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Base Nacional Comum Curricular de Educacao Fisica Tensionamentos e Demarcacoes

Este documento discute a Base Nacional Comum Curricular de Educação Física (BNCC-EF) no Brasil. Analisa as tensões e disputas entre diferentes visões no campo da Educação Física em relação ao conteúdo da BNCC-EF. Utiliza a Análise do Discurso de Foucault para identificar os diferentes discursos em jogo e como eles buscam legitimidade através da inserção na BNCC-EF. Conclui que a BNCC-EF colocou em evidência um campo ainda em disputa constante.

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Este documento discute a Base Nacional Comum Curricular de Educação Física (BNCC-EF) no Brasil. Analisa as tensões e disputas entre diferentes visões no campo da Educação Física em relação ao conteúdo da BNCC-EF. Utiliza a Análise do Discurso de Foucault para identificar os diferentes discursos em jogo e como eles buscam legitimidade através da inserção na BNCC-EF. Conclui que a BNCC-EF colocou em evidência um campo ainda em disputa constante.

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ISSN: 1984-6444 | http://dx.doi.org/10.

5902/1984644443325

Base Nacional Comum Curricular de Educação Física:


tensionamentos e demarcações1
Base Nacional Comum Curricular of Physical Education: tensions and
demarcations

Alexandre Paulo Loro


Professor Adjunto da Universidade Federal da Fronteira Sul. Chapecó, Santa Catarina, Brasil.
[email protected] - https://orcid.org/0000-0002-4207-7642

Meire Aparecida Lóde Nunes


Professor Adjunto da Universidade Estadual do Paraná. Paranavaí, Paraná, Brasil.
[email protected] - https://orcid.org/0000-0002-2031-9743

Recebido em 03 de abril de 2020


Aprovado em 29 de agosto de 2020
Publicado em 30 de setembro de 2021

RESUMO
A Base Nacional Comum Curricular de Educação Física (BNCC-EF) tem provocado a
formulação de inúmeras críticas por parte dos profissionais da área. O objetivo central
deste ensaio consiste em identificar os discursos que permeiam o campo da Educação
Física, os quais pretendem obter legitimidade por meio da sua inserção no
mencionado documento. A Análise do Discurso (AD) foucaultiano foi a ferramenta
teórico-metodológica utilizada, com a intenção de compreender as formas pelas quais
diferentes agentes ligam-se a determinados discursos, na tentativa de produzir efeitos
de verdade. A política educacional em curso no Brasil colocou em prática um projeto
de poder, com vistas a inculcar e consolidar determinado discurso-prática (habilidades
e competências), o que transparece na estruturação do documento. Diante do jogo de
forças existentes, avaliamos que a BNCC-EF não gerou apenas uma crise capaz de
catalisar a corrente crítica, mas colocou em evidência um campo que ainda
permanece em constante disputa.
Palavras-chave: Currículo; Educação Física; Discursos.

ABSTRACT
The Base Nacional Comum Curricular of Physical Education caused the formulation of
innumerable criticisms by professionals in this area. The main objective of this essay
consists in identify the discourses that permeate the field of Physical Education, which
intend to obtain legitimacy through their insertion in the mentioned document.
Foucault's Discourse Analysis was the theoretical-methodological tool used, with the
intention of understand the ways in which different agents are linked to certain

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speeches, in an attempt to produce real effects. The educational policy in progress in


Brazil put in place a power project, aiming to inculcate and consolidate a certain
discourse-practice (skills and competences), what appears in the extructuring of the
document. Considering the existence of a game of forces, we believe that Base
Nacional Comum Curricular of Physical Education not only generated a crisis capable
of catalyzing the critical current, but also highlighted a field that still remains in constant
dispute.
Keywords: Curriculum; Physical Education; Speeches.

Introdução

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é um documento normativo que


define um conjunto de aprendizagens essenciais que todos os alunos têm direito na
Educação Básica, perspectivando colocar a educação brasileira em compasso com
as demandas do século XXI. Cabe, portanto, algumas problematizações: quem define
o que é essencial? Que educação queremos para o século XXI?
A BNCC foi elaborada coletivamente durante anos, sendo a publicação final
aguardada por diferentes agentes da educação. Entretanto, desde a elaboração das
primeiras versões (I-II), posteriormente disponibilizadas em 2015 e 2016,
respectivamente, a BNCC demonstrou ser um território de divergências. A falta de
consenso, aliada a permanente contestação política do documento, provocaram
constantes tensionamentos, os quais perduraram durante a fase de elaboração da
última versão (III), sendo disponibilizada a versão final em 2017.
Ao seguir uma determinada lógica organizacional, o documento está alicerçado
em competências e habilidades esperadas, as quais serão desenvolvidas a partir dos
conteúdos de todas as áreas do conhecimento. Essa estruturação tem gerado
confrontos e resistências no interior das políticas educacionais e curriculares no
contexto atual, especialmente por estar em fase de implementação. Ainda persistem
as críticas de instituições e pesquisadores, os quais se manifestaram contrários ao
teor do documento, apontando superficialidades, omissões ou mesmo proposições
desejadas. Esses posicionamentos críticos estão fundamentados em diferentes

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visões de mundo e podem ser compreendidos a partir dos desdobramentos da


constituição do próprio campo acadêmico, com vistas a atender diferentes finalidades.
Ao analisar especificamente a área de Educação Física, tal constatação nos
conduziu à estruturação do seguinte problema de pesquisa: de que modo as críticas
à Base Nacional Comum Curricular de Educação Física (BNCC-EF) evidenciam
disputas do campo acadêmico?
Ao constatar o jogo de forças existente nas disputas teóricas, que se
desdobram em políticas públicas, temos como objetivo central deste ensaio identificar
os discursos que permeiam o campo da Educação Física, os quais pretendem obter
legitimidade por meio da sua inserção no mencionado documento. Para tanto,
dialogamos com a literatura da área de Educação Física para a análise de pontos de
tensão em torno do documento.
A Análise do Discurso (AD) foucaultiano foi a ferramenta teórico-metodológica
utilizada, com a intenção de compreender as formas pelas quais diferentes agentes
ligam-se a determinados discursos na tentativa de produzir efeitos de verdade. A
noção de discurso é empregada nesse artigo como “[...] um conjunto de regras
anônimas, históricas sempre determinadas no tempo espaço, que definiram em uma
dada época, e para uma área social, econômica, geográfica, ou linguística dada, as
condições de exercício da função enunciativa” (FOUCAULT, 2008, p. 133).
O ensaio foi organizado em três seções interdependentes: 1) o percurso que
delineou a proposta da BNCC e as relações intrínsecas à Educação Física; 2)
discussão e análise de diferentes projetos em disputa em seu campo teórico; 3) e na
terceira e última seção, teceremos as considerações finais.

A Base Nacional Comum Curricular

O debate que permeou a elaboração da BNCC não é recente, embora aparente


ser, uma vez que consta desde a Constituição (1988) a ênfase para a educação a
serviço do pleno desenvolvimento da pessoa, preparo para o exercício da cidadania
e a qualificação para o trabalho. Destaca-se na Carta Magna o Artigo 210, ao
determinar que “Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de

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maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e


artísticos, nacionais e regionais”.
O advento da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n° 9.394, de
20 de dezembro de 1996), especificamente no Artigo 26, estabeleceu que “Os
currículos do ensino fundamental e médio devem ter uma base nacional comum, a ser
complementada, em cada sistema de ensino e estabelecimento escolar, por uma parte
diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura,
da economia e da clientela”.
Diferentes profissionais da educação aguardavam, desde então, que a União
firmasse um pacto interfederativo, ou seja, um acordo com os vários níveis de governo
para estabelecer competências e diretrizes, capazes de orientar os currículos. As
Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica (2010) sinalizaram
indicativos da necessidade da criação de uma “Base Nacional Comum”. A publicação
do Plano Nacional da Educação (PNE), em 2014, reafirmou o imperativo de
estabelecer diretrizes pedagógicas para a Educação Básica e de criar uma base
nacional, que orientasse todos os currículos, de todas as unidades da federação, por
meio de metas e estratégias definidas, pontualmente explicitadas nas metas 2, 3 e 7
do documento.

Meta 2: universalizar o ensino fundamental de 9 (nove) anos para toda a


população de 6 (seis) a 14 (quatorze) anos e garantir que pelo menos 95%
(noventa e cinco por cento) dos alunos concluam essa etapa na idade
recomendada, até o último ano de vigência deste PNE.
Meta 3: universalizar, até 2016, o atendimento escolar para toda a população
de 15 (quinze) a 17 (dezessete) anos e elevar, até o final do período de
vigência deste PNE, a taxa líquida de matrículas no ensino médio para 85%
(oitenta e cinco por cento).
Meta 7: fomentar a qualidade da educação básica em todas as etapas e
modalidades, com melhoria do fluxo escolar e da aprendizagem, de modo a
atingir as seguintes médias nacionais para o Ideb: 6,0 nos anos iniciais do
ensino fundamental; 5,5 nos anos finais do ensino fundamental; 5,2 no ensino
médio (PNE, 2014).

A BNCC não foi construída de maneira aleatória, pelo contrário, trata-se de um


documento histórico, pois mobilizou representantes de vários segmentos da
sociedade, contando principalmente com a contribuição de especialistas e educadores

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que atuam em diversos níveis da Educação Básica e Superior2. Segundo o Ministério


da Educação (MEC), o documento foi elaborado democraticamente e registra um
importante momento da educação brasileira, pois é a primeira vez que o país tem uma
base que define o conjunto de aprendizagens essenciais a que todos os estudantes
têm direito na Educação Básica.
A primeira versão iniciou em 2015, mediante consultas públicas –, essas
contribuições foram reunidas e debatidas com inúmeras comissões, resultando na
segunda versão. Novamente colocado em debate, vinte e sete (27) seminários foram
realizados em todo o país (e um no Distrito Federal). Esta etapa foi realizada em
parceria com o Conselho Nacional de Secretários de Educação (CONSED) e União
Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME). Com isto, consolidou-se
a terceira e penúltima versão do documento. Após debates e análises de um volume
expressivo de informações, as comissões conseguiram sintetizar a versão final e
entregá-la ao Conselho Nacional de Educação (CNE), sendo rediscutido em cinco (05)
audiências públicas (uma em cada região do país). Posteriormente, o Ministério da
Educação (MEC) oficializou a BNCC, mediante publicação da Resolução n° 4, de 17
de dezembro de 2018, que tem força de lei. Isto quer dizer que é uma política de
estado (e não de governo), conforme determina a redação oficial:

A Base Nacional Comum Curricular é um documento normativo que define o


conjunto de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem
desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica, de
modo a que tenham assegurados seus direitos de aprendizagem e
desenvolvimento, em conformidade com o que preceitua o Plano Nacional de
Educação (PNE) (BRASIL, 2018, p. 07).

A BNCC, ao ser homologada pelo MEC, orientará a elaboração de currículos e


propostas pedagógicas das escolas públicas e privadas; políticas para a formação de
professores; a produção de material didático; e a avaliação, na expectativa que o
documento represente um instrumento para a promoção da equidade, uma vez que
determina as aprendizagens essenciais e orienta as políticas educacionais, as quais
serão implementadas nas escolas de todo o território nacional. Os anos 2018 e 2019
são os primeiros anos de adequação das instituições e, como todo documento novo,

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provocará reações diversas à medida que os professores se apropriam de seu teor,


principalmente àquilo que diz respeito às especificidades de áreas e séries de
atuação. Os professores serão aqueles que materializarão (ou não) as propostas
educacionais na prática pedagógica, havendo a possibilidade de ruptura ou
continuação ideológica. Trata-se de uma aposta arriscada.
Igualmente importante quanto o que a BNCC-EF propõe, será o que faremos
(ou o que não faremos) com ela, potencializando as suas virtudes e minimizando os
seus defeitos. Entre as limitações está a adequação dos currículos escolares, a
estrutura física e o ideário de formação. Ainda assim, não há nenhuma garantia de
que os objetivos da formação em Educação Física presentes na BNCC guiarão um
ideal de formação humana, até mesmo porque a compreensão de que a Base seja
uma necessidade está longe de ser consensual. Não se pode partir do princípio de
que a proposta é uma unanimidade e que as disputas são apenas dos conteúdos. Isto
quer dizer que é necessário considerar todos enunciados, sejam contrários ou mesmo
favoráveis a ela.

A Educação Física na BNCC

A BNCC induzirá a formulação de currículos dos sistemas e das redes


escolares do Brasil, ao indicar competências e habilidades esperadas que todos os
estudantes desenvolvam ao longo da escolaridade, sendo estruturado em: textos
introdutórios (geral, por etapa e por área); competências gerais que os alunos devem
desenvolver ao longo de todas as etapas da Educação Básica; competências
específicas de cada área do conhecimento e dos componentes curriculares; e Direitos
de Aprendizagem ou Habilidades relativas a diversos objetos de conhecimento
(conteúdos, conceitos e processos) que os alunos devem desenvolver em cada etapa
da Educação Básica (da Educação Infantil ao Ensino Médio). As competências gerais
da Educação Básica, articuladas com as dimensões do conhecimento
(experimentação, uso e apropriação, fruição, reflexão sobre a ação, construção de
valores, análise, compreensão e protagonismo comunitário), deverão garantir aos
alunos o desenvolvimento de competências específicas. Na área de Linguagens para

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o Ensino Fundamental (junto com Língua Portuguesa, Artes e Língua estrangeira -


inglesa), a Educação Física visa assegurar aos alunos o desenvolvimento de dez (10)
competências específicas:

1. Compreender a origem da cultura corporal de movimento e seus vínculos


com a organização da vida coletiva e individual.
2. Planejar e empregar estratégias para resolver desafios e aumentar as
possibilidades de aprendizagem das práticas corporais, além de se
envolver no processo de ampliação do acervo cultural nesse campo.
3. Refletir, criticamente, sobre as relações entre a realização das práticas
corporais e os processos de saúde/doença, inclusive no contexto das
atividades laborais.
4. Identificar a multiplicidade de padrões de desempenho, saúde, beleza e
estética corporal, analisando, criticamente, os modelos disseminados na
mídia e discutir posturas consumistas e preconceituosas.
5. Identificar as formas de produção dos preconceitos, compreender seus
efeitos e combater posicionamentos discriminatórios em relação às
práticas corporais e aos seus participantes.
6. Interpretar e recriar os valores, os sentidos e os significados atribuídos às
diferentes práticas corporais, bem como aos sujeitos que delas
participam.
7. Reconhecer as práticas corporais como elementos constitutivos da
identidade cultural dos povos e grupos.
8. Usufruir das práticas corporais de forma autônoma para potencializar o
envolvimento em contextos de lazer, ampliar as redes de sociabilidade e
a promoção da saúde.
9. Reconhecer o acesso às práticas corporais como direito do cidadão,
propondo e produzindo alternativas para sua realização no contexto
comunitário.
10. Experimentar, desfrutar, apreciar e criar diferentes brincadeiras, jogos,
danças, ginásticas, esportes, lutas e práticas corporais de aventura,
valorizando o trabalho coletivo e o protagonismo (BRASIL, 2018, p. 223).

As competências específicas almejam proporcionar aprendizagens corporais


no interior da escola bem como a sua transposição para outros momentos do
cotidiano, enfocando o respeito à cultura (ao incorporar concepções assentadas no
paradigma cultural da Educação Física) e a importância que determinadas práticas
corporais têm em suas origens para os indivíduos, em uma abordagem alicerçada em
três elementos fundamentais comuns: “[...] movimento corporal como elemento
essencial; organização interna (de maior ou menor grau), pautada por uma lógica
específica; e produto cultural vinculado com o lazer/entretenimento e/ ou o cuidado
com o corpo e a saúde” (BRASIL, 2018, p. 213).

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A distribuição dos conteúdos de Educação Física ao longo dos 9 anos do


Ensino Fundamental é composta por seis (06) unidades temáticas: Brincadeiras e
jogos – do 1º ao 7º ano; Esportes – do 1º ao 9º ano; Ginásticas – do 1º ao 9º ano;
Danças – do 1º ao 9º ano; Lutas – do 3º ao 9º ano; e Práticas corporais de aventura –
do 6º ao 9º ano. Este ordenamento possivelmente facilitará o trabalho do professor
em sua organização didática, seja voltada às capacidades físicas, aspectos motores,
estruturas corporais e do movimento com o ambiente físico, permitindo aos estudantes
o acesso a um amplo universo de experiências lúdicas, estéticas e emotivas. Ainda
assim, pairam dúvidas sobre a organização dos conteúdos em correlação ano/faixa,
unidades temáticas, objetivos de conhecimento e habilidades propostas.
Na avaliação de Betti (2018), a BNCC foi configurada para a avaliação
quantitativa de larga escala de habilidades cognitivas objetivas, mensuráveis e
observáveis. Nessa perspectiva, podem até ser aplicáveis à Língua Portuguesa ou
Matemática, mas não darão conta da singularidade da Educação Física, “reino da
subjetividade”. A concepção de subjetividade não está restrita a determinados campos
do conhecimento, pois todo conhecimento é impregnado de subjetividade. A
explanação de Betti esclarece que, embora a Educação Física também desenvolva
estudos segundo modelos científicos positivistas, baseando-se em princípios
objetivistas, a área foi fortemente influenciada pelas ciências humanas e sociais nas
últimas décadas. Esta é uma das características da Educação Física, por este motivo
a dificuldade de redigir habilidades/objetivos de aprendizagem (e, consequentemente,
a escolha dos verbos) na concepção geral da BNCC, levando o autor a concluir que:

“[...] a Educação Física não poderia mesmo contribuir diretamente para o


projeto global da BNCC, qual seja, de gerenciar a política educacional a partir
das avaliações de larga escala, com base nas competências e habilidades
padronizadas supostamente adquiridas pel@s estudantes durante a
escolarização (BETTI, 2018, p. 169).

Esse limite não é exclusivo da área de Educação Física, pois permeia também
outras áreas do conhecimento, porém esse problema torna-se visível em decorrência
do seu caráter teórico-prático. Soma-se a isto, a lógica de organização do documento,
a ênfase em competências e habilidades e/ou os conteúdos observáveis.

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Em face à importância do tema e das possíveis repercussões para a Educação


Física escolar, não faltam tensionamentos sobre as distorções conceituais do
documento atual, com vistas a reforçar/disseminar valores e princípios necessários à
reestruturação produtiva, alinhado à política governamental vigente. Sobre esse
assunto, Neira3 (2018) tece considerações sobre a terceira versão da BNCC,
corroborando com aqueles setores que se sentiram frustrados e clamavam pelo
diálogo, enfatizando que o Conselho Nacional de Educação promoveu audiências
regionais de difícil acesso e aprovou o Documento sem alterações significativas (na
sequência, homologado pelo MEC).
Na análise do referido autor, a BNCC retrocede política e pedagogicamente, ao
contrariar as expectativas democráticas, pois está em curso a retomada de princípios
tecnocráticos, consubstanciados na prioridade concedida à racionalidade técnica em
detrimento da criticidade como, por exemplo, a opção por um currículo baseado em
competências e habilidades prescritas, alicerçado em teorias tradicionais. Somam-se
às críticas: a redução de possibilidades pedagógicas do professor; a ausência de
argumentos que justifique a Educação Física na área das linguagens (e o que isso
significa em termos didáticos); a explicação de conceitos centrais (como cultura e
cultura corporal) e referenciais adotados; a explicitação dos campos em que se
fundamentam determinados termos (por exemplo, seriam as teorias críticas, as teorias
pós‐críticas ou a antropologia?); a discrepância de concepção de prática corporal e
de Educação Física (desconectado com o currículo proposto); e os critérios de
progressão e distribuição, ao referenciar as dimensões de conhecimento na
formulação das habilidades. Ao ressaltar a fragilidade do documento, o autor
argumenta:
Por tudo isso, a BNCC sugere ao professor a direção oposta daquela que tem
tomado a educação física contemporânea. A ausência de criticidade é
alarmante. O documento homologado volta‐se para a conformação e
aceitação de um desenho social injusto, num momento histórico em que os
professores deveriam ser apoiados na elaboração de currículos democráticos
e democratizantes. Sabe‐se que no âmbito das políticas educacionais, a
feitura acelerada, por um pequeno grupo e sem qualquer debate e discussão,
costuma gerar maus frutos. Se por um lado é possível responsabilizar a
pressa, por outro, o fortalecimento da dimensão técnica somado à ausência
da crítica leva à conclusão que a BNCC não passa de mais uma investida
dos setores conservadores (NEIRA, 2018, p. 222).

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A versão final da BNCC-EF não teve muitas preocupações com a contribuição


de especialistas, ou mesmo com subsídios oriundos dos debates e desdobramentos
que ocorreram no interior da academia, inclusive fica evidente que parte das
discussões suscitadas nos documentos preliminares da BNCC (I-II) foram suprimidas.
Nos termos em que foi configurada a BNCC, ficou enxuta quando comparada às
versões anteriores. Pragmática e com padronização genérica, lembra um manual
técnico. Ao indicar parâmetros gerais, estabelece uma espécie “métrica” em larga
escala.
Na análise de Moreira et al. (2016, p. 73) o manuscrito preliminar das BNCC
apresentava ecletismo, no que diz respeito à concepção de Educação Física, quer
dizer, que “[...] não demonstra clareza quanto à defesa histórica deste componente
curricular na educação básica e nem se alinha à reivindicação desta como um campo
de conhecimento multidisciplinar e de intervenção pedagógica [...]”. A versão final da
BNCC apresenta a promessa de permitir ao professor e a escola fazer escolhas, sem
engessar os processos. Contudo, ainda pairam contradições e/ou inconsistências da
BNCC, as quais podem ser interpretadas como falta de consenso da área quanto às
atribuições ou ao escopo de conhecimentos da Educação Física.
A elaboração de uma base nacional em um país diversificado é uma proposição
necessária e desafiadora, inclusive para a área de Educação Física, embora não
tenhamos muitas certezas de melhoria. Ainda assim, estamos diante de uma
oportunidade histórica, fundamentalmente porque é imprescindível a inserção da
Educação Física no documento. Como pensar a base sem a Educação Física?
Ademais, é preciso reconhecer que a BNCC-EF apresenta direções, mesmo
precisando de permanente revisão.

Educação Física: um campo em permanente disputa discursiva

A Educação Física, enquanto Componente Curricular obrigatório, passou por


um processo de transformação nas últimas décadas. Para González e Fensterseifer
(2009), o movimento renovador da Educação Física brasileira (década de 1980), ao
questionar o paradigma de aptidão física e esportiva que sustentava de forma

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extensiva as práticas pedagógicas da Educação Física nos pátios escolares, apontou


iniciativas. Dentre elas, um conjunto de indagações que, tradicionalmente, não faziam
parte das preocupações da área, e que delimitam as teorias pedagógicas quando
buscam legitimar um componente curricular em um projeto educativo. Na ocasião, os
autores indagavam:
• Por que esta disciplina deve compor o currículo da escola?
• Quais são seus objetivos?
• Quais são seus conteúdos?
• Como são sistematizados os conteúdos ao longo dos diferentes níveis de
ensino?
• Como esses conteúdos devem ser ensinados?
• Como avaliar seu ensino? (GONZÁLEZ; FENSTERSEIFER, 2009, p. 11).

As questões teórico-pedagógicas tiveram um especial significado naquele


momento histórico para o campo das intenções e do fazer da Educação Física, pois
se acreditava que seria possível mudar o seu status, legitimando-a e elevando-a a
condição de disciplina escolar, além de romper com a tradição de uma atividade
puramente prática. Entretanto, as transformações não ocorreram conforme a rapidez
esperada, decepcionando os mais otimistas. Embora as circunstâncias intelectuais
fossem oportunas, pode-se afirmar que durante a fase de transição ocorreram muitos
entraves. Não é à toa que González e Fensterseifer (2009, p. 12) constataram que a
Educação Física ainda encontrava-se “[...] “entre o não mais e o ainda não”, ou seja,
entre uma prática docente na qual não se acredita mais, e outra que ainda se tem
dificuldades de pensar e desenvolver”.
Diferenças e divergências gravitam em torno do objeto, do caráter e da
especificidade da Educação Física escolar desde o prelúdio da constituição do campo,
o qual permanece em constante disputa. Por estes motivos é cabível retomar algumas
das discussões difundidas por Bracht (2007) na obra “Educação Física & ciência:
cenas de um casamento (in)feliz”. Desde a primeira edição, publicada em 1999, o
autor chama atenção para a constituição do campo acadêmico da Educação Física
no Brasil e questiona temas relativos à epistemologia da Educação Física, os quais
merecem revisão no conjunto de reformas educacionais. Há vinte anos, o autor
interrogava sobre o possível desejo de tornar a Educação Física uma ciência (ou não),
das possibilidades de definir os seus contornos e as dificuldades no âmbito acadêmico

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e institucional que seriam enfrentados em detrimento da falta de clareza quanto ao


seu objeto específico.
Ciente de que a definição do objeto da área é uma proposição normativa,
envolvendo visões do que a Educação Física deveria ser, a própria denominação da
área é alvo de constante demarcação (política e acadêmica). Especificamente, em
relação às identidades epistemológicas da Educação Física brasileira, o autor se
posiciona como “[...] aqueles que a entendem como uma prática pedagógica, como
uma prática social de intervenção imediata e que enquanto prática humana necessita
ser teoricamente elaborada” (BRACHT, 2007, p. 143), defendendo, portanto, a
posição de que teríamos que aprender a conviver com a dinamicidade dos contornos
e pluralidades identitárias do campo.
A obra de Bracht, ao completar ‘bodas de porcelana’, permite-nos constatar que
muitas dos apontamentos de outrora permanecem atuais. O passar dos anos têm
demonstrado que as crises do casamento foram e permanecem constantes e que
estamos longe de um final feliz, considerando que não há felicidade perene, pelo
contrário. A relação entre ciência e Educação Física encontra-se mais uma vez em
crise –, a discórdia recente está na demarcação dos limites da própria BNCC-EF.
Vale lembrar que em meio às discussões acadêmicas, a década de 1990 foi
marcada pela publicação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (Lei n°
9394/96) e pelo lançamento dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs). Assim,
ao atingir estatuto de Componente Curricular obrigatório, o objeto de estudo da
Educação Física passa a ser definido como ‘cultura corporal de movimento’. Nessa
perspectiva, a abordagem dos conteúdos estava centrada nas diferentes formas de
codificação e significação social do movimento humano, encontrando suporte nas
formulações oriundas das subáreas sociocultural e pedagógica que, por sua vez, se
fortaleceram a partir de um intenso combate à retórica físico-sanitária, até então
preponderante. Posto que o exercício físico é um dos mais potentes enunciados da
formação discursiva biodinâmica, as críticas dos culturalistas à inserção desse
conjunto de práticas em um documento curricular normativo tornou-se evidente.
Desde os anos 1980 as produções curriculares foram impactadas pela
“culturalização dos conteúdos”, também chamada de “virada cultural”, criticando o

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caráter essencialmente prático da área na instituição escolar (GONZÁLEZ; FRAGA,


2012). Contudo, elas não foram capazes de trazer consensos quanto às suas
atribuições ou ao escopo de conhecimentos.

Mesmo que a cultura corporal de movimento proponha a tematização do


acervo de práticas corporais na EF, as incursões teóricas que se detiveram a
construir modos de sistematizar os temas e conteúdos, chamadas de
Movimento Renovador, trouxeram diferentes entendimentos sobre as
finalidades da EF, que vão desde as perspectivas críticas e de inspiração
democráticas, como a crítico-superadora (SOARES et al. 1992) e a crítico-
emancipatória (KUNZ, 1991), passando por entendimentos mais lúdicos e
aqueles vinculados às questões de saúde (DESSBESELL, 2018, p. 69)

Essas tendências no campo da Educação Física operam como partes de uma


formação discursiva e/ou como constituintes de determinados discursos no interior do
componente curricular de Educação Física. A partir da tese defendida por Dessbesell
(2018) podemos analisar a demarcação e a formação discursiva sob dois prismas
distintos: 1) o “movimento culturalista”, o qual tematizou as práticas corporais como
manifestações da cultura corporal de movimento; e 2) a “tribo da conservação da
saúde”, que através do movimento da saúde renovada, atribuiu à Educação Física
escolar a função de promotora de saúde por meio da Aptidão física relacionada à
saúde.
Constata-se, portanto, que ao problematizar as críticas ao tema exercício físico,
tornaram-se visíveis disputas de longa data sobre a pertinência da tematização das
práticas fitness como uma manifestação da cultura corporal de movimento na
constituição da BNCC bem como a iminente ameaça ao movimento culturalista, o qual
aborda a crítica centrada na atualização do discurso físico-sanitário.

O tensionamento não estava relacionando a uma questão meramente


semântica, ou à memória de disputas já passadas, mas à ameaça de retorno
de uma ordem discursiva que está sempre assombrando os teóricos
culturalistas em cada processo de organização curricular em curso, ainda
mais nesse caso, que se trata de um documento nacional de caráter
normativo (DESSBESELL, 2018, p. 124).

Em meio ao processo de análise4 foram identificadas disputas internas nas


subáreas sociocultural e pedagógica da Educação Física de longa data, com a

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finalidade de estabelecer critérios sobre “como” e “o que” pode vir a ser incluído ou
não no currículo. Provavelmente, essas críticas colocaram o tema dos exercícios
físicos na BNCC em uma posição subsumida na unidade temática ginásticas
(DESSBESELL, 2018).
Ao analisar o processo de constituição da BNCC, observou-se, ainda, a
ausência de uma “musculatura teórica” à Educação Física, capaz de permitir puxar
para dentro da escola as práticas fitness e ressignificá-las, “semelhante ao processo
de assimilação das práticas esportivas à ordem discursiva culturalista, hoje,
consolidadas em um nicho nos currículos escolares bem balizado pelas funções
sociais da escola” (DESSBESELL, 2018, p. 127).
Dessbesell e Fraga (2020) são enfáticos ao apontar as controvérsias em torno
da autonomia concedida ao tema exercício físico na primeira versão da BNCC e seu
reposicionamento como subtema das ginásticas na segunda e terceira versões,
remontando as disputas do campo entre as vertentes culturalista e físico-sanitária da
Educação Física brasileira sobre as finalidades dessa disciplina no contexto escolar.
Na versão final da BNCC-EF estão explicitadas as finalidades gerais, os
objetivos de aprendizagem específicos, a categorização e a distribuição de conteúdo
no decorrer do ensino fundamental, e a concepção do Componente Curricular de
Educação Física:

A Educação Física é o componente curricular que tematiza as práticas


corporais em suas diversas formas de codificação e significação social,
entendidas como manifestações das possibilidades expressivas dos sujeitos,
produzidas por diversos grupos sociais no decorrer da história. Nessa
concepção, o movimento humano está sempre inserido no âmbito da cultura
e não se limita a um deslocamento espaço-temporal de um segmento
corporal ou de um corpo todo (BRASIL, 2018, p. 213).

Em que pese os programas de exercícios físicos enquanto manifestações da


cultura corporal de movimento deveriam estar alinhados ao rol de temas da Educação
Física pelos mesmos critérios já aplicados aos demais conteúdos escolares em
documentos desta natureza, do contrário continuará sendo “um estranho no nicho da
cultura corporal de movimento” (DESSBESELL; FRAGA, 2020, p. 11).

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A BNCC-EF não se resume a um currículo, ainda que tenda a ser compreendido


como se fosse –, uma acepção limitada. “Um currículo demanda explicitar PORQUÊ
(finalidades/objetivos), O QUE (conteúdo), COMO (método), QUANDO (distribuição
no tempo) e PARA QUEM (sujeitos da aprendizagem)” (BETTI, 2018, p. 156).
A tarefa pedagógica mais importante no momento permaneceu com os
professores e com as escolas: “[...] articular de modo coerente os fins (os porquês) e
meios (o como)”. Embora tal acepção também seja bastante tradicional e careça de
maior diálogo com as pesquisas no campo curricular mais contemporâneo a respeito
da BNCC, o posicionamento de Betti (2018, p. 173) faz sentido, ao afirmar que o maior
desafio está com os professores e gestores, pois compete a eles serem os
“interlocutores críticos”. Nessa perspectiva, vários estudos corroboram na análise
crítica da BNCC, no seu processo de construção e nos efeitos de sua proposta de
currículo nacional.
Dossiês críticos sobre o tema foram e continuam sendo organizados por
inúmeras revistas científicas, conforme constatado nas publicações das revistas E-
Curriculum (2014), Revista do Centro de Estudos Educação e Sociedade – CEDES
(2016), Debates em Educação (2016), Ensino em Revista (edição especial 2018),
Retratos da Escola (2019), entre outras. Na especificidade da área, a Revista
Motrivivência (UFSC) organizou uma edição especial sobre a BNCC-II (v. 28, n. 48,
setembro/2016), convocando pesquisadores da Educação Física para expressassem
opinião e defesa de seus pontos de vista, qualificando o debate e o próprio documento
em discussão.
Compreende-se que é fundamental ampliar o diálogo com os estudos
realizados sobre o tema, os quais estão sendo debatidos intensamente no campo
curricular. Nessa perspectiva, ainda que consideremos a necessidade e a pertinência
da BNCC, a implementação de um currículo nacional em um país multicultural de
grandes proporções evidencia um contexto de influência que envolve disputas,
embates e constrangimentos.

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Na verdade, tais constrangimentos, visíveis sobretudo na aprovação da Base


Nacional Comum Curricular (BNCC), permitem algumas reflexões acerca do
que está em jogo nesse processo. Com o pretexto de melhorar os resultados
pífios da educação nacional, a BNCC foi proposta como uma política de
Estado que pretendia, apenas, concretizar alguns objetivos que já constavam
da legislação do país. O processo de resistência, iniciado pelos que
discordam da existência de um currículo nacional no País, bem como o jogo
político manifesto nesse percurso, corroboram a ideia de que o documento
acabará por gerar distintos constrangimentos ao nível da comunidade escolar
e científica (CORRÊA; MORGADO, 2018, p. 02).

Os referidos autores, alicerçados na abordagem do “ciclo de políticas”5,


proposto originalmente por Ball (1994), destacam que a elaboração da BNCC contou
com diferentes atores e que, portanto, se faz necessário desvelar de que forma os
interesses e a ideologia, fruto de acordos e de disputas, foram sendo sistematizados.
Nesse sentido, diferentes discursos são evidenciados, como o discurso pedagógico.
Este conjunto de regras e mecanismos de poder é representado no processo político
à medida que novos elos de poder e influência são construídos e fortalecidos,
constituindo um ciclo de políticas públicas. Não se pode perder de vista que, além da
Comissão instituída pelo MEC e representantes de universidades, também foram
estabelecidas “parcerias” com grupos de entidades privadas, dentre eles, o
Movimento pela Base Nacional Comum (MBNC), que representa os interesses de
empresas, fundações e instituições filantrópicas, financiadas pela alocação de
impostos de grandes corporações. O grupo que elaborou o texto é constituído por “[...]
uma comunidade de discursos focada na necessidade de reforma educacional,
composta por empreendedores políticos, tecnocratas viajantes e ‘líderes de
pensamento’, como soluções para os ‘problemas’ da política educacional” (p. 06-07).
A análise internacional da BNCC por entidades privadas tende a
desvalorizar/deteriorar a imagem do público e, em contrapartida, “exaltar as bondades
do privado” (MORGADO, 2003), minimizando o papel do Estado. Esse processo emite
um discurso falacioso, criando o mito político eficiente que celebra a “superioridade”
da gestão do setor privado em “parceria” com o Estado, sobre/contra a modalidade
conservadora e burocrática de administração do setor público. Essa suposta
superioridade geralmente está fundamentada nas experiências e referências
internacionais de grupos privados de educação, produzindo a falsa ideia de

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confiabilidade, eficácia e eficiência na construção de outros modelos de currículo em


diversos países.
A BNCC está apoiada em um caminho de regularidade argumentativa,
ancorada em verdades normatizadas do direito brasileiro. Por outro lado, percebe-se
que o documento é cerceado por enunciados que lutam para desmantelar os seus
sentidos, a fim de produzir efeitos de verdade. Essas relações de poder precisam ser
expostas, pois elas se travam para legitimar discursos do campo da Educação Física,
por meio da inserção na BNCC. Nomear constantemente tais discursos e explicitar de
que forma e por meio de quais jogos de poder tais discursos se efetivaram ou foram
silenciados na BNCC é fundamental. A BNCC passará por constantes jogos de
significações, uma vez que se percebe a movimentação de discursos que poderão
transportar o documento para outros lugares de produção de verdades. Pesquisar
esses indícios poderá abrir caminho sobre novas formas de pensamentos que se
apresentarão no panorama da educação brasileira.
A BNCC-EF tem ainda muitas questões a serem refletidas, mesmo assim, tem
o mérito de tentar trazer a possibilidade de equidade, pois expressa a padronização
de objetivos e conteúdos ao longo das séries e ciclos de escolarização, na esperança
de desempenhar um papel decisivo na formação do cidadão integral e de uma
sociedade mais justa, democrática e inclusiva.
O documento não demarca explicitamente uma perspectiva e/ou atende
sugestões de aprofundamento nas discussões sobre cada unidade temática,
sobretudo realiza uma sistematização sobre as possibilidades de organização
curricular, a partir da pluralidade de características socioculturais de cada Estado ou
região do país. Nesse sentido, a BNCC-EF decepciona os professores que
ambicionam a explicitação de um discurso capaz de contemplar uma única
abordagem, especialmente pautado pelo discurso histórico-político da Educação
Física escolar, ao reivindicarem a inserção de uma concepção crítica de Educação
Física, sociedade, educação, escola e homem, além de orientação didático-
metodológica no documento. Porém, isto não significa que esses elementos não se
encontrem implícitos no seu interior.

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Considerações finais

Ao considerar o jogo de forças que permearam o campo da Educação Física e


continuaram a se refletir na construção da BNCC, compreendemos que o não dito é
maior. A política educacional em curso no Brasil colocou em prática um projeto de
poder, com vistas a inculcar e consolidar determinado discurso-prática (habilidades e
competências), o que transparece na estruturação do documento. Diante do jogo de
forças existentes, avaliamos que a BNCC-EF não gerou apenas uma crise capaz de
catalisar a corrente crítica, mas colocou em evidência um campo que ainda
permanece em constante disputa.
Isto quer dizer que teremos muitos desafios pela frente. Um deles será a
preparação das instituições e professores para a operacionalização da BNCC-EF.
Como será a aceitação, a compreensão e possível implementação dos pontos
previstos da BNCC-EF nas escolas é uma pergunta pertinente. É provável que as
instituições e os professores reelaborem e ressignifiquem os dispositivos normativos
a partir das condições reais que o meio oferece, segundo suas perspectivas e culturas,
afinal sempre haverá a necessidade de reanálise e reinterpretação para ocorrer
apropriação, uma vez que o alcance de qualquer reforma é limitado –, afinal, preceitos
não são garantias de “obediência” ou mesmo “fidelidade”.
Não acreditamos que uma proposta consensual de Base seria possível (uma
vez que estamos analisando o problema de uma perspectiva discursiva). Da mesma
forma, a inexistência de consenso sobre o documento é algo indesejável.
Parafraseando Betti (2017), ao referir-se a BNCC-EF: “ruim com ela, pior sem ela”.
Ainda assim, parece-nos fundamental um conjunto maior de estudos sobre esse tema
e continuar perguntando como estão sendo interpretados os confrontos e as
resistências nesse documento.

Referências
BALL, Stephen J. Education reform: a critical and post structural approach.
Buckingham: Open University Press, 1994.

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BETTI, Mauro. Base Nacional Comum Curricular (BNCC) de Educação Física do


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em: http://cev.org.br/biblioteca/base-nacional-comum-curricular-bncc-de-educacao-
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Federal, 1988.

BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases


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27833-27841, 23 dez. 1996.

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SEB; DICEI, 2013.

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– PNE e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 26 jun. 2014.

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria da Educação Básica. Base Nacional


Comum Curricular. Brasília, DF, 2018. Disponível em:
http://basenacionalcomum.mec.gov.br/. Acesso em: 04 jun. 2019.

BRASIL. Resolução n° 4, de 17 de dezembro de 2018. Institui a Base Nacional Comum


Curricular na Etapa do Ensino Médio (BNCC-EM), como etapa final da Educação
Básica, nos termos do artigo 35 da LDB, completando o conjunto constituído pela
BNCC da Educação Infantil e do Ensino Fundamental, com base na Resolução
CNE/CP nº 2/2017, fundamentada no Parecer CNE/CP nº 15/2017. Diário Oficial da
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This work is licensed under a Creative Commons Attribution-NonCommercial 4.0


International (CC BY-NC 4.0)

Notas

1O presente trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de


Nível Superior (CAPES) – Código de Financiamento 001.
2O Ministério da Educação também estabeleceu interlocução com as Associações Profissionais e
Científicas, as quais contribuíram criticamente na discussão pública para a construção da Base
Nacional Comum Curricular, dentre elas, o Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte (CBCE).

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3O autor participou ativamente nas discussões e proposições durante a elaboração da segunda versão
da BNCC, sendo um dos membros especialistas do Ensino Fundamental (Anos Iniciais) para a área da
Educação Física.
4Para a realização da investigação a pesquisadora tomou como materialidade empírica os seguintes
documentos: as três versões da BNCC, as contribuições oriundas da consulta pública, os relatórios dos
seminários estaduais sobre a BNCC, os textos dos leitores críticos contratados pelo MEC e as
propostas curriculares estaduais.
5O ciclo de políticas proposto por Ball e colaboradores é um método para a pesquisa de políticas
educacionais. O ciclo contínuo é constituído por cinco contextos: o contexto de influência, o contexto
da produção do texto, o contexto da prática, o contexto dos resultados (efeitos) e o contexto da
estratégia política (CORRÊA; MORGADO, 2018).

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