O Formalismo Valorativo
O Formalismo Valorativo
O Formalismo Valorativo
formalismo excessivo
mesma espécie de situação fática ma- oferece duas facetas: no plano nor-
terial, impedindo uma uniforme realiza- mativo, impõe uma equilibrada distri-
ção do direito. 5 Não bastasse isso, se buição de poderes entre as partes, sob
constrangido o órgão judicial de cada pena de tornar-se o contraditório uma
processo a elaborar para o caso con- sombra vã~ no plano do fato. ou seja
creto, com grande desperdício de tem- do desenvolvimento concreto do proce-
po, os próprios princípios com a finali- dimento, reclama o exercício de poderes
dade de dar forma ao procedimento pelo sujeito, de modo a que sempre fique
adequado, permaneceria inutilizável o garantido o exercício dos poderes do
tesouro da experiência colhida da his- outro. 8 O justo equilíbrio presta-se, por-
tória do direi to processual. 6 tanto, para atribuir às partes, na mesma
O formalismo processual controla. medida, poderes, faculdades e deveres,
por outro lado, os eventuais excessos de modo a que não seja idealmente di-
de uma parte em face da outra, atuando versa sua possível influência no desen-
por conseguinte como poderoso fator volvimento do procedimento e na ativi-
de igualação (pelo menos formal) dos dade cognitiva do juiz, faceta assaz
contendores entre si. 7 O fenômeno importante da própria garantia funda-
mente regu Iadoras do modo de ser do Além disso, não só as formas ex-
procedimento não resultam apenas de ternas, por meio das quais se desen-
considerações de ordem prática, cons- volve a administração da justiça, mas
tituindo no fundamental expressão das também os métodos lógicos emprega-
concepções sociais, éticas, econômicas, dos para o julgamento exibem valor
políticas, ideológicas e jurídicas, sub- contingente, a ser estremado consoante
jacentes a determinada sociedade e a as circunstâncias de dado momento
ela características, e inclusive de uto- histórico, influenciando inclusive na
pias. Ademais, o seu emprego pode conformação do processo. 16
consistir em estratégias de poder, dire- Não se pode negar, por outro lado,
cionadas para tal ou qual finalidade o aproveitamento de técnicas e solu-
governamental. 14 Daí a idéia, substan- ções para problemas comuns, não
cialmente correta, de que o direito pro- obstante a diversidade de valores entre
cessual é o direito constitucional apli- os povos. Isso se dá principalmente em
cado,15 a significar essencialmente que virtude de uma base comum a todos os
o processo não se esgota dentro dos homens e o conseqüente estabeleci-
quadros de uma mera realização do mento de uma ponte entre eles, com
direito materiaL constituindo, sim, mais intercomunicação de culturas no tempo
amplamente, a ferramenta de natureza e no espaço. 17 Intercomunicação esta
pública indispensável para a realização que tende a se tornar cada vez mais
de justiça e pacificação social. hiperativa, não só pela facilidade de
14 Acerca das estratégias governamentais de exercício do poder estatal e sua relação com
o processo, a reflexão importante de SILVA, Carlos Augusto. O processo civil como
estratégia de poder: reflexo da judicialização da política no Brasil. Rio de Janeiro:
Renovar, 2004, passim.
15 Cf. GAUL, Zur Frage ... , p. 32. Idéia semelhante, aliás, era defendida já por POLLAK,
Rudolf. Sistem des Osterreichischen Zivilprozessrechtes. 2. ed. Wien: Manz, 1932, p. III,
para quem o direito processual civil constitui, em muitos aspectos, uma das mais
importantes partes do direito constitucional. A respeito, ainda, OLIVEIRA, Carlos Alberto
Alvaro de. O processo civil na perspectiva dos direitos fundamentais. Revista Forense,
Rio de Janeiro, n. 372, p. 77-86, mar./abr. 2004.
16 Como ressalta com acerto CALAMAN OREI, Piero. fstltuúoni di diritto processuale
civile. ln: OPERE giuridiche. Napoli: Mora no, 1970, v. 4, § 8°, p. 34. Sobre a influência da
lógica na conformação cto processo, o ensaio seminal de PICAR O, Nico la. Processo civile
(dir. moderno). ln: ENCICLOPEDIAdel diritto. Milano: Giuffre, 1987, v. 36, p. 110-117.
17 Assim filosofa. argutamente. BERLIN, Isaiah. A busca do ideal. ln: HARDY, Henry
(Org.) Limites da utopia: capítulos da história das idéias. Tradução Valter Lellis Siqueira.
São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 21, ponderando ainda que os fins e os princípios
morais são variados, mas não infinitamente variados: eles devem situar-se nos limites do
horizonte humano.
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18 A esse respeito, observa DEL VECCHIO, Giorgio. L 'homo juridicus. Roma, 1936, p. 11,
apud GARCÍA MÁ YNEZ, Eduardo. !ntroducción a/ estudio de/ derecho. 4. ed. México:
Porrua, 1951, p. 13, que as regras técnicas constituem os meios obrigatoriamente
empregados para se conseguir um propósito, mas não prejulgam se é lícito, obrigatório
ou ilícito propor-se o fim de que se trate. A técnica, prossegue,nada tem a ver com o valor
das finalidades a que serve, pois concerne exclusivamente aos procedimentos que permitem
realizá-las, sem se preocupar por esclarecer se são boas ou más. Apreciar o mérito dos
fins do indivíduo é problema ético, não técnico.
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19 Sobre o ponto, SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 5.
ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989. p. I 03-108, e CANOTILHO, J. J. Gomes;
MOREIRA, Vital. Fundamentos da constituição. Coimbra: Coimbra, 1991, p. 82-85.
HABSCHEID, Walther J. Droitjudiciaire privé .misse. Genéve: Librairie de L'Université,
1981, § 50, I, p. 306, tratando da autoridade da coisa julgada, menciona que o Tribunal
Federal Constitucional alemão (BverfGE 15, 319) sublinho,u que o Estado de Direito tem
como tarefa preservar a segurança do direito.
20 Para a Corte Européia dos Direitos do Homem, "consoante o princípio da igualdade de
armas - um dos elementos da noção mais ampla de processo eqüitativo -, deve ser
oferecida a cada uma das partes a possibilidade razoável de apresentar sua causa em
condições tais que não a coloquem em situação de desvantagem em relação à outra":
Assim, v.g .., arestos Dombo Beheer B.V vs. Países-Baixos, de 27.10.1993, série A, n° 274,
§ 33, Bulut v. Áustria, de 22.2.1996, Recuei/1996, II,§ 47, Foucher vs. França, de 17.3.1997,
§ 34, Kuopila vs. Finlândia, de 27.4.2000, apud MARCUS-HELMONS, Silvio. Quelques
aspects de Ia notion d · égalité des armes (Un aperçu de la jurisprudence de la Cour
européenne des droits de l'homme ), in Aux sources du proces équitable une certaine idée
de Ia qualité de Ia Justice. ln: LE PROCES équitable et la protection juridictionnelle du
citoyen. Bruxelles: Bruylant, 200 I, p. 68.
Revista da Faculdade de Direito da UFRGS- no 26, 2006 67
bunal seja atingido em sua própria subs- centro do poder político, diminuindo a
tância, devendo ser observada "uma participação democrática dos sujeitos
relação razoável de proporcionalidade de direito. Tudo veio a mudar con1 a
entre os meios empregados e o fim visa- emergência dos princípios, considerados
do". Ainda segundo o Tribunal, o litigante nessa nova perspectiva como direitos
não deve ser impedido "de empregar um fundamentais, que podem e devem ter
recurso existente e disponível", proibin- lugar de destaque na aplicação prática
do-se todo "entrave desproporcional a do direito, sobrepondo-se às simples
seu direito de acesso ao tribunal". 27 regras infraconstitucionais. 28 Essa mu-
Impõe-se ressaltar, outrossim, que dança de paradigma, que introduz um
nos dias atuais vários fatores vêm deter- direito muito mais flexível, menos rígido,
minando uma maior prevalência do determina também uma alteração no
valor da efetividade sobre o da segu- que concerne à segurança jurídica, que
rança. Um dos aspectos relevantes é a passa de um estado estático para um
mudança qualitativa dos litígios trazidos estado dinâmico. Assim, a segurança
ao Judiciário, numa sociedade de· mas- jurídica de uma norma se mede pela
sas, com interesse de amplas camadas estabilidade de sua finalidade, abrangida
da população, a tornar imperativa uma em caso de necessidade por seu próprio
solução mais rápida do processo e a movimento. Não mais se busca o abso-
efetividade das decisões judiciais. Outro luto da segurança jurídica, mas a segu-
fator significativo é a própria adoção dos rança jurídica afetada de um coefi-
princípios e sua constitucional ização, ciente, de uma garantia de realidade.
fenômeno que se iniciou após o término Nessa nova perspectiva, a própria segu-
da Segunda Guerra Mundial. A anterior rança jurídica induz a mudança, a
tramitação fechada e a minúcia regula- movimento, na medida em que ela está
mentadora das atuações processuais a serviço de um objetivo mediato de
(excesso de formalismo) dos códigos permitir a efetividade dos direitos e
processuais, formados em período auto- garantias de um processo equânime. 29
ritário ou informados por ideologia dessa Em suma,, a segurança já não é vista
espécie, servia ao fim de controle da com os olhos do Estado liberal, em que
jurisdição e dos agentes forenses pelo tendia a prevalecer como valor, porque
não serve mais aos fins sociais a que o conseqüente exercício mais ativo da
Estado se destina. Dentro dessas coor- cidadania, inclusive de natureza pro-
denadas, o aplicador deve estar atento cessual. Além de tudo, revela-se ine-
às circunstâncias do caso, pois às vezes gável a importância do contraditório
mesmo atendido o formalismo estabe- para o processo justo, princípio essen-
lecido pelo sistema, em face das cir- cial que se encontra na base mesma do
cunstâncias peculiares da espécie, o diálogo judicial e da cooperação. A
processo pode se apresentar injusto ou sentença final só pode resultar do tra-
conduzir a um resultado injusto. balho conjunto de todos os sujeitos do
Por outro lado, o abandono de uma processo. Ora, a idéia de cooperação
visão positivista e a adoção de uma lógica além de exigir, sim, um juiz ativo e leal,
argumentativa, com a c o locação do colocado_ no centro da controvérsia,
problema no centro das preocupações impo11ará senão o restabelecimento do
hermenêuticas, assim como o emprego caráter isonômico do processo pelo
de princípios, de conceitos jurídicos menos a busca de um ponto de equilí-
indeterminados e juízos de equidade, em brio. Esse objetivo impõe-se alcançado
detrimento de uma visão puramente pelo fortalecimento dos poderes das
formalista na aplicação do direito, haveria partes, por sua participação mais ativa
obviamente de se refletir no processo. e leal no processo de formação da deci-
Decorre daí, em primeiro lugar, a são, em consonância com uma visão
recuperação do valor essencial do diá- não autoritária do papel do juiz e mais
logo judicial na formação do juízo, que contemporânea quanto à divisão do tra-
há de frutificar pela cooperação das balho entre o órgão judicial e as partes.
partes com o órgão judicial e deste com Daí a necessidade de estabelecer-
as partes, segundo as regras formais do se o permanente concurso das ativida-
processo. O colóquio assim estimulado, des dos sujeitos processuais, com ampla
assinale-se. deverá substituir com van- colaboração tanto na pesquisa dos fatos
tagem a oposição e o confronto, dando quanto na valorização jurídica da causa.
azo ao concurso das atividades dos su- Colaboraçã9 essa, acentue-se, vivifica-
jeitos processuais, com ampla colabo- da por permanente diálogo, com a co-
ração tanto na pesquisa dos fatos quanto municação das idéias subministradas por
na valorização da causa. As diretivas cada um deles: juízos históricos e
aqui preconizadas reforçam-se, por ou- valorizações jurídicas capazes de ser
tro lado, pela percepção de uma demo- empregados convenientemente na de-
cracia mais participativa, com um cisão.]0 Semelhante cooperação, res-
salte-se, mais ainda se justifica pela igualmente todos aqueles que participam
complexidade da vida atual. do processo (serventuários, peritos, as-
Entendimento contrário padeceria sistentes técnicos, testemunhas, etc.),
de vício dogmático e positivista, mor- devem nele intervir desde a sua instau-
mente porque a interpretação da regula ração até o último ato, agindo e intera-
iuris, no mundo moderno, só pode gindo entre si com boa-fé e lealdade.
nascer de uma compreensão integrada Exemplo interessante da aplicação
entre o sujeito e a norma, geralmente desse modo de ver encontra-se na juris-
não unívoca, com forte carga de subje- prudência do Tribunal Constitucional
tividade. E essa constatação ainda mais espanhol. Para aquela Alta Corte, o
se reforça pelo reconhecimento de que dever judicial de promover e colaborar
todo direito litigioso apresenta-se incerto na realização da efetividade da tutela
de forma consubstancial. jurisdicional não é de caráter moral, mas
Faceta importante a ressaltar é que um dever jurídico constitucional, pois os
a participação no processo para a for- juízes e tribunais têm a"[ ... ] obrigação
mação da decisão constitui, de forma de proteção eficaz do direito funda-
imediata, uma posição subjetiva ineren- mental [ ... ]". O cumprimento desse
te aos direitos fundamentais. po1ianto é mandato constitucional de proteger o
ela mesma o exercício de um direito direito fundamental à tutela judicial
fundamental.' 1 Tal participação, além efetiva, a que têm direito todas as pes-
de constituir exercício de um direito soas, há de ser para os juízes e tribunais
fundamental, não se reveste apenas de no1ie de sua ati v idade jurisdicional. Por
caráter formal, mas deve ser qual ificada isso, o Tribunal Constitucional fala da
substancialmente. necessária colaboração dos órgãos
Isso me: leva a extrair do próprio judiciais com as partes na materialização
direito fundamental de participação a da tutela e também no dever específico
base constitucional para o princípio da de garantir a tutela, dever que impede
colaboração, na medida em que tanto os órgãos jurisdicionais de adotarem
as partes quanto o órgão judicial, como uma atitud~ passiva nesta matéria. 32
plano estritamente jurídico, vinculado ao soai do juiz. Ainda que a lei processual
equacionamento de questões pura- busque imprimir desejável uniformidade,
mente de direito, como também na pró- a regra só indica o caminho, mas não o
pria condução do processo e notada- passo do caminhante. O subjetivismo,
mente no recolhimento e valorização do outrossim, revela-se ainda mais pre-
material fático de interesse para a deci- sente no próprio conhecer do juiz, na
são. A esse respeito, observa-se de ma- sua atitude epistemológica em face dos
neira exemplar que a maneira como opta fatos, a variar infinitamente conforme
o juiz no curso da seleção de informa- sua capacidade intelectual com vistas
ções leva a marca, estigmatizada, de sua a compreender, selecionar e combinar
versão pessoal. Mesmo a condução do as informações e delas extrair as devi-
processo nem sempre apresenta face das int~rências. O mesmo sucede, pro-
uniforme, variando o ritmo imprimido a vavelmente com maior intensidade, na
partir de elementos só encontradiços na avaliação do material recolhido, tarefa
marca individual gravada do magistrado em que, nada obstante a vinculação
na uti Iização dos instrumentos proces- axiológica do sistema, passam a pe-
suais, apesar da importância e do caráter sar, ainda que de modo inconsciente,
cogente com que se lhe dão a produzir também os próprios valores do órgão
os procedimentos na manufatura das judicial, desempenhando papel impor-
decisões e outras manifestações essen- tante sua sensibilidade pessoal às nuan-
ciais no manejo do processo. 35 ças do caso. 36
Talvez com maior evidência, tam- Esse constante trabalhar do órgão
bém na formação e apreciação do ma- judicial com a incapacidade de previsão
terial fático não se verifica unifonni- pela lei de todas as hipóteses possíveis,
dade. Influem para esse resultado fa- com a generalidade da regra e ainda
tores vinculados à própria individua- com fatores fáticos incertos e incons-
lidade do ser humano. De um lado, as tantes, agravado pelos diversos graus
informações colhidas não só podem de sua capacidade pessoal, tanto na
variar em qualidade ou quantidade, coleta do n~aterial probatório quanto na
como serão acolhidas e selecionadas sua seleção e avaliação, evidencia de
inevitavelmente do ponto de vista pes- forma bastante clara os riscos sempre
35 LOPES, Mônica Sette. A eqüidade e os poderes dojuiz. Belo Horizonte: Dei Rey, 1993,
p. 207-209.
36 Sobre esse aspecto da subjetividade da atividade do órgão judicial, ver LOPES, A
eqüidade ... , p. 207 e nota 492, reportando-se à obra de IVAINER, Théodore.
L 'interprétation des faits en droit: essai de mise en perspective cybernétique des
'lumieres du magistrat' Prefácio Jean Carbonnier. Paris: LGDJ, 1988, merecedora de
profunda meditação pelos novos ângulos oferecidos ao tema da interpretação judicial
dos fatos.
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Por outro lado, em direito processual, zoável, evitando-se todo exagero das
mais ainda do que em outros ramos do exigências de forma. Se a finalidade da
direito, enquanto trabalho de adaptação prescrição foi atingida na sua essência,
do geral ao concreto, a eqUidade rela- sem prejuízo a interesses dignos de
ciona-se, intimamente, com os fins da proteção da contraparte, o defeito de
norma e da própria finalidade do proces- forma não deve prejudicar a parte. A
so e da tarefa afeita à jurisdição. Em- forma não pode, assim, ser colocada
bora o princípio mais alto seja o da "além da matéria", por não possuir valor
justiça, por meio de uma igualdade de próprio, devendo por razões de eqUida-
todos perante a lei, não se pode esque- de a essência sobrepujar a forma. A
cer o caráter essencialmente final ístico não-observância de formas vazias não
do direito processual. Final is mo esse implica p_rejuízo, pois a lei não reclama
não voltado para si mesmo, pois inexiste uma finalidade oca e vazia. Na medida
formalismo em si, senão direcionado em que o ponto de vista da eqüidade
para os fins últimos da jurisdição. concede espaço à discrição judicial,
A esse respeito, não se pode deixar mesmo em se tratando de prescrições
de salientar que o fim do direito é servir formais de natureza cogente, propor-
à finalidade pragmática que lhe é pró- ciona o instrumento para a superação
pria. Processualmente, visa-se a atingir da até então ameaçadora inflexibilidade
a um processo equânime, peculiar do da forma, mormente porque a eqUidade
Estado democrático de direito, que sirva (segundo Radbruch) representa ajustiça
à idéia de um equilíbrio ideal entre as do caso concreto. Uma atitude livre
partes e ao fim material do processo: a também toma a visão da eqUidade con-
realização da justiça material. tra a letra da determinação formal. Ela
Ademais, as formas processuais rejeita toda obediência cega ao Código.
cogentes não devem ser consideradas Por não serem reconhecidos princípios
"formas eficaciais'' ( Wirkform ), mas especiais restritivos na hermenêutica
"formas finalísticas" (Zweckform), das normas formais, a interpretação não
subordinadas de modo instrumental às deve ser "~esquinha", mas o mais
finalidades processuais, a impedir assim possível "generosa" e livre. 43
o entorpecimento do rigor formal pro- Dentro dessa Iinha de orientação,
cessual, materialmente determinado, por decidiu o Tribunal Constitucional espa-
um formal is mo de forma sem conteúdo. nhol que "[ ... ] as normas que contêm
A esse ângulo visual, as prescrições os requisitos formais devem ser aplica-
formais devem ser sempre apreciadas das tendo-se sempre presente o fim
conforme sua finalidade e sentido ra- pretendido ao se estabelecer ditos re-
disciplina também não são destituídos Aliás, cumpre advertir que rigor
de conteúdo. Ordem pela ordem não formal não significa interpretação "es-
tem significado. Assim, se o juiz preser- trita" da lei processual. 48 Não só admis-
var as garantias das partes, vedado não sível interpretação sistemática e teleo-
lhe é adotar um ponto de vista mais lógica, como se impõe observada a mu-
maleável, adaptando o rigor formal ao dança do sentido da lei pela alteração
caso, quando necessário para vencer o das idéias éticas fundamentais, devendo
formalismo, obstaculizador da justiça na o trabalho hermenêutico jamais esque-
hipótese concreta. Dentro dessa visão cer as linhas mestras do sistema consti-
finalista, bem ressalta a melhor doutrina tucional, suas garantias e princípios,
brasileira que o capítulo mais importante normas valorativas primaciais para a con-
e fundamental de um Código de Pro- cretizaçã_o de conceitos jurídicos indeter-
cesso moderno encontra-se nos precei- minados, preenchimento de lacunas e in-
tos relativizantes das nulidades, inte- terpretação em geral da lei processual. 49
grando-se as regras referentes às nuli- De tudo que foi dito e analisado
dades no '"sobredireito'' processuaL por- impõe-se afastar o formalismo oco e va-
que se sobrepõem às demais, por in- zio, incapaz de servir às finalidades
teresse público eminente, condicio- essenciais do processo - relativizada
nando-lhes, sempre que possível, a assim qualquer invalidade daí decor-
imperatividade. 47 rente-, mormente quando atente contra
56 O CPC português, na feição adquirida depois das reformas de 1996 e 1997, ao instituir
a cooperação como princípio basilar (art. 266) não descurou de determinar salutarmente
no art. 742, 4, que "Se faltar algum elemento que o tribunal superior considere necessário
ao julgamento do recurso, requisitá-lo-á por simples ofício".
57 GUARNERI, Giuseppe. Preclusione (diritto processuale penale). ln: NOVISSIMO digesto
italiano. Napoli: UTET, [s.d.], v. 13, p. 570-576, esp. p. 574.
Revista da Faculdade de Direito da UFRGS- no 26, 2006 83
ago. 2003, v.u.; BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 1a T. REsp 390.561. Relator: Min.
Humberto Gomes de Barros. DJU 26 ago. 2002. p.175: BRASIL. Superior Tribunal de Justiça.
4 Turma. REsp 49.456/DF. Relator: Min. Barros Monteiro. J. em: 25 out. 1994. DJU 19 dez.
3
•
1994, p. 35.321: em contrário. entre outros, RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. 63
Câm. Cív. AC 70008133027, Redator para o acórdão: Des. Palmeiro da Fontoura. 9jun/2004.
84 Revista da Faculdade de Direito da UFRGS- no 26, 2006
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sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. Lisboa: Calouste, 1989, p. LIV.
62 Ver a respeito o excelente prefácio do tradutor português, MACHADO, J. Baptista.
Prefácio. ln: ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. 2. ed. Lisboa: Calouste
Gulbenkian. 1968, p. XXIII, nota 4 .. quando trata da descoberta do direito praeter legem
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