Lenard, 5 - Edward Said
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DOSSIÊ
EDWARD SAID E OS PARALELOS ENTRE A OCUPAÇÃO DA PALESTINA E O APARTHEID NA
ÁFRICA DO SUL1
EDWARD SAID AND THE PARALLELS BETWEEN THE OCCUPATION OF PALESTINE AND APARTHEID IN SOUTH AFRICA
Fabio Bacila Sahd
[email protected]
RESUMO: Analisa‐se aqui as comparações recorrentes em Edward Said entre a ocupação israelense e o
apartheid sul‐africano. Buscamos identificar os elementos elencados pelo intelectual para
fundamentar esses paralelos, bem como averiguar como essa analogia foi sendo feita ao longo de sua
produção. Houve uma mudança de ênfase, ou mesmo de perspectiva? Quais as características de
fundo? Para isso recorremos a uma leitura seriada e abrangente das obras saidianas, incluindo seus
principais livros, mas também artigos midiáticos e entrevistas. O colonialismo é a principal chave
teórica utilizada por Said e pensar esses paralelos nos obriga a revisar sua obra como um todo.
PALAVRAS‐CHAVE: Ocupação Israelense; Territórios Palestinos Ocupados; Sionismo.
ABSTRACT: We analyze here Edward Said's recurring comparisons between the Israeli occupation and
South African apartheid. We seek to identify the elements listed by the intellectual to support these
parallels, as well as to find out how this analogy was made throughout his production. Was there a
change in emphasis, or even a change of perspective? What are the background characteristics? For
that, we resorted to a serial and comprehensive reading of Saidian works, including their main books,
but also media articles and interviews. Colonialism is the main theoretical key used by Said and thinking
about these parallels forces us to review his work as a whole.
KEYWORDS: Israeli occupation; Occupied Palestinian Territories; Zionism.
Pensar e escrever sobre Israel/Palestina de forma crítica e contra‐hegemônica exige,
necessariamente, defrontar‐se com processos de invisibilização e silenciamento. Tratando‐se
do tema, para leigos e leigas o óbvio parece tese demasiado ousada, como as comparações
feitas por Edward Said entre ocupação israelense e apartheid sul‐africano, respaldadas em um
acúmulo suficiente de indícios. Inclusive, desde os anos 1960, ele enfrenta e chama a atenção
para os processos de censura em torno da escrita sobre o tema, destacando sua constituição
em tabu no universo acadêmico e mesmo nos círculos progressistas, que não hesitam em
denunciar violações, desde que não sejam dos direitos do povo palestino. As atrocidades
perpetradas pelo antissemitismo na Europa, com a decorrente culpa a ser expiada, ainda
pesam sobre os ombros de muitos e muitas, que optam pelo silêncio em se tratando dos
palestinos, cujos esforços de descolonização são envidados em diferentes frentes, inclusive
na garantia de espaços de fala e produção de saber. Em “A Questão Palestina”, Said destaca a
1
Artigo resultante de pesquisa financiada, parcialmente, pelo CNPQ.
Doutor pelo programa interdisciplinar "Humanidades, direitos e outras legitimidades", da Universidade de São
Paulo (USP). Professor na Pontifícia Universidade Católica do Paraná, mais especificamente no curso de Pós‐
graduação em História Contemporânea e Relações Internacionais.
condição de “vítima das vítimas” e como cerne de sua opressão a condição colonial. Mas
observa também um lado positivo, justamente, a colonialidade ser a ponte de seu movimento
com o as demais lutas anticoloniais, o que lhe permitiu auxiliar no empoderamento de
algumas delas.
Essas conexões caras à identidade palestina foram reconhecidas por Mandela, em
1991, em conversa com Said, durante a qual lembrou do apoio à luta contra o apartheid, nos
piores momentos do Congresso Nacional Africano. Entretanto, a descolonização da Questão
Palestina segue na ordem do dia, com sua redução acrítica (quando não cínica) a uma questão
de terrorismo reproduzindo as categorias e lógica colonial de silenciamento da alteridade não
“ocidental”, submetida à opressão, discriminação e desapropriação sistemáticas enquanto
sua resistência é esvaziada de densidade história, tentando‐se distorcer e silenciar sua
narrativa contra‐hegemônica. Isso vale para tentativas de equivaler antissionismo e
antissemitismo, o que é parte de um regime de silenciamento, como apontam vários autores,
a exemplo de Judith Butler. Na contramão, seguem os esforços de escovar essa história a
contrapelo, de modo que o anjo de Klee deixe de testemunhar, imobilizado, mais esses
episódios de barbárie, como os ataques contra Gaza, em 2014, denunciados pela Rede
Internacional de Judeus Antissionistas como um massacre genocida, reivindicando que o
slogan clássico “nunca mais” acrescido de “para ninguém”.
Há décadas Said ilumina os fragmentos da história palestino‐israelense, que ora
contextualizaremos sucintamente para, então, apresentar os paralelos feitos com o apartheid.
Na compreensão desse processo, é fundamental evitar as balizas equivocadas, como a
consideração dos Territórios Palestinos Ocupados (TPO) descolada do enquadramento
espacial, temporal e teórico mais amplo do conflito. Afinal, em muitos sentidos a colonização
dos TPO reproduz a lógica e as práticas que acompanham o movimento sionista, desde sua
fundação e o estabelecimento das primeiras colônias na Palestina, ainda no final do século
XIX. Um exemplo é a transferência populacional que vem, gradativamente, judaizando amplas
áreas, limpando‐as de sua população palestina e a substituindo por colonos israelenses. É a
reprodução, de forma menos abrupta, mas não menos persistente, dos fundamentos
colonialistas e nacionalistas exclusivistas que consumaram, em 1948, uma limpeza étnica de
grandes proporções, que garantiu a fundação do Estado de Israel como “Estado judeu”,
expulsando e desapropriando as terras de centenas de milhares de palestinos.
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Repentinamente, a imensa maioria das propriedades fundiárias do país trocaram de mãos,
assim como mudou radicalmente sua composição demográfica, consumando a maioria étnica
necessária para legitimar um novo Estado etno‐nacional (MASALHA, 2000; 2008; PAPPE,
2008).
Fato é que, esse processo de transferência e apartação não se encerrou em 1948,
continuando o “apartheid gradativo” ou “furtivo” dentro de Israel e, após 1967, no restante
da Palestina histórica, então conquistada, cujas consequências são denunciadas na relatoria
de direitos humanos e na bibliografia crítica. As relações dos TPO com Israel não são claras,
nem lineares, caracterizando‐se por uma ambiguidade, ou “política do caos” (WEIZMAN,
2007), que serve para confundir e dissuadir críticas, ao passo que mantém a lógica irrefreável
da judaização do território, que norteia a etnocracia israelense, com as instituições estatais
aparelhadas pelo grupo étnico dominante para servir a seus objetivos expansionistas
(YIFTACHEL, 2006). Gaza é a consumação do paradigma de “máximo de palestinos no mínimo
de terras”, ou seja, um espaço reduzido e de confinamento, uma típica reserva nativa colonial
ou bantustão, com sua população cercada e controlada em seus movimentos e vida (LI, 2006).
Toda a produção intelectual saidiana foi feita acompanhando e considerando esse processo,
do qual sua própria biografia dá testemunho e ao qual está entrelaçada, o que, inclusive, é
mencionado em vários artigos e livros seus, como “After the Last Sky” e “Fora de Lugar”. Said
nasceu em Jerusalém, em 1935, e sua família está entre aquelas expulsas, em 1948, passando
a viver no exílio (Egito, Líbano e, a partir de 1951, Estados Unidos). Até se graduar, em 1963,
voltou, anualmente, ao Oriente Médio para rever sua família. Desde o início de sua profícua
trajetória acadêmica, iniciada nos anos 1960 e finalizada com sua morte, em 2003, envolveu‐
se na compreensão e denúncia ativa do colonialismo, orientalismo e sionismo2, integrando,
inclusive, órgãos diretivos do movimento palestino de libertação, como o Conselho Nacional
Palestino (CNP), entre 1977 e 1991.
Contudo, suas reflexões não foram formuladas a partir de um nacionalismo estreito,
mas de uma perspectiva inclusiva, humanista e pós‐colonial. Esta é teorizada e idealizada
como papel social dos intelectuais, ao qual deve ser vinculada toda sua produção crítica,
marcada por diferentes influências, como Benjamin, Sartre e Gramsci. Sua definição de
2
Sionismo é o movimento nacional e colonial judaico, surgido na Europa, no final do século XIX, com o intuito de
criar o “Estado judeu”. Após o descarte de outras opções, a escolha recaiu sobre a Palestina, o que foi consumado
com o apoio do imperialismo britânico.
intelectual serviu de fundamentação, enquadramento e teorização de sua própria prática
(SAID, 1996a; 2001, p. 283; 2003, p. 248‐251; 2007a, p. 163‐165; 172). No cerne está a função
de “contramemória”, criticando posicionamentos legitimadores de opressões, ou falar “a
verdade ao e contra o poder”, opondo‐se aos deliberados silenciamentos para garantir justiça
social. O intelectual é outsider, desestabiliza o status quo e questiona estereótipos redutores.
Eis o ponto forte da própria trajetória acadêmica e política de Said, percorrida com a produção
de obras teóricas e específicas, textos jornalísticos e com participações em programas de rádio
e TV, tudo acompanhando seu engajamento direto na Questão Palestina, voltado a incidir na
opinião pública. Por suas críticas a Israel, Said esteve exposto a constantes pressões, inclusive,
ameaças de morte.
No presente artigo, buscamos iluminar um ponto específico de sua vasta produção:
compreender como foi, gradativamente, articulando apartheid sul‐africano e Questão
Palestina, passando de um entendimento teórico mais abrangente, a partir do colonialismo,
até a referência que a luta antiapartheid deveria constituir para o movimento palestino. Eis
sua linha principal de atuação e proposta, sobretudo, após ter conhecido mais a fundo a
experiência sul‐africana, no início dos anos 1990. As relações que faz são multifacetadas e
contra‐hegemônicas, exemplificando o que entende como papel do intelectual.
Apresentaremos os paralelos que traçou, recorrendo a uma exposição que segue os
desdobramentos reflexivos do autor ao longo de sua dinâmica trajetória.
Oriente e Palestina, do jovem exilado ao intelectual maduro
Uma das primeiras reflexões de Said (1970, p. 1‐9) sobre as representações
mitificadoras dos árabes e os usos ideologizantes da cultura para legitimar Israel e o
colonialismo como um todo foi “The Arab Portrayed”, publicado logo após a Guerra dos Seis
Dias3 e, posteriormente, incorporado em uma coletânea. Nesse breve texto, criticou a
representação enviesada dos árabes e, assim, antecipou muitos dos temas aprofundados em
obras como A Questão Palestina e Orientalismo, tendo no cerne a questão do colonialismo.
Na cinematografia e mídias dos EUA estaria difundida uma “caricatura estúpida e ofensiva”,
um outro selvagem, massa difusa destituída de personalidade e valores humanos, em
3
A Guerra dos Seis Dias ocorreu em junho de 1967, resultando na expansão israelense sobre o restante dos
territórios palestinos (Gaza e Cisjordânia) e na ocupação da Península do Sinai e das Colinas de Golã, aquela
negociada e esta formalmente anexada, ao arrepio do direito internacional.
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oposição aos “colonizadores brancos”. Jargões colonialistas, orientalistas e racistas também
estruturariam o discurso sionista, como a representação do “território vazio” e da alteridade
bárbara, sem vínculos efetivos com a terra, passível de ser conquistada e fecundada. Dessa
visão eurocêntrica derivam várias distorções legitimadoras, como a luta contra a ocupação e
colonização israelense ser classificada de terrorista e não “resistência” ou “guerrilha”,
exigindo‐se dos árabes reavaliação de seu passado e presente sem que Israel precise
responder por seus atos, como sua existência depender do deslocamento de todo um povo e
provocar, continuamente, perda de vidas e propriedades, destruindo vilas inteiras.
Sentimentos liberais de justiça, mobilizados para criticar diferentes situações (como Vietnã)
não se aplicariam aos palestinos, reduzidos a uma caricatura demonizada, carente de
historicidade e de características humanas, embora sejam objeto de admiração no Terceiro
Mundo em se tratando de luta anticolonial. Tal situação é explicada pelo bloqueio
comunicativo com a opinião pública mundial. Não há referências explícitas à África do Sul, mas
ao colonialismo como contexto, até porque, então, o movimento internacional antiapartheid
ainda estava em sua fase embrionária.
Entre “The Arab Portrayed” (1967) e a Questão da Palestina (1979), obra esta que
sintetiza seu acúmulo sobre o tema até então, Said publicou ao menos três textos curtos
específicos, aos quais não tivemos acesso. Seu livro de 1979 pode ser compreendido como um
estudo de caso do “Orientalismo”, sua obra mais famosa publicada um ano antes, na qual o
apresenta como um campo do saber, um imaginário ou forma duradoura de representar a
realidade, mais especificamente, a alteridade não europeia, a qual é atribuída uma série de
características negativas, infantilizando‐a, negando narrativas possíveis, destituindo‐a de
qualidades humanas reservadas para “nós”, “ocidentais”. O orientalismo é inseparável do
colonialismo, é um produto cultural necessário para justificar o domínio sobre outros povos e
a expansão e conquista de suas terras, como já criticado em “The Arab Portrayed”. Parte do
mundo colonizado, a Palestina não passou incólume, com sua historicidade e luta anticolonial
também distorcidas (SAID, 2003, p. 107; 251; 286; 306).
Se o orientalismo fundamenta aproximações entre as experiências na Palestina e na
África do Sul tal associação só é feita, explicitamente, a partir de “A Questão da Palestina”.
Aqui, Said (1992, p. 42; 78‐79; 113) enquadra, especificamente, o caso palestino na história
mais abrangente do colonialismo, transformador de “territórios desocupados do mundo em
Ou seja, tanto em “Orientalismo” quanto em “A Questão da Palestina” o sionismo é
inserido no contexto mais amplo das barbáries coloniais, mencionando‐se na segunda,
explicitamente, paralelos com situações análogas, como a África do Sul, com a qual Israel
manteve vínculos políticos, diplomáticos e nucleares. Said (1992, p. 204; 234; 119; 214; 184)
ilumina convergências e divergências, destacando que se suas vítimas padeceram de males
semelhantes, a trajetória dos algozes é distinta. “De modo similar, enquanto em seu
tratamento da população árabe nativa é verdade que Israel é um Estado colonizador e se
assemelha à África do Sul [...] não há uma similaridade total entre judeus e africâneres”.
Devido aos “horrores reais do antissemitismo europeu” e ao histórico religioso vinculando
judeus à “Terra Santa” a luta anticolonial palestina é mais difícil e complexa, não tendo a
linearidade do enfrentamento da maioria negra à discriminação e segregação impostas pela
minoria branca em África. O próprio “mundo árabe” ocupa lugar peculiar dentre as demais
regiões do Terceiro Mundo e experiências (anti)coloniais. De todo modo, em suas narrativas,
visões de mundo e práticas discriminatórias sionismo e nacionalismo africâner convergem,
expressando o colonialismo estruturante de ambos, que é o tema central de toda produção
saidiana muito influente junto aos teóricos da pós‐colonialidade. Se o colonialismo já embasa
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seus primeiros textos, é aprofundado em “Orientalismo” e “A Questão Palestina”, livros de
maior fôlego que marcam sua maturidade intelectual, nos quais articula saber e poder e as
relações entre as potências ocidentais e o mundo “oriental”. O tema é retomado em
“Cobrindo o Islã”, dedicado a manifestações contemporâneas dessa lógica, sobretudo,
representações dessa alteridade nos EUA. Pouco depois da publicação dessa obra, em 1981,
Said começou a escrever os textos que, na década seguinte, foram compilados, revisados e
publicados como “Cultura e imperialismo”. Os paralelos entre Palestina e África do Sul se
banalizaram em sua produção desde então, sendo o pano de fundo a estrutura colonial
comum, refletida na cultura e nas práticas de discriminação, opressão, exploração e
resistência.
Said, a Palestina e a África do Sul: dos anos 1980 ao início do processo de paz
“After the Last Sky. Palestinian lives” foi escrito em meados dos anos 1980. Nele, Said
(1999) intercala memórias pessoais, testemunhos, descrições históricas, análises e fotografias
do cotidiano de pessoas comuns, assim como de figuras renomadas. É, em suas palavras, um
registro da “condição palestina” do ponto de vista de um memorialista ou historiador amador,
com as contradições e rupturas das trajetórias coletivas e individuais estando refletidas na
própria estrutura fragmentária do texto. Said (1999, p. 20; 133) tece, de forma aparentemente
aleatória, uma trama da condição palestina, denunciando políticas israelenses,
explicitamente, associadas à África do Sul e demais experiências coloniais. A colonização dos
TPO visaria a interconexão e continuidade das áreas judaicas enquanto separa, fragmenta e
restringe as palestinas. Continuidade para “a população dominante; descontinuidade para
nós, os desapropriados e dispersados”, a fim de evitar o desenvolvimento econômico e social
autônomo, permitindo‐se apenas uma melhoria das condições de vida. Manifestações de
nacionalismo palestino estão censuradas, pois tal identificação política está proibida e a vida
palestina “fragmentada, descontinuada, marcada por arranjos artificiais e impostos de
espaços interrompidos ou confinados, pelos deslocamentos e ritmos não sincronizados de um
tempo perturbado”. A desapropriação, abrupta em 1948, é contínua. Israel nega permissões
de construção ou para determinados plantios e controla a água, terra e eletricidade,
provocando uma emigração forçada, assim como uma força de trabalho itinerante, explorada
dentro do país, onde sequer os palestinos podem dormir, devendo se deslocar diariamente. A
definição de judeu e não judeu relega estes à condição de subcidadãos, a um “status de
terceira classe”. Os ocupantes dispõem de meios repressivos como novas expropriações,
punições coletivas, abusos, humilhações, demolições, prisões em massa, torturas e
assassinatos. Simplificam, sistemática e deliberadamente, a resistência como “terrorista”,
buscando deslegitima‐la. No entanto, falham em criar uma classe de colaboradores e sua
truculência alimenta a oposição, revigora a identidade e fortalece a narrativa palestina de
autoafirmação e busca da autodeterminação, encabeçada por lideranças como Yasser Arafat
e instituições como a OLP, que unificam e garantem coesão, afirmando um nacionalismo não
sectário, secular, libertário e igualitário, ou “a política da esperança” (SAID, 1999, p. 104; 112‐
113; 121‐122; 133; 160). Paralelos com os bantustões e o apartheid são feitos de forma
implícita na maior parte de “After the Last Sky”, mas também explicitamente em decorrência
da política sistemática de negação, desapropriação e expulsão, criando um mundo colonial à
parte e à revelia dos locais, cuja presença, propriedades e vidas são ignoradas. Ao comentar a
resistência de estudantes nos TPO (que são sua vanguarda e, por isso, punidos), Said (1999, p.
142) volta a destacar o silêncio generalizado no “Ocidente”, com a ausência de petições ou
manifestos internacionais de solidariedade. Conformados com o mito da “ocupação israelense
‘liberal’, ignora‐se a colaboração entre Israel, África do Sul “e quase todos os regimes
repressivos de direita no Terceiro Mundo” e que vigora “um sistema de praticamente
apartheid, no qual os direitos de árabes e judeus são legislativamente desiguais”.
Em texto de 1982, Said (1995, p. 60‐61) reflete sobre o papel de Israel como mediador
das representações orientalistas do Islã nos EUA e no “Ocidente”, enquanto aquelas sobre o
próprio país são seletivas ou “enviesadas”, enaltecendo‐o como a “única democracia do
Oriente Médio”, “bastião da civilização ocidental” em meio às “trevas islâmicas”. Assim,
ignoram‐se elementos destoantes dos valores democráticos, como o caráter religioso e “todas
as peculiaridades sociais e ideológicas que, com o passar do tempo, aliaram Israel e África do
Sul”. Em “Permissão para narrar”, de 1984, Said (1995, p. 247‐249; 251) volta a abordar as
representações coloniais e orientalistas dos palestinos para justificar sua opressão. Enquanto
suas instituições e nacionalismo derivariam “da grande onda de sentimento árabe e islâmico
anticolonial, pertencendo ao pensamento secular pós‐imperialista”, o sionismo adviria do
nacionalismo europeu, antissemitismo e colonialismo, sendo um “movimento de
desapropriação” e negação dos não judeus locais. Suas práticas constituem “brutalidade e
opressão, facilmente, comparável aos feitos do regime polonês ou sul‐africano”, mas tal qual
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na África do Sul a resistência é deslegitimada, negada em sua complexidade, servindo para
isso a generalização e uso ambíguo da categoria “terrorista”. Mas, enquanto ativistas
antiapartheid se mobilizam contra um dos principais aliados de Israel, evitam discutir esse país
(SAID, 1995, p. 257‐258), cabendo a necessária contranarrativa, desmistificando fatos.
Em artigo de 1985, Said (1995, p. 86‐88; 90‐93; 105) volta a mencionar o caso sul‐
africano, dessa vez ao lado do Terceiro Reich, como exemplo de política de diferenciação,
fundada na superioridade de um grupo em relação a outro e na tentativa de negar a
mestiçagem e homogeneizar a população, valendo‐se de representações racistas, perseguição
e discriminação organizadas, violando a Declaração de Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação Racial, aprovada pela ONU, em 1963. De modo análogo, a “diferença” tem sido
usada como instrumento por Israel para negar ou relegar a um status inferior os direitos
palestinos, expropriando‐os e os mantendo na condição de exílio, enquanto estende o “Direito
de Retorno” e “nacionalidade” a cidadãos de fé judaica de diferentes países. O Estado judeu
foi criado para o “povo judeu”. Então a normalidade é definida pela judeidade e a condição
normal dos não judeus é a anormalidade, sendo “radicalmente, um outro, fundamentalmente
e constitutivamente diferente”, seja em Israel seja nos TPO. Essa lógica de inferiorização e
construção da ausência abrange a história e a sociedade, estando o exclusivismo e a negação
da alteridade já presentes nos fundadores do sionismo, o que se reflete em discursos
abertamente discriminatórios, favoráveis a soluções como o “apartheid sul africano”,
legitimando práticas atrozes. Said (1995, p. 84; 89; 93) menciona documentos e autores como
Elia Zureik, um dos pioneiros na comparação entre Israel e África do Sul, sobressaindo‐se a
ideia de “colonialismo interno”, mas com pouca circulação no “Ocidente”. Estariam evidentes
os paralelos entre palestinos e “nativos americanos e sul‐africanos negros”, com as práticas
segregacionistas de Israel ligadas a uma formação ideológica complexa, mas que comunga do
repertório colonial. O surgimento do nacionalismo palestino força essa conexão indesejada e
denuncia as incoerências entre discurso liberal e práticas racistas, explícitas desde 1967.
Em outros textos dos anos 1980, Said (1995, p. 337‐340) seguiu destacando as
relações entre sionismo, Israel e práticas similares, como o apartheid, aproximando‐as a partir
da estrutura econômica e cultural colonial comum. Em texto de 1986 sobre Bernard Lewis,
“profícuo e polêmico comentarista neoconservador da Guerra Fria”, rebateu sua tentativa de
associar antissionismo e antissemitismo. Apontou suas incoerências, dentre elas, várias
omissões, como a “completa desapropriação dos ‘não judeus’ [na Palestina]” e o “apartheid
na Cisjordânia”, assim como “a diferença essencialmente racista entre judeus e não judeus”,
com o passado de opressão de judeus não podendo servir para ocultar aquela praticada em
seu nome por Israel, que marcaria de sua passagem de vítimas a opressores. Em texto de 1988,
Said (1995, p. 348) afirma que Israel estaria seguindo o caminho de outros regimes coloniais
(como a África do Sul em relação ao Congresso Nacional Africano) ao descrever todos os atos
da resistência palestina como “terrorismo”. Muitas dessas considerações figuram em
entrevista concedida em 1986 e em outras posteriores, na qual denuncia também o
tratamento “especializado” do apartheid na África do Sul, “como fenômeno único”, e as
críticas decorrentes quando é relacionado a situações semelhantes ou conectadas, como
Israel (VISWANATHAN, 2002, p. 84‐85).
No livro “Acusando as vítimas: bibliografia espúria e a Questão Palestina”, publicado
em 1988, reúne textos de toda essa década e aborda distintos assuntos. Já na introdução, Said
(1988, p. 10; 252) comenta a adesão dos congressistas estadunidenses, ressalvando exceções
pontuais, ao lobby e visão sionista, mencionando como ignoram as práticas israelenses nos
TPO enquanto as condenam como barbarismo, apartheid ou totalitarismo em lugares como
Afeganistão e África do Sul. Em capítulo assinado junto a outros autores palestinos, volta a
recorrer ao caso sul‐africano, mencionando que, após a ocupação de 1967, que provocou nova
expulsão em massa, “políticas semelhantes nas esferas social, cultural e econômica buscam
substituir o opressivo sistema de ocupação militar colonial por um sistema de apartheid para
a população palestina vivendo sob governo israelense”. Israel exila militantes, anexa
territórios, confisca terras (cerca de 50% do total) e constrói colônias, desviando recursos
hídricos, o que priva e força palestinos a abandonarem a agricultura, reduzindo‐os ao
desemprego, à força de trabalho superexplorada e a mercado consumidor de bens produzidos
em Israel, comprometendo sua base econômica e social. Mais de um milhão estão sujeitos ao
“controle israelense total” e a pressões econômicas e políticas, além de demolições, prisões
em massa e censura de instituições culturais. Tais políticas e práticas remontariam aos
primórdios do sionismo, expressando um colonialismo duradouro, que expulsa e transforma
os remanescentes em “população subordinada”, simular à África do Sul.
Paralelos figuram na série de entrevistas concedidas a David Barsamian, entre o final
dos anos 1980 e o começo dos anos 1990, reunidas na obra “A caneta e a espada”. Em 1991,
Fabio Bacila Sahd. EDWARD SAID E OS PARALELOS ENTRE A OCUPAÇÃO DA PALESTINA E O APARTHEID NA ÁFRICA DO SUL
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Said (1994, p. 42; 52‐53), inspirado por sua primeira visita ao país africano e desapontado com
o que considerou a capitulação das lideranças palestinas, revisitou criticamente muitas
questões, como a conexão com as demais lutas anticoloniais, sendo o movimento nacional
palestino, até o começo dos anos 1980, o “único no mundo árabe capaz de conectar os
palestinos à experiência da colonização”. Inclusive, a Intifada seria uma das poucas palavras
árabes que entraram na língua inglesa no século XX, sendo uma revolta anticolonial, um dos
grandes levantes no Terceiro e Segundo Mundo, aludida em diferentes partes. Mandela lhe
disse que jamais iria abandonar os palestinos por questão de princípios e pela ajuda que
deram ao Congresso Nacional Africano (CNA) e a outros movimentos de libertação, com Said
destacando “um sentido muito caloroso de associação entre os lutadores palestinos contra a
ocupação israelense e a luta contra o apartheid na África do Sul”. Tais pontes sugeririam “uma
compreensão de nosso próprio lugar na história”, como parte desse “grande movimento”
anticolonial, o que seria um “feito histórico importante”. Mas, o movimento palestino tem
suas especificidades no contexto anticolonial. Sobre isso, Said (1994, p. 53‐54) avança, traz
novas considerações, como ter se tornado o primeiro, “e provavelmente o último”, a lutar em
um mundo unipolar, sendo a superpotência remanescente “o patrão de nosso inimigo” e não
havendo mais um “aliado estratégico”, como fora a URSS para outros processos de
descolonização. Outra distinção é o entorno palestino, com eles “massacrados” e tendo seu
movimento hostilizado nos Estados árabes vizinhos, apesar da retórica de pretenso apoio. O
objetivo é libertação, mas também soberania nacional em uma parte da Palestina, sendo
único também o fato dos palestinos não terem lugar algum no projeto colonial de Israel, sendo
desejável que partam ou morram, ao invés de serem explorados como subclasse, a exemplo
da África do Sul. Said (1994, p. 89; 103; 163) remete ao historiador sul africano Colin Boundy,
que afirma ter vigorado em seu país um “colonialismo de tipo especial”, havendo uma “classe
branca nativa” (e não colonos). Isso se aplicaria, igualmente, aos palestinos, onde há um
“colonialismo de um tipo ainda mais especial”.
Analogias Palestina/África do Sul figuraram também em outra entrevista a Barsmian,
na qual Said (1994, p. 166‐167) afirma que estaria fazendo essas comparações com frequência
em suas palestras. A linha principal dos políticos israelenses é “basicamente uma noção de
apartheid fundamental”, com pouquíssimos falando em paz e reconciliação. Já as lideranças
palestinas, diferentemente de Mandela e do CNA, foram mudando de posição, abandonando,
gradativamente, o objetivo inicial de “uma pessoa um voto”, como alternativa à ocupação
israelense. De um Estado democrático secular, tornou‐se um Estado em qualquer parte da
Palestina que pudesse ser liberada, depois autonomia, depois autonomia limitada, até a
colaboração com os israelenses. Em 1990, Said (1995a, p. 366‐371) comparou a linha do CNA
e da OLP ao comentar a libertação de Mandela da prisão, colocando sua postura como
exemplo para as lideranças palestinas, mais especificamente, a perseverança e abordagem
dos fatos como uma questão moral. Acusado de intransigente, Mandela não abriu mão dos
princípios do CNA, cujo “conteúdo moral, ao final, triunfou sobre seus adversários”, e nunca
colaborou com o regime. Se conduta análoga teve o CNP até 1988 (atuando “de uma forma
decente, moralmente defensável e politicamente aceitável”), lideranças da OLP estariam, nos
bastidores, abrindo mão de princípios universais (libertação e democracia) e suplicando por
negociações. Deflagraram assim uma crise ao se afastar da moralidade e perseverança
exemplificadas pelo CNA, referência então adotada na oposição de Said ao processo de Paz,
que culminou em Oslo e em seu rompimento pessoal com o CNP.
Oslo, o apartheid e depois
A primeira metade da década de 1990 foi um momento fértil da produção intelectual
saidiana, dedicada também a revisar os rumos do movimento palestino. Produziu livros como
“Cultura e imperialismo” e “Representações dos intelectuais”, e também vários artigos,
muitos compilados em obras como “The Politics of Dispossession” e “Peace and its
descontents”. São comuns os paralelos com a África do Sul. Analisando acontecimentos locais
e globais que caracterizaram o final da Guerra Fria, amadureceu muitos temas, como as
contradições entre nacionalismo e libertação nas lutas anticoloniais e o papel dos intelectuais.
Em breve passagem sobre a Guerra do Golfo, escrita em 1991, comparou um passado médio‐
oriental de maior integração, mais multicultural, a um presente de fronteiras fortificadas, em
partes devido aos nacionalismos estatais com sua tendência de fragmentar e fraturar. “Líbano
e Israel são exemplos perfeitos do que ocorreu. Apartheid, de um modo ou outro, está
presente em quase todo lugar, como sentimento grupal, senão como prática, e está
subsidiado pelo Estado”. Em outro texto sobre a Guerra do Golfo (“outra intervenção
imperial”, continuidade do colonialismo ocidental) critica Saddam Hussein e demais governos
árabes e voltou a comparar a ocupação israelense ao apartheid, denunciando a mediação
tendenciosa dos EUA, que veta resoluções condenatórias a Israel no Conselho de Segurança
Fabio Bacila Sahd. EDWARD SAID E OS PARALELOS ENTRE A OCUPAÇÃO DA PALESTINA E O APARTHEID NA ÁFRICA DO SUL
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da ONU. As partes devem aprender a conviver, reconhecendo‐se em sua história e atualidade,
superando as representações colonialistas e o presente no qual só israelenses têm soberania
e autodeterminação e os palestinos vivem em um “estado de subordinação e opressão”. A
repressão de sua resistência seria pior do que na África do Sul com, desde o começo da
Intifada, centenas de milhares de feridos, muitas mortes, prisões em massa e políticas,
desenraizamento de árvores, confisco de terras, demolições, toques de recolher, fechamentos
punitivos de áreas e instituições, colonização, censura e deportações, violando dos direitos
humanos e humanitários (SAID, 1995, p. 291; 166).
Said contrapõe a queda de muitos governos tirânicos a três localidades onde
permanecem hostilidades intercomunitárias: Palestina/Israel, Irlanda e África do Sul. Nesses
casos, uma minoria está cercada por uma maioria não reconciliada, mantendo um estado de
sítio. Mas, só no território médio‐oriental a situação continuaria inalterada e, diferentemente
do apartheid, não teria havido sucesso junto à opinião pública mundial em conectar a
identidade nacional com a deplorável situação racial. “Hoje, as pessoas podem se opor ao
apartheid na África do Sul e não dizer sequer uma palavra sobre as práticas israelenses de
apartheid na Cisjordânia e Gaza”, com intelectuais boicotando idas ao país africano, mas
visitando Israel, sendo que o que foi feito em Gaza é muito pior do que o ocorrido em Soweto,
havendo pressão para silenciar críticas contra o “Estado judeu”, ofendendo a “consciência
intelectual”. Enquanto seria cabível os mesmos argumentos e sanções utilizadas contra
“governos repressores como o da África do Sul”, crimes pretéritos contra judeus são
mobilizados para negar ou ofuscar atrocidades praticadas contra os palestinos (SAID, 1995, p.
170‐172). Antes mesmo de Oslo, Said já criticou os diálogos de paz recém‐iniciados,
interpretando‐os como viciados.
Em artigo de 1992, Said (1995, p. 194‐195) comentou sua viagem à Palestina/Israel,
do medo de ter sua entrada barrada até lembranças de infância e a visita a sua antiga casa e
aos TPO. Afirma que, quando foi a Gaza vieram à tona também suas lembranças bem mais
recentes da viagem à África do Sul. “Nada do que vi na África do Sul pode ser comparado a
Gaza em miséria, opressão explícita, confinamento e discriminação racial”. Tal qual um campo
de refugiados ao sul de Jerusalém, “Gaza como um todo me impressionou pelo sentido similar
de delinquência transportada e depois confinada que você obtém das localidades sul‐africanas
marginalizadas”. Destaca os incontáveis aparatos de segurança e o “grande número de
soldados ‘brancos’ patrulhando que você vê na África do Sul”. Mas se este sofre condenações
e isolamento, Israel é poupado de críticas, “não associado a suas práticas em Gaza”.
Talvez, depois de Orientalismo, o livro mais famoso de Said (1995a, p. 11; 400; 320)
seja “Cultura e imperialismo”, publicado em 1993, mas que começou a ser escrito uma década
antes, por volta de 1983, com seu corpo e núcleo de argumentação constituído de materiais
reunidos para palestras proferidas em universidades, entre 1985 e 1986. Nele aprofundou
vários temas, especialmente, a relação entre cultura e império ou “entre o Ocidente
metropolitano moderno e seus territórios ultramarinos”, como os discursos africanistas e
indianistas com os estereótipos criados servindo para legitimar a dominação de povos e
territórios. Também comparou e criticou lutas anticoloniais, mencionando revoltas populares
ao redor do centro do capitalismo internacional, como a contra o apartheid na África do Sul e
a ocupação israelense. Mas, se em “Cultura e imperialismo” os paralelos com a África do Sul
são circunstanciais, o mesmo não ocorre nos textos reunidos em “Paz e seus descontentes”,
escritos entre 1993 e 1995. O Processo de Paz, a postura colaboracionista e visão estreita das
lideranças palestinas são contrapostas à intransigência de Mandela e do CNA em não abrirem
mão de seus princípios igualitários e democráticos e do final inegociável do apartheid, do que
Arafat e a OLP estariam cada vez mais distantes, aceitando a submissão e rendição. Ao passo
que Said (1996, p. 143‐144) não ignora diferenças, questiona essa resignação, contrapondo‐a
à resiliência de cubanos, vietnamitas e sul‐africanos. Reagan e Tatcher apoiaram o apartheid
na África, considerando o CNA uma organização terrorista. Suas lideranças foram presas, mas
agora são celebradas em todo o mundo. A vitória não veio da bondade repentina de seus
oponentes, mas da “visão convincente e inabalável”, que derrotou “as atitudes gélidas e
imutáveis representadas pelo apartheid”, devendo os palestinos seguir esse modelo. Outra
lição do CNA seria diferenciar melhor os componentes da sociedade estadunidense,
identificando aliados e opositores, sendo necessária organização e acompanhamento dos
fatos cotidianos (ouviu essa sugestão de Walter Sisulu, em sua visita à África do Sul).
No processo médio‐oriental, as autoridades israelenses estariam sendo arrogantes e
intransigentes, não abrindo mão de nada nem negociando os pontos centrais, sequer
prevendo o final da ocupação. Já a contraparte palestina, sem ganhar nada, estaria fazendo
diferentes concessões enquanto continuam as expropriações, colonização, toques de
recolher, assassinatos, prisões. Para piorar, estaria sendo mantida uma lógica de negociação
Fabio Bacila Sahd. EDWARD SAID E OS PARALELOS ENTRE A OCUPAÇÃO DA PALESTINA E O APARTHEID NA ÁFRICA DO SUL
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secreta, sem consultar as bases, planejar ou sustentar objetivos finais como independência e
autodeterminação. Oslo, em si, seria injusto, com os israelenses explorando a fraqueza
palestina (potencializada pela corrução de suas lideranças) e mantendo um “regime análogo
ao apartheid sul‐africano”. Apenas realocaram tropas e bases militares (dos centros urbanos
da Cisjordânia para suas margens), mantendo sua liberdade de ação e impunidade, assim
como dos colonos, ao passo que controlam todas as estradas e entradas e saída dos territórios
palestinos, limitando sua autonomia, privando‐os de domínio efetivo sobre a segurança,
recursos e as terras fora das “áreas A”. Um sistema de estradas conectará as colônias entre si,
possibilitando a seus moradores “evitar ou mesmo nunca ver as pessoas dos bantustões [...]
impossibilitando aos palestinos governar em qualquer território contíguo”, como foi no
apartheid. O horizonte não é criar o Estado palestino, mas um protetorado ou “versão médio‐
oriental dos bantustões sul‐africanos”. De líder do povo Arafat se tornou um “Buthelezi
israelense, ou o administrador de um bantustão”, sendo sua grande conquista autonomia “em
meia dúzia de cantões ou guetos separados”, “uma série de responsabilidades municipais em
bantustões dominados do exterior por Israel”, que conseguiu “consentimento oficial palestino
para continuar a ocupação”, terceirizando a aplicação das leis (SAID, 1966, p. 147‐148; 70‐75;
121). Em outro texto, Said (1996, p. 63‐67; 95; 139) menciona e se alinha a um
pronunciamento feito por lideranças independentes dos TPO, descontentes com Oslo e que
fazem críticas semelhantes a como Israel segue explorando a terra e seus recursos, encoberto
agora pelo manto das negociações para violar as resoluções da ONU e tentar legitimar ações
ilegais pretéritas. Mas destaca ser tarde para lamentar a “a falácia de Oslo” e a postura de
seus atores. Seria inviável administrar a “jurisdição mista” (“uma lei para os colonos
israelenses outra para os palestinos”) e esperar algo além da ocupação militar, de mais
demonstrações de poder e que “esse estado de apartheid continuará, por óbvio”. A questão
seria o que fazer. Mais uma vez, o exemplo é o movimento antiapartheid, mas também a
própria Intifada, cuja energia ainda estaria circulando, constituindo‐se em esperança. Deve‐se
recusar a colaboração e avançar na luta de massas, de desobediência civil e contra‐
hegemônica, mobilizada de baixo para cima, e em um programa paralelo, envolvendo todo o
povo palestino e os setores críticos da sociedade israelense, desconstruindo mitos e
divulgando a justeza moral da Questão Palestina a fim de fortalecer a campanha internacional
por seus direitos. A luta está longe de terminar, cabendo inserir nas reivindicações reparações
por todas as perdas, desde 1948, e o fim imediato da colonização e ocupação. Isso passa por:
disputar internamente a condução do movimento palestino, aumentando sua organicidade e
capilaridade; fortalecer a demanda por liberdades democráticas; informar/mobilizar o povo;
fazer o contraponto junto à opinião pública internacional; e romper o monopólio da OLP sobre
as finanças e produção e circulação de informações. Arafat, antes de renunciar, deveria olhar
para os verdadeiros recursos de seu próprio povo (sua crença na justiça e liberdade),
confiando nele.
Em “The End of the Peace Process” encontramos produções saidiana reiterando
muitos pontos e dando retoques finais em sua oposição a Arafat e a Oslo. Na introdução, Said
(2001, p. XIV‐XVI; XXII) ataca o próprio fundamento do processo de paz: a errônea concepção
de “exclusivismo sectário”, separando as pessoas em Estados homogêneos. A era das
partições e separações, iniciada em 1948 e cujos princípios fundamentaram Oslo, só teria
trazido catástrofe, e assim prosseguiria. Basta de “falatórios”, “regimes de separação” e desse
“novo nome dado ao apartheid”, expediente para manter o status quo, apenas
reconfigurando a ocupação israelense ou as “muitas políticas de apartheid ainda em vigor que
discriminam explicitamente os palestinos em bases étnicas e religiosas”. Para uma paz
verdadeira cabe rever suas premissas e as adequar a uma concepção alternativa de passado,
presente e futuro, baseada em consciência histórica, no reconhecimento do outro e das
reivindicações não atendidas e na coexistência justa e decente, igualdade e
autodeterminação, que fundamente um “novo sentido de modernidade”, fazendo com que
palestinos adentrem na vanguarda humana, ao lado dos sul‐africanos, conectando sua luta
por justiça com todo o mundo (SAID, 2001, p. 334). Em “Mandela, Netanyahu e Arafat” (de
1996) Said sobe o tom das críticas ao último, que teria “aceitado o inaceitável” em nome de
um falso “realismo”, tornando‐se “colaboracionista” para governar em pequenos bantustões,
ignorando direitos básicos dos palestinos, seu anseio de plena autodeterminação e alienando
a força moral de sua causa. A alternativa é a mesma mencionada há pouco, que deve atrair e
envolver também israelenses opositores do racismo, reforçando que é para ficarem e
partilharem da mesma terra com base em direitos iguais. “Apenas a visão de uma Palestina
multicultural e democrática pode inspirar tal movimento”, sendo a luta uma por “democracia
ou direitos iguais, por uma comunidade de nações secular ou Estado no qual todos seus
membros sejam cidadãos iguais”. O CNA é exemplar, assim como as comissões de verdade e
reconciliação criadas na transição do apartheid. Trata‐se de um retorno ao programa original
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da OLP, o que ficou explícito em “Como se soletra Apartheid? O‐S‐L‐O” (de 1998), no qual
defendeu um “Estado secular binacional” ao invés dos dois Estados étnicos como
“autogoverno” tutelado e não “autodeterminação”, uma “separação” como “sinônimo de
apartheid, não de libertação”. Primeiro, deve‐se vencer o colonizador no plano moral,
deslegitimando‐o na arena internacional. Então negociar e acabar com seu isolamento. Said
admite que tal visão decorreu de sua primeira visita à África do Sul, mencionando que
organizou em Londres um seminário junto com o embaixador do CNA para versar sobre essa
experiência e o proveito de reproduzi‐la na Palestina, constituindo uma campanha massiva de
boicote e informação, organizando comitês e intervenções em diferentes espaços (SAID, 2001,
p. 64‐68; 195; 247; 258; 279‐286; 359‐363).
Em escrito posterior, Said (2001, p. 110) avalia os acordos de Oslo e a autonomia
garantida aos palestinos como uma “amalgama bizarra de três ‘soluções’ históricas
descartadas, vislumbradas por colonizadores brancos para o problema nos nativos no século
XIX na África e Américas”. Primeiro, torna‐los “exóticos irrelevantes”, privados de suas terras
e reduzidos a trabalhadores ou “agricultores pré‐modernos” (“modelo indo‐americano”).
Segundo, divisão das terras em reservas, “bantustões não contínuos, com uma política de
apartheid dando privilégios especiais aos brancos (hoje, israelenses) enquanto os nativos são
deixados a viver em seus guetos” com autonomia relativa (“modelo sul‐africano”). Terceiro,
para dar algum grau de legitimidade local a esses arranjos, obter a colaboração de um líder
local, elevando seu status e dando poderes, como uma força policial nativa (modelo franco‐
britânico para a África do século XIX), sendo Arafat um equivalente. Em outro texto, compara
práticas israelenses e sul‐africanas, destacando a discriminação e segregação em Israel e nos
TPO com respaldo do judiciário (eles “‘têm’ seu próprio sistema”, sendo este eufemismo
similar ao utilizado pelo apartheid sul‐africano). Conclui que vigora um “sistema de
apartheid”, não havendo mais continuidade entre as áreas palestinas, e estes estão reduzidos
“a uma condição similar aos negros sob o apartheid e dos indígenas americanos nas reservas
[...] Isto é apartheid racista” (SAID, 2001, p 269‐270; 103; 165; 171; 251‐253).
Entre 1999 e 2003, Said concedeu outras entrevistas a Barsamian, reunidas no livro
“Cultura e resistência”, reforçando esses temas, assim como “a solução de um Estado
binacional” contraposta à inviabilidade da partilha e do “sistema de apartheid para os
palestinos”. Nas reservas nativas da África do Sul, tal qual nos TPO, haveria “alguns atributos
da soberania, mas nenhuma real”, tampouco controle sobre a terra, a água ou a entrada e
saída dos territórios, prevalecendo um estado de sítio, uma “sufocação econômica”
constante. “Sentimentos racistas” se banalizam enquanto a política israelense é
“incessantemente ativa em oprimir e dominar os palestinos com métodos que superam de
longe qualquer coisa que já tenha sido feita na África do Sul durante o apartheid”. Por outro
lado, estaria ascendendo um “movimento de desinvestimento nos campus das universidades
americanas que exigem que estas desinvistam nas companhias que fazem negócios com
Israel”, seguindo “o padrão do movimento antiaparhteid na África do Sul nos anos 1970 e
1980”, malgrado as tentativas de deslegitimar esses esforços como expressão de
antissemitismo assim como as comparações com o apartheid sul‐africano, apesar dos
“milhões de relatórios” de ONGs e da ONU. A retórica ainda é colonial: os palestinos
“exageram”, “não sentem o mesmo que a gente”, não partilham dos mesmos valores (SAID,
2006, p. 19‐20; 50; 79‐82; 62‐63; 70; 151; 176).
Seus últimos artigos midiáticos, escritos entre 2000 e 2003, foram compilados na
obra “From Oslo to Iraq and the Roadmap”. Abundam os paralelos com a África do Sul e
demais realidades coloniais, entendidos como necessários por garantirem lições úteis ao
movimento de libertação palestino, desde que não se negue as especificidades. Inclusive, em
dois textos, Said volta a comentar suas duas idas ao país africano e o aprendizado que teve
com Mandela. Ao final do livro, há um posfácio feito por sua filha, que destaca o “profundo
efeito” dessas visitas na visão de seu pai sobre a luta palestina, que deveria seguir o “modelo
sul‐africano” (SAID, 2005, p. 29‐30; 241). A crítica, agora, também recai sobre a via armada,
as táticas terroristas e a resistência islâmica, por debilitarem a “batalha cultural” e moral, o
movimento de massas e uma alternativa não exclusivista nem beligerante. A alternativa segue
a mesma: includente e secular, fundada na coexistência, na “humanidade comum”. “O
apartheid sul‐africano só foi derrotado porque negros, assim como brancos, combateram‐no
[...] gostemos ou não, a Palestina histórica é agora uma realidade binacional sofrendo a
devastação do apartheid.”. Cabe ao movimento palestino sinalizar o caminho, defendendo
“dois povos em uma terra” e “igualdade para todos” em um Estado binacional (ou em dois
Estados, desde que garantam coexistência e relações baseadas na igualdade e soberania). A
ocupação é um “apartheid na prática”, mantido por um “sistema legal oculto” que discrimina
palestinos dentro de Israel e nos TPO. Said menciona um jornalista sul‐africano que assim
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relatou sua ida à Gaza em um jornal local: “o apartheid nunca foi tão perverso e desumano
como o sionismo: limpeza étnica, humilhações diárias, punições coletivas em grande escala,
desapropriação de terras, etc”, além da redução deliberada à miséria e ao desemprego.
Analogias feitas em termos semelhantes igualmente figuram em falas de Desmond Tutu e
Nelson Mandela (SAID, 2005, p. 41; 49‐50; 61; 93; 102; 118; 169‐171; 186‐187; 281).
Conclusão
No terceiro milênio, já há acúmulo suficiente de indícios para sustentar que está em
curso na Palestina/Israel um processo de discriminação e segregação semelhante ao sul‐
africano. Além de Said e da bibliografia crítica, centenas de relatórios da ONU e de ONGs
fundamentam essa constatação, inusitada somente para leigos e leigas. Exemplificando essa
documentação, há quase cinquenta anos, em dezembro de 1971, a resolução 2851 (XXVI) da
Assembleia Geral da ONU instou Israel a desistir da “[...] evacuação, transferência, deportação
e expulsão dos habitantes dos territórios árabes ocupados” e da “[...] destruição e demolição
de aldeias, quarteirões e casas, e do confisco e expropriação de propriedades” (UNITED
NATIONS, 1971). Quatro décadas depois, em 2014, o relator especial apontado pelo Conselho
de Direitos Humanos da ONU (CDH‐ONU) para apurar as violações praticadas por Israel nos
TPO denunciou a opressão, exploração, discriminação e apartação como um todo, em
consonância com o que chamou de “evidentes objetivos anexionistas, colonialistas e de
limpeza étnica de Israel”, recorrendo à palavra hebraica hafrada para definir a situação e a
utilizando como sinônimo do termo apartheid (UNITED NATIONS, 2014). Em relatório
publicado pouco antes, a ONG internacional Human Rights Watch (2010, p. 1‐3) também
constatou que vigora nos TPO uma separação e desapropriação gradativa, sob um “sistema
dualista de leis, regras e serviços de Israel para as duas populações de áreas da Cisjordânia
sob seu controle exclusivo”, com base em critérios raciais, étnicos e de origem nacional. Para
os palestinos, deslocamento forçado e práticas administrativas que restringem seu território
e impõe duras condições. Para os israelenses, crescimento das colônias, privilégios,
desenvolvimento e benefícios. Poderíamos nos estender muito mais pela documentação e
bibliografia que comparam TPO e África do Sul do apartheid (ABUNIMAH, 2006; BISHARA,
2003; COCONI, 2010; OSMAN; DADDO, 2013; UNITED NATIONS, 2007; 2017; YIFTACHEL, 2006;
WHITE, 2014).
As reflexões de Said têm lastro nessa documentação e nelas o apartheid serve tanto
de analogia como de tipologia para enquadrar e condenar a ocupação israelense, além da luta
contra ele ter o papel de contraponto crítico e modelo a ser seguido, engajando também
israelenses progressistas. Desde “o jovem Said”, o colonialismo é a categoria central e o eixo
comum conectando essas situações análogas de discriminação, exploração, opressão e
segregação. Isso está explícito e foi reafirmado, constantemente, em toda sua trajetória
intelectual. A Palestina é enquadrada como uma questão estritamente colonial, portanto, de
opressão, que como tal deve ser criticada pelos intelectuais, muito além de mero engajamento
étnico, e daí os paralelos com o apartheid. A identificação da colonialidade comum tem
sentido crítico, mas também carrega um sentido de esperança, reconhecimento e inclusão do
outro na luta de libertação anticolonial, teorizada em “Cultura e imperialismo”. Trata‐se de
redimir o passado no presente e garantir um futuro de “reconciliação histórica” e coexistência
(SAID, 1994, p. 18‐19; VISWANATHAN, 2002, 426; 446). Apesar de sua aguçada capacidade
analítica, talvez Said tenha sido simplista em suas críticas a Arafat. É evidente a divergência
tática e estratégica, mas entre isso e a acusação de “colaboracionismo” há um fosso. Acaso
estivesse vivo, Said talvez reconsiderasse o papel da AP a partir da assinatura, na década de
2010, de diferentes tratados internacionais, sobretudo o Estatuto de Roma, acionando o
Tribunal Penal Internacional para avaliar os crimes cometidos por Israel, o que pode o
deslegitimar e isolar, assegurando a vitória no plano moral.
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