica
ou de sua aptidão para inventar novas soluções e fazer com que sejam
adotadas, os limites espaciais de sua influência variam. Em certos casos,
nada retém os impulsos que partem dele; em outros, sua dominação se
detém quase que imediatamente. As sociedades são modeladas pelo
alcance das relações assimétricas: algumas são necessariamente curtas;
outras unem, sem nada perder de sua eficácia, os pontos mais distantes
(CLAVAL, 1979, p. 8).

Um tema, mais especificamente uma via de interpretação dos avanços nos estudos do poder, diz
respeito à identificação das modernizações de TI:

A cibernética e a teoria dos sistemas revolucionaram a pesquisa em ciência


política, ressaltando a análise das redes de relação e dos circuitos de
informação: o modelo de autorregulação ou de sujeição recém-explorado
no domínio das ciências aplicadas não definia um tipo de organização que
operava em qualquer corpo político? (CLAVAL, 1979, p. 8-9).

Tais estudos impulsionaram as modelizações e quantificações de uma vertente das ciências


políticas, mas não muito exitosa. Para Paul Claval (1979, p. 9), Michel Foucault foi o grande
responsável pelos avanços das ideias nesse campo, evidenciando as “técnicas de controle e de
vigilância, fazendo-se historiador minucioso do grande ‘encarceramento’ da época clássica e, depois,
dos procedimentos penitenciários”, explorando os meios de o todo social coagir moral e fisicamente
seus membros, “exercendo em relação a eles uma inquisição mais ou menos permanente. Assim,
o poder que ele analisa não é, simplesmente, negativo: é repressão, certamente, mas também
inovação, instituição de ordem nova” (CLAVAL, 1979, p. 9).

O autor associa os estudos de Foucault a certas pesquisas realizadas em outros países, nos
Estados Unidos, particularmente, onde os teóricos das organizações fizeram progredir um pouco,
nas mesmas linhas, a teoria do exercício do poder. Ao mencionar o trabalho de Robert Dahl,
diz que ele superou as teses sobre a origem da riqueza, mostrando também os “limites das
generalizações de Floyd Hunter, de Wright Mills e, em uma geração anterior, de Robert Lynd”
(CLAVAL, 1979, p. 9).

A teoria das organizações, em suas vertentes experimental ou especulativa, envereda tanto por
caminhos pouco conhecidos quanto por outros pouco ou nada evidentes, em busca da gênese e lógica
de agrupamentos sociais, sendo preciosa nessa empreitada, pois, ao basear-se em estudos etnográficos,
arqueológicos, historiográficos, geográficos, de história da economia, entre outros, concorre para
restaurar a compreensão complexa.

21
Unidade I

Claval acentua o seguinte:

Interessamo-nos pela sua faceta mais importante para compreender a


arquitetura espacial das sociedades e para apreender o jogo das assimetrias
que ao mesmo tempo limita e garante o exercício da liberdade. A grande
lição dos fatos do poder é que não há, no espaço, liberdade sem um mínimo
de organização, que essa organização é uma ameaça para cada pessoa e
restringe a autonomia das escolhas: as alienações da humanidade moderna
têm sua origem no desenvolvimento de dominações indispensáveis à
formação de áreas de grande circulação e de livre deslocamento (CLAVAL,
1979, p. 10).

Para Paul Claval,

A autoridade apresentou menos atrativos aos pesquisadores contemporâneos:


eles só a abordam sob um aspecto, de tal maneira lhes parece difícil
justificá-la no âmbito de uma sociologia ou de uma “politicologia” racionais.
Os historiadores e os juristas não sofrem do mesmo constrangimento: não
são teóricos da adequação perfeita dos meios aos fins, mas constatam a
existência de autoridades reconhecidas como legítimas pelos que estão a
ela sujeitos; entre eles, Jean Gottmann encontrou o essencial da inspiração
de sua grande obra sobre o território – uma das que mais contribuíram para
o conhecimento racional das relações entre o poder e o espaço (CLAVAL,
1979, p. 9).

O pesquisador francês segue a exposição sobre política mencionando o papel fundamental de


Max Weber na definição do ponto de partida da análise moderna ao estabelecer as categorias poder,
autoridade, dominação ou influência.

“Na medida em que a autoridade e o poder variam em função das doutrinas daqueles que os exercem
ou sofrem, a contribuição da reflexão normativa, desde Hobbes, Locke ou Rousseau, integrou-se, mas
sob uma forma nova, à teoria contemporânea dos aspectos espaciais do poder” (CLAVAL, 1979, p. 9).

Saiba mais

Recomendamos os textos de Viviane Forrester e de Jacques Généreux


sobre os horrores da economia e da política. Généreux dialoga com as teses
de Forrester.

FORRESTER, V. Horror econômico. São Paulo: Unesp, 1997.

GÉNÉREUX, J. O horror político. São Paulo: Bertrand, 1999.


22
CIÊNCIA POLÍTICA

Paul Claval enumera as relações intrínsecas entre a sociedade e o poder. Diz que as diferenças que
nos caracterizam não podem ser confundidas com desigualdades! Nessa conjuntura, é vital destacarmos
um trecho sobre o assunto, feito pelo doutor em geografia Gilvan Charles Cerqueira de Araújo.

Notas sobre as relações de poder e o território

[...]

1. Sobre o poder

Inevitavelmente, a fundamentação dessas características territoriais perpassa pelo


conceito de poder, por isso [são] necessárias algumas concepções de poder e suas fontes de
emanação para com o território. Nessa relação do poder com o território é que inicialmente
a concepção de poder se torna importante e, após esse passo, leva o conceito para suas
zonas de uso corrente e também mais complexas, como o Estado, os governos e as classes
sociais.

Dos principais autores que tratam da problemática do poder, faremos uso de um


concentrado conjunto de propostas, contando com uma pequena genealogia do conceito
feita por Lebrun (1981); o poder discursivo e a maneira pela qual o poder ora foi tratado
em sua proximidade com a economia, ora em relação à ciência jurídica, e como superar
essa dicotomia de Michel Foucault (1979); a figuração do poder e suas formas extremadas
nos conflitos sociais e sua relação com o uso da violência, em Hannah Arendt (1994); as
interpretações políticas do poder em seu formato vertical de ação ao longo da história dos
Estados e suas formas de governo, em Burdeau (2005) e Dallari (1976).

Gérard Lebrun (1981) faz um retorno histórico do poder. Basicamente, o autor elabora
uma dialética epistemológica entre a concepção clássica de poder dominador e coercitivo,
historicamente ligado à ideia de Estado, e também busca e reflete sobre a crítica às teorias
anglo-saxônicas do poder enquanto “soma zero” – uma herança da teoria dos jogos, na qual
em algum momento, para cada dominado, haverá um dominante e vice-versa, fechando
o sistema em si. Nesse sentido é que o autor nos apresenta a definição da ideia de poder,
aproximando-se do poder enquanto manifestação de forças:

Em suma, o poder não é um ser, “alguma coisa que se adquire, se


toma ou se divide, algo que se deixa escapar”. É o nome atribuído a
um conjunto de relações que formigam por toda parte na espessura
do corpo social (poder pedagógico, pátrio poder, poder do policial,
poder do contramestre, poder do psicanalista, poder do padre etc.)
(LEBRUN, 1981, p. 8).

Durante toda sua exposição, Lebrun (1981) valoriza o importante papel dos teóricos
renascentistas e modernos em suas elucubrações a respeito do Estado. Em uma tentativa de
aliar as teorias clássicas de poder central do soberano ao poder multifacetado e diluído dos
23
Unidade I

contemporâneos, o autor propõe a transferência da dominação pela manipulação estatal,


vistas nos dias de hoje pela aliança simbiótica entre liberalismo e regimes democráticos de
governo. Portanto, para o autor, “o Estado moderno é menos abertamente dominador, e
mais manipulador; preocupa-se menos em reprimir a desobediência do que em preveni-la.
É feito menos para punir do que para disciplinar” (LEBRUN, 1981, p. 33).

Segundo Foucault (1979), há uma diferenciação das forças existente entre os indivíduos
de uma sociedade. Isso quer dizer que o poder não está localizado apenas em uma direção,
localidade ou organismo, como os Estados, escolas e prisões, mas sim em todas as trocas de
experiência dos sujeitos.

A crítica do filósofo francês é pautada em duas extremidades de contrariedade em


relação às concepções históricas de poder. Por um lado, temos, como Lebrun (1981) ressalta,
a tradição do poder estatal na figura do soberano, por outro, a corrente marxista de
alinhamento do poder com as forças produtivas no desenrolar da história pelas sociedades.
Nas palavras de Foucault, temos a seguinte situação entre esses dois extremos:

No caso da teoria jurídica clássica, o poder é considerado como um


direito de que se seria possuidor como de um bem e que se poderia,
por conseguinte, transferir ou alienar, total ou parcialmente, por um
ato jurídico ou um ato fundador de direito, que seria da ordem da
cessão ou do contrato. O poder é o poder concreto que cada indivíduo
detém e que cederia, total ou parcialmente, para constituir um poder
político, uma soberania política. Nesse conjunto teórico a que me
refiro, a constituição do poder político se faz segundo o modelo
de uma operação jurídica que seria da ordem da troca contratual.
[...] No outro caso – concepção marxista geral de outra coisa, da
funcionalidade econômica do poder. Funcionalidade econômica no
sentido de que o poder teria essencialmente como papel manter
relações de produção e reproduzir uma dominação de classe que
o desenvolvimento e uma modalidade própria da apropriação das
forças produtivas tornaram possível. O poder político teria nesse caso
encontrado na economia sua razão de ser histórica (FOUCAULT, 1979,
p. 174-175).

O viés econômico que permeia a história é inegável, mas o importante é não deixar para
trás o substrato que tanto as instituições quanto os interesses econômicos fundamentam,
ou seja, a repressão, a dominação e a manipulação não só dos soberanos, mas também
de todos que por alguma contingência específica estiverem exercendo o domínio sob
outro indivíduo ou comunidade: “o poder é essencialmente repressivo. O poder é o
que reprime a natureza, os indivíduos, os instintos, uma classe. Quando o discurso
contemporâneo define repetidamente o poder como sendo repressivo, isto não é uma
novidade” (FOUCAULT, 1979, p. 175).

24
CIÊNCIA POLÍTICA

Não há por que negar a mobilidade escalar do poder, indo dos mais colossais aparelhos
estatais de controle até os comandos imperativos vociferados por coronéis ou burocratas
em vilas e comunidades isoladas. Assim, conseguimos extrair o caráter “essencialista” do
poder, colocando-o como forças em processos contraditórios de manifestação:

A partir do momento em que tentamos escapar do esquema


economicista para analisar o poder, encontramo-nos mediatamente
na presença de duas hipóteses: por um lado, os mecanismos do
poder seriam de tipo repressivo, ideia que chamarei por comodidade
de hipótese de Reich; por outro lado, a base das relações de poder
seria o confronto belicoso das forças, ideia que chamarei, também
por comodidade, de hipótese de Nietzsche (FOUCAULT, 1979, p. 176).

Outra importante representante do pensamento político e filosófico contemporâneo,


Hannah Arendt (1994) – apesar de haver concordância com o pensamento de Michel
Foucault, a autora resgata a importância do poder coletivo, caso assim não fosse, a própria
ideia de Estado perderia o seu fundamento1 –, aprofunda a questão do poder de repressão
do Estado, por meio da validação legítima do uso da violência adquirida pela justificativa de
consenso de nomeação do aparelho estatal como protetor da ordem social.

E nessa reflexão entre o poder, o jogo de forças e a validação da autoridade é que Arendt
explora a violência como expressão máxima de visibilidade concreta do poder manifestado.
No entanto, assim como há a necessidade dessa aceitação coletiva, a autora também reitera
que devemos conceber o poder em seu formato impessoal, coletivo, multiverso para além
do indivíduo:

O poder nunca é propriedade de um indivíduo; pertence a um grupo


e permanece em existência apenas na medida em que o grupo
conserva‑se unido. Quando dizemos que alguém está “no poder”, na
realidade nos referimos ao fato de que ele foi empossado por um
certo número de pessoas para agir em seu nome (ARENDT, 1994, p. 36).

O poder acaba por se enraizar das instituições para os seus representantes pessoais, e o
instrumento de sua perduração diante da população subalterna será a mais clara possível, a
violência: “[...] Os que vivem sob um déspota não tem nenhum interesse pessoal em obedecer
às injunções que lhe são feitas ou respeitar as proibições que vêm limitar sua liberdade. Se
o senhor não pudesse recorrer à força física, ninguém se curvaria às suas ordens” (CLAVAL,
1979, p. 23).

1
“O uso da força é um dos elementos da vida internacional. Nos Estados, o governo dispõe do monopólio
legal do recurso à violência e o utiliza para tornar impossível o uso privado da coação física: a imagem normal
da vida política é a de relação desenvolvida pacificamente pela negociação e a concessão, ou de regimes calmos,
estabelecidos depois de breves choques, revoluções ou guerra civis: mesmo quando estas se prolongam, a luta
armada surge como um elemento anormal contra a natureza” (BURDEAU, 2005, p. 203).
25
Unidade I

Por essa razão, as punições aos dissidentes à ordem dominante serão avassaladoras e
inegociáveis; assim o foram com os revoltosos na Bahia, no Maranhão, em Minas Gerais
e no Rio de Janeiro e, mais do que punir, o objetivo principal era utilizar este símbolo do
mando do poder como exemplificação para as outras pessoas, a favor ou não de algum tipo
de posicionamento contrário aos comandos do rei.

Em concordância tanto com Foucault como com Arendt, Georges Burdeau (2005) diz
que o poder é o encontro desigual de forças. A manifestação dessa desigualdade gerará a
visibilidade do poder enquanto diminuição ou sobrepujamento dos dominados diante do
comando e ordens de quem domina [...] “todo o problema do Poder se deve a essa dualidade
dos elementos que o constituem e se influenciam reciprocamente: a vontade de um chefe
e o poder de uma ideia que, a um só tempo, o sustenta e o supera” (BURDEAU, 2005, p. 6).

Além de Burdeau (2005), haverá outros autores que reafirmarão a importância do


poder em grande magnitude, o poder do Estado. Essa concepção clássica, apesar de termos
demonstrado a opinião dos autores em ultrapassá-la, ainda é recorrente nos estudos
jurídicos e políticos. Por isso, assim como Lebrun (1981) lembra-nos da importância do
poder estatal, é Dallari (1976, p. 40) que apresenta algumas diretrizes quando o interesse
for discutir o Estado e suas maneiras de uso e manifestação do poder:

a) O poder, reconhecido como necessário, quer também o


reconhecimento de sua legitimidade, o que se obtém mediante o
consentimento dos que a ele se submetem.

b) Embora o poder não chegue a ser puramente jurídico, ele age


concomitantemente com o direito, buscando uma coincidência entre
os objetivos de ambos.

c) Há um processo de objetivação, que dá precedência à vontade


objetiva dos governados ou da lei, desaparecendo a característica de
poder pessoal.

d) Atendendo a uma aspiração à racionalização, desenvolveu-


se uma técnica do poder, que o torna despersonalizado (poder do
grupo, poder do sistema), ao mesmo tempo que busca meios sutis de
atuação, colocando a coação como forma extrema.

Eis que chegamos então à questão central da qual nos propomos tratar, que é a relação
entre o Estado e o território. Não apenas geógrafos voltados a assuntos ligados à política irão
defender o estudo dessa relação. A negligência da geografia para com a política é lembrada
por Foucault (1979) em sua afirmação do protagonismo do espaço e dos geógrafos.

E também mais enfaticamente temos Burdeau (2005, p. 15) defendendo a retomada


dos estudos históricos sobre o Estado e o território, pois, se o território “[...] é assim ligado
26
CIÊNCIA POLÍTICA

à ideia do Estado, ele exige, para que a ideia não se desagregue, que o Estado se empenhe
em aprimorar as relações entre os indivíduos e seu contexto geográfico”. Por essas razões,
os geógrafos possuem lugar cativo no aprofundamento de estudos a respeito dessa relação,
por seu arcabouço teórico e fundamentação conceitual:

As dimensões espaciais dos fatos do poder foram negligenciadas. A


geografia política voltou-se prematuramente para a análise do Estado
e não soube dissecar as engrenagens dos governos e sua articulação
sobre a sociedade civil. A parte de influência, autoridade e poder
que existe na sociedade civil à margem das estruturas propriamente
políticas foi esquecida pela maioria dos sociólogos e economistas e
exagerada pelos marxistas que negaram a importância do Estado,
elemento da superestrutura, tratado com um desprezo um pouco
altaneiro. Uma visão justa dos problemas implica que a extensão
e a distância sejam levadas em conta em toda interpretação dos
elementos sociais, e que seja concedido um lugar às assimetrias das
arquiteturas sociais (BURDEAU, 2005, p. 215).

O que autor está afirmando nada mais é que a preocupação em unir esferas
complementares, em uma análise que se volte para elementos como sociedade civil, território,
instituições estatais, história cultural, características econômicas (e observemos que ele
critica o economicismo da história, assim como Foucault), e a revalidação da importância
da superestrutura. Em suma, para se falar de indivíduo e sociedade, há de se ter em mente
que entre a terra e o homem há muito mais que instintos, valoração monetária e fins de
uso imediato.

O poder e suas relações na sociedade possuem diferentes faces de manifestação, a


depender da situação em que ele está sendo analisado, por isso há, como afirma Foucault,
ora a tendência econômica, ora a histórica ou cultural.

E justamente por se tratar de uma conceituação de primeira grandeza nas ciências


sociais é que o poder terá na geografia um lugar cativo, relacionado a estudos específicos
no que tange à sua expressão espacial. E nesse sentido nos voltamos agora à maneira pela
qual o poder passa a ser estudado na ciência geográfica, ou seja, por meio de seu potencial
político, econômico e cultural.

2. Poder e espaço geográfico, as faces do território

[...]

Pode-se, nesse momento, propor um aprofundamento em relação a esse importante e


imprescindível conceito-chave do pensamento geográfico que é o território. Vejamos o que
diz Marcos Saquet (2007, p. 142) sobre o território, apresentando-nos uma definição ampla
e contundente sobre esse conceito:
27
Unidade I

O homem age no território, espaço (natural e social) de seu habitar,


produzir, viver objetiva e subjetivamente. O território é um espaço
natural, social e historicamente organizado e produzido, e a
paisagem é o nível do visível e percebido desse processo. O território
é chão, formas espaciais, relações sociais, e tem significados;
produto de ações históricas (longa duração) que se concretizam em
momentos distintos e superpostos, gerando diferentes paisagens.
Há, no território: identidade e/ou enraizamento e conexões nos
níveis nacional e internacional; heterogeneidade e unidade;
natureza e sociedade; um processo histórico com definições
territoriais específicas para cada organização social e o aparente,
que corresponde à paisagem.

Reincidentemente, com a premissa espacial, o próprio Raffestin (1993) nos conecta


diretamente com o que foi exposto anteriormente sobre as relações de poder, mas nesse
caso essas relações são observadas e analisadas em sua expressão espacial, ou melhor,
geograficamente. Para o autor:

É essencial compreender bem que o espaço é anterior ao território.


O território se forma a partir do espaço, é o resultado de uma
ação conduzida por um ator sintagmático (ator que realiza um
programa) em qualquer nível. Ao se apropriar de um espaço,
concreta ou abstratamente (por exemplo, pela representação), o
ator “territorializa” o espaço. [...] O território, nessa perspectiva,
é um espaço onde se projetou um trabalho, seja energia, [seja]
informação, e que, por consequência, revela relações marcadas pelo
poder (RAFFESTIN, 1993, p. 143).

E por meio dessa citação voltamos à situação, ou seja, a ação do poder em um


determinado lugar (sítio), configurando assim o que outros autores chamarão da presença
política e da própria política no espaço geográfico, que acabou por se tornar ao longo dos
anos um dos ramos mais profícuos de estudos pela geografia.

Na confluência da presença das relações de poder no espaço geográfico com a potência


material de análise desse posicionamento é que o território se fortalece epistemologicamente.
Em suma, é pelo território que a materialidade da realidade objetiva se torna passível de
análise teórica e metodológica pelo labor geográfico, pois nele se agregam a potência e
a inerência material do mundo em que vivemos em conjunto com as relações sociais (de
poder), formando múltiplos territórios e territorialidades.

E nesse entendimento do conceito de território consideram-se as facetas simbólica


e subjetiva que compõem esses territórios, pois além do domínio, controle e posse
da terra, há a filiação a essa área do espaço geográfico, que lhe dá uma significação

28
CIÊNCIA POLÍTICA

própria, engendrando as territorialidades,2 que, somadas às relações de poder, aumentam


consideravelmente o grau de importância que os territórios possuem para um indivíduo
ou uma sociedade: “A configuração territorial não é o espaço, já que sua realidade vem
de sua materialidade, enquanto o espaço reúne a materialidade e a vida que a anima”
(SANTOS, 1996, p. 51).

[...].

Adaptado de: Araújo (2017, p. 24-32).

1.3 Política no plano da existência

Nos capítulos iniciais de Ética a Nicômaco, Aristóteles aplica o termo


“política” a um assunto único – a ciência da felicidade humana – subdividido
em duas partes: a primeira é a ética e a segunda é a política propriamente
dita. A felicidade humana consistiria em uma certa maneira de viver, e
a vida de um homem [seria] o resultado do meio em que ele existe, das
leis, dos costumes e das instituições adotadas pela comunidade à qual ele
pertence. Na zoologia de Aristóteles, o homem é classificado como um
“animal social por natureza”, que desenvolve suas potencialidades na vida
em sociedade, organizada adequadamente para seu bem-estar. A meta
da “política” é descobrir primeiro a maneira de viver que leva à felicidade
humana, e depois a forma de governo e as instituições sociais capazes de
assegurar aquela maneira de viver. A primeira tarefa leva ao estudo do
caráter (ethos), objeto da Ética a Nicômaco; a última conduz ao estudo da
constituição da cidade-Estado, objeto da Política. Esta, portanto, é uma
sequência da Ética, e é a segunda parte de um tratado único, embora seu
título corresponda à totalidade do assunto. Aliás, já na geração anterior a
Aristóteles, Platão, seu mestre, havia abrangido as duas partes do assunto
em um só diálogo – A República.

No esquema global das ciências segundo Aristóteles, a “política” pertence


ao grupo das ciências práticas, que buscam o conhecimento como um meio
para a ação, em contraposição às ciências teóricas (a metafísica e a teologia,
por exemplo), cujo conhecimento é um fim em si mesmo. As ciências práticas
se subdividem, por sua vez, em conformidade com a sistemática dicotômica
de Aristóteles, em dois grupos: as ciências “poiéticas” (ou seja, produtivas),
que nos ensinam a produzir coisas, e as ciências no sentido mais estrito, que
nos mostram como agir; as primeiras visam a algum produto ou resultado,
enquanto a prática mesma do conhecimento adquirido é o próprio fim no

2
“Portanto, todo território é, ao mesmo tempo e obrigatoriamente, em diferentes combinações, funcional
e simbólico, pois exercemos domínio sobre o espaço tanto para realizar ‘funções’ quanto para produzir ‘significados’”
(HAESBAERT, 2004, p. 3).
29
Unidade I

caso das últimas. As primeiras incluem as profissões e os ofícios, e as últimas


abrangem as chamadas “belas-artes” (a música e a dança, por exemplo), que
são em si mesmas um fim.

A ciência prática por excelência é a “política”, isto é, a ciência do bem-estar


e da felicidade dos homens como um todo; ela é prática no sentido mais
amplo da palavra, pois estuda não somente o que é a felicidade (o assunto da
Ética), mas também a maneira de obtê-la (o assunto da Política); ao mesmo
tempo ela é prática no sentido mais estrito, pois leva à demonstração de
que a felicidade não é o resultado de ações, mas é em si mesma uma certa
maneira de agir (KURY, 1985, p. 7).

A política nasce da diversidade e se encaminha em busca da felicidade, é uma premissa ao modo


aristotélico e confirmado por Hannah Arendt. Então, fazemos política porque somos diferentes.
Assim, se fôssemos idênticos, algo bastante chato, não haveria política. Política é o resultado de
nossa condição humana, como bem afirma Hannah Arendt em seus livros A Condição Humana e
O Que é Política?

Somos diferentes, logo fazemos política. Parece muito simples.

O excerto a seguir traz uma parte do raciocínio complexo de Hannah Arendt sobre a política nas
escalas e circunstâncias individual e planetária:

Essa contradição [entre a liberdade política e a vida] manifesta-se


da maneira mais palpável porque sempre foi prerrogativa da política
exigir, em certas circunstâncias, o sacrifício da vida dos homens que
nela participam. Só que, é claro, essa exigência deve ser entendida
no sentido de exigir-se do indivíduo que sacrifique sua vida para o
processo de vida da sociedade; de fato, existe aqui uma relação que
pelo menos impõe um limite para o risco de vida: ninguém pode ou deve
arriscar sua vida se com isso colocar em perigo a vida da Humanidade.
Ainda voltaremos a examinar essa relação, que como tal chegou à
nossa consciência porque só agora dispomos da possibilidade de pôr
um fim à vida da Humanidade e de toda a vida orgânica; na verdade,
quase não existe uma categoria política e quase não existe um conceito
político tradicional que, medido nessa mais jovem possibilidade, não se
tenha demonstrado ultrapassado na teoria e inaplicável na prática e,
na verdade, justamente porque, em certo sentido, o que está em jogo
hoje, pela primeira vez, também na política externa, é a vida, ou seja, a
sobrevivência da Humanidade.

Mas essa relação da própria liberdade com a sobrevivência da


Humanidade não risca do mapa a oposição entre liberdade e vida, na
qual se assentou toda a coisa política e que continua decisiva para
30
CIÊNCIA POLÍTICA

todas as virtudes especificamente políticas. Até se poderia dizer, com


muito direito, que é esse próprio fato, de que hoje o que está em jogo
na política é a existência nua e crua de todos, o sinal mais evidente da
calamidade em que nosso mundo caiu – calamidade que, entre outras
coisas, consiste em a política ameaçar ser riscada da face da Terra.
Pois o risco a ser corrido por aquele que lida na esfera política – na
qual deve levar tudo a conselho, antes de sua vida – diz respeito não à
vida da sociedade ou da nação ou do povo, para o qual ele sacrificaria
sua vida; diz respeito muito mais à liberdade, tanto a própria como a
do grupo ao qual o indivíduo pode pertencer, e com ela a segurança
da existência do mundo no qual esse grupo ou esse povo vive, e que
ela construiu no trabalho de gerações para encontrar um alojamento
seguro e calculado a longo prazo para agir e conversar – quer dizer para
as verdadeiras atividades políticas. Em circunstâncias normais, ou seja,
nas circunstâncias que eram decisivas na Europa desde a Antiguidade
romana, a guerra era de fato apenas a continuação da política por
outros meios e isso significa que ela sempre podia ser evitada se um
dos adversários decidisse aceitar as exigências do outro. Tal aceitação
poderia custar a liberdade, mas não a vida.

Essas circunstâncias, como todos sabemos, hoje não existem mais;


quando olhamos para trás, elas nos parecem uma espécie de paraíso
perdido. Mas se o mundo em que vivemos agora também não deriva
e nem se explica – de maneira causal ou no sentido de um processo
automático – pelos tempos modernos, mesmo assim ele cresceu
no solo desses tempos modernos. No que concerne à coisa política,
isso significa que tanto a política interna para a qual o objetivo mais
elevado era a própria vida como a política externa que se orientava pela
liberdade como o bem mais elevado viam na força e no agir violento seu
verdadeiro conteúdo (ARENDT, 2002, p. 30).

Um tema que lhe é muito caro, a preservação da vida, depreende da tensão entre os imperativos
da política interna (ações que dependem do indivíduo) e as ameaças da política externa (relações que
tomam o indivíduo), internacional.

Reafirmamos, em consonância com Zygmunt Bauman, aquilo que nos move neste livro-texto: a
política somente é importante porque está na vida diária, no cotidiano de todos. Ela está em toda
parte, em qualquer passo dado. Assim, precisamos levar esse conteúdo para a política profissional,
institucionalizada.

O texto que destacaremos a seguir é da obra 10 Lições sobre Hannah Arendt (2012), de
Luciano Oliveira.

31
Unidade I

Terceira lição

[...]

Quando Arendt se refere à política em um sentido positivo, está se referindo ao que foi a
experiência da polis grega! Arendt, recordemos, foi aluna de Heidegger e deste guardou algo
do seu método: “A volta dele aos filósofos gregos, sua luta com a etimologia mesma das
palavras que eles utilizaram, para lhes recapturar a primeira e fresca apreensão da maravilha
e terror do Ser”. Seguindo suas pegadas, Arendt repetidas vezes explicita a sua visão da
política como estando baseada na experiência grega clássica. Em A Condição Humana, um
capítulo sobre o que seria a essência da ação política se chama, exatamente, “A solução
grega”. E mais tarde dirá:

Empregar o termo “político” no sentido da polis grega não é nem


arbitrário nem descabido. Não é apenas etimologicamente e nem
somente para os eruditos que o próprio termo, que em todas as
línguas europeias ainda deriva da organização historicamente ímpar
da cidade-Estado grega, evoca as experiências da comunidade que
pela primeira vez descobriu a essência e a esfera do político.

A resposta sobre o que seria tal essência, que ela exploraria mais sistematicamente no
livro de 1958, já está no conjunto de manuscritos [...] em alemão que só em 1993 foram
publicados na Alemanha, com o título Wast ist Politik?, e que Jerome Kohn publicou em uma
versão inglesa com o título Introdução na política, preservando assim a ideia de introducere
– “fazer entrar”. Foi na Grécia Antiga – mais exatamente em Atenas –, na época de seu
maior esplendor, que ela, a política, apareceu, em um espaço um tanto simbólico que os
gregos chamaram de polis. Ali, os homens livres e iguais – aqueles que estavam libertos
das necessidades laborais da vida – compareciam e davam-se à experiência política por
excelência, a ação, ou seja, o ato de vir a público e, em companhia de seus pares, iniciar com
palavras e atos algo novo cujo resultado não podia ser conhecido de antemão.

Diferentemente do que pode parecer ao senso comum, que tradicionalmente vincula o


“milagre grego” à época da imbatível tríade Sócrates-Platão-Aristóteles, a polis ateniense
que Arendt tanto admira é anterior ao período que Platão inaugura. Citando-a: “A política
como tal existiu tão raramente e em tão poucos lugares, que, falando historicamente,
só umas poucas épocas extraordinárias a conheceram”. Na Grécia Antiga, essa “época
extraordinária” já tinha passado quando emergiu o pensamento político grego que mais
conhecemos, do qual Platão e Aristóteles são os nomes mais conhecidos. Mas o período
inaugurado pelos diálogos socráticos já assinala a decadência da polis, e tal decadência,
pelo menos no plano teórico, chega a ser debitada na conta de ninguém menos do que
o próprio Platão – pelo seu esforço de “libertar o filósofo dos assuntos políticos”. Por que
isso? Porque foi a polis ateniense que condenou Sócrates à morte! A explicação é dada
pela própria Arendt:

32
CIÊNCIA POLÍTICA

O hiato entre a filosofia e a política se abriu historicamente com o


julgamento e condenação de Sócrates, que na história do pensamento
político é um momento crítico análogo ao julgamento e condenação
de Jesus na história da religião. Nossa tradição de pensamento político
começou quando a morte de Sócrates levou Platão a desesperar da
vida da polis.

Viriam daí, de um lado, a hostilidade platônica ao reino das opiniões múltiplas e voláteis
vigentes na polis, onde as decisões seriam fruto de um exercício permanente de discussão e
persuasão, e, de outro, a valorização da figura do “rei-filósofo”, espécie de expert detentor de
um saber acima da plebe e gozando de um privilégio sobre os cidadãos ordinários. Começava
a decadência da política como o agir comum de cidadãos livres, daí em diante – em um
processo que chegou ao paroxismo nos tempos modernos – reduzidos, quando muito, à
condição de eleitores ocasionais. Confundem-se aqui processos históricos e culturais que
incluem desde a decadência de Atenas e, posteriormente, da República romana, até a
desvalorização da “esfera política” promovida pelo cristianismo, ao assimilá-la “ao mundo
terrestre da concupiscência”.

Assim, Platão carrega a responsabilidade de ter substituído a práxis da persuasão


pela ideia de dominação na ordem do político. O movimento atinge sua culminância, no
alvorecer da Modernidade, com o pensamento de Hobbes, que estabelece uma equivalência
significativa entre o exercício do poder e o emprego da força bruta. Tal concepção tinha se
tornado natural às vésperas do século XX, estando presente em pensadores tão diferentes
quanto Marx ou Weber, autor da célebre definição do poder como o monopólio do exercício
da violência:

É nesse contexto que nasce a ideia de que a política é uma


necessidade, de que a política em sentido amplo é apenas um meio
para se alcançarem fins mais elevados situados fora dela e de que ela
deve, portanto, justificar-se em termos desses fins.

Em suma, um mal necessário. A conexão entre essa “volta aos gregos” e a crítica a Marx
se aclara quando se considera que a participação na polis nada tinha a ver com finalidades
práticas como a satisfação das necessidades, assunto doméstico por definição. Ou seja,
enquanto Arendt, na esteira dos gregos, vê na política a mais nobre atividade humana, Marx a
vê como um estorvo do qual convém um dia se livrar. Entendamo-nos: Marx é, como Arendt,
um libertário. Afinal, o que quer a revolução tão esperada por ele senão libertar o homem
do império da necessidade? Mas é aqui, justamente, que as coisas se complicam. Lembremos
que o grego que tinha assento na polis era um homem liberto das necessidades materiais da
existência, e, portanto, livre para discutir e deliberar com seus pares, igualmente libertos. Havia
o mundo privado da casa, no qual tais necessidades eram satisfeitas à base da dominação
sobre as mulheres e os escravos, e no qual não havia que se falar em deliberação, e havia a
“esfera pública”, na qual não havia dominação, mas igualdade. Entre uma coisa e outra, nada.
Não havia o que Arendt vai chamar de “sociedade” ou de “o social”. Por uma série de razões
33
Unidade I

que não vem ao caso abordar – até pela imensidão do assunto –, posteriormente ao declínio
da polis ocorreu um fenômeno que adquirirá uma importância cada vez maior e que Arendt
assim descreve: “A esfera da vida e de suas necessidades práticas, que na Antiguidade como
na Idade Média fora considerada a esfera privada por excelência, ganhou uma nova dignidade
e adentrou a arena pública em forma de sociedade”.

Estamos aqui diante de um fenômeno que nos é inteiramente familiar: uma concepção
de política “na qual o Estado é visto como uma função da sociedade”, algo como “um mal
necessário em prol da liberdade social”, prevalecente no mundo moderno. É aqui onde se
introduz a crítica a Marx, que se alguma finalidade vê na política é justamente a de pôr-se
a serviço dessas necessidades, evidentemente para superá-las, e, com isso, decretando seu
próprio fim, por ter se tornado supérflua.

Marx, para Arendt, atribuíra ao trabalho uma importância suprema na vida humana [...].

Fonte: Oliveira (2012, p. 19-21).

Hannah Arendt e Zygmunt Bauman são fundamentais nesse assunto, pois ambos procuram
a vida nos conceitos, em seu conteúdo social. Vão além do exercício teórico, seus trabalhos são
exercícios políticos.

Nesse ponto do texto, enfatiza-se a face mais elementar, mais básica da política, aquela do nosso
dia a dia. Quando queremos ou precisamos seguir uma direção, trilhar um caminho, trata-se de ação
política, conforme acentua Arendt, citada por Lincoln de Abreu Penna em sua resenha sobre a autora:

[...] Hannah não pretendia escrever um trabalho acadêmico clássico, uma


ciência política convencional. Desejava ocupar-se de uma outra dimensão
da política, aquela na qual ela se revela por inteiro, isto é, a política que tem
a ver com as condições básicas da existência humana. É esta introdução que
se propôs a examinar.

Partindo da premissa segundo a qual o sentido da política é a liberdade,


Hannah Arendt sugere que comecemos a recuperar o seu sentido original,
pois a história do século XX é a história, se não de sua supressão, pelo menos
de sua obstrução. A frequência de guerras e revoluções nesse século “têm
em comum entre si o fato de serem símbolos da força“, tornando o convívio
com a liberdade mais uma utopia do que uma conquista real e construtiva
(PENNA, [s.d.]).

Arendt destaca temas como pluralidade, diálogo e negociação:

“A política”, diz ela, “baseia-se na pluralidade dos homens”. Em seguida,


acrescenta, “política trata da convivência entre diferentes”. Assim, se a
pluralidade implica coexistência de diferenças, a igualdade a ser alcançada
34
CIÊNCIA POLÍTICA

através desse exercício de interesses, quase sempre conflitantes, é a liberdade,


e não a justiça, pois é aquela, a liberdade, que distingue “o convívio dos
homens na polis de todas as outras formas de convívio humano que eram
bem conhecidas dos gregos” (PENNA, [s.d.]).

E o autor continua:

[...] na política, temos de diferenciar entre objetivo, meta e sentido.

[...] A esses três elementos de todo agir político – ao objetivo que persegue,
à meta que idealiza e pela qual se orienta e ao sentido que nele se revela
durante sua execução – agrega-se um quarto, aquele que na verdade jamais
é motivo imediato do agir, mas que o põe em andamento. Vou mencionar
esse quarto elemento de princípio do agir e com isso sigo Montesquieu, que,
em sua discussão sobre as formas do Estado, em Esprit des Lois, descobriu
esse elemento pela primeira vez. Se se quiser entender esse princípio em
termos psicológicos, pode-se então dizer que é a convicção básica que
um grupo de homens compartilha entre si, e essas convicções básicas
que desempenharam um papel no andamento do agir político nos foram
transmitidas em grande número, embora Montesquieu só conheça três delas
– a honra nas monarquias, a virtude nas repúblicas e o medo nas tiranias.

Ao sustentar que a política é algo vital para os indivíduos e para a sociedade,


Hannah é atual. O fato de os políticos, os profissionais, estarem padecendo
uma rejeição tão grande por parte do cidadão comum não quer dizer
que o exercício da política esteja comprometido. Ao contrário, a vocação
“autárquica”, como diz Hannah, ou simplesmente o destino comum da
humanidade fortalece a sua convicção de que o “objetivo da política é a
garantia da vida no sentido mais amplo”. E este sentido, o da libertação, será
tão satisfatório quanto mais o homem puder caminhar em busca de seus
objetivos sem amarras institucionais (PENNA, [s.d.]).

Se nos basearmos em José Arthur Giannotti (2014), vamos encontrar três classes de contradição:
uma, idealista, representada por Hegel; outra, materialista, defendida por Marx; a última, com Carl
Schmitt à frente.

Para Giannotti (2014, p. 4), “a política é muito mais que disputa pelo poder”. Afirma que “disputa é
entendida de diversas maneiras, mas, tanto à esquerda como à direita, principalmente como contradição”.

O autor mostra, porém, que a contradição (“no seu sentido estrito, a contradição, como junção de
uma proposição e sua negativa, bloqueia o pensamento”) pode ser uma via privilegiada de análise e
reflexão. Contradição que tanto pode travar o encadeamento do raciocínio quanto abri-lo, como faz
Hegel (GIANNOTTI, 2014, p. 4).

35
Unidade I

Hegel faz dela o núcleo de qualquer devir, mas para isso pensa o ser e o nada
se determinando mutuamente, vindo a ser a partir dessa tensão. Ao pensar
a luta de classes como uma contradição, Marx se ajusta a esse modelo.
Somente assim pode ver nos conflitos do capital e do trabalho um vetor que
os supere e conserve suas potencialidades, criando outra figura que abriria
uma nova época da história. No entanto, se a contradição é uma figura do
discurso, como ela pode penetrar todo o real? Somente se ambos, o discurso
e o real, tiverem a mesma estrutura (GIANNOTTI, 2014, p. 4-5).

Trata-se de uma equivalência ontológica entre realidade e linguagem. Isto é, ao serem ambas
revestidas do mesmo material e ordenadas pelo mesmo sentido, remetem uma à outra. Ao perscrutarmos
a realidade, estaríamos em condição de falar (e pensar sobre ela), enquanto o discurso nos levaria até a
realidade. É um procedimento próprio da condição de equivalência ou de ontologias homólogas. É por
isso que a linguagem pode trazer o real (tem essa aspiração e esse potencial) como raciocínio encadeado.

Saiba mais

Para obter mais conhecimentos sobre ontologia e ontologia homóloga,


leia as seguintes obras:

MERLEAU-PONTY, M. A estrutura do comportamento. São Paulo:


Martins Fontes, 2006.

___. A fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

___. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 2005.

A contradição é fundamental para a comunicação didática. Assim, Giannotti aponta o modo como
Karl Marx abriu-se para o tema:

Marx nunca poderia aceitar esse “idealismo” [de Hegel]. Contudo, essa recusa
deixa uma sobra no seu pensamento político. A passagem do capitalismo
para o socialismo demanda a destruição do Estado, que no fundo é a
imagem das relações capitalistas posta a serviço delas, e a substituição da
política pela organização racional dos assuntos humanos. O resultado, como
sabemos, foi o terror revolucionário, cada vez mais terror quando se tornava
menos revolucionário (GIANNOTTI, 2014, p. 5).

Aprofundando o tema, destacamos o excerto a seguir:

Contrapondo-se fervorosamente ao marxismo, o jurista alemão Carl


Schmitt também pensou a política como uma contradição, aquela entre

36
CIÊNCIA POLÍTICA

amigos e inimigos, que articularia os homens antes mesmo que o Estado


se organizasse como instância do poder – contradição que se resolve
quando os amigos se aglutinam em um soberano, aquele capaz de decidir
os casos de exceção. Nada mais natural então que aderisse ao nazismo
(GIANNOTTI, 2014, p. 6).

E o autor continua:

Mas é o caminho mais rápido para sublinhar que, ao partir da contradição


para tentar entender a política, abre-se uma brecha que pode encaminhar a
decisão para o lado do terror. Compreende-se, assim, por que alguns autores,
procurando evitar esse caminho, mergulham ou na solução bem ajustada
do comportamento racional em vista dos fins dados ou nos equilíbrios do
contrato social. No entanto, mudamos de patamar se levarmos em conta
que os conceitos de contradição e de decisão ganham novo sentido depois
do tsunami que atingiu a filosofia no século XX. Aliás, a história da filosofia
não é a narração dessas grandes avalanches? De um lado, a fenomenologia
heideggeriana retoma o conceito de práxis, ao dar enorme ênfase às
questões relativas à decisão, entendidas muito mais como abertura para
o Ser do que atividade meramente humana. E a abertura para o Ser é
configurada pela linguagem. De outro lado, Wittgenstein, ensinando que o
sentido das palavras se articula nos seus usos, passa a estudar a contradição
no nível das linguagens cotidianas. Definida formalmente, ela vale tão só
para os sistemas formais, deixando na sombra seu funcionamento nos
vários níveis do contradizer. Nesse novo universo, a contradição assume um
significado, o que não acontecia na lógica formal enquanto ela manteve a
matriz aristotélica. E, provida de significado, ela nos encaminha para um
novo questionamento da política.

Esse último ponto é tratado no Apêndice, que se ocupa particularmente


de Wittgenstein. Seria melhor que fosse lido como introdução, mas,
considerando sua relativa dificuldade, talvez seja conveniente mordê-lo no
fim. A dificuldade é que esse texto está sempre presente.

[...]

Convém indicar àqueles poucos amigos que me têm lido no decorrer dos
anos o salto que este novo texto pretende dar. Até agora não tinha me
dado conta do alcance do potencial explicativo que ganha a contradição
quando assume um sentido. Em vez de se reduzir à conjunção de um signo
proposicional e sua negação, ela passa a articular um ato de negação que se
nega em um determinado jogo de linguagem. Consiste em uma “atividade”
de contradizer que, se não exprime algo, não deixa de exteriorizar o bloqueio
de duas atividades expressivas, as quais incitam uma decisão que, como tal,
37
Unidade I

abre novas formas de exprimir, propiciando um novo jogo de linguagem e


novos procedimentos de juízo.

Muitas vezes, inspirado em Carl Schmitt, já me referira à política como o


conflito entre amigos e inimigos, mas como um dado que me obrigava a
pensá-la até suas raízes, quando os agentes se defrontam dispostos a
arriscar a própria vida. Agora essa oposição vem a integrar a essência da
política, ou melhor, determina uma regra a ser obedecida pelos agentes para
que eles próprios se tornem políticos. Procuro agora descrever o jogo de
linguagem que articula a política, descrever a sua gramática. Procedo, pois,
a uma análise conceitual.

Ao ser vista como contradição significativa, a luta entre amigos e inimigos


passa a exteriorizar uma comunidade entre eles, uma “mesmidade”, que,
embora não seja algo pressuposto, não é um nada. Vem a ser graças
ao comportamento que os agentes exteriorizam quando, no limite,
se dispõem a morrer para manter suas formas de vida ameaçadas por
outros. Pensando esse modo, livro-me da tradição grega que considerava
a política na polis ou, na mesma linha, no contrato social, na imaginação,
no Espírito Absoluto, no ser genérico do homem, e assim por diante. Em
outras palavras, deixo de ser obrigado a supor que a política se realiza
em uma sociedade já pronta para poder pensá-la como o que apronta a
sociedade para novas decisões.

Além do mais, se a contradição é quebrada pela decisão, esta não nasce


tão só de um ato criador totalizante, mas da instalação de novos jogos de
linguagem que abrem o espaço para poder dizer o sim, o não, assim como
para recuperar certas bases indubitáveis que amigos e inimigos possam
aceitar. Por isso, a contradição política melhor se resolve na democracia,
quando os representantes de cada grupo performam suas representações
levando em consideração a atividade dos inimigos.

Visto que a comunidade política se constitui tendo no horizonte a contradição


em processo entre amigos e inimigos, ela perde qualquer base objetiva ou
subjetiva. Não se apoia em um povo que legisla por e para si mesmo, dotado
de um poder constituinte, ou que recolhe uma tradição projetando-a para o
futuro. Também não se constitui por sujeitos dotados de direitos, sejam eles
conferidos pelo Estado, seja pelo simples fato de todos serem humanos. Ainda
menos pelo direito de ter direitos. Embora minha investigação se associe
aos autores que tentam pensar a constituição do sujeito político além dos
limites do Estado moderno, não é por isso que procuro o terreno firme de
uma polis ou de uma subjetividade. Ao admitir que o próprio sujeito político
se constitua mediante suas diversas exteriorizações, não sou obrigado a
supor algo que o determine, a não ser o próprio modo de se exteriorizar
38
CIÊNCIA POLÍTICA

de encontro ao inimigo. Desse modo, não é a própria contradição in fieri


[em via de se tornar] que delimita o espaço em que os juízos e as decisões
políticas se articulam? Em um regime ditatorial, o inimigo, depois de ser
identificado, tende a ser eliminado. Em um regime democrático, o inimigo,
reconhecido no horizonte, passa a ser reiteradamente neutralizado, criando
assim um novo espaço para que se mantenha a oposição entre adversários
e aliados. Nessas condições, porém, tudo trabalha para que a contradição
se torne opaca, deixando lugar para que tão só opere a governança do
cotidiano. Sem a possibilidade de morte no horizonte, o futuro se oculta
(GIANNOTTI, 2014, p. 4-12).

Timothy Snyder apresenta vinte lições do século XX adaptadas às atuais circunstâncias,


prevenindo‑nos que:

Poderíamos ser tentados a pensar que nossa herança democrática nos protege
automaticamente dessas ameaças. É uma ideia equivocada. Nossa própria
tradição exige que se examine a história a fim de compreender as fontes
mais profundas da tirania e de refletir sobre as respostas apropriadas. Os
americanos não são mais sábios do que os europeus que viram a democracia
dar lugar ao fascismo, ao nazismo ou ao comunismo [suas exacerbações...]
no século XX. Nossa única vantagem é poder aprender com a experiência
deles. E este é um bom momento para isso (SNYDER, 2017, p. 7).

2 CIÊNCIA DO PODER E DA POLÍTICA

Estas têm sido questões centrais na demarcação teórica de dois tipos


de abordagem que competiram e dominaram o desenvolvimento da
ciência política desde os primeiros decênios do século XX, quais sejam, o
institucionalismo e o comportamentalismo.

No âmbito desse embate, e após duas “revoluções” de paradigma, uma


nova abordagem veio a prevalecer na análise do fenômeno político
nos últimos quarenta anos – o neoinstitucionalismo. Na verdade, o
paradigma neoinstitucional, atualmente, é hegemônico na ciência
política (PERES, 2008).

Definir ciência política é entrar no plano do pensamento sobre a política que vimos na prática; é
preciso, então, trazê-la como ação, viva, e como história.

Como já estudamos, há na formação da ciência política uma dualidade e, por vezes, uma visão
dualista fundante:

• dualidade nas práticas individual-coletivas em busca de sobrevivência e melhorias;

39
Unidade I

• ciência que busca explicar a unidade complexa por meio de concepções, modelos e
instrumentos mecânicos simplórios, reproduzindo a realidade de modo a transfigurá-la, por
vezes até mesmo inconscientemente.

No primeiro caso, as buscas dependem de disposições concretas, perdendo potência no senso comum.
Se não perderem, podem alcançar um nível colaborativo. No segundo cenário, no plano teórico‑abstrato,
há elaborações institucionais, projetos para administrar as ações individuais. Apresentam certa dubiedade:
a institucionalização da vida social tem por retórica e panaceia o projeto político e a melhoria da vida
coletiva, e há imenso descrédito do aparato institucional (estatal), dificilmente público. Isto é, viver é
um fenômeno existencial precípuo e, em decorrência disso, organizamos de modo dissimétrico nossas
próprias ações, com a permissão da cisão social.

Conforme Matheus Passos (2017), ciência política é o estudo do fenômeno político, tanto no sentido
amplo quanto naquele mais estrito. Enquanto no primeiro plano trata-se da análise do fato propriamente
dito, no outro, o objeto de interesse volta-se para os aspectos institucionais, do Estado, de seu aparelho
e das relações estabelecidas em torno dele.

Amparado em Norberto Bobbio, Matheus Passos (2017) define esse nível dos fatos como tudo o que
é ligado à cidade, ao urbano, ao civil, ao público e que é pertinente às dinâmicas sociais. Diz que é a arte
do governo de uma maneira geral, assemelhando-se à política no plano da existência, do modo como
destacamos há pouco. Já no sentido estrito, a política remete aos termos de referência polis e Estado,
isto é, política institucional, profissional.

Ambos os planos baseiam-se em relações de poder, agentes atuando e afetando-se mutuamente,


seja no plano da vida social prática, seja nas relações com o Estado.

Já vimos que o saber sobre a política, tanto o clássico como o contemporâneo, é bastante politizado,
pois pensa com propósito, é político, representa setores da sociedade, é motivado por ideias.

A política é prática, mas devemos refletir sobre suas intenções e direções.

Se temos os clássicos, a exemplo de Aristóteles, Platão, Santo Agostinho, Maquiavel, Hobbes, Locke
e tantos outros, hoje temos a disciplina acadêmica e científica, debruçada sobre o fenômeno político,
com a específica denominação de ciência política. Em geral, dizemos que é uma área do conhecimento
que se institucionalizou nas universidades anglo-saxãs, particularmente estadunidenses, influenciando
países europeus desenvolvidos, e mais tarde também os “periféricos”.

Matheus Passos (2017) expande o sentido da política para o plano da existência. A diferença entre
filosofia política e ciência política, segundo ele, é que a filosofia trata do que deve ser, e a ciência, do que é.

Ciência implica previsibilidade, e os elementos típicos do pensamento e do fazer científico são:


descrição, explicação e previsão. No que diz respeito à questão do poder, temos o Estado agindo sobre
a sociedade e vice-versa. Poder é a capacidade de um agente definir o comportamento de outro. O
exercício do poder dá-se pela via ideológica (convencimento); via econômica; via coercitiva.
40
CIÊNCIA POLÍTICA

Acentuaremos dois exemplos dessa relação de poder. De início, imaginemos um sujeito A atuando
sobre o sujeito B. Para que a relação ocorra, é necessário o seguinte:

• O sujeito A deve ter meios para mudar B.

• O sujeito B deve alterar o comportamento em função de A (de acordo com as ações e intenções
dele). Se houver mudança de comportamento, mas não aquela preconizada pelo sujeito A, ele não
cumpriu a relação de poder.

• O sujeito A deve realizar seus objetivos.

Agora, temos a figura do pai e do filho. O pai (poder) pode dar palmadas em seu filho. Os meios, as
vias de exercício do poder, são sempre territoriais. O poder potencial é expresso pela ameaça, já o atual
é o que está sendo exercido.

Leonardo Avritzer (2016) diz que a ciência política no Brasil tem surgimento tardio (impulsionada no
período discricionário da ditadura militar) e a divide em três fases:

• Heroica (1960-1985): influência dos Estados Unidos da América, com os programas de fomento.

• Estagnação relativa das universidades públicas (1985): aposentadorias e concentrações no eixo


São Paulo-Rio.

• Profissionalização e expansão (2000): abertura de cursos e formação de doutores.

Um pouco mais sobre a diferença entre filosofia e ciência política

Mais do que em seu desenvolvimento histórico, o Estado é estudado em si mesmo,


em suas estruturas, funções, elementos constitutivos, mecanismos, órgãos etc., como
um sistema complexo, considerado em si mesmo e nas relações com os demais sistemas
contíguos. Convencionalmente, hoje, o imenso campo de investigação está dividido
entre duas disciplinas até didaticamente distintas: a filosofia política e a ciência política.
Como todas as distinções convencionais, também esta é lábil e discutível. Quando
Hobbes chamava de philosophia civilis o conjunto das análises sobre o homem em suas
relações sociais, nela também compreendia uma série de considerações que hoje seriam
incluídas na ciência política. Ao contrário disso, Hegel deu aos seus Princípios de Filosofia
do Direito (1821) o subtítulo de Staatwissenschaft im Grundrisse, “Fundamentos da
ciência do Estado”. Na filosofia política, são compreendidos três tipos de investigação:
a) da melhor forma de governo ou da ótima república; b) do fundamento do Estado,
ou do poder político, com a consequente justificação (ou injustificação) da obrigação
política; c) da essência da categoria do político ou da politicidade, com a prevalente
disputa sobre a distinção entre ética e política. Essas três versões da filosofia política são
exemplarmente representadas, no início da Idade Moderna, por três obras que deixaram
marcas indeléveis na história da reflexão sobre a política: Utopia (1516), de More, com o
41
Unidade I

desenho da república ideal; Leviatã (1651), de Hobbes, que pretende dar uma justificação
racional e, portanto, universal da existência do Estado e indicar as razões pelas quais
os seus comandos devem ser obedecidos; e O Príncipe (1513), de Maquiavel, na qual,
ao menos em uma de suas interpretações (a única, aliás, que dá origem a um “ismo”, o
maquiavelismo), seria mostrado em que consiste a propriedade específica da atividade
política e como se distingue ela enquanto tal da moral.

Por “ciência política” entende-se hoje uma investigação no campo da vida política
capaz de satisfazer a essas três condições: a) o princípio de verificação ou de falsificação
como critério da aceitabilidade dos seus resultados; b) o uso de técnicas da razão que
permitam dar uma explicação causal em sentido forte ou mesmo em sentido fraco do
fenômeno investigado; c) a abstenção ou abstinência de juízos de valor, a assim chamada
“valoratividade”. Considerando as três formas de filosofia política descritas, observe-se que
a cada uma delas falta ao menos uma das características da ciência. A filosofia política
como investigação da ótima república não tem caráter valorativo; como investigação do
fundamento último do poder, não deseja explicar o fenômeno do poder, mas justificá-lo,
operação que tem por finalidade qualificar um comportamento como lícito ou ilícito, o que
não se pode fazer sem a referência a valores; como investigação da essência da política,
escapa a toda verificação ou falsificação empírica, na medida em que isso que se chama
presunçosamente de essência da política resulta de uma definição nominal e, como tal, não
é verdadeira nem falsa.

Fonte: Bobbio (1994, p. 55-56).

2.1 A política e sua institucionalização: das formas elementares de poder aos


arranjos sociais de Estado

A vida social limita-se, quando não institucionalizada, a sistemas estreitos,


dificilmente maiores do que o grupo primário [no qual] a criança é formada.
Em tal escala, os benefícios do grupo são modestos, embora indispensáveis
para a aculturação. As pessoas geralmente querem tirar mais proveito da
comunidade; elas querem se beneficiar da exploração eficiente do meio
ambiente, o que é permitido pela maior especialização e pelo uso de
equipamentos e materiais mais poderosos. Para conseguir isso, elas devem
quebrar as cadeias do universo limitado de interações espontâneas. A
institucionalização das relações empurra os limites do universo acessível,
mas abre a porta para as formas sociais de poder: é o outro lado da moeda
(CLAVAL, 1979, p. 14).

Como vimos, a política pode ser tomada em dois planos, mas nos interessa, agora, considerá‑la
sob a ótica da unidade. Assim, as práticas individuais e sociais (as ações e os “fatos”) sofreriam
transformações com os impactos do campo jurídico-institucional, adaptando-se a estes ao mesmo
tempo que os fosse criando (claro que isso é mais verdadeiro para aqueles mais próximos do poder
decisório). Contudo, de qualquer forma, os planos não seriam dicotômicos, mas complementares e
42
CIÊNCIA POLÍTICA

mutuamente conversíveis. Seria preciso explicar como a vida comum se torna formal, institucional,
como ela se mundaniza ao pautar, ao determinar as ações individuais.

Na unidade da ação, estariam o indivíduo e as estruturas conceituais e teóricas formalizadas como


instituições (campo contratual, para os contratualistas). Tal unidade é a saída para que o pensamento
científico dê conta da diversidade humana.

Também é preciso procurar no tempo os princípios longínquos de organização, como diz Luiz
Fernando da Silva Pinto (2012, p. 49-50):

A pesquisa aqui empreendida (O Trigo, a Água e o Sangue) relaciona-se


diretamente à aventura do homem em tempos muito remotos, buscando
identificar as raízes estratégicas do Ocidente, como já afirmado. Trata-se de
uma investigação razoavelmente complexa quando comparada ao tempo
de Atenas, Esparta e o mundo de Alexandre da Macedônia, uma vez que
documentos e referências escritas já são bem mais presentes. Outro fato
complicador é que durante vários milênios vão operar conjuntamente as
comunidades, as polis, a Suméria, os povos mesopotâmicos, os hititas, o Egito,
os fenícios, os gregos ásperos, os gregos micênicos e Creta, providenciando
todos eles as suas respectivas soluções de equilíbrio estratégico, os ambientes
estratégicos. Trocando experiências, mas não necessariamente todos unidos.
Aliás, de fato, desunidos.

Uma questão muito especial, já ressaltada, é a profunda influência dos


arranjos comunitários, antecedendo a organização das polis e a presença
dos caçadores-coletores, que durante milênios tiveram que praticar
desenhos autossustentados para sua própria sobrevivência. Assim, a
presente investigação confere um cuidado extremo à comunidade e seus
múltiplos aspectos, infelizmente ainda pouco enfatizada nos estudos
relativos à Grande Antiguidade. A meu ver, existe uma resistência natural dos
pesquisadores a abordar o tema comunitário – pelo menos no mundo rural
– pelo fato de não terem tido a oportunidade de vivenciar (como pessoas)
quadros semelhantes aos ocorridos no passado, uma vez que na sua maioria
massacrante podem ser definidos como do gênero homo urbanus. Da rua
calçada para a universidade na cidade! Homens do asfalto! Ou então de
sofisticados campi, gramados e arborizados.

3 O FENÔMENO POLÍTICO: PODERES, CONTRATOS, REGRAS E NORMAS

“É possível fazer sobre esse mito do contrato social toda uma série de interpretações e de filosofias
políticas. Elas têm certos traços comuns. Elas despem as hierarquias religiosas tradicionais de sua
influência política: já não é mais em um além transcendente que a autoridade encontra suas raízes”
(CLAVAL, 1979, p. 130).

43
Unidade I

Em Espaço e Poder, Claval trata dos fundamentos ideológicos do mundo contemporâneo. Examina
ideologias sociais, iniciando pela Reforma e sua influência no contrato social. O traço comum entre elas
é um certo igualitarismo. O mito fundador é o do pacto “celebrado entre todos os membros do povo de
Deus” (CLAVAL, 1979, p. 129).

Hobbes é o teórico de um sistema político no qual o poder e a autoridade são ilimitados, vivendo
em meio a inúmeros conflitos e insegurança em todos os níveis; pleiteava, portanto, um ambiente com
direitos consolidados por um soberano forte. Todavia, “todos possuem a mesma aptidão de aceitar o que
se conforma aos termos do pacto, ou de rejeitar o que o contradiz” (CLAVAL, 1979, p. 130).

O Estado hegeliano corresponde a essa visão, racionalizando o poder institucional que prefigura as
bases do Estado moderno.

Segundo o autor, são concepções que “não têm a complexidade das pirâmides de regras e o
prestígio das sociedades de ordens: comportam apenas dois estágios, o da autoridade e o da massa
que lhe está submissa”. E reitera: “A versão hobbesiana do contrato social prolonga, portanto, no
mundo racional, a visão tradicional da hierarquia política e a liberta daquilo que vinha limitar o
exercício da vontade do príncipe: ela o libera do magistério moral que a Igreja e a religião exerciam
até então” (CLAVAL, 1979, p. 131).

Duas proposições diferentes, a de John Locke e a de Jean-Jacques Rousseau, são mais determinantes
no pensamento contemporâneo.

Locke, ao propor o liberalismo democrático e representativo, fundamenta-o sobre a educação, signo


da mudança, e o trabalho, que a viabiliza, juntamente com a propriedade, como estudaremos adiante.
Se para Hobbes a propriedade é danosa e fonte de insegurança entre os seres humanos, para Locke é
anterior ao contrato, mas portadora das possibilidades individuais de progresso social do indivíduo.

Ele coloca o poder em um circuito que parte dos cidadãos, remonta até o
soberano, para descer de novo até eles: o príncipe não está mais acima de
tudo, ele é a emanação do conjunto, pensa por ele, age por ele e leva em
conta seus problemas, suas dificuldades e as soluciona quando a iniciativa
individual não o pode fazer (CLAVAL, 1979, p. 133).

Rousseau modifica o mito do contrato social ao introduzir a ideia da perversidade engendrada pela
sociedade. Destaca a necessidade de assinar um novo contrato para um mundo melhor. Será o fruto de
uma ação coletiva ou de um movimento de entusiasmo? O início de uma era de inocência? A Revolução
Francesa inaugura uma série de revoluções que levam aos estados totalitários que Hegel justifica pela
ideia de um mundo em construção. A violência até encontra sua justificativa na grandeza do trabalho
a ser feito.

Marx apreende o poder do esquema hegeliano, mas para ele o que está no fim da história não é a
ideia, mas o homem. Ele percebeu que o proletariado é o instrumento da última fase da história: é o
único grupo consciente das transformações necessárias para o fim.
44
CIÊNCIA POLÍTICA

Do contrato, podemos, então, retomar a ideia de unidade, algo próximo da síntese anunciada por
Paulo Sérgio Peres (2008, p. 54):

[...] Vários autores vêm discutindo as diferenças e as semelhanças entre as


vertentes neoinstitucionais das referidas áreas de conhecimento, bem como
das escolas que coabitam o campo da análise política. Contudo, curiosamente,
há poucos trabalhos concentrados no próprio desenvolvimento histórico de
tal paradigma na ciência política. Sob tal perspectiva, meu objetivo neste
texto é fazer uma breve reconstrução histórica do desenvolvimento teórico e
metodológico do paradigma neoinstitucionalista da ciência política a partir
da concepção de “revolução de paradigmas” – enquadramento também já
utilizado, em alguma medida, por alguns. Como procurarei mostrar, no caso
específico da abordagem política, tal revolução envolveu dois processos
sucessivos, sendo um deles de oposição e o outro de síntese. No primeiro
caso, uma oposição radical à abordagem comportamentalista que floresceu
nos anos de 1920-1930 e se tornou hegemônica ao longo das décadas de
1940-1950-1960; no segundo caso, a articulação sintética de elementos
do próprio comportamentalismo, com elementos do que se convencionou
chamar de antigo institucionalismo.

Seja pela perspectiva da dimensão política do comportamento, seja pela da abordagem das
representações institucionais, há um deslocamento pendular da “análise econômica dos fenômenos
políticos sob a ótica dos paradoxos das decisões coletivas e a crise do behaviorismo a partir da segunda
metade da década de 1960” (PERES, 2008).

O autor também encontra a corrente neoinstitucional, que tem como característica teórica central
a síntese epistemológica e metodológica de parte do comportamentalismo com parte do “antigo”
institucionalismo. Suas preocupações são: neoinstitucionalismo; comportamentalismo; história da
ciência política e instituições políticas.

Os contemporâneos, tanto os de linhagem crítica como os liberais clássicos, retomam e fundam


seu raciocínio necessariamente nos contratos, no contrato social moderno, com seus desdobramentos
jurídicos e políticos.

Para Locke e Montesquieu, os poderes ou a divisão dos poderes representam a pedra de toque para
a discussão do modo como determinada nação se governará.

Se, então, a política (em seu sentido banal, e até mesmo formal) e aquilo que dela transparece
emergem como aparência e como motivações intrínsecas, envolvem a ética e a melhoria de status,
sempre há distorções e patologias, e é também verdadeiro que somente fazemos política porque
podemos! Autonomia e emancipação! Ambas são alicerçadas no poder. É preciso ser livre para ter poder,
só assim há república!

45
Unidade I

Liberdade leva-nos à ideia de república, de democracia, e seus agentes são os recebedores do destino
das ações.

A ideia de contrato é um recurso muito parcial, mas didático, para expressar o jogo de obrigações
e deveres dos agentes associados. A alternativa seria uma história minudente das construções
institucionais (societais) dos acordos baseados na moral, no medo da dominação, nos desafios
momentâneos dos grupos...

O contrato social ou o grande acordo de obrigações entre as partes, para Norberto Bobbio (1896,
p. 61), é “o princípio de legitimação das sociedades políticas” estabelecido sobre consenso. O autor
desenvolve essa ideia demonstrando de que modo os direitos dos contratos, do natural ao civil (público
e privado), desenrolam-se historicamente.

3.1 Classificações de grupos políticos

E o colecionador do museu, como o administrador colonial e o nosso


antropólogo vitoriano evolucionista, tem uma verdadeira mania
classificatória. De fato, ele concebe a ciência do homem como uma espécie
de arte de classificação, sua tarefa sendo a de obter exemplares típicos das
etapas pelas quais tem caminhado a humanidade, no seu avanço até o nosso
tempo e, sobretudo, a nossa sociedade. O problema não é colocar os objetos
lado a lado (como fazem os museus modernos hoje em dia), mas situá‑los
um atrás do outro, dentro de um eixo temporal, revelador do progresso
(LEACH, 1983, p. 8-9).

[...] Gostaria de reunir alguns dos temas do estudo como um todo. Afirmei
que, hoje em dia, os programas políticos radicais devem basear-se em uma
conjunção da política de vida e da política gerativa. As questões de política de
vida tornaram-se proeminentes graças à influência conjunta da globalização
e da destradicionalização – processos que possuem forte conotação ocidental,
mas que estão afetando as sociedades em todo o mundo. Os planos de ação
política precisam ser de caráter gerativo, na medida em que a reflexividade
passa a ser o elo entre os dois outros grupos de influência. A política de vida
está centrada no seguinte problema: como viveremos após o fim da natureza
e da tradição? Tal questão é “política” no sentido amplo, de que ela implica
um julgamento entre diferentes afirmações de modo de vida, mas também no
sentido mais restrito, de que ela se impõe profundamente em áreas ortodoxas
de atividade política (GIDDENS, 1996, p. 279).

Se Leach (1983) nos lembra dos perigos das classificações baseadas em modelos instrumentalizados,
como o evolucionista, Giddens nos remete ao jogo ideológico entre direita e esquerda.

Leach (1983) segue a linha crítica que explicita as intenções subjacentes na utilização dos
termos, nunca neutros, como primitivos ou subdesenvolvidos (por causa do parâmetro europeu),
46
CIÊNCIA POLÍTICA

estratos de renda (neutralizando a concentração), índices e indicadores (manipuláveis, quando


desacompanhados de metodologia), além das referidas esquerda e direita (o mais das vezes servindo
ao maniqueísmo eleitoreiro).

Exemplo desse uso expansionista é o trecho de Leach:

Vale, entretanto, continuar assinalando que, na sociedade na qual floresce


uma antropologia evolucionista, floresce igualmente a ânsia da conquista.
Ou, como já colocou Hannah Arendt falando do imperialismo, a ânsia da
expansão pela expansão. Assim, se Cecil Rhodes dizia que, se pudesse, iria
anexar os planetas, Tylor, Spencer e Frazer classificariam todos os costumes,
situando-os em uma escala evolutiva apropriada. À megalomania de Cecil
Rhodes, sonhando nostalgicamente com a anexação de tudo, corresponde –
sem exageros – a perspectiva legislativa de Tylor, quando acredita que todo
o universo deve estar determinado. Nas suas palavras: “se em algum lugar
há leis, estas devem existir em toda parte”. O Império Britânico, portanto,
reproduz-se em vários níveis. Seus políticos desejam sua expansão. Seus
antropólogos ampliam as fronteiras da ciência do homem, descobrindo
“leis” e, assim fazendo, realizam a anexação social da magia, do sacrifício,
da religião exótica e elementar, da couvade, do casamento por captura e
de toda a legião de costumes que o mundo ocidental desvenda e com que
entra em contato após sua expansão. O trajeto da ciência é, pois, homólogo
ao ciclo da sociedade, que, por sua vez, tem a mesma curvatura do indivíduo
que elabora as ideias, transformando-as em teorias (LEACH, 1983, p. 8-9).

Quanto à esquerda e à direita, continuamos com Norberto Bobbio, que atribui à classificação papel
fundamental na ciência política:

Não obstante ser a díade seguidamente contestada por muitas partes e com
vários argumentos – e de modo mais intenso, mas sempre com os mesmos
argumentos, nestes tempos recentes de confusão geral – as expressões
“direita” e “esquerda” continuam a ter pleno curso na linguagem política.
Todos os que as empregam não dão nenhuma impressão de usar palavras
irrefletidas, pois se entendem muito bem entre si.

Nestes últimos anos, entre analistas políticos e entre os próprios atores da


política, boa parte do discurso político tem girado em torno da pergunta:
“Para onde vai a esquerda?”. São cada vez mais frequentes, a ponto mesmo
de se tornarem repetitivos e enfadonhos, os debates sobre o tema “o futuro
da esquerda” ou “o renascimento da direita”. Ajustam-se seguidamente as
contas com a velha esquerda para buscar a fundação de uma esquerda nova
(mas se trata sempre de esquerda). Ao lado da velha direita, derrotada, surgiu
com desejo de revanche uma “nova direita”. Os sistemas democráticos com
partidos numerosos continuam a ser descritos como se estivessem dispostos
47
Unidade I

em um arco que vai da direita à esquerda, ou vice-versa. Não perderam nada


de sua força significante expressões como “direita parlamentar”, “esquerda
parlamentar”, “governo de direita”, “governo de esquerda’”. No interior
dos próprios partidos, as várias correntes que disputam o direito de dirigir
segundo os tempos e as ocasiões históricas costumam se chamar com os
velhos nomes de “direita” e “esquerda”. Quando nos referimos aos políticos,
não temos nenhuma hesitação em definir, por exemplo, Occhetto como de
esquerda e Berlusconi como de direita (BOBBIO, 1995a, p. 63-64).

Continuando sua avaliação, ele acentua:

Não obstante as repetidas contestações, a distinção entre direita e esquerda


continua a ser usada. Se assim for, o problema se desloca: agora, não se
trata mais de comprovar sua legitimidade, mas de examinar os critérios
propostos para a sua legitimação. Em outras palavras: desde que “direita”
e “esquerda” continuam a ser usadas para designar diferenças no pensar
e no agir políticos, qual a razão, ou quais as razões da distinção? Não se
deve esquecer que a contestação da distinção nasceu precisamente da
ideia de que os critérios até então adotados ou não seriam rigorosos ou
ter-se-iam tornado enganosos com o passar do tempo e a mudança das
situações. Felizmente, ao lado dos contestadores, sempre existiram, e nestes
últimos anos são mais numerosos do que nunca, também os defensores, que
propuseram soluções para a questão do critério ou dos critérios. E como as
respostas dadas são mais concordantes que discordantes, a distorção acaba
sendo, de certo modo, por elas ratificada (BOBBIO, 1995a, p. 73).

Dividir objetos e bens e classificar a realidade são ações, intelectuais e/ou políticas, baseadas no
poder; são sempre atos de poder.

Há inúmeras qualificações lançadas sobre o tecido social, não vamos nos estender nesse mérito.
Trata-se da própria escolha dos nomes, dos termos de referência. É o universo da comunicação, que
aproxima e afasta, dependendo de quanto as pessoas dominam as regras, os códigos.

Desse modo, as chancelas de direita e de esquerda para atitudes e bandeiras políticas, para Bobbio e
Anthony Giddens, são razoavelmente atuais e funcionam contemporaneamente e, embora necessitem
de revisões, apresentam dados de realidade. São etiquetas e atribuições mais fáceis de manejar, mesmo
com toda a volatilidade mencionada.

Tratando das classificações, Robert Dahl destaca as dificuldades desse processo:

A “explosão de informação” a que nos referimos se fez acompanhar de uma


inundação de tipologias – propostas de classificação dos sistemas políticos.
Na verdade, o termo “tipologia” ficou tão na moda entre os cientistas
políticos, na década de 1960, que afastou outros termos perfeitamente
48
CIÊNCIA POLÍTICA

úteis, porém mais tradicionais, como “classificação”. No Sétimo Congresso


Mundial da Associação Internacional de Ciência Política, em 1967, sessões
inteiras foram devotadas ao tópico: “Tipologias dos Sistemas Políticos”.

Naturalmente, os esquemas de classificação dos sistemas políticos são


tão antigos quanto o próprio estudo da política. Aristóteles, por exemplo,
produziu uma classificação baseada em dois critérios: o número relativo dos
governantes (um, poucos ou muitos) e o critério de governo (se o “interesse
comum” ou o “interesse próprio”) (DAHL, 1988, p. 70).

Robert Dahl acrescenta a proposta de Max Weber:

Há cerca de meio século, porém, Max Weber criou uma classificação que
tem tido ainda maior influência entre os cientistas sociais contemporâneos.
Weber limitou sua atenção aos sistemas em que o governo era aceito como
legítimo, e sugeriu que os líderes dos sistemas políticos poderiam defender
sua legitimidade e que os membros desses sistemas [poderiam] aceitá-la
com base em três critérios:

1) Tradição.

A legitimidade pode basear-se “na crença estabelecida na santidade de


tradições imemoriais”, e na necessidade de obedecer a líderes que exercem
sua autoridade de acordo com a tradição. Para Weber, este é o exemplo mais
universal e primitivo de autoridade.

2) Qualidades pessoais excepcionais.

A legitimidade se baseia na “devoção à santidade específica e excepcional,


ao heroísmo ou caráter exemplar de um indivíduo”, e à ordem moral ou
política que ele revelou ou instituiu.

3) Legalidade.

A legitimidade se baseia na crença de que o poder é exercido de modo legal;


as regras constitucionais, leis e poderes das autoridades são aceitos como
obrigatórios porque são legais. O que é feito legalmente é tido como legítimo.

A cada uma destas três bases de legitimidade corresponde uma forma “pura”
de autoridade: [a tradicional, a carismática e a legal].

As classificações de Weber e de Aristóteles foram quase postas de lado


pelas novas tipologias da análise política. Alguns estudiosos sugerem que os
sistemas políticos podem ser classificados como autocráticos, republicanos ou
49
Unidade I

totalitários; outros, como sistemas de mobilização, teocráticos, burocráticos


ou de reconciliação; outros, ainda, como oligarquias modernizadoras,
totalitárias, tradicionais e tradicionalistas, além de democracias tutelares e
políticas, ou então como sistemas anglo-norte-americanos, europeus, pré-
industriais ou parcialmente industriais e totalitários; como sistemas políticos
primitivos, impérios patrimoniais, impérios nômades ou de conquista,
cidades-Estado, sistemas feudais, impérios burocráticos centralizados
e sociedades modernas (democráticas, autocráticas, totalitárias e
“subdesenvolvidas”). Dois investigadores aplicaram a técnica estatística
da análise de fatores (factor analysis) e 68 características de 115 países,
derivando indutivamente uma tipologia de oito espécies de sistema político.
(Outro autor abandonou a linguagem tradicional, propondo que os sistemas
políticos fossem classificados em amalgamados, prismáticos e refratados
(fused, prismatic, refracted) (DAHL, 1988, p. 71).

Robert Dahl fala em “uma inundação de tipologias” e de um momento seguinte: “depois da


inundação”, com reconsiderações.

Diante de tantas tipologias, cabe a pergunta: Qual delas é a melhor?


Obviamente, não há uma melhor tipologia. Existem milhares de critérios
para classificar os sistemas políticos; os mais úteis serão os que elucidarem
melhor o aspecto da política em que estivermos mais interessados. Um
geógrafo classificaria os sistemas políticos de acordo com a área que
ocupam; um demógrafo, pelo critério da população; um jurista, segundo seu
código legal. Um filósofo ou teólogo, interessado em identificar “o melhor”
sistema, usaria critérios éticos ou religiosos (DAHL, 1988, p. 71).

O autor continua expondo a arbitrariedade das classificações:

Um cientista social, querendo determinar como a revolução está associada


às condições econômicas, poderia classificar os sistemas políticos pela renda
relativa e a frequência dos movimentos revolucionários. Assim, como não há
uma “melhor maneira” de classificar as pessoas, não há um modo exclusivo
de distinguir e classificar os sistemas políticos que sejam melhores do que
os outros para qualquer propósito (DAHL, 1988, p. 71).

A antropologia política traz-nos um valioso arsenal para a empresa crítica:

O interesse da antropologia pela política existe desde os primórdios da


disciplina. No contexto da tradição evolucionista, que marcou a fase
inicial da antropologia, o foco recaía sobre as formas e sistemas de poder
em sociedades “primitivas”, cujas características deveriam ser comparadas
e classificadas em relação ao sistema político das sociedades modernas,
vistas como mais evoluídas. Em relação à suposta evolução das formas de
50
CIÊNCIA POLÍTICA

organização política, traçava-se uma linha que ia desde a “horda primitiva”


até o Estado moderno. Nessa época de hegemonia do evolucionismo, que
poderíamos situar entre as últimas décadas do século XIX e o início da
década de 1920, a grande maioria dos estudos antropológicos não tomava
a política como tema central de interesse, nem a antropologia política era
pensada ou formalizada como uma subárea de estudos (KUSCHNIR, 2007,
p. 9).

Outras classificações, mais polêmicas ainda, trazem termos como: estigmas, classes sociais e estratos.

4 ORIGENS E CONCEITOS DO ESTADO

“À base do critério histórico, a tipologia mais corrente e mais acreditada junto aos historiadores das
instituições é a que propõe a seguinte sequência: Estado feudal, Estado estamental, Estado absoluto,
Estado representativo” (BOBBIO, 1994, p. 114).

A antropologia política traz seu importante arcabouço para entendermos a diversidade das
organizações sociais, deslocando o foco da análise linear “viciada” e de racionalidade ultrapassada.

Ao dissociar o entendimento da política da presença de instituições


baseadas nos modelos da sociedade ocidental, a antropologia reafirmava a
importância da pesquisa etnográfica para um entendimento mais profundo
da vida social. A monografia de Evans-Pritchard sobre o sistema político Nuer
é um dos marcos dessa perspectiva de análise, por mostrar que o sistema de
parentesco era a chave da organização política daquela sociedade. A política
não se revelava pelo surgimento de uma instituição central, e sim pela
existência de um “relacionamento estrutural” de antagonismos persistentes
e equilibrados. Estes eram expressos no relacionamento com povos vizinhos
e entre diversos segmentos da sociedade Nuer e organizados em função
de situações sociais específicas. O entendimento da estrutura política Nuer
dependia da compreensão do princípio segmentário de organização dos
diversos grupos, da “lógica da situação” que os constituía e do permanente
conflito entre valores rivais dentro de um mesmo território (KUSCHNIR,
2007, p. 10).

Essas aproximações ao tema da institucionalização dos processos psicossociais encontram eco


em Paul Claval (1979, p. 95), quando este afirma o papel da “invenção da escrita” no “progresso das
instituições políticas”, discorrendo sobre o protagonismo dos detentores dos saberes letrados (escribas)
na organização da memória, do espaço e na reprodução social. Ele trata das redes de mudanças (ou
famílias de inovação) engendradas pelos copistas e pela imprensa, mencionando as formas tradicionais
de organização societal, chegando ao Estado.

Quanto às formas tradicionais, Claval afirma:

51
Unidade I

Não desapareceram, portanto, como as sociedades históricas: na Grécia


clássica, não se perdeu a lembrança das tribos entre as quais a humanidade
helênica se dividia inicialmente. Os grandes reformadores, como Clisteno,
empenham-se em remover os obstáculos que essas estruturas herdadas
opõem à evolução social (CLAVAL, 1979, p. 95).

Sobre o Estado, acentua o seguinte:

No escalão superior da vida social, as formas políticas são de dois tipos: o


Estado, ou o regime feudal. Trata-se de sistemas há muito complementares
e que se reclamam mutuamente, o que dá à história das civilizações
intermediárias um aspecto cíclico – na China, por exemplo, ou nas civilizações
islâmicas medievais, como mostram as reflexões de Ibn Khaldoun em seus
Prolegômenos. A sorte do Estado depende de suas dimensões: quando a
autoridade que permite o exercício do poder é de essência universalista,
nada limita de direito a construção política, mas os meios de administração
de que ela dispõe são insuficientes para assegurar sua perenidade. Se é
limitada a um território exíguo, o domínio do espaço e dos homens é mais
perfeito: cidade-Estado constitui a forma mais completa de construção
política do mundo tradicional (CLAVAL, 1979, p. 96).

O autor prossegue sua análise qualificando os princípios de organização:

A) Sujeições ecológicas e dados econômicos.

B) Transporte, moeda e troca.

C) Informação, comunicação e escrita.

D) Autoridade, ideologia e estruturas de comunicação (CLAVAL, 1979, p. 105).

Culmina sua digressão no Estado, assunto que estudaremos depois.

Agora vamos acentuar um trecho sobre a institucionalização das sociedades humanas

Trinta princípios sobre o surgimento e evolução do Estado

Estes princípios pretendem constituir uma teoria histórica do Estado e ser uma
alternativa à teoria contratualista. Esta foi uma teoria útil quando surgiu porque validou,
legitimou do ponto de vista ideológico, a transformação dos súditos em cidadãos, sendo,
portanto, ingrediente da teoria histórica, mas ela própria não tem base na realidade
histórica, nem tem condições de explicar a evolução política das sociedades modernas
ou capitalistas, ou seja, não dá conta do desenvolvimento político que vem efetivamente
ocorrendo desde a revolução capitalista.
52
CIÊNCIA POLÍTICA

Surge o Estado Antigo

1. Os homens são guiados por suas necessidades inatas ou por seus instintos de: (a)
sobrevivência, (b) convivência e (c) justiça.

2. Para tornarem os comportamentos previsíveis e, assim, poderem conviver, os homens


necessitam de regras de convivência ou normas sociais.

3. Nas sociedades primitivas, nas quais não existe a produção regular de um excedente
econômico (produção que excede o consumo necessário à sobrevivência), essas normas
são definidas de forma tradicional e consensual, independendo de um poder superior para
torná-las coercitivas (o Estado). (Nelas não há “estado de natureza” – uma guerra de todos
contra todos: existe apenas guerra permanente entre as tribos ou clãs).

4. No momento em que surge esse excedente, o esforço bem-sucedido de alguns


membros da sociedade para se apropriar desse excedente e transformá-lo em propriedade
privada ou comum de uma oligarquia torna necessária a criação de um poder soberano,
acima de todos os demais, [com um] Estado que defina as leis ou a ordem jurídica.

5. Surgem, então, as leis (as norma sociais dotadas de coercitividade) e o Estado Antigo:
o sistema legal e a organização que o garante.

6. O Estado Antigo ou original surge quando uma minoria se transforma em oligarquia


ao lograr impor unilateralmente sua lei (seu contrato) ao povo – ao restante da população
de uma determinada sociedade em formação. Não se pode, portanto, afirmar que o Estado
surgiu de um “contrato social”, pois um verdadeiro contrato implica liberdade de contratar
e justiça comutativa.

7. A lei imposta pelo Estado Antigo ou lei oligárquica não é uma “lei natural”; é
simplesmente a lei dotada de validade que a oligarquia logra impor com êxito à sociedade.

8. A lei oligárquica obriga apenas o povo, não a oligarquia, sendo, portanto,


necessariamente injusta (desigual) e arbitrária.

9. Através da lei, a oligarquia se apropria do excedente econômico, reduzindo os vencidos


na guerra à escravidão, impondo impostos e reduzindo os membros de sua sociedade (os
súditos da oligarquia) à servidão ou então à simples pobreza.

10. A sociedade passa, assim, a ser dividida entre os ricos (a oligarquia) e os pobres, ou
o povo.

11. A validade da lei oligárquica depende: (a) da segurança que garante aos súditos
(a qual atende minimamente a sua necessidade de sobrevivência); (b) do grau de
desequilíbrio de forças entre a oligarquia e o restante da sociedade – o povo; e (c)
53
Unidade I

da capacidade de persuasão dessa oligarquia de que sua lei atende minimamente ao


instinto de justiça dos homens.

12. A lei oligárquica terá tanto mais validade quanto maior for o poder da oligarquia em
relação ao povo, e, portanto, quanto mais for aceita sua lei.

13. O poder da oligarquia em relação ao povo será tanto maior e sua lei terá tanto mais
validade quanto maior for sua vantagem em relação a duas variáveis básicas: conhecimento
e comando de força militar.

14. Graças a sua vantagem de conhecimento, a oligarquia logra hegemonia


ideológico‑religiosa ou conhecimento, a oligarquia logra aceitação para sua lei.

15. Graças a sua força, essa lei oligárquica é dotada de coercitividade; não é mera norma
social, mas norma do Estado.

16. Cada oligarquia busca constituir um império – a unidade político-territorial


correspondente ao Estado Antigo na qual apenas o povo central (os súditos) está sujeito ao
conjunto das leis oligárquicas, enquanto as colônias estão sujeitas apenas às leis do império,
que asseguram a coleta dos impostos de forma que nelas sua cultura e suas próprias leis
continuam vigentes.

17. O “objetivo político” do Estado Antigo é apenas o da segurança.

[...].

Fonte: Bresser-Pereira (2010, p. 1-2).

Norberto Bobbio (1988) traz as noções de público e privado, que assumem funções vitais na
institucionalização das relações de poder, nas configurações políticas.

Robert Heilbroner (1988), na obra A Natureza e a Lógica do Capitalismo, ao analisar detalhadamente


o regime do capital (a composição e o movimento orgânico da acumulação capitalista), passa à
exposição dos papéis das esferas política e econômica na distribuição do poder e na constituição do
Estado nesse processo.

Esse caminho também é trilhado por Atilio A. Boron (1994). O autor fala em “estadolatria” para
evidenciar as posturas acríticas, naturalizantes, que tomam o Estado como inexorável, destacando
uma fatalidade.

54
CIÊNCIA POLÍTICA

Resumo

Nesta unidade, estudamos as nuances do poder e da política,


primeiramente, no nível da vida cotidiana, do mundo da vida, bem como os
rumos do poder no plano institucional (estatal).

Discutindo o fenômeno político, analisamos o poder, a política e a


ciência política. Nesse contexto, apresentamos as ideias sobre o poder e
como ele aparece – a questão de fundo é a desigualdade social.

Focalizamos a política no plano da existência. Passamos para o


pensamento científico sobre o poder e sobre a política.

Fizemos uma introdução às teorias do Estado, envolvendo


questionamentos interdisciplinares sobre os modos de o ser humano se
organizar, isto é, algo de teoria das organizações.

Também tratamos de poderes, contratos, regras e normas. Avaliamos as


classificações de grupos políticos e as origens e conceitos do Estado.

Exercícios

Questão 1. O contratualismo é reconhecido por tencionar explicar os caminhos que levam


as pessoas a formar governos e manter a ordem social. Com abertura de certos direitos para um
governo ou outra autoridade, o Contrato Social é uma corrente filosófica que emergiu nos séculos
XVI e XVIII.

As alternativas a seguir acentuam representantes contratualistas, EXCETO:

A) Immanuel Kant.

B) Thomas Hobbes.

C) John Locke.

D) Jean Jacques Rousseau.

E) Nicolau Maquiavel.

Resposta correta: alternativa E.

55
Unidade I

Análise da questão

E) Alternativa correta.

Justificativa: Maquiavel antecede o contratualismo, por isso não adere aos termos Estado de Natureza
e Contrato Social, porém deixa claro sua opinião ao falar que a natureza humana é essencialmente má
e que os seres humanos querem obter o máximo de ganhos a partir do menor esforço, apenas fazendo
o bem quando forçados a isso.

Questão 2. Leia o texto a seguir de Bonavides (1995):

“Os conceitos de Sociedade e Estado, na linguagem dos filósofos e estadistas, têm sido empregados
ora indistintamente, ora em contraste, aparecendo então a Sociedade como círculo mais amplo e o
Estado como círculo mais restrito. A Sociedade vem primeiro; o Estado, depois.

[...]

O Estado como ordem política da Sociedade é conhecido desde a Antiguidade aos nossos dias.
Todavia nem sempre teve essa denominação, nem tampouco encobriu a mesma realidade”.

As alternativas a seguir destacam etapas que compõem a evolução histórica do Estado, EXCETO:

A) Estado feudal.

B) Estado estamental.

C) Estado terrorista.

D) Estado absolutista.

E) Estado representativo.

Resolução desta questão na plataforma.

56
CIÊNCIA POLÍTICA

Unidade II
5 ESTADO, HISTÓRIA E ELEMENTOS ESSENCIAIS

Imersos nas formas-Estado, compreenderemos facilmente que as


sociedades indígenas recorram a poderosos mecanismos para inibir o pleno
desenvolvimento delas – que já estão lá e atuam, presentes na aparente
ausência. Da mesma forma e inversamente, as sociedades indígenas nos
concederão as grades de inteligibilidade para que compreendamos a
atuação das forças antiestado entre nós, inibidas e, contudo, presentes na
aparente ausência. Tudo estará em tudo e reciprocamente [...]: Estado entre
os indígenas; antiestado entre nós; Clastres nos dilemas da antropologia
contemporânea e às avessas (BARBOSA, 2004, p. 533-534).

Aproveitamos o diapasão dessa citação e seguimos pelos olhares disciplinares que miram os principais
traços e as bases do Estado; traços radicais, como aqueles trazidos por antropólogos (Maurice Godelier e
Pierre Clastres) e geógrafos (como Paul Claval), e sofisticados, como o da sociologia de Pierre Bourdieu.
Esses homens abrem caminho para os cientistas políticos (politólogos) e para economistas (como Robert
Heilbroner, da economia política).

É preciso que se diga, alinhando-nos com Atilio A. Boron (1994), que houve expansões e
retrações históricas das estruturas estatais, o que é corroborado pelas afirmações que destacamos
de Paul Claval.

Atilio A. Boron acusa certa negação de sua realidade, principalmente no caso dos britânicos,
advertindo que “a realidade social existe independentemente de nossas capacidades intelectuais
para apreendê-la” (1994, p. 244). O autor menciona o positivismo reinante (em David Easton, por
exemplo), que considera imprestáveis poder e Estado ao desenvolvimento da pesquisa política.
Claro, visto que não são tangíveis, a não ser como expressão de relações: são tipos, emergem com
as forças sociais.

Boron (1994) fala de formações estatais tardias (Alemanha e Itália) em contraposição às anglo-saxãs
(Estados Unidos da América e Reino Unido), nas quais a iniciativa burguesa inibiu o aparato estatal...

O Estado, que desde os anos 1930 foi um meio ideal de lidar com a crise,
foi convertido ideologicamente no “bode expiatório” e concebido como o
fator que a originou. Antes, nos fatídicos anos 1930, isso fazia parte da
solução. Agora se tornou – nas versões mais ululantes do neoliberalismo – a
totalidade do problema (BORON, 1994, p. 187).

57
Unidade II

Quanto à América Latina, sistema tributário pauperizador e não devolutivo, Boron acentua:

Números sobre a tendência dos salários reais falam por si sobre o alcance
do processo de pauperização sofrido por vastos setores das populares
classes latino-americanas. É evidente que esta regressão salarial deve ter
um impacto profundo, tanto na economia como na política de nossos
países. Mas o que gostaríamos de destacar com esses dados é a magnitude
da lacuna que separa as necessidades humanas básicas – de crescentes
contingentes da população – da capacidade efetiva de intervenção do
Estado suscetível de produzir políticas compensatórias ou corretivas dos
desequilíbrios gerados pelo capitalismo selvagem. Isso pode ser expresso
graficamente com a metáfora das tesouras: as demandas geradas na
sociedade civil, as insatisfações, as privações e os sofrimentos provocados
tanto pela crise como pelos testes neoliberais postos em prática na região
deram origem a uma verdadeira barragem de reivindicações, facilitada,
por outro lado, pelo clima permissivo das sociedades que reiniciam
sua longa marcha rumo à democracia. Nestas condições, no entanto,
a mesma crise que potencializa as renovadas demandas sociais reduz
significativamente as capacidades do Estado para produzir as políticas
necessárias para resolver, ou pelo menos aliviar, as dificuldades aludidas.
O resultado é um acúmulo alarmante de tensões que poderiam levar a
um quadro de ingovernabilidade generalizada do regime democrático, sua
deslegitimação acelerada e sua provável desestabilização, com os riscos de
uma inesperada reintegração de governos autoritários de diferentes tipos
(BORON, 1994, p. 195).

Atilio A. Boron (1994, p. 200) faz considerações sobre as dívidas externas insustentáveis “que a
América Latina não pode pagar”, promovendo transferências de gigantescas quantias, e acrescenta a
mais importante das constatações de seu livro, que “estes dados [o levantamento exaustivo apresentado]
demonstram, apesar da gritaria neoliberal, a persistente importância do Estado e do gasto social nos
capitalismos metropolitanos”.

Numa análise mais pormenorizada, pode-se comprovar que nem o


presidente Ronald Reagan nem a primeira-ministra Margaret Thatcher
cumpriram suas promessas de efetivar cortes drásticos nos orçamentos
fiscais. Se algo foi provado com a sua gestão é que mesmo o discurso mais
neoliberal não conseguiu ressuscitar os mortos diligentemente enterrados
por Keynes há mais de meio século. Os ideólogos e propagandistas das
virtudes do mercado podem falar, mas suas palavras desaparecem no
ar antes da verdade efetiva das coisas. Se o Estado continua a pesar na
economia, é porque a acumulação capitalista foi “estatificada” e exige
cada vez mais o apoio dos poderes públicos para sobreviver. A história
do déficit fenomenal do governo dos EUA é demasiado conhecida
para se repetir mais uma vez: em 1985, era equivalente a 5,3% do
58
CIÊNCIA POLÍTICA

PIB, enquanto a do Reino Unido, por outro lado, era de 3,1%. Como
os déficits aberrantemente keynesianos se reconciliam com um discurso
dogmaticamente neoliberal? (BORON, 1994, p. 201).

Para nossa “perplexidade” diante das declarações sobre a agonia e morte do Estado, pesquisadores
sustentam o seguinte: “como resultado do declínio das políticas econômicas neoliberais e da crise que
atravessam a maioria das economias latino-americanas, o papel econômico do Estado se verá fortalecido”
(BORON, 1994, p. 203).

Claudia Costin define de modo bem direto Estado, Estado nacional e suas partes principais.

Em sua versão moderna, o Estado contém um conjunto de organismos de


decisão (Parlamento e governo) e de execução (Administração Pública).
Nessa concepção, a organização estatal possui uma dimensão legiferante,
associada à produção de normas que regerão a vida social, e uma dimensão
administrativa, associada ao cotidiano da gestão das instituições e das
relações políticas. Assim, o Estado é mais amplo que o governo ou que a
Administração Pública, como veremos um pouco mais adiante.

Numa outra classificação, o Estado é integrado por três poderes, a que


correspondem três funções básicas: o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
O primeiro estabelece as leis a serem seguidas por uma sociedade. O
Executivo, por sua vez, tem por responsabilidade impor e fiscalizar a
aplicação dessas leis, além de regulamentar, nas bases por elas previstas, a
legislação aprovada pelo Legislativo, implementar políticas públicas, coletar
impostos para o desempenho das funções do Estado e de seus componentes.
O Judiciário, por fim, detém a capacidade de julgar, na maioria dos casos, a
correta aplicação da lei e das penas correspondentes a seu desrespeito.

Investido desses três poderes, o Estado possui um caráter ambíguo: designa


o comando da comunidade, como autoridade soberana que se exerce sobre
um povo e um território determinados e, ao mesmo tempo, representa,
por meio de uma pessoa que o encarna, a Nação. Essa pessoa é o chefe
de Estado, correspondente, num país como o nosso, ao presidente, e, num
regime monarquista como o inglês, ao rei ou à rainha.

[...]

Bresser-Pereira (2004, p. 4) estabelece uma distinção entre Estado-nação


e Estado. Para ele, enquanto o Estado-nação é o “ente político soberano
no concerto das demais nações, o Estado é a organização que, dentro
desse país”, tem o poder de legislar e tributar a sociedade. O autor associa
ao Estado tanto uma dimensão de organização com “poder extroverso
sobre a sociedade que lhe dá origem e legitimidade” quanto o sistema
59
Unidade II

constitucional‑legal, “dotado de coercibilidade sobre todos os membros do


Estado nacional” (COSTIN, 2010, p. 8-15).

O Estado possui uma administração pública, fixada pelo Decreto-lei nº 200 de 1967:

Uma definição operacional de Administração Pública decorre do que vimos


anteriormente sobre o Estado. Inclui o conjunto de órgãos, funcionários
e procedimentos utilizados pelos três poderes que integram o Estado, para
realizar suas funções econômicas e os papéis que a sociedade lhe atribuiu no
momento histórico em consideração. Assim, temos dois qualificativos para
associar a esta afirmação: a Administração Pública não existe só no Executivo
e ela muda constantemente, pois as expectativas da sociedade em relação a
ela e às disputas que se fazem na esfera política para fazer valer propostas
diferentes de atuação estatal também são cambiantes (COSTIN, 2010, p. 27).

Claudia Costin cita Bresser-Pereira para tipificar a Administração Pública em três formas históricas:

Segundo Bresser-Pereira (1998, p. 20-22), há três formas de administrar o


Estado: a administração patrimonialista, a administração pública burocrática
e a administração pública gerencial, que outros autores chamam de
pós‑burocrática. O autor tira o qualificativo de pública da administração
patrimonialista, pois esta não visaria o interesse público (2010, p. 31).

A autora também apresenta em seu livro os modos básicos de alimentação do aparelho estatal, via
tributos, e de gastos públicos, via orçamento.

Depois de definir Estado e de contextualizá-lo juridicamente, vamos situá-lo no tempo com o excerto
a seguir.

Evolução histórica do Estado

Como vimos, o Estado não existiu sempre. Surgiu num determinado momento histórico
em razão de uma série de fatores sociais, políticos, econômicos etc., com o objetivo de
organizar a sociedade sob uma nova estrutura institucional de poder. Para analisarmos
as formas históricas assumidas pelo Estado, retomamos a tipologia utilizada por Norberto
Bobbio em seu Estado, Governo e Sociedade, que inclui esta sequência: Estado feudal,
Estado estamental, Estado absoluto, Estado representativo.

O Estado feudal pode parecer a muitos uma contradição em termos, mas trata-se,
evidentemente, de uma forma de Estado em que há uma fragmentação do poder em
múltiplos agregados sociais e, por outro lado, a concentração de diferentes funções diretivas
nas mãos das mesmas pessoas. Ao poder “central” do rei caberia apenas a organização do
Exército e a estruturação da defesa do território, ao passo que o protagonismo político
pertenceu aos senhores feudais.
60
CIÊNCIA POLÍTICA

O Estado estamental – outra categoria nessa tipologia baseada na evolução histórica –


caracteriza-se pela constituição de órgãos colegiados que reúnem indivíduos possuidores
da mesma condição social, os estamentos, que detêm os mesmos direitos e privilégios
diante do poder soberano. Essa forma de Estado difere do Estado feudal em virtude da
transformação das relações pessoais entre os indivíduos, além da própria relação entre as
instituições, pois as assembleias de estamento surgem como contrapoder ao rei e aos seus
funcionários. Posteriormente, o absolutismo tenderá a acabar com essa contraposição de
poderes a partir da ênfase na ideia de poder soberano e absoluto.

O Estado absoluto surge com a concentração e centralização de poderes num determinado


território, tendo como referencial a figura do monarca. Com o fim da fragmentação do poder
político, pode-se pensar na constituição dos Estados-nação, com o exercício da soberania
sobre um território e suas gentes.

A soberania se expressa agora no poder de ditar leis sobre uma coletividade, no poder do
uso exclusivo da força para proteção contra ameaças externas e imposição da ordem, e no
poder de coletar impostos que é assegurado ao rei e elimina poderes autônomos estranhos
a ele. Em outros termos, o poder de cidades, sociedades comerciais ou corporações só pode
existir mediante autorização do poder central ao qual se subordinam, ganhando relevo
termos como “centralização”, “soberania” e “contrato social”.

O Estado representativo aparece na Europa na sequência da Revolução Gloriosa de 1688 e


da Revolução Francesa de 1789 e, nos Estados Unidos, após a consolidação da independência
no século XVIII. O conceito de representação associa-se à ideia de que um corpo escolhido
por cidadãos age em nome destes, e tal corpo é escolhido por meio de um procedimento
eleitoral racionalmente estabelecido. Trata-se, antes de tudo, do Parlamento, em que um
conjunto de representantes é eleito para decidir que leis deverão governar aquela sociedade
e, mais especificamente, que políticas públicas serão implementadas. Inclui também o Poder
Executivo, em que o presidente ou primeiro-ministro age representando a coletividade que
lhe outorgou o poder para tanto, por um período especificado, mas equilibrando seu poder
com o do corpo Legislativo.

No regime representativo, o poder conferido aos representantes pode ser retirado,


seja por uma não renovação do mandato no momento das eleições, seja por decisão
dos demais representantes, caso alguma lei que rege a conduta dos parlamentares ou
do chefe do Executivo tenha sido burlada, justificando, assim, a cassação do mandato,
no caso dos membros do Poder Legislativo, ou o impeachment, no caso do presidente.
Eleições parlamentares que mostrem um novo desejo dos eleitores podem levar, no sistema
parlamentarista, à nova escolha de primeiro-ministro.

A democracia representativa é realizada através de uma representação concentrada


que se divide nos poderes Executivo e Legislativo. É importante salientar a análise de
Pitkin sobre o tema, que realiza uma reflexão histórica e semântica do conceito de
representação. Segundo a autora, “representação” tem sua origem na palavra latina
61
Unidade II

representare, que significa “tornar presente ou manifesto; ou apresentar novamente”


(PITKIN, 2006, p. 17). Por outro lado, em virtude da complexidade da representação,
surgem desafios sobre como tornar presente o que não está efetivamente presente.
Desse modo, a ausência do representado é atenuada por meio de mecanismos em que
a atuação do representante seja publicizada e, de certa forma, passível de controle, o
que não quer dizer que esse controle seja absoluto e que não haja uma margem de
autonomia nas ações do representante.

Por essa razão, segundo Manin (1995), é possível identificar três sentidos no âmbito da
democracia representativa:

• Significa que as decisões devam ser realizadas por representantes cuja legitimidade
advém da lei ou do voto, pois, embora o povo não governe, “ele não está confinado
ao papel de designar e autorizar os que governam. Como o governo representativo
se fundamenta em eleições repetidas, o povo tem condições de exercer uma certa
influência sobre as decisões do governo” (p. 8).

• Afasta a ideia de poder absoluto, na medida em que o representante deve agir


nos limites impostos pelos representados, desfrutando de relativa margem de
autonomia. Por outro lado, isso não quer dizer que o representante deva fazer o que
o representado determina. O que possibilita essa relação conflituosa é a liberdade de
opinião, que atenua a não vinculação do governante às opiniões do governado, já
que a “liberdade de opinião surge, assim, como contrapartida à ausência do direito
de instrução” (p. 12).

• Significa uma alternativa à complexidade moderna, na qual não há mais espaços


para modelos democrático-participativos diretos, a exemplo da polis grega. Assim, “a
vontade popular se torna um componente reconhecido do ambiente que cerca uma
decisão” (p. 12), tendo em vista que a seleção de representantes ocorre por meio de
um procedimento eleitoral.

Como avanço histórico, o Estado representativo introduziu a ideia de que o indivíduo


precede o Estado. Ao contrário do Estado estamental, em que a representação se faz por
categorias ou corporações, aqui indivíduos singulares (inicialmente, esclarece Bobbio, só
os proprietários) detêm direitos naturais e por lei que podem, inclusive, fazer valer contra
o Estado. Esse reconhecimento dos direitos do homem e do cidadão representou uma
revolução no relacionamento entre governantes e governados.

Para Bobbio, a evolução da democracia representativa caminhou lado a lado com


o alargamento dos direitos políticos até a introdução do sufrágio universal. Mas tal
complexidade trouxe como consequência a necessidade de se formarem partidos e
associações, [então], ao organizarem as eleições, levou à perda da noção originária de
representação, a qual já não seria mais dos indivíduos singulares, e sim das agremiações
que acabam recebendo “uma delegação em branco dos eleitores”.
62
CIÊNCIA POLÍTICA

Mesmo com esses problemas, o Estado representativo é hoje ao menos a referência,


mesmo em constituições de países com modelos marcadamente autoritários. Procura-se
manter, no texto do ordenamento jurídico da maior parte dos países, ao menos a referência
ao Estado representativo.

A partir de outros pressupostos, Bresser-Pereira acrescenta à tipologia o Estado social,


marca de uma evolução que, na sequência das manifestações socialistas do fim do século
XIX e, mais recentemente, após a crise de 1929 e suas graves implicações na qualidade de
vida das populações europeia e americana, tornou o cidadão portador de direitos sociais e o
aparelho estatal uma fonte de atendimento das necessidades a ele associadas.

Mais precisamente, em decorrência da mudança nas relações sociais causada, em


especial, pela industrialização, buscou-se um novo tipo de Estado, que reconhecesse as
desigualdades sociais. A falta de condições salubres de trabalho, a ausência de direitos
trabalhistas e a exploração foram os problemas que o direito social procurou resolver.
Exigiu‑se, para tal, uma atuação positiva por parte do Estado no âmbito das relações
privadas. Predomina, no Estado social, a preocupação de proteger o homem do próprio
homem e, para tal, o Estado deve ser o ator redutor de diferenças sociais, praticando uma
verdadeira justiça distributiva.

Na concepção de Bresser-Pereira, o Estado social apresentaria três versões: o Estado do


bem-estar, o Estado desenvolvimentista e o Estado comunista. As propostas estruturam
sistemas bastante distintos entre si, mas com uma preocupação comum: dotar o Estado
de competências para promover maior igualdade econômica entre cidadãos que, para a
etapa mais recente do Estado representativo, já contariam com igualdade de direitos civis e
políticos. Isso envolve um fortalecimento das capacidades de formulação e implementação
de políticas sociais e, ao mesmo tempo, uma ênfase na promoção do desenvolvimento e
no apoio à indústria local. Além disso, estabelece-se um diálogo firme e constante com
sindicatos e associações de trabalhadores.

A crise do Estado no início dos anos 1980 e a posterior derrocada da União Soviética
e das economias dos regimes do Leste Europeu trouxeram um profundo questionamento
do Estado social. Criticava-se sua dependência de uma carga tributária elevada, a inibir
a produtividade e a saúde financeira das mesmas empresas locais que se pretendia
impulsionar, e sua desvinculação com uma lógica de trabalho como fator de crescimento
humano. Acreditava-se que auxílios pecuniários dissociados de esforço pessoal levariam
à dependência e à acomodação do ser humano. Outros criticam a insuficiência do
Estado social em resolver os problemas a que se propõe, criando atenuantes, como
salário‑desemprego, em vez de combater o desemprego, ajudas em espécie ou dinheiro
em vez de criar reais oportunidades.

Mas Peter Lindert (2002, p. 2) demonstra que não há evidências estatísticas de que os
Estados com modelos sólidos de bem-estar social financiados por uma carga tributária
relativamente elevada tenham experimentado reduções no crescimento do seu PIB e
63
Unidade II

da produtividade. Isso se deve, segundo ele, entre outros fatores, à constituição de uma
competência para desenhar desincentivos à evasão do trabalho por parte da juventude, à
seleção de um mix de impostos mais favorável ao crescimento e ao efeito positivo do gasto
social sobre o crescimento. Não apenas a educação aumenta o PIB per capita, mas outros
gastos sociais também o fazem.

Em seu modelo predominante hoje em dia, o Estado pode ser diferenciado, no entanto,
pelas diferentes tarefas e papéis que assume, o que, por sua vez, resulta também de uma
evolução histórica.

Há pouco consenso nessa matéria. Mas, nos tempos em que a expressão Estado começou
a ser utilizada, com Maquiavel, o papel do Estado era percebido, sobretudo, como o de
prover segurança à população para conduzir suas atividades diante de agressões externas ou
crimes internos, cabendo às entidades religiosas registrar os nascimentos e óbitos, acudir os
necessitados e, para quem quisesse integrar seus quadros, a educação necessária para tanto.

Outros recebiam educação de preceptores contratados. O controle de contratos privados


surge inicialmente mais relacionado à cobrança de impostos do que à sua garantia. Além
disso, a função judiciária já era exercida antes desse período. O soberano, mesmo antes
de se pensar em separação de poderes, atuava muitas vezes como árbitro em desavenças
entre seus súditos, no perdão de dívidas entre particulares ou para com o Tesouro Real, e
estabelecia sentenças para crimes.

Progressivamente as instituições religiosas e, em alguns casos, as próprias comunidades


(como no caso americano) foram se responsabilizando pela oferta de educação a um número
maior de crianças e jovens, independentemente de vocações religiosas.

O antigo reino da Prússia foi o primeiro país a introduzir, inspirado por Martinho Lutero,
a educação pública gratuita e compulsória, de oito anos de duração, para todas as crianças,
ainda no século XVIII. A essas alturas, as primeiras escolas públicas americanas já existiam e
conviviam com escolas comunitárias e privadas. Na França, onde já existia um sem‑número
de escolas religiosas, o sistema público foi introduzido nos anos 1880, por Jules Ferry, junto
com um processo vigoroso de laicização do ensino (WEREBE, 2004). No Brasil, o governo
provisório de Deodoro da Fonseca institui, em 1890, o “ensino leigo e livre, em todos os níveis
e gratuito no primário” (Decreto nº 501/1890). Na ocasião, apenas 12% das crianças em
idade escolar tinham acesso à educação. Vamos demorar mais 106 anos para universalizar
o ensino fundamental.

A saúde surge como preocupação do Poder Público bem antes disso. Os romanos já
apresentavam obras de saneamento, afastando os dejetos humanos de áreas de concentração
de pessoas. Posteriormente, epidemias mereceram atenção de governos, como foi o caso
da peste negra, que levou à infrutífera queima de cadáveres, seguida pela mais eficiente
queima de bairros inteiros. Da mesma forma, o Estado passou a estabelecer, especialmente
a partir dos séculos XVIII e XIX, condições para o estabelecimento de cemitérios, venda de
64
CIÊNCIA POLÍTICA

alimentos e destinação do lixo num introito ao que se chama hoje de Vigilância Sanitária.
Nesse sentido, fez construir também esgotos (como o famoso de Londres, cuja obra se
fez na sequência da epidemia de cólera de 1854) e aterros sanitários. Pouco a pouco, a
partir do século XIX, o Estado começou a vacinar para prevenir doenças, ao mesmo tempo
que em muitos países se estabelecia um sistema de vigilância epidemiológica. Essas novas
atribuições demandaram a constituição de uma rede de novos equipamentos públicos, em
adição a hospitais, inicialmente operados por ordens religiosas a partir de contribuições
filantrópicas. Aqui no Brasil tivemos as Santas Casas de Misericórdia, a primeira datando
de 1540, de criação apoiada pelo imperador, mas efetivamente não públicas. O mesmo
movimento seguiu o Québec um século mais tarde, com a criação do Hotel-Dieu du
Précieux-Sang, em 1639, e o Hotel-Dieu de Montreal, em 1640. No século XX, o Estado
passou a possuir hospitais, ambulatórios e centros de higiene posteriormente chamados de
centros de saúde.

Outra atividade assumida pelo Estado desde os seus primórdios, embora não com
exclusividade, foi a de construção de estradas. No auge do Império Romano, uma vasta rede
de estradas interligava rotas comerciais e permitia o deslocamento de tropas na Europa, no
norte da África, na Anatólia, na Índia e na China.

O Império Chinês fora responsável pela construção do segmento que interligava a China
à Anatólia e à Índia, conhecida como “rota da seda”. Essa porção tinha uma existência
de aproximadamente 1.400 anos quando das viagens de Marco Polo (1270 a 1290 da
era comum), certamente sua fase mais importante. As companhias comerciais, com seus
exércitos privados, as guildas, os senhores feudais, a Igreja (inclusive na coordenação das
cruzadas), as empresas e mesmo os proprietários individuais fizeram construir estradas para
facilitar o comércio, apoiar movimentação de tropas ou integrar partes distintas de uma
mesma propriedade. Mas, essa função foi percebida durante a maior parte do tempo como
uma atribuição do Poder Público, mais modernamente concedida a empresas de construção
civil, mediante contratos de concessão ou, mais recentemente, parcerias público-privadas
(outra modalidade de concessão).

As primeiras estradas brasileiras foram construídas no século XIX. Nos anos 1920
temos nossas primeiras rodovias. A primeira rodovia pavimentada foi inaugurada em
1928, a Rio-Petrópolis.

Juntam-se às estradas a construção de outras obras de infraestrutura para


desenvolvimento, como portos, ferrovias (que curiosamente surgem no Brasil como
empreendimento privado, de propriedade do Barão de Mauá), sistema de ruamento urbano,
usinas de geração, distribuição e transmissão de energia elétrica e, mais recentemente,
aeroportos e empresas de telecomunicações.

Mas as atividades do Estado na promoção do desenvolvimento não se restringem a obras


de infraestrutura. Incluem a formulação de uma política econômica adequada à atração de
investimentos e promoção do comércio, um sistema de arbitragem de disputas comerciais
65
Unidade II

estruturado e confiável, um regime de patentes que favoreça a inovação e dê segurança a


quem nela desejar investir. Além disso, pode conter uma política industrial que favoreça e
financie empreendimentos nacionais.

Cada vez mais o Estado tem sido chamado, nos países em desenvolvimento, a assumir
um importante papel no incentivo à competitividade do que neles é produzido. Esse papel,
no entanto, deve ser equilibrado com duas outras funções do Poder Público: a redistributiva
e a estabilizadora.

Em situações de pobreza e desigualdades sociais, políticas compensatórias podem


completar os investimentos públicos em saúde e educação. Isso, por outro lado, gera um
impacto, em termos de carga tributária, que encarece os produtos nacionais e rouba-lhes
a competitividade e a possibilidade de criação de empregos – o que agrava a situação
social. Da mesma maneira, a política industrial pode, dependendo de seu desenho, levar a
desequilíbrios orçamentários, que, por sua vez, acarretam inflação, endividamento ou ônus
a políticas sociais.

Recentemente, o Estado vem se retirando da produção direta de bens e serviços para


o mercado. Isso se deve a uma combinação de fatores: o surgimento de um conjunto de
empresas em condições de assumir a direção de empresas públicas que anteriormente
ofereciam esses bens, a crise fiscal que resultou no esgotamento da capacidade de
investimento do setor público e uma visão ideológica de defesa da redução do tamanho do
Estado (o que se convencionou chamar de neoliberalismo).

Mas é interessante observar que, se o Estado se retirou da atividade produtiva em


diferentes setores, ele retornou com outras atribuições, geralmente associadas à regulação
de serviços públicos concedidos, em mercados que tendem à formação de monopólios. No
Brasil, em energia elétrica, área em que muitas empresas de distribuição foram privatizadas,
foi criada a Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica), com funcionários de carreira e
independência para atuar no segmento. Da mesma forma, em telecomunicações, a Anatel
(Agência Nacional de Telecomunicações) se propõe a regular a atuação das empresas que
receberam a concessão de serviços de telecomunicações.

Primeiramente, tais agências se situam na interface entre Estado e governo e não


se submetem à hierarquia funcional, orçamentária e decisória da Administração Pública
clássica. Em segundo lugar, o que reforça essa liberdade de decisão das agências é o
próprio arcabouço jurídico-normativo presente nas diversas legislações de cada uma
delas. Em linhas gerais, algumas características presentes nas agências são centrais para
o seu desenvolvimento institucional autônomo, tais como: a) mandatos dos diretores não
coincidentes com os mandatos do chefe do poder executivo que os nomeou; b) garantias
em relação à demissibilidade ad nutum; c) autonomia funcional e financeira que permita
se organizar livremente; d) impossibilidade de reforma de suas decisões pela Administração
Pública direta. Em terceiro lugar, as agências reguladoras se distinguem também do ponto de
vista do conteúdo da decisão. No contexto regulatório, opera-se uma desconcentração das
66
CIÊNCIA POLÍTICA

competências e atribuições, de modo que à Administração Pública caiba proferir decisões


políticas, ao passo que às agências caiba proferir as decisões técnicas.

O conjunto das atividades públicas desenvolvidas hoje nos países com Estado estruturado
contempla ainda a fiscalização, a diplomacia, a defesa e o policiamento – atividades que,
junto com a regulação, são normalmente definidas como exclusivas de Estado. A segurança
dos cidadãos diante de agressões externas ou crimes internos, a representação da nação
e de seus interesses no exterior, a arrecadação de impostos vitais para a implantação de
políticas públicas e a verificação da conduta de empresas e particulares quanto a leis e
políticas públicas que protegem o ambiente, a saúde da população e dos rebanhos ou a
correta aplicação dos recursos da seguridade social são algumas dessas atividades que o
Estado precisa desempenhar para manter uma sociedade organizada e protegida em seus
direitos (inclusive os chamados direitos republicanos).

Fonte: Costin (2010, p. 8-15).

Saiba mais

Para se aprofundar no assunto, leia a obra de Claudia Costin:

COSTIN, C. Administração pública. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010.

5.1 Teoria geral do Estado

Todo esse processo – constituição de um campo; autonomização desse


campo em relação a outras necessidades; constituição de uma necessidade
específica em relação à necessidade econômica e doméstica; constituição
de uma reprodução específica de tipo burocrática, específica em relação à
reprodução doméstica, familiar; constituição de uma necessidade específica
em relação à necessidade religiosa – é inseparável de um processo de
concentração e de constituição de uma nova forma de recursos que são do
universal, em todo caso, de um grau de universalização superior àqueles que
existiam antes. Passa-se do pequeno mercado local ao mercado nacional,
seja no nível econômico, seja no simbólico. A gênese do Estado é, no fundo,
inseparável da constituição de um monopólio do universal, sendo a cultura
o exemplo por excelência (BOURDIEU, 2012).

Tradicionalmente se distinguem dos processos de formação do Estado: um


exógeno contra a empresa e o outro endógeno. O processo exógeno remete
a fenômenos de conquista de uma empresa por outra e à implantação de
uma instituição dominante sobre as populações conquistadas por parte
da população conquistadora. O processo endógeno remete à constituição

67
Unidade II

progressiva de formas de dominação exercida por uma parte da sociedade


sobre os demais membros (GODELIER, 1980, p. 667).

As reflexões de Claval, Bourdieu e Clastres levam-nos a considerar o Estado como alternativa


organizacional de encaminhamento do poder.

O que Gustavo Baptista Barbosa (2004) destaca e propõe discutir do trabalho de Pierre Clastres é a
variedade histórica, raramente tratada (comumente ignorada) como possibilidade em ciência política e
no direito.

Na verdade, o tratamento que ele reservará ao “Estado” permite-nos desterritorialização


complementar de seu conceito de “sociedade”. O Estado, afirma Clastres, “não é o Eliseu, a Casa Branca,
o Kremlin”, mas o “acionamento efetivo da relação de poder”: é o que nos faculta, por exemplo, afiançar
que haverá Estado entre os primitivos, presente na aparente ausência (BARBOSA, 2004, p. 537).

O autor traz tal possibilidade como uma força organizadora da realidade; isto é, saber, conhecer,
o que pode fazer toda a diferença na hora de planejar e intervir na realidade. As façanhas de outros
povos devem nos esclarecer tanto sobre o alcance da razão quanto sobre a riqueza de combinações
e convenções entre pessoas. É quando fala em revolucionar o conhecimento, evocando o feito de
Copérnico, ao mostrar o poder inusitado de um chefe indígena quando comparado a nossas formas de
poder estatal, por exemplo:

A “revolução copernicana” a que Clastres nos convida, em Copérnico e os


Selvagens, exige que pensemos “dívida” e “guerra” em sua positividade, e
não como reflexos da falta de fé, leis e reis, que condenariam as sociedades
primitivas a um estádio aquém do político. A dívida evidencia o lugar do
político nos grupos indígenas, ao produzir, num só movimento, um chefe
sem poder e uma sociedade sem Estado, sem corpo político que paire acima
dela, portanto. Será o mesmo fito que perseguirão a máquina produtiva e a
máquina de guerra dos primitivos, ambas resguardando a totalidade una das
sociedades primitivas, isto é, mantendo-as como todo homogêneo e evitando
a emergência do Um, do Estado, da distinção entre um “chefe‑que‑ordena”
e um “grupo-que-obedece” (BARBOSA, 2004, p. 549).

Raciocínio similar acontece quando o antropólogo brasileiro considera a dimensão econômica das
organizações sociais/societais.

A máquina produtiva primitiva persegue um ideal de autarquia, porque


opera segundo uma lógica do centrífugo, exatamente como a máquina
de guerra. Opondo os grupos, os conflitos armados conspiram contra sua
unificação e permitem a cada um manter a sua totalidade una contra o
princípio unificador do Um, o Estado: as sociedades primitivas exigem uma
leitura de Hobbes às avessas (BARBOSA, 2004, p. 549).

68
CIÊNCIA POLÍTICA

Borbosa aponta que Pierre Clastres não faz ciência política convencional,

Clastres jamais fez ciência de Estado. Não exatamente no sentido de


que não tenha constituído uma sociologia política. Ainda que não tenha
propriamente instituído uma escola, – Clastres “pertence a uma família
de espíritos sem espírito de família” [afirma Meunier] –, fundou, sim, uma
sociologia política, só que de outro modo e a partir de outra perspectiva.
Trata-se aí do sentido mesmo da revolução copernicana por ele proposta,
ao proceder ao deslocamento da privação para a oposição e identificar, nas
sociedades indígenas, não ausências – de fé, leis e reis –, mas presenças
e vontades afirmativas contra a economia e o Estado. A asserção acerca
do estatuto plenamente político das sociedades indígenas assenta-se
numa aposta: a de que é possível escapar ao guarda-chuva do Estado e
pensar fora das fronteiras por ele impostas, o que, no limite, culminará com
o questionamento da própria instituição como princípio inescapável de
organização social (BARBOSA, 2004, p. 551).

Tocando no ponto nodal de nossa questão, a de tomar, contrariamente ao verdadeiro espírito


científico, as instituições cristalizadas, como é o caso do Estado, ao modo de dados inamovíveis e
eternos, temos que

Tanto a chamada antropologia política quanto a filosofia política viciaram‑se


muito cedo no ponto de vista do Estado e tenderam a conduzir a atenção
para a análise da ordem, da coesão e das instâncias de controle. Entretanto,
tal privilégio denuncia precisamente certa consagração da perspectiva do
Estado, como se se aceitasse como “necessidade antecipadamente dada
aquilo que talvez só exista como seu modo próprio de operação”. O círculo,
dessa maneira, fecha-se em discutível filosofia da história, à qual Clastres
confronta uma etnologia que nos exclui nem tanto como objetos, mas como
pontos de vista (BARBOSA, 2004, p. 552).

Quanto ao poder associado às classificações, Barbosa cita a ideia de Clastres sobre a inadequação
das tipologias transplantadas da realidade conhecida pela ciência europeia para todas as outras partes
do mundo:

Apesar de a tradição das gerações mortas pesar como pesadelo sobre o


espírito das novas, muito cedo os trópicos imporiam suas particularidades
aos antropólogos que aqui desembarcaram a partir da década de 1960.
O instrumental analítico de inspiração fortesiana que muitos traziam em
sua bagagem logo revelaria suas insuficiências. “As tipologias britânicas
das sociedades africanas são possivelmente pertinentes para o continente
negro; não servem de modelo para a América”, antecipa Clastres. Salvo no
caso de raras exceções, a equação tradicional que reduz o poder à coerção
e à relação comando-obediência – precisamente nossa concepção do que
69
Unidade II

deva ser a política – não funciona na América, e, por detrás da recusa


da etnologia em reconhecer o caráter eminentemente político do poder
não potente característico das sociedades ameríndias, esconde-se, em
eterna espreita, o “adversário sempre vivaz” da pesquisa antropológica, o
etnocentrismo, que, ao fazer de nós mesmos inescapáveis telos de todos
os grupamentos humanos, “mediatiza todo olhar sobre as diferenças para
identificá-las e finalmente aboli-las”. Se as sociedades indígenas rejeitam o
poder político como coerção ou violência, tal negação não necessariamente
traduz um vazio. “Algo existe na ausência”, assegura Clastres. Pode-se pensar
o político sem a violência, mas não há como pensar o social sem o político
(BARBOSA, 2004, p. 552).

É muito oportuno que o pensamento ocidental volte-se sobre si mesmo à procura das falhas
proporcionadas pelo etnocentrismo, tão colado nas perspectivas ingênuas.

Observação

Formalistas apegados na lógica elementar são europocêntricos.

Étienne de La Boétie promove um deslizamento da história para a lógica


e espanta-se que tantos tenham se sujeitado a só um e que o tenham
feito de bom grado: “[Q]ue malencontro foi este que tanto desnaturou
o homem, o único nascido, de verdade, para viver livremente […]?” (La
Boétie, em 1576). O assombro deve-se ao fato de que, ainda que as
sociedades a que se refere La Boétie lhe fornecessem apenas exemplos do
malencontro, ao menos no terreno da lógica poderia imaginar-se que tudo
pudesse processar-se de outro modo. Clastres proporá outro deslizamento,
da lógica de volta para a história – o que, por ironia, demonstrará que o
Estado não é historicamente inelutável.

Seu espanto diferencia-se do de La Boétie. Ele pergunta-se: por que


Jyvukugi, o “chefe” dos Guayaki em Arroyo Moroti, obrigava-se a ir de tapy
em tapy notificar seu povo daquilo de que todos já tinham conhecimento,
porque previamente informados pelo paraguaio que se encontrava à frente
do acampamento? (BARBOSA, 2004, p. 556).

O autor assevera que nossas concepções de Estado são muito arraigadas e não nos damos conta das
possibilidades reais de combinação de sociedades humanas.

Presenciamos aí, sob nossos olhos, um “não Estado” em operação, que


confere nova inteligibilidade ao Estado, também em operação, e já entre nós
(e não apenas). Ensina Clastres: o Estado não é “os ministérios, o Eliseu, a
Casa Branca, o Kremlin. […] O Estado é o exercício do poder político”. Diante
70
CIÊNCIA POLÍTICA

de um poder que se exerce, a pergunta “como isto funciona?” é mais profícua


do que as alternativas, e muito mais ambiciosa: “o que isto significa?” ou “de
onde isto vem?”.

Isso funciona pela concorrência de máquinas sociais e figuras subjetivas


específicas, que fazem isso funcionar. O mesmo vale para um poder que
não se exerce.

[No] poder que não se exerce, o “não Estado” opera por meio de máquinas
sociais e figuras subjetivas que conjuram diuturnamente a possibilidade
da emergência da divisão no seio do grupo. As sociedades contra o Estado
recorrem a estratégias próprias e lançam mão de vigorosos mecanismos –
como a guerra, a economia, a religião, a linguagem e a própria “subjetivação”
de seus “chefes – de forma a evitar que surjam nelas o mau desejo de
comandar e, como sua necessária contrapartida, o de obedecer. E vemos,
assim, o quanto há de político no desejo (BARBOSA, 2004, p. 556-557).

Barbosa destaca mais um pouco da riqueza da vida humana contraposta a soluções de outros
períodos e necessidades.

Hobbes e os selvagens. Desse embate, surge o “Contra-Hobbes” de Clastres: sói


pensar a guerra de outra forma. Não mais como sintoma de estado associal (ou,
pior, pré-social, em raciocínio que de novo nos eleva a telos inescapável dos grupos
indígenas) e de caos inclemente, mas como mecanismo mesmo de instituição
do cosmos social primitivo. A guerra, como máquina antiestado por excelência,
preserva a lógica do múltiplo, característica dos grupos indígenas, e conspira
contra o Um: há uma socialidade que se institui na e pela guerra, o que nos
obriga ao saudável exercício intelectual de, por um lado, evitar os maniqueísmos
dialeticamente excludentes e, por outro, pensar guerra e sociedade a um só tempo.
Para Clastres, a politeia selvagem, forma original da política, institui-se na e pela
guerra, não porque a guerra atraia a troca e clame o nascimento da razão, mas
porque, na e pela guerra, passamos de “lobos a homens”. A comunidade primitiva
inscreve sua ordem política num território de onde se exclui violentamente o
Outro, e isto demarca sua política externa; sua política interna conspirará para
sua afirmação como unidade homogênea, impedindo a emergência de qualquer
clivagem em seu seio, de qualquer divisão entre dominantes e dominados.

“Como se faz um chefe? Com suas palavras – e também com o suor de seu
próprio rosto. E o de suas mulheres, que a poliginia estrategicamente lhe
concede” (CLASTRES, 1962, p. 33). Os três termos – palavras, bens e mulheres
–, cuja troca havia-nos garantido a travessia definitiva da animalidade para
a sociedade, servem-se agora a torções –, e não no terreno etéreo das
mitologias, mas sob nossos olhos, assegurando-nos a passagem, também
ela irrevogável, da sociedade para a socialidade política.
71
Unidade II

Impede-se, desse modo, que se torne predominante um poder que já está lá,
presente na aparente ausência (BARBOSA, 2004, p. 556-558).

Citando Deleuze e Guattari, Barbosa adverte:

Conjurar é preceder e, se as sociedades primitivas rejeitam o Estado, é


porque ele já está lá: “sim”, concede Clastres, “o Estado existe nas sociedades
primitivas”. De fato, quanto mais os arqueólogos escavam, mais descobrem o
Estado (DELEUZE; GUATTARI, 1980, p. 23).

A presença diuturnamente conjurada do Estado nas sociedades primitivas,


além de emprestar inteligibilidade ao funcionamento da politeia selvagem,
aos mecanismos sociais primitivos e às figuras subjetivas específicas, por meio
das quais ela opera, permite-nos ver o “não Estado” onde ele aparentemente
não está e, ainda assim, atua entre nós.

Viabiliza-se, dessa maneira, uma antropologia que se entende como diálogo,


como ponte – e de via dupla – lançada entre nossas sociedades e aquelas
de “antes da partilha”. Exposta a absoluta vulnerabilidade dos dualismos
ontológicos excludentes, que obrigam a que as sociedades ou tenham Estado
ou não o tenham, que sua política ou se defina como segmentária ou como
centralizada, que sejamos ou homens ou jaguares, e que os Bororo sejam
ou Bororo ou araras; descartadas apriorística e prematuramente as férteis
possibilidades de misturas e justaposições, novos horizontes descortinam‑se
para a análise, em indicação de que “fecundantes corrupções” podem –
desde que pensemos contra a corrente – revelar potencialidades até então
insuspeitas em “idiomas” antes tomados no radical isolamento de seu
monadismo (BARBOSA, 2004, p. 559).

Citando Meunier, o antropólogo acentua:

Há, assim, um certo estado de Estado, constante e presente por toda parte, e
um certo estado de guerra, também ele constante e presente por toda parte,
um ou outro, inibidos ou potencializados, a depender da forma como se dá
a operação dos mecanismos sociais e das figuras subjetivas por meio dos
quais atuam. Num e noutro estado, entretanto, algo sempre ficará de fora,
reclamando e impondo presença apesar da ausência aparente (BARBOSA,
2004, p. 560).

Pierre Bourdieu contribui muito diretamente com o assunto que trazemos, do poder envolvido
na própria construção das categorias religiosas/teológicas, filosóficas, científicas e jurídicas, tudo
“devidamente” plasmado no mundo da vida, laboratório de aplicação (e legitimação) de produtos da
“engenharia social” milenar, de controle das maiorias.

72
CIÊNCIA POLÍTICA

Lembrete

Gustavo Baptista Barbosa (2004) propõe discutirmos o trabalho de Pierre


Clastres, acentuando a variedade histórica, raramente tratada (comumente
ignorada) como possibilidade em ciência política e no direito.

A seguir destacamos um trecho das famosas aulas de Bourdieu nas quais aponta processos e
estratégias de redefinição de organizações sociais locais em nome do “nacional” e do “internacional”.

As duas faces do Estado

Eu mesmo [Pierre Bourdieu], em todos os meus trabalhos anteriores sobre a escola, tinha
completamente esquecido que a cultura legítima é a cultura de Estado...

Essa concentração é ao mesmo tempo uma unificação e uma forma de universalização.


Ali onde havia o diverso, o disperso, o local, há o único. Germaine Tillion e eu tínhamos
comparado as unidades de medida nas diferentes aldeias cabilas numa área de 30
quilômetros: encontramos tantas unidades de medida quantas eram as aldeias. A criação
de um padrão nacional e estatal de unidades de medida é um progresso no sentido da
universalização: o sistema métrico é um padrão universal que supõe consenso, acordo sobre
o sentido. Esse processo de concentração, de unificação, de integração é acompanhado por
um processo de desapossamento, já que todos esses saberes e competências associados a
essas medidas locais são desqualificados. Em outras palavras, o próprio processo pelo qual se
ganha em universalidade é acompanhado por uma concentração da universalidade. Há os
que querem o sistema métrico (os matemáticos) e os que são remetidos ao local. O próprio
processo de constituição de recursos comuns é inseparável da constituição desses recursos
comuns em capital monopolizado pelos que têm o monopólio da luta pelo monopólio do
universal. Todo esse processo – constituição de um campo; autonomização desse campo
em relação a outras necessidades; constituição de uma necessidade específica em relação
à necessidade econômica e doméstica; constituição de uma reprodução específica de tipo
burocrática, específica em relação à reprodução doméstica, familiar; constituição de uma
necessidade específica em relação à necessidade religiosa – é inseparável de um processo
de concentração e de constituição de uma nova forma de recursos que são do universal, em
todo caso, de um grau de universalização superior àqueles que existiam antes. Passa-se do
pequeno mercado local ao mercado nacional, seja no nível econômico, seja no simbólico. A
gênese do Estado é, no fundo, inseparável da constituição de um monopólio do universal,
sendo a cultura o exemplo por excelência.

Todos os trabalhos anteriores que fiz poderiam resumir-se assim: essa cultura é
legítima porque se apresenta como universal, oferecida a todos, porque, em nome dessa
universalidade, pode-se eliminar sem medo os que não a possuem. Essa cultura, que
aparentemente une e na verdade divide, é um dos grandes instrumentos de dominação,

73
Unidade II

visto que há os que têm o monopólio dessa cultura, monopólio terrível, já que não se pode
reprovar a essa cultura o fato de ser particular. Mesmo a cultura científica apenas leva o
paradoxo a seu limite. As condições da constituição desse universal, de sua acumulação,
são inseparáveis das condições da constituição de uma casta, de uma nobreza de Estado,
de “monopolizadores” do universal. A partir dessa análise, podemos nos dar como projeto
universalizar as condições de acesso ao universal. Ainda assim, convém saber como é
preciso para isso despossuir os “monopolizadores”? Vê-se bem que não é desse lado que
se deve procurar.

Termino com uma parábola para ilustrar o que eu disse sobre o método e sobre o conteúdo.
Há uns trinta anos, numa noite de Natal, fui, numa pequena aldeia bem no interior do Béarn,
ver um modesto baile camponês. Alguns dançavam, outros não; um grupo de pessoas, mais
velhas que as outras, de estilo camponês, não dançavam, conversavam entre si, assumiam
uma atitude para justificar o fato de estarem ali sem dançar, para justificar sua presença
insólita. Deveriam ser casados, já que os casados não dançam mais. O baile é um dos lugares
de trocas matrimoniais: é o mercado dos bens simbólicos matrimoniais. Havia uma taxa
muito elevada de solteiros: 50% na faixa de idade 25-35 anos. Tentei encontrar um sistema
explicativo para esse fenômeno: é que havia um mercado local protegido, não unificado.
Quando o que chamamos de Estado se constitui, há uma unificação do mercado econômico
para a qual o Estado contribui por sua política e uma unificação do mercado das trocas
simbólicas, isto é, o mercado da postura, das maneiras, da roupa, da pessoa, da identidade,
da apresentação. Aquelas pessoas tinham um mercado protegido, de base local, sobre o qual
tinham um controle, o que permitia uma espécie de endogamia organizada pelas famílias.
Os produtos do modo de reprodução camponês tinham suas chances naquele mercado: eles
permaneciam vendáveis e encontravam as moças. Na lógica do modelo que evoquei, o que
acontecia naquele baile era resultante da unificação do mercado das trocas simbólicas, que
fazia com que o paraquedista da pequena cidade vizinha, que ia para lá dando-se ares de
importante, fosse um produto desqualificante, que tirava valor desse concorrente que é o
camponês. Em outras palavras, a unificação do mercado, que pode se apresentar como um
progresso, ao menos para as pessoas que emigram, ou seja, para as mulheres e todos os
dominados, pode ter um efeito liberador. A escola transmite uma postura corporal diferente,
maneiras de se vestir etc.; e o estudante tem um valor matrimonial nesse novo mercado
unificado, ao passo que os camponeses são desclassificados. Aí reside toda a ambiguidade
desse processo de universalização. Do ponto de vista das moças do campo que partem para
a cidade, que se casam com um carteiro etc., há um acesso ao universal.

Mas esse grau de universalização superior é inseparável do efeito de dominação. Publiquei


recentemente um artigo, espécie de releitura de minha análise do celibato no Béarn, daquilo
que eu tinha dito na época, que intitulei, para me divertir, “Reprodução proibida”. Mostro
que essa unificação do mercado tem como efeito proibir de fato a reprodução biológica
e social a toda uma categoria de pessoas. Na mesma época, trabalhei sobre um material
encontrado por acaso: os registros das deliberações comunais de uma pequena aldeia de
duzentos habitantes durante a Revolução Francesa. Nessa região, os homens votavam por
unanimidade. Chegam os decretos dizendo que é preciso votar por maioria. Eles deliberam,
74
CIÊNCIA POLÍTICA

há resistências, há um campo e outro campo. Pouco a pouco, a maioria vence: ela tem
atrás de si o universal. Houve grandes discussões em torno desse problema levantado
por Tocqueville numa lógica continuidade/descontinuidade da Revolução. Resta um
verdadeiro problema histórico: qual é a força específica do universal? Os procedimentos
políticos desses camponeses de tradições milenares muito coerentes foram varridos pela
força do universal, como se eles estivessem se inclinado diante de alguma coisa mais forte
logicamente: vinda da cidade, apresentada em discurso explícito, metódica e não prática.
Tornaram-se provincianos, locais. Os relatórios das deliberações passam a ser: “Tendo o
prefeito decidido…”, “O conselho municipal se reuniu…”. A universalização tem como reverso
um desapossamento e uma monopolização. A gênese do Estado é a gênese de um lugar de
gestão do universal, e ao mesmo tempo de um monopólio do universal, e de um conjunto de
agentes que participam do monopólio de fato dessa coisa que, por definição, é o universal.

[...]

Antes de mais nada, farei uma distinção entre o enfoque que chamo genético e o
enfoque histórico comum.

[...].

Primeiro ponto, portanto, distinguir o enfoque genético do enfoque histórico ordinário;


segundo, tentar mostrar em que o enfoque genético é especialmente indispensável. Por
que, tratando-se de um fenômeno como o Estado, o sociólogo é obrigado a se fazer
historiador, arriscando-se, é claro, a cometer um dos atos mais fortemente tabus no trabalho
científico, que é o ato sacrílego que consiste em transgredir uma fronteira sagrada entre
disciplinas? O sociólogo se expõe a que todos os especialistas lhe batam nos dedos e, como
assinalei, os especialistas são extremamente numerosos. Dito isto, se o enfoque genético
se impõe é porque me parece que, nesse caso particular, ele é, digamos, não o único, mas
um dos instrumentos maiores de ruptura. Retomando as indicações bem conhecidas de
Gaston Bachelard, para quem o fato científico é necessariamente “conquistado” e depois
“construído”, penso que a fase de conquista dos fatos contra as ideias recebidas e o sentido
comum, no quadro de uma instituição como o Estado, implica necessariamente o recurso à
análise histórica.

Uma das análises que eu tinha feito bem longamente dizia respeito a essa tradição
que vai de Hegel a Durkheim e que consiste em desenvolver uma teoria do Estado que,
a meu ver, não passa de uma projeção da representação que o teórico tem de seu papel
no mundo social. Durkheim é característico desse paralogismo ao qual os sociólogos são
com muita frequência expostos, e que consiste em projetar no objeto, sobre o objeto, seu
próprio pensamento do objeto, que é justamente o produto do objeto. Para evitar pensar o
Estado com um pensamento de Estado, o sociólogo deve evitar pensar a sociedade com um
pensamento produzido pela sociedade. Ora, a menos de se crer em a prioris, em pensamentos
transcendentes que escapam à história, é de imaginar que só temos, para pensar o mundo
social, um pensamento que é produto do mundo social no sentido muito amplo, isto é, desde
75
Unidade II

o senso comum até o senso comum erudito. No caso do Estado, sente‑se particularmente
essa antinomia da pesquisa em ciências sociais e talvez da pesquisa em geral, antinomia
que vem do fato de que, se nada se sabe, nada se vê, e se se sabe corre-se o risco de se ver
apenas o que se sabe.

O pesquisador totalmente desprovido de instrumentos de pensamento, que ignora os


debates em curso, as discussões científicas, as contribuições, que não sabe quem é Norbert
Elias etc., arrrisca-se, seja a ser ingênuo, seja a reinventar o já conhecido, mas, se ele conhece,
arrisca-se a ficar prisioneiro de seu conhecimento. Um dos problemas que se apresentam a
todo pesquisador, em especial nas ciências sociais, consiste em saber e em saber se livrar dos
saberes. É fácil dizer, nos discursos epistemológicos sobre a arte de inventar leem-se coisas
assim, mas na prática é formidavelmente difícil. Um dos recursos maiores da profissão de
pesquisador consiste em encontrar astúcias – astúcias da razão científica, se posso dizer –
que permitam, justamente, contornar, pôr em suspenso todos esses pressupostos que são
assumidos pelo fato de que nosso pensamento é o produto do que estudamos e de que
nosso pensamento tem aderências de todo tipo. “Aderências” é melhor que “adesão”, pois
isso seria fácil demais se se tratasse simplesmente de adesão. Sempre se diz: “É difícil porque
as pessoas têm vieses políticos”; ora, está ao alcance do primeiro que aparece saber que,
sendo mais de direita ou mais de esquerda, estamos expostos a tal perigo epistemológico.
Na verdade, é fácil suspender as adesões; o que é difícil é suspender as aderências, isto é, as
implicações tão profundas do pensamento que elas próprias não se reconhecem.

Se é verdade que só temos para pensar o mundo social um pensamento, que é produto
do mundo social, se é verdade, e podemos retomar a famosa frase de Pascal, mas dando-lhe
um sentido totalmente diferente, que “o mundo me compreende mas eu o compreendo”,
e acrescentarei que eu o compreendo de maneira imediata porque ele me compreende, se
é verdade que somos o produto do mundo em que estamos e que tentamos compreender,
é evidente que essa compreensão primeira que devemos a nossa imersão no mundo que
tentamos compreender é particularmente perigosa, e precisamos escapar a essa compreensão
primeira, imediata, que eu chamo de dóxica (da palavra grega “doxa”, retomada pela tradição
fenomenológica). Essa compreensão dóxica é uma possessão possuída ou, poder-se-ia dizer,
uma apropriação alienada: possuímos um conhecimento do Estado, e todo pensador que
pensou o Estado antes de mim se apropria do Estado com um pensamento que o Estado
lhe impôs, e essa apropriação não é tão fácil, tão evidente, tão imediata senão porque é
alienada. É uma compreensão que ela mesma não se compreende, que não compreende as
condições sociais de sua própria possibilidade.

Com efeito, temos um controle imediato das coisas de Estado. Por exemplo, sabemos
preencher um formulário; quando preencho um formulário administrativo – nome,
sobrenome, data de nascimento –, eu compreendo o Estado; é o Estado que me dá ordens
para as quais estou preparado; sei o que é o estado civil, que é uma invenção histórica,
progressiva. Sei o que é uma identidade, já que tenho uma carteira de identidade; sei que,
numa carteira de identidade, há certas propriedades. Em suma, sei um monte de coisas.
Quando preencho um formulário burocrático, que é uma grande invenção do Estado,
76
CIÊNCIA POLÍTICA

quando preencho um pedido ou quando assino um certificado, e que tenho poder para
fazê-lo, seja uma ficha de identidade, seja um certificado médico, seja uma certidão de
nascimento etc., quando faço operações como estas, compreendo perfeitamente o Estado;
sou, em certo sentido, um homem de Estado, sou o Estado feito homem, e, ainda assim, não
entendo nada dele. É por isso que o trabalho do sociólogo, nesse caso particular, consiste
em tentar se reapropriar dessas categorias do pensamento de Estado que o Estado produziu
e inculcou em cada um de nós, as quais se produziram ao mesmo tempo que o Estado se
produzia e que aplicamos a todas as coisas, e em especial ao Estado para pensar o Estado,
de sorte que o Estado permanece o impensado, o princípio impensado da maioria de nossos
pensamentos, inclusive sobre o Estado.

Fonte: Bourdieu (2012, p. 196-208).

Atilio A. Boron (1994) expõe a retórica de assimilação da esfera política pela econômica, que promove
reducionismo do aparato estatal como mera instituição e árbitro eventual; tais ações de esvaziamento
político do poder dão-se no campo de forças neutras:

O fato de que existem inúmeros grupos sociais competindo livremente – em


união com a natureza “neutra”, meramente “técnica”, das regras do jogo –
impede alguém de acumular muito poder e perturbar o equilíbrio geral do
sistema. Existem elites, é claro, mas a elas faltam a consciência e a coesão
necessárias para se tornarem uma classe dominante. O Estado permanece
afastado e indiferente diante da incessante luta de interesses sociais,
limitando-se a evitar a concentração de poder nas mãos de alguns grupos
particulares e a acomodar e reconciliar as aspirações em conflito. Seu papel
é o de um árbitro imparcial que supervisiona a competição entre diferentes
coalizões ou, como afirma Miliband em uma metáfora engenhosa, o de “um
espelho que a sociedade coloca diante de seus olhos”.

Em síntese: a abordagem liberal “resolve” o problema do Estado mediante a


admissão – sem prévia análise ou discussão – de uma série de pressupostos
que afirmam a neutralidade de classe do Estado e a ausência de concentrações
significativas de poder político nas mãos de alguns grupos privilegiados
(BORON, 1994, p. 248-249).

Assim, Atilio A. Boron traz-nos análise minuciosa do papel e da natureza do Estado:

A interpretação predominante nas ciências sociais que surgiu dentro


da grande tradição teórico-política liberal – que percebe o Estado
como o “espelho da sociedade”, como a expressão de uma ordem social
eminentemente consensual e representante de toda a nação, e como o
mercado neutro em que indivíduos e grupos trocam poder e influência
– foi radicalmente criticada por Marx, a partir de seus escritos juvenis,
para argumentar que o Estado é a expressão midiatizada da dominação
77
Unidade II

política nas sociedades de classes. É, na verdade, o “resumo oficial” de


uma sociedade de classes e, consequentemente, não é neutro diante
das lutas e antagonismos sociais produzidos por suas desigualdades e
desigualdades estruturais. Da mesma forma que o mercado “realmente
existente”, e não o imaginado pelos teóricos liberais, o Estado é o lugar
onde os sujeitos formalmente livres e iguais, mas profundamente
desiguais, estabelecem relações políticas de superordenação e
subordinação. Essa assimetria está arraigada, em primeira instância,
na posição e nas funções que os diferentes sujeitos desempenham no
processo produtivo. No entanto, a realização do predomínio político
da classe dominante no capitalismo requer algo mais: a intervenção de
uma densa rede de mediações – estruturas estatais, tradições políticas e
ideologias, organizações e práticas sociais de vários tipos – sem a qual a
supremacia econômica da burguesia não pode se projetar no âmbito mais
global da sociedade civil em seu conjunto (BORON, 1994, p. 248-249).

O sociólogo argentino também expõe os equívocos da teoria marxista quanto às concepções e


implantações do Estado:

Apesar disso, deve-se dizer que a teoria marxista não tem estado imune a
deformações flagrantes produzidas por uma concepção instrumentalista do
Estado, que o reduz a uma simples ferramenta perpetuamente controlada,
direta e imediatamente, pela classe dominante. A metáfora inerte do espelho
reaparece, só que agora vê a imagem quebrada de uma sociedade de classes.
Dessa forma, um economicismo vulgar veio substituir toda a riqueza analítica
do marxismo, com resultados análogos aos que caracterizam a interpretação
liberal-pluralista: o Estado perdeu completamente sua especificidade, sua
eficácia prática e seu grau variável de autonomia – sempre relativo, é claro
– em relação à sociedade civil. Se antes o espelho liberal projetava a imagem
cândida de um mercado de homens livres e iguais, na vulgata economicista
reflete apenas – de maneira imediata e mecânica – a predominância
monolítica da classe dominante (BORON, 1994, p. 250).

Sobre a relação entre Estado e sociedade civil, o autor acentua:

Uma das consequências dessa infeliz coincidência tem sido a impossibilidade


de pensar teoricamente sobre a relação entre o Estado e a sociedade civil
e, sobretudo, de conceber o problema dos limites – certamente elásticos,
mas não por isso menos resistentes – da autonomia do primeiro. Como
vimos, na ciência política de inspiração liberal, os laços entre Estado e
sociedade foram dissolvidos, postulando em consequência a ficção de
um cidadão isolado e independente que adere ou pertence a múltiplos
grupos de interesse, eventualmente caracterizado pela defesa de
interesses “mutuamente cruzados”, com o que evita a superposição de
78
CIÊNCIA POLÍTICA

clivagens sociais, e que eles “fazem” a política em um campo tão neutro


quanto o mercado que é chamado de “arena política” ou sistema político.
Aprioristicamente assume-se que o poder político encontra-se disperso
entre uma multiplicidade de grupos, associações e instituições, e que estes
competem – pública e incessantemente – pela apropriação de algumas
parcelas de um fantasmagórico aparato estatal, ou pela imposição de certas
políticas públicas do governo. Na realidade, toda a complexidade do Estado
moderno é reduzida ao governo, e ambos se tornam sinônimos, quando
na realidade não o são. Por outro lado, o mesmo governo é rebaixado para
a condição de simples constelação de agências, escritórios e organismos
completamente carentes de coerência e unidade. Estes funcionam como
se fossem barcos a vela mudando de orientação e de referências com base
nas correlações flutuantes de forças produzidas pelas iniciativas e reações
da miríade de grupos de interesse que constituem a sociedade civil. É
mediante essa linha de argumentação que o pensamento liberal desemboca
em um economicismo grosseiro, no qual a anarquia – ou, eventualmente, a
poliarquia – reinante no mercado é linearmente transferida para o campo
da política, fechando assim as portas que permitem um repensar teórico de
uma reflexão sobre a questão da especificidade, efetividade e autonomia do
Estado e dos processos políticos. No marxismo “instrumentalista” o resultado
é análogo: o Estado e a vida política, como a ideologia, são concebidos
como meros reflexos do desenvolvimento das forças produtivas, fechando
a possibilidade de recuperar a dialética complexidade das ligações entre
economia e política. A diferença entre as teorias liberais e as do chamado
“marxismo vulgar” reside [no seguinte:] nas primeiras a sociedade civil não é
concebida como estruturalmente fraturada pela existência de classes sociais,
enquanto nas segundas a relevância da diferenciação de classes ocupa um
lugar fundamental e exclusivo.

No entanto, o economicismo arraigado de ambas as perspectivas termina na


anulação do Estado, completamente privado de iniciativa autônoma: reflexão
especular do mercado, ou simples “paralelogramo de forças” construído
a partir de uma competição desencadeada entre interesses individuais e
grupais, no discurso liberal. Instrumento dócil da classe dominante, no caso
do marxismo vulgar, o problema da independência relativa do Estado não
pode sequer ser levantado, a menos que se rompa com os pressupostos
compartilhados por essas duas perspectivas teóricas.

Parece claro que nenhuma dessas duas alternativas tem condições para
abrir caminhos promissores para o estudante de política; pelo contrário,
constituem sérios obstáculos ao desenvolvimento da pesquisa científica.
Como superar, portanto, o impasse teórico que envolve a questão do Estado?
(BORON, 1994, p. 250-251).

79
Unidade II

O pesquisador segue com a reflexão sobre o papel do marxismo:

No campo marxista, o problema é colocado em termos completamente


diferentes. O Estado é uma instituição de classe, uma afirmação que desde
o início coloca toda essa teorização nos antípodas da concepção liberal.
Essa oposição é ainda mais evidente para um autor como Nordlinger, que
atomisticamente fragmenta o Estado no grupo de burocratas que administram
o aparelho do governo. É por isso que, ao defini-lo, ele argumenta que o
Estado é “constituído por – e limitado a – aqueles indivíduos dotados de
autoridade decisória de alcance social”. Na tradição marxista, ao contrário, o
Estado é, simultaneamente: (a) um “pacto de dominação” por meio do qual
uma certa aliança de classes constrói um sistema hegemônico capaz de gerar
um bloco histórico; (b) uma instituição dotada dos correspondentes aparatos
burocráticos e suscetível de ser transformada, sob certas circunstâncias, em
“ator corporativo”; (c) um cenário de luta pelo poder social, um terreno em
que os conflitos entre diferentes projetos sociais que definem um padrão
de organização econômica e social são resolvidos; e (d) o representante dos
“interesses universais” da sociedade e, como tal, a expressão orgânica da
comunidade nacional.

É impossível, portanto, recuperar totalmente o significado do fenômeno


do Estado, se essas quatro dimensões não forem levadas em conta. Pensar
nisso apenas como um pacto de dominação, como faz o marxismo vulgar,
ou como um poderoso ator corporativo, como defensores de abordagens
“estatocêntricas”, ou como uma simples “arena” de grupos em conflito, como
quer a tradição liberal, ou finalmente como representante dos interesses
gerais da sociedade, como os burocratas e discípulos distantes de Hegel
proclamam, só pode terminar numa visão deformada e caricaturada do
Estado. A superioridade teórica do marxismo nessa questão reside justamente
em sua capacidade de pensar o Estado na riqueza e multiplicidade de suas
determinações, nenhuma das quais pode sozinha explicar o fenômeno em
sua plenitude.

O que queremos dizer, resumidamente, é o seguinte: o problema da


autonomia do Estado não pode ser adequadamente colocado no quadro
teórico oferecido pela tradição liberal, e isto é assim dada a ausência de
premissas fundamentais que permitem estabelecer algum tipo de relação
estrutural entre economia e política. Em outras palavras, falar de autonomia
– embora “relativa” – logicamente se refere a um pressuposto sobre o sistema
de relações sociais que articula em um todo orgânico e significativo todos
os diferentes aspectos e níveis que tornam a vida social. O materialismo
histórico sustenta que as leis do movimento de um modo de produção
devem ser encontradas nas contradições estruturais entre as forças
produtivas e as relações sociais de produção. Dentro dessa formulação, a
80
CIÊNCIA POLÍTICA

questão sobre os limites desse condicionamento estrutural, que em nenhum


caso pode ser absoluto, torna-se significativa. Entretanto, no pensamento
liberal – e nem mesmo Max Weber escapou disso – a sociedade é concebida
como a justaposição de uma série de “partes” diferentes – ordens ou fatores
institucionais, de acordo com o léxico usado por vários autores –, que, em
sua existência histórica concreta, podem ser combinadas de várias maneiras.
Isso impede que uma hierarquia de determinantes e condicionamentos seja
estabelecida, mesmo no nível mais abstrato: aqui e agora o econômico
pode ser a causa, mas amanhã pode ser simplesmente o efeito de qualquer
variável (BORON, 1994, p. 254-255).

Saiba mais

Para entender melhor o que acentuamos no excerto, leia:

BORON, A. Estado, capitalismo e democracia na América Latina. Rio de


Janeiro: Paz e Terra, 1994.

Paul Claval (1979, p. 150) aborda a questão do Estado em sociedades arcaicas, intermediárias ou
históricas (com escrita) e modernas. As estruturas políticas do mundo tradicional ordenam-se em
torno do Estado, do regime feudal e da cidade-Estado, tratando-se esse Estado de “uma engrenagem
bastante secundária da arquitetura das sociedades”, com controle efetivo bastante reduzido por parte
do soberano.

Os dois primeiros (Estado e sistema feudal) são capazes de ordenar vastos espaços,
mas de maneira imperfeita e, no segundo caso, criando um mosaico de unidades
independentes. A cidade-Estado está mais apta a assegurar um enquadramento
eficaz, mas tem dificuldade em se estender sem se desfigurar. Por vezes o
conseguiu – na Grécia e em Roma –, mas tornando-se uma engrenagem de um
Estado mais amplo. O Estado começa a existir antes que se inicie a história. Ele
realiza a síntese da autoridade e do poder puro, indispensável quando se quer
controlar um grande conjunto (CLAVAL, 1979, p. 104-105).

A análise de Paul Claval, aqui, limita-se a tomar o Estado como configuração histórica, sem tomá-lo
como alternativa de exercício de poder social, entretanto, indicando suas limitações quando comparado
ao Estado moderno (CLAVAL, 1979).

Mesmo quando o príncipe é soberano absoluto, tem direito de vida e de morte


sobre seus súditos, dispõe de um exército numeroso e se cerca de uma pompa
impressionante, aquilo que ele controla efetivamente se reduz a pouca coisa:
1) dispõe de uma arrecadação que, pela modéstia, faria sorrir os dirigentes
das mais democráticas nações do mundo moderno; 2) assegura a defesa do

81
Unidade II

território e a organização da polícia e da justiça – para as causas em que as


instâncias normais não resolvem; 3) tem um direito de fiscalizar as relações
comerciais com o mundo exterior (CLAVAL, 1979, p. 150).

No que diz respeito ao intervencionismo estatal, pode haver divergências sobre intensidade e
intenções, contudo, não sobre o caráter normativo expansivo de seu aparato contemporâneo; pois:

[...] com o Estado hegeliano, parece chegada a hora da intervenção do governo e


da administração em todas as esferas da vida social. Mas as correntes ideológicas
igualitaristas que triunfam então modificam a ação do poder: em lugar de
dominar a sociedade e dobrá-la à sua livre vontade, ele só conserva sua autonomia
servindo ao interesse geral. Isso dá à sociedade civil, ao conjunto das relações
societais que se tecem sob as questões públicas, um lugar e primeira escolha:
ela domina, de direito, a estrutura das sociedades liberais que procuram eliminar
todas as manifestações inúteis do poder. Na verdade, ela desempenha assim um
grande papel nas sociedades totalitárias que lhe negam toda a autonomia, mas
que são obrigadas a contar com as forças e as tensões que a interação social
produz espontaneamente (CLAVAL, 1979, p. 151).

Paul Claval (1979) segue caracterizando esse Estado nos seguintes termos:

• concentração e economias de escala;


• economias externas, poluições e inconvenientes;
• controle social;
• opinião pública e especialistas.

Para ele, “as sociedades liberais favorecem o nascimento, sob o Estado, de uma sociedade civil à
qual ele transfere muitas responsabilidades”. Ocorrem muitas transformações dos antigos sistemas
de organização social “sem desaparecerem no mundo moderno”, com atuações reduzidas; e pior, “o
controle coletivo diminui pouco a pouco. A família, em quase todos os ramos, se vê privada de suas
funções produtivas, participando de modo reduzido na socialização com o incremento da escolarização,
havendo participação plena na lógica do consumo (CLAVAL, 1979, p. 158).

A vida social vai sendo estruturada pelas burocracias, mais do que no passado. Segundo ele, os
processos sociais envolvem:

a. As burocracias.

b. As coletividades e as classes.

c. As formas econômicas de regulação social.

82
CIÊNCIA POLÍTICA

d. As formas sociais de regulação.

e. A diferenciação social e a segregação espacial.

f. Os traços geográficos da sociedade civil (CLAVAL, 1979, p. 169).

A seguir o autor acentua o papel do sistema político nas sociedades liberais:

g. As missões do sistema político.

h. Os problemas de representação.

i. A soberania nacional e a autonomia local.

j. O balanço do Estado liberal (CLAVAL, 1979, p. 169).

Para Norberto Bobbio (1994), sociedade civil e Estado são conceitos e realidades inseparáveis,
portanto, devem ser considerados como relacionados em qualquer reflexão sobre as sociedades
ocidentais convencionais. Como vimos, tudo isso é muito diferente se estivermos estudando grupos
indígenas ou comunitários de outras referências culturais.

E o autor continua:

Na linguagem política de hoje, a expressão “sociedade civil” é geralmente


empregada como um dos termos da grande dicotomia sociedade civil/Estado.
O que quer dizer que não se pode determinar seu significado e delimitar sua
extensão senão redefinindo simultaneamente o termo “Estado” e delimitando
a sua extensão. Negativamente, por “sociedade civil” entende-se a esfera das
relações sociais não reguladas pelo Estado, entendido restritivamente e quase
sempre também polemicamente como o conjunto dos aparatos que num
sistema social organizado exercem o poder coativo. Remonta a August Ludwig
von Schlozer (1794) – tendo sido continuamente retomada pela literatura
alemã dedicada ao assunto – a distinção entre societas civilis sine império e
societas civilis cum império, na qual a segunda expressão indica aquilo que
na grande dicotomia é designado com o termo “Estado”, num contexto em
que, como se verá depois, ainda não nasceu a contraposição entre sociedade
e Estado e basta um único termo para designar um e outra, embora com uma
distinção interna em espécies (BOBBIO, 1994, p. 33).

Norberto Bobbio segue tecendo comentários sobre o político e o não político (distinção entre
societas civilis sine império e societas civilis cum império), discorrendo acerca do espectro político, que
vai do Estado superposto à sociedade civil, dominando-a no pano de fundo jusnaturalista (numa forma
próxima da hobbesiana); passa pelo Estado como representação da sociedade civil; e chega ao Estado
com hora para acabar.

83
Unidade II

Mas mesmo numa noção assim vaga (Estado: sociedade civil como conjunto
de relações não reguladas pelo Estado, portanto, como tudo aquilo que
sobra uma vez bem delimitado o âmbito no qual se exerce o poder estatal)
podem‑se distinguir diversas acepções conforme prevaleça a identificação
do não estatal com o pré-estatal, com o antiestatal ou inclusive com o
pós‑estatal. Quando se fala de sociedade civil na primeira dessas acepções,
quer-se dizer, em correspondência consciente ou não consciente com a
doutrina jusnaturalista, que antes do Estado existem várias formas de
associação que os indivíduos formam entre si para a satisfação dos seus
mais diversos interesses, associações às quais o Estado se superpõe para
regulá-las, mas sem jamais vetar-lhes o ulterior desenvolvimento e sem
jamais impedir-lhes a contínua renovação: embora num sentido não
estritamente marxiano, pode-se neste caso falar da sociedade civil como
uma infraestrutura e do Estado como uma superestrutura. Na segunda
acepção, a sociedade civil adquire uma conotação axiologicamente positiva
e passa a indicar o lugar onde se manifestam todas as instâncias de
modificação das relações de dominação, formam-se os grupos que lutam
pela emancipação do poder político, adquirem força os assim chamados
contrapoderes. Desta acepção, porém, pode-se também dar uma conotação
axiologicamente negativa, desde que nos coloquemos do ponto de vista
do Estado e consideremos os fermentos de renovação de que é portadora
a sociedade civil como germes de desagregação. Na terceira acepção,
“sociedade civil” tem um significado ao mesmo tempo cronológico, como
na primeira, e axiológico, como na segunda: representa o ideal de uma
sociedade sem Estado, destinada a surgir da dissolução do poder político.
Esta acepção está presente no pensamento de Gramscí nas passagens em
que o ideal característico de todo o pensamento marxista sobre a extinção
do Estado é descrito como “reabsorção da sociedade política pela sociedade
civil”, como a sociedade civil na qual se exerce a hegemonia distinta da
dominação, livre da sociedade política. Nas três diversas acepções, o não
estatal assume três diversas figuras: a figura da pré-condição do Estado, ou
melhor, daquilo que ainda não é estatal, na primeira, da antítese do Estado,
ou melhor, daquilo que se põe como alternativa ao Estado, na segunda, da
dissolução e do fim do Estado na terceira (BOBBIO, 1994, p. 34-35).

Lembrete

Atilio A. Boron (1994) expõe a retórica de assimilação da esfera política


pela econômica, promovendo reducionismo do aparato estatal como mera
instituição e árbitro eventual.

84
CIÊNCIA POLÍTICA

5.1.1 População e demografia

Definida como um todo, a população é uma coleção de seres humanos. Ela


é um conjunto finito e, portanto, num dado momento, “recenseável”. Esse
ponto é bastante significativo porque, se a população pode ser contada,
implica que dela podemos ter uma imagem relativamente precisa. Ainda
que essa imagem, um número, não possa ser (como não é) estável, pois se
modifica o tempo todo. Contudo, é por esse número que a organização que
realizou o recenseamento dispõe de uma representação da população. Sem
dúvida é uma representação abstrata e resumida, mas já satisfatória para
permitir uma intervenção que busca a eficácia. O recenseamento permite
conhecer a extensão de um recurso (que implica também um custo), no caso
a população. Nessa relação que é o recenseamento, por meio da imagem do
número, o Estado ou qualquer tipo de organização procura aumentar sua
informação sobre um grupo e, por consequência, seu domínio sobre ele.

Mas a essa empresa do poder corresponde a resistência ao poder, e talvez aí


resida o caráter ambivalente da população. A população é concebida como
um recurso, um trunfo, portanto, mas também como um elemento atuante.
A população é mesmo o fundamento e a fonte de todos os atores sociais, de
todas as organizações. Sem dúvida é um recurso, mas também um entrave
no jogo relacional (RAFFESTIN, 1993, p. 67).

Alves (2006) faz uma introdução à demografia ou estudos populacionais.

Durante cerca de 200 anos, desde fins do século XVIII, houve um acirrado debate
sobre políticas populacionais controlistas e natalistas. Mas na Conferência
Internacional sobre População e Desenvolvimento (CIPD), realizada na cidade
do Cairo em 1994, houve uma mudança de paradigma com a introdução do
conceito de direitos reprodutivos. O objetivo deste texto é refletir e colocar
questões sobre as políticas populacionais na América Latina e no Brasil neste
início do século XXI e também discutir como a noção de direitos reprodutivos
pode contribuir para a superação do “paradigma de Huntington” [...].

A questão das políticas populacionais no Brasil, ao longo das três últimas


décadas do século XX, ficou muito contaminada por uma associação
espúria entre política populacional, planejamento familiar e controle
da natalidade. Entretanto, estes três conceitos não são sinônimos. Uma
política populacional refere-se aos três componentes da dinâmica
demográfica: mortalidade, natalidade e migração. Planejamento familiar,
um termo ambíguo e que serve a vários propósitos, tem a ver com idade
ao casar e do primeiro filho, espaçamento das gestações, “parturição
por terminação” e métodos de concepção e contracepção. O controle da
natalidade, mesmo sendo um direito do ponto de vista individual, torna‑se
85
Unidade II

uma forma coercitiva de planejamento familiar se for adotado como


exigência do Estado.

Martine e Camargo já advertiam há 20 anos: “No decorrer das últimas duas


décadas, diversos aspectos da questão populacional têm sido amplamente
debatidos, mas, na maioria das vezes, tem faltado profundidade e
objetividade a essa discussão. Interesses políticos, econômicos e
ideológicos, em nível nacional e internacional, têm impedido a maturação
de avaliações mais adequadas quanto à inter-relação entre população,
desenvolvimento e bem-estar ou quanto às implicações dessa inter‑relação
para a formulação de políticas”.

[...]

As políticas populacionais ocorrem através de ações voltadas para a dinâmica


demográfica visando o bem público e o acesso da população às fontes
de emprego, ao sistema de educação, aos programas de saúde e a outros
direitos econômicos, sociais e culturais. As nove políticas populacionais
podem ter um caráter ex post, ou serem concebidas ex ante, isto é, como
medida preventiva que atendesse a eventualidades futuras mais ou menos
previsíveis. Contudo, as políticas têm a ver com quem manda, por que
manda e como manda. Elas não são abstratas, mas sim sociais e históricas.
Dessa forma, as ações e os discursos políticos referentes à população não
estão isentos de uma forte carga doutrinária e ideológica.

Numa primeira aproximação, podemos definir as políticas populacionais


como sendo aquelas ações (proativas ou reativas) realizadas por instituições
(públicas ou privadas) que afetam ou tentam afetar a dinâmica da
mortalidade, da natalidade e das migrações nacionais (e/ou internacionais),
ações essas que buscam influenciar as taxas de crescimento demográfico
(positivo ou negativo) e a distribuição espacial da população. As políticas
populacionais podem ser intencionais ou não intencionais, explícitas ou
implícitas, democráticas ou autoritárias e podem ser definidas em nível
macroinstitucional ou micro (indivíduos e famílias). Elas sintetizam poder,
conflitos e finalidades (ALVES, 2006, p. 9-10).

Observação

A demografia tem vínculos estritos com a geografia da população,


que são estudos populacionais que se ocupam do caráter espacial dos
dados, mais do que com seu comportamento e instrumentalização
interna (modelos matemáticos e estatísticos), mais próprios aos
estudos demográficos.
86
CIÊNCIA POLÍTICA

A figura a seguir “apresenta um esboço da abrangência, do caráter, dos meios e dos níveis
das políticas populacionais”. Há problemas de clareza na legislação na comunicação dessas
questões. Também há países que “não possuem uma política populacional explícita e intencional”.
Destaca‑se a impossível neutralidade, mesmo quando declarada em relação às metas traçadas
para o comportamento demográfico, pois “dificilmente as políticas sociais de um país deixam de
ter, em um sentido ou noutro, algum efeito sobre a dinâmica demográfica” (ALVES, 2006, p. 9-10).

Mortalidade/esperança
Natalidade/fecundidade
Sobre a dinâmica demográfica Migração nacional e internacional
Nupcialidade

Expansionista (natalista)
Sobre o ritmo de crescimento Familiar (casal)
Neutra (laissez-faire)

Individual
Sobre o nível de aplicação Familiar (casal)
Institucional

Sobre o caráter das políticas Pública


Privada

Sobre a transparência dos objetivos Implícita


Explícita

Figura 1 – Políticas populacionais

É muito rica a perspectiva genética de Foucault (2008, p. 103) sobre população, tanto que, ao tomar
os conceitos, ele os anima e lhes confere sentido histórico. Como é o caso do conceito de população: após
a problematização dos seres vivos nas áreas de história natural, da biologia, da linguística, da economia
e da política, população passou de um a outro, enriquecendo-se no percurso que o autor denomina
“jogo incessante entre as técnicas de poder e o objeto destas que foi pouco a pouco recortando no real,
como campo da realidade, a população e seus fenômenos específicos”.

É a partir da constituição da população como correlato das técnicas


de poder que pudemos ver abrir toda uma série de domínios de
objetos para saberes possíveis. E, em contrapartida, foi porque esses
saberes recortavam sem cessar novos objetos que a população pôde se
constituir, se continuar, se manter como correlativo privilegiado dos
modernos mecanismos de poder.

Daí esta consequência: a temática do homem através das ciências humanas


que o analisam como ser vivo, indivíduo trabalhador, sujeito falante, deve
ser compreendida a partir da emergência da população como correlato de
poder e como objeto de saber. O homem, afinal de contas, tal como foi
pensado, definido a partir das ciências ditas humanas do século XIX e tal
como foi refletido no humanismo do século XIX, esse homem nada mais é
finalmente que uma figura da população. Ou, digamos ainda, se é verdade
87
Unidade II

que, enquanto o problema do poder se formulava dentro da teoria da


soberania, em face da soberania não podia existir o homem, mas apenas
a noção jurídica de sujeito de direito. A partir do momento em que, ao
contrário, como vis-à-vis não da soberania, mas do governo, da arte de
governar, teve-se a população, creio que podemos dizer que o homem foi
para a população o que o sujeito de direito havia sido para o soberano.
Pronto, o pacote está empacotado e o nó dado (FOUCAULT, 2008, p. 103).

Em Olga Maria Schild Becker, também encontramos considerações sobre os elementos constituintes
da questão populacional:

Os deslocamentos de populações em contextos variados e envolvendo ao


longo do tempo escalas espaciais diferenciadas conferiram complexidade
crescente ao conceito de mobilidade como expressão de organizações
sociais, situações conjunturais e relações de trabalho particulares. A cada
nova ordem política mundial correspondeu uma nova ordem econômica
com a emergência de novos fluxos demográficos.

Desde as invasões dos povos bárbaros asiáticos até os migrantes dos


novos tempos, grupos populacionais põem-se em movimento: lutam pela
hegemonia de novos territórios, fogem de perseguições étnicas e repressões
múltiplas, vislumbram a possibilidade de terras e mercados de trabalho mais
promissores, ou simplesmente perambulam em busca de tarefas que lhes
assegurem a mera subsistência.

Fatos contemporâneos como a queda do muro de Berlim, ocorrida em 1989,


a crise do Golfo, a maré humana de refugiados africanos empurrados pelos
confrontos tribais e ditatoriais, e as lutas nacionalistas, [dos quais a] guerra
civil na Iugoslávia e recentemente na Albânia são trágicos exemplos, atestam
o esfacelamento do mapa do mundo (dos países e dos povos) desenhado no
pós-Segunda Guerra. O mundo foi redefinido, porém, a partir da emergência
dos chamados blocos econômicos: Mercado Comum Europeu, Nafta, Apec. A
conjugação dessa nova geografia político-econômica com situações de extrema
miséria na África e na América Latina originou fluxos migratórios de magnitude
considerável, caracterizando o fenômeno migratório dos anos 1990.

Entretanto, a ameaça de crescente flexibilização dos mercados de trabalho


com o aumento da exclusão social, ao lado das já visíveis mudanças nas
configurações étnico-culturais das áreas de destino, tem impelido a
construção de novos “muros da vergonha”. [...] esse é um movimento que
se opõe aos fluxos migratórios e que aponta para a formação de um novo
“muro” separando ricos e pobres – os novos “blocos de poder” – não mais
ideológicos, mas essencialmente econômicos (BECKER, 1997, p. 319-320).

88
CIÊNCIA POLÍTICA

A migração de grupos significativos que a autora periodiza lança normalmente grandes contingentes
populacionais em uma condição instável e de precariedade jurídica, econômica e cultural. A mobilidade
de indivíduos por vontade própria, com vistas à melhoria de vida, não se configura como problema
geográfico e psicossocial, portanto, não requer atenção emergencial e respostas urgentes de políticas
públicas, ou ações planejadas.

A migração como objeto de análise das ciências sociais,

[...] pode ser definida como mobilidade espacial da população. Sendo um


mecanismo de deslocamento populacional, reflete mudanças nas relações
entre as pessoas (relações de produção) e entre essas e o seu ambiente físico.

A mobilidade tem sido objeto de diferentes interpretações ao longo do


tempo, expressando-se, entre outros, através dos enfoques neoclássico e
neomarxista (BECKER, 1997, p. 323).

O quadro a seguir dá uma ideia das diferentes concepções e variadas abordagens da migração.

Quadro 1 – Paralelo entre os enfoques neoclássico e neomarxista em migração

Enfoque neoclássico Enfoque neomarxista


Decisão de migrar:
Decisão de migrar:
– Ato de caráter individual, de livre escolha, não
determinado por fatores externos. – Migração como mobilidade forçada pela necessidade
de valorização do capital, e não como ato soberano de
– Enfoque atomístico reduzido ao indivíduo; pretensamente vontade pessoal.
neutro e apolítico.
Significado:
Significado:
– Elemento de equilíbrio em economias subdesenvolvidas,
especialmente as mais pobres. – Resultado de um processo global de mudanças.
– Industrialização e modernização como força positiva – Expressão da crescente sujeição do trabalho ao capital.
propulsora da migração.
Metodologia:
Metodologia:
– Análise histórico-estrutural das migrações. Visões
– Análise descritiva, dualista e setorial do fenômeno. de processo.
– Enfoque causal, isolado e pontual das migrações. – Enfoque dialético.
– Considera as características individuas dos imigrantes. – Considera a trajetória dos grupos sociais.
Categoria de análise: Categoria de análise:
– O indivíduo. – Os grupos sociais.
Dimensão espaçotemporal: Dimensão espaçotemporal:
– Deslocamento do indivíduo entre dois pontos no espaço – Movimento de um conjunto de indivíduos, num certo
(fluxos, linhas, pontos). período do tempo, sobre o espaço geográfico. A trajetória
pode apresentar vários pontos e ser de longa duração, pois
– Visão fixa de mercado de trabalho homogêneo e pontual. representa um processo, e não apenas fluxos isolados.

Fonte: Becker (1997, p. 344).

89
Unidade II

5.1.2 Território: aspectos físicos, biológicos e culturais

O progresso da humanidade, que só é possível graças ao contato dos povos


e à sua concorrência, deveria necessariamente ser entravado ao alto ponto
por práticas desse gênero. No círculo estreito e sempre homogêneo do
Estado familiar, nenhuma personalidade original poderia se constituir e as
inovações seriam impossíveis. Elas supõem, com efeito, que uma primeira
diferenciação se tenha produzido no seio da sociedade e que, além disso,
tenham estabelecido relações entre as diferentes sociedades de maneira que
possa haver entre elas como que uma mútua estimulação para o progresso.

[...]

E é preciso que o fato não se produza uma só e única vez, mas que se
repita. É essa mesma ideia que exprimia Comte quando dizia que, fora o
meio, havia uma força, capaz de ou estimular ou retardar o progresso, na
densidade crescente da população, na necessidade crescente de alimentos
que aparece ao mesmo tempo, e na divisão do trabalho e na cooperação que
dela resultam. Se Comte se tivesse elevado a uma concepção propriamente
geográfica, se tivesse compreendido que essa força como esse meio têm
o solo por base e dele não podem ser separados porque o espaço lhes é
igualmente indispensável, teria ao mesmo tempo aprofundado e simplificado
toda a noção que tinha do meio (RATZEL, 1983, p. 97-100).

Ratzel, no século XIX, investe no conceito de Estado uma série de elementos normalmente
desconsiderados, sobretudo as condições ambientais (referidas por solo) e culturais (modos de trabalho
e organização sociais mais amplas). Vejamos:

De início, o Estado está mais solidamente estabelecido sobre um solo bastante


povoado, de onde ele pode tirar mais forças humanas para sua defesa e uma
maior variedade de recursos de toda espécie do que se a população fosse
pequena. Também não é simplesmente segundo a extensão de seu território
que é preciso apreciar a força de um Estado; tem-se uma medida melhor na
relação que a sociedade sustenta com o território. Porém, há algo mais; essa
mesma relação age também sobre a constituição interna do Estado. Quando
o solo está dividido igualmente, a sociedade é homogênea e propende para
a democracia; ao contrário, uma divisão desigual é um obstáculo a toda
organização social que daria a preponderância política aos não proprietários
e que seria, por conseguinte, contrária a toda espécie de oligocracia. Esta
atinge seu máximo de desenvolvimento nas sociedades que têm em sua
base uma população de escravos sem propriedade e quase sem direitos.

Daí vem uma grande diferença entre dois tipos de Estado: em uns, a sociedade
vive exclusivamente do solo que ela habita (quer seja pela agricultura,
90
CIÊNCIA POLÍTICA

quer seja pela criação, não importa) e o domínio de cada tribo, de cada
comuna, de cada família tende a formar um Estado no Estado; nos outros,
os homens são obrigados a recorrer a terras diferentes e frequentemente
muito afastadas [das quais] estão estabelecidos.

[...]

Encontramos então, mesmo nos estágios mais elevados da evolução social, a


mesma divisão do trabalho entre a sociedade que utiliza o solo para habitar
e para dele viver, e o Estado que o protege com as forças concentradas em
suas mãos.

Poderá nos ser objetado talvez que essa concepção deprecia o valor do povo
e sobretudo do homem e de suas faculdades intelectuais, porque ela exige
que seja levado em conta o solo sem o qual um povo não pode existir. Mas a
verdade não deixa de ser verdade. O papel do elemento humano na política
não pode ser exatamente apreciado, se não se conhecem as condições às
quais a ação política do homem está subordinada. “A organização de uma
sociedade depende estreitamente da natureza de seu solo, de sua situação;
o conhecimento da natureza física do território (pays), de suas vantagens
e de seus inconvenientes, resulta então na história política”. A história nos
mostra, de uma maneira muito mais penetrante, até que ponto o historiador
é a base real da política.

Uma política verdadeiramente prática tem sempre um ponto de partida na


geografia. Em política como em história, a teoria que faz abstração do solo
toma os sintomas por causa.

[...]

Nessa poderosa ação do solo, que se manifesta através de todas as fases


da história como em todas as esferas da vida presente, há alguma coisa
de misterioso que não deixa de angustiar o espírito; porque a aparente
liberdade do homem parece como que anulada.

[...]

Vemos, com efeito, no solo, a fonte de toda servidão. Sempre o mesmo e


sempre situado no mesmo ponto do espaço, ele serve como suporte rígido
aos humores, às aspirações mutáveis dos homens, e quando lhes acontece
esquecer esse substrato, ele lhes faz sentir seu império e lhes lembra, por
sérias advertências, que toda a vida do Estado tem suas raízes na terra. Ele
regula os destinos dos povos com uma brutalidade cega. Um povo deve viver
sobre o solo que recebeu por acaso, deve nele morrer, deve submeter‑se à
91
Unidade II

sua lei. É no solo, enfim, que se alimenta o egoísmo político que faz do solo
o objetivo principal da vida pública; ele consiste, com efeito, em conservar
sempre e apesar de tudo o território nacional, e em fazer de tudo para
permanecer o único a dele desfrutar, mesmo quando os laços de sangue
e as afinidades étnicas inclinassem os corações para as gentes e as coisas
situadas além das fronteiras (RATZEL, 1983, p. 97-100, grifo do autor).

As relações entre sociedade, Estado e território (solo, para Ratzel) dão-se em vários níveis: dos
recursos ambientais, das ações políticas, econômicas e culturais, com grande valor para a história e a
biologia. Assim, “solo” assume múltiplos sentidos e evoca o ambiente e seus recursos para as atividades
do principal agente da “geopolítica clássica”: o Estado.

Para obter realidades confiáveis, é preciso observar os contextos e os traços históricos na caracterização
dos Estados-nação, seu imaginário e “suas vocações”.

Ratzel é importante por trazer as dimensões ambientais e territoriais às definições de Estado e poder.

Corrêa (1981, p. 104 apud RATZEL, 1983) destaca o seguinte: “Mas não só a sociedade e o Estado têm
uma base territorial, mas com esta se relacionam”. Por isso, diz Ratzel, “A sociedade é o intermediário
pelo qual o Estado se une ao solo. Segue-se que as relações da sociedade com o solo afetam a natureza
do Estado em qualquer fase do seu desenvolvimento que se considere”.

Agora, nessa sofisticada definição de Estado, temos a visão de “solo” de Ratzel, que deve ser
considerada no sentido mais amplo possível. Há uma ação geopolítica que se volta à manutenção e
conquista de recursos e, portanto, de território; isso ocorre com a ajuda da geografia política. As ações
sociais acontecem em estruturas sociais homólogas às suas estruturas territoriais. Os conceitos e as
realidades de espaço e sociedade são mutuamente conversíveis.

Vejamos o texto do geógrafo baiano Milton Santos sobre a importância do território.

A questão: o uso do território

A linguagem cotidiana frequentemente confunde território e espaço. E a palavra


extensão, tantas vezes utilizada por geógrafos franceses (étendue), não raro se instala
nesse vocabulário, aumentando as ambiguidades. Uma discussão nos meios geográficos se
preocupa em indicar a precedência entre essas entidades. Isso se dá em razão da acepção
atribuída a cada um dos vocábulos. Para uns, o território viria antes do espaço; para outros,
o contrário é que é verdadeiro [...].

Por território entende-se geralmente a extensão apropriada e usada. Mas o sentido


da palavra territorialidade como sinônimo de pertencer àquilo que nos pertence [...] esse
sentimento de exclusividade e limite ultrapassa a raça humana e prescinde da existência de
Estado. Assim, essa ideia de territorialidade se estende aos próprios animais, como sinônimo
de área de vivência e de reprodução. Mas a territorialidade humana pressupõe também a
92
CIÊNCIA POLÍTICA

preocupação com o destino, a construção do futuro, o que, entre os seres vivos, é privilégio
do homem.

Num sentido mais restrito, o território é um nome político para o espaço de um país. Em
outras palavras, a existência de um país supõe um território.

Mas a existência de uma nação nem sempre é acompanhada da posse de um território


e nem sempre supõe a existência de um Estado. Pode-se falar, portanto, de territorialidade
sem Estado, mas é praticamente impossível nos referirmos a um Estado sem território.

Adotando-se essa linha, impõe-se a noção de “espaço territorial”: um Estado, um espaço,


mesmo que as “nações” sejam muitas. Esse espaço territorial está sujeito a transformações
sucessivas, mas em qualquer momento os termos da equação permanecem os mesmos:
uma ou mais nações, um Estado, um espaço.

O que interessa discutir é, então, o território usado, sinônimo de espaço geográfico.


E essa categoria, território usado, aponta para a necessidade de um esforço destinado a
analisar sistematicamente a constituição do território. Como se trata de uma proposta
totalmente empiricizável, segue-se daí o enriquecimento da teoria.

Entretanto uma periodização é necessária, pois os usos são diferentes nos diversos
momentos históricos. Cada periodização se caracteriza por extensões diversas de formas de
uso, marcadas por manifestações particulares interligadas que evoluem juntas e obedecem
a princípios gerais, como a história particular e a história global, o comportamento do
Estado e da nação (ou nações) e, certamente, as feições regionais. Mas a evolução que se
busca é a dos contextos, e assim as variáveis escolhidas são trabalhadas no interior de uma
situação [...] que é sempre datada. Interessa-nos, em cada época, o peso diverso da novidade
e das heranças.

O território, visto como unidade e diversidade, é uma questão central da história


humana e de cada país e constitui o pano de fundo do estudo das suas diversas etapas e do
momento atual.

Na medida em que são representativas das épocas históricas, as técnicas, funcionando


solidariamente em sistemas, apresentam-se assim como base para uma proposta de método.
Esses sistemas técnicos incluem, de um lado, a materialidade e, de outro, seus modos de
organização e regulação. Eles autorizam, a cada momento histórico, uma forma e uma
distribuição do trabalho. Por isso a divisão territorial do trabalho envolve, de um lado, a
repartição do trabalho vivo nos lugares e, de outro, uma distribuição do trabalho morto e
dos recursos naturais. Estes têm um papel fundamental, [são] repartições do trabalho vivo.
Por essa razão a redistribuição do processo social não é indiferente às formas herdadas,
e o processo de reconstrução pararela da sociedade e do território pode ser entendido a
partir da categoria da formação socioespacial [...]. A divisão territorial do trabalho cria uma
hierarquia entre lugares e redefine, a cada momento, a capacidade de agir das pessoas,
93
Unidade II

das firmas e das instituições. Nos dias atuais, um novo conjunto de técnicas torna-se
hegemônico e constitui a base material da vida da sociedade. É a ciência que, dominada por
uma técnica marcadamente informacional, aparece como um complexo de variáveis que
comanda o desenvolvimento do período atual. O meio técnico-científico-informacional é a
expressão geográfica da globalização.

O uso do território pode ser definido pela implantação de infraestruturas, para as quais
estamos igualmente utilizando a denominação sistemas de engenharia, mas também pelo
dinamismo da economia e da sociedade. São os movimentos da população, a distribuição da
agricultura, da indústria e dos serviços, o arcabouço normativo, incluídas a legislação civil,
fiscal e financeira, que, juntamente com o alcance e a extensão da cidadania, configuram as
funções do novo espaço geográfico [...].

Debruçando-nos sobre esse novo meio geográfico, buscamos compreender o papel


das formas geográficas materiais e o papel das formas sociais, jurídicas e políticas,
todas impregnadas, hoje, de ciência, técnica e informação. Outro dado indispensável ao
entendimento das situações ora vigentes é o estudo do povoamento, abordado sobretudo
em sua associação com a ocupação econômica, assim como os sistemas de movimento de
homens, capitais, produtos, mercadorias, serviços, mensagens, ordens. É também a história
da fluidez do território, hoje balizada por um processo de aceleração [...]. Com a instalação
de um número cada vez maior de pessoas em um número cada vez menor de lugares, a
urbanização significa ao mesmo tempo uma maior divisão do trabalho e uma imobilização
relativa e é, também, um resultado da fluidez aumentada do território. O peso do mercado
externo na vida econômica do país acaba por orientar uma boa parcela dos recursos coletivos
para a criação de infraestruturas, serviços e formas de organização do trabalho voltados para
o comércio exterior, uma atividade ritmada pelo imperativo da competitividade e localizada
nos pontos mais aptos para desenvolver essas funções. Isso não se faz sem uma regulação
política do território e sem uma regulação do território pelo mercado. É desse modo que se
reconstroem os contextos da evolução das bases materiais geográficas e também da própria
regulação. O resultado é a criação de regiões do mandar e regiões do fazer.

Nesse arcabouço levamos em conta tanto as técnicas que se tornaram território, com
sua incorporação ao solo (rodovias, ferrovias, hidrelétricas, telecomunicações, emissoras de
rádio e TV etc.), como os objetos técnicos ligados à produção (veículos, implementos) e
os insumos técnico-científicos (sementes, adubos, propaganda, consultoria) destinados a
aumentar a eficácia, a divisão e a especialização do trabalho nos lugares.

É nesse sentido que um território condiciona a localização dos atores, pois as ações
que sobre ele se operam dependem da sua própria constituição. Uma preocupação
com o entendimento das diferenciações regionais e com o novo dinamismo das suas
relações tem norteado particularmente a busca de uma interpretação geográfica da
sociedade brasileira.

Fonte: Santos; Silveira (2006, p. 19-22).

94
CIÊNCIA POLÍTICA

5.1.3 Governo: soberania e autonomia

Mais do que em seu desenvolvimento histórico, o Estado é estudado em si


mesmo, em suas estruturas, funções, elementos constitutivos, mecanismos,
órgãos etc., como um sistema complexo considerado em si mesmo e nas
relações com os demais sistemas contíguos. Convencionalmente, hoje,
o imenso campo de investigação está dividido entre duas disciplinas até
didaticamente distintas: a filosofia política e a ciência política. Como todas
as distinções convencionais, também esta é lábil e discutível.

Na filosofia política são compreendidos três tipos de investigação:

a) da melhor forma de governo ou da ótima república;

b) do fundamento do Estado, ou do poder político, com a consequente


justificação (ou injustificação) da obrigação política;

c) da essência da categoria do político ou da politicidade, com a prevalente


disputa sobre a distinção entre ética e política.

Essas três versões da filosofia política são exemplarmente representadas, no


início da idade moderna, por três obras que deixaram marcas indeléveis na
história da reflexão sobre a política: A Utopia, de More [1516], desenho da
república ideal; Leviatã, de Hobbes [1651], que pretende dar uma justificação
racional e, portanto, universal da existência do Estado e indicar as razões
pelas quais os seus comandos devem ser obedecidos; e O Príncipe, de
Maquiavel [1513], no qual, ao menos numa de suas interpretações (a única,
aliás, que dá origem a um “ismo”, o maquiavelismo), seria mostrado em que
consiste a propriedade específica da atividade política e como se distingue
ela enquanto tal da moral.

Por “ciência política” entende-se hoje uma investigação no campo da vida


política capaz de satisfazer a essas três condições:

a) o princípio de verificação ou de falsificação como critério da aceitabilidade


dos seus resultados;

b) o uso de técnicas da razão que permitam dar uma explicação causal em


sentido forte ou mesmo em sentido fraco do fenômeno investigado;

c) a abstenção ou abstinência de juízos de valor, a assim chamada


“avaloratividade”.

Considerando as três formas de filosofia política acima descritas, observe-se


que a cada uma delas falta ao menos uma das características da ciência.
95
Unidade II

A filosofia política como investigação da ótima república não tem caráter


avalorativo; como investigação do fundamento último do poder, não deseja
explicar o fenômeno do poder, mas justificá-lo, operação que tem por
finalidade qualificar um comportamento como lícito ou ilícito, o que não
se pode fazer sem a referência a valores; como investigação da essência da
política, escapa a toda verificação ou falsificação empírica, na medida em
que isso que se chama presunçosamente de essência da política resulta de
uma definição nominal e, como tal, não é verdadeira nem falsa (BOBBIO,
1994, p. 55-56).

Bobbio (1994, p. 58) aborda o binômio Estado-governo apresentando-o pelas concepções


funcionalistas e marxistas. São dois grandes modos de ver a realidade social: um, de base mecânica,
em defesa da neutralidade política e psicológica, busca sempre o parâmetro das máquinas; o outro
caracteriza-se pelo encaminhamento crítico das relações sociais condicionadas pelos projetos dos
grupos de poder, que estruturam as relações de produção e consumo, principalmente a criação de valor
pelo trabalho.

Para o autor, governantes e governados estão no centro da discussão sobre os governos das
sociedades, instalados em seus Estados.

Ao lado das diversas maneiras de considerar o problema do Estado,


examinadas até aqui, com respeito ao objeto, ao método, ao ponto de vista,
à concepção do sistema social, deve-se mencionar uma contraposição
que, em geral, não é levada na devida conta, mas que divide em dois
campos opostos as doutrinas políticas talvez mais do que qualquer outra
dicotomia. Refiro-me à contraposição que deriva da diversa posição que
os escritores assumem com respeito à relação política fundamental –
governantes-governados, soberano-súditos ou Estado-cidadãos –, relação
que é geralmente considerada com relação entre superior e inferior, salvo
numa concepção democrática radical [na qual] governantes e governados
identificam-se ao menos idealmente numa única pessoa e o governo se
resolve no autogoverno. Considerada a relação política como uma relação
específica entre dois sujeitos, dos quais um tem o direito de comandar
e o outro o dever de obedecer, o problema do Estado pode ser tratado
prevalentemente do ponto de vista do governante ou do ponto de vista
do governado: ex parte principis ou ex parte populi. Na realidade, numa
longa tradição que vai de O Político, de Platão, [ao livro] O Príncipe, de
Maquiavel, da Ciropedia, de Xenofonte, ao Princeps Christianus, de Erasmo
[1515], os escritores políticos trataram o problema do Estado principalmente
do ponto de vista dos governantes: seus temas essenciais são a arte de
bem governar, as virtudes ou habilidades ou capacidades que se exigem
do bom governante, as várias formas de governo, a distinção entre bom e
mau governo, a fenomenologia da tirania em todas as suas diversas formas,
direitos, deveres e prerrogativas dos governantes, as diversas funções do
96
CIÊNCIA POLÍTICA

Estado e os poderes necessários para cumpri-las adequadamente, os


vários ramos da administração, conceitos fundamentais como dominium,
imperium, maiestas, auctoritas, potestas e summa potestas que todos
referem apenas a um dos dois sujeitos da relação, àquele que está no alto e
que se torna desse modo o verdadeiro sujeito ativo da relação, sendo o outro
tratado como sujeito passivo, a matéria com respeito à forma (formante)
(BOBBIO, 1994, p. 62-63).

5.1.4 Fronteiras internas

Abordando a questão de fronteiras internas, Martin (1998, p. 46) acentua o seguinte:

Vimos que no período moderno as fronteiras aparecem como as molduras


dos Estados-nações, de modo que tanto o seu estabelecimento como
eventuais modificações são manifestações de transformações que estão se
processando no interior das sociedades, sem se esquecer, é claro, das relações
de vizinhança. Essas últimas, por sua vez, são também bastante elásticas e
mutáveis, podendo variar desde uma situação de amizade crescente que
tende para a integração, até a indiferença que aos poucos vai se tornando
uma viva hostilidade. Por fim, como o poder de cada Estado nacional varia
bastante, pode-se dizer que existe uma vizinhança próxima e outra distante,
estabelecendo-se na intermediação entre uma e outra as alianças regionais.
É claro que todas essas considerações só podem se concretizar no exame
das condições socioeconômicas e políticas que envolvem cada momento
histórico determinado. Como se trata de um número muito grande de casos
individuais e de situações históricas bastante díspares, temos que toda
tentativa de sistematização, de classificação, implica distorções mais ou
menos aceitáveis, mais ou menos graves, segundo os vários pontos de vista.
Antes de apresentarmos algumas das tipologias mais divulgadas, porém,
parece conveniente tentar evitar algumas confusões muito frequentes,
precisando o sentido de palavras que até aqui estávamos empregando
como sinônimos. É o caso, portanto, de distinguir “fronteira” e “limite”;
“demarcação e delimitação”; “fronteira externa e interna”.

Fronteira e limite são termos distintos, às vezes tomados como sinônimos, mas sempre supostos
mutuamente, como vemos a seguir:

A identificação entre “limite” e “fronteira internacional” decorre


provavelmente da mobilidade e imprecisão cartográfica que na maior parte
do tempo acompanhou o desenvolvimento das sociedades. Mas os Estados
modernos necessitam de limites precisos, [nos quais] possam exercer sua
soberania, não sendo suficientes as mais ou menos largas faixas de fronteira.
Assim, hoje o “limite” é reconhecido como linha, e não pode, portanto, ser
habitado, ao contrário da “fronteira”, que, ocupando uma faixa, constitui
97
Unidade II

uma zona, muitas vezes bastante povoada, onde os habitantes de Estados


vizinhos podem desenvolver intenso intercâmbio, em particular sob a
forma de contrabando. Daí que para os Estados não é admissível uma “zona
neutra”, de limites imprecisos, recomendando-se, inclusive, que não sejam
transitórios, mas os mais permanentes possíveis, o que contribui para evitar
transtornos à população fronteiriça. Não é demasiado lembrar como se
torna distinto o cotidiano vivido de um lado ou de outro do limite. Muitas
vezes, embora as características físicas comuns possam haver ensejado
estilos de vida semelhantes nos dois lados do limite de uma mesma região
fronteiriça, a presença do Estado impõe distinções marcantes. Obrigações,
como pagamento de impostos e prestação do serviço militar, e direitos,
como os serviços públicos, serão diferentes, assim como o estabelecimento
dos preços, ainda que o obstáculo representado pela moeda possa ser
contornado através da atenção à taxa de câmbio. Estabelece-se, assim, um
choque entre o “direito de ir e vir” e o princípio da “soberania dos Estados”.
É a esfera da política que decidirá se o Estado irá incentivar ou dificultar o
intercâmbio com os vizinhos.

Para o professor britânico A. E. Moodie, a “fronteira” se distingue do “limite”


precisamente porque a primeira é “natural” e remete, portanto, à geografia,
enquanto a segunda é “artificial” e remete diretamente ao Estado. Já tivemos
ocasião de observar como é vago esse tipo de distinção. Mesmo a rigidez do
limite em contraste com a fluidez da fronteira é algo questionável. Num
outro sentido, as fronteiras é que são permanentes, na própria proporção em
que grandes contingentes humanos, solidamente fixados, não conseguem
transpor facilmente desertos (quentes ou gelados), grandes cordilheiras,
pântanos ou florestas equatoriais, ou num sentido mais preciso, têm
dificuldade em ocupar, colonizar e civilizar esses espaços. O “anecúmeno”
resiste, embora a tecnologia tenda a fazê-lo recuar. Como disse Ancel, “o
vazio é o inimigo do gênero humano”, daí que o homem procura saltar os
obstáculos naturais, passar por cima deles. Os oceanos, a esse respeito, são
exemplares: fáceis de cruzar, mas difíceis de delimitar, ocupar, colonizar.

Já os limites podem ser alterados sem grandes transtornos, desde que os


dois Estados litigantes tenham disposição política em fazê-lo, bastando
para isso o concurso de técnicos competentes: topógrafos, geógrafos e
juristas. No entanto, mesmo no Direito Público, apesar da costumeira
demarcação da linha divisória, pretende-se que, para maior tranquilidade
da população fronteiriça, seja preferível sempre reconhecer uma faixa
de certa largura. Chega-se mesmo a considerar indispensável que o
poder central possa dispor da área aí incluída (no Brasil republicano,
tradicionalmente calculada em 100 km a partir do limite) para que ele possa
exercer convenientemente sua tarefa de defesa das fronteiras. Não raro,
um mesmo Estado apresenta zonas de diferentes larguras: uma criminal,
98
CIÊNCIA POLÍTICA

outra militar e outra ainda aduaneira. Para complicar ainda mais o quadro,
note-se que tecnicamente são necessárias várias operações: primeiro, são
colocados marcos no terreno; depois, realiza-se um croqui que procurará
fazer corresponder os elementos do terreno e os do desenho. Estabelecem-
se as coordenadas geográficas, a escala, são escolhidos esboços, símbolos
e números que representam as diferentes formações do terreno, e tem-se,
por fim, o problema da projeção. Como a superfície da Terra é esférica,
cada espaço delimitado representará, com efeito, uma porção do geoide,
que, consequentemente, não será plana. Torna-se necessária então uma
operação que os matemáticos definem como um deslocamento dos pontos
do pedaço de esfera, até que haja coincidência com um plano, o que é
denominado “anamorfose”.

Vê-se, assim, que os juristas, embora geralmente invoquem a história antes


que a geografia, acabam enfrentando problemas de imprecisão análogos
aos dos geógrafos. De seu ponto de vista específico, porém, existe uma
distinção clara entre o dado “real” e o dado “intelectual”. O limite de um
Estado, então, aparece como uma linha puramente imaginária, marcada
na superfície terrestre por objetos naturais ou artificiais. Pode-se, portanto,
tentar acrescentar outro elemento, ao mesmo tempo distinto tanto do
limite quanto da fronteira: trata-se da divisa, isto é, o aspecto visível do
limite. Assim, o marco e a baliza aparecerão como pontos fixos, erguidos
pelo homem, os quais, alinhavados, expressam o limite de jurisdição dos
Estados. A divisa, por fim, é o limite que se apoia geralmente em cursos
d’água, cristas montanhosas, coordenadas geográficas ou outras linhas
geodésicas. Desse modo, boa parte da literatura técnica a respeito dedica‑se
a discutir qual o melhor apoio físico para os limites. Tem-se, então, que
diferenciar a demarcação da delimitação (MARTIN, 1998, p. 47-48).

Conforme Lia Machado (1998, p. 41-49), os limites e fronteiras, normalmente, são tomados como
sinônimos, embora existam diferenças fundamentais entre eles. O conceito fronteira significa “aquilo
que está na frente”, cuja origem está ligada às dinâmicas das sociedades expandindo seu mundo vivido,
suas atividades, até que se encontrem; formam-se, assim, espaços de comunicação e de política. Tal é o
sentido de fronteira quando nos referimos aos casos das “fronteiras agrícolas”, “fronteiras migratórias”,
entre outras.

Já a acepção de limite indica mais o fim, “membranas” ou “películas” envoltórias de conjuntos (territórios
das populações), daí seu uso político (soberania dos Estados-nação). O chamado “marco de fronteira” é na
verdade um símbolo visível do limite. O limite pode ser traçado em escritórios, não requerendo, em sua
localização, vida social. É abstrato, generalizado na forma de leis nacionais e internacionais. O limite pode
estar distante dos desejos e aspirações dos habitantes da fronteira (MACHADO, 1998, p. 48).

A partir dessa breve distinção, há inúmeras referências à geopolítica, seja como disciplina ou área do
saber, seja como ação (ou melhor, conjunto de ações políticas territorializadas em busca de recursos):
99
Unidade II

a. A palavra limite foi criada para designar o fim daquilo que mantém coesa
uma unidade político-territorial, isto é, sua ligação interna.

b. A conotação política de limite foi reforçada pelo moderno conceito


de Estado, no qual a soberania corresponde a um processo absoluto
de territorialização. A fronteira é considerada uma fonte de perigo ou
ameaça porque pode desenvolver interesses diferentes daqueles do
governo central.

c. Podemos afirmar que fronteira está orientada “para fora” (forças centrífugas),
enquanto limites estão orientados “para dentro” (forças centrípetas).

d. Fronteiras seriam vivas, representando interesses de agentes, enquanto


limites podem ser apenas demarcações territoriais no espaço geográfico,
criados e mantidos pelos governos centrais, não tendo vida própria e nem
mesmo existência material, são um polígono (MACHADO, 1998, p. 49).

Quanto às transformações do Estado, acentuamos:

Essa evolução perversa (da tirania financeira desde o fim de Bretton Woods)
adquiriu novas dimensões a partir de 1985, com a aceleração exponencial
do processo de “financeirização” acompanhado por sucessivas crises, cada
vez mais frequentes e com efeitos cada vez mais devastadores sobre as
economias da periferia capitalista mundial. De maneira tal que vários
analistas e economistas do próprio mundo anglo-saxão vêm considerando,
de forma cada vez mais séria, a hipótese de que o capitalismo global
esteja perdendo sua aura de infalibilidade, e de que, portanto, a simples
competição intercapitalista em mercados desregulados e globalizados
não assegure o desenvolvimento, muito menos a convergência entre
as economias nacionais do centro e da periferia do sistema capitalista
mundial (FIORI, 1999, p. 14).

Tratemos, então, do desenvolvimento capitalista moderno, desacreditado, segundo Fiori (1999), e


perverso, como afirma Milton Santos (1994), entre tantos outros.

[...] E, no entanto, desde o início do século XIX e, em particular, depois


de 1850, o que a humanidade assistiu foi a um impressionante e
aceleradíssimo processo de concentração do poder político e da riqueza
capitalista nas mãos de um reduzido número de Estados, a maioria deles,
europeus. Uma espécie de pequeno “clube de nações”, que se consolida
entre 1830 e 1870 e que acumularia, a partir daí e até o início da Primeira
Guerra Mundial, taxas cada vez maiores do poder e da riqueza mundiais.
No mesmo período, exatamente quando a economia capitalista se
transformava num fenômeno global e unificado, a Europa assumia
100
CIÊNCIA POLÍTICA

o controle político colonial de cerca de 1/4 do território mundial e


constituíam-se as redes comerciais e a base material do que foi chamado
mais tarde de periferia econômica do sistema capitalista mundial (FIORI,
1999, p. 15-16).

Nesse contexto, destacamos o G8 (Grupo dos Oito):

[...] o fórum informal que reunia oito países desenvolvidos, mais a União
Europeia. Seu objetivo era debater assuntos-chave relacionados à
estabilidade econômica global, políticas nacionais e cooperação com as
instituições econômico-financeiras internacionais. Desde 2008, este grupo
foi alargado, e agora atende pelo nome de G20.

Ao contrário do que se pensa, o G8 não reúne as oito maiores economias


do mundo, e sim as autoproclamadas oito mais industrializadas nações
democráticas. Daí a ausência da China, cujo PIB supera os de Alemanha,
Reino Unido, França, Itália e Canadá, e a inclusão da Rússia, cuja economia
regula com a de países como o Brasil, a Índia e o México. A União Europeia
participa apenas das discussões econômicas, nunca das políticas.

Desde 1975, um grupo de chefes de estado e diplomatas das seis nações


mais ricas e industrializadas se reúne anualmente para discutir questões
econômicas e políticas comuns. Inicialmente batizado de G6, o grupo
recebeu no ano seguinte a participação do Canadá, tornando-se o G7.

Com as mudanças políticas, econômicas e sociais do fim do século e o


incremento da globalização, o grupo reconhece a importância da Rússia,
(principal herdeira da antiga União Soviética) no cenário internacional,
e o país adere ao G7 formalmente em 2006, apesar de participar das
conversações desde 1994.

O G8 tem origem na crise do petróleo de 1973 e na recessão econômica


mundial que se desencadeou a partir dela. Naquele ano, os Estados Unidos
promoveram uma reunião informal entre os ministros de finanças de alguns
governos europeus, do Japão e de seu próprio [ministro] para discutir os
problemas criados pela crise (SANTIAGO, [s.d.]).

Apresentamos casos de crescimento (e de desenvolvimento) de três países considerados centrais no


sistema econômico global e cujas experiências particulares são vitais para compreender o desenvolvimento
na trama global. O conteúdo é ancorado no trabalho organizado por José Luís Fiori (1999). Os países são
os Estados Unidos da América, a Alemanha e o Japão.

Tardio, nessa visão, é quem chegou atrasado num alvo autoproclamado: os países mais industrializados
e de maior poderio bélico! Adiante vamos questionar essa tese hegemônica.
101
Unidade II

Se apenas “alguns poucos territórios privilegiados conseguiram superar o seu atraso com relação à
Inglaterra”, é principalmente em razão do “aumento da desigualdade na distribuição da riqueza mundial
que lança os menos afortunados progressivamente no coração do sistema capitalista global e à sua
competição interna de tipo imperialista” (FIORI, 1999, p. 16).

Trata-se, segundo o autor, dos primeiros “milagres econômicos” e da industrialização acelerada dos
“capitalismos tardios” alemão, norte-americano e japonês. Para ele, trata-se, também, do período de:

[...] enriquecimento de algumas ‘“colônias de povoamento” inglesas,


como foi o caso de Canadá, Nova Zelândia e Austrália, mas também
da Argentina e do Uruguai. Territórios que não lograram industrializar-
se durante a “era dos impérios”, mas conseguiram aumentar a sua
participação relativa na riqueza mundial, dando às suas populações
brancas níveis “europeus” de bem-estar econômico e social. Neste mesmo
meio século, o resto do mundo incorporado à economia europeia, como
colônias ou semicolônias, não conseguiu escapar à camisa de força
de um modelo econômico baseado na especialização e exportação de
alimentos e matérias-primas, e viveu um período de baixo crescimento
econômico intercalado por crises cambiais crônicas. Em síntese, entre
1830 e 1914, a riqueza mundial cresceu, mas de forma extremamente
desigual, ao mesmo tempo que se expandia o poder político do núcleo
europeu do sistema interestatal no qual foram incorporados os Estados
Unidos e o Japão (FIORI, 1999, p. 15-16).

Fiori (1999), ao considerar o processo multifacetado e acelerado de expansão do capital


e o aumento progressivo de sua concentração socioespacial, aponta a ampliação da produção
e do comércio com a criação de uma rede cada vez mais extensa e integrada de transportes,
incorporando um número cada vez maior de regiões e países à dinâmica propulsora da economia
da Grã-Bretanha imperialista, antes da consolidação da centralização estadunidense com o
financiamento da economia internacional após a Segunda Guerra. Concentração, que fique bem
claro, não necessariamente de aparato produtivo concreto, mas de decisões e de capital, como
condição à centralidade administrativa.

Nesse período (1870-1913), organiza-se e passa a funcionar o “padrão-ouro” clássico, primeiro a


unificar o sistema monetário internacional.

Aproximando-nos da sociologia do desenvolvimento, lembramos Juscelino Kubitschek, que


prometeu em sua candidatura à presidência do País “avançar cinquenta anos em cinco”.

Assim, temas como crescimento/desenvolvimento econômico, planejamento econômico,


subdesenvolvimento, pleno emprego, substituição de importações, divisão internacional do trabalho,
deterioração dos termos de troca e centro/periferia, que compunham o léxico econômico, tornam-se
referência para as interpretações sobre a realidade brasileira do período (1950).

102
CIÊNCIA POLÍTICA

Nesse momento, as ciências sociais, em especial a sociologia, debruçaram‑se


sobre a problemática do desenvolvimento brasileiro, enfrentando de forma
particular a questão nacional do Brasil de meados do século XX. Nesse
sentido, é possível associar aqueles temas aos que compuseram as discussões
específicas nas ciências sociais, tais como mudança social, atraso/moderno,
desenvolvimento social, planejamento social, reforma social, crise, revolução
social, imperialismo, nação, alienação, transplantação (MARTINS, 2010, p. 212).

Após algumas palavras sobre o desenvolvimento, passamos às considerações sobre a sociologia


do desenvolvimento.

Walter Frantz (2010, p. 14), citando Wallerstein, retrata a sociologia do desenvolvimento como um
esforço de compreensão dos processos de mudança e transformação. Apontando diferentes teorias
sobre desenvolvimento, afirma que ela é um campo de conhecimento:

[...] a sociologia do desenvolvimento [...] procura entender e explicar como


esse fenômeno humano se processa historicamente. [Ela] é um campo
de investigação que se afirmou no século XX, portanto é relativamente
novo. A discussão sobre desenvolvimento tomou corpo, especialmente,
após a Segunda Guerra Mundial, por volta da segunda metade do século
passado, quando se ampliou o foco do debate, incorporando dimensões não
econômicas (WALLERSTEIN, 2008 apud FRANTZ, 2010, p. 14).

[...]

As identidades coletivas implicam, portanto, um espaço tornado próprio


pelos seres que as instituem, enfim, implicam um território. Se é possível
estender para outras sociedades o conceito de desenvolvimento, dele
retirando o seu caráter moderno produtivista, podemos, então, afirmar que
o devir de qualquer sociedade, seu desenvolvimento próprio, inscreve-se
numa ordem específica de significados, entre os quais o modo como elas
marcam a terra, rigorosamente do ponto de vista etimológico, se geografam
(GONÇALVES, 1992, p. 10).

O desenvolvimento almejado deve gradativamente tornar a relação de


forças entre empreendimentos que não visam apenas nem principalmente
os lucros e os que o fazem, mais favorável aos primeiros. Se e quando a
economia solidária, formada por empreendimentos individuais e familiares
associados e por empreendimentos autogestionários, for hegemônica, o
sentido do progresso tecnológico será outro, pois deixará de ser produto
da competição intercapitalista para visar à satisfação de necessidades
consideradas prioritárias pela maioria (SINGER, 2004).

[...]
103
Unidade II

E o que é interessante notar é que também, como no caso dos teóricos do


desenvolvimento do século XX, Smith, Ricardo, Malthus, Stuart Mill e Marx
foram todos a um só tempo teóricos e “publicistas” que escreveram suas
teorias visando propor caminhos e soluções e influenciar as políticas do seu
tempo. E foi, sobretudo, quando tentaram sustentar suas teses políticas nas
suas análises econômicas que os teóricos da economia política clássica, em
nome de um projeto científico, acabaram dando origem às grandes utopias
modernas, sendo que a mais antiga delas – a utopia liberal – foi a que
permaneceu viva por mais tempo, culminando com a ideia da globalização
(FIORI, 1999, p. 11).

Se o apanágio/ideário do desenvolvimento capitalista (internacionalista por vocação e globalizante


por consequência) é um meio político de propiciar a manutenção da concentração de poder e riqueza
(FIORI, 1999, p. 15), baseando-nos na linhagem intelectual do Iluminismo (ROUANET, 2000), então, é
preciso garantir seu contraponto ético original, cujo objetivo é corrigir os desvios e excessos decorrentes
da produção de desigualdade social, inerente à expansão do sistema pelos países ‟periféricos.

Rouanet (2000) afirma o seguinte:

A modernidade é a coexistência contraditória desses dois vetores (o


instrumental, funcional, e o emancipatório, da união dos povos). Ela é uma
prisão, uma stahlhartes Gehäuse (jaula de ferro), na expressão de Weber,
mas também uma promessa de autonomia, é o reino da racionalidade
instrumental, que submete o homem a imperativos sistêmicos, mas também
o prenúncio de uma humanidade mais livre. Pois bem, a modernidade tende
à internacionalização, nesses dois vetores. Ela se mundializa, para usarmos,
modificando-lhe o sentido, uma palavra habitualmente utilizada pelos
teóricos franceses.

[…]

A globalização tende a nivelar todas as particularidades, porque sua força


motriz é a otimização do ganho, através de uma racionalidade de mercado
que supõe a criação de espaços homogêneos. A universalização é pluralista,
porque seus fins só podem ser atingidos por uma racionalidade comunicativa
que supõe o desejo e o poder dos sujeitos de defenderem a especificidade
das suas formas de vida. A globalização é a união dos conglomerados.

Então, há dois caminhos de melhoria social, distintos, que devem ser explorados teoricamente: um,
tomado pela crítica da economia política clássica, é o das práticas sociais instauradas pela própria
modernidade capitalista; o outro, o das práticas anteriores. Contudo, ambos podem ser concomitantes
e associados de várias maneiras àquelas das sociedades de mercado capitalistas, tendo como marca
um horizonte de contratos mais amplos, que envolvam a vida toda (biocêntricos), como sugerido por
figuras como Enrique Leff (sociólogo), Michel Serres (filósofo) e Humberto Maturana (neurobiólogo).
104
CIÊNCIA POLÍTICA

Assim, temos os desenvolvimentos das sociedades que escolhem seus caminhos versus o
desenvolvimento de via única. Dessa questão, derivam os pontos de vista sobre a diversidade cultural e
seus desdobramentos geográficos, econômicos e políticos. A produção (agricultura e indústria) sustentável
original ou saberes e personagens vernáculos, com domesticação, cultivo e criação de plantas e animais
em experiências e práticas sustentáveis, tem a seu favor o argumento da sustentabilidade, ainda num
horizonte filosófico. Todavia, é preciso ter cautela para não resvalarmos num dualismo paralisante,
numa simplória “teoria dos contrastes”, visto que as comunidades vernáculas, ou o que resta delas, não
constituem, em si mesmas, o antiparadigma do desenvolvimento único, linear.

Carlos Walter Porto Gonçalves relata que há inflexão no debate acerca do desenvolvimento. Vejamos
o que ele destaca:

Por um lado, pelo fato de se recobrir com a chancela de cientificidade que,


sabemos, constitui-se no “critério de verdade” (Foucault) por excelência
da sociedade moderna e contemporânea, configurando-se, por isso, em
um discurso autorizado, poder-se-ia dizer sacralizado (Bourdieu), ou,
ainda, em um discurso competente (Chauí). Ao contrário dos movimentos
ditos contraculturais, que, sem dúvida, foram os primeiros a levantar
essa questão. Por outro lado, é a primeira vez que um discurso com as
prerrogativas de científico e avalizado por uma instituição internacional
do porte da ONU afirma abertamente que há limites para o crescimento
(GONÇALVES, 1992, p. 11).

Nessa conjuntura, inicia-se a discussão sobre os limites do crescimento, o que é muito importante,
pois coloca em pauta a relação sociedade-natureza; abrindo espaço para essa reflexão, “visto que a
sociedade moderna se institui sancionando a dominação da natureza e, como tal, legitima a dominação
dos seres humanos semiotizados como naturais” (GONÇALVES, 1992, p. 12). E o autor continua: a
“passagem do desenvolvimento para o desenvolvimento sustentável indica, assim, a mudança não
só nas crenças e valores que devem orientar a sociedade como também inscreve, como vimos, novos
parâmetros nas relações internacionais” (GONÇALVES, 1992, p. 12).

Aqui o autor mostra-se bastante arguto e aponta que a ideia de desenvolvimento está ligada à
geografia política, e que desenvolvimento pressupõe crescimento, até porque desenvolver-se significa
“des-envolver”, o que implica abrir/quebrar/romper o que estava envolvido. Acentua o seguinte:

É interessante observar que em diferentes línguas (inglês, espanhol,


francês, italiano e português) desenvolver tem exatamente o sentido de
retirar do invólucro, do envelope, de algo que está arrolhado, envelopado
(GONÇALVES, 1992, p. 12).

Gonçalves (1992, p. 14) assinala a diferença entre as concepções de desenvolvimento na biologia,


“que diz respeito ao metabolismo interno do ser vivo, cujo embrião/semente já traz em si mesmo as
suas fases de crescimento/desenvolvimento na sua especificidade”; e nas ciências sociais, afirmando
que o conceito de “desenvolvimento, tecido na Modernidade, pretende-se universal. Os demais povos
105
Unidade II

não europeus passaram a ser vistos como selvagens, quer dizer, da selva, isto é, da natureza, e, por isso,
deviam ser civilizados”.

O autor faz alusão crítica à “força propulsora, portadora da chave modernizadora universal, o
colonialismo e o imperialismo europeus”, promovendo a civilização europeia, fazendo “com que outros
povos saiam da selvageria ou da barbárie […] para a civilização” (GONÇALVES, 1992, p. 13). E acrescenta:

Isso implica, evidentemente, uma determinada forma de se apropriar da


natureza, do espaço, do tempo, enfim, de atribuir lugar às coisas, sejam elas do
reino da natureza, sejam dos homens. Há uma Geografia Política que emana,
que é coinstituinte desses pressupostos, configurada nas relações Metrópole e
Colônia, numa relação do tipo centro-periferia, na configuração de um mundo
que, a partir do Renascimento, não cessará de, cada vez mais, tornar-se um
mundo contraditoriamente unificado (GONÇALVES, 1992, p. 13).

Então, surge a ideia do decrescimento, polêmica, em virtude da variedade de países com padrões de
crescimento muito distintos. Todavia, vale como um projeto sustentável quando da solução da miséria
com acesso justo à riqueza nacional.

Nesse momento, trazemos também a ideia de “decrescimento sustentável”, a ousada tese do francês
Serge Latouche (2012a), para diminuirmos a devastação dos recursos naturais do planeta. Haveria o
desenvolvimento capitalista (doutrinário) de um lado e o decrescimento de outro.

Na base do funcionamento da doutrina do desenvolvimento, estão as crenças no desenvolvimento


ilimitado e seus discursos. Contrapondo as teses do decrescimento, temos Serge Latouche (2012a),
Gilbert Rist (2001) e, de outro modo, Carlos Walter Porto Gonçalves (1992).

O maior estratagema do núcleo liberal, defensor do movimento do capital, é a doutrina do


desenvolvimento. Para Latouche (2012, p. 4): “Dessacralizar o crescimento consiste em desvendar a
maneira como foi construída a sua sacralização: a hipóstase do dinheiro, a teologização da economia, e
a criação dos ídolos do progresso, da ciência e da técnica”.

A seguir apresentamos um texto de Serge Latouche (2012b).

Por uma sociedade do decrescimento

Para conceber e construir uma sociedade de abundância frugal e uma nova forma de
felicidade, é necessário desconstruir a ideologia da felicidade quantificada da modernidade.
Em outras palavras, para descolonizar o imaginário do PIB per capita, devemos entender
como ele se enraizou.

Às vésperas da Revolução Francesa, quando Saint-Just declara que a felicidade é uma


ideia nova na Europa, é claro que não se trata da bem-aventurança celeste e da felicidade
pública, mas de um bem-estar material e individual, antessala do PIB per capita dos
106
CIÊNCIA POLÍTICA

economistas. Efetivamente, nesse sentido, trata-se justamente de uma ideia nova, que surge
um pouco em todos os lugares da Europa, mas principalmente na Inglaterra e na França.

A Declaração de Independência do dia 4 de julho de 1776 dos Estados Unidos da América,


país em que se realiza o ideal do Iluminismo em um campo considerado virgem, proclama
como objetivo: “A vida, a liberdade e a busca da felicidade”. Na passagem da felicidade
para o PIB per capita, verifica-se uma tripla redução suplementar: a felicidade terrestre
é assimilada ao bem-estar material, com a matéria sendo concebida no sentido físico do
termo. O bem-estar material é reconduzido ao “bem-ter” estatístico, isto é, à quantidade de
bens e serviços comerciais e afins, produzidos e consumidos. A estimativa da soma dos bens
e dos serviços é calculada sem descontos, ou seja, sem levar em conta a perda do patrimônio
natural e artificial necessária para a sua produção.

O primeiro ponto está formulado no debate entre Robert Malthus e Jean-Baptiste Say.
Malthus começa comunicando-lhe a sua própria perplexidade: “Se a pena que nos dá
por cantar uma canção é um trabalho produtivo, por que os esforços que são feitos para
tornar uma conversa divertida e instrutiva e que seguramente oferecem um resultado bem
mais interessante deveriam ser excluídos do grupo das produções atuais? Por que não se
deveriam incluir nisso os esforços que devemos fazer para moderar as nossas paixões e para
nos tornarmos obedientes a todas as leis divinas e humanas, que são, sem possibilidade
de desmentir, os bens mais preciosos? Por que, em substância, devemos excluir uma ação
qualquer cujo fim é o de obter o prazer ou de evitar a dor, seja no momento, seja no futuro?”.

Materiais e imateriais

Certo, mas é o próprio Malthus depois que observa que essa solução levaria diretamente à
autodestruição da economia como campo específico. “É verdade que, de tal modo, poderiam
ser incluídas nisso todas as atividades da espécie humana em todos os momentos da vida”,
nota com justiça. Por fim, adere ao ponto de vista redutivo de Say: “Se depois, junto com
Say”, escreve Malthus, “desejamos fazer da economia política uma ciência positiva, fundada
na experiência e capaz de dar resultados precisos, devemos ser particularmente precisos
na definição do termo principal do qual ela se serve (isto é, a riqueza) e compreender nele
somente aqueles objetos cujo aumento ou diminuição sejam tais que possam ser avaliados.
E a linha mais óbvia e útil a ser traçada é a que separa os objetos materiais dos imateriais”.

Em concordância com Jean-Baptiste Say, que define assim a felicidade pelo consumo,
há não muito tempo, Jan Tinbergen propunha que se rebatizasse o PNB [Produto Nacional
Bruto] simplesmente como FNB [Felicidade Nacional Bruta]. Na realidade, essa pretensão
arrogante do economista holandês é só um retorno às fontes.

Se a felicidade se materializa em bem-estar, versão eufemizada do “bem-ter”, qualquer


tentativa de encontrar outros indicadores de riqueza e de felicidade seria vã. O PIB é a
felicidade quantificada. É fácil condenar essa pretensão de equiparar felicidade e PIB per
capita, demonstrando que o produto interno ou nacional mede só a “riqueza” comercial.
107
Unidade II

Com efeito, do PIB, são excluídas as transações fora do mercado (trabalhos domésticos,
voluntariado, trabalho informal), enquanto, pelo contrário, os custos de “reparação” são
contados positivamente, e os danos gerados (externalidades negativas) não são deduzidos, nem
a perda do patrimônio cultural. Diz-se ainda que o PIB mede os outputs ou a produção, não os
outcomes ou os resultados. É apropriado lembrar o belíssimo discurso de Robert Kennedy (escrito
provavelmente por John Kenneth Galbraith), pronunciado alguns dias antes do seu assassinato:
“O nosso PIB […] inclui a poluição do ar, a publicidade dos cigarros e as corridas das ambulâncias
que recolhem os feridos nas ruas. Inclui a destruição das nossas florestas e o desaparecimento da
natureza. Inclui o napalm e o custo da estocagem dos rejeitos radioativos. Em compensação, o
PIB não contabiliza a saúde das nossas crianças, a qualidade da sua educação, a alegria dos seus
jogos, a beleza da nossa poesia ou a solidez dos nossos matrimônios. Não leva em consideração
a nossa coragem, a nossa integridade, a nossa inteligência, a nossa sabedoria. Mede qualquer
coisa, mas não aquilo pelo qual a vida vale a pena ser vivida”.

A sociedade econômica do crescimento e do bem-estar não realiza o objetivo proclamado


pela modernidade, isto é: a maior felicidade para o maior número de pessoas. Constatamos
isso claramente: “No século XIX, nota Jacques Ellul, a felicidade está ligada essencialmente
ao bem-estar, obtido graças a meios mecânicos, industriais, e graças à produção. […] Uma
tal imagem da felicidade nos levou à sociedade do consumo. Agora que sabemos por
experiência que o consumo não traz felicidade, conhecemos uma crise de valores”.

O fato é que, na redução economicista, como observa Arnaud Berthoud, “tudo


aquilo que faz a alegria de viver juntos e todos os prazeres do espetáculo social onde
cada um se mostra aos outros em todos os lugares do mundo – mercados, laboratórios,
escolas, administrações, ruas ou praças públicas, vida doméstica, lugares de diversão...
– são removidos da esfera econômica e colocados na esfera da moral, da psicologia ou
da política. A única felicidade que ainda se pode esperar do consumo está separada da
felicidade dos outros e da alegria comum”. [...]

O projeto de uma “economia” civil ou da felicidade desenvolvido por um grupo de


economistas italianos (representado principalmente por Stefano Zamagli, Luigino Bruni,
Benedetto Gui, Stefano Bartolini e Leonardo Becchetti) se reconecta à tradição aristotélica
e traz sua origem de uma crítica ao individualismo. A construção de uma tal economia
ressuscita a “felicidade pública” de Antonio Genovesi e da escola napolitana do século XVIII,
que o triunfo da economia política escocesa rejeitou.

A felicidade terrestre, à espera da bem-aventurança prometida aos justos no além,


gerada por um governo reto (bom governo) que busca o bem comum, era, com efeito, o
objeto de reflexão dos iluministas napolitanos. Integrando o mercado, a concorrência e a
busca por parte do sujeito comercial de um interesse pessoal próprio, eles não repudiavam
a herança do tomismo. Esses teóricos da economia civil são perfeitamente conscientes do
“paradoxo da felicidade”, redescoberto pelo economista norte-americano Richard Easterlin.
“É lei do universo – escrevia Genovesi – que não se pode fazer a nossa felicidade sem fazer
a dos outros”.
108
CIÊNCIA POLÍTICA

Foram necessários dois séculos de destruição frenética do planeta graças ao “bom


governo” da mão invisível e do interesse individual elevado à divindade para redescobrir
essas verdades elementares.

[...]

Mercadorias fictícias

Como Baudrillard havia visto bem em seu tempo, “uma das contradições do crescimento
é que ele produz bens e necessidades ao mesmo tempo, mas não os produz no mesmo
ritmo”. Resulta disso aquilo que ele chama de “uma pauperização psicológica”, um estado
de insatisfação generalizada, que, diz, “define a sociedade de crescimento como o oposto de
uma sociedade da abundância”.

A frugalidade reencontrada permite reconstruir uma sociedade da abundância


com base naquilo que Ivan Illich chamava de “subsistência moderna”. Isto é, “o modo
de vida em uma economia pós-industrial dentro da qual as pessoas conseguiram
reduzir sua própria dependência com relação ao mercado e fizeram isso protegendo
– com meios políticos – uma infraestrutura em que técnicas e instrumentos servem,
essencialmente, para criar valores de uso não quantificado e não quantificável pelos
fabricantes profissionais de necessidades”.

Trata-se de sair do imaginário do desenvolvimento e do crescimento e de reencaixar o


domínio da economia no social por meio de uma Aufhebung (remoção/superação).

Porém, sair do imaginário econômico implica rupturas muito concretas. Será


necessário fixar regras que enquadrem e limitem a explosão da avidez dos agentes
(busca do lucro, do sempre mais): protecionismo ecológico e social, legislação do
trabalho, limitação da dimensão das empresas e assim por diante. E, em primeiro lugar,
a “desmercantilização” daquelas três mercadorias fictícias, que são o trabalho, a terra
e a moeda.

Sabe-se que Karl Polanyi via na transformação forçada desses pilares da vida social em
mercadoria o momento fundante do mercado autorregulador. A sua retirada do mercado
mundializado marcaria o ponto de partida de uma reincorporação/reenxerto da economia
no social.

Paralelamente a uma luta contra o espírito do capitalismo, será oportuno,


portanto, favorecer as empresas mistas em que o espírito do dom e a busca da justiça
mitiguem a aspereza do mercado. Certamente, para partir do estado atual e alcançar a
“abundância frugal”, a transição implica novas regras e hibridizações, e, nesse sentido,
as propostas concretas dos altermundialistas, dos defensores da economia solidária
até as exortações à simplicidade voluntária podem receber o apoio incondicional dos
partidários do decrescimento.
109
Unidade II

Se o rigor teórico (a ética da convicção de Max Weber) exclui os compromissos do


pensamento, o realismo político (a ética da responsabilidade) pressupõe o compromisso pela
ação. A concepção da utopia concreta da construção de uma sociedade de decrescimento é
revolucionária, mas o programa de transição para alcançá-la é necessariamente reformista.
Muitas propostas “alternativas” que não reivindicam explicitamente o decrescimento
podem, assim, felizmente, encontrar lugar dentro do programa.

O espírito do dom

Um elemento importante para sair das aporias da superação da modernidade é a


convivialidade. Além de enfrentar a reciclagem dos rejeitos materiais, o decrescimento deve
se interessar pela reabilitação dos marginalizados. Se o melhor descarte é aquele que não
é produzido, o melhor marginalizado é aquele que a sociedade não gera. Uma sociedade
decente ou convivial não produz excluídos.

A convivialidade, cujo termo Ivan Illich toma emprestado do grande gastrônomo francês
do século XVIII, Brillat Savarin (A Fisiologia do Gosto: Meditações sobre Gastronomia
Transcendental), visa justamente refazer o laço social desfeito pelo “horror econômico”
(Rimbaud). A convivialidade reintroduz o espírito do dom no comércio social ao lado da
lei da selva e retoma assim a philia (amizade) aristotélica, lembrando ao mesmo tempo o
espírito da ágape cristã.

Essa preocupação se reconecta plenamente à intuição de Marcel Mauss, que, em seu


artigo de 1924, “Apreciação sociológica do bolchevismo”, defende, “sob o risco de parecer
antiquado”, que se deve voltar “aos velhos conceitos gregos e latinos de caritas (que hoje
traduzimos tão mal por caridade), de philia, de koinomia, dessa ‘amizade’ necessária, dessa
‘comunidade’, que são a essência delicada da cidade”.

É importante também desconjurar a rivalidade mimética e a inveja destrutiva que


ameaçam toda sociedade democrática. O espírito do dom, fundamental para a construção
de uma sociedade de decrescimento, está presente em cada um dos Rs que formam o círculo
virtuoso proposto para dar vida à utopia concreta da sociedade autônoma. Principalmente
no primeiro R, reavaliar, já que indica a substituição dos valores da sociedade comercial
(a concorrência exacerbada, o cada um por si, o acúmulo sem limites) e da mentalidade
predadora nas relações com a natureza, pelos valores de altruísmo, de reciprocidade e de
respeito ao ambiente.

O mito do inferno de longos tridentes com o qual se abre a segunda parte do livro
La Scommessa della Decrescita [A Aposta do Decrescimento] é explícito: a abundância
combinada ao “cada um por si” produz miséria, enquanto a divisão, mesmo na frugalidade,
gera satisfação em todos, até alegria de viver.

O segundo R, reconceitualizar, insiste, pelo contrário, na necessidade de repensar a


riqueza e a pobreza. A “verdadeira” riqueza é feita de bens relacionais, aqueles fundados
110
CIÊNCIA POLÍTICA

justamente na reciprocidade e na não rivalidade, no saber, no amor, na amizade. Pelo


contrário, a miséria é principalmente psíquica e deriva do abandono na “multidão solitária”,
com a qual a modernidade substituiu a comunidade solidária. [...]

É imperativo reduzir o peso do nosso modo de vida na biosfera, reduzir a pegada


ecológica cujos excessos se traduzem em empréstimos pedidos às gerações futuras e ao
conjunto do cosmos, mas também ao Sul do mundo. Portanto, temos a obrigação de dar em
troca aquilo que se encontra no centro da maior parte dos outros Rs: redistribuir, reduzir,
reutilizar, reciclar.

Redistribuir remete à ética da divisão. Reduzir (a própria pegada ecológica), à recusa da


predação e do acúmulo. Reutilizar, ao respeito pelo dom recebido. E reciclar, à necessidade
de restituir à natureza e a Gaia aquilo que foi tomado de empréstimo delas.

Fonte: Latouche (2012b).

6 O ESTADO CONTEMPORÂNEO: POPULAÇÃO OU POVOS? FRACASSO DA


AUTODETERMINAÇÃO

Se dissermos, seguindo Lefebvre, que só existe o poder político, isto


significa, levando-se em consideração o que precedeu, que o fato político
não está inteiramente refugiado no Estado. Com efeito, se o fato político
atinge a sua forma mais acabada no Estado, isto não implica que não
caracterize outras comunidades: “Estudando de forma comparativa o
poder em todas as coletividades, pode-se descobrir as diferenças entre o
poder no Estado e o poder nas outras comunidades’’ [Maurice Duverger].
Para uma discussão do fato político, remetemos a Balandier. Admitimos
que há poder político desde o momento em que uma organização luta
contra a entropia que a ameaça de desordem. Esta definição, inspirada
em Balandier, nos faz descobrir que o poder político é congruente a toda
forma de organização (RAFFESTIN, 1993, p. 17-18).

Juntamos a voz de Raffestin aos demais críticos da compreensão única da realidade política, que
enxergam o Estado como única forma possível. O Estado como forma cristalizada historicamente é
também concebido nos termos demográficos ou populacionais. População ou demografia é um
conceito matemático-estatístico de classificação (manipulação e planejamento). Nada mais distante
da associação de pessoas reais... É verdadeiro, apenas, quando se consideram as massas de dados de
pesquisas censitárias.

Os povos fracassaram em mostrar que somente há o caminho da participação para escolher em meio
à imensa diversidade de opções.

111
Unidade II

6.1 Povos: quem são o povo, a nação e os estrangeiros

Qual é a questão fundamental da democracia? Constituições democráticas


e os titulares de funções do seu respectivo sistema de dominação preferem
falar – e falam mais frequentemente – do “povo”. A razão disso é simples: eles
precisam justificar-se como todas as formas de poder. E aqui a invocação do
povo fornece a legitimação mais plausível.

Não obstante – e, se olharmos o problema mais de perto: justamente por


essa razão –, a simples pergunta “Quem é esse povo?” nunca é formulada
como uma pergunta analítica. Supõe-se tacitamente que, afinal de contas,
todos saibam quem é esse povo. Eis um típico discurso de legitimação que
tranquiliza em vez de criar transparência.

Mas, se formularmos essa pergunta – e isso é o que estamos fazendo aqui –,


começam as maiores dificuldades. Quem é o povo? As pessoas que vivem de
fato no país [faktische Inländer]? As pessoas que vivem legalmente no país
[rechtliche Inländer]? Os titulares dos direitos de nacionalidade? Os titulares
dos direitos civis? Os titulares dos direitos eleitorais ativos e passivos? Apenas
os adultos? Apenas os membros de determinados grupos étnicos, religiosos
ou sociais? Em incontáveis países do passado e/ou do presente que se
denominaram ou denominam “democráticos” há pretensões reconhecidas
de direitos [Berechtigungen] em várias gradações, discriminações mais
grosseiras ou mais sutis, privilégios mais ou menos juridicizados, exclusões
e inclusões que fazem com que aquilo que poderia ser chamado realiter
“povo” dilua-se em um mosaico desorientador. Constata-se logo que
“povo” não é um conceito simples nem um conceito empírico; povo é um
conceito artificial, composto, valorativo; mais ainda, é e sempre foi um
conceito de combate. Historicamente isso é recapitulado nesse livro em
uma retrospectiva que remonta à polis sumeriana, passa por Atenas e por
Roma e pela igreja cristã primitiva até chegar ao presente, no qual, por meio
de práticas como expulsão, reassentamento, “limpeza” étnica, o “povo”,
respectivamente desejado pelos donos do poder, é manipulado ou criado
à força. Tal barbárie em nome de “demo” cracia é uma “cracia” no sentido
mais duro do termo, mas não tem nada a ver com “demos”: “povo” é usado
aqui como expressão seletiva, como conceito finalista, como lema de guerra
(MÜLLER, 2009, p. 93-94).

Segundo o Novo Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa (2009), povo é o “conjunto de pessoas que
falam a mesma língua, têm costumes e interesses semelhantes, história e tradições comuns [...] vivem
em comunidade num determinado território; nação, sociedade”. Então, partimos de povo como simples
termo dicionarizado para fundamento das organizações sociais, sendo o conceito expressão de poder e
dominação de alguns grupos por outros.

112
CIÊNCIA POLÍTICA

Segue um trecho bastante interessante do modo como as noções de povo são manipuladas pelo
poder imperial, com vistas a submeter vastas regiões, estendendo os braços da retórica, com produção
científica e artística.

O bom povo português: usos e costumes d’aquém e d’além-mar

A reforma de 1946, impulsionada pelo então ministro das Colônias, Marcelo Caetano,
foi realizada quando das celebrações dos quarenta anos da Escola e em um contexto
internacional cambiante, no qual o futuro das colônias se mostrava novamente incerto.
É nesse momento que, sob indicação do ministro, a sua diretoria é assumida por um
intelectual de renome, o antropólogo portuense Antônio Augusto Esteves Mendes Corrêa,
que há muito se dedicava ao estudo dos “indígenas” dos espaços coloniais portugueses.

Considerado o “primeiro antropólogo português”, doutor em medicina pela


Universidade do Porto, Mendes Corrêa destacou-se por desenvolver estudos que, partindo
da antropologia física e da antropologia criminal, passam cada vez mais por um enfoque ora
“etnopsicológico”, ora histórico e cultural, sem, contudo, abandonar jamais determinados
postulados da biologia. Sobressaiu-se ainda como promotor do I Congresso de Antropologia
Colonial Nacional, que teve lugar no Porto em 1934, por ocasião da I Exposição Colonial
Portuguesa. Na Exposição Colonial de 1934, professores e alunos, sob a coordenação de
Mendes Corrêa, realizaram estudos antropométricos e inquéritos com os indígenas vindos
das colônias africanas, da Índia, de Macau e do Timor. Os estudos realizados no Porto se
mostrariam fundamentais para uma apreensão totalizadora dos povos que compunham
o império colonial português, e foram sistematicamente recuperados na sua obra de
maturidade Raças do Império, publicada em 1945.

Em Raças do Império, Mendes Corrêa sintetiza um conjunto de informações que vai da


composição “racial” aos costumes “exóticos” ou “pitorescos” de cada um dos grupos sociais
e étnicos da metrópole e das colônias. Trata-se de uma obra, ao mesmo tempo, “científica” e
de divulgação, ricamente ilustrada com fotografias e desenhos; da sua leitura saímos com a
nítida sensação de apreender o Império na totalidade dos tipos humanos que o compõem:
o Império não se traduz apenas em uma entidade política, mas em um todo orgânico e
solidário, que a diversidade racial e cultural revela e ilumina. Nos termos de Mendes Corrêa,

Vinte milhões de portugueses compõem essa multidão em que


tamanha diversidade não impede uma unidade essencial de aspirações e
interesses, uma solidariedade fraterna, a existência duma ampla e perfeita
comunidade nacional, baseada simultaneamente na história, na política,
num sentimento profundo de simpatia e compreensão universalista.

Logo no início de Raças do Império, Mendes Corrêa salienta a necessidade de não


desprezarmos o conceito de “raça” em favor do de “cultura”: ambos estariam profundamente
relacionados. Dessa forma, o antropólogo português não apenas recupera sua trajetória
como se contrapõe às correntes da moderna antropologia de então, que questionavam a
113
Unidade II

importância excessiva que escolas antropológicas oitocentistas conferiam à noção de “raça”,


afirmando assim o objeto privilegiado da antropologia, a “cultura”. Mendes Corrêa deixava
clara sua opção por um estudo que considerasse os aspectos biológicos e hereditários de
cada grupo humano, bem como seus comportamentos psicossociais, sua aptidão maior
ou menor ao trabalho e sua produção cultural. Sua opção teórica e metodológica ganha
maior sentido quando atentamos para a sua proposta de trabalho: dar conta da totalidade
das “raças” que convivem no interior de uma estrutura política, o Império, que, na verdade,
traduz uma nação extremamente heterogênea na multiplicidade dos povos que a habitam,
mas nem por isso carente de uma unidade de espírito.

Da “cabeça” do Império e ilhas adjacentes (a quem dedica mais da metade de sua


obra), Mendes Corrêa dirige-se às colônias ultramarinas: Cabo Verde, São Tomé e Príncipe,
São João Batista de Ajudá, Angola, Moçambique, Índia, Macau e Timor. Os arquipélagos
atlânticos e o forte de São João Batista de Ajudá são frutos exclusivos da obra de Portugal;
já os demais territórios teriam a sua própria pré-história, mas é a presença portuguesa
que os situa em uma mesma corrente evolutiva. Para chegar a essas conclusões, o autor
combina dados arqueológicos e fontes históricas portuguesas com informações etnográficas
obtidas no campo ou com os indígenas na Exposição Colonial do Porto de 1934. Da extrema
diversidade étnica e cultural dos nativos desses territórios, passa a informações genéricas
sobre as atuais tendências sociodemográficas, “usos e costumes”, feitiçaria, crenças e
religião e, ainda, aptidão maior ou menor para o trabalho braçal ou intelectual. Chega, por
fim, às modernas condições de colonização, à situação dos colonos brancos e aos problemas
relativos à mestiçagem.

Diante deste último aspecto, Mendes Corrêa manifesta uma postura curiosa: realidade
de algumas colônias portuguesas – como Cabo Verde –, e tendo oferecido à nação
vigorosos frutos, a mestiçagem não é, contudo, aconselhável de forma intensa e em toda
a extensão do Império, sob pena de o povo português diluir suas particularidades entre
terras e gentes estranhas e distantes da matriz. Quando trata de “A política de população
do Império”, o antropólogo conclui que, se na ausência da mulher branca a mestiçagem
é quase “inevitável e fatal”, ela não deve ser uma regra na totalidade do Império, sob
pena de “quebra da continuidade histórica” do povo português. O mestiço seria uma
questão a mais de “política indígena”, devendo ser dado a ele um tratamento justo e
humano e, quando este manifestasse “perfeita identificação” com o “sentir, as tendências
e aspirações do povo português”, poderia ser, inclusive, incorporado no campo da política
e administração geral do país (MENDES CORRÊA, 1945, p. 620). O antropólogo atenua,
assim, o juízo manifestado por ocasião do Congresso de 1934, quando afirmou imensa
preocupação diante da mestiçagem [...].

Os problemas biológicos e sociais do mestiçamento, em toda a sua


intensidade angustiosa e dramática, não preocuparam, por exemplo, ainda
suficientemente os nossos investigadores. Vão ser, não podiam deixar de ser,
debatidos neste Congresso, esquecidos por assim dizer desde esses tempos
dourados em que o grande Afonso de Albuquerque favorecia o cruzamento
114
CIÊNCIA POLÍTICA

de portugueses com mulheres indígenas, esforçando-se por legalizar


jurídica e religiosamente as uniões contraídas com tamanho desembaraço
que até, segundo rezam as crônicas, um banquete em que se festejavam
simultaneamente vários matrimônios acabou pela confusão dos casais uns
com os outros, numa tremenda orgia pagã.

Mendes Corrêa faz jus aos princípios inscritos no Ato Colonial e no indigenato:
reconhecimento da “diversidade natural” dos povos do Império e o não abandono da
tradicional fraternidade cristã que teria caracterizado, desde sempre, a expansão lusitana
(1945, p. 621), manutenção da hierarquia a partir da administração rigorosa das relações
entre os diferentes grupos culturais que habitavam as colônias (basicamente colonos e
indígenas) e do controle dos processos de assimilação. A partir da disciplina antropológica,
afirma a superioridade do elemento metropolitano, o imperativo da assimilação – sempre
que esta preserve (eugenicamente) a continuidade histórica e antropológica do povo
português – e uma política de inclusão que tenha em conta a diversidade (e a desigualdade)
característica dos indígenas das distintas colônias. Política e antropologia juntam-se,
então, na preservação da tradição colonial portuguesa e dos “usos e costumes” dos povos
indígenas: é na garantia política da preservação da diferença e no seu estudo a partir dos
meios antropológicos que teríamos a reprodução hierárquica da desigualdade, e com isso a
perpetuação do Império.

Sua postura não é, assim, muito distinta daquela apresentada no Congresso Colonial de
1940, quando discorre, entre outros temas, acerca de uma “antropologia da mestiçagem”. A
disciplina era vista, naquele momento, como pertencente ao campo das ciências naturais,
e os estudos na área atentavam para as características “biológicas” e “psíquicas” dos
indivíduos ou grupos; o objetivo era analisar uma determinada “realidade” (o mestiço) para
definir sua possibilidade de aproveitamento (ou não) para o projeto colonial português do
Estado Novo. As questões que se colocavam eram: como se combinam as heranças de pais
de raças distintas na prole mestiça? Seria esta mais ou menos fértil que os seus progenitores
(questão descartada rapidamente por Mendes Corrêa)? Como se dá a hereditariedade de
caracteres inferiores e superiores? Se era evidente para Mendes Corrêa que a colonização
e a formação do Brasil só tinham sido possíveis graças à mestiçagem, também o era a
hegemonia política, mental e econômica do elemento branco, apesar da alta proporção de
mestiços, negros e índios na população brasileira.

Fonte: Thomaz (2001, p. 67-70).

Todo o poder emana do povo, mas qual povo? É essa a pergunta de Gomes e Setton (2016) ao
considerar o processo eleitoral e as relações de representatividade:

Parte-se da hipótese de que esses consultores, chefes das equipes de


marketing político, em especial aqueles de maior visibilidade e influência
sobre a área profissional, poderiam assumir a posição de intérpretes da
cultura; como produtores de mídias, de modo crescente nos últimos anos,
115
Unidade II

visam influir sobre certos modos de ser, pensar e agir dos cidadãos no âmbito
da política no Brasil. Não é sem fundamento que, ao estudar escritores
da literatura brasileira, Renato Ortiz (2006) afirma que a problemática da
cultura tem sido, até hoje, uma questão política. Segundo ele, a noção
de identidade nacional deve ser vista como uma construção simbólica
resultante de recortes arbitrários, ligada a uma reinterpretação do popular
pelos grupos sociais e à própria imagem do Estado brasileiro. Ortiz revela que
alguns escritores contribuíram para a consolidação de noções sobre o povo
e a nação. Conclui que eles ocuparam o papel de mediadores simbólicos,
confeccionando uma ligação entre o particular e o universal, o singular e o
global, e acabaram por elaborar uma reinterpretação simbólica.

[...]

Uma mediação que visa romper o abismo que separa os eleitores, os partidos
e os candidatos, bem como aproximá-los, pelo menos no momento das
eleições. Eles atuam como coordenadores gerais, mestres ou conselheiros
do processo de mediação e da ligação entre a produção e a recepção de um
repertório de ideias. Como diria Ortiz, trabalhariam na construção simbólica
de uma interpretação interessada de Brasil filiada a grupos sociais visando
unificar percepções acerca do povo.

As reflexões deste artigo emergiram de uma pesquisa inédita sobre as


relações entre o marketing político e a educação. Por isso, a aproximação
introdutória das temáticas foi realizada com o devido cuidado para não
produzir associações ligeiras. Inspirado na relação entre a sociologia
da educação e a sociologia da cultura, disciplinas que se ocupam da
identificação e análise das maneiras de ser, agir e pensar dos indivíduos e as
estratégias das instituições socializadoras, buscou-se examinar e discutir o
trabalho dos consultores na construção de representações em seus aspectos
culturais. Partiu-se do pressuposto de que refletir sobre as mídias políticas é
uma forma de desvelar um dos mecanismos de formação de consensos bem
como uma maneira de identificar estratégias de construção e articulação
de categorias de pensamento acerca da dinâmica política no Brasil. Assim,
foi possível apreender as construções difusas de uma socialização política
operada por esses cada vez mais influentes intérpretes do Brasil.

Primeiramente, observou-se a relevância das pesquisas eleitorais


para orientação da produção das campanhas e para a adequação de
performances midiáticas dos candidatos. Na construção de um programa
eleitoral, verificou‑se uma persistência dos gêneros midiáticos de amplo
reconhecimento, apoiados no conceito de entretenimento e na relação
paradoxalmente mágica e eficiente entre famosos e populares. Identificou‑se,
ainda, que na apresentação dos candidatos e nas suas relações com eleitores
116
CIÊNCIA POLÍTICA

o trabalho do marketing político favorece um entendimento de que os


políticos estão ao lado do povo, são amigos do povo, possuem intimidade
e conhecem a realidade de todos; embora tratados como celebridades, os
candidatos estendem a mão para os menos favorecidos, numa demonstração
de sabedoria, benevolência e superioridade; ademais, observou-se uma
forte presença da religiosidade nas peças de campanha como expressivo
instrumento mobilizador das populações brasileiras e belenenses. Desse
modo, o marketing político utiliza os recursos de identidade de mais fácil
apreensão com a finalidade de viabilizar associações positivas e criar
condições para apropriação dos conteúdos políticos.

Não é por acaso que o uso da fé e da visita à casa dos eleitores nos programas
de campanha compõe uma das estratégias do marketing para retratar os
vínculos sociais harmoniosos e cúmplices entre os agentes da política,
especialmente os eleitores e os candidatos. Essa tática compõe uma didática
que visa estabelecer uma noção de intimidade, comunhão, entre os agentes,
uma aproximação simbólica entre eles, de modo que os demais eleitores
abram-se para uma audiência e atribuam cumplicidade ao que é dito e
proposto nos programas eleitorais. Com isso, contribui para a reafirmação
de uma interpretação de que, na condição de eleitor, o brasileiro é um ser
ordeiro, hospitaleiro, receptivo e acolhedor. Tudo leva a crer que a estratégia
tem como finalidade vincular os eleitores e os candidatos em uma única
identidade horizontal e igualitária, mostrando que são um a cara do outro.
Como diria Ortiz (2006), unificam agentes que em circunstâncias diversas
estariam separados (GOMES; SETTON, 2016).

Então, quem é o povo? Friedrich Müller (2009) afirma que essa pergunta está na base da democracia
moderna, acentuando que o conceito povo tem inumeráveis atribuições.

O termo “democracia” deriva etimologicamente da noção de povo – demo (povo), e cracia (poder) – e
significa poder do povo. Entretanto, são muitos os descaminhos, e há muita retórica nos discursos.

Darcy Ribeiro (1995) faz uma brilhante aproximação do povo brasileiro; considera que da mistura
dos grupos negros, brancos e índios derivam novos grupos. Do ponto de vista sociológico, podem-se
procurar os grupos sociais que se identificam por meio dos mesmos papéis e status. Também há o
sentido político-cultural, que adquire valor em meio às relações de poder da classificação dos membros
da sociedade.

6.2 Estado‑nação como solução e problema

O progresso está aí, no trabalho de homens como ele. Através dele mesmo,
os escravos, pretos rudes e praticamente irracionais, encontravam no serviço
humilde o caminho da salvação cristã, que do contrário nunca lhes seria
aberto, faziam suas tarefas e recebiam comida, agasalho, teto e remédios,
117
Unidade II

mais do que a maioria deles merecia, pelo muito de dissabores e cuidados


que infligiam a seus donos e pela ingratidão embrutecida, natural em negros
e gentios igualmente. O povo em geral, este tinha muitas fazendas a que
se agregar, muitos ofícios a praticar, podia vender e comer o que pescasse
nas águas agora libertadas, podia, enfim, levar a mesma vida que levava
antes, com a diferença sublime de que não mais sob o jugo opressor dos
portugueses, mas servindo a brasileiros, à riqueza que ficava em sua própria
terra, nas mãos de quem sabia fazê-la frutificar (RIBEIRO, 1984, p. 31-32).

Entender a convergência, anunciada por Mónica Arroyo (2004), entre “território, mercado e Estado”
pressupõe sua relação socioambiental radical, que, a um só tempo, é: produtiva, baseada na exploração
e na troca de recursos; organizacional, em razão da divisão e institucionalização dos poderes dos seus
membros; e territorial, ao se especializarem (materializarem) todas as ações.

O texto de Mónica Arroyo (2004) é bastante relevante para tratarmos das relações entre as formas e os
processos de aplicação do poder dos grupos sociais envolvidos na construção do país (que se constituem
em Estado e governo) e os instrumentos dos agentes investidores (ações mercantis institucionalizadas,
territorializadas); falamos de instrumentos de controle e de governança cuja legitimidade dá-se pela
via estatal. Segundo a autora, “a convergência de território, mercado e Estado é um processo histórico
e, ao mesmo tempo, conceitual, perfeitamente datado” (ARROYO, 2004, p. 49). Ela questiona a forma
pela qual essa convergência se desenvolveu no continente europeu para, por fim, chegar aos territórios
coloniais e refletir, em particular, sobre a América Latina.

A autora destaca com precisão o conceito de território e Estado. Leia com atenção o excerto a seguir.

Território, mercado e Estado: uma convergência histórica

Território e Estado, as origens

Se pensamos o “território” como um conceito que supõe o exercício do poder e que


implica um processo de apropriação, de delimitação e de controle, estamos enfatizando,
sem dúvida, sua dimensão política. E se, além disso, pensamos na legitimidade desse poder
e, portanto, na ideia de soberania, estamos cada vez mais próximos de sua dimensão
jurídica. Por sua vez, a dimensão político-jurídica do território está associada à existência do
“Estado” como a instituição que detém o poder de soberania, ou seja, o controle exclusivo
de um âmbito geográfico definido. Chegamos, assim, à ideia de território do Estado ou de
Estado territorial.

Desde a conformação do sistema interestatal moderno, o Estado territorial é a


unidade primária e principal da política internacional; daí que o mapa desse sistema
esteja composto de territórios dos Estados, delimitados por fronteiras que são o resultado
do exercício da soberania. Esse mapa político mundial está atualmente subdividido em
mais de duzentos territórios estatais. Mas quando e como começou o processo de associar
território e Estado?
118
CIÊNCIA POLÍTICA

O termo território foi aplicado no início às cidades-Estado do mundo clássico para


designar a zona que circundava uma cidade e que estava sob sua jurisdição (GOTTMAN,
1973). Aplicou-se, mais tarde, às cidades medievais italianas. Todavia, os territórios
das cidades clássicas e medievais não eram soberanos. A união entre território e
soberania surge, séculos mais tarde, como resultado da dissolução do regime feudal
e da erosão do poder temporal da Igreja. Trata-se de um longo processo que se
estende desde 1494 – quando da invasão das cidades-Estado italianas pela França
e depois pela Espanha – até o Tratado de Westfália, em 1648, fim das pretensões de
universalidade do império e do papado. É nesse período que se perfila a configuração
dos Estados territoriais soberanos.

O Tratado de Westfália de 1648 traz a primeira base legal do sistema interestatal


moderno, já que reconhece a soberania de cada Estado no seu território e implica a
obrigação de não interferir nos assuntos internos de outros Estados. A soberania territorial
transforma-se, assim, em uma atribuição do Estado com relação ao controle exclusivo de
um âmbito geográfico definido. Dessa perspectiva, o território torna-se uma categoria do
direito internacional.

Conforme Peter Taylor (1994), os Estados territoriais definem-se em termos de um


“dentro” e de um “fora”: por um lado, relacionam-se com a sociedade civil e as atividades
econômico‑sociais existentes dentro de seu âmbito; por outro, cuidam das relações
com o resto do sistema interestatal. A extensão geográfica de sua jurisdição e sua
posição associam-se a aspectos importantes das relações exteriores, como proximidade,
contiguidade, distância e acessibilidade. Essa concepção do exercício da soberania
territorial começa a se espalhar gradual e lentamente, através dos continentes, como o
modelo dominante de organização política.

As funções básicas do Estado territorial, segundo Jean Gottman (1973, p. 52), são
segurança e oportunidade. A primeira relaciona-se com as origens políticas do sistema
interestatal, e a segunda com a formação do incipiente mercado mundial:

A soberania tinha sido interpretada com demasiada frequência


como função da regulação do poder, e especialmente do poder
político. Na administração do território, contudo, a soberania tinha
de lidar com os recursos e os serviços econômicos, com a gestão
dos modos de vida e com a melhoria e o desenvolvimento, assim
como com a regulação, a limitação e a prevenção. Os deveres e
responsabilidades do soberano tinham sido essencialmente políticos,
religiosos e militares até o século XVI. Com um mundo em expansão
abrindo‑se diante de um número crescente de Estados soberanos,
novos propósitos de governo foram passando ao primeiro plano
no reino econômico. As características do território e seu uso iam
adquirindo um novo significado.

119
Unidade II

A partir da proposta de Gottman, poderíamos pensar que, pelo lado da segurança,


o território aproxima-se do Estado e que, pelo lado da oportunidade, o território
relaciona‑se com o mercado. Mas a associação entre território e mercado começa nesse
momento ou é anterior?

Território e mercado, as origens

Na realidade, se seguirmos a interpretação de Karl Polanyi (1944), o ponto de partida


para pensar o mercado poderia ser a obtenção de bens distantes, como numa caça: “A
aplicação dos princípios observados na caça para obter bens encontrados fora dos limites
do distrito levou a certas formas de troca que nos apareceram, mais tarde, como comércio”.
Para esse autor, o comércio a longa distância é um resultado da localização geográfica
das mercadorias e da “divisão do trabalho” dada pela localização. Esse comércio muitas
vezes engendra mercados, uma instituição que envolve atos de permuta e, se o dinheiro é
utilizado, de compra e venda.

Segundo Fernand Braudel (1979, p. 12), a palavra mercado pode aplicar-se a todas as
formas de troca desde que ultrapassem a autossuficiência. Para ele “o mercado, mesmo
elementar, é o lugar predileto da oferta e da procura, do recurso a outrem, sem o que
não haveria economia no sentido comum da palavra, mas apenas uma vida ‘encerrada’ na
autossuficiência ou na não economia”.

Quando a fase de pura subsistência é ultrapassada, torna-se necessário que os excedentes


de cada grupo sejam trocados. É o momento da troca simples, do escambo. Mas esse tipo
primitivo de comércio não tem força para mudar a forma particular [pela qual] cada grupo
valoriza o tempo e o espaço. É o comércio especulativo que traz mudanças, por criar uma
nova relação social com a introdução da mercadoria e da moeda. A sociedade local tem de se
adaptar ao novo processo produtivo e às novas condições de cooperação (SANTOS, 1978). Não
há, portanto, história simples e linear do desenvolvimento dos mercados, sobretudo porque,
“uma vez que a troca é tão velha como a história dos homens, um estudo histórico do mercado
deveria estender-se à totalidade dos tempos vividos e situáveis” (BRAUDEL, 1979, p. 193).

Nas primitivas fases do desenvolvimento da cidade antiga, a ideia de mercado como ponto
de junção das rotas de comércio já era reconhecida. “Não há necessidade de duvidar que o
mercado apareceu inicialmente para regular a troca local, muito antes que qualquer ‘economia
de mercado’, baseada em transações tendo em vista um lucro monetário e a acumulação
de capital privado, viesse a existir” (MUMFORD, 1961, p. 85). Assim, para este autor, as duas
formas clássicas do mercado, a praça aberta ou o bazar coberto, e a rua de barracas ou de lojas,
possivelmente já tinham encontrado sua configuração urbana por volta de 2000 a.C.

Sem a pretensão de uma análise através do tempo multissecular, e seguindo a proposta


de Polanyi (1944), podemos continuar nossa indagação refletindo sobre a natureza dos
mercados, tanto locais quanto de longa distância. Para este autor, ambos os mercados
baseiam-se no princípio da complementaridade:
120
CIÊNCIA POLÍTICA

O mercado externo é uma transação; a questão é a ausência de alguns


tipos de mercadoria naquela região. O comércio local é limitado às
mercadorias da região, as quais não compensa transportar porque são
demasiado pesadas, volumosas ou perecíveis. Assim, tanto o comércio
exterior quanto o local são relativos à distância geográfica, sendo
um confinado às mercadorias que não podem superá-la e o outro às
que podem fazê-lo. Um comércio desse tipo é descrito corretamente
como complementar (POLANYI, 1944, p. 74).

Podemos pensar, então, que essa complementaridade implica uma divisão territorial do
trabalho. O intercâmbio de produtos é possível porque existe uma repartição do trabalho
vivo em diferentes lugares, mais ou menos próximos. Isso pressupõe, por sua vez, a existência
de certa especialização produtiva dos lugares.

Vejamos a trajetória dos mercados externos. Originalmente, o comércio exterior esteve


ligado à aventura, exploração, caça, pirataria e guerra. A partir dele, os mercados se
desenvolveram em todos os lugares onde os transportadores tinham de parar, nos vaus, portos
marítimos, cabeceiras de rios ou nos pontos onde as rotas de expedições se encontravam.
Podemos pensar no sistema de intercâmbios existentes na bacia do Mar Mediterrâneo no
mundo romano. Tecidos de Constantinopla, de Odessa, de Antioquia, de Alexandria, vinhos,
azeites e especiarias da Síria, papiros e trigos do Egito, da África e da Espanha, vinhos da Gália
e da Itália circulavam, unindo as duas grandes regiões do Império, o Oriente e o Ocidente.

O caso de Marselha, citado por Henry Pirenne (1925, p. 19) como o grande porto da
Gália até o começo do século VIII, pode ser um exemplo:

O movimento econômico de Marselha propaga-se naturalmente


ao hinterland [interior] do porto. Sob a sua influência, todo o
comércio da Gália se orienta para o Mediterrâneo. Os impostos mais
importantes do reino dos francos estão circunscritos aos arredores
da cidade: Fos, Arles, Tolun, Sorgues, Valência, Viena e Avinhão. Eis
uma prova evidente de que as mercadorias desembarcadas na cidade
eram expedidas para o interior. Pelo curso do Ródano e do Sena, assim
como pelas vias romanas, atingiam o norte do país.

O comércio de longo curso também exerceu grande influência no renascimento


econômico da Europa ocidental a partir do século XI, fundamentalmente sob a ação de dois
centros: Veneza e Flandres. Já no decorrer do século XIII, toda a Europa, do Mediterrâneo
ao Báltico e do Atlântico à Rússia, achava-se aberta ao grande comércio. Lãs finas da
Inglaterra, vinhos do Reno, especiarias e sedas do Oriente, armas da Lombardia, açafrão
e prata da Espanha, couros da Pomerânia, tecidos acabados de Flandres, ícones religiosos
e objetos devocionais de vários centros de arte circulavam por rotas marítimas e fluviais
avançando para o interior do continente. Esse comércio está sempre ligado à vida urbana,
com a atividade dos mercadores dinamizando o mundo dos negócios.
121
Unidade II

Pirenne (1925) atribui aos portos – “lugar por onde se transportam mercadorias,
portanto um ponto particular ativo de trânsito” – um papel central no estabelecimento
de cidades na Europa Ocidental. Já Lewis Mumford (1961) inverte essa equação, insistindo
em que o comércio de longa distância não produziu cidades medievais, mas promoveu seu
crescimento, como em Veneza, Gênova, Milão, Arras, Bruges, embora tenham sido fundadas
para outras finalidades:

A verdade, pois, está na interpretação contrária a Pirenne: foi a


revivescência da cidade protegida que ajudou a reabrir as rotas
de comércio regionais e internacionais e conduziu à circulação
transeuropeia dos bens excedentes, particularmente os artigos
de luxo, que podiam ser vendidos com altos lucros aos príncipes e
magnatas, ou os artigos suficientemente escassos no suprimento
local para serem pagos a bons preços (MUMFORD, 1961, p. 280).

Independentemente da origem das cidades medievais, o importante é destacar sua


relação com seus mercados externos e o modo como eles ajudavam a desenhar sua
topologia. O comércio a longa distância permitiu que as cidades estendessem suas trocas
bem além de suas muralhas, mobilizando parte importante da sociedade feudal e instalando
uma tendência à ampliação do comércio que não teria retorno nos próximos séculos. Não
apenas os grupos de mercadores, mas também as instituições feudais, especialmente a
Igreja, interessavam-se pelo comércio:

Já no século VIII os agentes dos mosteiros franceses mostravam-se


ativos em Flandres, comprando lã para manufatura. No comércio
de vinho da Borgonha, eram os mosteiros os centros importantes, e
as abadias no Loire e no Sena possuíam uma frota de embarcações
fluviais para executar seu comércio. Na Inglaterra, o mais antigo
estabelecimento de mercadores alemães parece ter sido uma ordem
de monges. Os cistercienses estavam por toda parte empenhados
ativamente no comércio de lã com mercadores flamengos e italianos
(DOBB, 1963, p. 105).

Claro que esse processo não foi linear, nem livre de conflitos. Por um lado, praticava-
se a pirataria como se fosse uma atividade industrial; os naufrágios eram constantes;
o mau estado dos caminhos tornava difícil e lento o trânsito terrestre. Por outro, a
atitude dos príncipes perante o comércio nem sempre era estimuladora. Criaram-se
alguns pedágios, que funcionavam como impostos afastados, a maioria das vezes, de
um propósito público.

A portagem da Idade Média, usurpada pelos príncipes territoriais,


tornou-se um mero direito fiscal que gravava de forma brutal o
trânsito. Nem um centavo do dito imposto se gastava em reparar os
caminhos ou em reconstruir as pontes (PIRENNE, 1933, p. 94).
122
CIÊNCIA POLÍTICA

Pode-se falar, outrossim, de uma geopolítica mediada pelo comércio, na qual as cidades
têm uma participação crescente. Por exemplo, com o objetivo de preservar os interesses
dos mercadores ao longo da costa do Mar Báltico, um grupo de cidades sob a liderança de
Lubeck formou uma associação comercial, conhecida como a Liga Hanseática, que chegou
a aglutinar numerosos centros urbanos. Mas as cidades não eram apenas protetoras dos
mercados, eram também um meio de impedi-los de se expandirem. Segundo Pirenne (1933,
p. 149), “entre as cidades italianas, as guerras são constantes e cada uma se empenha
em destruir o comércio das rivais, para aproveitar-se de sua ruína”. É assim que “essa
confederação de cidades marítimas alemãs, que oferece um contraste tão marcante com as
contíguas guerras das cidades italianas do Mediterrâneo” (p. 155), permite observar a dupla
relação das cidades medievais com os mercados, que elas tanto envolviam como impediam
de se desenvolver.

O Estado territorial, o mercado nacional

Os mercados a longa distância e os mercados locais não diferiam apenas em tamanho,


eles funcionavam separados dentro dos limites da cidade medieval. O comércio local
estava sujeito a uma rigorosa regulamentação (no caso dos alimentos, era exigida
publicidade obrigatória das transações e exclusão de intermediários e, no caso dos
artefatos industriais, a produção era regulada de acordo com as necessidades). Desde o
século XII promulgaram‑se pregões e ordenanças cujos textos versavam sobre:

[...] proibição de “recortar” os víveres, isto é, de comprá-los ao


camponês antes de chegarem à cidade; obrigação de levar diretamente
todos os gêneros ao mercado e expô-los [lá] até certa hora, sem
poder vendê‑los a pessoas que não fossem burgueses; proibição aos
carniceiros de conservar carne nos porões ou aos padeiros de obter
mais trigo do que o necessário para o seu próprio forno; proibição,
enfim, a cada burguês de comprar mais do que o suficiente para si e
para a família (PIRENNE, 1933, p. 181).

Tomavam-se essas medidas a fim de controlar o comércio e impedir a elevação dos


preços. Já o comércio a longa distância não era tão estritamente regulado, fugindo bastante
ao controle das administrações municipais. As grandes feiras, que desempenharam um papel
de primeira ordem enquanto prevaleceu o comércio errante, são um bom exemplo disso:
“O direito reconheceu às feiras uma situação privilegiada. O terreno em que se realizam é
protegido por uma paz especial, que estabelece castigos particularmente severos em caso
de infração” (PIRENNE, 1933, p. 105). Nos mercados locais, a única proibição que afetava
o mercador estrangeiro era a venda a varejo, podendo participar neles somente através de
corretores. Por sua vez, a produção para a exportação era apenas formalmente supervisada
pelas corporações de artesãos.

A separação estrita entre o comércio local e o de exportação não permitia, por sua vez,
espalhar essas práticas muito além das muralhas, impedindo a ampliação dos mercados:
123
Unidade II

Mantendo o princípio de um comércio local não competitivo e um


comércio a longa distância igualmente não competitivo, levado a
efeito de cidade a cidade, os burgueses dificultaram, por todos os
meios ao seu dispor, a inclusão do campo no compasso do comércio e
a abertura de um comércio indiscriminado entre as cidades e o campo
(POLANYI, 1944, p. 78).

Na prática, isso significa que as cidades fortificadas levantavam todos os obstáculos


possíveis para que os negócios e o comércio se difundissem pelos territórios vizinhos.

Os mercados medievais apresentavam-se como uma série de pontos, ficando muitos


vazios, à margem dos tráficos. Apesar de os mercadores organizarem ligações e constituírem
linhas de troca, sua ação não chega a espraiar-se como uma mancha sobre os territórios.
Não se criam superfícies mercantis contínuas: “O mapa comercial da Europa nesse período
mostraria corretamente apenas cidades, deixando em branco o campo – este pareceria não
existir no que concerne ao comércio organizado” (POLANYI, 1944, p. 77). Essas cidades,
que eram a expressão político-administrativa dos mercados, levantaram todo tipo de
obstáculos à formação de um mercado interno: sua preocupação era assegurar o caráter
não competitivo – isto é, monopólico – do comércio municipal e de longa distância.

Até a época de Revolução Comercial, o que pode nos parecer


como comércio nacional não era nacional, e sim municipal. Os
hanseáticos não eram mercadores germânicos; eles eram uma
corporação de oligarcas comerciais, sediados em diversas cidades
do mar do Norte e do Báltico. Longe de “nacionalizar” a vida
econômica germânica, a Hansa deliberadamente isolava o interior
do comércio. O comércio de Antuérpia ou Hamburgo, Veneza ou
Lyon não era, de forma alguma, holandês ou germânico, italiano
ou francês (POLANYI, 1944, p. 77).

Quando e como surge, então, o mercado nacional? Ele não é uma consequência direta,
“natural”, dos mercados já existentes? Por ser considerado um mercado intermediário, que
não se desenvolve espontaneamente a partir dos mercados anteriores, tanto locais quanto
a longa distância?

É com a formação dos Estados territoriais que chega seu processo correlato: a formação
dos mercados nacionais. São aqueles, e não as cidades-Estado, que facilitam a existência
de um sistema econômico integrado em grandes unidades territoriais. Criam-se superfícies
mercantis contínuas e delimitadas.

Talvez seja a contiguidade, como atributo central do Estado territorial, uma das escolhas
políticas de maior influência na história dos mercados. Para Camille Vallaux (1914, p. 309),
“não se registra transformação tão profunda nem tão rica em consequências, na história do
globo, como o advento da contiguidade sem interrupção dos Estados”.
124
CIÊNCIA POLÍTICA

Longe de ser uma evolução espontânea, trata-se de um processo de caráter basicamente


político, que acarreta oposições e confrontos:

O mercado nacional, finalmente, é uma rede de malhas irregulares,


frequentemente construída a despeito de tudo: a despeito das cidades
demasiado poderosas que têm sua política própria, das províncias que
recusam a centralização, das intervenções estrangeiras que acarretam
rupturas e brechas, sem contar interesses divergentes da produção e
das trocas, pensemos nos conflitos da França entre portos atlânticos
e portos mediterrânicos, entre interior e frente marítima. A despeito
também dos enclaves de autossuficiência que ninguém controla
(BRAUDEL, 1986, p. 265).

Podemos perguntar-nos, com Richard Rosecrance (1986), por que cidades como Veneza,
Gênova e os membros da Liga Hanseática, que acumularam grandes riquezas comerciando e
navegando por diferentes lugares do mundo, não formaram uma confederação de pequenos
Estados mantida por um comércio oceânico? Por que, então, não surgiu uma concepção
linear da organização estatal em lugar daquela baseada na superfície, na contiguidade,
fundamento do Estado territorial?

As cidades-Estado enredaram-se em conflitos de competência entre elas mesmas; o


comércio não era completamente livre nem carecia de obstáculos, e consequentemente
cada uma delas desejava reservar-se determinadas zonas para monopolizar seu comércio
ou para dispor do domínio sobre determinadas fontes de produtos-chave. As cidades mais
poderosas não raro tratavam de conquistar suas vizinhas mais fracas para suprimir um
mercado rival:

[...] uma das razões pelas que não se estabeleceu ao início da


Idade Moderna uma organização linear dos países foi porque as
cidades‑Estado comerciais mantiveram entre elas uma guerra
contínua e não foram capazes de estabelecer um esquema estável e
duradouro de cooperação (ROSECRANCE, 1986, p. 91).

A base puramente local das cidades muradas, a despeito do comércio a longa distância
que elas exerciam, é apontada por Mumford como uma de suas fraquezas:

Para que exercessem controle monopolístico dentro de seus muros,


era essencial que fossem capazes de governar o reino também fora
deles: isso implicava o hábito de harmonizar seus próprios interesses
com os do campo e, com o tempo, de provocar uma organização
federada de regiões em torno de cidades. Contudo, as normas reais
adotadas pelas mais poderosas e dinâmicas cidades medievais eram
agressivamente encaminhadas em direção oposta (MUMFORD,
1961, p. 366).
125
Unidade II

Na Europa ocidental o comércio interno ou nacional foi criado, sobretudo, por uma
vontade política. O Estado, que lentamente ia adquirindo seu caráter territorial, começou
a se projetar como o instrumento da “nacionalização” do mercado e criador do comércio
interno. Por sua vez, e em contraste com o comércio externo e o local:

[...] o comércio interno é essencialmente competitivo. Além das trocas


complementares, ele inclui um número muito maior de trocas nas
quais as mercadorias similares, de fontes diferentes, são oferecidas em
competição umas com as outras. Assim, somente com a emergência
do comércio interno ou nacional é que a competição tende a ser
aceita como princípio geral de comércio (POLANYI, 1944, p. 74).

Podemos pensar que à divisão espacial do trabalho e à especialização produtiva – base


dos mercados locais e externos – soma-se uma competitividade entre os lugares, trazida com
a criação dos mercados nacionais. Os limites que impõe o Estado territorial contribuiriam,
também, para esse processo.

Pouco a pouco foi-se estabelecendo, entre os séculos XVI e XVIII, a correspondência


entre estruturas territoriais, políticas e econômicas em bases nacionais. “A soberania
territorial tornou-se, no século XVII, e continua a ser, a base de um certo status de igualdade
entre os Estados, como a que deve existir entre os soberanos” (GOTTMAN, 1973, p. 54). E
esse processo foi acompanhado, de forma crescente, pela implementação das ideias e das
práticas do mercantilismo.

Fonte: Arroyo (2004, p. 49-57).

A suspeição do Estado é um caminho necessário, visto que a inércia, nesse caso, pode ser bastante
incômoda; o que é mais alarmante num Estado intensamente privatizado como o brasileiro. Milton
Santos (1994) dá-nos uma pista sobre a face problemática da institucionalização do poder via Estado.
A seguir destacamos um trecho do livro Técnica, Espaço, Tempo. Globalização e Meio Técnico-Científico
Informacional (1994).

Margem – E a questão do Estado e da nação?

Milton Santos – Há aí dois pontos. Uma coisa é dizer que Estado e nação
acabaram. Outra é discutir o que é o Estado. Nós, ocidentais e brancos, admitimos
a visão de Estado que vem da Europa, não temos a visão de um Estado de uma
tribo africana. Será que hoje a dimensão do Estado industrial, que chamaríamos
antes de supranacional, que tem o poder de impor regras a que não se pode
desobedecer, estaria acima do próprio Estado? O que representam hoje o Banco
Mundial, o FMI, a Unesco, o Grupo de Banqueiros de Paris etc.? Será que eles têm
a função tática de impor normas que terão que ser aceitas de uma forma ou de
outra? Porque o mundo se tornou global, então se globalizaram as relações, se
desmanchou aquela arquitetura política anterior, e se superimpõe uma estrutura
126
CIÊNCIA POLÍTICA

de nível mais alto? O discurso então é que não se tem mais o Estado, não se
precisa mais do Estado. Na verdade, precisa-se menos. Por quê? Pelo grau de
racionalidade técnica que a nossa sociedade atingiu. Aí reaparece a geografia:
o território também se tornou racional. No caso do Brasil, o território que está
em torno de São Paulo – nos estados de São Paulo, Paraná, Mato Grosso do
Sul – é organizado de forma extremamente racional, o que facilita o seu uso
racional pelos vetores hegemônicos da política, da sociedade, da economia.
Nesse contexto, realmente, o Estado não é tão necessário. É a “mão invisível”,
que se realiza através do espaço obediente, das grandes empresas e das grandes
organizações internacionais. É a volta da “mão invisível” do Smith, não é...?
(SANTOS, 1994, p. 179-180).

Pensando nas determinações históricas, nos atavismos das instituições e do conteúdo social que
as engendraram, temos, segundo as próprias questões de Milton Santos, movimentos com avanços e
retrocessos como parte de sua condição político-cultural, haja vista as forças em “acordos” e confrontos
no jogo social serem de cooperação sofrível.

Margem – Hoje existe um movimento interessante com relação à questão


das fronteiras. Temos a formação da Comunidade Europeia, temos as
questões nacionalistas na extinta URSS, parece que há uma confusão
generalizada envolvendo o problema. No seu livro Pensando o Espaço
do Homem, do início dos anos 1980, o senhor frisava a importância das
fronteiras e da defesa. Como o senhor abordaria hoje a questão?

Milton Santos – De um lado temos o Estado passando para este outro patamar
de que falávamos anteriormente. De outro, creio que o Estado‑nação continua
sendo uma unidade extremamente importante para o nosso estudo, em
virtude das heranças. Há uma série de heranças que são resultado da presença
do Estado, como o nosso comportamento etc. Mas também porque questões
como a das classes sociais são ligadas a uma arquitetura do Estado‑nação.
O cenário e os preços não são internacionais. O Estado-nação colocou o dedo
durante muito tempo nessas questões. Além do mais, o Estado teve um papel,
em certo momento, na consolidação de nações que continuam tendo peso.
Assim, o que está se desmantelando na Europa? É uma certa definição de
fronteiras. Mas será que isso vai permitir que a Europa se transforme numa
enorme geleia? Será que particularidades enraizadas não vão durar ainda
muito tempo? O que fica em cada país? Antes havia a fronteira, o dinheiro, a
língua, a nação. Acho que muita coisa vai continuar pesando ainda.

Margem – A quebra de fronteiras e as novas composições fazem então a


categoria de região voltar a ser discutida?

Milton Santos – É importante pensar como essa ideia de desterritorialização


se manifesta neste fim de século. Isso tem que ser pensado, porque o ataque à
127
Unidade II

fronteira hoje não acontece necessariamente por divisões. Existem outras formas
de desagregar um país. Sobretudo porque, muito mais do que antes, é possível
comandar, a distância, ações econômicas e políticas de forma dissimulada.
Portanto, a questão das fronteiras ganha uma nova dimensão, a partir de uma
nova definição do que seria a fronteira após esta invasão, por exemplo, pela
informação, pela mídia.

Margem – As fronteiras terão então perdido a sua materialidade? É possível


pensar nisto?

Milton Santos – Eu creio que não. Creio que a maior prova da materialidade
da fronteira é o contrabando (risos). O contrabando, as free-shops, as free‑zones
representam o atrito de duas moedas e de dois níveis de salários diferentes. Daí
os países serem obrigados a fazer as free-zones. O Brasil, que às vezes é precoce,
foi quem descobriu isso. Porque Manaus é uma cidade que responde a essa nova
materialidade da fronteira. É uma free‑zone destinada, de um lado, a ajudar o
Norte a se desenvolver e, de outro, a vender aos nossos bons vizinhos.

Margem – Seria então uma nova forma de fronteira, dada pelas moedas de
cada lado?

Milton Santos – Sim, pois o Estado mantém o monopólio da moeda. Na


Europa a última dificuldade a ser superada é exatamente esta. Como é que
fica se você aliena o monopólio da moeda? E mesmo assim você não muda
tudo. Eu não sei se o salário francês vai se igualar ao da Suíça, ou ao da
Espanha, não sei. As questões das classes e do salário, entre outras coisas, são
ligadas ao Estado-nação, e isso não se desmancha rapidamente. São temas
que temos que rever completamente. Perguntas como essas são desafios que
temos que aceitar como fundamentais (SANTOS, 1994, p. 180-181).

A atribuição de avanços e recuos políticos a determinados processos, e seus idealizadores, depende


dos pontos de vista e do envolvimento do observador, assim como a União Europeia foi rejeitada
pelo movimento de desintegração, o Brexit. Do mesmo modo, a exaltação ao ciberespaço (do tráfego
em bits) deve ser ponderada com as considerações sobre a completariedade da verdadeira sede dos
acontecimentos, o espaço geográfico (dos deslocamentos de átomos). Informações e corpos estão
associados nos objetos e na vida psicossocial, nos lugares, nas regiões e nas nações.

Nesse cenário, as soluções que a institucionalização do poder como Estado oferecem tornam-se
incômodas para as próprias utopias liberais (o liberalismo tem dificuldades na relação com o Estado,
requerendo até mesmo o neoliberalismo para dar conta das mudanças), bem como sua rejeição é
angustiante para as utopias libertadoras e libertárias (comunismo e anarquismo).

Vamos explorar o campo político internacional entre os Estados.

128
CIÊNCIA POLÍTICA

Resumo

Nesta unidade, estudamos as noções de Estado-nação, seu papel


como agente político e econômico privilegiado, bem como as reflexões
sobre sua realidade e as críticas a ele dirigidas. As teorias do Estado
colocam-no como figura central no campo das relações internacionais.
Sua constituição jurídica, política, geográfica, econômica e cultural
supõe as dimensões populacionais ou demográficas, espaciais ou
territoriais, com suas riquezas ambientais, seu caráter soberano e as
fronteiras de seu arcabouço.

Depois, acentuamos as distinções entre fronteira e limites, algo


importante para entendermos o Estado.

Conhecemos algumas visões de desenvolvimento, a convencional e as


alternativas, que estão na base do tratamento do Estado-nação.

Nesse contexto, destacamos as implicações sobre população,


demografia, povos e nação. Apresentamos o debate entre aqueles cuja
população equivale às reduções demográficas e aqueles que a tomam de
modo mais complexo, como povo (ou povos), por exemplo. As nações são
resultado de histórias de relacionamentos mais ou menos difíceis entre os
povos formadores.

Vimos que o Estado-nação é uma solução histórica de organização que,


como costuma acontecer, torna-se também um problema, carregando esse
problema para o campo internacional quando se relaciona com os demais
Estados territoriais.

Exercícios

Questão 1. Considere os itens a seguir:

I – Tem como característica o empreendimento de uma série de guerras, com o objetivo de dominar
a Europa.

II – Tem como característica a concentração e centralização de poderes num determinado território,


tendo como referencial a figura do monarca.

III – Tem como característica a ideia de que um corpo escolhido por cidadãos age em nome destes, e
tal corpo deve ser escolhido por meio de um procedimento eleitoral racionalmente estabelecido.

129
Unidade II

Sobre o Estado absolutista, é correto apenas o que se destaca em:

A) I e II.

B) Todos os itens estão corretos.

C) I e III.

D) II e III.

E) Nenhuma das alternativas anteriores está correta.

Resposta correta: alternativa A.

Análise das afirmativas

I) Afirmativa correta.

Justificativa: Luís XIV (1638-1715), rei da França (1643-1715), foi um dos maiores representantes do
Estado absolutista. Conhecido como Rei Sol, impôs um governo absolutista na França e empreendeu uma
série de guerras, com o objetivo de dominar a Europa. Seu reinado caracterizou-se pelo florescimento
da cultura francesa.

II) Afirmativa correta.

Justificativa: no Estado absolutista, o monarca representava a maior autoridade e seu principal


objetivo era manter a concentração e centralização de poderes.

III) Afirmativa incorreta.

Justificativa: em tempos de Estado absolutista, o procedimento eleitoral de escolha inexistiu para os


cidadãos. Na monarquia, a transmissão de poder tem ocorrido de forma hereditária.

Questão 2. Leia o texto a seguir de Bobbio, Matteucci e Pasquin (1998):

“Para a nossa geração, reentra agora, no seguro patrimônio do conhecimento científico, o fato de
o conceito de ‘Estado’ não ser um conceito universal, mas serve apenas para indicar e descrever uma
forma de ordenamento político surgida na Europa a partir do século XIII até o fim do século XVIII ou
início do XIX, na base de pressupostos e motivos específicos da história europeia e após esse período se
estendeu – libertando-se, de certa maneira, das suas condições originais e concretas de nascimento – a
todo o mundo civilizado. [...] Em tal sentido, o ‘Estado moderno europeu’ nos aparece como uma forma
de organização do poder historicamente determinada e, enquanto tal, caracterizada por conotações que
a tornam peculiar e diversa de outras formas, historicamente também determinadas e interiormente
homogêneas, de organização do poder”.
130
CIÊNCIA POLÍTICA

As alternativas a seguir destacam o Estado moderno e suas principais características, EXCETO:

A) A impessoalidade do comando político.

B) A racionalização da gestão do poder.

C) A territorialidade da sociedade.

D) A democracia representativa.

E) A restrição dos direitos humanos.

Resolução desta questão na plataforma.

131
Unidade III

Unidade III
7 A POLÍTICA NO ÂMBITO INTERNACIONAL

Mas os preconceitos contra a política, a concepção de a política ser, em seu


âmago interior, uma teia feita de velhacaria de interesses mesquinhos e
de ideologia mais mesquinha ainda, ao passo que a política exterior oscila
entre a propaganda vazia e a pura violência, têm data muito mais remota do
que a invenção de instrumentos com os quais se pode destruir toda a vida
orgânica da face da Terra. No que diz respeito à política interna, são pelo
menos tão antigos quanto a democracia de partidos – quer dizer, pouco
mais de 100 anos –, a qual alega, pela primeira vez, representar o povo na
história mais recente, se bem que o povo jamais acreditou nisso. A política
externa surgiu, de fato, na primeira década da expansão imperialista, por
volta da virada do século, quando o Estado nacional – não por incumbência
da nação, mas sim por causa de interesses econômicos nacionais – começou
a levar o domínio europeu para todo o planeta. Mas o verdadeiro ponto
principal do preconceito corrente contra a política é a fuga à impotência, o
desesperado desejo de ser livre na capacidade de agir, outrora preconceito
e privilégio de uma pequena camada que, como lorde Acton, achava que
o poder corrompe e a posse do poder absoluto corrompe em absoluto.
O fato de essa condenação do poder corresponder por inteiro aos desejos
ainda inarticulados das massas não foi visto por ninguém com tanta clareza
como Nietzsche, em sua tentativa de reabilitar o poder – se bem que ele
também confundisse, ou seja, identificasse, bem ao espírito da época, o
poder impossível de um indivíduo ter, visto ele surgir somente pelo agir em
conjunto de muitos, com a força cuja posse qualquer pessoa pode deter
(ARENDT, 2002, p. 27-28).

No tom dado por Hannah Arendt (2002), temos a verdadeira medida da expansão levada a cabo
pelos aventureiros europeus. A política externa como extensão do “impulso” político direto, de um
projeto de europeizar o mundo com seus joint ventures de armadores, banqueiros e coroas, promovendo
um mundo maior, expandindo-se como uma enxurrada que carrega a todos.

Considerando a noção de desenvolvimento corrente e majoritária, adota-se o estilo


eurocêntrico das mudanças sociais (crescimento, modernização e desenvolvimento), que é
difundindo por formas e inovações às franjas ou periferias do sistema internacional, isto é, para
o conjunto dos países subordinados às nações mais ricas. Muitas vezes o desenvolvimento é um
fim em si mesmo.

132
CIÊNCIA POLÍTICA

7.1 Colonização e autodeterminação: decolonização

O colonialismo e o imperialismo são os principais instrumentos da difusão das experiências europeias


e, mais tarde, também estadunidense.

Trataremos dos aspectos mais destacados da “história do mundo determinado”: generalização do


desenvolvimento único de matriz europeia (esta, a determinante), com ajuda do colonialismo e do
imperialismo, que serão estudados adiante.

A linha básica da apresentação desse modelo de desenvolvimento leva em conta os seguintes eventos
instauradores e condutores da modernidade: as revoluções promovidas pela burguesia, viabilizadas pela
criação dos Estados nacionais, o campo das relações interestados e a expansão comercial acentuada com
as grandes navegações e correspondentes sistemas de apropriação de riquezas, como mercantilismo,
colonialismo, neocolonialismo, imperialismo e globalismo, cujos sentidos obedecem à diretriz elementar da
reprodução ampliada de valor: movimento orgânico de capital, nas formas dinheiro-mercadoria‑dinheiro
com lucro (D-M-D). Tais regimes de produção e apropriação são tratados aqui como organizações históricas,
do ponto de vista dos agentes em busca da realização da racionalidade capitalista, isto é, da expansão
socioespacial das relações regidas pela lógica da mercadoria, desses valores no mercado, ao mesmo tempo
que ocorre a concentração dos agentes, de detentores a zeladores do capital.

Parece oportuna a lembrança do discurso do presidente dos Estados Unidos, Franklin Delano
Roosevelt, no Congresso Nacional, em 1938, preocupado com os impactos da “concentração opressora”
da livre iniciativa estadunidense.

Entre nós, atualmente, está se desenvolvendo uma concentração de poder


particular na história [...] Hoje muitos americanos perguntam uma coisa
difícil de responder: Esse clamor de que nossas liberdades estão ameaçadas
é justificado pelos fatos? [...] A resposta é que, se existe uma ameaça, ela
provém do poder econômico concentrado, que está lutando para dominar
o nosso governo democrático [...] Essa mão pesada, representada pelo
controle integrado, financeiro e administrativo, abate-se sobre grandes áreas
estratégicas da indústria americana. O pequeno negociante infelizmente é
colocado numa posição cada vez menos independente. A empresa privada
está deixando de ser empreendimento livre para se tornar um grupo de
coletivismos particulares; disfarçada de sistema de livre empresa, calcada
no modelo americano, está na verdade transformando-se num sistema
mascarado de cartel, segundo modelo europeu [...] Nenhum povo, e muito
menos um povo que tem as nossas tradições de liberdade pessoal, suportará
essa lenta erosão das oportunidades oferecidas ao homem comum, ou a
sensação deprimente de impotência sob o domínio de alguns homens, fatos
que estão obscurecendo nossa vida econômica (SANCHEZ, 1999, p. 15).

Algumas das ideias de Singer (2004) e de Dowbor (1982) estão presentes no ponto de partida
(no questionamento sobre os envolvidos e a finalidade do desenvolvimento) e na chegada (na politização
133
Unidade III

das alternativas). Na partida, ao identificar as necessidades fundamentais de nosso desenvolvimento,


e no desfecho de suas obras com suas ideias de economia social e solidária. Eles não estão sós, pois
nomes como Enrique Leff (sociólogo), Ricardo Abramovay (economista) e José Eli Veiga (agrônomo e
economista) integram o rol dos que se preocupam com o futuro comum, sustentável de fato.

Assim, da derrocada do feudalismo à consolidação e aceleração do capitalismo, temos um longo


período de construção material (aparato produtivo ou território) e institucional (leis, tratados, protocolos
de intenções, acordos).

A perda do poder do senhor feudal e da Igreja acarretou ganhos de importância da nacionalidade


para as populações europeias, tendo como símbolo o monarca. Estava associada e foi motivada pela luta
por territórios e pela manutenção da identidade da nação pela língua, moeda e legislação nacionais,
além de por conquistas decorrentes da centralização do poder nos Estados-nação.

A Revolução Industrial na Inglaterra teve desdobramentos no século XIX, em especial no que diz
respeito à crise do capitalismo entre 1873 e 1893 e ao neocolonialismo. Como momentos agudos de
crises, citamos as duas Guerras Mundiais e a Crise de 1929.

A industrialização inglesa apoiou-se no setor têxtil, siderúrgico e de mineração de carvão.


Totalmente mecanizada, a fabricação de tecidos de algodão (acelerada pela utilização da lançadeira
volante e do tear mecânico) permitiu o incremento da produção e a exportação do produto. A
siderurgia possibilitou a construção de estradas de ferro, e a mineração do carvão (combustível da
máquina a vapor) acompanhou a expansão.

O imperialismo na África e na Ásia ocupava a agenda das potências ocidentais europeias e dos
Estados Unidos.

França Alemanha
Inglaterra Itália
Portugal Espanha
Bélgica Países
independentes

Figura 2 – A ocupação da África pelas potências europeias no século XIX

134
CIÊNCIA POLÍTICA

Ou, ainda, na gravura:

Figura 3

A Ásia esteve bastante isolada dos europeus durante séculos. Os contatos comerciais, travados desde
a época moderna, restringiam-se a alguns portos.

No século XIX, essa situação se alterou e as potências estrangeiras passaram a disputar entre si para
ver quem conseguiria estabelecer zonas de influência no continente.

O novo colonialismo atingiu a Ásia com a dominação inglesa sobre a Índia. A partir de 1763, o
país foi administrado pelos ingleses, através da Companhia das Índias, que empreendeu a exploração
econômica e estendeu a ocupação para o interior. Em 1858, estourou a Revolta dos Cipaios, um
movimento de soldados hindus que serviam nos exércitos coloniais e lutavam para ter os mesmos
privilégios dos soldados ingleses. O levante, duramente reprimido, adquiriu aspectos sociais e assumiu
feições nacionalistas.

135
Unidade III

Legenda
Potências coloniais em 1870

Ingleses

Franceses

Portugueses

Otomanos

Holandeses

Espanhóis

Russos

1846 Data do controle europeu


Estados principescos da Índia

Portos chineses abertos às potências imperialistas a partir de 1842

Figura 4

Crescia o interesse europeu pelos mercados asiáticos, que relutavam em abrir seus portos ao
comércio estrangeiro. As investidas diplomáticas europeias para penetrar nesses países se alternavam
com a força das armas.
136
CIÊNCIA POLÍTICA

Na China, a Guerra do Ópio (1840-1842), motivada pela destruição de carregamento de ópio dos
ingleses que vinham fazendo esse comércio na região, permitiu à Inglaterra assumir o controle dos
importantes portos de Hong Kong, Xangai e Nanquim.

Com tais acontecimentos, outras expedições militares dos europeus levaram à abertura de novos
portos. A China acabou sendo dividida em áreas de influência entre Inglaterra, Rússia, Alemanha, França,
Itália e Japão. Em reação a essa invasão, uma sociedade secreta passou a efetuar atentados em ferrovias,
matando missionários e diplomatas ocidentais. Originou-se, assim, a Guerra dos Boxers (1898-1900),
que foi reprimida por tropas ocidentais, intensificando-se a influência europeia na China.

O Japão havia ficado isolado do Ocidente, pois receava ser dominado (invadido e controlado) pelas
potências europeias. Foi por essa razão que começou a estabelecer os primeiros tratados comerciais com
os EUA. A partir de 1860, japoneses foram enviados à Europa e aos EUA para estudar principalmente
ciência e tecnologia. Com isso, foi possível iniciar um processo de industrialização e modernização do
país, levando-o a participar da corrida imperialista na região e obter influência sobre parte da Coreia e
da Manchúria, área da porção nordeste da China.

A Revolução Industrial britânica não teria ocorrido sem a contribuição das condições fornecidas pela
indústria do algodão, ou seja, sua familiaridade com o ambiente fabril (e a necessidade dele derivada de
manutenção física das fábricas), o emprego de numerosa mão de obra e seu peso no montante total do
comércio inglês:

A indústria algodoeira foi assim lançada, como um planador, pelo empuxo


do comércio colonial ao qual estava ligada; um comércio que prometia uma
expansão não apenas grande, mas rápida e sobretudo imprevisível, que
encorajou o empresário a adotar as técnicas revolucionárias necessárias
para lhe fazer face. Entre 1750 e 1769, a exportação britânica de tecidos de
algodão aumentou mais de dez vezes (HOBSBAWM, 2010, p. 68).

Até mesmo a Índia deixou de representar um continente exportador e passou a ter o papel de
comprador dos produtos de algodão, já que perdia a corrida industrial. Pela primeira vez, invertia-
se a relação de comércio mantida por um longo período entre Oriente e Ocidente. À Inglaterra,
coube o monopólio do mercado exportador, sobretudo por meio dos acessos obtidos nas colônias,
que, por sua vez, passaram a depender das importações britânicas – ainda mais em períodos de
guerra na Europa. Hobsbawm (2010) nos relata que, em 1814, a exportação inglesa era de 4 jardas
de algodão para cada 3 jardas usadas internamente; em 1850, essa proporção subiu de 13 para
18 jardas

Do ponto de vista urbano-industrial, a paisagem inglesa transformou-se profundamente. Centenas


de fábricas se espalharam pelas cidades, e essas cidades aglomeravam-se cada vez mais.

As grandes potências avaliaram que a conquista de novas fatias de mercado só aconteceria caso
houvesse briga entre si.

137
Unidade III

Contudo, como tais nações não queriam brigar, decidiram não competir. Você deve se
perguntar quais foram as estratégias formuladas pelas grandes empresas. Elas resolveram criar
trustes, grupos que reuniam entidades coligadas que recebiam parcelas dos lucros conforme a
porcentagem de participação. Quando os trustes foram declarados ilegais, criou-se o dispositivo
que permitia às organizações a compra de ações de outras empresas, em um verdadeiro processo
de fusão. Nos EUA,

só na manufatura e na exploração de minério, ocorreram 43 fusões em 1895


[...]; 26 fusões em 1896; e 69 em 1897. Em 1898, havia 303 – e finalmente,
em 1899, um clímax de 1208 fusões combinavam 2,26 bilhões de dólares em
ativos corporativos (HEILBRONER; MILBERG, 2008, p. 111).

Com o objetivo de firmar monopólios, o capitalismo (monopolista) tinha que resolver problemas, o
que explica a sucessão do colonialismo (produção) para o neocolonialismo (produção e consumo).

A premência em expandir os horizontes fez com que esses países dirigissem seus olhares para
territórios estrangeiros não industrializados. Os países centrais, interessados em controlar seu
próprio suprimento de matérias-primas para a produção monopolista, não mais encontravam
a segurança devida em seu fornecimento por meio das trocas comerciais existentes. Fazia-se
necessário para a manutenção da exploração capitalista, então, controlar as regiões de onde
provinham os recursos primários. Havia a preocupação, também, de aumentar a demanda cujo
consumo escoaria a produção em larga escala dos países industrializados. A desigualdade de
renda interna desses países não permitia a definição de um mercado que se encarregasse de
consumir a produção, e a competição internacional era inerente à exportação.

Assim, o neocolonialismo servia e respondia à “necessidade como frente de investimento dos


excedentes econômico-financeiros das economias industriais”. Daí, nessas condições, “a melhor
saída que se apresentava era a conquista de mercados externos, ainda que fosse pelo comércio, não
envolvendo dominação política”, ao menos não pelas armas, isto é:

O imperialismo levou à formação de grandes impérios coloniais [...], mas


essa foi apenas uma de suas formas de ação. Em muitas ocasiões não era
possível ou vantajoso submeter politicamente uma determinada região
ou país, às vezes nem sequer necessário. A evolução das forças produtivas
nas economias industrializadas fora tão grande e tão rápida, e o poderio
econômico desses países crescera de tal forma que as outras nações,
quisessem ou não, haviam passado a depender deles, e de seus grandes
monopólios (MAGALHÃES FILHO, 1991, p. 331).

Explorar economicamente países periféricos, entretanto, não era tarefa simples ou justa. A ação
capitalista trouxe consigo a responsabilidade pela dependência comercial, pela subjugação política e,
por vezes, pela eliminação da cultura e da população locais.

138
CIÊNCIA POLÍTICA

Observação

Neocolonialismo é o terceiro componente fundamental do imperialismo


(os outros dois são o capitalismo monopolista e o oligopolista), ou seja, a
evolução do capitalismo contemporâneo. Assim, a divisão dos territórios
não industrializados pelas grandes potências no fim do século XIX e começo
do século XX segue se desdobrando, trazendo consequências negativas no
processo de desenvolvimento econômico dos países colonizados (ou cujo
mercado interno foi monopolizado) nos dias atuais. A África, em especial,
foi devastada por esse processo.

Saiba mais

Sobre o tema do colonialismo, do neocolonialismo e do imperialismo,


sugerimos os seguintes filmes:

DIAMANTE de sangue. Dir. Edward Zwick. EUA: The Bedford Falls/Virtual


Studios/Initial Entertainment Group, 2006. 143 minutos.

O MOTIM. Dir. Ketan Mehta. Índia: Inox Leisure. 2005. 150 minutos.

GANDHI. Dir. Richard Attenborough. Reino Unido; Irlanda do Norte:


Columbia Pictures, 1982. 191 minutos.

HOTEL Ruanda. Dir. Terry George. Reino Unido; Itália; África do Sul;
Estados Unidos: Lions Gate Entertainment/United Artists, 2004. 121 minutos.

Jeffry A. Frieden afirma que a corrida para a independência no período entre 1914 e 1945 não afetou
apenas a América Latina,

mas todo o mundo em desenvolvimento. A maior parte da África, do Oriente


Próximo e da Ásia continuava colonial. Nas colônias, o isolamento em relação
à economia mundial também estimulou a urbanização e a industrialização,
fortalecendo o comércio local e os interesses da classe média, enfraquecendo
também a economia exportadora. Esse isolamento arruinou os defensores
do sistema colonial e reforçou a influência dos que viam o colonialismo com
desconfiança ou hostilidade.

Na época da Segunda Guerra Mundial, os impérios europeus estavam no


auge; fora da América Latina, apenas alguns países pobres eram teoricamente

139
Unidade III

independentes. Os franceses e os britânicos prometiam conceder direitos


adicionais aos seus subordinados mais rebeldes, e os Estados Unidos, a
independência das Filipinas. No entanto, os resultados ainda estavam por
vir. Em 1945, com exceção da América Latina, o mundo em desenvolvimento
continuava colonial e não havia perspectivas de mudança.

O colonialismo, contudo, entrou em colapso com uma velocidade


impressionante. Até 1965, havia desaparecido, apesar de algumas exceções
e do anômalo Império fascista Português, que resistiu por mais dez anos.
Alguns anos depois da Segunda Guerra Mundial, quase toda a Ásia colonial
tornou-se independente. Os japoneses saíram da Coreia e de Taiwan; os
franceses deixaram a Indochina; e os holandeses, as Índias Ocidentais.
Os protetorados franceses e britânicos no Oriente próximo (Síria, Líbano,
Israel e Jordânia) estavam todos livres. E o mais importante: a menina dos
olhos do Reino Unido, a Índia britânica, que havia se expandido do Irã ao
Laos, deu origem – após uma guerra sangrenta e mutuamente destrutiva – a
quatro nações livres: Índia, Paquistão, Burma e Sri Lanka. A maior parte do
norte da África se tornou independente durante a década de 1950. A partir
de 1957, a África subsaariana foi rapidamente liberada (com a exceção,
mais uma vez, das colônias portuguesas) e o mesmo ocorreu na Malásia,
última possessão na Ásia. Em meados da década de 1960, o controle norte-
americano sobre Porto Rico transformou os Estados Unidos na principal
potência colonial do mundo – embora o título fosse discutível. Tal situação
era irônica, dada a longa tradição anticolonialista no país. O fato de que 20
anos após a Segunda Guerra Mundial a maior colônia de uma das principais
nações do planeta ser não mais a Índia ou a Argélia, o Congo ou a Indonésia,
mas uma pequena ilha do Caribe, mostrava o quanto o mundo havia mudado.

[...]

A velocidade com que o colonialismo ruiu pode ser atribuída a uma série de
motivos. O primeiro foi a evolução social e política das sociedades coloniais.
Após 1914, a riqueza, o poder e a influência daqueles que rejeitavam ou
desejavam modificar a economia colonial clássica aumentavam de forma
contínua. Os mesmos processos econômicos e políticos que mudaram o
rumo do desenvolvimento latino-americano estavam em curso na Ásia e
na África: crescimento dos centros urbanos e industriais; insatisfação com
a produção de matérias-primas para exportação; e desejo por diversificação
e industrialização.

O colonialismo também fora destruído por problemas globais, que


isolaram as colônias do resto do mercado mundial, desorganizaram a
economia exportadora, estimularam a urbanização e a industrialização,
e consolidaram os interesses da classe média e dos comerciantes locais.
140
CIÊNCIA POLÍTICA

As dificuldades econômicas do entreguerras enfraqueceram os colonialistas


e fortaleceram os incrédulos ou hostis ao colonialismo. Às vezes, os conflitos
entre as potências coloniais e os novos grupos sociais se transformavam
em rebeliões militares contra o regime, como na Indonésia e na Indochina.
Nos outros lugares, a ameaça de levantes anticoloniais refreou bruscamente
as ambições das grandes potências (FRIEDEN, 2010, p. 456-457).

Figura 5 – Os impérios

Lembrete

A Revolução Industrial na Inglaterra teve desdobramentos no século


XIX, em especial no que diz respeito à crise do capitalismo entre 1873 e
1893 e ao neocolonialismo.

Quanto aos mecanismos do processo de colonização ou conquista descritos por Jeffry A.


Frieden, destacamos:

Os colonizadores, então, tentaram suprir as demandas locais. A Índia, que já


havia conquistado o direito de decidir sobre suas próprias tarifas, conseguiu
estabelecer um governo quase autônomo em 1937. Outras possessões foram
contempladas com benefícios semelhantes para o poder local. No entanto,
para muitos dos líderes das colônias, isso apenas enfatizava a irrelevância da
ordem colonial. O controle imperial podia ser apenas aparente ou existir de
fato. Se o caso fosse o primeiro, não haveria razões para ser mantido; se o
caso fosse o segundo, haveria ainda mais motivos para que se abandonasse
a metrópole. Essa perspectiva se tornou especialmente atrativa quando a
população colonizadora, grande na Argélia, modesta na Rodésia e pequena
no Quênia, conseguiu adiar ou impedir as reformas. Se alguns poucos
milhares de colonos europeus no Quênia conseguiam impedir o Império

141
Unidade III

Britânico de conceder direitos básicos aos africanos, por que um africano


não deveria considerar a colonização como nada mais que uma ferramenta
de opressão?

Também havia forças favoráveis às mudanças nas próprias potências


coloniais. Antes da Segunda Guerra Mundial, o colonialismo podia
ser justificado por argumentos econômicos e diplomáticos. Agora, as
justificativas geopolíticas não convenciam mais. A posição estratégica
da Grã-Bretanha, da França, da Holanda e da Bélgica era de se manter
debaixo do guarda-chuva nuclear norte-americano, e para tal não havia a
necessidade de possessões coloniais, também desestimuladas pelo próprio
dono do guarda-chuva. Do ponto de vista econômico, a importância das
colônias diminuiu de forma contínua após a guerra. Os europeus, cada vez
mais, trocavam mercadorias e investimentos com seus vizinhos e os Estados
Unidos. Além do mais, as colônias eram desprezíveis para as novas indústrias
que se tornaram importantes: automóveis, bens de consumo duráveis, aviões
e computadores. Como os investimentos estrangeiros haviam mudado de
direção – das matérias-primas e plantações para os produtos industriais –, o
apoio econômico ao regime colonial diminuiu ainda mais. As multinacionais
de produtos manufaturados pouco precisavam do colonialismo e, com
frequência, obtinham belos lucros com as altas tarifas impostas pelas nações
recém-independentes. Mesmo nos países onde o comércio colonial e os
investimentos continuavam interessantes, os Estados Unidos pressionavam
os europeus para que abrissem os mercados coloniais. E que bem econômico
seria uma colônia se era preciso compartilhá-la?

O motivo final e decisivo para a rápida marcha rumo à independência foi


a insistência norte-americana. Há décadas que os Estados Unidos eram
contra o colonialismo. Ideologia e moral devem ter influenciado a posição
do país, mas o autointeresse foi o principal motivo. Os Estados Unidos
entraram muito tarde na corrida colonial e quando o período chegou ao fim,
o país possuía muito poucas colônias. A exclusividade econômica colonial
atingiu duramente os produtos e o capital norte-americanos. Além disso, a
Guerra Fria também contribuiu para o anticolonialismo dos Estados Unidos.
A União Soviética possuía boas credenciais anticoloniais e usava os impérios
europeus para mostrar que o capitalismo ocidental dominava o mundo
em desenvolvimento. Após 1949, a voz da China passou a ser ouvida com
grande credibilidade na discussão, uma vez que o país foi um dos que mais
sofreu com o imperialismo ocidental. Como boa parte do mundo estava sob
o domínio colonial europeu, era difícil para os Estados Unidos argumentar
sobre os males do controle soviético. Quanto mais os europeus governavam,
mais eles empurravam os asiáticos e africanos na direção dos comunistas,
que estavam em busca de aliados (FRIEDEN, 2010, p. 458-459).

142
CIÊNCIA POLÍTICA

Figura 6 – O império norte-americano

Ainda citando as palavras de Frieden:

O anticolonialismo norte-americano americano afetou as metrópoles


europeias, em especial durante a Crise de Suez. Em outubro e novembro
de 1956, tropas francesas, britânicas e israelenses atacaram o Egito,
aparentemente para tomar o Canal. Todavia, a verdadeira intenção era
derrubar o regime do nacionalista radical Gamel Abdel Nasser. A ação
enfureceu o secretário de Estado dos Estados Unidos John Foster Dulles,
mas não por qualquer simpatia por Nasser. A invasão fortaleceu o
argumento dos soviéticos e chineses, que desejavam convencer o mundo
em desenvolvimento da brutalidade e da injustiça do capitalismo. Da mesma
forma, provocou ainda mais irritação por ter ocorrido durante a ação
soviética para suprimir uma revolta anticomunista na Hungria, desviando a
atenção mundial de uma demonstração de brutalidade soviética para outro
exemplo de agressão ocidental. Na visão de Dulles, um mês que deveria
ter sido uma propaganda do triunfo ocidental acabara tornando-se um
desastre. Para piorar, a invasão anglo-franco-israelense aproximou o regime
egípcio ainda mais da União Soviética.

[...]

A Grã-Bretanha e a França logo se deram conta do quanto o peso econômico


norte-americano restringia as opções dos dois países. A crise levou a uma
desvalorização da libra e os Estados Unidos cortaram a ajuda financeira à

143
Unidade III

Grã-Bretanha. O governo britânico, que cinco anos antes considerava o Egito


um protetorado eficiente, não tinha outra escolha a não ser reconhecer a
humilhação. Os ativistas anticoloniais se sentiram revigorados diante dessa
demonstração de impotência por parte do regime e, principalmente, por
causa do enfraquecimento da posição colonialista. Um ano mais tarde, Gana
foi o primeiro país da África subsaariana a se tornar independente da Grã-
Bretanha. Depois, em 1958, a Guiné francesa se libertou dos colonizadores.
À medida que o colapso colonial aumentava o impasse entre França e Argélia,
o sistema político francês se deteriorava. Charles de Gaulle, intimado a deixar
a nação africana, supervisionou a retirada da França da terra que sempre
considerou ser tão francesa quanto Marselha. Em quatro anos a partir da
Crise do Suez, toda a África francesa se tornou independente, e logo em
seguida o mesmo ocorreu com a britânica (FRIEDEN, 2010, p. 449-461).

7.2 Blocos, grupos e demais associações de poder por interesses, “espaço


interestatal”

As novas geopolíticas, não por coincidência surgidas na “era da globalização”


e enfraquecimento (relativo) dos Estados nacionais, normalmente não são
feitas “para o Estado” e tampouco o veem como o único ator na política
mundial. Novos atores ou sujeitos são levados em consideração, desde as
civilizações ou grandes culturas até as ONGs, passando pelas empresas multi
ou transnacionais, pelas organizações internacionais (ONU, OMC, FMI etc.)
e pelos “blocos” ou mercados regionais (União Europeia, Nafta, Mercosul
etc.). E novos campos de luta são agora vistos como importantes para a
compreensão das relações de poder no espaço mundial, desde a questão
ambiental (embates sobre o uso dos oceanos ou do espaço cósmico ao
redor do planeta, a emissão de gases do efeito estufa, os desmatamentos e
a perda de biodiversidade, o que é desenvolvimento sustentável etc.) até as
lutas pelos direitos das mulheres, de minorias étnico-nacionais, de grupos
com diferentes orientações sexuais, de povos sem território reconhecido, de
populações excluídas na sociedade global ou em sociedades nacionais etc.
(VESENTINI, 2012, p. 12).

Não deve escapar à vista que os blocos regionais mais representativos de hoje, os blocos econômicos,
já haviam sido alvo de atenção do grande estrategista Haushofer, que tinha por missão reconhecer e
estabelecer as racionalidades geográficas e políticas continentais (recursos, perfis e alcances de governos
e estados). Encontramos tais considerações em José William Vesentini (2012).

Os arranjos entre Estados nacionais e corporações foram feitos de modo a criar reservas de mercado
e concentração de poder: são os blocos políticos e econômicos. Sua configuração, como podemos ver
no mapa a seguir, toma boa parte do planeta.

144
CIÊNCIA POLÍTICA

Figura 7

Vesentini (2012, p. 36) aponta os megablocos ou mercados regionais como sendo evocações, as
“mais populares, a respeito da disputa pelo poder no mundo pós Guerra Fria [...] é a dos megablocos ou
‘blocos regionais’”. E faz o adendo de que tal ideia (a dos blocos)

não tem propriamente uma paternidade ou um “teórico principal”, tal


como ocorre com outras ideias similares (a nova competição/cooperação
econômica, o choque de civilizações, a geoeconomia substituindo a
geopolítica ou o fim da história, por exemplo) (VESENTINI, 2012, p. 36).

O geógrafo afirma que a questão avançou ao longo da Guerra Fria e em meio as próprias
preocupações de organismos internacionais como a CEE (atual União Europeia), além dos meios de
propagação de informações e notícias.

A noção de fundo é a das transformações dos Estados nacionais, principalmente no que concerne à
sua relativização política no cenário global:

Essa interpretação consiste basicamente na ideia de que são os megablocos,


e não mais os Estados nacionais, que dominam o cenário mundial ou as
relações de poder no espaço planetário. Normalmente se divide o mundo em
três “blocos regionais” preponderantes: o americano (liderado pelos Estados
Unidos), o europeu, que incluiria a África (comandado pela Alemanha) e
o asiático ou “oriental”, que incluiria a Oceania (capitaneado pelo Japão
e/ou pela China). Também se especula a respeito de um “bloco” liderado pela

145
Unidade III

Rússia (a CEI – Comunidade dos Estados Independentes) e de um potencial


ou hipotético “bloco islâmico”. O momento em que essa interpretação se
consolidou ajudou a elucidá-la. Foi por volta de 1989-1990, quando parecia
já certo o fim da bipolaridade e da disputa entre os “blocos da Guerra Fria”:
o capitalista, liderado pelos EUA, e o socialista, liderado pela ex-URSS. Assim
sendo, a primeira reação de alguns foi a de identificar “novos blocos” no
espaço mundial. E como já existia um crescimento econômico da Europa
Ocidental e do Japão, que desde os anos 1970 constituíam junto com os EUA
a chamada “tríade” do mundo capitalista, nada mais natural que substituir
os dois “blocos” da Guerra Fria pelos três “blocos” que aparentemente
dominariam o mundo pós Guerra Fria (VESENTINI, 2012, p. 36-37).

O autor explica que tal “interpretação” está baseada no “sucesso da integração europeia”, com
reprodução parcial em várias regiões, como Nafta, Mercosul, Apec e as tentativas de se criar a Alca (
Área de Livre Comércio nas Américas).

Nos anos 1980 alguns autores, e inúmeros jornalistas, falavam em


“fortaleza europeia”, sugerindo um progressivo fechamento do
continente com o avançar da integração. A partir daí, muitos começaram
a interpretar como “natural” a formação de mercados regionais nos
diversos continentes, vendo nesse processo o nascimento de uma nova
ordem geopolítica mundial “plural”, marcada pelas associações de países
ao redor de um Estado núcleo ou central. Alguns dos adeptos dessa
interpretação, exagerando a importância desses mercados regionais
(e inclusive homogeneizando-os, não percebendo as suas diferenças e
vendo todos a partir do prisma da União Europeia, o único que caminha
de fato no sentido de construir uma confederação), passaram a falar
numa “nova geografia regional do mundo” ou até mesmo em “blocos
internacionais de poder” [...] (VESENTINI, 2012, p. 37).

Apesar de termos fatos novos que atenuam (ou mudam, pelo menos) o ritmo da integração da União
Europeia – e o maior deles é o Brexit –, é preciso reconhecer a importância política e econômica dessas
entidades. Importância nem sempre medida em termos de produto financeiro das transações. E não
destacamos isso apenas por conta da saída dos britânicos, o valor da política ou da geopolítica é duvidoso,
pois, segundo Vesentini, nem sempre parceiros comerciais fecham questão em frentes diplomáticas
nas relações nacionais e internacionais; isto é, nem sempre suas posições políticas convergem, passo
fundamental para se tornarem agentes ou sujeitos coletivos de ações políticas, de fato, em bloco.

Do ponto de vista geopolítico, essa ideia de “blocos de poder” é


duvidosa, pois esses mercados regionais, ou áreas de livre-comércio, na
maior parte das vezes (Nafta, Apec, Alca), possuem uma coesão político-
diplomática menor ainda que um mercado regional, têm uma atuação
essencialmente comercial e, nos assuntos políticos e militares, eles – com
a exceção parcial da União Europeia – não atuam conjuntamente como
146
CIÊNCIA POLÍTICA

sujeitos. Os Estados Unidos, por exemplo, não têm a menor preocupação


em consultar seus parceiros do Nafta (e muito menos da virtual Alca)
ao liderarem incursões militares como a Guerra do Golfo, em 1991, ou
os bombardeios sobre a Sérvia em 1999, entre outros. E mesmo a União
Europeia, o exemplo mais acabado do que seria um “bloco” (e, pelo
menos até o momento, o único exemplo de fato), normalmente tem uma
atuação geopolítica dividida, com o Reino Unido de um lado (que quase
sempre se alinha aos Estados Unidos nos conflitos mundiais) e a França
do outro (que, dentro de certos limites, é o Estado mais eurocêntrico e
relativamente antinorte-americano).

Ademais, os avanços no processo de globalização relativizam esses mercados


pretensamente fechados. Existe sem dúvida uma globalização com
regionalização (que lhe é complementar, e não oposta), ou seja, a expansão
da interdependência econômica não se dá por igual em todas as partes
do globo, e sim por degraus ou etapas, primeiramente – e de forma mais
acelerada – entre associados em algum mercado regional, em especial se
forem economias desenvolvidas. Esses mercados regionais são na realidade
a forma pela qual a globalização avança, e não uma nova divisão do mundo
ou um fechamento dos continentes em “blocos” alternativos (VESENTINI,
2012, p. 38-39).

O que foi o Brexit?

No dia 23 de junho de 2016, os cidadãos da Grã-Bretanha foram às urnas votar o referendo que
decidiria a saída ou permanência do Reino Unido na União Europeia. A opção pela saída foi vitoriosa,
com cerca de 17,4 milhões de votos. O anseio dos defensores dessa saída ficou caracterizado pela
expressão Brexit, que é uma abreviação das palavras inglesas Britain (Bretanha) e exit (saída).

A vitória pela saída do Reino Unido da União Europeia também resultou no pedido de demissão
do primeiro-ministro britânico David Cameron, que advogava contra a saída. Foi Cameron que, ao ser
eleito primeiro-ministro em 2015, fez a promessa de realizar o referendo como forma de lidar com
a pressão de seus oposicionistas, isto é, do Partido Conservador inglês e do Ukip (United Kingdom
Independence Party – Partido da Independência do Reino Unido).

Compreender a importância do Brexit no cenário internacional requer uma introdução sobre a


formação da União Europeia (a união aduaneira mais representativa) e sobre a relação que manteve
com o Reino Unido.

A União Europeia é uma associação política e econômica de 28 países do


continente europeu (27 agora, com a saída do Reino Unido) que surgiu
em 1957, por meio do Tratado de Roma, sob a alcunha de Comunidade
Econômica Europeia (CEE). Os objetivos mais óbvios da então CEE eram:
integrar política e economicamente a Europa e evitar novas guerras (como
147
Unidade III

as duas guerras mundiais) que derivassem da rivalidade nacionalista dos


países europeus.

Além do Tratado de Roma, de 1957, que criou a CEE e instituiu o Mercado


Comum Europeu, a União Europeia foi sendo gradativamente articulada
por outros tratados. Os principais foram: o Tratado de Maastricht, de
1992, que estabeleceu a união monetária e resultou na criação da moeda
Euro; o Tratado de Amsterdã, de 1997, que instituiu a Política Estrangeira
de Segurança Comum (Pesc); a Constituição Europeia, de 18 de junho de
2004; e o Tratado de Lisboa, de 2007, assinado no dia 13 de dezembro, que
reformou alguns pontos da Constituição Europeia.

Além disso, a União Europeia é também composta de quatro instituições


políticas principais: o Parlamento Europeu, o Tribunal de Justiça da União
Europeia, a Comissão Europeia e o Conselho Europeu (FERNANDES, 2016).

Observação

O ingresso do Reino Unido na CEE ocorreu em 1º de janeiro de 1973, e


de prontidão já houve discussões intensas tanto entre a população quanto
entre os políticos a respeito da perda da soberania nacional e da ameaça de
o Reino Unido ter que cobrir gastos irresponsáveis de outros membros da
Comunidade. Esse impasse só foi resolvido com um referendo realizado em
5 de junho de 1975, que ratificou a permanência do Reino Unido no bloco,
com 67,2% dos votos válidos.

O fato é que os ingleses, mesmo permanecendo no bloco, sempre foram reticentes com a estrutura
supranacional da União Europeia. A recusa em integrar a “zona do Euro”, isto é, em submeter a moeda
nacional, libra esterlina, à zona comum da moeda da UE, era um sintoma flagrante disso.

Cláudio Fernandes (2016) acentua que há opiniões a favor e contrárias ao Brexit:

Com a aprovação da saída da União Europeia, um dos nomes de maior vulto


será o do parlamentar Boris Johnson, ex-presidente da Câmara dos Lordes
e chefe da campanha pró-Brexit. Johnson foi um dos parlamentares que
mais criticaram as políticas da UE, acusando-as de invadir a vida particular
dos cidadãos europeus e violar a soberania dos países-membros por meio
do que ele qualificou como “superestado de Bruxelas” (Bruxelas, capital da
Bélgica, é o centro de decisões da UE). Além de Johnson, Nigel Farage, líder
do Ukip (United Kingdom Independence Party – Partido da Independência
do Reino Unido) e defensor ferrenho das posições anti-imigração, também
é uma das figuras que tendem a ter maior projeção no contexto político
britânico daqui para frente.
148
CIÊNCIA POLÍTICA

Por outro lado, David Cameron, do Partido Conservador, e líderes de


países‑membros da União Europeia, como a premiê da Alemanha,
Angela Merkel, lamentaram a saída do Reino Unido. Julgaram tal fato
como extremamente prejudicial à integração da Europa e à situação dos
imigrantes que vivem na Inglaterra.

O Brexit foi decidido em um plebiscito de 2016, motivado pela aversão à entrada de migrantes e pela
intenção do Reino Unido em retomar as rédeas de sua economia (BERCITO, 2018).

Assim, a tal “bloquização” ou formação de blocos regionais está vinculada tanto aos processos
de reconfiguração do capitalismo internacional quanto a aspectos culturais próprios das formações
nacionais, com suas histórias peculiares.

Conforme Bercito (2018), os eventos que culminam na globalização do capital do século XX são
decorrentes de convenções e acordos que visaram corrigir rumos da institucionalização e manutenção
da “economia internacional”.

Desse modo, Bretton Woods, Consenso de Washington e as reuniões do FEM (Fórum Econômico
Mundial) são representantes dos ajustes requeridos pelos agentes do “sistema”.

Seguindo a cadeia de acontecimentos ocasionada pela Crise de 1929 e ainda sob os efeitos
catastróficos causados pela Segunda Guerra Mundial, os países industrializados acordaram normas
para a “paridade cambial”, indexando as moedas ao dólar, ancorando este na conversibilidade ao ouro
(padrão-ouro). É dessa época o surgimento do Banco Internacional de Reconstrução de Desenvolvimento
(Bird), integrante do Banco Mundial, e do Fundo Monetário Internacional (FMI), como mais um dos
resultados de Bretton Woods.

Conforme Manzalli e Gomes (2006, p. 89-90):

[...] o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional são dois importantes


organismos criados para promover a coordenação de políticas entre países,
notadamente na área financeira, mas muitas vezes tal coordenação
ocorre em detrimento de interesses de sociedades. Com o avanço do
comércio de longa distância na Europa, surge certa tendência de que as
coordenações financeiras, predominantemente administradas por famílias
dos comerciantes locais, passem a desempenhar um papel primordial na
definição dos interesses políticos e econômicos de diversos grupos no
continente. Com o tempo, o desenvolvimento do comércio privado de
moedas e instrumentos financeiros.

Um instrumento eficaz foi o Plano White, que se ocupava do funcionamento do comércio


internacional. Assim, foram criados o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial. As
medidas adotadas foram as do Plano White.

149
Unidade III

Conforme Sandroni (1996), a criação do FMI, em 1944, foi impulsionada pela tentativa de promover
a cooperação monetária entre todos os países do mundo, o que ocorreu devido à necessidade de
equilibrar paridades monetárias justas entre diferentes moedas, evitando desvalorizações concorrenciais
e formando um grande fundo com recursos dos países-membros. Esses recursos seriam usados para
beneficiar nações com dificuldade nos pagamentos internacionais, sobretudo aquelas com recorrentes
déficits em sua conta de transações correntes.

Uma das principais funções do Fundo era regular as paridades das moedas.
Tinha o objetivo essencial de presidir um regime internacional de câmbio
praticamente fixo, promovendo a cooperação monetária internacional
mediante uma instituição permanente que servisse de mecanismo para
consulta e colaboração sobre problemas monetários. Em seu instrumento
constitutivo estabeleceu-se, ainda, que recursos financeiros do Fundo seriam
oferecidos temporariamente aos países-membros para proporcionar-lhes
oportunidades de corrigir desequilíbrios no seu balanço de pagamentos,
sem recorrer a desvalorizações cambiais, consideradas destrutivas da
prosperidade internacional (MANZALLI; GOMES, 2006, p. 96).

Lembrete

Os arranjos entre Estados nacionais e corporações foram feitos de


modo a criar reservas de mercado e concentração de poder: são os blocos
políticos e econômicos.

7.2.1 Governança supranacional: a Organização das Nações Unidas

Antes de começar a falar sobre Governança Global, é preciso entender


como este conceito vem sendo utilizado. A Comissão sobre Governança
Global da ONU define governança como “a soma das várias maneiras
de indivíduos e instituições, público e privado, administrarem seus
assuntos comuns. É um processo contínuo por meio do qual conflito
ou interesses diversos podem ser acomodados e a ação cooperativa tem
lugar... No nível global, governança era vista primeiramente como sendo
apenas as relações intergovernamentais, mas hoje já pode ser entendida
como envolvendo organizações não governamentais, movimentos de
cidadãos, corporações multinacionais e o mercado de capitais global”
(ABREU, 2001, p. 2).

Em sentido lato, voltando-se para a dimensão produtiva da governança,

Assume-se que o conceito tradicional de governança (coordenação de


transações) não supera as limitações da chamada governança corporativa
(propriedade e gestão de empresas), e deve ser conectado com a lógica
150
CIÊNCIA POLÍTICA

da coordenação institucional (meso e macro), especialmente presente nos


sistemas produtivos e inovativos (BARBOSA, 2003, p. 8).

Também é geral a abordagem sobre as atribuições dos agentes estatais e não estatais nas relações
internacionais sob a globalização do capital:

O fenômeno da globalização, entendido como um processo não


exclusivamente econômico, mas também que envolve aspectos sociais,
culturais, políticos e pessoais, recolocou, de maneira dramática, as relações
entre sociedade e Estado. Trouxe como consequência uma mudança no papel
do Estado nacional (não sua extinção, mas certamente uma reconfiguração)
e suas relações no cenário internacional. Impulsionou, portanto, a discussão
sobre os novos meios e padrões de articulação entre indivíduos, organizações,
empresas e o próprio Estado, deixando clara a importância da governança
em todos os níveis (GONÇALVES, 2006, p. 4).

Ngaire Woods (apud ABREU, 2001, p. 6-7) apresenta três princípios fundamentais da boa governança
de organizações internacionais. Segundo o autor, são:

– O da participação (a participação nos processos daria às pessoas o


senso de propriedade ou autoria de um projeto) requer muito mais do
que envolvimento institucional, pois as partes afetadas devem encarar as
decisões organizacionais como suas próprias.

– O da responsabilidade (clareza sobre para quem ou em prol de que a


instituição está tomando e implementado decisões, prestando contas ou
respondendo não apenas para seus Estados membros, mas também para
organizações não governamentais – accountability).

– O da justiça, que tem dois aspectos: procedimental e substantivo, sendo a


justiça procedimental uma noção legalista, enquanto a justiça substantiva
refere-se a quão equitativo são os resultados de uma instituição, a quão
igualitária é a distribuição de poder, influência e recursos nas organizações.

Retomando o foco na dimensão política, destacamos:

Feita a distinção entre governabilidade e governança, fica claro que [...]


“governança não é o mesmo que governo” [...] “governo sugere atividades
sustentadas por uma autoridade formal, pelo poder de polícia que
garante a implementação das políticas devidamente instituídas, enquanto
governança refere-se a atividades apoiadas em objetivos comuns, que
podem ou não derivar de responsabilidades legais e formalmente prescritas
e não dependem, necessariamente, do poder de polícia para que sejam
aceitas e vençam resistências”. Vale notar ainda que a governança é um
151
Unidade III

conceito suficientemente amplo para conter dentro de si a dimensão


governamental [...]. “Governança é um fenômeno mais amplo que governo;
abrange as instituições governamentais, mas implica também mecanismos
informais, de caráter não governamental, que fazem com que as pessoas
e as organizações dentro da sua área de atuação tenham uma conduta
determinada, satisfaçam suas necessidades e respondam às suas demandas’
(GONÇALVES, 2006, p. 5).

Analisando o campo internacional, cuja dinâmica é a da globalização, caberiam algumas palavras


sobre o papel do Estado na governança:

A globalização, como um fenômeno multidimensional que envolve a


mudança na organização da atividade humana e no deslocamento do poder
de uma orientação local e nacional no sentido de padrões globais, com uma
crescente interconexão na esfera global, dá outra pista importante para
o conceito de governança [...]. Com a diminuição dos poderes soberanos
nacionais, a partir da emergência de organizações supranacionais, e com
a presença crescente das Oings (Organizações Não Governamentais
Internacionais) e empresas multinacionais, o balanço do poder e o conceito
de poder político alterou-se de forma significativa.

Assim, estaríamos assistindo à mudança do governo para a governança


global. “Estes processos limitaram a competência, mandato e autoridade dos
Estados nacionais – o declínio do governo – enquanto outras instituições,
como organizações internacionais e supranacionais, Oings e empresas
multinacionais preencheram este vácuo de poder – a emergência da
governança Global” [...] (GONÇALVES, 2006, p. 4).

O Banco Mundial é uma instituição financeira internacional ligada à Organização das Nações Unidas
(ONU) e também criada em 1944 que tinha como propósito o financiamento de projetos de recuperação
e de promoção de desenvolvimento econômico dos países atingidos pela guerra (SANDRONI, 1996).

Na prática, essa função ficou a cargo do chamado Plano Marshall, e o banco passou a lidar de
modo crescente com o tema do desenvolvimento econômico e a atuar, sobretudo, com os países
subdesenvolvidos. Formalmente, seu intuito era canalizar capital para investimentos que permitissem
elevar a produtividade das empresas, o padrão de vida das pessoas e as condições de trabalho
nos países-membros. Assim, a preocupação primordial do Banco Mundial seria aquela ligada à
melhoria das condições de vida da população, quer dizer, às questões de cunho qualitativo (e não
quantitativo-financeiro, a exemplo do FMI).

Conforme salientam Manzalli e Gomes (2006, p. 95), o objetivo básico do Banco Mundial era o de
auxiliar a reconstrução e o desenvolvimento de territórios dos países-membros atingidos pela destruição
da guerra. Esse objetivo deveria ser atendido por meio de atividades dedicadas a:

152
CIÊNCIA POLÍTICA

– prover capital para fins produtivos;

– promover o investimento externo privado;

– complementar o investimento privado mediante o fornecimento de capital


para fins produtivos;

– promover o crescimento equilibrado de longo prazo do comércio internacional;

– manter o equilíbrio nos balanços de pagamento mediante o incentivo


internacional a investimentos para o desenvolvimento de recursos produtivos.

Os Estados-nação, Estados territoriais modernos, constituem a base jurídica, política e econômica


das relações internacionais, sejam elas profícuas ou não. Assim, estão também na base da economia
mundial, ou melhor, entre os Estados com saldos mínimos para liquidarem suas dívidas. No texto em
destaque a seguir, Milton Santos convida à dialética.

O capitalismo tem por vocação a internacionalização e esta, perseguindo seu projeto de mundialização,
desdobra-se nas redes de lugares da globalização (SANTOS, 1988).

A dimensão material do desenvolvimento capitalista ampara-se nas redes de transporte,


dados e informações (e seu gerenciamento, a logística), cuja marca principal é a concentração e
expressão territorial.

Para entender tanto a gênese quanto a consolidação das formas capitalistas, é preciso considerar em
nosso raciocínio uma série de instrumentos eficazes à propagação do sistema, a exemplo da restrição
democrática à propriedade, em geral, e da terra, em particular; isso, em razão da necessidade de liberar
o trabalho de seus afazeres particulares para o assalariamento.

“Tornou-se claro para os que desejavam reproduzir as relações capitalistas de produção no novo país
que a pedra fundamental de seus esforços devia ser a restrição da propriedade da terra a uma minoria e
a exclusão da maioria quanto a qualquer participação na propriedade” (DOBB, 1986, p. 160).

O texto a seguir, de Milton Santos, apresenta-nos as dimensões de projeto, processo e de objetivo da


racionalidade capitalista de modo bastante claro.

Capítulo l – A redescoberta e a remodelagem do planeta no período


técnico‑científico e os novos papéis das ciências

Entre os múltiplos aspectos do período atual, é obrigatório reconhecer as relações entre


as condições de realização histórica e a nova revolução científica. Essa revolução histórica
e científica atribui às ciências do homem e da sociedade um lugar ainda mais privilegiado
no conjunto dos conhecimentos. Num mundo assim reestruturado, um papel particular
deve incumbir à ciência geográfica – uma ciência do espaço do homem – e devemos
153
Unidade III

interrogar-nos sobre os problemas que, nessa ótica, se abrem à sua realização, diante do
conflito entre tudo o que acarretam os novos conteúdos prometidos à atualização da
disciplina e suas atuais estruturas.

Pode-se pensar que a inércia se imporá ao movimento, impedindo-lhe o desenvolvimento,


ou se deve acreditar que uma geografia renovada poderá afirmar-se?

1. Da internacionalização à globalização

Não sem razão, K. Polanyi falou de uma “grande transformação” para saudar as
profundas mudanças impostas à nossa civilização desde o início do século1. Que dizer,
então, da verdadeira subversão que o mundo conheceu a partir do fim da Segunda Guerra
Mundial, quando, por intermédio da globalização, uma fase inteiramente nova da história
humana teve início?

Essa civilização repousava sobre quatro instituições. A primeira era o sistema de equilíbrio
de forças que durante um século permitiu evitar a deflagração de grandes e devastadoras
guerras entre as Potências. A segunda foi o padrão-ouro como referência internacional,
que simbolizava a organização única da economia mundial. A terceira era o mercado
autorregulado que gerou um bem-estar sem precedentes. A quarta era o Estado liberal.
Segundo uma certa classificação, duas delas eram nacionais, e as duas outras internacionais.
Juntas, determinaram as grandes linhas da história de nossa civilização”. POLANYI, K. A The
Great Transformation (1944). Bos-on, Beacon, 1957, p. 2.

Decerto, o que estamos vivendo agora foi longamente preparado, e o processo de


internacionalização não data de hoje. O projeto de mundializar as relações econômicas,
sociais e políticas começa com a extensão das fronteiras do comércio no princípio do século
XVI, avança por saltos através dos séculos de expansão capitalista para finalmente ganhar
corpo no momento em que uma nova revolução científica e técnica se impõe e em que as
formas de vida no planeta sofrem uma repentina transformação: as relações do Homem
com a Natureza passam por uma reviravolta, graças aos formidáveis meios colocados à
disposição do primeiro. Houve mudanças qualitativas surpreendentes, a mais notável
das quais foi a possibilidade de tudo conhecer e tudo utilizar em escala planetária, desde
então convertida no quadro das relações sociais. Pode-se falar de mundialização, enquanto
[outrora] se tratava de mera internacionalização2.

1
A civilização do século XIX naufraga. Este livro trata das origens políticas e econômicas do acontecimento e da
grande transformação que o seguiu.
2
O sistema capitalista foi sempre um sistema mundial. Não poderemos compreendê-lo se excluirmos a interação
entre o efeito interno de uma de suas partes e os efeitos externos sobre essa parte. Por isso a contribuição daqueles
que enfatizaram o papel da periferia no estabelecimento do capitalismo desde o seu início não é nem pequeno nem
suplementar [...]” (AMIN, S. 1980, p. 187).
154
CIÊNCIA POLÍTICA

“Embora tenha sido sempre um sistema mundial, o sistema capitalista passou por
diversos estágios [...]” (AMIN, S. 1980, p. 188).

Dado o novo alcance da história, importa “rever totalmente toda a estrutura dos
postulados e preconceitos nos quais assentava a nossa visão do mundo”, nas palavras de G.
Barraclough (1965, p. 10). Mais recentemente, Katona e Strumpel (1978, p. 2-3) criticam uma
visão econômica pouco penetrada pelas novas realidades, lamentando que fatores como as
finanças sejam ainda estudados num quadro puramente nacional, e não em seu contexto
global. A sociologia, tal como foi fundada na segunda metade do século XIX, deveria ser
substituída, segundo A. Bergensen (1970, p. 1), por uma “visão sistemática mundial”, mais
adaptada às novas realidades.

Mas será possível afirmar a existência desse sistema mundial (BERGENSEN; SCHOENBERG,
1980), chame-se ele sociedade mundial (PETTMAN, 1979) ou sistema global (MODELSKI,
1972)? Isso resultaria da interconexão sob todos os pontos de vista, entre as mais afastadas
e disparatadas sociedades nacionais, por força das novas condições de realização da vida
social, ou seja, de uma divisão mundial capitalista do trabalho, fundada no desenvolvimento
das forças produtivas em escala mundial e conduzida através dos Estados e das corporações
gigantes ou firmas transnacionais3.

A universalização do mundo pode ser constatada nos fatos. Universalização da


produção, incluindo a produção agrícola, dos processos produtivos e do marketing.
Universalização das trocas, universalização do capital e de seu mercado, universalização
da mercadoria, dos preços e do dinheiro como mercadoria-padrão, universalização
das finanças e das dívidas, universalização do modelo de utilização dos recursos por
meio de uma universalização relacional das técnicas, universalização do trabalho, isto
é, do mercado do trabalho e do trabalho improdutivo, universalização do ambiente
das firmas e das economias, universalização dos gostos, do consumo, da alimentação.
Universalização da cultura e dos modelos de vida social, universalização de uma
racionalidade a serviço do capital erigida em moralidade igualmente universalizada,
universalidade de uma ideologia mercantil concebida do exterior, universalização do
espaço, universalização da sociedade tornada mundial e do homem ameaçado por
uma alienação total.

3
Na fase do monopólio múltiplo transnacional, o desenvolvimento das forças produtivas ocorre na escala do
planeta. A divisão mundial capitalista do trabalho daí decorrente é ao mesmo tempo uma especialização adiantada e
uma integração. A possibilidade concreta de localizar ramos, processos, fábricas, explorações econômicas, de utilizar redes
de transporte e de comercialização, de obter de toda parte informações praticamente instantâneas e de processá-las
eletronicamente nesses centros estrategicamente distribuídos, de influenciar de maneira decisiva nas determinações
políticas nacionais ou multinacionais, de mobilizar rapidamente funcionários e agentes através do mundo, tudo isso
transforma as corporações múltiplas em fatores poderosos de uma combinação complexa das forças produtivas, com
variáveis muito numerosas e parâmetros operacionais que atuam em variados níveis de agregação” (MAZA ZAVALA, D.
1976, p. 43).
155
Unidade III

Vivemos num mundo em que a lei do valor mundializado comanda a produção total, por
meio das produções e das técnicas dominantes, aquelas que utilizam esse trabalho científico
universal previsto por Marx. A base de todas essas produções, também ela, é universal, e sua
realização depende doravante de um mercado mundial.

Será que essa mundialização é completa? Para muitos, não haveria, por exemplo,
mundialização das classes sociais [...] nem uma moralidade universal, ainda que fosse a
moralidade dos Estados. Se as firmas multinacionais criam em toda parte burguesias
transnacionais [...], e se instituições de natureza semelhante estão presentes em todos os
países, as classes são ainda definidas territorialmente, assim como as aspirações e o caráter
de um povo ainda o são em razão das heranças históricas. Os Estados, cujo número se
multiplicou devido às novas condições históricas, constituem um sistema mundial, mas
individualmente eles são, ao mesmo tempo, uma porta de entrada e uma barreira para as
influências exógenas. Sua ação, embora autoritária, assenta nas realidades preexistentes e
por isso jamais induz uma mundialização completa das estruturas profundas da Nação. Mas
isto não basta para impedir que se fale de globalização. Hoje, o que não é mundializado é
condição de mundialização.

2. Um período técnico-científico?

E possível discordar quanto à denominação e às características do atual período


histórico. Nós o vivemos, e nada é mais difícil que definir o presente. Porém já sabemos
que nossa época implicou uma revolução global não totalmente acabada, mas cujos
efeitos são perceptíveis em todos os aspectos da vida. Como disse Lucien Goldmann,
“[...] a partir da Segunda Guerra Mundial, torna-se cada vez mais evidente para os
pesquisadores sérios que temos um terceiro tipo de capitalismo, para o qual se emprega
toda uma série de expressões: capitalismo de organização, sociedade de massa etc.
Trata-se, sempre, do capitalismo, sem dúvida, mas mudanças essenciais surgiram”.
Nossa época sugere que devemos ter bem presente no espírito a advertência de Marx,
para quem “o destino das novas criações históricas é o de serem consideradas como
se nada mais fossem que uma contrapartida das formas antigas e mesmo defuntas da
vida social, às quais se assemelham”.

Acreditamos, como tantos outros, que as perturbações que caracterizam esta fase
da história humana decorrem em grande parte dos extraordinários progressos no
domínio das ciências e das técnicas. Estaríamos no período do capitalismo tecnológico
[...], ou da sociedade tecnológica [...]. Sem dúvida, podemos perguntar-nos, de um lado,
se o desenvolvimento econômico não dependeu sempre do progresso científico [...], ou
lembrar, como fez E. Mandel (1980), que esta é apenas a terceira revolução científica;
e, por outro lado, seria bom levantar com frequência a questão: “As máquinas fazem
a história?” Há os que creem numa espécie de determinismo tecnológico e os que se
põem em guarda contra todo risco implícito na crença em uma “ilusão tecnológica”.
Preferimos a companhia destes últimos, sem com isso minimizar o papel fundamental
desempenhado pelos progressos científicos e técnicos nas transformações recentemente
156
CIÊNCIA POLÍTICA

sofridas pelo planeta. Esta “transformação total dos fundamentos da vida humana” de
que fala Bernal teria sido impossível de outra forma.

Trata-se agora de [uma] verdadeira interdependência entre a ciência e a técnica,


contrariamente ao que acontecia outrora. De fato, como observou R. Richta, hoje “a ciência
precede a técnica” [...], embora sua realização lhe seja cada vez mais subordinada. A tecnologia
daí resultante é utilizada em escala mundial, e nada mais conta a não ser uma busca
desenfreada do lucro, onde quer que as condições o permitam. Este é um dado fundamental
da situação atual. O fato de a tecnologia ter se tornado um elemento exógeno para grande
parte da humanidade [...] acarreta consequências de enorme alcance, já que sua utilização
universal, quase sempre sem relação com os recursos naturais e humanos locais, é causa de
graves distorções. Ora, tudo isso só foi possível porque o trabalho científico foi praticamente
colocado a serviço da produção. A ciência tem, doravante, um papel produtivo [...].

3. Mundialização perversa e perversão das ciências

A mundialização que se vê é perversa [...]. Concentração e centralização da economia e


do poder político, cultura de massa, cientificização da burocracia, centralização agravada
das decisões e da informação, tudo isso forma a base de um acirramento das desigualdades
entre países e entre classes sociais, assim como da opressão e desintegração do indivíduo.
Desse modo, compreende-se que haja correspondência entre sociedade global e crise global.
É igualmente compreensível, mas lamentável, que esse movimento geral tenha atingido a
própria atividade científica.

A redescoberta do planeta e do homem, isto é, a amplificação do saber que lhes diz


respeito, são apenas os dois termos de uma mesma equação. Essa equação é presidida
pela produção em suas formas materiais e imateriais. Os conhecimentos atuam sobre os
instrumentos de trabalho, impondo-lhes modificações não raro brutais e produzindo males
ou benefícios, segundo as condições de utilização.

Quando a ciência se deixa claramente cooptar por uma tecnologia cujos objetivos
são mais econômicos que sociais, ela se torna tributária dos interesses da produção e dos
produtores hegemônicos e renuncia a toda vocação de servir a sociedade. Trata-se de um
saber instrumentalizado, [no qual] a metodologia substitui o método.

Um saber comprometido com interesses e institucionalizado em razão de


conhecimentos estritamente delimitados acaba por sofrer uma fragmentação cujo
resultado é não a autonomia desejável das disciplinas científicas, mas a sua separação.
A evolução econômica agrava essa distância e nos afasta cada vez mais de um enfoque
global e da visão crítica que ele permite. Então, o trabalho do cientista se vê despojado
de seu conteúdo teleológico e deve ser feito segundo uma ótica puramente pragmática
para atender aos que pedem as pesquisas ou dirigem as instituições de ensino. Quando
o trabalho científico deve atender a objetivos utilitariamente estabelecidos, temos
diante de nós o divórcio entre a teoria e a práxis (GOULDNER, 1976). Daí a possibilidade
157
Unidade III

de um sucesso prático das teorias falsas (BUNGE, 1968). Eis por que já se falou, e com
razão, de uma perversão da ciência4.

As ciências sociais não fazem exceção nesse contexto. O mesmo movimento também
as deformou e descaracterizou. Nunca é demais insistir no risco representado por uma
ciência social monodisciplinar, desinteressada das relações globais entre os diferentes
vetores de que a sociedade é constituída como um todo. Pode-se talvez encontrar uma
das principais causas da crise atual das ciências sociais em sua insalubridade. Boa parte da
produção intelectual nesse domínio despreza os estudos mundiais globalizantes. Esse atraso
em relação ao mundo é uma das marcas desse desatino das ciências humanas. Incapazes
de apreender a separação entre princípios e normas (CATEMARIO, 1968, p. 74) e por isso
mesmo empobrecidas, não surpreende constatar as múltiplas formas de sua submissão a
interesses quase sempre inglórios do mundo da produção. Elas se põem, por vezes sem
julgamento crítico, a serviço do marketing, daquilo que se chama relações humanas, de toda
sorte de social engineering e de produção, sob encomenda das ideologias [...], reduzindo
assim gradualmente suas possibilidades. Desse modo, as ciências sociais se interessam por
uma amostragem tendenciosa das contradições mais importantes; o Estado e as firmas
transnacionais, o Estado e a nação, o crescimento e o empobrecimento, o Leste e o Oeste,
o desenvolvimento e o subdesenvolvimento etc., de modo a ocultar as causas reais e os
resultados previsíveis dos encadeamentos entre fenômenos.

Assim, reduzindo seu alcance e fragmentando seu campo de ação, elas se


internacionalizam, tornando-se incapazes de uma visão mundial e crítica. Os excessos de
especialização e a perda de ambição de universalidade são dois aspectos de uma mesma
questão e permitem a utilização perversa das ciências sociais.

A geografia não escapa a essa tendência. Desenvolvida parcialmente sob o signo do


utilitarismo, fundada na economia neoclássica – portanto aespacial –, ela era chamada a
negar-se a si mesma. Por isso ela conta entre suas fraquezas o fato de não ter um objeto
claramente definido e a pobreza teórica e epistemológica sobre a qual repousa sua prática. A
inexistência de um sistema de referências mais sólido, de resto, explica o papel de relevo que
essa disciplina desempenhou na reorganização não igualitária do espaço e da sociedade,
tanto ao nível mundial como no local.

4. As possibilidades entreabertas às ciências do homem

Embora assinalado por atividades quase sempre desviadas para preocupações imediatistas e
utilitaristas, o atual período histórico encerra igualmente o germe de uma mudança de tendência.

4
Um traço notável do período atual é que as análises vivamente críticas da empresa científica vêm de universitários
respeitáveis, cujo radicalismo é moderado ou nulo. Essa crítica da ciência, respeitável e feita do interior, exprime a nova
consciência da ciência e o abandono de sua segurança de outrora. Quando se consideram as declarações de porta-vozes da
ciência, fica-se chocado por seu caráter de propaganda. [Milton Santos lembra que, para os grandes cientistas do século
XIX], o cientista era um exemplo das maiores virtudes intelectuais e morais” [...] (RAVETZ, J. P. 1977, p. 79).
158
CIÊNCIA POLÍTICA

Se, por um lado, a ciência se torna uma força produtiva, observa-se, por outro, um aumento da
importância do homem – isto é, de seu saber – no processo produtivo. Esse saber permite um
conhecimento mais amplo e aprofundado do planeta, constituindo uma verdadeira redescoberta
do mundo e das enormes possibilidades que ele contém, visto ser revalorizada a própria atividade
humana. Só falta colocar esses imensos recursos a serviço da humanidade.

Trata-se de uma tarefa de longo fôlego, mas não impossível, que supõe a existência de
uma ciência autônoma, conforme a definiu R. Wuthrow (1980, p. 30).

No momento, as condições locais de realização da economia internacional acabam por dar a


primazia ao imperativo tecnológico, a conjuntos técnicos considerados como fixos, pois a própria
ciência econômica parece organizar seus postulados [pautada em] equações técnicas rígidas.
Cumpre agora chegar a uma liberação desse imperativo tecnológico e subordinar as escolhas
técnicas a finalidades bem mais amplas que a própria economia. Vê-se, assim, que não se trata
absolutamente de uma questão técnica nem do domínio das ciências exatas, pois o problema diz
respeito às ciências sociais, cuja responsabilidade se vê assim aumentada.

Conquanto imposta por necessidades históricas, a redescoberta da natureza e do


homem deve ser creditada, sobretudo às disciplinas naturais, biológicas e exatas, ou seja, às
“ciências”. Isso insuflou nas “não ciências”, disciplinas do homem e da sociedade, um novo
valor, ainda insuficientemente avaliado, na construção racional da história.

Os novos conhecimentos “científicos” apontam para o reino do possível, enquanto


sua realização concreta pertence mais ao domínio das condições econômicas, culturais e
políticas. Como o futuro não é único, mas deve ser escolhido, são as ciências sociais que se
tornam as ciências de base para uma construção voluntária da história. Como? Trata-se de
alargar sua base filosófica de tal modo que as preocupações teleológicas não constituem
obstáculo à fiel transcrição dos fenômenos.

As novas realidades são ao mesmo tempo causa e consequência de uma multiplicação


de possibilidades, potenciais ou concretizadas, cuja multiplicidade de arranjos é fator de
complexidade e de diferenciação crescentes. Não se trata aqui de adaptação do passado,
mas de subversão das concepções fundamentais, das formas de abordagem, dos temas
de análise. Isso equivale a dizer que mudam ao mesmo tempo o conteúdo, o método, as
categorias de estudo e as palavras-chave.

Enquanto promessa, o crescimento das possibilidades diz respeito ao mundo inteiro e a


toda a humanidade, mas a historização e a geografização das possibilidades estão sujeitas
à lei das necessidades. A divisão dos domínios nem sempre é nítida, mas se pode pensar
que num mundo assim construído são as ciências do homem que ganham em alcance.
Ademais, inúmeras combinações doravante possíveis não são desejáveis; outras, igualmente
numerosas, não convêm a todos os países ou regiões.

Adaptado de: Santos (1988, p. 11-22).

159
Unidade III

Os 7 bilhões de habitantes da espaçonave Terra enfrentam um cenário de mudanças econômicas,


políticas, climáticas e culturais. É uma verdadeira crise civilizatória e de valores.

O cientista político francês Dominique Moïsi, autor de A Geopolítica das Emoções (2009), sentencia
que “o Ocidente perde peso relativo, a Ásia renasce, os emergentes ganham novo peso. A política está
em franca transformação”. É um mundo multipolar e pluricultural.

Moïsi tece ao longo de seu livro os elos que lhe permitiram entrever as emoções como
motivações, claras ou não, residuais ou presentes. Cita casos e apresenta exemplos nos quais
os sentimentos profundos, em várias escalas, por exemplo, como indivíduo e povos, respondem
diante de demandas complexas.

Houve uma época em que os estudantes de assuntos internacionais


descontavam tacitamente a importância das emoções. A política global
era o campo reservado a uma casta especial de profissionais, aristocratas
europeus, em sua maioria, que viam a política mundial como um jogo
de xadrez. Estados e governos deveriam agir racionalmente. As emoções
deviam ser mantidas a distância, pois introduziam irracionalidade adicional
ao mundo, que já estava em um estado natural de desordem. Portanto, as
emoções eram contidas e organizadas por acordos internacionais destinados
a fornecer estrutura a um mundo ingovernável. Assim, o Tratado de
Westphalia (1648), produto do grande congresso internacional da história,
terminou com a Guerra dos Trinta Anos e estabeleceu uma comunidade
europeia que deteria paixões, com fervor religioso (MOÏSI, 2009, p. 3-4).

Moïsi agracia-nos com uma aproximação complexa da realidade internacional, propiciando um


cotejamento com o ensaio sobre a política de Bauman (2000).

8 O PENSAMENTO CLÁSSICO SOBRE A POLÍTICA E A VARIEDADE DE


ORGANIZAÇÕES DE PODER: O CRIVO DA FILOSOFIA

Um dos ensinamentos mais preciosos de Norberto Bobbio (1909-2004) no


campo da teoria política é saber ouvir as lições dos clássicos. Essas lições
permitem estudar os temas recorrentes que se colocam em relação aos
grandes problemas, igualmente recorrentes, da reflexão política. O estudo
desses temas, que atravessam toda a história do pensamento político, tem
como função, segundo Bobbio, “individuar certas categorias que permitem
fixar em conceitos gerais os fenômenos que passam a fazer parte do universo
político”. A primeira função, portanto, é a de determinar os conceitos
políticos fundamentais, enquanto a segunda consiste em estabelecer entre
as diversas teorias políticas, de diferentes épocas, as possíveis afinidades e
diferenças (PERRONE-MOISÉS, [s.d]).

160
CIÊNCIA POLÍTICA

Trataremos das principais ideias de intelectuais que marcaram o pensamento acadêmico e muito
do que se criou em organização política do poder em nossas sociedades ocidentais. Suas principais
ideias virão, contextualizadas, num esforço de leitura dos tópicos iniciais sobre poder e política, pela
via da proximidade ontológica (nascimento dos objetos e das ideias correlatas), da interpretação dos
acontecimentos, como as constituições de estruturas estatais e suas ações no espaço global.

Cada um desses intelectuais leva mais longe nossas reflexões sobre os assuntos tratados, e
somente são clássicos por serem convergentes e contemplarem o bom senso. Eles são destacados de
modo grosseiro, estereotipado, com rotulações repletas de preconceitos, colocados como de ideais
opostos em apresentações com vistas às facilidades didáticas. Contudo, sua complexidade merece um
segundo passo, o da procura das convergências. Com o intuito de desmitificá-los, descontruindo os
preconceitos, veremos que, por detrás da aparente oposição, Platão e Aristóteles têm muito em comum
e complementações imprescindíveis, assim como Hobbes e Rousseau. Maquiavel é tido como de atitude
extremamente encomiástica com relação à nobreza, isto é, “bajulador” de reis! Longe disso, era entusiasta
da república, de modo subliminar.

A grande pergunta é: quem pode o quê, quando e como?

Agentes, poder, política, história, formas e organizações do poder? Vejamos o excerto a seguir.

Bobbio e a teoria política na lição dos clássicos

Para Bobbio, clássico é um autor intérprete de seu tempo. O que interessa é identificar
temas para reflexão

Um dos ensinamentos mais preciosos de Norberto Bobbio (1909-2004) no campo da


teoria política é saber ouvir as lições dos clássicos(1). Essas lições permitem estudar os temas
recorrentes que se colocam em relação aos grandes problemas, igualmente recorrentes, da
reflexão política. O estudo desses temas, que atravessam toda a história do pensamento
político, tem como função, segundo Bobbio, “individuar certas categorias que permitem
fixar em conceitos gerais os fenômenos que passam a fazer parte do universo político”. A
primeira função, portanto, é a de determinar os conceitos políticos fundamentais, enquanto
a segunda consiste em estabelecer entre as diversas teorias políticas, de diferentes épocas,
as possíveis afinidades e diferenças.

E, no entanto, que confere a um autor a qualidade de clássico? Para Bobbio, clássico


é o autor que ao mesmo tempo é “intérprete autêntico de seu próprio tempo”, “sempre
atual, de modo que cada época, ou mesmo cada geração, sinta a necessidade de
relê-lo e, relendo-o, de reinterpretá-lo” e que tenha construído “teorias-modelo das quais
nos servimos continuamente para compreender a realidade”. Como aponta Michelangelo
Bovero, essa definição levanta problemas ao intérprete, pois como é possível que a obra de
um intérprete autêntico de seu próprio tempo possa ser reinterpretada continuamente? A
resposta parece estar na seguinte afirmação de Bobbio: “No estudo dos autores do passado,
jamais fui particularmente atraído pela miragem do chamado enquadramento histórico,
161
Unidade III

que eleva fontes a precedentes, as ocasiões e condições, detém-se por vezes nos detalhes
até perder o ponto de vista do todo: dediquei-me, ao contrário, com particular interesse,
ao delineamento de temas fundamentais, ao esclarecimento dos conceitos, à análise dos
argumentos, à reconstrução do sistema”. O que interessa identificar nos clássicos não é
tanto seu significado histórico, mas sim, nas palavras de Bobbio, “hipóteses de pesquisa,
temas para reflexão, ideias gerais”.

Os autores clássicos para Bobbio, em sua análise da teoria política, são, principalmente,
Emanuel Kant (1724-1804), Karl Marx (1818-1883) e Max Weber (1864-1920). Kant é um
autor frequente na obra de Bobbio, tanto assim que lhe dedicou um de seus livros, Direito e
Estado no Pensamento de Emanuel Kant. Para esse autor, o tema recorrente do pensamento
político é o da liberdade, ou melhor, das duas liberdades, como diria Bobbio: “O primeiro
significado é aquele recorrente na doutrina liberal clássica, segundo a qual ‘ser livre’ significa
gozar de uma esfera de ação, mais ou menos ampla, não controlada pelos órgãos do poder
estatal; o segundo significado é aquele utilizado pela doutrina democrática, segundo a qual
‘ser livre’ não significa não haver leis, mas criar leis para si mesmo”. No que se refere a Marx,
confrontando sua teoria política com a dos autores que são considerados unanimemente como
clássicos do pensamento político, de Platão a Hegel, e procedendo por meio de comparações
por afinidades e diferenças, Bobbio demonstra a “reviravolta radical que Marx operou sobre
a tradição apologética do Estado” na medida em que, para ele, o Estado deixa de ser o reino
da razão e do “bem-comum” para ser considerado o reino da força e do interesse daqueles
que detêm o poder. O terceiro autor, tido por Bobbio como “o último dos clássicos”, é Max
Weber, cujas expressões “passaram a fazer parte definitivamente do patrimônio conceitual
das ciências sociais”. No campo da teoria política, Bobbio considera que nenhum estudioso
do século XX contribuiu de forma tão significativa como Weber para o enriquecimento do
léxico técnico da linguagem pertinente a esse campo. Dentre as expressões herdadas deste
autor, Bobbio lembra algumas que, pela sua reconhecida importância, dispensam maiores
comentários: poder tradicional e carisma, poder legal e poder racional, direito formal e direito
material, monopólio da força, ética da convicção e ética da responsabilidade.

A pergunta fundamental que se coloca relativamente ao trabalho que Bobbio elabora, a


partir dos temas recorrentes e das lições dos clássicos, diz respeito a saber qual seria o tipo
de filosofia política desenvolvida por ele. Inserida nessa indagação está a questão de sua
visão acerca da relação existente entre fato e valor e da adoção de uma teoria descritiva ou
prescritiva. Segundo Bobbio, existem quatro significados possíveis para a noção de filosofia
política, que correspondem a quatro tipos de investigação. O primeiro consistiria na ideia da
filosofia política como busca da melhor forma de governo ou da ótima República; o segundo,
da investigação do fundamento do Estado, com a consequente justificação ou injustificação
da obrigação política, ou seja, da legitimidade do poder político; o terceiro tipo é aquele que
visa à determinação do conceito geral de política, ou da essência da categoria do político, seja
por meio da “autonomia da política” em relação à moral, seja por meio da delimitação de seu
campo em relação à economia ou ao direito; finalmente, a quarta concepção parte da ideia da
filosofia como metaciência, de modo que a filosofia política teria como tarefa a investigação
dos pressupostos e das condições da validade da ciência e a análise da linguagem política.
162
CIÊNCIA POLÍTICA

Para Bobbio, a terceira definição seria a mais apropriada para sua teoria política.
No entanto, se partirmos dessa hipótese, o problema que teremos de enfrentar diz
respeito à inexistência, em uma teoria assim considerada, de uma dimensão valorativa
presente nos dois primeiros tipos. Como bem ponderou Bobbio, porém, “não há teoria
tão asséptica que não permita entrever elementos ideológicos que nenhuma pureza
metodológica pode eliminar totalmente”. Bobbio parece então oscilar entre uma
filosofia política puramente cognoscitiva e uma filosofia propositiva, mas, na verdade,
apresenta em sua obra as duas dimensões.

Apontando os temas reincidentes nas lições dos clássicos e suas teorias, Bobbio nos faz
perceber certa continuidade na história, continuidade essa que diz respeito também aos
problemas enfrentados por essas diversas teorias. A recorrência de problemas, de enfoques
e de soluções parece marcar toda a história do pensamento político. Isso não quer dizer
que em alguns momentos Bobbio desconheça haver certas “guinadas” na História, como
a “revolução copernicana” decorrente da afirmação do primado dos direitos sobre os
deveres, que a temática dos direitos humanos propiciou. Assumindo, portanto, a ideia dessa
continuidade, podemos pensar nas questões referentes ao chamado “fim da história” e à
possibilidade de encontrar-lhe um sentido. Como apontado por Bobbio em sua autobiografia
Diário de um século, “a história humana não apenas não acabou, como anunciou há alguns
anos um historiador americano, mas, talvez, a julgar pelo progresso técnico-científico que
está transformando radicalmente as possibilidades de comunicação entre todos os homens
vivos, esteja apenas começando. É difícil afirmar, contudo, que direção esteja destinada a
seguir”. Ainda a respeito do sentido da História, afirma: “Não tiro conclusão alguma acerca
do sentido da História, que, não tenho vergonha de declarar, ignoro qual seja. Tenho apenas
a sombria impressão de que ninguém ainda a captou”. De toda forma, fica evidente que,
para Bobbio, a História não acabou e que, se ela tem um sentido, ninguém ainda foi capaz
de dizer qual é. Visão realista, sim, mas não pessimista ou ingenuamente otimista.

Este ensaio tem como base a obra de Norberto Bobbio Teoria Geral da Política
(1)

(organização de Michelangelo Bovero, tradução de Daniela Beccaccia Versiani: Rio de


Janeiro, Ed. Campus, 2000).

Fonte: Perrone-Moisés ([s.d.]).

8.1 Platão e o nascimento da reflexão sobre a política

Na Apresentação de A República de Platão Recontada por Alain Badiou, Danilo Marcondes destaca
o seguinte:

Platão não separa o problema da política do problema do conhecimento,


não separa a discussão sobre a verdade da discussão sobre a justiça – isso
só ocorrerá na filosofia posteriormente. As questões se remetem umas
às outras e essa é uma das características centrais da dialética platônica
(BADIOU, 2014).
163
Unidade III

A grande conquista da humanidade é tornar-se progressivamente mais humana e, digamos assim, é


o grande foco do pensamento clássico, principalmente o de Platão.

No momento em que Platão escrevia, a política era entrelaçada ao cultivo das virtudes, da
justiça e ética, que a tornava o caminho do bem. Em que momento nos perdemos? Em que
momento nós a perdemos?

A boa política está sempre em questão na construção dos diálogos platônicos. Para tanto, Platão
persegue seu nascimento juntamente com as grandes aglomerações e coletividades, as cidades, a saúde
(equilibrada e harmônica) e a divisão do trabalho requerida ao seu funcionamento. Assim, a questão da
representação torna-se fundamental:

[...].

Sócrates resolveu ir ao ponto.

– Mas quem manda afinal? – pergunta, com uma voz melancólica e poderosa.

Todos se agitam. Sócrates insiste:

– Os velhos, os jovens? Os intelectuais, os militares? Os políticos profissionais,


quaisquer cidadãos? Quem manda afinal? Quem?

– Muito bem – diz Glauco, com uma voz arrastada –, não faço a menor ideia.
Os melhores, penso.

– Ah, os melhores! O que significa, em política, os melhores? O melhor


mecânico de automóveis é aquele que sabe cuidar do motor e consertar
todos os defeitos, certo?

Glauco assume o papel de escada:

– Quanto a isso, não é difícil concordar com você.

– Logo, considerando o que está em jogo em nossa discussão, os melhores


são aqueles que fazem o processo político avançar, sabendo, quando
convém, superar as dificuldades ou sair dos impasses. Para tal, imagino
que devam ser esclarecidos, capazes e, sobretudo, preocupados com o bem
público. Mas aquilo com que nos preocupamos é essencialmente o que
amamos. E o que amamos acima de tudo são aqueles cujos interesses
identificamos aos nossos e cujo destino, afortunado ou desafortunado,
julgamos partilhar. Ou não?

– Sim – diz Glauco, resignado.


164
CIÊNCIA POLÍTICA

– Da massa dos indivíduos que se incorporam ao processo político,


sobressairão aqueles que mostrarem cabalmente, ao longo de suas vidas,
um zelo excepcional na ativação desse processo e na recusa categórica a
contrariar seu devir.

– Com certeza – pontua Glauco –, é o tipo de que precisamos.

– É interessante acompanhá-los em todas as idades da vida para


certificar-se de que permanecem fiéis às máximas de nossa política, sem
traí-las ou abandoná-las. Ora, como, em circunstâncias propícias à corrupção
ou à instalação da violência desenfreada, eles agem para perseverar em sua
orientação subjetiva, a qual assim se resume: fazer o que melhor assegure a
continuidade do processo político?

– O que entende precisamente por abandono de um princípio? – pergunta


Amanda. – “Trair”, eu entendo. Mas “abandonar”?

– Boa pergunta… Parece-me que o nosso entendimento abandona uma


opinião de duas formas: voluntária ou involuntariamente. Voluntariamente,
quando compreendemos que ela é falsa. Involuntariamente, quando é
verdadeira (BADIOU, 2014).

A apresentação de Maria Helena da Rocha Pereira (2001, p. 18-53) à República de Platão é bastante
detalhada em termos de seu alcance e conjeturas, razão pela qual reproduzimos alguns de seus trechos
mais significativos.

[...]

Em qualquer caso, o Livro I [de A República] corresponde a uma parte da obra que, além
de ter a finalidade de apresentar as figuras e situar a discussão, fornece o tema da mesma,
o que é ajustiça, e refuta as definições propostas, a de Cefalo (“dizer a verdade e restituir o
que se tomou”), a de Polemarco (“dar a cada um o que se lhe deve”) e a de Trasímaco (“o que
está no interesse do mais forte”) (PEREIRA, 2001, p. 21).

[...]

No princípio do Livro II, insiste-se em querer saber a natureza da justiça e da injustiça


“sem ligar importância a salários nem a consequências”. Os dois irmãos de Platão querem,
portanto, a demonstração de que a justiça é intrinsecamente boa. Para tanto, Sócrates
propõe-se apreciar os factos em grande escala, o que lhe facilitará a tarefa. Por conseguinte,
transfere a sua análise do indivíduo para a cidade (idem, p. 22).

165
Unidade III

Descrevem-se então as transformações de uma cidade, que, de primitiva, torna-se em


luxuosa, motivo por que começa a precisar de uma especialização de tarefas cada vez maior.
Essa cidade carece de soldados que a defendam e preservem – de guardiões – com um treino
próprio. A educação deve dar-se-lhes, pela música e pela ginástica, à maneira tradicional
grega, que principia a ser estudada em 376a. Mas música, para os helenos, é a arte das
Musas, em que a poesia não se dissocia dos sons. Ora as fábulas dos poemas, que costumam
ensinar-se às crianças, estão repletas de falsidades sobre os deuses, a quem atribuem todos
os defeitos, em vez de revelarem a divindade na perfeição dos seus atributos. No começo do
livro já se haviam feito citações de versos que sugeriam que os deuses não eram garantia de
justiça; agora declara-se abertamente que os poetas não servem para instruir a juventude.

O Livro II prossegue o libelo acusatório, e, depois de mandar embora os que imitam o


mal, retoma o tema da educação pela música e pela ginástica [...]. Outros aspectos da vida
da comunidade são regulamentados no Livro IV, até que, depois de relegar para o oráculo
de Delfos a superintendência em matéria religiosa, Sócrates declara que, fundada a cidade,
estão agora aptos a procurar “onde poderia estar a justiça e onde a injustiça”. Ora, se a
cidade é perfeita, terá de possuir as quatro virtudes, sabedoria (sophia), coragem (andreia),
temperança (sophrosyne) e justiça (dikaiosyne). Definidas as três primeiras, atingir-se-á a
quarta por exclusão de partes. Se a primeira se encontra nos guardiões, a segunda nos
guerreiros e a terceira na harmonia geral de todas as classes, a justiça será que cada um
exerça uma só função na sociedade, aquela para a qual, por natureza, foi mais dotado
(433a). Resta verificar se estas conclusões, vistas nas “letras grandes”, são aplicáveis ao
indivíduo. Ora, a cidade tinha três classes: os guardiões, os militares e os artífices. Também
a alma do indivíduo tem três elementos: apetitivo, espiritual e racional. Aos apetites cabe
obedecer, às emoções assistir, à razão governar. “E assim assentamos suficientemente que
existem na cidade e na alma dos indivíduos os mesmos elementos, e no mesmo número”. O
seu equilíbrio ou desequilíbrio conduzem à justiça ou à injustiça. É esse o aspecto que falta
estudar (idem, p. 22-24).

[...]

É esse ponto que vai ser esclarecido (comunidade de mulheres e filhos), com grandes
rodeios e precauções, expressas na metáfora das vagas marinhas, ao longo do Livro
V. Primeiro, far-se-á a proposta de que as mulheres, podendo ter a mesma capacidade
dos homens, devem tomar parte nos cargos diretivos da cidade; segundo, expor-se-á o
complicado sistema pelo qual se realizarão os casamentos e a procriação na classe dos
guardiões, de molde a obter o mais alto grau de eugenia; a terceira, a mais temível das
vagas, consiste em proclamar a condição necessária para que tal Estado se torne realizável:
que seja governado por filósofos (idem, p. 25).

[...]

Os dois livros (VI e VII) seguintes ocupar-se-ão, logicamente, da preparação do filósofo.


Depois de enumerar as qualidades que o recomendam para ocupar os lugares de chefia e
166
CIÊNCIA POLÍTICA

de analisar as causas do desfavor em que geralmente é tido, principia a esboçar a maneira


de formar os guardiões (502c-d), a fim de eles procurarem alcançar o saber mais elevado
(megiston mathema – 505a), cujo objeto é a ideia do bem, a ideia suprema que torna
inteligível o mundo (idem, p. 26).

[...]

É o próprio texto [A República], efetivamente, que afirma a relação entre os três símiles
[ou alegorias]: do Sol com o da Linha Dividida em VI (509c); e deste último com o da
Caverna em VIL (517a-r). Esta segunda equivalência tem sido, ela mesma, objeto de grandes
discordâncias, até porque principia por se declarar, de uma forma um tanto vaga, que “este
quadro deve agora aplicar-se a tudo quanto dissemos anteriormente”, o que, na verdade,
podia dizer respeito, em princípio, tanto a um como a outro dos símiles. Mas a continuação
explicita que se deve comparar o mundo visível à caverna e o inteligível à ascensão dos
prisioneiros ao mundo superior.

Para empregar uma imagem tirada da própria República, diríamos que estes símiles
encaixam uns nos outros como os contrapesos do fuso da Necessidade, no mito de Er [...],
“que, na parte superior, tinham o rebordo visível como outros tantos círculos, formando um
plano contínuo de um só fuso em volta da haste...”.

Em primeiro lugar, temos, pois, a metáfora do Sol, que mostra que esse astro está para o
mundo visível como o Bem para o sensível.

O segundo consiste em imaginar uma linha para ser dividida em duas partes desiguais,
cada uma das quais seria ainda seccionada segundo a mesma proporção. Se designarmos
a linha por AB, o primeiro corte por C e os outros por D e E, e indo buscar ao texto as
equivalências dos segmentos assim obtidos, podemos traçar o seguinte diagrama:

Portanto, o mundo visível (horata ou doxasta) tem em primeiro lugar uma zona de
eikones (“imagens”, reflexos nas águas), conhecidos pela eikasia (“suposição”, ou, como
167
Unidade III

outros preferem, “ilusão”). Num nível mais elevado, temos todos os seres vivos (zoa) e objetos
do mundo, conhecidos através de pistis (“fé”). O mundo inteligível (noeta) tem também
dois setores proporcionais a estes, o inferior e o superior, o primeiro apreendido através da
dianoia (“entendimento” ou “razão discursiva”). Nesta última distinção poderá residir, como
alguns supõem, a finalidade principal da analogia: o contraste entre o conhecimento pela
dianoia, que é o das ciências, e o que é pela noesis, que é o da filosofia. Mas não é menos
importante a antinomia entre opinião e saber, entre doxa e sophia, que tínhamos visto ao
terminar do Livro IV e vai tomar forma nítida na alegoria da Caverna (VII. 514a-518b):

Homens algemados de pernas e pescoços desde a infância, numa caverna, e voltados


contra a abertura da mesma, por onde entra a luz de uma fogueira acesa no exterior, não
conhecem da realidade senão as sombras das figuras que passam, projetadas na parede,
e os ecos das suas vozes. Se um dia soltassem um desses prisioneiros e o obrigassem a
voltar-se e olhar para a luz, esses movimentos ser-lhe-iam penosos, e não saberia reconhecer
os objetos. Mas se o fizessem vir para fora, subir a ladeira e olhar para as coisas até vencer o
deslumbramento, acabaria por conhecer tudo perfeitamente e por desprezar o saber que se
possuía na caverna. Se voltasse para junto dos antigos companheiros, seria por eles troçado,
como um visionário; e quem tentasse tirá-los daquela escravidão arriscar-se-ia mesmo a
que o matassem.

Antes de iniciar a alegoria, no começo do Livro VIl, Platão dissera expressamente que se
tratava de dar a conhecer o comportamento da natureza humana, conforme ela é ou não
submetida à educação (VII). Ora, o modo como esta há de processar-se constitui o tema
central do Livro.

Deve notar-se em primeiro lugar que o curriculum que se propõe visa “à disciplina
mental e ao desenvolvimento do poder de pensamento abstrato”. Por isso, temos em
sucessão os vários ramos então conhecidos da matemática (incluindo um acabado de criar,
e ainda sem nome, a futura estereometria), desligados, como sublinha o próprio texto, das
suas aplicações práticas (VII. 525b-d). Temos, assim, como base, a aritmética que “facilita a
passagem da própria alma da mutabilidade à verdade e à essência” (VH. 525c); a seguir, o
espaço a duas dimensões, ou geometria plana; em terceiro lugar, o espaço a três dimensões,
por meio da estereometria; a astronomia estuda os corpos sólidos em movimento; e a
harmonia, o som que eles então produzem. Trata-se, portanto, de um ensino essencialmente
formativo. Todas estas ciências têm por missão preparar o espírito para atingir o plano mais
elevado: a dialética, cujo fim é o conhecimento do Bem (VII. 533b-e). Para o seu aprendizado,
selecionaram-se os mais bem-dotados, quando atingem a idade de trinta anos (VII. 537d),
como anteriormente tinham sido escolhidos, aos vinte anos, os que haviam de encetar uma
educação superior (VII. 537b-c).

Eis o modo como Platão a define:

O método da dialética é o único que procede, por meio da destruição das hipóteses, a
caminho do autêntico princípio, a fim de tomar seguros os seus resultados, e que realmente
168
CIÊNCIA POLÍTICA

arrasta aos poucos os olhos da alma da espécie de lodo bárbaro em que está atolada e
eleva-os às alturas, utilizando como auxiliares para ajudar a conduzi-los as artes que
analisamos (idem, p. 7).

[...]

E, para nos tirar quaisquer dúvidas sobre a relação entre esta ordenação dos estudos e
os quatro graus de entendimento anteriormente referidos, explica de novo:

Bastará, pois, que, como anteriormente, chamemos ciência à primeira divisão,


entendimento à segunda, fé à terceira, e suposição à quarta, e opinião às duas últimas,
inteligência às duas primeiras, sendo a opinião relativa à mutabilidade, e a inteligência à
essência (idem, p. 7).

É próprio do saber dialético “apreender a essência de cada coisa”. Deve ser capaz de
distinguir a natureza essencial do Bem, isolando-o de todas as outras ideias (idem, p. 7).

Demoramos um pouco na noção de dialética, porque é uma das várias palavras-chave


deste diálogo, que mudaram de tal modo de sentido que o seu emprego sem advertência
prévia pode induzir em erro. Derivada de dialegesthai (“falar com”, “discorrer”, “raciocinar”),
pressupõe interlocutores – exatamente como ocorre no modo de filosofar da obra platónica,
designada, aliás, por uma palavra da mesma família: “diálogo” (idem, p. 32).

Por esse motivo, Nettleship pôde escrever: “O termo dialética”, que desempenha um papel
quase tão proeminente na filosofia platónica como “forma”, não significa originariamente
nada mais do que o processo de discussão oral por meio de pergunta e resposta”. E ainda:
“[...] a palavra passou do simples significado de “discorrer” para o de “discorrer com o fim
de atingir a verdade” e este “discorrer” pode executar-se através de palavras entre duas
pessoas ou ser ‘o diálogo silenciosamente conduzido pela alma consigo mesma’ (sofista)”. Da
designação do método (idem, p. 7), passa a identificar-se com o próprio objeto a alcançar
por essa via, que é o saber filosófico.

Ao principiar o Livro VIII, Sócrates recapitula a legislação estabelecida para a cidade


ideal e os seus guardiões e propõe-se regressar ao caminho anterior (idem, p. 8). Recorda
ainda que Gláucon estava a referir-se às outras quatro espécies de governo, quando foram
interrompidos por Polemarco e Adimanto (idem, p. 8). Retomada a discussão neste ponto,
vão-se descrever essas quatro espécies e a maneira (anti-histórica, mas convincente) como
degeneraram umas nas outras. Deste modo se traça o quadro da timocracia (ou governo que
preza as honrarias), oligarquia, democracia e tirania, bem como do homem que corresponde
a cada uma.

A descrição do ponto mais baixo a que chegou a degradação humana põe de novo a
questão inicial da felicidade e virtude de cada uma destas espécies, em relação com as
qualidades que predominam na cidade, com a conclusão de que o tirano, escravo dos mais
169
Unidade III

sórdidos prazeres e apetites, é o que mais se opõe ao filósofo-rei, que tem acesso aos prazeres
puros e reais, e de que é a justiça, e não a injustiça, que traz vantagens a quem a pratica.

Ao terminar o Livro IX, Gláucon reconhece que a cidade que acabam de delinear é
utópica. Mas, objeta Sócrates, fica o paradigma no céu, para quem quiser contemplá-lo e
estabelecer por ele o seu teor de vida. Quer a cidade exista, quer não, é só a esse modelo
que o filósofo seguirá.

O Livro X tem aparecido à maioria dos comentadores como um suplemento ou um


apêndice. A discussão tinha já terminado, com o contraste entre a vida do homem justo e a
do injusto, e conclusão sobre a superioridade daquela – respondendo, portanto, à asserção
de Trasímaco. Mas Sócrates reabre o diálogo, para precisar a importância das disposições
sobre a poesia, que hão de observar-se na cidade fundada (idem, p. 33-34).

[...]

O tema principal. Apreciamos, através desta sucinta análise, a ordenação dos motivos
ao longo do diálogo. Tivemos assim ocasião de ver que um grande número de temas foi
abordado. A propósito das origens da cidade, no Livro II, discutiu-se teoria política, ao
formular a chamada Teoria Orgânica, que vê no Estado uma pessoa política, dotada de
vida e carácter próprio. Outros encontraram na tese de Gláucon, que é natural ao explorar
os seus semelhantes, mas deixa de o fazer logo que descobre que tem mais vantagem em
chegar a acordo com os outros, uma primeira exposição da Teoria do Contrato Social. À
teoria política é também indubitavelmente consagrado o Livro I, assim como os Livros VIII e
XIX, que descrevem o modo como se originam as várias formas de governo. A psicologia tem
um lugar de relevo no Livro IV, no qual se analisam os elementos da alma, e no Livro X, no
qual se apresentam provas da sua imortalidade. Nos Livros VI e VII, assume grande papel a
Teoria das Ideias, que é fundamental na epistemologia platónica, mas, além disso, não pode
dissociar-se da sua metafisica e ética. Não esqueçamos que é para a ideia suprema do Bem
que se orienta a formação do filósofo-rei.

O Livro VII formula uma teoria da educação, ilustrada com um esquema de curriculum
de estudos superiores, que vem contemplar a formação elementar, que se preconizara
no Livro III. Além disso, ao enumerar as diversas ciências que compõem esse plano,
referem-se os principais problemas que têm a resolver. O fato é mais evidente quando se
trata da astronomia, mas não deve deixar de se atentar – sem olvidar o que representava de
arrojada novidade para a época – no elogio da estereometria. Ocasionalmente, também se
fala do papel que deve ter a medicina na sociedade (m. 405d-408e).

Define-se, além disso, o que seja filósofo e filosofia (V; VI), e o método desta última
(e. g., VII).

Depois desta enumeração, aliás, poder-se-á perguntar, ante tal variedade, se existe um
tema principal, e, no caso afirmativo, se ele é ou não o que o título da obra indica.
170
CIÊNCIA POLÍTICA

Tivemos anteriormente oportunidade de verificar que certas palavras-chave da República


podiam induzir o leitor em erro, se não soubesse previamente o que elas significavam no
século IV a. C. em geral, e para o autor em particular. Ora, uma dessas é precisamente o título
da obra, Politeia, cujo sentido etimológico é “constituição” ou “forma de governo” de uma
polis ou cidade-Estado. É tudo o que diz respeito à vida pública de um Estado, incluindo
os direitos dos cidadãos que o constituem. Este aspecto público, comunitário, traduz-se
claramente na equivalência que os romanos deram ao termo, empregando o composto
que ainda hoje usamos, res publica. Não designa, por conseguinte, uma forma de governo
determinada, mas todas em geral.

Ora, num livro com este título, a pergunta fundamental, que de base a todo o diálogo, é:
Que é Dikaiosyne? Esta, bem como o adjetivo de onde deriva, dikaios, constituem dificuldade
idêntica à anterior, porquanto é, como escreveu R L. Nettleship, “o mais genérico dos
nomes gregos para a virtude, e, no seu sentido mais lato, diz-nos Aristóteles, equivalente
‘à totalidade de virtudes, tal como se mostra no nosso trato com os outros’ [...]”. É, em
resumo, “proceder bem” para com os demais. Sendo assim, e tendo presente a equivalência,
já referida mais de uma vez, e fortemente sublinhada ao longo dos Livros VIII-IX, entre
Estado e indivíduo, compreendemos o âmbito da Dikaiosyne e sua relevância na estrutura
da cidade, na Politeia. Não precisamos de supor, como E. A. Havelock, que a República é
primariamente “um ataque ao aparelho educativo existente na Grécia”. Antes nos parece
que o problema deve formular-se ao contrário: porque o sistema educativo é essencial na
formação dos cidadãos, cabe-lhe um papel de relevo numa obra que trata da cidade.

O mesmo helenista que se explica o lugar destacado conferido à condenação da poesia,


no último Livro. Recorde-se, contudo, que não é esse o fecho da obra, mas sim o mito
de Er, cuja finalidade é demonstrar, com todo o aparato imaginativo de que se reveste, a
necessidade de proceder bem durante a vida, ou seja, de ser justo.

Fonte: Pereira (apud Platão, 2001, p. 18-53).

Se Platão nos fala de uma política em ambiente social saudável, o que supõe boa formação de todos,
tal noção de vida política somente atinge o bem comum e a justiça se for compartilhada. Isso é a própria
ideia de diálogo, muito além de simples conversa.

Assim, preparamos terreno para as contribuições aristotélicas.

8.2 Aristóteles, as constituições e a dinâmica da polis

Nós capítulos iniciais da Ética a Nicômacos, Aristóteles aplica o termo


“política” a um assunto único – a ciência da felicidade humana – subdividido
em duas partes: a primeira é a ética e a segunda é a política propriamente
dita. A felicidade humana consistiria em uma certa maneira de viver, e a
vida de um homem é o resultado do meio em que ele existe, das leis, dos
costumes e das instituições adotadas pela comunidade à qual ele pertence.
171
Unidade III

Na zoologia de Aristóteles, o homem é classificado como um “animal


social por natureza” (Política; livro 1, capítulo I), que desenvolve suas
potencialidades na vida em sociedade, organizada adequadamente para seu
bem-estar. A meta da “política” é descobrir primeiro a maneira de viver que
leva à felicidade humana e depois a forma de governo e as instituições
sociais capazes de assegurar aquela maneira de viver. A primeira tarefa
leva ao estudo do caráter (ethos), objeto da Ética a Nicômacos; a última
conduz ao estudo da constituição da cidade-Estado, objeto da Política. Esta,
portanto, é uma sequência da Ética, e é a segunda parte de um tratado
único, embora seu título corresponda à totalidade do assunto. Aliás, já na
geração anterior a Aristóteles, Platão, seu mestre, havia abrangido as duas
partes do assunto em um só diálogo (KURY, 1985, p. 8).

Aristóteles, conhecido por ser o primeiro grande sistematizador, organizador do conhecimento,


estabeleceu grandes classificações e sua influência se faz sentir até hoje. Assim,

No esquema global das ciências segundo Aristóteles, a Política pertence ao


grupo das ciências práticas, que buscam o conhecimento como um meio para
a ação, em contraposição às ciências teóricas (a metafísica e a teologia, por
“exemplo”), cujo conhecimento é um fim em si mesmo. As ciências práticas
se subdividem, por sua vez, de conformidade com a sistemática dicotômica
de Aristóteles, em dois grupos: as ciências “poiéticas” (ou seja, produtivas),
que nos ensinam a produzir coisas, e as ciências no sentido mais estrito, que
nos mostram como agir; as primeiras visam a algum produto ou resultado,
enquanto a prática mesma do conhecimento adquirido é o próprio fim no
caso das últimas. As primeiras incluem as profissões e os ofícios, e as últimas
abrangem as chamadas “belas artes” (a música e a dança, por exemplo), que
são em si mesmas um fim (KURY, 1985, p. 8-9).

Em Aristóteles, a política é ativa, verifica-se nas ações. É desse modo que se chega ao exame das
práticas e de suas intenções:

A ciência prática por excelência é a “política”, isto é, a ciência do bem-estar


e da felicidade dos homens como um todo; ela é prática no sentido mais
amplo da palavra, pois estuda não somente o que é a felicidade (o assunto da
Ética), mas também a maneira de obtê-la (o assunto da Política); ao mesmo
tempo ela é prática no sentido mais estrito, pois leva à demonstração de
que a felicidade não é o resultado de ações, mas é em si mesma uma certa:
maneira de agir (KURY, 1985, p. 9).

Mário da Gama Kury (1985) explica que as obras de Aristóteles apresentam uma “desorganização”,
provavelmente devido às origens didáticas para as aulas, sendo posteriormente “editadas”. Vejamos o
excerto a seguir:

172
CIÊNCIA POLÍTICA

Em sua maior parte, as obras esotéricas de Aristóteles assemelham-se a


compilações de várias “lições” acerca dos diferentes aspectos do assunto em
exame; reunidas às vezes sem muita concatenação para formar em conjunto
um tratado abrangente. Esta observação se aplica especialmente à Política,
aparentemente constituída de três grupos de “lições”, ou exposições, aos
quais faltou o toque final; por isto eles não estão suficientemente entrosados
e se sobrepõem parcialmente. Os três grupos seriam em linhas gerais os
seguintes: primeiro, os Livros I, II e III, à guisa de introdução (a teoria do
Estado em geral e a classificação das várias espécies de constituições);
segundo, os Livros IV, V e VI, tratando da política prática (natureza das
constituições existentes e dos princípios para seu bom funcionamento),
terceiro, Livros VII e VIII, examinando a política ideal (estrutura da melhor
cidade, obviamente inacabado).

Com efeito, é evidente em toda a Política o tom de aula, ou exposição de


professor a alunos, como se se tratasse de apostilas talvez organizadas por
discípulos com base nas lições do mestre, para sua preservação e utilização
futura. Daí a forma de certo modo confusa em que a obra chegou até nossos
dias, levando muitos estudiosos a propor uma nova sequência de livros, por
considerarem a disposição tradicional dos mesmos completamente ilógica.
Alguns editores modernos da Política sugeriram que os Livros VII e VIII da
sequência tradicional fossem postos no lugar dos Livros IV e V, e os Livros IV,
V e VI fossem postos no lugar dos Livros VI, VII e VIII, ou ainda no lugar dos
Livros VI, VIII e VII.

[...].

A despeito da aparente desordem na composição, a Política é uma das


obras de Aristóteles mais interessantes para o leitor moderno, talvez pela
permanente atualidade dos temas nela tratados. O fato é que, para uma
obra composta há mais de 2.300 anos, a Política justificaria por si mesma,
em grande parte, a fama de Aristóteles ao longo de mais de dois milênios.
Apesar de sua perenidade, para uma fruição mais completa da obra, convém
ter em vista certas peculiaridades da época em que foi concebida; entre
elas sobressai a naturalidade com que Aristóteles admite a escravidão e
a justifica; não se deve esquecer que mesmo os gênios são influenciados
pelas realidades diante de seus olhos, sobretudo se elas se explicam por
uma necessidade inelutável, como a de os escravos na Antiguidade serem
o instrumento de produção por excelência, equivalente às máquinas de
hoje, e que certamente pareceria a Aristóteles mais justo, ou menos injusto,
poupar nas frequentes guerras estes instrumentos únicos de trabalho, para
depois escravizá-los, em vez de matá-los cruelmente em sua condição de
prisioneiros; quando se acha natural a pior das formas de atrocidade, que
é a guerra, todas as outras parecerão igualmente naturais, inclusive formas
173
Unidade III

atuais de sujeição, como a ideológica, e de crueldade, como a praticada sob o


impulso do fanatismo político ou religioso. Melhor, porém, que emitir juízos
subjetivos sobre Aristóteles é pôr os leitores em contato direto com ele, para
que formem por si mesmos uma opinião a respeito dos méritos ou deméritos
do filósofo que inegavelmente mais influenciou a filosofia ocidental, e sobre
o qual o severo Darwin disse: “Linnaéus and Cuvier have been my two gods,
but they were mere schoolboys to old Aristotle” [...] (KURY, 1985, p. 9-10).

Para Aristóteles, em Ética a Nicômaco, um homem é sábio não quando é especialista, mas no
que se costuma denominar generalista, visto que a sabedoria é a perfeita forma de conhecimento,
combinando razão intuitiva e o conhecimento científico. Desse modo, a sabedoria prática é de
espectro imenso, envolvendo tudo quanto o ser humano delibera e age, requer experiência e por
isso não admite sabedoria na juventude; já a sabedoria filosófica não trata da ação, mas do
estudo, sendo completares.

Sabedorias política e prática correspondem à mesma disposição da alma, embora sejam diferentes
no que diz respeito aos contextos: a política relaciona-se à ação na polis, na cidade (que reúne e coage
as pessoas a conviverem), e a prática, com o indivíduo e ele mesmo (sua própria experiência).

Para Aristóteles, investigações e deliberações são diferentes, pois esta última refere-se à
investigação de algo em particular e implica o raciocínio. A deliberação excelente é aquela que tende
a alcançar o bem, e um bom deliberador normalmente é também dotado de sabedoria prática, pois
deve agir naquilo que delibera pra alcançar o bem. A inteligência também se distingue da sabedoria
prática, visto que esta se encarrega de agir em suas deliberações, e aquela, de julgar. A inteligência não
consiste em ter sabedoria prática, mas em aprender, no exercício da arte de conhecer, no opinar, sendo
idêntica à perspicácia, e o homem perspicaz é observador e sagaz.

Discernimento significa julgar segundo a verdade, e a ele convergindo os estados da alma ou


procedimentos e ações tomados por inteligência, sabedoria prática, razão intuitiva.

Aristóteles pergunta sobre os benefícios na posse de sabedoria prática e filosófica. Responde


o seguinte: um homem sem virtude não se tornaria bom apenas por conseguir estas sabedorias se
não as empregasse; enriquecem a vida, colaboram com a felicidade e nos tornam conscientes dos
acontecimentos e do que vivenciamos e, o mais importante, apesar de não nos tornar virtuosos e bons,
automaticamente, dão-nos meios para escolhermos se o queremos ser. Portanto, as disposições inatas
das virtudes (com as quais nascemos) não nos servem sem a razão, do mesmo modo que a pessoa
forte poderia cair ao chão sem o auxílio da visão, daí a razão ser indispensável para o cultivo e o
desenvolvimento das virtudes em cada um de nós. Ou seja, as virtudes em exercício e incentivadas
implicam sabedoria prática.

A política em Aristóteles é tão complexa quanto em Platão, principalmente quando comparada a


nossas práticas modernas, tão redutoras. São visões de ação com lastros morais e de aperfeiçoamento
intrínseco, não apenas legalistas. As constituições ou formas de governo são objeto de interesse e cobrem
grande extensão de A Política, na qual Aristóteles ocupa-se de sua adequação a cada povo, tanto do
174
CIÊNCIA POLÍTICA

ponto de vista da estrutura social e sua demanda (distribuição do poder, como democrático, oligárquico
e/ou aristocrático) quanto do da estrutura legal (considerando-se o ideal).

8.3 Maquiavel, a política e o Estado moderno

Mas Maquiavel não diz em parte alguma que os súditos sejam logrados.
Descreve o nascimento de uma vida em comum, que ignora as barreiras
do amor-próprio. Falando aos Medicis, prova-lhes que o poder não existe
sem apelo à liberdade. Nessa reviravolta, talvez seja o príncipe o logrado. Se
Maquiavel foi republicano, foi por ter encontrado um princípio de comunhão.
Colocando o conflito e a luta na origem do poder social, não quis dizer que
fosse impossível o acordo; quis salientar a condição de um poder que não
seja mistificante, e que e a participação numa situação em comum.

[...]

A razão de não se compreender Maquiavel é que ele une o sentimento mais


agudo da contingência ou do irracional no mundo ao gosto da consciência
ou da liberdade no homem. Considerando essa história em que há tantas
desordens, tantas opressões, tantos fatos inesperados e reviravoltas, ele não
vê nada que a predestine a uma consonância final. Evoca a ideia de um acaso
fundamental de uma adversidade que a subtrairia do domínio dos mais
inteligentes e dos mais fortes. E, se exorciza por fim esse gênio maligno, não
é por algum princípio transcendente, mas por um simples recurso aos dados
da nossa condição. Afasta com o mesmo gesto a esperança e o desespero.

[...]

O que se reprova nele é a ideia de que a história é uma luta e a política


relação antes com homens do que com príncipes. Haverá contudo algo mais
certo? A história, depois de Maquiavel, melhor ainda do que antes dele, não
mostrou que os princípios não incitam a nada e são flexíveis a todos os fins?
(MERLEAU-PONTY, 1991, p. 242-247).

Maquiavel figura na história das ideias políticas de modo estigmatizado, e isso desde seu próprio
ambiente. Há muitos lados na personagem e nos seus escritos, como vemos a seguir:

Maquiavélico e maquiavelismo são adjetivo e substantivo que estão tanto no


debate político quanto na fala do dia a dia. Seu uso extrapola o mundo da
política e habita sem nenhuma cerimônia o universo das relações privadas.
Em qualquer de suas acepções, porém, o maquiavelismo está associado à ideia
de perfídia, a um procedimento astucioso, velhaco, traiçoeiro. Estas expressões
pejorativas sobreviveram de certa forma incólumes no tempo e no espaço,
apenas alastrando-se da luta política para as desavenças do cotidiano.
175
Unidade III

[...]

A contraface da versão expressa no “autor maldito”, responsabilizado por


massacres e por toda sorte de sordidez – não há tirano que não tenha sido
visto como inspirado por Maquiavel –, é sua reabilitação. Para a construção
deste retrato acorreram filósofos da estatura de um Rousseau, de um Spinoza,
de um Hegel, para citarmos apenas os primeiros. Nesta interpretação,
sustenta-se enfaticamente que Maquiavel discorreu sobre a liberdade, ao
oferecer preciosos conselhos para a sua conquista ou salvaguarda. Rousseau,
por exemplo, opondo-se aos intérpretes “superficiais ou corrompidos” do
autor florentino, que o qualificaram como mestre da tirania e da perversidade,
afirma: “Maquiavel, fingindo dar lições aos príncipes, deu grandes lições ao
povo” (SADEK, 1989, p. 13-14).

Maquiavel é considerado como um divisor de águas de concepções políticas, mudando a tradição


platônica-aristotélica:

Sua preocupação em todas as suas obras é o Estado. Não o melhor Estado,


aquele tantas vezes imaginado, mas que nunca existiu. Mas o Estado real,
capaz de impor a ordem. Maquiavel rejeita a tradição idealista de Platão,
Aristóteles e Santo Tomás de Aquino e segue a trilha inaugurada pelos
historiadores antigos, como Tácito, Políbio, Tucídides e Tito Lívio. Seu ponto
de partida e de chegada é a realidade concreta. Daí a ênfase na verità
effettuale – a verdade efetiva das coisas. Esta é sua regra metodológica:
ver e examinar a realidade tal como ela é, e não como se gostaria que ela
fosse. A substituição do reino do dever ser, que marcara a filosofia anterior,
pelo reino do ser, da realidade, leva Maquiavel a se perguntar: como fazer
reinar a ordem, como instaurar um Estado estável? O problema central de
sua análise política é descobrir como pode ser resolvido o inevitável ciclo de
estabilidade e caos (SADEK, 1989, p. 17).

Maquiavel persegue os termos políticos da organização social e concebe a história como cíclica em
alternância entre ordem e desordem:

Ao formular e buscar resolver esta questão, Maquiavel provoca uma ruptura


com o saber repetido pelos séculos. Trata-se de uma indagação radical e de
uma nova articulação sobre o pensar e fazer política, que põe fim à ideia de
uma ordem natural e eterna. A ordem, produto necessário da política, não
é natural, nem a materialização de uma vontade extraterrena, e tampouco
resulta do jogo de dados do acaso. Ao contrário, a ordem tem um imperativo:
deve ser construída pelos homens para evitar o caos e a barbárie, e, uma vez
alcançada, ela não será definitiva, pois há sempre, em germe, o seu trabalho
em negativo, isto é, a ameaça de que seja desfeita (SADEK, 1989, p. 18).

176
CIÊNCIA POLÍTICA

A originalidade de seu trabalho tem sido atestada por importantes filósofos e cientistas políticos,
com reconhecimento e consenso ao menos quanto à sua relevância:

“Enveredando por um caminho ainda não trilhado”, como reconhece


explicitamente nos Discursos, o autor florentino reinterpreta a questão
da política. Ela é o resultado de feixes de forças, proveniente das ações
concretas dos homens em sociedade, ainda que nem todas as suas facetas
venham do reino da racionalidade e sejam de imediato reconhecíveis. Ao
perceber o que há de transitório e circunstancial no arranjo estabelecido
em uma determinada ordem, monta um enigma para seus contemporâneos.
Enigma que se recoloca incessantemente e que a cada significado
encontrado remete a outra significação para além de si. Este pensamento em
constante transmutação e fluxo, que determina seu curso pelo movimento
da realidade, transformará Maquiavel num clássico da filosofia política,
atraindo a atenção e esforços de compreensão de seus leitores de todos os
tempos (SADEK, 1989, p. 18).

Sadek (1989, p. 18), descrevendo Maquiavel, destaca o que concerne à natureza humana e reconhece
“a presença de traços humanos imutáveis” afirmando que os homens “são ingratos, volúveis, simuladores,
covardes ante os perigos, ávidos de lucro”.

Estes atributos negativos compõem a natureza humana e mostram que


o conflito e a anarquia são desdobramentos necessários dessas paixões e
instintos malévolos. Por outro lado, sua reiterada permanência em todas
as épocas e sociedades transformam a história numa privilegiada fonte de
ensinamentos. Por isso, o estudo do passado não é um exercício de mera
erudição, nem a história um suceder de eventos em conformidade com os
desígnios divinos até que chegue o dia do juízo final, mas sim um desfile de
fatos dos quais se deve extrair as causas e os meios utilizados para enfrentar
o caos resultante da expressão da natureza humana (MAQUIAVEL apud
SADEK, 1989, p. 19).

Suas análises do espírito humano são agudas e abrangentes:

O poder político tem, pois, uma origem mundana. Nasce da própria


“malignidade”, que é intrínseca à natureza humana. Além disso, o poder
aparece como a única possibilidade de enfrentar o conflito, ainda que
qualquer forma de “domesticação” seja precária e transitória. Não há
garantias de sua permanência. A perversidade das paixões humanas sempre
volta a se manifestar, mesmo que tenha permanecido oculta por algum
tempo (SADEK, 1989, p. 20).

Maquiavel apresenta um raciocínio sofisticado quanto às formas de governo e configurações de


Estado, adequados às necessidades (sociais) de ordem, do ponto de vista da instauração do poder:
177
Unidade III

Maquiavel sugere que há basicamente duas respostas à anarquia decorrente


da natureza humana e do confronto entre os grupos sociais: o Principado e
a República. A escolha de uma ou de outra forma institucional não depende
de um mero ato de vontade ou de considerações abstratas e idealistas sobre
o regime, mas da situação concreta. Assim, quando a nação encontra-se
ameaçada de deterioração, quando a corrupção alastrou-se, é necessário
um governo forte, que crie e coloque seus instrumentos de poder para
inibir a vitalidade das forças desagregadoras e centrífugas. O príncipe não
é um ditador; é, mais propriamente, um fundador do Estado, um agente da
transição numa fase em que a nação se acha ameaçada de decomposição.
Quando, ao contrário, a sociedade já encontrou formas de equilíbrio, o poder
político cumpriu sua função regeneradora e “educadora”, ela está preparada
para a República. Neste regime, que por vezes o pensador florentino chama
de liberdade, o povo é virtuoso, as instituições são estáveis e contemplam a
dinâmica das relações sociais. Os conflitos são fonte de vigor, sinal de uma
cidadania ativa, e portanto são desejáveis (SADEK, 1989, p. 20).

Maquiavel teve que lidar com fortes crenças na predestinação. Segundo Sadek (1989, p. 21), “este
era um dogma que Maquiavel teria que enfrentar, por mais fortes que fossem os rancores que atraísse
contra si”. Pois, do modo como concebera, a atividade política era um agir virtuoso, racional, “livre de
freios extraterrenos”, sujeito da história; “esta prática exigia virtù, o domínio sobre a fortuna”. Tal poder
requer flexibilidade e adequação às circunstâncias:

Assim, a qualidade exigida do príncipe que deseja se manter no poder é


sobretudo a sabedoria de agir conforme as circunstâncias. Devendo,
contudo, aparentar possuir as qualidades valorizadas pelos governados. O
jogo entre a aparência e a essência sobrepõe-se à distinção tradicional entre
virtudes e vícios. A virtù política exige também os vícios, assim como exige o
reenquadramento da força (SADEK, 1989, p. 20).

8.4 Hobbes e os pressupostos da teoria do contrato social

Um pouco antes de tratarmos de Hobbes, Locke e Montesquieu, falemos do que os une: o recurso ao
contrato; são contratualistas. Conforme Limongi (2012, p. 12-13):

Assim, quando Rawls (2000, p. 12) declara que sua teoria da justiça prolonga
a “teoria do contrato social, tal como se encontra em Locke, Rousseau e Kant”,
logo em seguida puxa uma nota indicando que não estava se esquecendo de
Hobbes, mas que o deixara deliberadamente de lado. Ele tem de fazer isso, já
que, como os autores citados, Hobbes é um e o primeiro dos contratualistas.

O fato de que Rawls faça esse recorte no interior do Contratualismo indica


o quanto é problemático referir-se a ele, como fizemos, nos termos de uma
tradição, movimento teórico ou corrente de pensamento. Diferentes tradições
178
CIÊNCIA POLÍTICA

– liberal, absolutista, democrática, jusnaturalista, juspositivista – perpassam


o Contratualismo. E, não obstante, há algo como o Contratualismo, um
ponto em comum que une Hobbes, Locke e Rousseau. Se esses autores não
partilham dos mesmos ideais políticos e das mesmas tradições, partilham
por certo de uma sintaxe comum, para fazer uso de uma expressão de
Matteucci, no verbete “contratualismo” do Dicionário de Política editado
por ele, Bobbio e Pasquino. Segundo o autor, os contratualistas são assim
chamados porque “aceitam a mesma sintaxe”, a saber, a “da necessidade de
basear as relações sociais e políticas num instrumento de racionalização,
o direito, ou de ver no pacto a condição formal da existência jurídica do
Estado” (BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 2010, p. 279). Observemos mais
de perto o que está em jogo nessa sintaxe.

A tese de que a origem da sociedade política está num contrato implica


que a sociedade política é um artifício, isto é, uma forma de associação
a que os homens não são conduzidos pelo movimento natural de suas
paixões e na qual não estão desde sempre inseridos de maneira espontânea
ou irrefletida (como a família, por exemplo), mas uma comunidade que
os homens resolvem instituir voluntariamente, na medida em que têm
razões e motivos para isso. Nesse sentido, a distinção entre um estado
de natureza e um estado civil é central no Contratualismo. Ela indica o
momento anterior e o posterior à instituição do corpo político e permite
que se retire de uma descrição do estado de natureza as razões e os
motivos que explicam essa instituição.

Podemos elencar diversas questões para estudar o trabalho de Thomas Hobbes:

Qual é o lugar que Hobbes ocupa na história das ideias políticas?

Qual é a qualidade da guerra no estado de natureza?

Quais são as condições geradoras do Estado hobbesiano?

De quem é a competência da propriedade e por quê?

Por que há inutilidade da propriedade privada sob o julgo do Estado hobbesiano?

Que tipo de problemas com a propriedade privada e com a liberdade?

De onde vem o sustento do Estado? (RIBEIRO, 1989, p. 75).

Hobbes está na base da ciência política moderna, preocupado com a sistematização dos saberes e
com o método:

179
Unidade III

Na compreensão do pensamento político hobbesiano, há que se levar em


conta que o Monstro de Malmesbury tem a intenção de desenvolver um
conhecimento sistematizado. Hobbes clama para si a criação da ciência
política moderna, uma vez que refuta, ainda que respeitosamente, o
trabalho dos filósofos gregos e romanos e suas indagações a respeito da
polis e da cive. São constantes na obra de Hobbes as críticas ao pensamento
político aristotélico.

Uma vez que pretende desenvolver um conjunto de informações necessárias


à compreensão da ordem política, Hobbes dedica especial atenção à
metodologia. Sua obra é rica em conceitos, definições e classificações. Ao
contrário de Nicolau Maquiavel (1469-1527), que em O Príncipe (1513)
procura demonstrar seus argumentos sob uma sistemática empírica
e historicista, Hobbes, uma vez que tem pretensões intelectuais mais
ambiciosas, desenvolve seu discurso in abstracto, conquanto ressalte a
importância do conhecimento da história e faça frequentemente referências
diretas e indiretas aos acontecimentos políticos da Inglaterra de seu tempo.
Ataca, assim, a falta de metodologia dos antigos e de seus contemporâneos
que leva a conclusões absurdas, assim como critica os escolásticos pela
falta de objetividade e clareza do discurso e por perderem tempo com
discussões sobre questões incompreensíveis. A análise científica hobbesiana
é essencialmente racional e/ou materialista (NUNES, 2010, p. 11).

Conforme Paulo Henrique Faria Nunes (2010, p. 11), Hobbes faz parte daquele conjunto de pensadores
políticos denominados contratualistas, juntamente com outras célebres figuras como Locke e Rousseau.
No que diz respeito ao “método empregado por Hobbes e pelos contratualistas que lhe sucedem, é
válido transcrever a síntese que Ernst Cassirer apresenta”:

Um contrato deve ser feito com perfeito conhecimento do sentido que


envolve e das consequências que postula; pressupõe um livre consentimento
das partes contratantes. Se podemos atribuir ao Estado uma tal origem, ele
se torna um fato perfeitamente claro e compreensível.

Essa visão racional não foi, de forma alguma, considerada uma visão
histórica. Somente uns poucos pensadores tiveram a ingenuidade de concluir
que a “origem” do Estado, como a explicavam as teorias do contrato social,
dava-nos uma perspectiva dos seus começos. Não podemos, obviamente,
assinalar o momento exato da história em que pela primeira vez apareceu o
Estado. Mas essa falta de conhecimento histórico não interessa aos teóricos
do Estado-contrato. O problema deles é analítico, e não histórico. Eles
compreendem o termo “origem” num sentido lógico, e não cronológico. O
que eles procuram não é o começo, mas o “princípio” do Estado – a sua
raison d’être.

180
CIÊNCIA POLÍTICA

Isso se torna particularmente claro quando estudamos a filosofia política


de Hobbes. Hobbes é um exemplo típico do espírito geral que conduziu às
várias teorias do contrato social. Os seus resultados nunca tiveram aceitação
geral; encontraram oposição. Mas o seu método exerceu a mais forte
influência. E esse novo método era um produto da lógica de Hobbes. O valor
filosófico das obras políticas de Hobbes consiste não tanto no seu objeto,
mas principalmente na sua forma de argumentar e raciocinar.

Para Hobbes, a organização política resulta de um pacto.

[...] e por organização política, deve ser entendido o próprio Estado, ao


qual Hobbes também se refere como República. A evolução histórica da
vida humana em agrupamentos comumente trabalhada na Ciência Política
hodierna – partindo de uma situação de ausência de organização, normas
e bem comum (comunidade), para uma situação na qual são encontrados
esses elementos (sociedade política) – é irrelevante para Hobbes. Para ele,
em sua discussão abstrata, o que existe é um grande salto na linha evolutiva
política, isto é, uma transição imediata da comunidade (agrupamento
desprovido de interesse coletivo, normas e organização) para o Estado,
organização política soberana.

Essa desordem primitiva é o que Hobbes chama “estado de natureza”. E esse


salto na linha evolutiva política, que despreza a sociedade e a sociedade
política como elementos que antecedem o Estado, ocorre em virtude da
visão negativista que o autor tem da vida fora da ordem cívica.

Contudo, sua perspectiva da natureza e da física condicionou sua visão de vida social (e psíquica)
e política.

No prefácio de Do Cidadão, Hobbes diz que as afecções da mente (paixões


humanas) não podem ser tomadas como perversas em si mesmas e o
exemplo disso pode ser apresentado quando observamos uma criança
que tem fome e não é alimentada, ela chora e pode se tornar agressiva,
porém isso não significa que ela seja má, mas sim que ela reage a uma
necessidade natural.

O mesmo pode ser observado no Leviatã quando Hobbes diz que “Os desejos
e outras paixões do homem não são em si mesmos um pecado. Tampouco
o são as ações que derivam dessas paixões” (HOBBES, 2003, p. 110). O
propósito desse trabalho é compreender as possibilidades e as implicações
dessa afirmação, ou seja, entender as paixões humanas na obra de Hobbes
como um movimento de reação à ação do movimento de objetos externos
de modo que, por isso, elas não podem ser tomadas como boas ou más em si
mesmas, mas sim como reações naturais próprias da lógica de funcionamento
181
Unidade III

de todos os corpos naturais, inclusive o homem. Nesse sentido, a ética (que


para Hobbes é o estudo das consequências das paixões da mente) deve ser
melhor compreendida se a tomarmos como parte derivada da análise dos
corpos naturais, e que, portanto, remete à consideração acerca da ciência
física, como é exposto na tábua do conhecimento ilustrada por Hobbes no
cap. IX do Leviatã (SILVA, 2009, Apresentação).

Renato Janine Ribeiro (1989, p. 51) fala em “sacrifício” do contrato social em Hobbes:

Antes do contrato que permite a convivência dos seres humanos em


sociedade, é preciso esclarecer que Hobbes, ao mencionar a natureza humana
como um problema, não está se referindo a selvagens pré-humanos, mas à
nossa natureza intrínseca, contemporânea.

Nessa linha de compreensão da natureza humana como complexidade, Hobbes aponta que os homens
não são idênticos, mas suas habilidades podem equilibrar o jogo político na base da compensação. Essa
visão lhe rendeu (e rende) desafetos entre aqueles que defendem a dominação de alguns sobre muitos,
com os instrumentos da desigualdade social (RIBEIRO, 1989, p. 54).

A posição de Hobbes é expressa pela expressão “tão iguais” na obra Leviatã, comentada por Janine
Ribeiro. Por meio dele, explicita a riqueza de possibilidades e combinações sociais, de acordo com as
características de cada um, por fazer, num ambiente seguro para tanto. Não seríamos maus por natureza,
mas impulsivos como bebês e crianças, daí a necessidade de regras e força para manter-nos cada qual
em seu lugar. Aliás, garantindo-se, assim, lugares (RIBEIRO, 1989, p. 54-55).

Hobbes (1984) assim se expressa:

A natureza fez os homens tão iguais, quanto às faculdades do corpo e do


espírito, que, embora por vezes se encontre um homem manifestamente
mais forte de corpo, ou de espírito mais vivo do que outro, mesmo assim,
quando se considera tudo isso em conjunto, a diferença entre um e outro
homem não é suficientemente considerável para que qualquer um possa
com base nela reclamar qualquer benefício a que outro não possa também
aspirar, tal como ele. Porque quanto à força corporal o mais fraco tem força
suficiente para matar o mais forte, quer por secreta maquinação, quer
aliando-se com outros que se encontrem ameaçados pelo mesmo perigo.

Quanto às faculdades do espírito (pondo de lado as artes que dependem das


palavras, e especialmente aquela capacidade para proceder de acordo com
regras gerais e infalíveis a que se chama ciência; a qual muito poucos têm,
e apenas numas poucas coisas, pois não é uma faculdade nativa, nascida
conosco, e não pode ser conseguida – como a prudência – ao mesmo tempo
que se está procurando alguma outra coisa), encontro entre os homens uma
igualdade ainda maior do que a igualdade de força (RIBEIRO, 1989, p. 54-55).
182
CIÊNCIA POLÍTICA

As ideias são muito ricas: não é uma simples naturalização do humano, mas uma leitura arguta que
captura nuances da subjetividade, mesmo antes de Descartes.

Renato Janine Ribeiro (1989, p. 55) destaca que o “’homem lobo do homem’, em guerra contra
todos’”, não é um “‘anormal’; suas ações e cálculos são os únicos racionais, no estado de natureza”.

Com isso, surgiriam os problemas gerados pela propriedade provada, atraindo disputas.

[Da] igualdade quanto à capacidade deriva a igualdade quanto à esperança


de atingirmos nossos fins. Portanto, se dois homens desejam a mesma
coisa, ao mesmo tempo que é impossível ela ser gozada por ambos, eles
tornam-se inimigos. E no caminho para seu fim (que é principalmente sua
própria conservação, e às vezes apenas seu deleite) esforçam-se por se
destruir ou subjugar um ao outro (HOBBES, 1984 apud RIBEIRO, 1989, p. 55).

A força maior seria, então, o Estado, capaz de manter as forças individuais em suas órbitas pessoais,
mas, agora, sim, numa vida social sob contrato, diríamos.

Na natureza do homem, encontramos três causas principais de discórdia. Primeiro, a competição;


segundo, a desconfiança; e terceiro, a glória.

A primeira leva os homens a atacar os outros tendo em vista o lucro; a


segunda, a segurança; e a terceira, a reputação. Os primeiros usam a violência
para se tornarem senhores das pessoas, mulheres, filhos e rebanhos dos
outros homens; os segundos, para defendê-los; e os terceiros por ninharias,
como uma palavra, um sorriso, uma diferença de opinião, e qualquer outro
sinal de desprezo, quer seja diretamente dirigido a suas pessoas, quer
indiretamente a seus parentes, seus amigos, sua nação, sua profissão ou seu
nome (WEFFORT, 1989, p. 56).

A construção de seu pensamento segue enumerando e avaliando as disposições para a guerra,


“durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de os manter a todos em
respeito, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra”. Ele destaca que “a natureza da
guerra não consiste na luta real, mas na conhecida disposição para tal, durante todo o tempo em que
não há garantia do contrário” (WEFFORT, 1989, p. 56-57). E aqui seu pensamento abre caminho com seu
pensamento para institucionalizar (instituição) o controle, o governo social sobre as forças, preconceitos
e paixões individuais, delineando o Leviatã.

Hobbes assume a tensão no convívio humano, ultrapassando “a visão clássica de Aristóteles [e de


Platão] de que o fácil convívio é o princípio da vida social; o cimento da vida social, contra o caos de
nossos impulsos, é a força maior que se coloca acima de nós, o Estado necessário” (WEFFORT, 1989,
p. 56-57).

183
Unidade III

É preciso partir do autoconhecimento para “conjeturar quaisquer saídas ou projetos e programas


políticos [...] para pensar a própria política, pois Hobbes acusa nossa formação de preconceituosa. O
maior preconceito é o da cordialidade do ser humano”. Portanto, para ele, “a ideia de que o ser humano
é sociável é falsa. E, a partir daí, engendrar uma ciência política que permita sustentar Estados, em vez
de perenizar a guerra civil” (RIBEIRO, 1989, p. 57).

Hobbes, muito arguto, evocando algo como uma leitura empática, tendo como fundo uma certa
noção de empatia dos seres humanos, recomenda que façamos essa autoanálise, fundamental, pois:

Nosce te ipsum, “Lê-te a ti mesmo”. O que não pretendia ter sentido,


atualmente habitual, de pôr cobro à bárbara conduta dos detentores do
poder para com seus inferiores, ou de levar homens de baixa estirpe a um
comportamento insolente para com seus superiores. Pretendia ensinar-nos
que, a partir da semelhança entre os pensamentos e paixões dos diferentes
homens, quem quer que olhe para dentro de si mesmo, e examine o que
faz quando pensa, opina, raciocina, espera, receia etc., e por que motivos
o faz, poderá por esse meio ler e conhecer quais são os pensamentos e
paixões de todos os outros homens, em circunstâncias idênticas. Refiro-me
à semelhança das paixões, que são as mesmas em todos os homens, desejo,
medo, esperança etc., e não à semelhança dos objetos das paixões, que são
as coisas desejadas, temidas, esperadas etc. (HOBBES, 1984 apud RIBEIRO,
1989, p. 58).

Nesse contexto, o poder no estado de natureza dá-se pelo direito natural a tudo:

O direito de natureza, a que os autores geralmente chamam jus naturale, é


a liberdade que cada homem possui de usar seu próprio poder, da maneira
que quiser, para a preservação de sua própria natureza, ou seja, de sua vida;
e consequentemente de fazer tudo aquilo que seu próprio julgamento e
razão lhe indiquem como meios adequados a esse fim (HOBBES, 1984 apud
RIBEIRO, 1989, p. 59).

Janine Ribeiro (1989, p. 59) apresenta esse indivíduo hobbesiano. Para ele, não é o indivíduo em
busca do “capital no mundo da mercadoria, mas que está à procura da glória, ocupado com a conquista
e a manutenção da honra, consolidada pelas aparências externas no universo nobiliárquico, continente
de tudo mais, incluindo os gêneros da dimensão econômica”. Instaura-se uma pista importante para
entender as distâncias simbólicas que nos separam desse ambiente; nós que vivemos sob o signo do
valor econômico.

Teremos, pois, que exercitar essa questão, que poderíamos chamar de “árvore dos valores”, cuja raiz
é biológica e moral, crescendo pelos calores/axiologia cultural, para somente depois destacar os valores
econômicos, cujas secreções/distorções seriam os preços.

184
CIÊNCIA POLÍTICA

O homem hobbesiano não é então um homo economicus, porque seu maior


interesse não está em produzir riquezas, nem mesmo em pilhá-las. O mais
importante para ele é ter os sinais de honra, entre os quais se inclui a própria
riqueza (mais como meio, do que como fim em si). Quer dizer que o homem
vive basicamente de imaginação. Ele imagina ter um poder, imagina ser
respeitado – ou ofendido – pelos semelhantes, imagina o que o outro vai fazer.
Da imaginação – e neste ponto Hobbes concorda com muitos pensadores do
século XVII e XVIII – decorrem perigos, porque o homem se põe a fantasiar
o que é irreal. O estado de natureza é uma condição de guerra, porque cada
um se imagina (com razão ou sem) poderoso, perseguido, traído. Como pôr
termo a esse conflito? (RIBEIRO, 1989, p. 59).

Apesar dos deslumbramento, para Hobbes a liberdade apresenta perigos, pois a liberdade natural
entraria em conflito com a coexistência social (RIBEIRO, 1989).

Hobbes vê o homem glorioso, não o homo economicus: calca sua construção na aparência, sendo
o “poder que exerce o imperativo sobre os bens. A vida sob o contrato supõe associação com base na
submissão às regras advindas do grande pacto social: é horizontal na associação e vertical na submissão”
(RIBEIRO, 1989, p. 62-63).

Hobbes expõe em sua construção dos preceitos das condições sociais de existência, sua leitura de
direito e lei, desenvolvendo-a, chegando à visão de contrato social!

Uma lei de natureza (lex naturalis) é um preceito ou regra geral, estabelecido


pela razão, mediante o qual se proíbe a um homem fazer tudo o que possa
destruir sua vida ou privá-lo dos meios necessários para preservá-la, ou
omitir aquilo que pense poder contribuir melhor para preservá-la. Porque
embora os que têm tratado deste assunto costumem confundir jus e lex, o
direito e a lei, é necessário distingui-los um do outro. Pois o direito consiste
na liberdade de fazer ou de omitir, ao passo que a lei determina ou obriga a
uma dessas duas coisas. De modo que a lei e o direito se distinguem tanto
como a obrigação e a liberdade, as quais são incompatíveis quando se
referem à mesma matéria (HOBBES, 1984 apud RIBEIRO, 1989, p. 60).

A questão da segurança, própria e como direito coletivo, está sempre presente em seu
pensamento, pois:

Enquanto perdurar este direito de cada homem a todas as coisas, não poderá
haver para nenhum homem (por mais forte e sábio que seja) a segurança de
viver todo o tempo que geralmente a natureza permite aos homens viver.
Consequentemente, é um preceito ou regra geral da razão que todo homem
deve esforçar-se pela paz, na medida em que tenha esperança de consegui-la,
e caso não a consiga pode procurar e usar todas as ajudas e vantagens da
guerra. A primeira parte desta regra encerra a lei primeira e fundamental
185
Unidade III

de natureza, isto é, procurar a paz, e segui-la. A segunda encerra a suma do


direito de natureza, isto é, por todos os meios que pudermos, defendermo-nos
a nós mesmos.

Desta lei fundamental de natureza, mediante a qual se ordena a todos


os homens que procurem a paz, deriva esta segunda lei: que um homem
concorde, quando outros também o façam, e na medida em que tal considere
necessário para a paz e para a defesa de si mesmo, em renunciar a seu
direito a todas as coisas, contentando-se, em relação aos outros homens,
com a mesma liberdade que aos outros homens permite em relação a si
mesmo (HOBBES, 1984 apud RIBEIRO, 1989, p. 60).

A única maneira, para Tomas Hobbes (1984 apud RIBEIRO, 1989, p. 62), de instituir esse estado de
segurança social, é a criação do Estado. “Cedo e transfiro meu direito de governar-me a mim mesmo
a este homem, ou a esta assembleia de homens, com a condição de transferires a ele teu direito,
autorizando de maneira semelhante todas as suas ações”.

Segundo Weffort (1989), da instituição do Estado derivam todos os direitos e faculdades daquele ou
daqueles a quem o poder soberano é conferido, mediante consentimento do povo.

Da instituição do Estado derivam todos os direitos e faculdades daquele ou daqueles a quem o


poder soberano é conferido, mediante consentimento do povo.

Vejamos o que o autor acentua:

1. Sem anterioridade: presos ao pacto presente até consentimento à


ruptura/“licença” ou permissão para deixar de ser súdito; alternativa
indesejável para Thomas Hobbes: confusão (multidão desunida).

2. Representação de todos pelo Estado: todos, entre si; não entre participantes
e Estado! Contrato é mantido pela força do Estado! (WEFFORT, 1989, p. 65)

3. Democracia na escolha do soberano: assembleia/congregação do povo


participante. [Cada um] deve aceitar as decisões, [afinal, quem é esse povo?
É todo mundo que estiver dentro do contrato].

4. Estado inimputável: não pode ser culpado por qualquer ato, visto que
seja [pré-aprovado] [...] todos concordam com suas ações ao [elegê-lo] [...]
(RIBEIRO, 1989, p. 63).

A igualdade é perigosa, pois todos são iguais em desejos, paixões e violência! A igualdade envolve
competição e traz problemas, segundo Janine Ribeiro (1989), pois acaba criando a liberdade para morrer.

A seguir acentuamos alguns trechos da obra de Janine Ribeiro a respeito de liberdade:


186
CIÊNCIA POLÍTICA

– Sentido físico [como num campo de força]; determinação física.

– Desvaloriza-a. Sem valor, não axiológica. Negação dos valores clássicos


da liberdade.

– Para se submeter, [renunciando à liberdade original] para proteger a vida...

– Tomada como [negativa], daí o contrato social.

– Baseia-se nos excessos, na violação do [pacto] por parte do soberano, isto


é, quando este violar a vida dos súditos, coletiva ou individualmente...

– E sem que haja injustiça?! [...] (RIBEIRO, 1989, p. 67-68).

O autor assevera que há limites à defesa (de si e de outrem) por diminuir a abrangência da soberania.
Diz que as outras formas de liberdade dependem do “silêncio da lei” (RIBEIRO, 1989, p. 70).

E continua:

E eis um ponto delicado, aponta Francisco Weffort: o [descompromisso


do súdito] de que não se altera a soberania do monarca. Este não perde
sua soberania, em seus fundamentos, mesmo a perdendo, particularmente.
Tal esquema [sua racionalidade] é sustentado pelas forças de composição
social/institucionalização do poder pelo Estado. Segundo Francisco Weffort,
a concepção teórica de Thomas Hobbes – o “direito à vida” – é colocada
acima de tudo.

O medo motiva a associação sob o Estado soberano; mas não é o terror, pois
este é próprio ao Estado de natureza. Medo, que está na base da submissão
das pessoas ao Estado, do abandono de sua liberdade natural, [passa a ser
liberdade social]. Quem tem bom comportamento não precisa temer o
Estado. Medo completa-se com a esperança de vida melhor, com garantias
[...] (RIBEIRO, 1989, p. 70-71).

Agora apresentamos a propriedade em Thomas Hobbes:

– Positiva/a favor: propriedade para o monarca.

– Negativa/contra: propriedade para a burguesia e para o povo (propriedade


comunal); em seu raciocínio, permite que a burguesia possa excluir os
outros [...], exceto o soberano. A propriedade pública é pública, daí burguesia
procura John Locke [...] (RIBEIRO, 1989, p. 74).

187
Unidade III

O soberano deve sobrepor-se ao medo e garantir esperança. Isso, para ser bom [legítimo, por
natureza] representante, para garantir os direitos naturais na organização social.

E aqui podemos entender por que Hobbes é, com Maquiavel e em certa


medida Rousseau, um dos pensadores mais “malditos” da história da
filosofia política – pois, no século XVII, o termo “hobbista” é quase tão
ofensivo quanto “maquiavélico”. Não é só porque apresenta o Estado como
monstruoso, e o homem como belicoso, rompendo com a confortadora
imagem aristotélica do bom governante (comparado a um pai) e do indivíduo
de boa natureza. Não é só porque subordina a religião ao poder político. Mas
é, também, porque nega um direito natural ou sagrado do indivíduo à sua
propriedade. No seu tempo, e ainda hoje, a burguesia vai procurar fundar
a propriedade privada num direito anterior e superior ao Estado: por isso
ela endossará Locke, dizendo que a finalidade do Poder Público consiste em
proteger a propriedade. Um direito aos bens que dependa do beneplácito do
governante vai frontalmente contra a pretensão da burguesia a controlar,
enquanto classe, o poder de Estado; e, como isso é o que vai acontecer na
Inglaterra após a Revolução Gloriosa (1688), o pensamento hobbesiano não
terá campo de aplicação em seu próprio país, nem em nenhum outro.

O resultado pode parecer frustrante, num pensador que escreveu as três


versões de sua filosofia política enquanto o seu país vivia terrível guerra civil
(De Corpore Político, 1640; De Cive, 1642; Leviatã, 1651), e considerava que
esses livros ofereciam a única base para fundar um Estado que desse, aos
homens, não apenas a sobrevivência, mas a melhor condição material – paz
e conforto. “A ciência política não é mais antiga que meu livro De Cive”,
disse ele, desqualificando em especial o pensamento aristotélico, então
ainda dominante.

Essa ênfase na ciência, porém, merece nossa atenção. No tempo de Hobbes,


o modelo para a ciência estava nas matemáticas. Os teoremas da geometria,
por exemplo, não dependem em nada da observação empírica para serem
verdadeiros. Quando dependemos da experiência, estamos sempre sujeitos
ao engano. Mas, se nos limitamos a deduzir propriedades de figuras
ideais, não há risco de erro. E isso, antes de mais nada, porque as figuras
geométricas não resultam da observação (não existe, na natureza, círculo
ou triângulo perfeito...), mas são criação de nossa mente. Em suma: só
podemos conhecer, adequada e cientificamente, aquilo que nós mesmos
engendramos. Dessa perspectiva não pode haver ciência, por exemplo, dos
corpos animais (biologia), comparável em certeza à geometria.

Assim, entendemos o papel do contrato. Na matemática, podemos


conhecer porque as figuras foram concebidas, feitas, por nós. Da mesma
forma na ciência política: se existe Estado, é porque o homem o criou. Se
188
CIÊNCIA POLÍTICA

houvesse sociabilidade natural, jamais poderíamos ter ciência dela, porque


dependeríamos dos equívocos da observação. Mas, como só vivemos em
sociedade devido ao contrato, somos nós os autores da sociedade e do
Estado, e podemos conhecê-los tão bem quanto as figuras da geometria.
De um só golpe, o contrato produz dois resultados importantes. Primeiro,
o homem é o artífice de sua condição, de seu destino, e não Deus ou a
natureza. Segundo, o homem pode conhecer tanto a sua presente condição
miserável quanto os meios de alcançar a paz e a prosperidade. Esses dois
efeitos, embora a via do contrato tenha sido abandonada na filosofia política
posterior ao século XVIII, continuam inspirando o pensamento sobre o poder
e as relações sociais (RIBEIRO, 1989, p. 75-77).

As relações entre Thomas Hobbes e os clássicos revelam discordâncias, pois:

Hobbes tem perfeita consciência de que essa definição há de chocar seus


leitores, que se prendem à definição aristotélica do homem como zoon
politikon, animal social. Para Aristóteles, o homem naturalmente vive em
sociedade, e só desenvolve todas as suas potencialidades dentro do Estado.
Esta é a convicção da maioria das pessoas, que preferem fechar os olhos à
tensão que há na convivência com os demais homens, e conceber a relação
social como harmônica.

[...].

O que Hobbes pede é um exame de consciência: “conhece-te a ti mesmo”.


Estamos carregados de preconceitos, acha Hobbes, que vêm basicamente de
Aristóteles e da filosofia escolástica medieval. Mas o mito de que o homem
é sociável por natureza nos impede de identificar onde está o conflito, e de
contê-lo. A política só será uma ciência se soubermos como o homem é de
fato, e não na ilusão; e só com a ciência política será possível construirmos
Estados que se sustentem, em vez de tornarem permanente a guerra civil
(RIBEIRO, 1989, p. 57).

8.5 Locke, a comunidade política e o direito à propriedade

Todo o contexto social, familiar, o ideário e a formação individual de John Locke o levam para uma
conduta baseada na liberdade, aliás, seu nome está ligado ao nascimento do liberalismo político e seus
desdobramentos econômicos de um modo que Hobbes não poderia sê-lo.

É desses casos cujos fundamentos teóricos têm origem no contexto psicossocial: família, filiação
acadêmica, ideológica e partidária, perseguição política, exílio na Holanda; tudo culminou em suas
concepções sobre liberdade, tolerância e propriedade. Foi um ideário burguês na raiz do progresso e da
acumulação econômica.

189
Unidade III

Exceto Hobbes, os pensadores políticos contratualistas estão envolvidos com transformações da


condução do poder. Como vimos, Thomas Hobbes vive em meio às turbulências, e ele não as atribui à
monarquia, mas à falta dela.

John Locke esteve engajado em lutas liberais, sempre associado ao ideário liberal, cuja coerência
expressa-se em sua atuação multidisciplinar: política, educação, filosofia, matemática, medicina. Em
todas as frentes nas quais se envolvia, o nexo era a liberdade de atuação.

A noção de tábula rasa do conhecimento humano é quase um discurso, uma justificativa da


socialização, retratando que estamos em permanente processo de elaboração e progresso, pois as formas
são sociais e inspiradas nos direitos naturais.

Conforme Weffort (1989, p. 83), “a teoria da tábula rasa é, portanto, uma crítica à doutrina das ideias
inatas, formulada por Platão e retomada por Descartes, segundo a qual determinadas ideias, princípios e
noções são inerentes ao conhecimento humano e existem independentemente da experiência”.

Locke faz dois tratados sobre o governo civil, publicando-os somente após a Revolução Gloriosa.

O primeiro é de fundo religioso, segue a patrilinearidade (linhagem) de Adão, com seu símbolo paterno.
O segundo trata da origem, da extensão e do objetivo do governo civil, é baseado no consentimento dos
governados.

Como Hobbes e Rousseau, é um dos grandes nomes do jusnaturalismo.

Esse estado de natureza diferia do estado de guerra hobbesiano, baseado na


insegurança e na violência, por ser um estado de relativa paz, concórdia e
harmonia.

Nesse estado pacífico, os homens já eram dotados de razão e desfrutavam


da propriedade que, numa primeira acepção genérica utilizada por Locke,
designava simultaneamente a vida, a liberdade e os bens como direitos
naturais do ser humano.

A teoria da propriedade

Locke utiliza também a noção de propriedade numa segunda acepção que,


em sentido estrito, significa especificamente a posse de bens móveis ou
imóveis. A teoria da propriedade de Locke, que é muito inovadora para sua
época, também difere bastante da de Hobbes.

Para Hobbes, a propriedade inexiste no estado de natureza e foi instituída


pelo Estado-Leviatã após a formação da sociedade civil. Assim como a criou,
o Estado pode também suprimir a propriedade dos súditos. Para Locke,
ao contrário, a propriedade já existe no estado de natureza e, sendo uma
190
CIÊNCIA POLÍTICA

instituição anterior à sociedade, é um direito natural do indivíduo que não


pode ser violado pelo Estado (MELLO, 1989, p. 84-85).

Vejamos o que Mello diz sobre Locke:

Apesar de reconhecer associação pacífica no estado de natureza, também reconhece as “possibilidades


de violação dos direitos uns dos outros pelas pessoas [...], necessitando do exercício do poder no estado
de governo civil (por consentimento), porém, e aqui é sua distinção, com o resguardo das garantias ou
direitos individuais à vida, à liberdade à propriedade”. Garantias pela lei, pelo arbítrio e pela força comum
numa unidade política (MELLO, 1989, p. 86).

A escolha da forma de governo deve preservar as condições inalienáveis de associação livre. Não fica
claro como a concentração de bens pode ser democrática, ou melhor, como pode haver democracia com
a concentração de bens.

Enfatizando as distinções de Locke em relação a Thomas Hobbes, temos que para este a “propriedade
inexiste na natureza, que o Estado a cria e a pode dissolver; sendo, inclusive, pomo de discórdia entre
os cidadãos. Já Locke [que ocorre] via concórdia e harmonia no trinômio estado natural/contrato social/
estado civil [...]” (MELLO, 1989, p. 85).

O trabalho nesse nível é uma referência à territorialidade (biológica, orgânica, na base das construções
intelectuais sobre o poder, tanto para a antropologia quanto para a geografia).

O homem era naturalmente livre e proprietário de sua pessoa e de seu


trabalho. Como a terra fora dada por Deus em comum a todos os homens,
ao incorporar seu trabalho à matéria bruta que se encontrava em estado
natural, o homem tornava-a sua propriedade privada, estabelecendo sobre
ela um direito próprio do qual estavam excluídos todos os outros homens.
O trabalho era, pois, na concepção de Locke, o fundamento originário da
propriedade (MELLO, 1989, p. 85).

Não há detalhes suficientes para sabermos se ele está deliberadamente descartando as propriedades
comunais indígenas, ou se apenas se refere às aldeias e vilas (aglomerados) coloniais.

Se a propriedade era instituída pelo trabalho, este, por sua vez, impunha
limitações à propriedade. Inicialmente, quando “todo o mundo era como
a América”, o limite da propriedade era fixado pela capacidade de trabalho
do ser humano. Depois, o aparecimento do dinheiro alterou essa situação,
possibilitando a troca de coisas úteis, mas perecíveis, por algo duradouro
(ouro e prata), convencionalmente aceito pelos homens. Com o dinheiro,
surgiu o comércio e também uma nova forma de aquisição da propriedade,
que, além do trabalho, poderia ser adquirida pela compra. O uso da moeda
levou, finalmente, à concentração da riqueza e à distribuição desigual dos
bens entre os homens. Esse foi, para Locke, o processo que determinou a
191
Unidade III

passagem da propriedade limitada, baseada no trabalho, à propriedade


ilimitada, fundada na acumulação possibilitada pelo advento do dinheiro.

A concepção de Locke, segundo a qual “é na realidade o trabalho


que provoca a diferença de valor em tudo quanto existe”, pode
ser considerada, em certa medida, como precursora da teoria do
valor-trabalho, desenvolvida por Smith e Ricardo, economistas do
liberalismo clássico (MELLO, 1989, p. 85-86).

É possível, como já indicamos, encontrar não só pontos semelhantes como também distintos entre
os postulados contratualistas.

O contrato social de Locke em nada se assemelha ao contrato hobbesiano.


Em Hobbes, os homens firmam entre si um pacto de submissão pelo qual,
visando à preservação de suas vidas, transferem a um terceiro (homem ou
assembleia) a força coercitiva da comunidade, trocando voluntariamente
sua liberdade pela segurança do Estado-Leviatã.

Em Locke, o contrato social é um pacto de consentimento em que os


homens concordam livremente em formar a sociedade civil para preservar e
consolidar ainda mais os direitos que possuíam originalmente no estado de
natureza. No estado civil, os direitos naturais inalienáveis do ser humano à
vida, à liberdade e aos bens estão melhor protegidos sob o amparo da lei, do
árbitro e da força comum de um corpo político unitário (MELLO, 1989, p. 86).

As palavras-chave para o pensamento de John Locke são consentimento e tolerância.

Assim, a passagem do estado de natureza para a sociedade política ou civil


(Locke não distingue entre ambas) se opera quando, através do contrato
social, os indivíduos singulares dão seu consentimento unânime para a
entrada no estado civil (MELLO, 1989, p. 86-87).

A unanimidade referida leva a outro tema caro ao autor, a tolerância, porque esta seria o cimento que
garantiria a coesão necessária à manutenção de direitos naturais, como a propriedade. Sem tolerância,
não haveria respeito ao espaço e aos bens do outro.

Saiba mais

A tolerância é título de um obra fundamental na bibliografia de John Locke:

LOCKE, J. Carta sobre a tolerância. Tradução Anoar Aiex. São Paulo: Abril
Cultural, 1973. (Coleção Os Pensadores)

192
CIÊNCIA POLÍTICA

Da tolerância, passamos para os princípios da democracia, como espécie de alicerce da força do


bom senso.

Constituído o estado civil, a “comunidade” precisa escolher a forma de governo. Assim, no estado
civil, há uma transição democrática com a escolha do governo. Nessa escolha, a “unanimidade do
contrato originário” transforma-se em democracia, “segundo o qual prevalece a decisão majoritária e,
simultaneamente, são respeitados os direitos da minoria” (MELLO, 1989, p. 8).

De acordo com a teoria aristotélica das formas de governo, a comunidade


pode ser governada por um, por poucos ou por muitos, conforme escolha a
monarquia, a oligarquia ou a democracia. A escolha pode recair ainda sobre
o governo misto, como o existente na Inglaterra após a Revolução Gloriosa,
onde a Coroa representava o princípio monárquico, a Câmara dos Lordes o
oligárquico e a Câmara dos Comuns o democrático.

Na concepção de Locke, porém, qualquer que seja a sua forma, “todo o


governo não possui outra finalidade além da conservação da propriedade”.

Definida a forma de governo, cabe igualmente à maioria escolher o Poder


Legislativo, que Locke, conferindo-lhe uma superioridade sobre os demais
poderes, denomina poder supremo.

Ao Legislativo se subordinam tanto o Poder Executivo, confiado ao príncipe,


como o Poder Federativo, encarregado das relações exteriores (guerra, paz,
alianças e tratados). Existe uma clara separação entre o Poder Legislativo, de
um lado, e os poderes Executivo e Federativo, de outro lado, os dois últimos
podendo, inclusive, ser exercidos pelo mesmo magistrado.

Em suma, o livre consentimento dos indivíduos para o estabelecimento


da sociedade, o livre consentimento da comunidade para a formação do
governo, a proteção dos direitos de propriedade pelo governo, o controle do
Executivo pelo Legislativo e o controle do governo pela sociedade são, para
Locke, os principais fundamentos do estado civil.

[...]

O direito resistência

No que diz respeito às relações entre o governo e a sociedade, Locke afirma


que, quando o Executivo ou o Legislativo violam a lei estabelecida e atentam
contra a propriedade, o governo deixa de cumprir o fim a que fora destinado,
tornando-se ilegal e degenerando em tirania. O que define a tirania é o
exercício do poder para além do direito, visando o interesse próprio, e não o
bem público ou comum (MELLO, 1989, p. 87).
193
Unidade III

E o autor continua:

Com efeito, a violação deliberada e sistemática da propriedade (vida,


liberdade e bens) e o uso contínuo da força sem amparo legal colocam
o governo em estado de guerra contra a sociedade e os governantes em
rebelião contra os governados, conferindo ao povo o legítimo direito de
resistência à opressão e à tirania. [...]. Resgatada e revalorizada por Locke
no Segundo Tratado, a doutrina do direito de resistência transformou-se
no fermento das revoluções liberais que eclodiram depois na Europa e na
América (MELLO, 1989, p. 9).

Assim, concluímos que os direitos naturais inalienáveis do indivíduo à vida, à liberdade e à


propriedade constituem para Locke o cerne do estado civil, e é por isso que ele é considerado o pai
do individualismo liberal.

Norberto Bobbio, resumindo os aspectos mais relevantes do pensamento lockiano, afirma:

Através dos princípios de um direito natural preexistente ao Estado, de um


Estado baseado no consenso, de subordinação do Poder Executivo ao Poder
Legislativo, de um poder limitado, de direito de resistência, Locke expôs as
diretrizes fundamentais do Estado liberal (BOBBIO, 1984, p. 41).

John Locke

Forneceu a posteriori a justificação moral, política e ideológica para


a Revolução Gloriosa e para a monarquia parlamentar inglesa. Locke
influenciou a “revolução norte-americana”, na qual a Declaração de
Independência foi redigida e a guerra de libertação foi travada em termos
de direitos naturais e de direito de resistência para fundamentar a ruptura
com o sistema colonial britânico. [...] Locke influenciou ainda os filósofos
iluministas franceses, principalmente Voltaire e Montesquieu e, através
deles, a Grande Revolução de 1789 e a declaração de direitos do homem
e do cidadão.

E, finalmente, com a Grande Revolução, as ideias “inglesas”, que haviam


atravessado o canal da Mancha e estabelecido uma cabeça de ponte no
continente, transformaram-se nas ideias “francesas” e se difundiram por
todo o Ocidente (MELLO, 1989, p. 88).

8.6 Montesquieu e a distribuição social dos poderes

O sociólogo J. A. Guilhon Albuquerque (apud WEFFORT, 1989, p. 113) inicia sua minibiografia
mencionando os aspectos paradoxais de Montesquieu, cujos vínculos com a monarquia são determinantes
de seu contexto de criação, invenção e descobertas.
194
CIÊNCIA POLÍTICA

É preciso salientar que mesmo sendo de origem aristocrática, Montesquieu não é ideólogo
da nobreza, o que faz é aproveitar suas experiências nas estruturas nobiliárquicas e aplicá-las ao
desenvolvimento das relações políticas: os poderes centralizados da monarquia são, em sua obra,
desmembrados, amparando sua reflexão na constatação pragmática do êxito das monarquias ou
Estados monárquicos, muitos deles com centenas de anos.

Albuquerque é tomado como pioneiro em várias frentes do pensamento moderno. Vejamos


suas características:

• pai da Sociologia;

• inspirador do determinismo;

• estruturador dos três poderes do Estado de direito.

Seu legado mais referido é o de ser precursor das ideias de regimes políticos, da conceituação de
leis (regularidades e fundamentos do “estado de sociedade” x contratualistas), propondo governos em
mútuo controle. Propõe a moderação do poder governamental.

A perspectiva montesquiana é considerada por J. A. Guilhon Albuquerque (1989, p. 113-114)


como mais realista, tendo condições de ser mais realista do que aquela da burguesia, imbuída da
missão de sujeito histórico da mudança; tendo, portanto, sua análise muito comprometida com
seu próprio projeto.

Ao estudar Althusser, Guilhon Albuquerque (1989, p. 114) refere-se ao seu conceito de lei:

Em sua tese sobre Montesquieu, a política e a história (Lisboa, Presença,


1972), Louis Althusser sublinhou com muita pertinência a contribuição
de Montesquieu para a adoção do conceito de lei científica nas ciências
humanas. Até Montesquieu, a noção de lei compreendia três dimensões
essencialmente ligadas à ideia de lei de Deus. As leis exprimiam uma certa
ordem natural, resultante da vontade de Deus. Elas exprimiam também
um dever-ser, na medida em que a ordem das coisas estava direcionada
para uma finalidade divina. Finalmente, as leis tinham uma conotação de
expressão da autoridade. As leis eram simultaneamente legítimas (porque
expressão da autoridade), imutáveis (porque dentro da ordem das coisas) e
ideais (porque visavam uma finalidade perfeita).

Não é à toa que Montesquieu é tido em alta conta pelos juristas, pois avança bastante no tema
legislativo e na teoria das organizações sociais.

Montesquieu introduz o conceito de lei no início de sua obra fundamental, O


Espírito das Leis, para escapar a uma discussão viciada que, dentro da tradição
jurídica – sua contemporânea, ficaria limitada a discutir as instituições e
195
Unidade III

as leis quanto à legitimidade de sua origem, sua adequabilidade à ordem


natural, e a perfeição de seus fins. Uma discussão fadada a confundir, nas
leis, concepções de natureza política, moral e religiosa.

Definindo lei como “relações necessárias que derivam da natureza das


coisas”, Montesquieu estabelece uma ponte com as ciências empíricas, e
particularmente com a física newtoniana, que ele parafraseia. Com isso, ele
rompe com a tradicional submissão da política à teologia. Mas não cairia na
subordinação oposta, estabelecendo uma espécie de determinismo natural
extremamente conservador, porque tornaria as instituições existentes
inelutáveis, insubstituíveis?

Montesquieu está dizendo, em primeiro lugar, que é possível encontrar


uniformidades, constâncias na variação dos comportamentos e formas de
organizar os homens, assim como é possível encontrá-las nas relações entre
os corpos físicos. Tal como é possível estabelecer as leis que regem os corpos
físicos a partir das relações entre massa e movimento, também as leis que
regem os costumes e as instituições são relações que derivam da natureza
das coisas. Mas aqui se trata de massa e movimento de outra ordem, a
massa e o movimento próprios da política, que poderiam corresponder, se
precisássemos levar adiante a metáfora, a quem exerce o poder e como ele é
exercido. São esses, como veremos, a natureza e princípio de governo, bases
da tipologia de Montesquieu.

Com o conceito de lei, Montesquieu traz a política para fora do campo da


teologia e da crônica, e a insere num campo propriamente teórico. Estabelece
uma regra de imanência que incorpora a teoria política ao campo das
ciências: as instituições políticas são regidas por leis que derivam das relações
políticas. As leis que regem as instituições políticas, para Montesquieu, são
relações entre as diversas classes em que se divide a população, as formas de
organização econômica, as formas de distribuição do poder etc.

Mas o objeto de Montesquieu não são as leis que regem as relações entre os
homens em geral, mas as leis positivas, isto é, as leis e instituições criadas
pelos homens para reger as relações entre os homens. Montesquieu observa
que, ao contrário dos outros seres, os homens têm a capacidade de se furtar
às leis da razão (que deveriam reger suas relações), e além disso adotam leis
escritas e costumes destinados a reger os comportamentos humanos. E têm
também a capacidade de furtar-se igualmente às leis e instituições.

O objeto de Montesquieu é o espírito das leis, isto é, as relações entre as leis


(positivas) e “diversas coisas”, tais como o clima, as dimensões do Estado, a
organização do comércio, as relações entre as classes etc. Montesquieu tenta
explicar as leis e instituições humanas, sua permanência e modificações, a
196
CIÊNCIA POLÍTICA

partir de leis da ciência política (ALBUQUERQUE, 1989, p. 114).

Até chegar nos três governos, Montesquieu elaborou suas teses a partir do governo único,
vislumbrando as possibilidades de separá-lo em poderes, combinando sistemas e seus atributos da honra
(monarquia), da virtude (república) e do medo (despotismo).

Vimos que Montesquieu está fundamentalmente preocupado com a


estabilidade dos governos (expressão que corresponderia ao que chamamos
de regime, ou modo de funcionamento das instituições políticas). Com isso,
ele retoma a problemática de Maquiavel, que discute essencialmente as
condições de manutenção do poder.

Os pensadores políticos que precedem Montesquieu (e Rousseau,


que o sucede) são teóricos do Contrato Social (ou do Pacto), estão
fundamentalmente preocupados com a natureza do poder político, e tendem
a reduzir a questão da estabilidade do poder à sua natureza. Ao romper com
o estado de natureza (no qual a ameaça de guerra de todos contra todos põe
em risco a sobrevivência da humanidade), o pacto que institui o estado de
sociedade deve ser tal que garanta a estabilidade contra o risco de anarquia
ou de despotismo.

Montesquieu constata que o estado de sociedade comporta uma variedade


imensa de formas de realização, e que elas se acomodam mal ou bem a
uma diversidade de povos, com costumes diferentes, formas de organizar
a sociedade, o comércio e o governo. Essa imensa diversidade não se
explica pela natureza do poder e deve, portanto, ser explicada. O que deve
ser investigado não é, portanto, a existência de instituições propriamente
políticas, mas sim a maneira como elas funcionam.

Assim, ele vai considerar duas dimensões do funcionamento político das


instituições: a natureza e o princípio de governo. A natureza do governo diz
respeito a quem detém o poder: na monarquia, um só governa, através de
leis fixas e instituições; na república, governa o povo no todo ou em parte
(repúblicas aristocráticas); no despotismo, governa a vontade de um só.

Não se trata de uma noção puramente descritiva, como poderia parecer à


primeira vista. As análises minuciosas de Montesquieu sobre as “leis relativas
à natureza do governo” deixam claro que se trata de relações entre as
instâncias de poder e a forma como o poder se distribui na sociedade, entre
os diferentes grupos e classes da população.

No que concerne à república, por exemplo, Montesquieu lembra que, por


tratar-se de um governo em que o poder é do povo, é fundamental distinguir
197
Unidade III

a fonte do exercício do poder, e estabelecer criteriosamente a divisão da


sociedade em classes com relação à origem e ao exercício do poder. O povo,
diz ele, sabe escolher muito bem, mas é incapaz de governar porque é
movido pela paixão e não pode decidir. Portanto, na natureza dos governos
republicanos está compreendida a relação entre as classes e o poder.

O princípio de governo é a paixão que o move, é o modo de funcionamento


dos governos, ou seja, como o poder é exercido. São três os princípios, cada
um correspondendo em tese a um governo. Em tese, porque, segundo
Montesquieu, ele não afirma que “toda república é virtuosa, mas sim que
deveria sê-lo” para poder ser estável.

Curiosa paixão, que tem três modalidades: o princípio da monarquia é a


honra; o da república é a virtude; e o do despotismo é o medo. Esta é a única
paixão propriamente dita, o único móvel psicológico dos comportamentos
políticos, razão por que o regime que lhe corresponde é um regime que
se situa no limiar da política: o despotismo seria menos do que um
regime político, quase uma extensão do estado de natureza, no qual os
homens atuam movidos pelos instintos e orientados para a sobrevivência
(ALBUQUERQUE, 1989, p. 113-114).

8.7 Rousseau e as bases do Estado democrático

Jean-Jacques Rousseau propõe uma forma de ver, pensar e fazer inovadora em seu tempo, isto é,
sua concepção de vida social, do plano teórico ideal (as abstrações que materializadas socialmente), bem
como das intervenções necessárias ao progresso potencial humano no âmbito social.

Seu trabalho torna-se público após a premiação da Academia de Dijon, que propôs como tema: “O
restabelecimento das ciências e das artes teria contribuído para aprimorar os costumes?’’ Rousseau
indica que não em seu texto, marcando posição distinta em sua época. Desse modo, vai além da dúvida
no que diz respeito ao conhecimento científico, chegando quase ao ceticismo. Em Discurso sobre a
Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens, ele diz: “Se nossas ciências são inúteis no
objeto que se propõem, são ainda mais perigosas pelos efeitos que produzem”. Antes pois de defender o
processo de difusão das luzes” (ROUSSEAU, 2008 apud NASCIMENTO, 1989, p. 189).

Com essa posição, pergunta-se sobre que tipo de saber direciona a vida dos seres humanos. O autor
acusa a banalização da produção intelectual como motivada por arrivismo:

Se o progresso das ciências e das artes nada acrescentou à nossa felicidade, se


corrompeu os costumes e se a corrupção dos costumes chegou a prejudicar
a pureza do gosto, que pensarmos dessa multidão de autores secundários...
Que pensarmos desses compiladores de obras que indiscretamente forçaram
a porta das ciências e introduziram em seu santuário uma populaça indigna
de aproximar-se delas, enquanto seria de desejar-se que todos aqueles que
198
CIÊNCIA POLÍTICA

não pudessem ir longe na carreira das letras fossem impedidos desde o início
e encaminhados às artes úteis à sociedade? (NASCIMENTO, 1989, p. 18-190).

Rousseau crítica ciências e artes, embora aceite o que chama no Discurso sobre a Origem e os
Fundamentos da Desigualdade entre os Homens “verdadeira ciência”. Vai, portanto, na contracorrente
dos iluministas, cuja bandeira mais destacada é a disseminação do saber. Afirma que a ciência praticada
é baseada mais no orgulho e na busca de glória e de reputação do que no legítimo amor ao saber, não
passando “de uma caricatura da ciência e sua difusão por divulgadores e compiladores, autores de
segunda categoria, só pode contribuir para piorar muito mais as coisas” (NASCIMENTO, 1989, p. 190).

Pauta suas críticas ao espírito iluminista num ideal de virtude, tomada


como “verdadeira filosofia”, sendo “ciência sublime das almas simples, cujos
princípios estão gravados em todos os corações”. Para se conhecer suas leis,
basta voltar-se para si mesmo e ouvir a voz da consciência no silêncio das
paixões (NASCIMENTO, 1989, p. 190).

E, como em sua opinião a corrupção generalizou-se, sendo apenas uma questão de grau, ciência e
arte são produtos e condições desvirtuados, podendo, “no entanto, desempenhar um papel importante
na sociedade, o de impedir que a corrupção seja maior ainda” (ROUSSEAU, 1991, p. 190).

Rousseau tece raciocínio que reconhece certa função às artes e às ciências, embora participem da
corrupção. Fala de sua necessidade,

Para impedir que se tornem crimes, cobrindo-os com um verniz que não
permite que o veneno se espalhe tão livremente. Destroem a virtude, mas
preservam o seu simulacro público que é sempre uma bela coisa; em seu
lugar, introduzem a polidez e a decência, e substituem o temor de parecer
mau pelo de parecer ridículo (ROUSSEAU, 1991, p. 190).

Ele imagina uma espécie de censura pautada na moral para a produção e difusão artística e
científica. Critica e, de certo modo, enaltece-as, sendo ele próprio cientista e artista. Trata-se de destacar
suas funções pedagógicas. “Não se trata, portanto, de acabar com as academias, as universidades, as
bibliotecas, os espetáculos. As ciências e as artes podem muito bem distrair a maldade dos homens e
impedi-los de cometer crimes hediondos” (ROUSSEAU, 1991, p. 190).

Rousseau acredita que ciência e arte devem cumprir papéis emblemáticos, exemplificadores da
virtude, não mais prescritivos.

Os temas mais candentes da filosofia política clássica, tais como a passagem


do estado de natureza ao estado civil, o contrato social, a liberdade civil,
o exercício da soberania, a distinção entre o governo e o soberano, o
problema da escravidão e o surgimento da propriedade serão tratados por
Rousseau de maneira exaustiva, de um lado, retomando as reflexões dos
autores da tradicional escola do direito natural, como Grotius, Pufendorf e
199
Unidade III

Hobbes e, de outro, não poupando críticas pontuais a nenhum deles, o que


o colocará, no século XVIII, em lugar de destaque entre os que inovaram
a forma de se pensar a política, principalmente ao propor o exercício
da soberania pelo povo, como condição primeira para a sua libertação
(NASCIMENTO, 1989, p. 194).

Os textos que mais nos interessam, pontos altos da obra política de Rousseau, são O Contrato Social
e o Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens. A noção de pacto é
fundamental em suas teses.

A chave para se entender a articulação entre essas duas obras está no primeiro
parágrafo no capítulo I, do livro I, do Contrato: “O homem nasce livre, e por
toda parte encontra-se aprisionado. O que se crê senhor dos demais não
deixa de ser mais escravo do que eles. Como se deve esta transformação?
Eu o ignoro: o que poderá legitimá-la? Creio poder resolver esta questão”.
[...] Ora, a trajetória do homem, da sua condição de liberdade no estado de
natureza, até o surgimento da propriedade, com todos os inconvenientes
que daí surgiram, foi descrita no Discurso sobre a Origem da Desigualdade.
Nesta obra, o objetivo de Rousseau é o de construir a história hipotética da
humanidade, deixando de lado os fatos, procedimento semelhante ao que
outros filósofos já haviam feito no século XVII. Espinosa e Hobbes tomaram
de empréstimo, da geometria, o método para a análise dos problemas da
moral e da política. Rousseau, por sua vez, afirma na introdução ao Discurso
sobre a Desigualdade [...] (NASCIMENTO, 1989, p. 194).

No Discurso sobre a Origem da Desigualdade, Rousseau propõe afastar todos os fatos, pois eles não
dizem respeito à questão central da transição.

Não se devem considerar as pesquisas, em que se pode entrar neste


assunto, como verdades históricas, mas somente como raciocínios
hipotéticos e condicionais, mais apropriados a esclarecer a natureza
das coisas do que a mostrar a verdadeira origem e semelhantes àqueles
que, todos os dias, fazem nossos físicos sobre a formação do mundo
(NASCIMENTO, 1989, p. 194).

Quando declara sua ignorância sobre a transformação do homem, da liberdade em direção da


servidão, Rousseau está se referindo ao que poderíamos denominar “fatos reais”, de difícil verificação,
visto que o material sobre esse processo é disperso, e cujas conexões são abstratas. Trata do que hoje
designamos como trabalho arqueológico.

Ele opta pela alternativa da construção hipotética, demonstrada por meio de argumentação
racional. Logo, a história hipotética da humanidade, por ele enfatizada, culminaria com a legitimação
da desigualdade, quando a proposta do pacto é feita pelo rico.

200
CIÊNCIA POLÍTICA

Há uma bandeira, um estandarte político (que sua história de vida ajuda a entender) propondo a
defesa dos “fracos” contra a opressão, “conter os ambiciosos e assegurar a cada um a posse daquilo
que lhe pertence” (NASCIMENTO, 1989, p. 195) cuidando da institucionalização de justiça e de paz,
cuja universalização não permita exceções, garantindo reciprocidade entre todos. Esta é a principal
linguagem contratual: eis a emergência da figura do contrato. Contrato ou termo de compromisso entre
as partes, com base no ideal de justiça, tanto como instrumento de reparação quanto de melhoria da
qualidade social; voltado ao passado e que se projeta ao futuro. Em resumo:

Numa palavra, em lugar de voltar nossas forças contra nós mesmos,


reunamo-nos num poder supremo que nos governe segundo sábias leis,
que protejam e defendam todos os membros da associação, expulsem os
inimigos comuns e nos mantenham em concórdia eterna (NASCIMENTO,
1989, p. 195).

Para Rousseau, na raiz disso, encontramos uma espécie de sedução histórica:

Todos correram ao encontro de seus grilhões, crendo assegurar sua liberdade


[...]. Tal foi ou deveu ser a origem da sociedade e das leis, que deram novos
entraves ao fraco e novas forças ao rico, destruíram irremediavelmente a
liberdade natural, fixaram para sempre a lei da propriedade e da desigualdade,
fizeram de uma usurpação sagaz um direito irrevogável e, para proveito de
alguns ambiciosos, sujeitaram doravante todo o gênero humano ao trabalho,
à servidão e à miséria (NASCIMENTO, 1989, p. 195).

Colocada a pedra de toque, Rousseau parte para a obra O Contrato Social afirmando que “o homem
nasce livre e em toda parte encontra-se a ferros”.

Segundo Nascimento (1989, p. 190), seu projeto, então, muda de nível: passa das tentativas de
reconstrução hipotética da história às indicações do “dever ser de toda ação política”. O que incomoda
Rousseau são as razões da mudança da liberdade para a servidão. Sobre essa questão (apresentada no
Discurso), afirma que não tem resposta, mas um projeto: estabelecer no contrato social as condições de
um pacto no qual os seres humanos realizem sua liberdade civil após a perda da liberdade natural, o que
é explanado nos capítulos VI a VIII do livro O Contrato Social. Como em qualquer contrato, a legitimação
do pacto social requer a condição de igualdade das partes contratantes.

Rousseau enfatiza que as cláusulas do contrato devem ser bem compreendidas e, por sinal,

Reduzem-se a uma só: a alienação total de cada associado, com todos


os seus direitos, à comunidade toda, porque, em primeiro lugar, cada um
dando-se completamente, a condição é igual para todos e, sendo a condição
igual para todos, ninguém se interessa por tornar onerosa para os demais
(NASCIMENTO, 1989, p. 196).

201
Unidade III

No Discurso foi identificado o problema, no Contrato não há prejuízos em virtude da associação


que constitui uma unidade soberana fixada nesse acordo (contrato) cuja atribuição é regulamentar
a vida política, desde os limites às ações aos estatutos dos institutos, como o da propriedade de
cada membro.

A liberdade civil deve ocorrer no estado de sociedade, no momento em que nos submetemos às
regras do contrato, ao abrirmos mão do ideal de liberdade natural (jusnaturalismo), abstrata. É encargo
do provo soberano (parte ativa e passiva no processo, sendo agente ao promover as leis e obediente às
mesmas leis) constituir-se como ser autônomo, agindo por si.

Nestas condições haveria uma conjugação perfeita entre a liberdade e a


obediência. Obedecer à lei que se prescreve a si mesmo é um ato de liberdade.
Fórmula que seria desenvolvida mais tarde por Kant. Um povo, portanto, só
será livre quando tiver todas as condições de elaborar suas leis num clima
de igualdade, de tal modo que a obediência a essas mesmas leis signifique,
na verdade, uma submissão à deliberação de si mesmo e de cada cidadão,
como partes do poder soberano. Isto é, uma submissão à vontade geral, e
não à vontade de um indivíduo em particular ou de um grupo de indivíduos
(NASCIMENTO, 1989, p. 196).

A igualdade de todos (entre si) na base do corpo político deve ser também a condição “da máquina
política”, responsável pela manutenção de tal ordem, garantindo que o pacto inicial perdure de modo
estrutural. Tal ordem materializa-se nas organizações político-administrativas ou governos, o que
Rousseau (1991) destaca no Livro III de O Contrato Social.

Todo o livro III do Contrato Social será dedicado ao governo. Para Rousseau,
antes de mais nada, impõe-se definir o governo, o corpo administrativo do
Estado, como funcionário do soberano, como um órgão limitado pelo poder
do povo, e não como um corpo autônomo ou então como o próprio poder
máximo, confundindo-se neste caso com o soberano. Se a administração
é um órgão importante para o bom funcionamento da máquina política,
qualquer forma de governo que se venha a adotar terá que submeter-
se ao poder soberano do povo. Neste sentido, dentro do esquema de
Rousseau, as formas clássicas de governo, a monarquia, a aristocracia e
a democracia teriam um papel secundário dentro do Estado e poderiam
variar ou combinar-se de acordo com as características do país, tais como
a extensão do território, os costumes do povo, suas tradições etc. Mesmo
sob um regime monárquico, segundo Rousseau, o povo pode manter-se
como soberano, desde que o monarca se caracterize como funcionário do
povo (NASCIMENTO, 1989, p. 197).

Nascimento (1989) encaminha sua análise sobre o trabalho de Rousseau acentuando algumas
questões que reputa como recorrentes:

202
CIÊNCIA POLÍTICA

1. Em que medida, ao estabelecer um dever-ser de toda ação política, ou seja,


as condições de possibilidade de uma ação política legítima, o autor estaria
propondo um outro tipo de sociedade e dessa maneira estaria acreditando
numa ação política transformadora?

2. Da servidão, teríamos condições de desenvolvermos um projeto visando à


recuperação da liberdade? (NASCIMENTO, 1989, p. 198-199).

O autor avalia que parece haver “uma certa incredulidade quanto à recuperação da liberdade por povos
que já a perderam completamente”. Ele apresenta uma concepção de história que reputa como “pessimista”.
Rousseau é tido por “moderado” em suas ações políticas concretas, como afirma Nascimento (1989, p. 199):

Quando chamado a atuar na política concreta, quando convidado a elaborar o


projeto de constituição para a Córsega e a redigir a reforma das leis polonesas,
Rousseau será bastante moderado e usará sempre a máxima que já havia
enunciado no Contrato Social: a primeira tarefa do legislador é conhecer muito
bem o povo para o qual irá redigir as leis. Não existe uma ação política boa em
si mesma em termos absolutos. Cada situação exige um tratamento especial. A
ação política será mesmo comparada à ação do médico diante do paciente.

Sua moderação e aparente relativismo se devem ao receio de indicar caminhos rígidos para
circunstâncias diferentes, isto é, sua perspectiva científica procura lógica e regularidades e, embora
tenha projeto político, está comprometido com a realidade, sem falseá-la ou distorcê-la, como fica
explícito na citação.

O texto a seguir trata do contrato social de Rousseau.

Do pacto social

Eu imagino os homens chegados ao ponto em que os obstáculos, prejudiciais à sua


conservação no estado natural, arrastam-nos, por sua resistência, sobre as forças que
podem ser empregadas por cada indivíduo a fim de se manter em tal estado. Então, esse
estado primitivo não mais tem condições de subsistir, e o gênero humano pereceria se não
mudasse sua maneira de ser.

Ora, como é impossível aos homens engendrar novas forças, mas apenas unir e dirigir as
existentes, não lhes resta outro meio, para se conservarem, senão formando, por agregação,
uma soma de forças que possa arrastá-los sobre a resistência, pô-los em movimento por um
único móbil e fazê-los agir de comum acordo.

Essa soma de forças só pode nascer do concurso de diversos; contudo, sendo a força
e a liberdade de cada homem os primeiros instrumentos de sua conservação, como as
empregará ele, sem se prejudicar, sem negligenciar os cuidados que se deve? Esta dificuldade,
reconduzida ao meu assunto, pode ser enunciada nos seguintes termos:
203
Unidade III

“Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja de toda a força comum a
pessoa e os bens de cada associado, e pela qual, cada um, unindo-se a todos, não obedeça,
portanto, senão a si mesmo, e permaneça tão livre como anteriormente”.

Tal é o problema fundamental cuja solução é dada pelo contrato social.

As cláusulas deste contrato são de tal modo determinadas pela natureza do ato que a
menor modificação as tornaria vãs e de nenhum efeito; de sorte que, conquanto jamais
tenham sido formalmente enunciadas, são as mesmas em todas as partes, em todas as partes
tacitamente admitidas e reconhecidas, até que, violado o pacto social, reentra cada qual em
seus primeiros direitos e retoma a liberdade natural, perdendo a liberdade convencional pela
qual ele aqui renunciou.

Todas essas cláusulas, bem entendido, reduzem-se a uma única, a saber, a alienação
total de cada associado, com todos os seus direitos, em favor de toda a comunidade; porque,
primeiramente, cada qual se entregando por completo e sendo a condição igual para todos,
a ninguém interessa torná-la onerosa para os outros.

Além disso, feita a alienação sem reserva, a união é tão perfeita quanto o pode ser, e
nenhum associado tem mais nada a reclamar; porque, se aos particulares restassem alguns
direitos, como não haveria nenhum superior comum que pudesse decidir entre eles e o
público, cada qual, tornado nalgum ponto o seu próprio juiz, pretenderia em breve sê-lo
em tudo; o estado natural subsistiria, e a associação se tornaria necessariamente tirânica
ou inútil.

Enfim, cada qual, dando-se a todos, não se dá a ninguém, e, como não existe um associado
sobre quem não se adquira o mesmo direito que lhe foi cedido, ganha-se o equivalente de
tudo o que se perde e maior força para conservar o que se tem.

Portanto, se afastarmos do pacto social o que não constitui a sua essência, acharemos
que ele se reduz aos seguintes termos:

“Cada um de nós põe em comum sua pessoa e toda a sua autoridade, sob o supremo
comando da vontade geral, e recebemos em conjunto cada membro como parte indivisível
do todo”.

Logo, ao invés da pessoa particular de cada contratante, esse ato de associação


produz um corpo moral e coletivo, composto de tantos membros quanto a assembleia
de vozes, o qual recebe desse mesmo ato sua unidade, seu eu comum, sua vida e sua
vontade. A pessoa pública, formada assim pela união de todas as outras, tomava outrora
o nome de cidade, e toma hoje o de república ou corpo político, o qual é chamado por
seus membros: Estado, quando é passivo; soberano, quando é ativo; autoridade, quando
comparado a seus semelhantes. No que concerne aos associados, adquirem coletivamente
o nome de povo, e se chamam particularmente cidadãos, na qualidade de participantes na
204
CIÊNCIA POLÍTICA

autoridade soberana, e vassalos, quando sujeitos às leis do Estado. Todavia, esses termos
frequentemente se confundem e são tomados um pelo outro. É suficiente saber distingui-
los, quando empregados em toda a sua precisão (ROUSSEAU, 1991, p. 31-34).

Saiba mais
Para saber mais sobre os pensadores estudados, leia:
SILVA, E. C. da. A democracia moderna em Montesquieu, Locke e
Rousseau. Gramsci e o Brasil, Minas Gerais, nov. 2007. Disponível em:
<http://www.acessa.com/gramsci/?id=823&page=visualizar>. Acesso em:
10 abr. 2018.

Resumo

Nesta unidade, apresentamos as relações internacionais ao tratar de


Estados-nação. Para tanto, abordamos as utopias e concepções modernas
de desenvolvimento, a via capitalista convencional e as alternativas.

Na análise feita neste livro-texto, trouxemos modos de associação


entre Estados e capitais nos formatos de blocos regionais (com facilidades
alfandegárias), contíguos e não adjacentes.

O tema da governança em suas várias escalas foi relacionado, em


especial ao plano supranacional.

Destacamos, ainda, reflexões e modelos de organização política, o


importante ideário contratualista e os pensadores responsáveis pelas
principais ideias políticas do Ocidente, desde a Antiguidade, de Platão e
Aristóteles, passando por Maquiavel, Hobbes, Locke, Montesquieu e Rousseau.

Exercícios

Questão 1. As alternativas a seguir destacam o imperialismo do fim do século XIX, EXCETO:

A) Expansão de mercados.

B) Exacerbação do nacionalismo.

205
Unidade III

C) Expansão do controle territorial.

D) Industrialização das nações colonizadas.

E) Exploração das colônias sobre a base de interesses comuns e bilaterais.

Resposta correta: alternativa D.

Análise das alternativas

A) Alternativa incorreta.

Justificativa: com a crise econômica europeia, a expansão de mercados se configura como uma das
características imperialistas.

B) Alternativa incorreta.

Justificativa: o nacionalismo foi uma das principais características do imperialismo.

C) Alternativa incorreta.

Justificativa: para escoar os bens produzidos na Europa, a expansão do controle territorial se tornou
uma configuração fundamental do imperialismo.

D) Alternativa correta.

Justificativa: o objetivo das nações imperialistas era minimizar a concorrência, portanto, a


industrialização das nações colonizadas não fazia partes dos objetivos europeus.

E) Alternativa incorreta.

Justificativa: o colonialismo do século XIX e de começo do século XX buscava apoiar sua presença
nas áreas de exploração colonial sobre a base de interesses comuns e bilaterais, contribuindo com as
potências colonizadoras, segundo o pretexto imperialista, com os elementos da técnica e da civilização
para o gradual desenvolvimento das populações desses territórios, de acordo com Paulo Bonavides.

Questão 2. Considere os itens a seguir:

I – Proposição de que volume de exportações fosse maior que o de importações para que se
obtivesse uma balança comercial favorável nas colônias.

II – Proposição de que a autoridade do governante nas colônias emanasse diretamente de Deus,


e que o soberano só pudesse ser deposto por Deus.

206
CIÊNCIA POLÍTICA

III – Proposição de aproximação entre as diversas sociedades e nações existentes por todo o
mundo, no âmbito econômico, social, cultural ou político.

Sobre o Neocolonialismo, é correto apenas o que se destaca em:

A) I e II.

B) Todos os itens estão corretos.

C) I e III.

D) II e III.

E) Nenhuma das alternativas anteriores está correta.

Resolução desta questão na plataforma.

207
FIGURAS E ILUSTRAÇÕES

Figura 1

ALVES, J. E. D. As políticas populacionais e o planejamento familiar na América Latina e no Brasil. Rio


de Janeiro: Escola Nacional de Ciências Estatísticas, 2006. p. 9-10.

Figura 2

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conteudo_926/102p.jpg>. Acesso em: 2 abr. 2018.

Figura 3

AULA_15049/60.JPG. Disponível em: <http://www.objetivo.br/conteudoonline/imagens/Aula_15049/


60.jpg>. Acesso em: 10 abr. 2018.

Figura 4

66GRANDE.JPG. Disponível em: <http://www.objetivo.br/conteudoonline/imagens/Aula_15049/66


grande.jpg>. Acesso em: 10 abr. 2018.

Figura 5

IMAGE1.JPG. Disponível em: <http://www.objetivo.br/conteudoonline/imagens/conteudo_4552/


image1.jpg>. Acesso em: 4 abr. 2018.

Figura 6

MAPA_16.JPG. Disponível em: <http://www.objetivo.br/conteudoonline/imagens/conteudo_1608/


mapa_16.jpg>. Acesso em: 4 abr. 2016.

Figura 7

IBGE. Blocos econômicos 2011. IBGE, [s.d.]. Disponível em: <http://geoftp.ibge.gov.br/produtos_


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