O Direito Dos Animais
O Direito Dos Animais
O Direito Dos Animais
Cass R. Sunstein2
Professor de Filosofia do Direito na Faculdade de Direito e Departa-
mento de Ciência Política na Universidade de Chicago.
Email: [email protected]
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animals are not means to our ends, human control can be compatible
with a decent life for them.
Keywords: Animal wellfare, anticruelty law, law enforcement, animal
property.
Sumário: 1. Cães, gatos e postulados - 2. O que o direito dos animais
poderá acarretar - 3. Seriam os animais propriedade? - 4. Quais ani-
mais têm direitos? - 5. Conclusão – 6. Notas de referências.
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possíveis, e explorar quais as questões que divergem entre as pes-
soas sensatas. Desta forma, tento oferecer uma espécie de cartilha
para debates atuais e futuros. O terceiro objetivo é defender uma
posição particular sobre os direitos dos animais, uma posição que,
como Bentham, coloca os holofotes diretamente sobre as questões
do sofrimento e do bem-estar.9 Esta posição requer a rejeição ou a
limitação de algumas das reivindicações mais radicais dos defenso-
res dos direitos dos animais, especialmente aqueles que enfatizam
a “autonomia” dos animais, ou aqueles que negam qualquer con-
trole humano e uso dos animais. Mas a minha posição tem impli-
cações radicais próprias. Ela sugere fortemente, por exemplo, que
deve haver uma extensa regulação da utilização de animais em en-
tretenimento, experiências científicas e na agricultura. Ela também
sugere que há um forte argumento, em princípio, para a proibição
de muitos usos atuais dos animais. Na minha opinião, esses usos
podem muito bem ser vistos daqui a cem anos, como uma for-
ma de barbárie inconcebível. A este respeito, penso que Bentham
e John Stuart Mill não estavam errados ao fazer uma analogia entre
os atuais usos dos animais com a escravidão humana.
A. O status quo
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Se levadas a sério, disposições como estas fazem muito para
proteger os animais do sofrimento, ferimentos e morte prema-
tura. Mas os direitos dos animais, como reconhecido pela lei esta-
dual, são nitidamente limitados, por duas razões principais.20 Em
primeiro lugar, a implementação só pode ocorrer através de ação
penal pública. Se cavalos e vacas estão sendo agredidos e maltra-
tados em uma fazenda local, ou se galgos são forçados a viver em
gaiolas pequenas, a proteção só virá se o promotor decidir acusar.
Claro que os promotores têm orçamentos limitados e a proteção
dos animais raramente é para eles uma prioridade. O resultado é
que as violações da lei estadual ocorrem todos os dias. As proibi-
ções contra crueldade são nitidamente diferentes, a este respei-
to, com a maioria das proibições protegendo os seres humanos,
que podem ser aplicadas tanto através de ação penal pública
quanto privada. Por exemplo, as proibições de assalto e roubo po-
dem ser asseguradas através de processos criminais, promovidos
por funcionários públicos, mas também por cidadãos lesados, que
agem diretamente contra aqueles que violaram a lei.
Em segundo lugar, as disposições da lei estadual contra cruel-
dade contém exceções extraordinariamente grandes. Elas não proí-
bem a caça e, em geral, não a regulam de uma forma que proteja os
animais contra o sofrimento. Normalmente, elas não se aplicam ao
uso de animais para fins medicinais ou científicos. Em larga escala,
elas não se aplicam à produção e uso de animais como alimento.21
A última isenção é também a mais importante. Cerca de dez bi-
lhões de animais são mortos para fins alimentícios anualmente nos
Estados Unidos. De fato, 24.000.000 de galinhas e uns 323.000 porcos
são abatidos a cada dia.22 As práticas cruéis e abusivas geralmente
envolvidas na pecuária contemporânea são, em grande parte, não
regulamentadas a nível estadual.23 Já que a esmagadora maioria
dos animais são produzidos e utilizados para a alimentação, a co-
bertura das leis contra crueldade é extremamente limitada.
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do que a lei realmente diz. Ou talvez isto signifique uma utilização
desprezível dos instrumentos do sistema jurídico em geral. Talvez
outros problemas tenham mais prioridade. Se estes são riscos reais,
a melhor resposta seria não proibir essas ações, mas fazer com
que aqueles que interponham ações frívolas sejam condenados a
pagar os honorários dos advogados dos réus. É difícil defender a
tese de que a crueldade ou abuso de animais, quando ocorrem, te-
nham prioridade tão baixa que não devam ser dirigida a todos. É
claro que haveria problemas em decidir sobre a identidade dos re-
presentantes e em escolher as pessoas que iriam selecioná-los. Mas
ainda não estamos em território especialmente controverso. Muitos
daqueles que ridicularizam a ideia dos direitos dos animais costu-
mam acreditar em leis contra crueldade e deveriam apoiar forte-
mente os esforços para assegurar que essas leis sejam efetivamente
aplicadas.
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isso? Em parte por causa de pura ignorância, por parte da maioria
das pessoas, sobre o que realmente acontece com os animais (por
exemplo) na agropecuária e na experimentação científica. Estou
confiante de que uma regulação bem maior poderia ser exigida se
as práticas atuais fossem amplamente conhecidas. Em parte, a po-
lêmica é produto do poder político de poderosos grupos de inte-
resses que resistem intensamente a regulamentação. Mas questões
legítimas podem ser levantadas sobre estas estratégias regulatórias,
por uma razão simples: os interesses legítimos de animais e os in-
teresses legítimos dos seres humanos estão em conflito em algumas
destas áreas. Aqui, como em outros lugares, uma regulamenta-
ção adicional seria custosa e trabalhosa. A regulamentação de ex-
periências científicas em animais pode levar a menos experimentos
- e, portanto, redução do progresso científico e médico. Se fazen-
das forem reguladas, o preço da carne vai aumentar e as pessoas
irão comer menos carne. Por isso, é necessário ponderar o ganho
de bem-estar animal contra os danos aos seres humanos. Se a
saúde dos seres humanos puder ser seriamente comprometida
pela regulamentação de experimentos em animais e da agrope-
cuária, existirá razão suficiente para se engajar em algum tipo de
equilíbrio, antes de apoiar esse regulamento.
Qualquer equilíbrio deve depender, em parte, de valores - de
quanto peso devemos atribuir aos interesses relevantes. No mí-
nimo, eu sugiro que o sofrimento e os danos aos animais devem
contar, e que quaisquer medidas que impliquem sofrimento e da-
nos devem ser convincentemente justificadas. O lucro meramente
hedônista fornecido por melhores cosméticos e perfumes não pa-
recem suficientes para justificar a imposição de sofrimento real.
Comer carne poderia muito bem cair na mesma categoria. Para fa-
zer uma avaliação sensata, seria útil saber muito sobre os fatos, não
apenas sobre os valores. Uma das disputas mais importantes no
domínio da experimentação científica é saber em que medida as ex-
periências relevantes realmente asseguram uma grande promessa
para o progresso da medicina. Se estamos falando de perfumes, a
argumentação para a liberação da imposição de sofrimento aos
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D. Eliminando práticas corriqueiras, inclusive a
ingestão de carne
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E. A questão da autonomia animal
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ameaçadas de extinção, dão um bom tratamento aos animais, e têm
uma função importante (tanto para animais não-humanos como
para os seres humanos) de educar as pessoas sobre a natureza e o
valor dos animais.
Na verdade, poderíamos imaginar que muitos leões, elefantes,
girafas e golfinhos, de fato, teriam uma vida melhor com a ajuda
humana, mesmo que limitados, do que em seus próprios habitats.
Eles não são escravos, mas eles estão, em certo sentido, presos.
Se sua vida, todavia for boa, fica difícil ver que tipo de resposta
poderia ser dada por aqueles que acreditam na autonomia animal.
Talvez os defensores da autonomia discordem dos fatos, e não da
questão teórica, e pensem que é altamente improvável, na maioria
dos casos, que os animais silvestres possam ter uma vida decente
sob o controle humano. Eu não acredito que eles estejam corretos
sobre os fatos. Em qualquer caso, o pedido de autonomia animal
deve, no final, depender de uma avaliação do que vai permitir aos
animais uma vida boa.
Eu não respondi a essa questão complexa aqui. Certamente os
animais, tanto domésticos como silvestres, deveriam ser capazes
de fazer muitas escolhas por conta própria. Igualmente certamen-
te, é legítimo interferir na autonomia dos animais, se a interferên-
cia puder ser justificada no interesse dos próprios animais ou de
terceiros vulneráveis. Para os seres humanos, a escravidão é ina-
ceitável, em parte porque os seres humanos não podem ter uma
vida genuinamente decente se eles estão permanentemente sujeitos
à vontade dos outros, e isso é por causa do tipo de criatura que é
um ser humano. A este respeito, muitos animais não-humanos são
diferentes; eles podem ter uma vida decente, ou vidas muito boas,
mesmo que estejam sujeito a um controle externo (desde que o
controle seja realizado em benefício dos seus interesses). Mas estes
são breves comentários sobre um assunto difícil, que eu não tenho
a pretensão de ter resolvido aqui.
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dos conforme os desejos do proprietário; a lei já proíbe a crueldade
e negligência. A propriedade é apenas um rótulo, conotando um
certo conjunto de direitos e também de deveres, e sem saber um
pouco mais, não podemos identificar esses direitos e deveres. Um
estado pode aumentar drasticamente as proibições existentes con-
tra a crueldade e a negligência sem transformar animais em pesso-
as, ou transformá-los em algo diferente de propriedades. Um esta-
do pode fazer muito para evitar o sofrimento animal, sem proibir
a posse de animais. Poderíamos até mesmo conceder aos animais o
direito de mover ações sem insistir que os animais são, em algum
sentido geral, “pessoas”, ou que eles não são propriedades. Um
estado certamente poderia conferir direitos sobre uma área into-
cada, ou uma pintura, e permitir que as pessoas instaurarem um
processo em seu nome, sem, portanto, dizer que essa área e que
essa pintura não podem ser possuídas. No contexto dos direitos
das crianças, a afirmação de que “as crianças não são propriedade”
é universalmente aceita, mas parece não ter acrescentado nada ao
debate sobre a forma como os pais podem tratar as crianças.
Quais são, então, as verdadeiras questões no debate sobre os
animais como “propriedade”? Talvez seja necessário destruir a
ideia de propriedade, a fim de fazer, simples e ao mesmo tempo,
uma declaração de que os interesses dos animais são relevantes, e
têm peso independente dos interesses dos seres humanos. A retó-
rica pode ser importante, e na minha opinião, a ideia de “proprie-
dade” se encaixa muito mal com a forma como as pessoas devem
pensar, em reflexão, sobre outras criaturas vivas. Nesta perspecti-
va, o debate sobre se os animais são propriedades é realmente um
debate sobre as questões mais específicas discutidas acima. Se nos
livrarmos da ideia de que os animais são propriedade for útil para a
redução do sofrimento, então devemos nos livrar dessa ideia.
4. Quais animais têm direitos?
Existe uma enorme pergunta como pano de fundo. As pessoas
não vêem todos os animais da mesma maneira. Eles podem concor-
dar que os seres humanos devem proteger os interesses dos cães,
gatos, cavalos e golfinhos; é improvável que eles pensem o mesmo
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para cães e cavalos. Animais com capacidades cognitivas menos
desenvolvidas merecem direitos de um tipo diferente. Não existe
um modelo aqui. Minha sugestão é apenas que os direitos que os
animais merecem devem estar relacionados às suas capacidades.
5. Conclusão
6. Notas de referência
1
Tradução de Heron José Santana Gordilho, Professor Doutor de Direito
Ambiental da UFBA. Artigo publicado originalmente University of Chi-
cago Law Review, Winter 2003
2
Sou grato a Emily Buss, Gary Francione, Martha Nussbaum Richard
Posner Janet Radcliffe Richards, David Wolfson pelos valiosos comen-
tários em um projeto anterior. Alexandra Baj prestou assistência valiosa
à pesquisa.
3
Immanuel Kant, Palestras sobre Ética 240 (Hackett 1963) (Louis Infield
trans).
4
Jeremy Bentham, Os Princípios da Moral e Legislação 310-11 n 1 (Pro-
metheus, 1988).
5
Ver John Stuart Mill, Whewell sobre a Filosofia Moral, de John Stuart
Mill e Jeremy Bentham, O Utilitarismo e Outros Ensaios 228, 252 (Pen-
guin 1987) (Alan Ryan, ed) (traçando paralelos entre os argumentos
apresentados contra a declaração de Bentham e argumentos dos pro-
prietários de escravos nas Américas).
6
John Hooper, do Parlamento alemão vota para dar aos animais Direitos
Constitucionais, The Guardian (Londres) 2 (18 de maio de 2002) (vota-
ção 543-19 a favor da cláusula com 15 abstenções).
7
Ver nota 22.
8
Ver John Keilman, Impresso sobre Alimentos varejistas da Agricultura
Humanitária; Indústria, Ativistas Alcançando Alguns fornecedores, Chi
Trib 9 (26 de junho de 2002) (descrevendo os esforços de grupos comer-
ciais para desenvolver e implementar diretrizes destinadas a promover
a melhoria do tratamento de animais pelos produtores de alimentos).
9
Ao colocar o foco aí, eu não quero resolver uma questão difícil: se um
animal que está sujeito a uma vida de privações e se adapta inteiramen-
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te ao que é a vida, é, no entanto a ser tratada de uma forma que viola os
seus direitos. Em breve, acredito que como um ser humano, um animal
que se adapta à privação tem um motivo razoável para reclamação, se a
privação significa que sua vida é muito pior do que poderia ser. Mas eu
não posso discutir essa questão aqui.
10
Ver Gary L. Francione, Introdução ao Direito dos Animais: O Seu Filho
ou o Cão? 2, 73 (Temple, 2000).
11
Ver NY Agr e Mkts Lei § 359 (1) (1991 McKinney e Supp 2002).
12
Ver ID em § 359 (2).
13
Ver ID no § 356.
14
Ver ID no § 355.
15
Ver ID no § 353.
16
Ver Estado v Groseclose, 67 Idaho 71, 171 P2D 863, 864-65 (1946) (sus-
tentando que um estatuto que considere falha dar “o devido cuidado e
atenção” para os animais como um delito não era por vaga nula); Griffith
v Estado, 116 Ga 835, 43 SE 251, 252 (1903) (sustentando que a condena-
ção poderia ser sustentada mesmo que a crueldade para com o animal
for resultado de omissão intencional ou negligência); Commonwealth v
Lufkin, 89 de Massa (7 Allen) 579, 581 (1863) (afirmando que a intenção
maliciosa não é necessária para encontrar a crueldade animal); Reynol-
ds v Estado, 569 NE2d 680, 682 (Ind App 1991) (defende a convicção de
contravenção por falta de habitação adequada, alimentos e água para
uma variedade de animais).
17
Ver NY Agr & Mkts Direito § 353. Veja também Estado v Goodall, 90 ou
485, 175 P 857, 858 (1918) (defendendo uma condenação por contraven-
ção por sobrecarregamento, equitação e condução de um cavalo com
uma ferida ulcerada em sua parte traseira); Estado v Prince, 77 NH 581,
94 a 966 (1915) (defendendo a constitucionalidade de uma lei estadual
que proíbe a venda ou troca de animais inaptos para o trabalho); Com-
monwealth v Wood, 111 Missa 408, 410 (1873) (afirmando que a conde-
nação é apropriada se o reu consciente e voluntariamente sobrecarregou
seu cavalo; onde a intenção de tortura ou abuso não foi necessária).
18
Ver Código Penal Art.§ § 597 (b), 599b (West 1999).
19
Código Penal Art. § 599b.
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27
Note, no entanto, que no contexto humano nossas intuições morais pa-
recem ser exatamente o oposto. Eu não posso resolver essa incongruên-
cia neste ensaio.
28
Para uma discussão geral, ver Steven M. Wise, Rattling o Cage: Toward
Direitos Legais para animais (Perseus 2000).
29
Ver ID em 267.
30
Observe que as crianças são confinadas.
31
Ver Steven M. Wise, Drawing the Line: Science and the Case for Animal
Rights 236 (Perseus 2002) (“Como as mentes dos animais não-humanos
se assemelham cada vez menos as mentes dos humanos pré-escolares,
crianças e bebês, ... o argumento para os direitos de qualidade e igual-
dade enfraquecem. “)
32
Se um animal leva doenças, a questão é diferente, caso em que a expul-
são pode ser visto como uma questão de auto-defesa.