Direito A Educação Básica No Brasil - 2021
Direito A Educação Básica No Brasil - 2021
Direito A Educação Básica No Brasil - 2021
algumas ponderações
Cristiane Machado*
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3522-4018
Resumo: O presente artigo tem como objetivo analisar as injunções da legislação educacional no movimento
de democratização do direito à educação no Brasil. À luz da literatura da área, concebe-se a democracia e a
ação colaborativa como fundamentos basilares tanto à garantia de direitos aos cidadãos, quanto à
efetivação de incumbências por parte do Poder Público. Aborda-se, inicialmente, o advento da educação
básica como nova configuração organizativa das etapas e modalidades de ensino obrigatórias no país. Em
seguida, analisa-se os dispositivos legais que modificam, especificamente, o Título III da Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional – LDBEN, nº 9.394/1996, Do Direito à Educação e Do Dever de Educar. Os
resultados do estudo reconhecem a expansão e diversificação da oferta da educação básica como construto
favorável à garantia do direito à educação. Foi possível também inferir que a delimitação da obrigatoriedade e
da gratuidade do ensino, ao período dos 04 aos 17 anos de idade, conforme consta na letra da lei, ao mesmo
tempo em que estabelece o interstício ideal para a efetivação Do Direito à Educação, também oferece
margem interpretativa para eventual flexibilização Do Dever de Educar por parte do Poder Público. Com
efeito, a defesa da educação como direito humano fundamental, além de demandar o cumprimento da
incumbência Estatal, constitui, sobremaneira, corresponsabilidade a ser protagonizada pela sociedade civil
organizada.
Palavras-chave: LDBEN/1996; Direito à educação; Dever de educar; Democratização do ensino.
Abstract: This article aims to analyze the injunctions of educational legislation in the movement to
democratize the right to education in Brazil. In the light of the literature in the area, democracy and
collaborative action are conceived as basic foundations both in guaranteeing citizens’ rights and in carrying
out tasks on the part of the government. Initially, the advent of basic education is approached as a new
organizational configuration of the stages and modalities of compulsory education in the country. Then, the
legal provisions that specifically modify Title III of the Law of Directives and Bases of Education are analyzed
National - LDBEN, nº 9.394 / 1996, From the Right to Education and the Duty to Educate. The results of the
study recognize the expansion and diversification of the offer of basic education as a construct favorable to
guaranteeing the right to education. It was also possible to infer that the delimitation of mandatory and free
education, from 4 to 17 years of age, as stated in the letter of the law, while establishing the ideal interstice
for the realization of the Right to Education, also it offers an interpretive margin for eventual flexibility of the
_____________
* Docente no Departamento de Políticas, Administração e Sistemas Educacionais - DEPASE - na Faculdade de
Educação da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP. Vice-coordenadora do Laboratório de Gestão
Educacional - LAGE. Doutora em Educação pela Faculdade de Educação da USP - Universidade de São Paulo (2003),
Mestre em Educação pela Faculdade de Educação da UNICAMP - Universidade Estadual de Campinas (1995). E-mail:
[email protected]
** Doutor em Educação. Docente no Departamento de Administração Escolar e Planejamento Educacional – DAEPE e
no Programa de Pós-Graduação em Educação no Centro de Educação da Universidade Federal de Pernambuco –
UFPE. Pesquisador de Pós-doutorado da UNICAMP (2020-2021). E-mail:[email protected].
33
Democratização do direito à educação básica no Brasil...
Duty to Educate by the Public Pow- er. Indeed, the defense of education as a fundamental human right, in
addition to demanding compliance with the State’s mandate, is, above all, co-responsibility to be played by
organized civil society.
Keywords: LDBEN / 1996; Right to education; Duty to educate; Democratization of education
Resumen: Este artículo tiene como objetivo analizar los mandatos de la legislación educativa en el
movimiento para democratizar el derecho a la educación en Brasil. A la luz de la literatura en el área, la
democracia y la acción colaborativa se conciben como pilares básicos tanto en la garantía de los derechos
ciudadanos como en el desempeño de las tareas de gobierno. Inicialmente se aborda el advenimiento de la
educación básica como una nueva configuración organizativa de las etapas y modalidades de la educación
obligatoria en el país, luego se analizan las disposiciones legales que modifican específicamente el Título III
de la Ley de Directrices y Bases de la Educación. Nacional - LDBEN, nº 9.394 / 1996, Del derecho a la
educación y el de- ber de educar. Los resultados del estudio reconocen la expansión y diversificación de la
oferta de educación básica como un constructo favorable para garantizar el derecho a la educación. También
se pudo inferir que la delimitación de la educación obligatoria y gratuita, de los 4 a los 17 años, como se
establece en la letra de la ley, al tiempo que se establece el intersticio ideal para la realización del Derecho a
la Educación, también oferece un margen interpretativo para una eventual flexibilización del Deber de Educar
por parte del Poder Público. En efecto, la defensa de la educación como derecho humano fundamental,
además de exigir el cumplimiento del mandato del Estado, es, ante todo, una corresponsabilidad de la
sociedad civil organizada.
Palabras clave: LDBEN / 1996; Derecho a la educación; Deber de educar; Democratización de la educación
1 INTRODUÇÃO
35
Cadernos de Pesquisa, São Luís, v. 28, n. 1, jan./mar, 2021.
Disponível em: http://www.periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/cadernosdepesquisa
Democratização do direito à educação básica no Brasil...
Sarney tomou posse sem um plano de governo propriamente dito e com um sério
déficit em legitimidade: uma figura política marcada por anos de vínculos com os
militares, que assumia o poder sem o respaldo das urnas e que não era das
fileiras do partido que esperava desta vez governar, o PMDB.
[...] da instrução própria das primeiras letras no Império, reservada apenas aos
cidadãos, ao ensino primário de quatro anos nos estados da Velha República, do
ensino primário obrigatório e gratuito na Constituição de 1934 à sua extensão
para oito anos em 1967, derrubando a barreira dos exames de admissão,
chegamos ao direito público subjetivo (CURY, 2008, p. 295).
Vale sublinhar que muito embora o texto final da Constituição Federal de 1988 tenha
refletido a vitória daqueles que defendiam a necessidade de expressar o direito à educação
como direito público subjetivo na Carta Magna, os diferentes interesses e visões sobre esse
conceito não desapareceram com a redação final da Constituição e permanecem até os
38
Cadernos de Pesquisa, São Luís, v. 28, n. 1, jan./mar, 2021.
Disponível em: http://www.periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/cadernosdepesquisa
Cristiane Machado | Edson Francisco de Andrade
dias atuais, manifestos nas legislações infraconstitucionais, bem como nas políticas
públicas educacionais, demonstrando que as disputas ideológicas presentes nos debates
para a elaboração da Carta Magna se fizeram e se fazem presentes de diferentes formas,
ao longo dos trinta anos de sua vigência.
Ainda com o objetivo de fazer valer a prerrogativa da definição de direito público
subjetivo, a Constituição de 1988 criou mecanismos para garantir a efetivação do direito à
educação mediante o dever do Estado em efetivar tal direito, trazendo um aspecto inovador
em relação a todas as constituições anteriores existentes no país, conforme Oliveira (1999,
p. 65):
O que é inovador, para além de uma maior explicitação dos direitos e de uma maior
precisão jurídica, evidenciada pela redação, é a previsão dos mecanismos capazes
de garantir os direitos anteriormente enunciados, estes sim, verdadeira novidade.
São eles o mandado de segurança coletivo, o mandado de injunção e a ação civil
pública.
39
Cadernos de Pesquisa, São Luís, v. 28, n. 1, jan./mar, 2021.
Disponível em: http://www.periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/cadernosdepesquisa
Democratização do direito à educação básica no Brasil...
Educação, visando a suprir suas necessidades. Isto significa que a realização das
metas enunciadas no Plano tem como objetivo aproximar o Sistema da realidade
desejável, expressa nos Princípios Educacionais. Consequentemente, se o
desenvolvimento do Sistema Educacional é condicionado pelo Plano de Educação
no âmbito do qual se definem as metas e os recursos com os quais o Sistema
opera, a viabilidade do Plano de Educação depende do Sistema Educacional, pois
é nele e por ele que as metas previstas poderão se tornar realidade (SAVIANI,
2013a, p.210).
O fato é que a ausência de um SNE, que perdura até os dias atuais no país, fragiliza
a materialização do Regime de Colaboração, especialmente, no tocante ao cumprimento
de planos articulados de educação. Desta feita, embora tenhamos o princípio da
colaboração como recomendação legal para relação intergovernamental na República
Federativa do Brasil, essa expectativa ainda não saiu do papel, apesar de sua previsão
legal (PNE, Art. 13) e dos esforços e luta dos profissionais da educação. Sabe-se, no
entanto, que a consolidação do SNE poderia contribuir na construção de uma educação
nacional articulada, possibilitando avançar na igualdade de condições no oferecimento da
educação e potencializando a qualidade do ensino.
As disputas não cessaram com a promulgação da Constituição Federal em 05 de
outubro de 1988, elas migraram para a elaboração da lei que tem o objetivo de
regulamentar os princípios constitucionais, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional.
41
Cadernos de Pesquisa, São Luís, v. 28, n. 1, jan./mar, 2021.
Disponível em: http://www.periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/cadernosdepesquisa
Democratização do direito à educação básica no Brasil...
uma base educacional que transcendesse a demarcação estrita de etapas de ensino com
finalidade em si mesma. Para tanto, o que estava em causa era a garantia de uma
formação escolar suficientemente consistente para potencializar a aprendizagem e o
desenvolvimento humano permanentes.
Faz-se pertinente considerar que a Conferência de Jomtien constituiu-se um marco
do amplo debate sobre o direito à educação que se desencadeou no mundo a partir de
1990. Esta já era uma bandeira a muito tempo erguida por movimentos sociais em
diversos países, a exemplo do Brasil, mas a incorporação dessa causa como pleito central
da Declaração de Jomtien teve relevância indubitável para a consagração desse tema
como pauta inadiável da elaboração de políticas educacionais, dentre elas, a
reformulação da legislação específica para o setor de educação nos países que enviaram
seus representantes para a Conferência.
Para justificar os pleitos indissociáveis por educação básica e pelo direito à
educação, os conferencistas evidenciaram o fato de que após décadas de vigência da
Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), quando as nações do mundo
afirmaram que “toda pessoa tem direito à educação”, o que se constatava naquele ano de
1990 era um quadro de persistente relegação desse direito e até sua regressão nos países
com maior desigualdade social. Como se evidenciou já no preâmbulo da Declaração
redigida ao final do evento, em março de 1990, mais de 100 milhões de crianças não
tinham acesso ao ensino primário; mais de 960 milhões de adultos eram analfabetos;
mais de um terço dos adultos do mundo não tinham acesso ao conhecimento impresso, às
novas habilidades e tecnologias; e mais de 100 milhões de crianças e incontáveis adultos
não conseguiam concluir o ciclo básico, e outros milhões, apesar de concluí-lo, não
conseguiam adquirir conhecimentos e habilidades essenciais (UNESCO, 1998).
Esse quadro de evidente negação do direito à educação que marcava o início dos
anos 1990 deu o tom de que os esforços a serem empreendidos no âmbito de cada Estado
nacional não poderiam se circunscrever a uma etapa elementar de formação escolar. Foi
com esse entendimento que Gadotti (1991, p.1) considerou que “uma das primeiras
consequências da Conferência de Jomtien foi deslocar o eixo do debate educacional,
principalmente no chamado Terceiro Mundo, do tema da “alfabetização” para o tema da
“educação básica”” (grifos do autor).
Em resposta a esse pleito, a realização de reformas passou a ser um movimento
comum no setor de educação ao longo dos anos 1990. Conforme observou Cury (2007,
p.484), “hoje, praticamente, não há país no mundo que não garanta, em seus textos legais,
o direito de acesso, permanência e sucesso de seus cidadãos à educação escolar básica”.
No caso brasileiro, a Constituição Federal, sancionada no final da década de 1980, não
incorporara o compromisso com a garantia do direito à educação básica, uma vez que essa
expressão nem consta no texto da Lei, conforme já realçamos. Não obstante essa lacuna
na Lei Maior, o pleito foi imediatamente incorporado à terceira versão do projeto da atual
LDBEN que, à época, tramitava no Congresso Nacional.
Aqui cabe uma breve nota sobre o fato de que no período de 29 de novembro de
43
Cadernos de Pesquisa, São Luís, v. 28, n. 1, jan./mar, 2021.
Disponível em: http://www.periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/cadernosdepesquisa
Democratização do direito à educação básica no Brasil...
1988, quando teve início o trâmite do primeiro projeto da LDBEN, até o mês de maio de
1990, a educação básica ainda não havia sido assumida, pelos congressistas, como tema
a ser contemplado nos debates e no texto da lei. Foi precisamente no período de 09 de
maio a 28 de junho de 1990 que esse tema entrou definitivamente na pauta, tendo sido
finalmente incorporado ao Projeto de Lei, substitutivo Jorge Hage, em 28 de junho de 1990
(SAVIANI, 2016).
Cabe realçar que o Capítulo VI dessa versão do Projeto de LDBEN, intitulado “Da
educação escolar e seus níveis”, explicitava ineditamente, em seu Art. 26, que a educação
escolar seria organizada na forma de Educação Básica e Educação Superior. É também a
partir dessa versão do Projeto que a universalização da educação básica, em todos os
seus níveis e modalidades, é reconhecida como dever do Estado. Tratava-se, portanto, de
um dispositivo legal que imputava ao Poder Público a incumbência da oferta e manutenção
da educação infantil, do ensino fundamental e do ensino médio, que haviam também sido
introduzidos como níveis de ensino.
Além do consistente detalhamento dos níveis e modalidades de ensino, esse
substitutivo acrescentou ao projeto da LDBEN um sentido peculiar ao que deveria ser
compreendido como direito básico à educação a ser garantido na e pela organização
escolar. A própria expressão educação básica torna-se sinônimo de uma concepção
ampliada da escolarização, que “incluiu entre seus objetivos a expansão do enfoque em
educação” (VIEIRA, 2007, p.65), uma vez que suas etapas são entendidas como
conjugadas sob um só todo, portanto, fazendo jus ao sentido etimológico do termo “base”.
Por isso mesmo, essa expressão foi recebida como “um conceito mais do que inovador
para um país que, por séculos, negou, de modo elitista e seletivo, a seus cidadãos, o
direito ao conhecimento pela ação sistemática da organização escolar” (CURY, 2008.
p.294).
Em verdade, esse conceito novo agrega, simultaneamente, um propósito à
escolarização e um reconhecimento do direito a uma formação escolar que assegure
perspectivas de progressos aos cidadãos, especialmente no tocante ao gozo dos direitos
sociais que lhes são inerentes. Desde então, assumiu-se, em essência, o disposto no Art.
22 da LDBEN/1996, em vigor, ao enunciar que “a educação básica tem por finalidades
desenvolver o educando, assegurar-lhe a formação comum indispensável para o exercício
da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores”
(BRASIL, 1996a).
A concepção de formação básica a ser alcançada, necessariamente, por meio do
desenvolvimento articulado das três etapas de ensino, assumidas como fase basilar da
organização escolar, exigiu a fixação de âmbitos de atuação prioritária para cada ente de
poder federado, constituindo-se, assim, um importante referencial para a materialização
do necessário e inadiável regime de colaboração que deve ser firmado entre a União, os
Estados, o Distrito Federal e os Municípios, com o intento de que o conjunto da educação
básica seja efetivado.
44
Cadernos de Pesquisa, São Luís, v. 28, n. 1, jan./mar, 2021.
Disponível em: http://www.periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/cadernosdepesquisa
Cristiane Machado | Edson Francisco de Andrade
De fato, a segunda metade dos anos 1990 foi marcada, no setor educacional, pela
intensa transferência de matrículas, especialmente dos Estados para o âmbito da
45
Cadernos de Pesquisa, São Luís, v. 28, n. 1, jan./mar, 2021.
Disponível em: http://www.periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/cadernosdepesquisa
Democratização do direito à educação básica no Brasil...
Ainda que represente um ganho em relação à situação anterior, uma vez que
prevê a distribuição de recursos para toda a educação básica, o FUNDEB
equaciona de maneira muito limitada dois outros problemas importantes. De um
lado, o do aumento do gasto total em educação básica no país, e de outro a ação
mais decidida da União na redução da desigualdade entre os estados. Assim
sendo, ainda que distribua melhor os recursos para a educação básica,
permanece em dívida com dois grandes problemas: o do montante a ser investido
em educação pela União e sua ação mais decidida na redução da desigualdade
entre os entes federados (OLIVEIRA, 2007, p.122).
Sendo assim, se por um lado é justo que se reconheça o devido crédito ao legislador
por instituir, por meio do FUNDEB, uma nova Era ao financiamento da educação básica, por
outro lado, a expectativa de avanço na efetivação da colaboração entre os entes federados
e, principalmente, de maior aporte financeiro por parte da União não foi suficientemente
atendida, sobretudo, porque os 10% que constituem a parcela do Governo Federal na
composição do Fundo tem sido, comprovadamente, diminuta, portanto, aquém do mínimo
necessário para constituir-se uma contribuição decisiva em favor do enfretamento à
histórica e persistente desigualdade entre os entes federados, tema amplamente
abordado na literatura da área educacional (GOUVEIA; SOUZA, 2015; PINTO, 2015;
ANDRADE, 2013; PINTO; ALVES, 2011; OLIVEIRA, 2007), entre outros 2.
Faz-se importante ressaltar que, mesmo com a previsão de distribuição de recursos
para toda a educação básica, a institucionalização do FUNDEB, em 2007, ocorreu na
vigência do texto constitucional que ainda mantinha apenas o ensino fundamental como
nível obrigatório de ensino. Portanto, o alinhamento da nova versão do fundo contábil à
concepção da educação básica como um conjunto integrado de etapas de ensino
constitui-se um fato importante, sobretudo, porque trouxe à tona a urgência de se redefinir
46
Cadernos de Pesquisa, São Luís, v. 28, n. 1, jan./mar, 2021.
Disponível em: http://www.periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/cadernosdepesquisa
Cristiane Machado | Edson Francisco de Andrade
1 “Para se ter uma ideia da importância do FUNDEB para a educação municipal no país, dados dos balanços
financeiros de 5.050 municípios do ano de 2008 mostram que os impostos arrecadados pela fazenda municipal
representam menos de 5% da receita total do orçamento das prefeituras em 65% dos municípios brasileiros e menos de
10% do total dos recursos auferidos pelo tesouro municipal em 87% deles (PINTO; ALVES, 2011, p.607).
2 A Emenda Constitucional 108/2020, promulgada pelo Senado Federal em 26 de agosto de 2020, determina que o
FUNDEB seja instituído em caráter permanente em cada Estado, aumenta a complementação de recursos pela União e
assegura a participação da sociedade no planejamento das políticas sociais (Fonte: Agência Senado, em 26/08/2020).
Espera-se importante repercussão desta EC em favor da garantia do direito à educação, a conferir na execução
orçamentária a partir de 2021.
47
Cadernos de Pesquisa, São Luís, v. 28, n. 1, jan./mar, 2021.
Disponível em: http://www.periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/cadernosdepesquisa
Democratização do direito à educação básica no Brasil...
Para os que frequentarem essas etapas da educação básica, mas com idade acima
do limite constitucional, é assegurado o direito ao acesso gratuito e o dever do
Estado em fornecer as condições de oferta gratuita, mas não se trata de uma
obrigação do jovem ou do adulto concluí-las. (PINTO, 2010, p.213).
Nacional de Educação, com apoio técnico e financeiro da União”. De maneira efetiva, essa
demanda foi contemplada na Lei nº 12.796/2013 (BRASIL, 2013), que tratou a questão
referente à obrigatoriedade e à gratuidade da educação básica com maior
aprofundamento.
O fato é que a Lei nº 12.796/2013 alterou a LDBEN/1996, cabendo aqui destacar,
especialmente, a redefinição do dever do Estado com a educação escolar pública, vigente
nos dias atuais (2020). De acordo com a nova redação dada ao Art. 4º, Inciso I, da Lei da
Educação, o Estado fica incumbido da garantia de educação básica obrigatória e gratuita
dos 4 aos 17 anos de idade, organizada na forma de pré-escola, ensino fundamental e
ensino médio. Observe-se que, ao delimitar a pré-escola (4 a 5 anos de idade) como etapa
inicial, apenas parte da educação infantil é reconhecida como etapa integrante do que a Lei
passa a conceber como educação básica obrigatória3.
Essa obrigatoriedade parcial que foi reservada à educação infantil no texto da Lei
pode ser compreendida como um passo atrás em relação ao que historicamente foi
defendido como dever a ser assumido pelo Poder Público, principalmente se
considerarmos que já na primeira versão do Projeto de Lei que resultou na presente
LDBEN havia a proposição da educação anterior ao 1º grau, de 0 a 6 anos, como primeira
etapa do que se compreendia como Educação Fundamental (SAVIANI, 2016).
Cabe também salientar que a etapa pré-escolar, que constitui a parte obrigatória da
educação infantil, quando não vivenciada na idade indicada no Art. 4º da LDBEN (4 a 5
anos), não poderá ser recuperada, uma vez que, aos que não concluírem a educação
básica obrigatória na idade própria, a Lei garante apenas acesso público e gratuito aos
ensinos fundamental e médio. Nesses termos, apesar de formalmente o pré-escolar
integrar a fase basilar e obrigatória da formação escolar, não há qualquer garantia legal aos
que, por motivos alheios a sua vontade, não puderem exercer esse direito na idade
desejada. Trata-se, portanto, de uma etapa formativa passível de ser dispensada, como
que esta não tivesse, necessariamente, conexão com as demais etapas subsequentes.
consequência, do dever do Estado com a oferta dessa modalidade de ensino, na
perspectiva da educação inclusiva.
De forma objetiva, a Lei nº 12.796/2013 instituiu um complemento substancial à
LDBEN/1996 (Art. 4º, III), que, além da manutenção do atendimento educacional
especializado gratuito aos educandos com deficiência, a Lei da Educação passou a
resguardar o atendimento às pessoas com transtornos globais do desenvolvimento e altas
habilidades ou superdotação, transversal a todos os níveis, etapas e modalidades,
preferencialmente na rede regular de ensino.
3 Em que pese o Art. 29 da LDBEN definir toda a Educação Infantil como primeira etapa da educação básica, assim
como o disposto no Inciso II do Art. 4º dessa Lei, que menciona a ofertada de educação gratuita às crianças de até 5
anos de idade.
4 O Grupo de Trabalho foi constituído por pesquisadores com reconhecido conhecimento acadêmico científico
sobre Educação Especial no país. Ver Portaria do MEC n. 555/2007, prorrogada pela Portaria no 948/2007.
Disponível em: http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/politicaeducespecial.pdf
50
Cadernos de Pesquisa, São Luís, v. 28, n. 1, jan./mar, 2021.
Disponível em: http://www.periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/cadernosdepesquisa
Cristiane Machado | Edson Francisco de Andrade
esta lei alterou o Art. 5º da LDBEN/1996 para dispor que “o acesso à educação básica
obrigatória é direito público subjetivo, podendo qualquer cidadão, grupo de cidadãos,
associação comunitária, organização sindical, entidade de classe ou outra legalmente
constituída e, ainda, o Ministério Público, acionar o Poder Público para exigi-lo” (BRASIL,
2013). A princípio, parece digno de enaltecimento o fato de agora não apenas o ensino
fundamental, mas toda a educação básica passa a ser exigível como direito público
subjetivo (Duarte (2004)5.
Contudo, o texto da lei requer a devida atenção para que se perceba que não se
trata de um direito extensivo ao conjunto da educação básica. Na realidade, essa é uma
garantia circunscrita apenas às pessoas com idade entre 4 a 17 anos. Em verdade, nem
as crianças em idade de vivenciar os anos iniciais da educação infantil, nem os jovens e
adultos que não cursarem ou não concluírem o ensino fundamental e/ou o ensino médio, no
intervalo etário definido pela lei, têm resguardado seu direito público subjetivo à educação
escolar. De forma objetiva, esse artigo da LDBEN torna inexigível, a não ser pelo próprio
aluno, a efetivação da matrícula para todos os que não concluíram a educação básica na
idade própria.
Faz-se oportuno ponderar que o Estado tem, na forma da lei, o dever de ofertar
gratuitamente as etapas da educação básica, inclusive, para os que não puderem cursá-la
na idade própria. Para tanto, a LDBEN/1996 (Art. 5º, § 1º) estabelece que o Poder Público,
na esfera de sua competência federativa, deverá: recensear anualmente as crianças e
adolescentes em idade escolar, bem como os jovens e adultos que não concluíram a
educação básica (Inciso I); fazer-lhes a chamada pública (Inciso II); e zelar, junto aos pais
ou respon- sáveis, pela frequência à escola (Inciso III). Mesmo diante dessa evidente
responsabilização que a Lei da Educação confere aos entes federados, no § 2º do mesmo
Artigo o texto legal trata de explicitar o lugar marginal reservado às pessoas que se
encontram fora da idade própria para cursar a educação básica, ao disciplinar que “em
todas as esferas administrativas, o Poder Público assegurará em primeiro lugar o acesso
ao ensino obrigatório, nos termos deste artigo (Art.5º da LDBEN), contemplando em
seguida os demais níveis e modalidades de ensino, conforme as prioridades
constitucionais e legais”.
Sendo assim, o que está em causa é que, para quem está fora da faixa etária de 4 a
17 anos, nem a família, nem a sociedade, nem o Ministério Público podem exigir a matrícula
compulsória das crianças, dos jovens ou adultos. Disso se infere que, apenas em condições
ideais, em que a criança tiver seu direito de matrícula escolar cumprido na idade própria e,
necessariamente, tiver a oportunidade de cursar todas as etapas da educação básica com
pleno sucesso, a obrigatoriedade do ensino, prevista em lei, será efetivada. Caso haja
retardo no início da escolarização e/ou reprovação ao longo da vivência das séries ou
ciclos escolares, ou ainda quando houver abandono ou evasão, nesses casos, não há
qualquer garantia de conclusão sequer de uma das etapas da educação básica.
5 Ressalte-se que qualquer das partes mencionadas no caput deste artigo tem legitimidade para peticionar no Poder
Judiciário, sendo gratuita e de rito sumário a ação judicial correspondente (LDBEN/1996, Art. 5º, § 3º).
52
Cadernos de Pesquisa, São Luís, v. 28, n. 1, jan./mar, 2021.
Disponível em: http://www.periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/cadernosdepesquisa
Cristiane Machado | Edson Francisco de Andrade
53
Cadernos de Pesquisa, São Luís, v. 28, n. 1, jan./mar, 2021.
Disponível em: http://www.periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/cadernosdepesquisa
Democratização do direito à educação básica no Brasil...
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Edson Francisco de. A gestão sistêmica da educação: do âmbito nacional ao contexto
do poder local. Perspectiva, Florianópolis, v. 32, n. 3, p. 1073-1100, set./dez. 2014.
BRASIL. Projeto de Lei n. 1.258, de 1988 (Do Sr. Octávio Elísio). Diário do Congresso Nacional
(Seção I). Brasília: Câmara dos Deputados, 1988b.
BRASIL. Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Dispõe sobre as Diretrizes e Bases da Educa-
ção Nacional. Presidência da República. 1996a.
BRASIL. Emenda Constitucional nº 14/1996. Modifica os artigos 34, 208, 211 e 212 da Consti-
tuição Federal e dá nova redação ao art. 60 do Ato das Disposições constitucionais transitórias.
Presidência da República. 1996b.
BRASIL. Lei nº 9.424, de 24 de dezembro de 1996. Dispõe sobre o Fundo de Manutenção e De-
senvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério, na forma prevista no art. 60,
§ 7º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, e dá outras providências. Presidência da
República. 1996c.
BRASIL. Lei nº 12.796, de 4 de abril de 2013. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996,
que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para dispor sobre a formação dos pro-
fissionais da educação e dar outras providências. Presidência da República. 2013.
56
Cadernos de Pesquisa, São Luís, v. 28, n. 1, jan./mar, 2021.
Disponível em: http://www.periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/cadernosdepesquisa
Cristiane Machado | Edson Francisco de Andrade
CURY, Carlos Roberto Jamil. Direito à educação: direito à igualdade, direito à diferença. Cadernos
de Pesquisa, v. 116, n. 116, p. 245-262, julho 2002.
CURY, Carlos Roberto Jamil. A educação básica como direito. Cadernos de Pesquisa, v. 38, n.
134, p. 293-303, agosto 2008.
CURY, Carlos Roberto Jamil. A gestão democrática na escola e o direito à educação. Revista
Brasileira de Política e Administração da Educação, v.23, n.3, p. 483-495, set./dez. 2007.
DUARTE, Clarice Seixas. Direito público subjetivo e políticas educacionais. Revista São Paulo em
Perspectiva, São Paulo, vol. 18, n. 02, p. 113-118, 2004.
FERNANDES, Francisco das Chagas. Fundeb como política publica de financiamento da educação
básica. Revista Retratos da Escola, Brasília, v.3, n.4, p.23-38, jan/jun.2009.
FIGUEIREDO, Jéssica Antunes; LINS JÚNIOR, George Sarmento. O direito fundamental à educa-
ção e sua efetividade no Brasil: uma análise à luz da teoria dos direitos fundamentais de Pontes
de Miranda e da Constituição brasileira de 1988. Revista Direitos Sociais e Políticas Públicas
(UNIFAFIBE), v. 6, n. 1, p. 195-218, 2018.
GADOTTI, Moacir. Significado e desafio da educação básica. Instituto Paulo Freire, 1991.
GOUVEIA, Andréa B; SOUZA, Ângelo R. de. A política de fundos em perspectiva histórica: mudan-
ças de concepção da política na transição Fundef e Fundeb. Em Aberto, Brasília, v. 28, n. 93, p.
45-65, jan./jun. 2015.
KINZO, Maira D’Alva G. A democratização brasileira: um balanço do processo político desde a tran-
sição. São Paulo em Perspectiva, 15(4) 2001.
MORAES, Viviane Merlim. O direito à educação no campo político brasileiro: disputas ideológi-
cas na elaboração da Constituição Federal de 1988. 311 p. Tese (Doutorado em Educação). Facul-
dade de Educação. Universidade Federal Fluminense, RJ. 2018.
NEVES, Lúcia M. W. Educação e política no Brasil de hoje. 2 ed. São Paulo: Cortez, 1999.
OLIVEIRA, Romualdo Portela de. O Direito à Educação na Constituição Federal de 1988 e seu res-
tabelecimento pelo sistema de Justiça. Revista Brasileira de Educação, nº 11, p. 61-74, mai-ago.
1999.
57
Cadernos de Pesquisa, São Luís, v. 28, n. 1, jan./mar, 2021.
Disponível em: http://www.periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/cadernosdepesquisa
Democratização do direito à educação básica no Brasil...
OLIVEIRA. Romualdo Portela de. O financiamento da educação. In: OLIVEIRA. Romualdo Portela;
ADRIÃO. Theresa (Orgs). Gestão, financiamento e direito à educação: análise da constituição
federal e da LDB. 3ª ed. São Paulo: Xamã, 2007.
OLIVEIRA, Romualdo Portela de; SOUSA, Sandra Zákia. Introdução. In: OLIVEIRA. R. P.; SANTA-
NA, Wagner (Orgs.). Educação e Federalismo no Brasil: combater as desigualdades, garantir a
diversidade. Brasília: UNESCO, 2010. p.13-35.
PINTO, José Marcelino de R. O Fundeb na perspectiva do custo aluno qualidade. Em Aberto, Bra-
sília, v. 28, n. 93, p. 101-117, jan./jun. 2015.
PIAZENTIN, Olga Maria Rolim Rodrigues; MESSIAS, Vera Lúcia Fialho Capellini; PACHECO, Ana
Paula Moraes Maturana. Variáveis pessoais de professores para o atendimento a alunos com trans-
torno global do desenvolvimento. Revista Educação Especial. 2017, 30(59), 681-696.
SAVIANI, D. Contribuição à elaboração da LDB: um início de conversa. ANDE, n. 13, p. 5-14, 1988.
SAVIANI, Dermeval. A educação na Constituição Federal de 1988: avanços no texto e sua neutra-
lização no contexto dos 25 anos de vigência. Revista Brasileira de Política e Administração da
Educação, Recife, v. 29, n. 2, p. 207-221, maio/ago. 2013a.
SAVIANI, Dermeval. A lei da educação: trajetória, limites e perspectivas. Campinas: Autores Asso-
ciados, 2016.
VIEIRA, Sofia Lerche. Política(s) e Gestão da Educação Básica: revisitando conceitos simples.
Revista Brasileira de Política e Administração da Educação. Vol. 23, n. 01, pp. 53-69, jan/abr,
2007.
UNESCO. Declaração mundial sobre Educação para Todos: satisfação das necessidades bási-
cas de aprendizagem - 1990. Unesco, 1998.
58
Cadernos de Pesquisa, São Luís, v. 28, n. 1, jan./mar, 2021.
Disponível em: http://www.periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/cadernosdepesquisa