Gilles Deleuze Uma Vida Filosofica 8573261668
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ndó o círculo
autorizados),
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Eric Alliez (org.)
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marcadas pelo sentimento de viva urgência desse pensamen- GILLES
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to dissidente.
DELEUZ
"automovimentos" envolvendo a identidade contemporânea
de uma certa idéia da filosofia.
UMA VIDA
FILOSOFICA
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Éric A!!iez
Coordenação da tradução dé
Ana Lúcia de Oliveira
coleção TRANS
ag 192523
3N 85-?gab- lbb-8
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88573"26 1660'
editoral 134 editoral 134
Evitar a dupla ignomínia do erudito e do coleção TRANS
familiar. Conferir a um autor um pouco des-
sa alegria, dessa força, dessa vida amorosa e
política, que elesoube dedicar, inventar...
A célebre frase de .Deleuze definindo o
duplo requisito exigido para se escreverso-
bre um autor pode servir de epígrafe a este
livro coletivo, publicadona França em 1998,
fruto do Colóquio Gilles Deleuze, que acon-
teceu no Brasil (Rio de Janeiro e São Paulo,
10 a 14 de junho de 1996) com o apoio do
Colégio Internacional de Estudos Filosóficos
Transdisciplinares.
Que esteColóquio tenha ocorrido no Bra-
Eric Alliez (org.)
b
sil não é mero acaso. Porque a seu tempo ma
nifesrou-se a extraordinária vitalidade do pen-
samento deleuzeanonestepaís; mas também,
e sobretudo, nas intervenções e nas discussões GILLES DELEUZE:
UMA VIDA FILOSÓFICA
que se seguiram, este Colóquio testemunhou
uma compreensão bastantesingular das in-
serções rezzls da filosofia contemporânea na-
quilo que constitui sua única tarefa: pensar
o presente.
É neste espírito que os 34 colaboradores
Coordenação da tradução
nos fazem partilhar da profunda simpatia in- Ana Lúcia de Oliveira
telectual que os liga à z/ida#/osóPca de Gilles
Deleuze. Suas intervenções estão agrupadas
em quatro seções: "Variações filosóficas",
História e devir da filosofia ", "Política e clí-
nica", "Variedades estéticas" . Todos os gran-
des temas do pensamento deleuzeano serão
retomados em ação: da filosofia como cr/a-
não de conceffos, introduzindo uma aborda-
gem inédita na história da filosofia, à noção
de uma /manência aliso/afa como "vertigem
filosófica", que equivale à mobilização de
uma nova inteligência política; das condições
c algas e c/!'Migas
de uma filosofia do aconte-
cimento ("dizer o acontecimentoe não a es-
sência") à necessáriaaproximação da filoso-
fia com relação às ciências e às artes..
editoraH34
Pois, com Deleuze, trata-se sempre de ex-
perimentar as potênciasde uma nova política
EDITORA 34 GILLES DELEUZE:
Editora 34 Ltda.
UMA VIDA FILOSÓFICA
Rua Hungria, 592 Jardim Europa CEP 01455-000
São Paulo - SP Brasil Tel/Fax (11) 816-6777 [email protected]
Apresentação 11
G François Wahl
Catalogação na Fonte do Departamento Nacional do Liv DA VIDA COMO NOME DO SER
IFundação Biblioteca Nacional, RJ, Brasil) Alain Badiou 159
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Alliez, Éric '=
A IMANÊNCIA ABSOLUTA
A41g Gilles Deleuze: uma vida filosófica/ Éric
>
Giorgio Agamben 169
Alliez(org.); coordenação da tradução de Ana
Lúcia de OliveÍ?a. -- São Pauta: Ed. 34, 2000 a
g
560 p. (Colação TRANSE
3
ISBN 85-7326-166-8
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0 TRANSCENDENTALE SUA IMAGEM ESQUIZOANÁLISEE AI nROPOFAGIA
Gérard Lebrun ......-.-''''''''''''''''''. 209 Suely Rolnik 451
DELEUZE E SUA SOMBRA 0 OS SIGNOS E SEUS EXCESSOS. A CLÍNICA EM DELEUZE
Scarlett Marton 235 Joel Birman ........ 463
SOBRE O BERGSONISMO DE DELEUZE HETEROGENEIDADE DELEUZE-LACAN
Éric Alliez .................................................. 245 Eduardo A. Vidal .............. 479
DO CAMPO TRANSCENDENTAL AO NOMADISMO
OPERÁRIO WILLIAM JAMES
David Lapoujade 267 Quarta Parte
A PERCEPÇÃO EM SARTRE E Dn.EUZE
VARIEDADES ESTÉTICAS
Véronique Bergen 279
A IDÉIA DE "PLANO DE IMANÊNCIA" A PROPÓSrro OE UM CURSO OO DIA 20 0E MARÇO OE 1984
307 0 RiTORNELO E O GALOPE
Bento Prado Jr. 495
Pascale Criton ..........
ENTRE DELEUZE E WHITEHEAD
323 EXISTE UMA ESTÉ'nCA OEI.EUZEANA?
lsabelle Stengers
Jacques Ranciêre 505
MICHAUX, DELEUZE
Terceira Parte Raymond Bellour .......... 517
POLÍTICA E CLÍNICA BARROCOLÚDIO DELEUZEANO
Haroldo de Campos 525
DELEUZE E O POSSÍVEL (SOBRE O INVOLUNTARISMO O CINEMA DO PENSAMENTO. PAISAGEM, CIDADE E
NA P01.ÍTICAI CYBERCIDADE
François Zourabichvili .... 333 André Parente .. 535
A SOCIEDADE MUNDIAL DE CONTRAI,E
CINEMA DELEUZE
Michael Hardt 357 545
Julgo Bressane
OS DUALISMOSHOJE EM DIA
Fredric Jameson ...............-......-...................... 373
REVISITANDO "OS INTELECTUAIS E O PODER" Sobre os autores 549
Renato Jahine Ribeiro 385
EXISTE UMA INTELIGÊNCIA DO VIRTUAL?
John Rajchqan 397
CÓDIGO PRIMITIVO -- CÓDIGO GENÉTICO:
A CONSISTÊNCIA DE UMA VIZINHANÇA
Laymert Garcia dos Santos......-. 415
OS PRONOMES COSMOLÓGICOS E O
PERSPECTIVISMO AMERÍNDIA
Eduardo Viveiros de Castão .... 421
A maior parte das contribuições que compõem esta obra coleti-
va foram apresentadas durante o Colóquio Gilles Deleuze, organiza-
do no Brasil, no Rio de Janeiro e em São Paulo, em junho de 1996,
pelo Colégio Internacional de Estudos Filosóficos Transdisciplinares.
Este Colóquio teve o apoio do Ministério de Assuntos Estrangei-
ros, da Embaixada da França em Brasília, do Consulado Geral da
França no Rio de Janeiro, da DelegaçãoGeral da Aliança Francesa no
Brasil, do Colégio Internacional de Filosofia, da Universidade Estadual
do Rio de Janeiro, da Fo/ba de S. Pau/o e da Editora 34.
À primeira coletânea de textos, acrescentamos as intervenções dos
autores que não puderam se deslocar ao Brasil, assim como alguns ar-
tigos redigidos tendo em vista esta publicação.*
Primeiro pomo, de implicação da imagem deleuzeana do pen- Seguzzdoponto, ou segundaentrada: a questão da imanência
samento: como "vertigem filosófica" e como aquilo que está em jogo no traba-
Se o pensamento não é nada sem as forças efetivas que agem so- lho filosófico enquanto tal.
bre ele e as in-determinações afetivas que nos forçam a pensar, e nes- Será preciso lembrar o título do último texto publicado em vida
se sentido o pensar se dá no infinitivo (e não na primeira pessoado por Deleuze, "A imanência: uma vida. .."? Ele constitui uma espéciede
indicativos, esse infinitivo é do presente. No campo da filosofia, pen- testamentofilosófico, como que um diagrama que concentra o primeiro
sar é, no mesmo movimento, afirmar a identidade constituinte da fi- e o último pensamentosde Deleuze sobre uma imanência que convoca
losofia e da ontologia, e pâr essa ontologia como oncologia experimen- o transcendental para opâ-lo ao transcendente e a toda forma dada no
tal do presente. Produzindo efetivamente esse movimento, revestimo- campo da consciência, à transcendência do sujeito, assim como à do
nos do poder de pensar "de outro modo", sem fazer uso do conceito objeto. Uma imanência absoluta, ontológica, e não fenomenológica ou
como heterogênesedo ser no "automovimento do pensamento". Pois crítica, que impede de conceber o campo transcendental à imagem e se-
o que pode significar pensar, para um filósofo, senão criar os novos melhança do que se supõe que ele funda, e que, exprimindo sua de-
conceitos requeridos pela eicpe7'fê?zela
rea/, e não apenas possível (isto terminabilidade como uma vida singular em que a indeterminação da
é, abstrata), para dar lugar a novas experimentações da vida? Que se pessoa supõe a determinação pré-individual do singular, exclui também
possa, que se deva aqui evocar a idéia de um "Pensamento 68" e as- toda transcendência do ser ainda que imanente a uma subjetividade
sociar ao nome de Deleuze o de Foucault só desagradará àqueles que transcendental. . . Eu não poderia garantir que essa tese, em sua exigente
querem crer que os Acontecimentos se passam antes na cabeça dos radicalidade, seja compartilhada pelo conjunto dos participantes; mas
intelectuais... Daí, também, o tema do "fim da filosofia" ter sempre creio poder afirmar que todos reconheceriam que a questão da existência
provocado em Deleuze um risinho sarcástico, e sua alegada "ingenui- mesma de uma filosofia contemporânea é (re)colocada em jogo por esse
dade" metafísica ser a de um materialismo superior (ou materialismo salto em relação a todo cartesianismo epistemológico ou existencial.
especulativo)l cuja modernidade repousa -- de maneira muito clássi- Tampouco é indiferente ao nosso propósito que essa afirmação de uma
ca -- sobre a questão da produção do novo. Em suma, nada menos imanência absoluta envolva uma nova inteligência do político, ou do
pós-moderno do que a definição deleuzeana da filosofia como criação biopolítico, irredutível à noção tradicional de filosofia política.
de conceitos. .. Segue-seuma concepção da história da filosofia como
Te coiro e ú/limo ponto: a filosofia deleuzeanafunciona como um
"reprodução da própria filosofia", concepção na qual "a força de uma
operador de desencraz/ózmenfoda filosofia contemporânea diante de um
filosofia é medida pelos conceitos que ela cria, ou cujo sentido renova, mundo filosófico que, decerto, por muito tempo se acomodou à sua
divisão geo-histórica em dois blocos(fenomenológico e analítico), mas
1 0 Departamento de Filosofia da Universidade de Warwick acaba de orga- diz respeito igualmente às ciências e às artes, que recuperam sua plena
nizar um simpósio em torno dessa temática "materialista": DELEUZEGUATTARI autonomia de pensamento desde o momento em que a filosofia não é
& MIATTER j18-19 de outubro de 1997)- mais concebida a partir dos efeitos do domínio de uma re/loção sobre.
ILawrence Ferlinghettit)
O ARTIGO DA MORTE
É preciso sempre retornar a estemaravilhoso texto em que tudo
é dito, o último publicado por Gilles Deleuze, sob o título "A imanên-
cia: uma vida...". Voltar a estas linhas inspiradas, quase místicas, mas
de um misticismo ateu, nas quais, a propósito de Oar mz/f a/ Érfend
INosso amigo comum], de Dickens, da solicitude e do amor que cer-
cam um moribundo em si mesmo pouco estimável, escreve-se: "Há um
momento no qual o que se tem é apenas uma vida jogando com a morte.
A vida do indivíduo dá lugar a uma vida impessoale no entanto sin-
gular, que produz um puro acontecimento liberado dos acidentes da
vida interior e exterior, isto é, da subjetividadee da objetividade do
que acontece. 'lÍomo /anf m', do qual todos se compadecem e que
atinge uma espéciede beatitude"z.
Tudo é dito aí, já que os temas principais do pensamento de De-
leuze nele estão condensados e, de certo modo, nesse resumo expres-
sivo, nessa contração última, levados à suprema potência. Esses temas,
nós os conhecemos: a dispersão ou a elusão do sujeito, o "ego dissol-
vido" e o "eu rachado"; uma substituição, dessesujeito e mesmo de
uma individualidade ainda por demais maciça, por demais "molar",
de uma pessoa artificial, ou mesmo puramente alegórica, por "singu-
laridades" moleculares, moventes ou "nâmades", que se destacam de
simples: acreditar que a univocidade do ser excluiria a teoria das mul- se poderia, em um primeiro momento, dissociar realmente superfície
tiplicidades e das singularidades (bem mais central, de fato, na obra) é e simulacro. Mas no fim, e sobretudo na 34' série, as coisas parecem
construir seu próprio circuito, o que é perfeitamente legítimo, mas não mudar. O simulacro torna-se o objeto profundo, o abismo corporal,
coincide, de modo algum, com o labirinto deleuziano. Este, na verda- a organização primária, totalmente distinta da superfície metafísica,
de, não apenas sabe manter juntas essas duas teses,como também não dos acontecimentose do infinitivo incorporal li,S, 257)* . Nesse sentido,
suporta que sejam dissociadas sem perder todo sentido, demonstran- o simulacro não faz mais que imitar a fantasia, o primeiro representan-
do assim na própria obra a potênciada segundasíntesedisjuntiva. O do o risco de uma queda descstruturante no corpo, o segundo, a chance
segundo exemplo concerne o jogo da profundidade e da superfície. Acre- de uma construção da superfície metafísica. Entre essesdois extremos
ditar que a superfície é apenas superficial, ou confundir as Idéias com se sobrepõema altura lo ídolos e a superfícieparcial (a imagem) jtS,
a profundidade é, de imediato, ter perdido toda chance de encontrar 2S21.Daí resulta que, no .4nf/-Édlpo, simulacro vai se tornar um termo
em algum lugar um filósofo chamado Deleuze. Bem se vê, o maior ris- raro, evanescente,sempre aproximado de seu sentido de simulação: si-
co que Deleuze faz correr cm sua própria interpretação (além das ingenui- mulacrosdas pessoasprivadas (AE, 3 15)* *, simulacro de Êdipo, no qual
dades anarco-desejantes) diz respeito ao estatuto do liminar: estatuto se vê que simulacro perdeu toda chance de figurar o essencial(AE, 319).
do conceito, da univocidade, da superfície, dos simulacros, das sínteses. Antes de tentar compreender o que se passou, evoquemos rapé'
Uma dificuldade suplementarvem da própria evolução do pen- damente um segundo deslocamento sintomático. Ele diz respeito à impor-
samento nessa obra. É verdade dizer, em certo sentido, que todo De- tância e ao lugar de Lewis Carroll. Fundamental no início de Lógica
leuze já está em Difere zça e aferição, mas à maneira de um germe, do senado, eleperde subitamente importância desde seu primeiro con-
de um ovo intenso. Aqui realizam-se dobras inconcebíveis, apropria- fronto com Artaud (l,S, 102-3). "Jabberwocky é obra de um aproveitador
das para romper qualquer outra filosofia que não seja larvar, rever- que quis saciar-se intelectualmente, ele, farto de uma refeição bem ser
sões de 180 graus que dão a essestextos uma feição típica, um pouco vida, saciar-se com a dor de outrem... É a obra de um homem que co-
monstruosa lo monstro é o que vai além de suas determinações, move- mia bem, e isso se sente em sua escritura." Deleuze comenta: Carroll é
se em si incessantemente) "fresquinha", saída do ovo, como um em- o pequeno perverso da literatura. A reversão de situação será tal que
brião de tartaruga que acaba de conseguir a dobra em ângulo reto de no fim da 13' série, Deleuze poderá dizer: "para todo Carroll, não da-
suas vértebras cervicais. Mas é também verdadeiro dizer que, apesar ríamos uma página de Antonin Artaud" . Mestre das superfícies e agri-
dessa evolução interna, da qual salientaremos dois aspectos, toda a mensor da lógica do sentido, Carroll cederá terreno para a profundi-
teoria já está inteiramentedesenvolvida em Difere?zçae rePeffção. Isso dade do corpo vital e enfermo e para a aventura nâmade de Artaud, de
significaria que viragem do pensamento, progresso e aprofundamento modo que o Alzfi-Édito poderá notar: "Carroll ou o covarde das Belas
são apenas aparentes? Letras!". Inversamente, Artaud ganha uma figura gloriosa e durável de
Considere-se a viragem efetuada sobre a idéia do simulacro. Di- personagem conceitual, incontornável, bastião de uma indissociabilidade
ferença e repef/çãofaz do simulacro um sistema no qual o diferente entre o real mais encarnado, e a aventura mais ideal, a que experimen-
se relaciona com o diferente pela própria diferença IOR, 335) '. Tal siste- ta a virgindade de um deserto. Novamente, o que aconteceu?
ma junta o SPaflzzm,as séries disparatadas, o precursor sombrio, as Acreditamos que não se trata nem de recuos, nem de renegações,
ressonâncias e movimentos forçados, os sujeitos larvares: como dizer tampouco de hesitação sobre o plano de conjunto. Se o simulacro ou
melhor seu lugar decisivo na obra? Continua-se a encontrar essa valo- Lewis Carroll, ligados evidentemente pela necessária emergência da su-
rização do simulacro nos apêndicesda l.ógica do sezzfido.Todavia, o perfície, estão a princípio tão em vista, e terminam apagados, evanes-
colorido é aqui nietzschiano, polêmico, voltado para a reversão do centes, é porque a própria idéia de superfície, por demais ambígua,
platonismo. O próprio texto de Lóg/cózdo sezzffdoé mais amt)íguo. Não
* Logíqz/ed sons, Paras,Minuit, 1969, p. 257 (doravante i.SI. (N. do E.l
* Di/7ére zce ef rí$éffríon, Paria, PUF, 1 968, p. 335 (doravante DR). (N. do E.) * * L'afzff-(Edlpe, Pauis, Minuit, 1973, p. 315 (doravante .4E). (N. do E.)
30/dem, p. 285
l
A obra de Deleuze não se constitui como um bloco único desde
o seu começo Em particular, se é verdade que Diferença e repetição e
l,ógfca do se/zffdorepresentam momentos maiores no conjunto do seu
pensamento, nem por isso estedeixou de mudar "radicalmente" (num
sentido que se deve precisar) a partir do Anil-Éd/po. Segundo o pró-
prio Deleuze há um período antes e um período depois do Anil-Édl-
po: por maiores que sejam as remodelações conceituais das obras pos-
teriores, inaugurou-se aí um certo regime de pensamento que caracte-
rizará definitivamente "a filosofia de Deleuze-Guattari"
Procuraremos aqui definir esse regime num ponto particular: a
noção de corPO sem órfãos, que surge na Lógica do sentido com um
estatuto ainda ambíguo, oscilante, quase apagado, tomará a impor-
tância que se sabe no Ánfi-Édlpo e em M// P/afãs. E seu abandono final
por Deleuze em O que é a /i/osoÁiai não é certamente tão decisivo
quanto foi seu desenvolvimento naquelas duas obras: o que a noção
tinha instaurado e permitido -- nomeadamente o pensamento da ima-
nência -- estava adquirido. Outros conceitos se encarregariam em
seguida de a substituir.
Levantaremos pois a questão: o que é que na L(igica do sezzfldo
permanece problemático e por resolver a tal ponto que Deleuze evoca
no fim do livro um certo insucesso de sua (e talvez de toda a) empresa
filosófica? E de que o .Anlí-Édfpo e as obras seguintes representam pre-
cisamente a solução -- mas uma solução que desloca e transforma os
dados do problema jem particular, a atitude para com a psicanálise)?
11
70 José Gil 71
Uma reviravolta no pensamento de l)eleuze
mento fluido ou líquido insuflado, o segredo não escrito de tema mis- Assim vê Deleuze o corPO sem órgãos, na Lógica do sentido: ainda
tura aviva que é como 'princípio do Mar', por oposição às misturas como um corpo vivido, sem superfície, com órgãos disjuntos ou sem
passivas das partes encaixadas"iÓ. órgãos, mas sempre no informe da profundidade do corpo E, se o
Assiste-se aqui ao despontar do que vai ser, noutros livros, o corPO corpo glorioso, com dimensão positiva e ativa do c07POsem órgãos,
sem órgãos como p]ano de consistência. luas, por enquanto, [)e]euze como corpo tónico de forças vitais, esboça já o que será o conceito de
não destaca nem define claramente o conceito de c07POsem órgãos. corpo sem órgãos no Anui-Édlpo, é ainda como pólo de uma dualida-
Pelo contrário, este parece definitivamente compatível com a teoria das de cujo oposto complementar é o corpo fragmentado e vazio, passi-
series. vo. dos valores fonéticos. Deleuze tenta ainda criar duas séries: um
O problema é múltiplo, e desenvolve se em vários níveis: 1) Como infra-sentido, um Unferslzzn, distinto, mas complementar do /zon-sezzs
restaurar a grande maquinaria de produção de sentido à superfície, da superfície.
quando esta foi engolida pela profundidade última do co/PO sem ór- Mas esta não passa do esboço de uma tentativa, logo malogra-
gãos esquizofrênico?Como é que o esquizofrênicoproduz sentido? da: o fim do capítulo(13' série)afirma a diferençairredutívelentre
Como nelecompreendera "subida à superfície", se toda superfíciefoi Lewis Carroll e Antonin Artaud, entre as "séries de superfície" (co-
destruída? Como conceber, pois, uma outra superfície, corno série mer-falar) do primeiro e os "pólos de profundidade" do segundo; entre
complementar da profundidade esquizofrênica? E o que representa,re- as "figuras do no/z-sons"à superfície,que dão sentido, e os "mergu-
lativamente à superfície e ao sentido, a linguagem-ação, não articula- lhos de nofz-sefzs"que arrastam e engolem o sentido num infra-senti-
da, das palavras-sopro, das palavras-ações dos blocos fonéticos que o do ( Unfersi#zn);nem o tempo do acontecimento, o aios ilimitado, tem
esquizofrênico constrói? 2) Tratar-se-á ainda de séries de acontecimen- . alguma coisa a ver com "o presente físico dos corpos" em que os pó-
tos de sentido que, no fundo, se oferecem apenas à decifração (ou à los se opõem.
interpretação"), ou de qualquer coisa mais, que ultrapassa o sentido Nessa irredutibilidade,Deleuzetoma partido: "Por todo Carroll,
e que diz respeito ao agir, ao produzir? Quer dizer: não já uma her- não daríamos uma página de Antonin Artaud; Artaud é o único a ter
menêutica ou mesmo uma lógica do sentido, que despreza afinal as sido [sic] profundidade absoluta na literatura, e a ter descoberto um
ações e paixões dos corpos" em benefício da quase-causa do efeito corpo vital e a linguagem prodigiosa dessecorpo, à custa de sofrimento,
incorporal do acontecimento,mas uma física ou uma antologia que como ele diz. Ele explorava o infra-sentido, hoje ainda desconhecido" i7
dê conta da emergênciado sentido a partir das forças violentas, ex- Como dar conta do infra-sentido, numa teoria do sentido como
tremamentepoderosas, que percorrem a profundidade do corpo es- acontecimento de superfície? O seguimento da l,ógica do sezzffdoten-
quizofrénico? 3) Num plano mais geral, é o problema da clínica/críti- tará resolver esse problema. Mas, por ora, desenha-sejá uma crítica à
ca que se levanta, com uma agudeza derradeira: como fazer crítica sem psicanálise, incapaz de entender os jogos de corpo e de forças do es-
encontrar necessariamente a clínica -- e esta encontra necessariamente quizofrênico, sempre pronta a reduzi-los a significantesconhecidos da
a vida (que Deleuze exprime ainda, às vezes, em termos fenomeno- teoria, eu, fantasma, pulsão narcísica etc.: "Uma má psicanálise tem
lógicos, o "vivido", a "experiência vivida" de um indivíduos --, sem duas maneiras de se enganar, ao julgar descobrir matérias idênticas que
esbarrar com aquilo mesmo com que esbarra o esquizofrênico quan- se encontram necessariamenteem toda parte, ou formas análogas que
do joga com as palavras e a língua, terror, dor de órgãos para além constituem falsas diferenças. Assim, ao mesmo tempo deixa-se esca-
do imaginável IDeleuze cita Artaud: "0 ânus é sempre terror, e não par o aspecto clínico psiquiátrico e o aspecto crítico-literário" iõ
admito que se perca um excremento sem o dilaceramento de aí se perder Falha-se duplamente: rebate-se a clínica sobre a literatura, e re-
também a alma"; ou: "Temos no dorso as vértebrascheias, trespas-
sadas pelo prego da dor" etc.)?
is l,S, P. 1 14
ió l,S, P. 109. 18LS, p. 113
i9 LS, P. 114.
20Cf. l.S, p. 150, p. ex. zi l,S, P. 289
76 José Gil 77
Uma reviravolta no pensamento de Deleuze
de intensidades, é o único real, aquelas são os seus modos, como pla- autista" instaura ao mesmo tempo o plano de imanência, é porque o
nos dentro de um só plano, ou como acontecimentos de um só Acon- sujeitocrítico (autor do A?zli-Édito) se implica elemesmo na imanência:
tecimento, por onde se comunicam todos os acontecimentos, como o pertence ao plano e nele se produz. O que significa: 1) que o movi-
concebia a Lógica do se?zlfdo.O "Êdipo" circula através de todos os mento da crítica será doravante um movimento de criação de concei-
planos (de desejo, de trabalho, de produção, de poder) desse único tos. Com efeito, o movimento que traça o plano não segue uma lógi-
plano. O paralelismo entre a produção dose)antee a produção capi- ca discursiva (de conceito a conceito, formalmente), mas uma lógica
talista (e as respectivas formas de repressão) tornou-se inerência, l-er- das potências. A imanência tFaz necessariamentea criação de concei-
so e reverso de um mesmo plano. tos, porque a crítica já não possui referentestranscendentes(essências,
Um segundo efeito nasce da própria operação que faz surgir a valores), não avaliando senão pelas intensidades que a levam e que ela
coincidência: ao fazer convergir os conceitos críticos que trabalham cria. Está pois condenada à criação de conceitos, segundo uma lógica
nos dois planos Ido desejo e do campo social), Deleuze é levado a das intensidades. Disso Á/zfi-Édlpo, À4i/P/afãs e O que é a P/osoPa?
implica-los e a implicar-se ele mesmo num mesmo movimento de pen- constituem exemplos maiores. 2) Que a própria noção mesmo de con-
samento (da imanência). Primeiro, a coincidência dos planos ocorre ceito muda, assim como a imagemdo pensamento.Doravante o con-
ao mesmo tempo que a passagemdo corpo vazio ao corpo glorioso ceito não se definirá pelo seu regime discursivo, mas por seu poder de
ou pleno: ao recusar ver no esquizo um farrapo autista, Deleuze e Guat- criação-ação. A propósito de sua obra e nomeadamente de sua crítica
tari encaram-no como uma espéciede falsa realidade criada pelas ins- à psicanálise antes do ÁnfJ-Édlpo, Deleuze diz: "Eu trabalhava uni-
tituições psiquiátricas, as quais por sua vez resultam de um poder so- camente com conceitos, e de maneira ainda tímida"27. E Guattari, na
cial e económico; mas que, por seu turno, resultam de um certo regi- mesma entrevista, falando do A/zfl-Édlpo: "Em nosso livro as opera-
me de desejo. A crítica da idéia de "farrapo autista" implica portanto ções lógicas são também operações físicas"28: tal como as palavras do
a crítica de todo o sistema de poder sobre o social; não somente da esquizofrênico.
ideologia psicanalítica mas de sua prática e de sua teoria. Crítica que Vai-se buscar o modelo de trabalho do conceito na idéia esquizo
não se poderia exercer sem adotar o único ponto de vista oposto ao da ação das palavras; e a imanência, tal como é pensada no Golfo sem
regimedo desejo reprimido (o do corpo esquizo vazio): tomar-se-á par- órgãos, dela deriva naturalmente.
tido pelo regime pleno do c07Po sem órgãos. Isso equivale a quebrar Claro que Deleuze-Guattari não pensam a ação do conceito à
com todas essasformações do desejo e do poder repressivo e entrar maneira dos esquizofrênicos (a enunciação como uma ação material
por si mesmo num devir-doido, num devir-esquizoglorioso -- e deli- e corporal do sentido: como uma ação mágica). Que significa então o
rar a história inteira. Num certo sentido, é o que fazem Deleuze e pensamento como "operação física" ?
Guattari no Anil-Edlpo: produzem-se a si mesmos enquanto sujeitos O pensamento deixa de evoluir em sua esfera própria, isolada,
intensivos sobre um corpo sem órgãos de intensidade = 0, segundo a afastada de vida, e torna-se um fluxo no corpo sem órgãos (plano de
descrição de certas páginas admiráveiszÓ. consistência); desposa agora o movimento das intensidades que nele
Ao transformar o corpo vazio em corpo pleno, Deleuze e Guat- circulam: movimento, que ele descreve, do desejo ou do capital.
tari obtêm a convergência dos planos (em que se desenvolve a crítica Desposar o movimento, prolonga-lo ao extremo, descrever sua
da repressão) num só plano, que os contém todos. Assim eles criam o trajetória, adivinhar o que supõe, experimentar devires(-- mulher, --
plano de imanência do co/PO sem órgãos em que eles próprios se en- animal, -- mineral) sempre na superfície do corPO sem órgãos: eis
contram incluídos. o novo movimento de pensamento no .Anil-Edlpo e nas obras seguin-
Se a operaçãocrítica da concepçãodo esquizocomo "farrapo
27Pozflpar/ers,Paris, Minuit, 1990, p. 24 IdoravantePI
zó Cf. AE, pp. 25-9. 28P, P. 26.
80 81
José Gil Uma reviravolta no pensamento de Deleuze
à volta de órgãos segundo limiares de intensidade. Toda a descrição corPOsem órgãos. [...] Nada aqui é representativo,mas tudo é vida e
do campo transcendental34é retomada no Abri-Édlpo, mas com o vivido: a emoçãovivida dos seiosnão se assemelhaa seios, não os
co/PO sem órgãos como "superfície", o desejo como princípio de uni- representa [...]. Nada senão bandas de intensidade, potenciais, limia-
ficação e de distribuição das singularidades, e os devires como princí- res e gradientes. Experiência dilacerante, demasiado emocionante, pela
pio de sua diferenciação e movimento. Eis o que significa a expressão qual o esquizo é aquele que mais se aproxima da matéria, de um cen-
de Guattari, tratar as "operações lógicas como operações físicas' tro intenso e vivo da matéria"37. Nesse "movimento vital", "o esta-
O que é que precipita essa mudança na filosofia de Deleuze? Se do vivido é primeiro relativamenteao sujeito que o vive"j6
é verdade que o plano "implica uma espécie de experimentação ta- Não se trata, portanto, nem de "experiência vivida" psicológi-
teante, e [que] seu traçado recorre a meios pouco confessáveis, pouco ca ou estética, nem de "experiência" do pensamento, mas do que, ul-
racionais e sensatos"35, seria vão procurar articulações lógicas que ex- trapassando-as a todas (em intensidade e em "extensão": mergulhan-
plicassem a passagem do regime de pensamento da l,ógíca do senado do no inconsciente), permite pensa-las como um campo transcenden-
ao do .A/zfl-Édlpo (seria necessário evocar Maio de 68 e o encontro tal39. Desmedida, ela dá, no entanto, a medida da avaliação crítica: é
com Guattari, no registro do que desencadeou sem dúvida o salto que em seu nome que Deleuze recusa a fenomenologia da arte cuja Urdoxa
constitui o plano de iminência). só seria capaz de fundar as opiniões e as emoções do senso comum,
Mas é possível detectar um elemento determinante na transfor- enquanto sua estética das sensações supõe "uma Potência mais pro-
mação do pensamentoda l,óglca do se/zlido: a nova idéia do c07PO funda e quase invivível"40. É ela que permite a Deleuze pensar a arti-
sem órgãos como superfície de intensidades. Ela forneceu a Deleuze a culação crítica/clínica, "a especificidade do artista, ao mesmo tempo
noção, essencial para sua filosofia, de uma "experiência" (termo que como doente e médicoda civilização"4i, a "literatura como saúde",
Deleuze não aprecia muito, por causa do seu uso fenomenológico) o delírio como "criação de saúde"42. Enfim, é ela que permite ao con-
particular, sem medida, que ultrapassa todo sujeito e toda consciên- ceito de vida atravessar todo o campo transcendental do pensamento.
cia, e que constituirá o solo e o alimento de seu pensamento (estético,
filosófico, ético, políticos. Husserl dizia que o tipo de experiênciade
cada filósofo definia sua filosofia. Deleuze construiu seu campo de
experimentação" transcendental com os conceitos de devires inten-
sos e intensidades que percorrem o corpo sem (órgãos (plano de con-
sistência, plano de imanêncial.
"Há uma experiência esquizofrênica das quantidades intensivas
em estado puro, a um ponto quase insuportável [...]. O dado a]uci-
natório (eu vejo, eu ouçol e o dado delirante(eu penso. .) pressupõem
um 'eu sinto' mais profundo, que dá às alucinações e ao delírio do
pensamentoseu conteúdo. Um 'eu sinto que me torno mulher', 'que
me torno deus' etc."36. Ou ainda: "Os seios no torso nu do presiden- 37AE, P, 26.
te [Schreberl não são nem de]irantes nem a]ucinatórios, eles designam s8AE, p. 27.
primeiro uma faixa de intensidade, uma zona de intensidade em seu
s9 Cf. "L'immanence: une vie.-", in Pbf/osopbie, n' 47.
82 José Gil 83
Uma reviravolta no pensamento de Deleuze
O TEMPO NÃO-RECONCILIADO
Peter Pál Pelbart
l J. L. Borges, "0 jardim dos caminhos que se bifurcam", Ficções, trad. Carlos
Negar, Porto Alegre, Globo, 1970, p. 78.
O tempo não-reconciliado 85
Diferentemente de Newton e de Schopenhauer, seu antepassado não distintos? Se eram incompossíveis e não obstante coexistiram, que
acreditava num tempo uniforme, absoluto. Acreditava em infinitas espéciede mundo aberrante os terá acolhido a todos?
séries de tempos, numa rede crescente e vertiginosa de tempos diver-
gentes, convergentes e paralelos. Essa trama de tempos que se aproxi-
DELEUZE TS'UI PEN
mam, se bifurcam, se cortam ou que secularmente se ignoram, abran- DeleuzeTs'ui Pen trancafiou-se por anos no Pavilhão da Mul-
ge todas as possibilidades. Não existimos na maioria desses tempos; titudinária Mestiçagem. Teria dito uma vez: "Retiro-me para escre-
em alguns o senhor existe e não eu. Noutros, eu, não o senhor; nou- ver um livro". E outra: "Retiro-me para construir um labirinto". O
tros, os dois. [...] O tempo se bifurca perpetuamente em inumeráveis pouco recuo de que dispomos ainda hoje nos leva a suspeitar, inspi-
futuros. Num delessou seu inimigo: rados na perspicácia do sinólogo Albert, que o que o vulgo imagina
Podemos deixar o relato de Borges seguir seu curso para apre- seremduas obras diferentesconstitui, de fato, uma só. E, tal como no
sentar nossa hipótese descabelada: o metafísico Ts'ui Pen é um pre- caso de Ts'ui Pen, a arquitetura labiríntica de alguns dos textos do
cursor do patafísico Gilles Deleuze. Isto no nossotempo. Num outro filósofo pareceresponder não a um capricho de literato, ou a um ex-
tempo é o inverso: Gilles Deleuze é o precursor de Ts'ui Pena. Peço perimento mundano, porém, a uma inquietação constante raramente
indulgência pelos parcos dados biográficos de que disponho para a explicitada, como se fosse por demais abismal para poder ser exposta
comprovação dessa tese, o que, espero, deverá ser compensado pelas numa forma outra que não a da charada, da alusão ou do anúncio.
provas teóricas ulteriores. Seria preciso lançar mão, inicialmente, dos Um pouco como Zaratustra, ao anunciarde forma tão alusivae en-
fragmentos reportados pelo lexicógrafo grego Suidas, do século X, e viesadasua idéia do eterno retorno, que o próprio Deleuze pretende
que alguns modernos chamam de André Bernold. Em sua compilação ter explicitado.
sobre a vida e doutrina de filósofos ilustres ou esquecidos, duas pági- DeleuzeTs'ui Pen, diferentementede Newton e Schopenhauer,
nas preciosas, embora obscuras, são dedicadas a Deleuze3. Nelas consta não acreditava num tempo uniforme, absoluto, porém, em infinitas
que alguns o situavam entre os físicos, outros o consideravam médi- séries de tempos, numa rede crescente e vertiginosa de tempos diver-
co, ou geólogo, ou descobridor da pulsação das espirais, ou especia- gentes,convergentes e paralelos. Essa trama de tempos que se aproxi-
lista incompreendido em estratégia etc. O detalhe mais anedótico vem mam, se bifurcam, se cortam ou que secularmentese ignoram abran-
de Ateneu: a voz de Deleuzeera comparável a um ralador, ou a uma ge todas as possibilidades. Cada vez que um homem se defronta com
enxurrada de pedregulhos. Mas o essencial está na conclusão dessa nota diversas alternativas, ao invés de optar por uma e eliminar as outras,
biográfica, diante da qual o leitor reage com assombro: "Houve uma opta por todas -- isto é, cria múltiplos futuros, diversos tempos que
multidão de outros Deleuzes". É grande a tentação de pedir ao do- também proliferam e bifurcam, produzindo essa pululação de vidas
xógrafo tão desprovido de senso crítico algum mínimo esclarecimen- disparatadas. O filósofo Deleuze Ts'ui Pen fez ressoarem e igualmen-
to: terá havido uma multidão de outros Deleuzesao mesmo tempo, te destoarem a multidão dos outros Deleuzescuja existência o lexicó-
ou em tempos diferentese sucessivos?Foram eles contraditórios en- grafo Suidas reporta. É preciso, dizia Deleuze,recusar a regra de Leibniz
tre si? Ou apenas incompossíveis, isto é, possíveis porém em mundos segundoa qual os mundos possíveis não podem ser trazidos à exis-
tência caso sejam incompossíveis com aquele que Deus escolhe. Cabe
afirmar os incompossíveis num mesmo mundo estilhaçados
Não podemos deixar de ver aí, pressuposta e entrelaçada, uma
2 Paráfrase de nota de rodapé de José Gil, em seu Perna zdo Pessoa ou La curiosa tesesobre a multiplicidade temporal. Seu indício primeiro, em
méfapbysíqzle des sensafio?zs:"Tendo a leitura de Pessoa feito surgir, uns depois
dos outros, os temas de]euzeanos [.-] uma convicção inabalável se formou: Fer
Deleuze, são os inúmeros tempos que operam em sua obra, nem sem-
nando Pessoa [eu De[euze! O inverso não se verificou [-.]". Paras, La Différence,
1988, P. 73. 4 G. Deleuze,A Dobra, trad. Luiz B. L. Orlandi, Campinas, Papirus, 1991
p. 105 [no original, p. P01.
3 Pbf/osopbie, n' 47, 1995, pp. 8-9.
92 O tempo não-reconciliado 93
Peter Pál Pelbart
que o autor recusa, mas pelo que se poderia chamar -- e a expressão desfaz-se a intriga, a história, a ação. Já fica mais difícil dar uma ima-
já está no Tlmewde Platão-- de um Círculo do Outro. Um círculo gem do Todo do tempo, orgânica, dialética, espiralada, porque o que
cujo centro é o Outro, este outro que jamais pode ser centro precisa- se esboroou foi a representação indireta do tempo que a imagem-mo-
mente porque é sempre outro: círculo descentrado. É a figura que vimento fornecia.
melhor convém à leitura original que Deleuze faz de Nietzsche: na O movimento aberrante, em contrapartida, vai apresentar o tem-
repetição retorna apenas o não-Mesmo, o Desigual, o Outro -- Ser po diretamente, diz Deleuze, do fundo da desproporção das escalas,
do Devir, Eterno Retorno da Diferença. como em Orson Welles, da dissipação dos centros, dos falsos raccords.
Pode-se chamar esse Outro de Futuro ja repetição régia é a do O próprio interstício entre as imagens se libera, de modo que o cine-
futuro, diz Diferença e repetição). Mas, se há em Deleuze, como em ma deixará de ser o cinema do Uno, que por associação de imagens
Heidegger, um privilégio do futuro, ele não é deduzível de uma pro- jmontageml visa o Todo do Tempo, para instalar-se no interstício, entre
blemática da Finitude, e sim da Obra, que rejeita seus andaimes, Há- as imagens. O Tempo não mais como Ser, mas como Entre, não mais
bito, Memória, Agente. O futuro não é, para o homem, uma anteci- regido pela forma verbal É, mas pela conjunção E, escavação do Fora.
pação de seu próprio fim, de sua própria morte, a possibilidade ex- O cinema moderno coloca em xeque constantemente, através de
trema de seu ser, nada que se aparente a um ser-para-a-morte, já que seu regime, o curso empírico do tempo. Na sua busca do transcenden-
não é a partir da ipseidade que ele pode ser pensado, mas de um fluxo tal, isto é, da forma do tempo, acaba sendo aspirado pela idéia de um
proto-ântico. Se na elaboração desse futuro por Deleuze o Aberto é Fora mais exterior que qualquer exterior, mais interior que qualquer
uma referência importante, ela aí remete ao Fora, mais do que ao Ser. interior, matéria-prima do tempo. A chave desse desenlacepode ser
Digamos que o Aberto de Deleuze está mais para Blanchot do que para resumida pela frase que caracteriza a filosofia de Deleuze como um
Heidegger. É sob o signo da Exterioridade, portanto, que o pensamento todo: "0 específico de uma pesquisa transcendental consiste em não
pode ganhar uma determinação de futuro. podermos detê-laquando queremos. Como é que poderíamos deter-
minar um fundamento, sem sermos precipitados para além, no sem-
Mas seria preciso acolher todas as implicações de uma tal idéia. fundo de que ele emerge?"V
Poderíamos começar por onde elas aparecem do modo mais palpável,
mais imagético, isto é, pelo cinema. Se desde a origem ele promove IMAGEM DO TEMPO, IMAGEM DO PENSAMENTO
movimentos aberrantes que descentram a percepção, mudando a es- Como já se disse, a crítica de Deleuze a uma imagem do pensa-
cala, a proporção, a aceleração, a direção, tirando o próprio movimento mento dita dogmática é feita em nome de um pensamento sem ima-
de seu eixo, o cinema também compensa essas aberrações através da gem. Ora, isso significa que o pensamento, sem um Modelo prévio do
montagem, conjurando-as, reabsorvendo-as, amortecendo-as. Mas che- que seja pensar (por exemplo: pensar é buscar a verdade), abre-se a
ga um momento em que essa ordenação e essa normalidade do movi- outras aventuras(por exemplo:pensaré criar). Tudo muda de um para
mento entram em crise, de modo que o movimento perde seu eixo, seu outro. Deleuze diz que são dois planos de imanência diferentes, o clás-
ponto de gravidade, sua motricidade, e a relação orgânica entre os sico e o moderno, o da vontade de verdade, por um lado, e o da cria-
movimentos se desmancha, o encadeamentosensório-motor se desfaz. ção, por outro.lO E cada um deles é inseparável de um certo conceito
a crença na continuidade do mundo se perde, porque um certo mun- de tempo que o preenche. Por exemplo, no plano de imanência clássi-
do também desmoronou. O que significa essa crise, mais radicalmen- co, do pensamento como busca da verdade, Deleuze assinala três mo-
te? Não só que a organicidade da ação no mundo desfez-se, mas que
o mundo como organicidade e totalidade foram abalados. Na esteira
9 G. Deleuze, Apresentação de Sacber-À4asocb, trad. José Martins Garcia,
de um tal terremoto, surgem encadeamentos fracos entre as situações, como SzzcberM[asocb,Lisboa, Assírio & A]vim, 1973, p. 124 [p. 98].
elos frouxos entre os espaços, aumenta a função do acaso, emerge uma 10G. Deleuzee F. Guattari, O qne é a /i/osoÕa?,trad. BentoPrado Jr. e
realidade dispersiva, os personagensflutuam em meio às situações, A[berto A[onso Muõoz, Rio de Janeiro, Editora 34, 1992, p. 55 [p. 73].
O olho do fora 99
uma superfície contínua e as figuras desencadeadas se superpõem sem te nos conduz e que, no entanto, o plano de uma imagem-movimento
muito choque, constituindo uma entidade muito especial, um evento deve afrontar, se ela quiser recolher sua luz. Como indica Melville, em
que Deleuze chama de imagem-movimento... um texto impressionante:
Uma superfície é portanto um plano extremamente povoado, um
plano de buracos e de luz que se consolidam de maneira anónima. E, "A espuma que ela levantava por enquanto cintilava
sob certos aspectos -- é preciso reconhecer --, um plano como esse e queimava os olhos de uma maneira intolerável como uma
nada dá a ver. Mas nada dar a ver não deve ser confundido com o nada geleira... tirar as escamas de seus olhos para vê-la; homens,
ou, pior ainda, com a dissimulação. É como um campo de batalha: a olho vivo, procuram a água branca; se virem ao menos uma
batalha realiza um estado de agitação no qual não se discerne nenhu só bolha, gritem!"
ma forma. Como indica Stendhal,em seu diário de Bautzen, "vemos
muito bem, do meio-dia às três horas, tudo o que se pode ver de uma Esse olho de que se retiram as escamas, esse olho que ronda na
batalha, ou seja, nada". Nela discernir o que quer que seja é tão difí- proximidade de uma morte cuja pátina incorporamcada bolha branca
cil quanto procurar uma agulha em um palheiro. Eis uma das mais consegue exprimir, esse olho sem véu não tem portanto nenhuma pos-
importantes exigências da filosofia de Deleuze; com efeito, em uma sibilidade de se fechar em um ponto de vista. Faltam-lhe escamas, as
superfície nada está escondido, mas nem tudo é visível. É por isso que pálpebras, o ângulo de rebatimento que polarize a visão em uma visa-
a filosofia não deve interpretar em direção a uma essência escondida; da: sensível ao todo, cada olho de que se arrancam as escamas cai nas
ela não é desvelamento, mas construção de uma imagem movimenta- fendas, nos limites que dilaceram as imagens. Falta-lhe a venda, o cadinho
da. Ela é construtivismo. ocular. Sobre seu globo, nada se vela nem se desvela; tudo está presente
Uma imagem-movimentodeve se consolidar além do corte do sem que nada se retire para o ocultamento ocular. Tudo em sua superfície
clichê, da descontinuidadedos quadros que compõem uma película, escancarada reage a tudo, com um brilho anónimo que arrasta as pers-
em que a projeção da fita cinematográfica deixa tudo confuso. A cada pectivas e as abre, além do limite que as separa umas das outras. Mas
imagem-movimento cabe uma dificuldade de ver, de discernir, de en nessa passagem ao limite, esse olho, ao mesmo tempo, não pára de saltar,
contrar a velocidadecerta para os clichês, de construir a superfíciede de tropeçar sobre a fenda, sobre os interstício e os compartimentos que
sua superposição. Isso se assemelhamuito ao olho que Foucault ar- deslocam todas as imagens segundo uma distância irrespirável.
ranca dos textos de Bataille, em seu PreÁãcío à frczrzsgressão: Saltando por sobre a brancura vazia que fragmenta o pensamento
e o discurso, a percepção e as imagens, o olho consolida seu plano entre
"0 que vale a pena ser olhado", diz ele, "não é mais perspectivas divergentes, heterogêneas, sem margem comum. O olho
nenhum segredo interior, nenhum outro mundo mais no- que recorta as imagens e os movimentos incomensuráveis, o olho que
turno. Virado em direção a sua órbita, o olho só irradia atravessa os z/gaios,os intermundos, envesgando entre todas as pers-
agora sua luz em direção à caverna do osso: pectivas, é, de algum modo, o olho louco do capitão Achab que Moby
Dick faz passar em sua própria brancura:
O olho revirado se detém na fronteira do osso, na brancura va-
zia, na intermitência mortal da visibilidade que ele não cessa de trans- "Onde está Moby Dick?", pergunta Achab. "Nesse
gredir, um pouco como se encontrasseem todo lugar uma borda in- mesmo instante ela deve estar diante de teus olhos. Meus
transponível que passa entre todas as imagens. Há uma interrupção olhos olham esse olho que, nessemesmo momento, vê igual-
da continuidade que é como seu fora. Essa brancura do fora de que menteos objetos do outro lado desconhecido de teu globo."
fala Foucault corresponde muito bem ao rastro da baleia branca quc
o capitão Achab persegue com seu olho arregalado. Ver a baleia branca Esse olho passou, portanto, para o outro lado, bifurca no exer-
não é mais fácil do que ver o osso embranquecido para o qual a mor- cício de sua própria divergência sem poder se isolar na generosidade
3 Ou, para dar a definição de Deleuze, que não a enuncia: o sentido é eqüi-
potente ao originário do pensamento para aquém de sua articulação em conceitos.
136
François Wahl C) copo de dados do sentido 137
Entidades de substituição às Idéias platónicas: é o que podemos do originário o Ego transcendental, ou sela, a forma-tipo contempo-
dizer com razão, a princípio. "Anónimas, nâmades" (125) e só anun- rânea de um certo platonismo. Mas promove sua própria originaridade
ciando seusvalores num descampado de terra; entidades,porém, in- como constituindo "o campo transcendentalreal" (133).
diferentes às determinações de suas efetuações dispersas (da batalha. É a partir dessaoriginaridade absoluta do sentido que se escla-
por exemplo, 122), e "eternas" na medida em que sua "verdade" é a rece o que havia surpreendido em sua descrição -- o desprendimen-
de uma "energia potencial" que as efetuações atualizam (125). Insti- to em relação ao texto e ao leitor -- assim como nas aporias eviden-
tui-seum sistema "meta-estável" em que "acontecimentostopológicos" tes de sua constituição -- dupla causalidade e dupla definição do sin-
sem direção "sobrevoam" as condições de sua atualização; são todos gular --: o sentido é, certamente, efeito tanto em seu exterior como
o efeito de um processo de "auto-unificação" movente como a instância em seu interior -- dos estados de coisas, da estrutura serial e de sua
paradoxal que o percorre, e entram em ressonânciauns com os ou- instância -- mas sem nada mais dever a ninguém no expresso de sua
tros Estranhas idealidades, certamente, ao mesmo tempo sílzgu/ares, idealidade. E é aqui que se compreende por que as singularidades, se
pofefzclalse em deulr; mas a ambição delas é recon/zgurarcompleta- são idealidades de um novo tipo, são também o quase-objeto de uma
mente aquilo mesmo que foi o céu das Idéias, do qual elas ocupam o apreensãopura: pelo menos não se percebe como elas poderiam ser
lugar inteiro -- o todo da idealidade (69) -- e que se torna o do sen- apreendidasde outro modo senão em si e por si, lá que nada do que
tido. A lógica dos paradoxos e a montagem da maquinaria eram ape- precede essa apreensão, nada do que a segue, e nem mesmo nós que
nas preliminares de uma revolução metafísica. De uma refutação do as apreendemos,é adequado ao que elas (não) são.
platonismo em seu próprio terreno. Por todos os seus traços Outro da
Idéia, e substituindo-a, o senfldo "não é", mas "não é" por ?zafzff'ez.z 3) O gestopróprio de Deleuzeé isto: uma travessiada cenogra-
e por st. fia da argumentação -- identificações e classificações -- para encon-
Sem que haja aí contradição, é antes como o cumprimento que trar, mais além, um reinado de formas e forças fluidas, de entidades
historicamente faltava à fenomenologia, que as idealidades singulares potenciaisem devir ilimitado; atribuir essa passagema um novo em-
são metodicamente induzidas. E a irredutibilidade delas é exposta como pirismo e simultaneamentepropor, das entidadesvirtuais que inces-
a da redução reconduzida ao mesmo campo em que a fenomenologia santemente se atualizam, uma construção moldada sobre o que abre
clássica encontrava sua fundação: o do Ego. "Buscamos determinar a malbesls a seu movimento auto-produtivo; voltar ao proscênio con-
um campo framscendenfa/ ImPessoa/ e pré-i/zdíz/fd a/" i7 ( 124): impes- fiante no argumento de que o originário foi assim não só descoberto,
soal e pré-individual porque a distribuição constitutiva das singulari- mas articulado, e que uma figura nova de um em-si ideal é afirmada
dades não se deixa absolutamenteclassificar sob as formas sedentá- com ele.
rias e determinantes -- agora precisados: unidade analítica para o Ego, A sutileza com que é conduzido esse processo faz com que ele
sintéticapara o Eu -- da subjetividade.Originário, o sentido o é a ponto retome sempre, deslocando, o que ele nega, e que nele se reconheçam,
de expulsar, como "derivados", aquilo sobre o qual se construíram mas transpostos, os requisitos da experiência que ele parece ter ultra-
tanto o Indivíduo teológico como o Eu transcendental( 129). Não abor- passado. Já observei que a articulação do sentido é assumida pela ins-
darei aqui essa derivação ou "gênese" do indivíduo pela convergên- tância -- mas só o é a título de acontecimento, não de estrutura re-
cia das séries, do sujeito por sua divergência: análises notáveis -- com gente. O mesmo sucede com o que fixa o recorte de uma singularida-
seu plano de fundo leibniziano -- dos conceitos de indivíduo e de su- de, inscrita na estrutura de uma colocação em séries, sobrevoando suas
jeito, mas empreendimento um tanto artificial no que se refere a gerá- efetuações-- mas não sem uma cisão na definição do sentido. São essas
los a partir da singularidade -- como o são todos os empreendimentos duas reservas que decidem sobre o que implica de problemático -- ou
desse gênero. O argumento crucial é que a singularidade ideal exclui de refutável -- o esquema proposto por Deleuze para a constituição
do sentido.
n Grifos meus
142
François Wahl C) copo de dados do sentido 143
Parece impossível não apontar no sentido uma organização totalizante na verdade, não tem outro abonador de legitimidade senão a coerên-
se há um campo que não pode fazer exceção da idéia de totalida- cia e a economia de sua armação -- só tenha sido uma reconstituição
de, é esse e um processo de posição por uma intervençãocircular analítica, que ignora a singularidade que circula no céu do aio/z? E como
que suplemente a organização. evitar que as singularidades não constituam, para terminar, o ouranos
das idealidadespuras que não remetema outra coisa senão à inces-
Por um movimento inverso, a irredutibilidade do sentido se tor- sante comunicação que o atravessa, e da qual a experiência cotidiana
na em Deleuze absoluta quando, ultrapassada toda construção, L(5gi- oferece apenas uma imagem desfigurada?
czzdo se/zffdoaborda o ser em si, puramente ideal, das singularidades. Lógica do serzfidoé atravessadapor um dualismo preocupado,
Ê verdade que, se o campo transcendental "sobrevoa" todas as de um lado, em articular o sentido, primeiro às coisas e à linguagem,
suas atualizações, Deleuze não o deixa levantar vâo: não enunciou ele para depois construí-lo numa mafbesis, e, de outro, em afirmar a irre-
a evanescência do sentido fora das duas faces de que este é a charneira, dutibilidade, primeiro do registro do sentido e depois da singularida-
e sua função própria não é relacionar a linguagemàs coisas? Os in- de na qual elese dá. E também um dualismo que oscila a todo mo-
corporais "só têm existência pura, singular, impessoal e pré-individual mento para o lado do segundo registro -- o da "superfície metafísi-
na linguagem que os exprime" e as próprias proposições "não seriam ca" j2S7) --, em que se estendecomo originária uma idealidadeque
'possíveis'" se o aio/z não traçasse "uma fronteira entre as coisas e as só pode responder por si, contradita que ela é por toda a dota, mes-
proposições" que e]e "articu]a" umas às outras 1] 941. Essa é a vanta- mo que somente ela possa explicar a coxa. Eis por que se trata, final-
gem da abordagem fenomenológica, remontar por "contra-efetuação" mente, de um idealismo, se entendermos com isso que a forma mais
à idealidade originária sem subtrair sua existência às condições nas pura do pensamento atinge uma ordem como/CiumentaOlllra, da qual
quais ela se efetua. a experiência comum não é senão a atualização dispersa pelo próprio
Resta que "o acontecimento se relaciona aos estados de coisas, fato de ser articulada. Ordem outra que apenas toca o real.
mas como o atributo lógico desses estados, inteiramente diferente de A questão não pode ser contornada: não é por ter concebido a
suas qualidades físicas, embora se acrescente a eles. Resta que "o sen- constituição do sentido apenas sob a figura do resultar que Deleuze deve
tido se re]aciona às proposições como seu [.-] expresso, inteiramente extrair dela a consistência do sentido e transporta-lo ao céu das idea-
distinto do que elas signifiêàm::J195). Resta que o sentido, aqui e ali, lidades? Por uma espéciede síncope, também ela característica de De-
implica algo de excessivo" j19ó). E que, ao mundo, o campo trans- leuze, a construção do sentido evacua o momento sistemático da for-
cendentalopõe seu "caosmos" l20ó) como o que excedetoda coxa. ma e a constituição do sentido faz dele, metafisicamente, uma Forma.
A diferença, claro está, é de /zafureza.
Esse desvio não é outra coisa senão o do acontecimento ao sen- 111.0NTOLOGiA
ado. Deleuze cinde a operação em que o sentido se institui: a dualida- Há, em Deleuze, um outro modo de ler a produção do sentido
de que justapunha determinação das relações de fatos e quase-relações que, embora se apresentando como a mesma, adquire um tom filosó-
de sentido, se reproduz entre a redistribuição pela instância dos pon- fico diferente.
tos sobre as séries e os "acontecimentos transcendentais" que são as Se "as singularidades sofrem um processo de auto-unificação"
singularidades: "meta-estáveis", certamente, e em ressonância contí- que permanece inexplicado, é por ele envolver "os pontos singulares
nua entre elas, mas mesmo assim constituindo entidades ideais, impes- correspondentesnum mesmoponto aleatório, e todas as emissões,
soais, eternas: convém pronunciar bem a palavra -- que Deleuze evi- todos os lances, num mesmo /andar"24 (125). Ou seja, no reverso da
ta: ele prefere dizer "personagens" -- anídades, ainda que anónimas teoria do sentido, na face em que ele se diz ainda aconfecfmenlo, e
e nâmades, do sentido. No mais, o que designa "singularidade", se-
não esse Um que, na superfície, se distingue de qualquer outro Um?
Como evitar, com isso, que a dinâmica do processo construtivo -- que, 24 Grifos meus
1. A WDA
Por uma coincidência singular, o último texto que Michel Fou-
cault e Gilles Deleuze publicaram antes de morrer tem como ponto
central, em ambos os casos, o conceito de vida. O significado desta
coincidênciatestamentáriaItanto num caso como no outro, trata-se,
com efeito, de algo da ordem de um testamentos vai além da solida-
riedade secreta entre dois amigos. Ele implica a enunciação de um le-
gado que concerne inequivocamente à filosofia que vem" *. Esta, se o
quiser acolher, deverá partir daquele conceito de vida em direção ao
qual o gesto extremo dos dois filósofos Indicava. ITal é, pelo menos,
n hipótese da qual parte a nossa investigação.)
O texto de Foucault, publicado na Rez/aede À4éfapbys/q e ef de
Mora/e de janeiro-março de 1985 Imãs entregue à revista no mês de
abri[ de ] 984, o ú]timo texto a que o autor pede dar o /mPrimafur,
mesmo retomando e modificando um escrito de 1978), traz o título
La vie: I'expérience et la science" i. Aquilo que caracteriza essas pá-
ginas, concebidas por Foucault como uma homenagem derradeira ao
seu mestre Canguilhem, é uma curiosa reviravolta de perspectiva jus-
tamenteem relação à ideia de vida. Ê como seFoucault, que em Nas-
cimento da c/z'Mica
começara inspirando-se no novo vitalismo de Bichas
l Agora está disponível em Michel Foucault, Dias ef écrits, editado por Fran-
çois Ewald e Daniel Denfert, Gallimard, Paria, 1994, pp. 763-77.
8 .IV, P. 6.
6 J. H. Masmejan, Traffé de /a poncrKalíon, Paria, J.-F. Bastien, 1781 ' Idem, ibid.
A imanênciaabsoluta 187
186 Giorgio Agamben
[us coincide com o da causa imanente, em que agente e paciente se lc })lus usuel, ne convient pas à tour les exemples et n'est elle-même
indeterminam. E como o cozzafus se identifica com a essência da coi- tltl'une acception d'un bensplus large et plus précis à la bois.Pour rendre
sa, desejar perseverar no próprio ser significa desejar o próprio dese- compte de I'ensemble des liaisons sémantiques de [repbo, on dois le
jo, constituir a si desejante.Ou seja: no con.zfws,dose/oe ser coinci- tléfinir: 'favoriser jpar des soins appropriés) le développementde ce
dem, sem resíduos. flui est soumis à la croissance'. C'est ici que s'insere un développement
Nos Coglfafózmefízp&ysica,Espinosa define o co#czfHScomo vida pnrticulier et 'technique', qui est justement le sens de 'cailler'. L'ex-
l"a vida é a força pela qual uma coisa persevera no próprio ser" ) . Quando prcssion grecque est frepbein ga/a loa., xl11, 410), qui doit maintenant
Deleuze escreve que a vida é o campo de imanência variável do desejo, s'interpréter à la lettre comme 'favoriser la croissance naturelle du lait.
ele dá, portanto, uma definição rigorosamenteespinosana. Mas em que lc laisser atteindre I'état auquel il tend'"43. Deixar que um ser alcance
medida a vida, definida assim em termos de conafus e desejo, se distin- o estado a que tende, deixar-se ser: se é este o significado original de
gue da potência nutritiva de que fala Aristóteles e, em geral, da vida frepbo, então a potência que constitui a vida em sentido primordial
vegetativa da tradição médica? Ê singular que já Aristóteles, no De lo nutrir a si) coincide com o desejo de conservar o próprio ser que
anima, no momento de definir as funçõespróprias da alma nutritiva tlcfine a potência da vida como imanência absoluta em Espinosa e em
l)eleuze.
(fbrepll&epsyÊbe), se sirva justamentede uma expressãoque lembra
muito a determinação espinosana do conafus segacanse t,amai. "Ela (a Entende-se, assim, como Deleuze possa escrever de uma vida que
fropbe)", escreve Aristóte]es, "conserva a essência ]sozei fefz ous]czm) [...],
cla é "potência, beatitude completas". A vida é "feita de virtualida-
esteprincípio da alma é uma potência capaz de conservar tal qual é aquele des"44, é pura potência que coincide espinosanamente com o ser, e a
que a possui(dynam]s esf]/zbola sozeifz to deÊbomemon safe/z be]i] potência, enquanto "não carece de nada"45, enquanto é o constituir
foio&ffozz)" (416b, 1 2). O caráter mais íntimo da vida nutritiva não é ;l si desejante do desejo, é imediatamente beata. Todo nutrir-se, todo
então simplesmente o crescimento, mas, antes de tudo, a autoconser- deixar ser é beato, goza de si.
vação. Isto significa que, enquanto a tradição médico-filosófica procu- Em Espinosa, a idéia de beatitude coincide com a experiência de
ra distinguir com cuidado as várias potências da alma e regula a vida si como causa imanente, que ele chama de zcqz/descefza in se Ipso e
humana baseada no cânone alto da vida dianoética, Deleuze(como seu clcfinejustamente como laefifia, concomllanfe faca s i f'zmquam caw-
modelo espinosano) recua o seu paradigma para o esquema mais bai- síz46.Wolfson observou que em Espinosa o uso do termo .zcqulescenfia
xo da vida nutritiva. Mesmo recusando nitidamente a função que a vida referido a menuou a a/zlm s pode refletir o uso, em Uriel da Costa,
nutritiva tem em Aristóteles como fundamento de uma atribuição de
subjetividade, Deleuze não quer, contudo, abandonar o terreno da vida
43E. Benveniste,ProbZà zesde/]nglf]s]]q e généríz]e,vo1.] 3, Paria, Gallimard,
e o identifica com o plano de imanência4z. 1966, pp. 292-3.[Na verdade a tradução de frepbo por "nutrir", no uso, com efeito,
Mas o que significa então, neste sentido, "nutrir-se"? Num en- maiscomum, não convém a todos os exemplose é em si apenasuma acepçãode
saio importante, Benvenisteprocurou reconduzir a uma unidade os urn sentido ao mesmo tempo mais amplo e preciso. Para dar conta do conjunto de
vários significados, não sempre facilmente conciliáveis entre si, do verbo EclaÇÕessemânticas de Irepbo, devemos defini-lo: "favorecer apor meio de cuida
grego frepbeiz (nutrir, fazer crescer, coagular). " En réalité", escreve tios apropriados) o desenvolvimento daquilo que está submetido ao crescimento
Aqui se insere um desenvolvimento particular e "técnico", que é justamente o sen
ele, "la traduction de Irepbo par 'nourrir', dais I'emploi qui est en effet rido de "coagular". A expressão grega é frepbeflzga/a (Od., Xl11,410), que agora
neve ser interpretada, literalmente, como "favorecer o crescimento natural do lei-
te, deixa-loatingir o estado natural para o qual tende".] {N. do E.)
42Quando Aristóteles define o boas através de sua capacidade de pensar a
si mesmo, é importante lembrar que um paradigma auto-referencial já aparecera, 44IV, P. 6
como vimos, a propósito da vida nutritiva e do seu poder de autoconservação:o 45Idem, p. 7
pensar a si do pensamento tem, num certo sentido, o seu arquétipo no conservar a
si mesma da vida nutritiva. 4óEfbjca, 111,LI, ss.
i7 G. Deleuze, l,e Pli: Leíbniz ef le bczroqae, Paras, Minuit, 1988, p. 118. Cf. ;Quanto a saber de que maneira tal intuição sensível
S. MaTmon, Estai sur /a pbl/osopüfefransce/zdezfa/e,pp. 49-50.
lo espaço c o tempos é a forma de nossa sensibilidade, ou
i8 G. Deleuze, Le P/ : l,eibfzlz ef /e baroque, p 1 17.
19S. Maimon, Essas sur /a pbflosopbie[ra/zscepzdepzra/e,
cap. 1,pp. 50-1. 20M. Gueroult, l,a pbl/osopble transcendezzla/ede Sa/omon À4ailnon, p. 60
zi E. Kant, "Carta a Marcus Herz", 18/05/1789,trad. francesaJ. Rivelaygue, "A construção nos mostra que a linha reta é o cami-
Pléiade11,pp. 840-1. nho mais curto entre dois pontos, não o que faz que ela seja
22Um distanciamentono qual o próprio Kant acabarápor se aventurar nos
extraordinários 76 e 77 da Crãica da ánc /dadode / /gar. Ver sobre esseponto a mediação do universal e do particular" (S. Maímon, Essa/ s r /zpbf/osopbfe fralzs-
Apresentação do assai por J.-B. Scherer: "A AKseln.zndersefzang[discussão] de ce/zdenrcz/e, Apresentação, p. 20).
MaTmon com a Cr íca da razão pz/ra não pode realmente se formular senão nos 2aDeleuze se insurge contra essa acusação feita a MaTmon: Le p/i. Lefbniz
termos da meditação que Kant inicia na Crft/ca da Áacu/dczdede /u/gar. MaTmon ef /e baroqwe, p. 118; Di/fé7'ente ef 7'épéfifion,p. 249.
se antecipa, por assim dizer, ao pensamento de Kant, percebendo de saída e com
uma segurança admirável o próprio nó da filosofia crítica [-.] o prob]ema da 24G. Deleuze, Df/7ére/zceef réPéffffolz,p. 226.
É exatamente aqui, graças a essa mutação de sentido da "seme- 'A espécie não se assume/bczàs relações diferenciais que
lhança", que tem início a idéia de condiclozzame/zfo ransce zde zza/que nela se atualizam; as partes orgânicas zzãose assume/bam
a Cr#ica levará a seu pleno desdobramento. E essa conivência entre a aos pontos notáveis que correspondem a essas relações. A
fundação segundo o modo do condicionamento e a prioridade dada à espécie e as partes não se assume/óam às intensidades que
exigência de "semelhança" é, segundo Deleuze, um traço decisivo para as determinam."++
a marcaçãodo "transcendental",do qual Kant adquiriu os direitos
autorais. O privilégio dado à fundação-condicionamento vem do fato Em vez de seguir a diferenciação especz'Xlca
e a diferenciação em
de que esta preserva infalivelmente a homogeneidade mínima do fun- partes orgá/zlcas,opera-se agora num campo intensivo no qual é a
damento e do fundado. Ao contrário, MaTmon, pelo fato de abando- induz,idwação que comanda o dinamismo organizador. Mas com isso
nar o princípio supremo dos juízos sintéticos, abre o caminho a um a partida está ganha? Estaremos doravante ao abrigo do sortilégio da
empreendimento como/efamenfe dfÁe7'entede fundação, tal que as sín- semelhança? Ainda não.
teses transcendentais não serão mais decíz/Gajas sobre as sínteses psi-
cológicas, não havendo mais, portanto, o risco de fazer passar por
Óa/zdamenfo um híbrido de empírico e de transcendental41. 42Michel Foucault, em seu artigo "Theatrum Philosophicum", sublinha o
Notemos que não é absolutamentemais o caso, em tal aborda- caráter literalmente não sabe/ersit/oda leitura dos autores que é característica de
gem, de censurar o "idealismo" ou o "intelectualismo" de Kart, mas Deleuze: "Subverter o platonismo é toma-lo do alto (distânciavertical da ironias
e recupera-lo em sua origem. Perverter o platonismo é segui-lo até em seu extre-
apenas de determinar o mais exaustivamente possível a opção que ele mo detalhe, [-.] é descobrir [-.] o descentramentoque ele operou para tornar a
/cíbízula captado sobre a operação de fundação. Assim, de nada serviria centrar-se em torno do Modelo, da Idéia e do Mesmo; é descentrar-se em relação
a ele para jogar (como em toda perversão) com as superfícies ao lado. A ironia se
40G. Deleuze, l,e p/l. Leibnlz el /e baroqife, p. 128. e[eva e subverte; o humor se deixa cair e perverte [-.]" IM. Foucau]t, Dias ef écrifs,
Paris, Gallimard, 1994, t. 11,p. 781.
41Em seu De/faze. Ulzé'pbí/osopb/ede /'éz/éneme7zf,
F. Zoura bichvili mos-
tra a importância do doca/qae, como conceito deleuziano que será tematizado em 43G. Deleuze,Di/7ére/zce
ef réPéfifiozz,
p. 319 ss.
Mi! platâs. 44Idem, p. 323. Grifo nosso.
da Dobra nos parece bastanteesclarecedora a esse respeito: aquela em 47Essa opção é manifestaem Kant -- e é ela, em particular, que comanda
que Deleuze se arrisca a tomar o sentido diametralmente oposto aos sua interpretação do "paradoxo dos objetos simétricos" e o impede de reconhe-
cer sua origem intensiva. "Nos corpos enantiomorfos, Kant reconhecia exatamente
comentadores que assinalaram uma incompatibilidade profunda en- uma álacre zça fn er a; mas, não sendo conceptual, ela só podia, segundo ele, se
tre o prlfzc@iodos indfscer/züefsja diferençaentre dois indivíduos deve referir a uma re/anão exterior com a extensão inteira enquanto grandeza extensi-
ser interna e irredutível) e a /el de comi//z Idade (essa diferença deve va." Mas o espaço, como intuição pura, será realmente uma grandeza extensiva?
desaparecere tender a 0). Essa pseudocontradição, responde Deveu ;Kart define todas as intuições como quantidades extensivas, isto é, de modo que
ze, dwe-se apenas ao uso representativo que se faz dos conceitos. Em a representação das partes torne possível e preceda necessariamentea representa-
realidade, a continuidade leibniziana não faz desaparecer a diferença, ção do todo. Mas o espaço e o tempo não se apresentam como eles são represen'
fados. Ao contrário, é a apresentação do todo que funda a possibilidade das par-
pelo menos qualquer "diferença"; "[...] o que desaparece é apenas todo tes, estas não sendo senão virtuais e se atualizando apenas nos valores determina-
dos da intuição empírica. O que é extensivoé a intuição empírica" (G. Deleuze,
4sIde/n, p. 324. Grifo nosso. Différenceet répétitton,p. 298\.
úoIdem, p. 124.
58G. Deleuze, Log/qz/ed# sefzs,p. 129. Sobre as formas diversas de "luta contra
o caos", cf. G. Deleuzee F. Guattari, Qa'esf-ce qiíe /a pb//osopb]e?,pp. ] 89 96. ói /dem, p. 130. Cf. DI/Xérenceel réPéfffiofz, pp. 332 e 340
233
232 Gérard Lebrun O transcendental e sua imagem
"0 insuperável é a individuação mesma. Para além do ego e do eu, DELEUZE E SUA SOMBRA
existe não o impessoal, mas o indivíduo e seus fatores, a individuação Scarlett Marton
e seus campos, a individualidade e suas singularidades pré-indivi-
duais."63 Se não tomarmos esse caminho, continuaremos a fazer uma
idéia apressada do que é a "desordem", e o transcendentallou me-
lhor, sua "imagem"l terá, inevitavelmente, por função primeira reme-
diar a ameaça fantasmática que assim deixamos se forjar. Inversamen-
te, para Deleuze é a mesmacoisa romper com esse "transcendental" "Em relação a um filósofo cujo empreendimento provocou tan-
securitário e pensar o campo Iranscendenla/ no sítio mesmo dessa "de- tos ecos e aparentementetão longe do ponto em que ele mesmo se
sordem" (de primeira aproximação)contra a qual a Crítica julgava colocava", escreveMerleau-Ponty a propósito de Husserl, "toda come-
dever se precaver, porque não estava armada para concebo-la. moração é também traição, seja porque Ihe prestamos a homenagem
bem supérflua de nossos pensamentos, como para provê-los de uma
"Quando se abre o mundo pululante das singularida- garantia a que não têm direito, seja porque, ao contrário, com um
des anónimas e nâmades, impessoais, pré-individuais, plscz respeito que não se faz sem distância, o reduzimos por demais estrita-
mos enfim o solo do t«-scendentat."64 mente ao que e]e mesmo quis e disse [...]".l Essas palavras de "0 filó-
sofo e sua sombra" poderiam muito bem aplicar-se à nossa tarefa.
A reação a essa frase é, ela também, um teste. Enquanto vocês Homenagear Deleuze com nossos pensamentos ou reduzi-lo aos seus
restringirem o qz/echamam "o singular" a "piedosas" singularidades, próprios, essas seriam talvez duas formas de festeja-lo. Apoiar-se em
domesticadas, "aprisionadas", nada de surpreendente que o "trans- Deleuze para defenderas próprias idéias ou procurar fazer a exegese
cendental" della, para vocês, tomar a forma de uma instância encar- das suas, essas seriam talvez duas formas de traí-lo. Mas, no limite,
regada de conjurar o caos, de frustrar a todo instante os maus aspec- essas questões pressupõem outra, anterior e mais abrangente: no que
tos que o malicioso cinábrio poderia nos apresentar. Nada de surpre- consiste fazer história da filosofia? E, por conseguinte, como lidar com
endente,portanto, que a frase de Deleuze soe para vocês como uma Deleuze enquanto parte da história da filosofia, ainda que seu pensa-
simples provocação... mento constitua uma parte bem à parte?
Restaria examinar como funciona o transcendental após esse Uma pista para perseguir tal questão talvez se encontre no pró-
des/ocízmenfo. Mas isso dependeria de um estudo da oncologia de De- prio trabalho de Deleuze. Em textos sobre Hume, Kant, Bergson, Espi-
leuze. O objeto desta exposição era simplesmente mostrar, sobre o nosa2, é também enquanto historiador da filosofia que ele se coloca.
exemplo do fransce/zde/zfa/,o que Deleuze ganhava ao "fazer jogar um E, se transforma profundamente os clássicos, não se exime de deixar-
conceito contra ele mesmo" -- e isso dialeticamente, tão ludicamente, se transformar por eles. Tanto é que na filosofia da afirmação plena,
portanto, quanto no Parmênidesou no So/isca. na filosofia da diferença, na filosofia da imanência, numa palavra, na
filosofia deleuzeana,são profundas e múltiplas as marcas deixadas por
Nietzsche. Não se trata aqui, porém, de analisar de que maneira a
Tradução de Paulo Nunes reflexão de Deleuze se inspirou nas idéias do autor de Za afzzsfra nem
de indagar em que medida seu prometofoi por elas influenciado. Bem
31Tal como Frédéric Gros, em seu belo artigo sobre "0 Foucault de Deleu-
2ó Idemz, p. 300.
ze; uma ficção metafísica", Pbf/osopbie, n' 47, 1995, pp. 53-63, que conclui: "So
27 /denz, p. 308. Cf. Le bergsonlsme, oP. cif., pp. 92-5. nhar Foucault encontrando emBergson um duplo fraternal". Cf. Foucczn/f,Paris,
Minuit, 1986, p. 97, para a citação de Deleuze.
28H. Bergson, l,'éz/o/afia/zcréafríce, op. cif., p. 32-3 / 521-2.
266 Éric Alliez Do campo transcendentalao nomadismo operário -- William James 267
tesiano [...]"2. SÓ que a dúvida sempre é conduzida a partir de uma c'ram puras? É possível implanta-las no campo transcendental sem
certeza essencial da qual ela é o reverso negativo. Chega inevitavelmente t'xaminar melhor suas implicações? A questão parece tanto mais lus-
o momento em que ela volta para trás para instituir como primeiro rificada na medida em que essas formas, embora reorganizadas, am-
princípio algo cuja potência de constituição ela já manifestava atra- pliadasou reduzidas, são sempreduplicadas por uma psicologia em-
vés de seu poder de suspensão: um "Eu penso" l)írica da qual, além disso, pretendemosnos desfazer.4 Censura-se a
Então, "puro" adquire outro sentido. Não é mais atribuído a per- psicologia por seu empirismo e naturalismo, quando teria sido neces-
sonagens sem experiência -- tal como Adão ou o recém-nascido --, \ária critica-la por deles extrair formas ruins, distinções falseadas. É
como no tempo do empirismo clássico, mas doravante é atribuído a como se o transcendental fosse uma psicologia depurada. De certo
um campo purificado, pela dúvida, de todas as matérias da psicolo- modo, tanto para Kant como para Hlusserl,as formas são puras na
gia empírica. Puro designa, com efeito, aquilo que subsiste à redução iltedidaem que são formas -- há aí um pressuposto aristotélico ou
ou "colocação entre parênteses". Puro se diz de todos os vividos con- íomista profundo.
siderados de um ponto de vista imanente. Assim, há uma experiência Nessas condições, como pode James promover uma experiência
pura, mas também uma expressão pura ou uma consciência pura. Tra- pura ao mesmo tempo que reivindica um empirismo radical? A expe-
ta-sejá da mesma operação encontrada em Kant, embora ela seja con- riência pura não encontra sua expressão no ego da consciência pura.
duzida sob outros princípios e produza outros resultados: puro desig- Ao contrário, segundo o que diz Deleuze, em "A imanência: uma vida",
na a determinação das formas independentementede sua matéria em- um de seus textos mais densos, é preciso partir de um mundo em que
pírica. Identifica-seo puro com as formas a priori para fazer da maté- n consciência ainda não esteja revelada, embora seja coextensiva a todo
ria parte da empina, do condicionado,da experiência.3Começa-se o campo transcendental.SAinda não se pode praticar aí nenhuma dis-
pelas formas puras que, em seguida, são necessariamentepreenchidas tinção: nem sujeito, nem objeto. Do mesmo modo, em James, é preci-
por matérias ou por essências, diversificadas por meio de exemplos. so partir de um campo ilimitado em que as distinçõesdualistas
Se a fenomenologia pode se considerar, com razão, transcendental, é mundo físico e mundo psíquico, mundo do pensamentoe mundo da
na medida em que repete o procedimento kantiano, mas sob uma for- matéria, sujeito e objeto -- ainda não estão feitas ou não podem ser
ma mais complexa, menos visível, já que Husserl deixa menos evidente
o fato de que o par empírico/transcendentalrecobre inteiramenteo par
matéria/forma. De um modo geral, puro quer então dizer que as for- 4 Esse aspectofoi amplamente comentado. É, em primeiro lugar, a observação
mas são implantadas no campo transcendental, constituindo-se ora de Sartre, que critica Husserl por ter duplicado o eu psíquico com um eu trans-
como a priori, ora como vividos imanentes. cendental.Cf. l,a Iralzscedentede /'ego,Paris,Vrin, 1, A, pp. 19-20;em seguida,
esseé o sentido das páginas de M. Dufrenne sobre a retomada kantiana das facul-
Já as descrições da experiência pura dadas por James levam a dades da psicologia empírica de Hume e do formalismo de Husserl. Cf. La /zoffom
formular a seguinte questão: por que Kant e Husserl não examinaram d'a prior, Paria, PUF: sobre a retomada kantiana, p. 20-1; sobre o primado da forma
a pureza das próprias formas? Por que não examinaram se as formas em Husserl, pp. 90-1 e 94. E, finalmente, os textos de Deleuze em que se propõe a
do ego, do sujeito, do objeto, da imaginação, e da intencionalidade instauração de um empirismo transcendental que não seja decalcado das formas
empíricas, o que é uma outra maneira de dizer que não se deve relacionar o plano
de imanência a algo diferente dele mesmo. Cf. DI/Hérenceef réPéfflio#, PUF, lll,
PP. 186-7.
2 À4édffalfo?zs
carfésíen?zes,Vrin, S 16, p. 33. 5 Pbf/osopbfe,n' 47, Paris, Minuit, p. 3: "Enquanto a consciênciaatraves-
3 "Se a matéria de rodo fenómeno nos é dada, é verdade, somente a posteriori, sa o campo transcendental a uma velocidade infinita e difusa, não há nada que
é preciso que sua forma se encontrea priori no espírito, pronta para se aplicar a possa revela-la. Ela só se exprime, de fato, ao se refletir sobre um sujeito que a
todos, conseqiientemente,é preciso que ela possaser considerada independente- remexaa objetos. É por isso que o campo transcendental não pode ser definido
mente de qualquer sensação." Crfffque de /a rafson Fure, Paris, PUF, "Esthétique por sua consciência, que, embora Ihe seja coextensiva, é desprovida de qualquer
transcendantale", S 1, p. 54. Oeaures pbl/osopbiqKes,Paria, Gallimard, 1,p. 782. revelação
268 David Lapoujade Do campo transcendental ao nomadismo operário -- William James 269
feitas sem que a experiência deixe de ser pura, sem que a imanência apenas um algo primordial ou um material no mundo, um algo de que
seja perdida. É o campo da experiência no estado puro. Não é o cam- tudo é composto, e [...] denominamos esse algo 'experiência pura'".7
po de ninguém; ou, antes, ele não é dado a ninguém. Mas seria possí- C) plano de imanência não é uma matéria, mas um maferla/. Ora, o ma-
vel objetar: como pode haver experiência sem uma consciência ou um rcrial não se deixa pensar em uma relação matéria/forma, do mesmo
sujeito a quem ela se faz? Não se devem supor, ao menos, formas larvais iitodo como também não entra nas categorias sujeito/objeto, matéria/
de sujeito e de objeto? Aliás, James não diz que a experiência pura "é llcnsamentoetc. Ele é diretamente físico-mental. O material não é nem
consciente e é aquilo de que temos consciência"Ó? A experiência deve Matéria, nem Pensamento, embora seja o "estofo" dos dois.
então ser entendida em um sentido muito geral: a experiência pura é Com efeito, o materialnão é a matériaou o informe. Ele já é
o conjunto de tudo o que está em relação com outra coisa, sem que l)c'rcorridopor relações,como um tecidoé percorrido por fibras,por
necessariamente exista uma consciência dessa relação. Encontra-se algo linhas. A imagem do tecido retorna constantemente em James. Há um
desse uso da palavra expe7'fê/zela
na expressão comum "fazer uma ex- tecido da experiência pura -- Deleuze e Guattari, por sua vez, dizem
periência", por exemplo, a experiência da cristalização entre o cloro Lllle"o plano de imanência não pára de se tecer, gigantesco tear"8. E
e o sódio. Somos nós mesmos que fazemos a experiência; mas a expe- tln mesma maneira como, para eles, o plano de imanência se define
riência não se dfz de nós, ela se diz das coisas em relação: são o cloro como o "Uno-Todo ilimitado"9, assim também a experiência pura, em
e o sódio que se cristalizam; assim, são eles que efetivamente fazem a .Inmes, se apresenta como um "monismo vago"10. O termo monlsmo
experiência da cristalização. Na medida em que é pura, a experiência não deve, entretanto, nos enganar; na realidade, trata-se de um plu-
pode ser dita tanto dos "sujeitos" como dos "objetos" (o que conti- ralismo, mas ainda virtual. O mundo da experiência pura apresenta-
nua a ser uma maneira de falar, pois nessenível nenhum dos dois exis- sc como um tecido de relações entrecruzadas, superpostas, de aconte-
te). Em termos mais precisos, deve-separtir de um campo em que a cimentos que se imbricam. É também o caos propriamente empirista,
experiência seja virtualmente subjetiva ou objetiva, indiferentemente tias relações possíveis e virtuais em número ilimitado (um pouco como
mental ou física, mas, também, primitivamente nem outra. Isso signi- c'm Hume, que abriga o caos na imaginação e formula seu princípio
fica que é preciso liberar o fluxo da experiência das categorias nas quais geral: qualquer coisa pode produzir qualquer coisa).
se quer tradicionalmente reparei-lo. Nesse sentido, trata-se de fato de
uma experiência pura. Puro não quer mais dizer puro de toda maté- Mas, precisamente, essas relações e esses acontecimentos são
ria, mas puro de toda forma -- ou, antes, designa uma realidade in- virtuais; ainda devem se fazer em uma experiência. O que distingue a
termediária exterior a qualquer relação matéria/forma. experiência da experiência pura é exatamente a atualização dessas
Com efeito, o que o empirismo radical recusa -- e que constitui relações no interior do material. A experiência é um percurso ou uma
o fundo das filosofias transcendentais de Kant e Husserl -- é o esque- série de percursos que seguem um número relativo de relações. Se a
ma hilemórfico. Era um objetivo semelhanteque James fixava para si
com a psicologia: liberar o fluxo de consciência, o famoso sfream o/'
conscious/zess,das formas da psicologia tradicional. Contudo, não se 7 Essays ifzradica/ emPlriclsm, Harvard University Press, p 4. Em seu estudo
trata, para James, de derrubar o primado da forma sobre a matéria para sobre Leibniz e o barroco, Deleuze mostra, através da obra de Dubuffet, que Leibniz
deixar fluir uma matéria sensitiva, livre, à maneira dos empiristas. In- substitui a relação matéria-forma por uma relação material-força: "A matéria que revela
dependentementedessa relação, existe uma realidade intermediária, nem sua textura se torna material, assim como a forma que revela suas dobras se torna
matéria nem forma, que se desdobra por si mesma e da qual são feitas força. E o par material/força que, no barroco, substitui a matéria e a forma(as forças
primitivassendoas da alma)". Le P/í, Paria, Minuit, cap. 3, p. 50.
tanto as realidades psíquicas como as físicas. E o que é ela? É, diz James,
8 Qu'est-ce que !a pbilosopbie?, p. 41.
9 Idem, p. 38.
6 Essays, man scriPrsaria Mores,Harvard University Press, p. 18, 4 (4459). 10 Essays flz radica/ emPirfclsm, p. 113.
270 David Lapoujade Do campo transcendentalao nomadismo operário William James 271
consciência se revela como fluxo, é porque ela sempre está seguindo /..iclorcs. Deambular não significa que o conhecimento esteja necessa-
linhas, criando seus percursos. ri;trilcnte submetido à errância, significa que ele se faz pouco a pou-
Assim, em uma primeira dimensão, o processo do conhecimen- Lt), por meio de junções sucessivas, segundo expressões recorrentes em
to consisteem seguir as linhas, as relaçõesvirtuais inscritas no mate- Inlncs. Conhecer é percorrer relações, as relações que atravessam a ex-
rial, isto é, consiste em criar um percurso e as dimensõesdesse per- llc'ciênciapura, é seguir relações e coloca-las em série. Conhecer é pros-
curso. O primeiro elementoé a linha ou a série que o conhecimento l)t'tr:\r -- como no texto de MiJ PZafõssobre as máquinas de guerra,
constitui, de um primeiro termo relativo a uma finalização provisó- i'ili blueDcleuze e Guattari, inspirando-se em Simondon, mostram que
ria. O conhecimento é deambulatório. E precisamenteJames opõe dois iio artesão a relação matéria/forma não é a de modelagem,mas que
tipos de conhecimento: saltatório e ambulatório. Em um caso, parte- t'lt-segue uma materialidade que ele modula14. A primeira imagem é
se da imanência de um sujeito que deve saltar por cima dele mesmo, i) artesão prospector, que só deixa de ser artesão para se tornar tra-
em um Absoluto ou sobre um campo transcendental, para relacionar 1).tlhadorquando se interrompe uma deambulação que segueo movi-
o objeto a um sujeito. O conhecimento saltatório procede dessemodo itlcntoe as variações do material, aquilo que Deleuze e Guattari de-
porque ele esvazia as séries de seus termos intermediáriosi l. llominam o "pby/am maquínico". Nesse sentido, seguir as linhas "ma-
James substitui essetipo de conhecimento por um outro, que, pre- teriais" é detectar nelas funções, fazer funcionar o material. /amos subs-
cisamente,percorre a cada vez toda a série dos intermediários ou a titui um esquema matéria/forma por um esquema material/função.
contrai em um hábito: trata-se dessa vez do conhecimento dito ambu- É quando se pergunta como são feitas as linhas que z/masegun-
latório. Como diz James, "minha tese é a de que o conhecimento em í/a dimensão aparece. Pois essas linhas são pontos que é preciso cons-
questão é co sfíf ído pela deambulação através das experiências inter- truir de um termo a outro. Como diz James, "a idéia não dá um salto
mediárias [-.] Para uma relação concreta de conhecimento, as experiên- tónicopor sobre o abismo, ela opera aos poucos, de modo a lançar uma
cias intermediárias são, portanto, fundamentos tão indispensáveisquanto ponte que o atravesse, completa ou aproximativamente"15. A deam-
o espaço intermediário o é para uma relação de distância. O conheci- l)ulação se faz gradativamente, por junções sucessivas. O conhecimento
mento, todas as vezes que o enfocamos concretamente, significa 'deam- cresce por meio de pedaços que se agrupam. O segundo elemento, após
bulação' [...] "12. Assim, por convenção, denominar-se-ásujeitoo ponto a linha, é então o pedaço. De modo mais preciso, a consciência se re-
de partida de uma série, e objeto, o ponto de chegada, mas apenas por vela e se faz seguindo linhas, mas também apreendendo pedaços, que
convenção, e sem negligenciar os intermediários, que adquirem uma cla relaciona entre si. A consciência é um fluxo, mas o fluxo não ces-
consistência própria.13 Dir-se-iam igualmente mantenedores e finali- sa de se contrair em campos ou "pulsações" que mantêm juntos os
elementos da percepção, da volição, da emoção, do pensamento. Um
ii "Pois esvaziamos primeiro a idéia, o objeto e seus intermediários de to- pedaço é um tal campo, consistente por si mesmo, autocoalescente. As
das as suas particularidades, com a finalidade de reter apenas um esquema geral; percepções, os pensamentos e as emoções são tratados como pedaços.
e assim só consideramos este último na função que consiste em dar um resultado, O fluxo de consciência é um desfilar de pedaços heterogêneospor seus
e não em seu caráter de processo [-.] Em outros termos, os intermediários que, motivos, homogêneos por seu estofo. A matéria têxtil da experiência
em sua particularidade concreta, formam uma ponte, evaporam-se idealmente,de
modo a não ser mais do que um intervalo vazio a ultrapassar." Tbe meafzilzgo/
frHfb, Harvard University Press, VI, p. 247.
14Ml{/leP/afeaax, pp. 509-10. Note-se que essa materialidade é definida em
iz Idem, pp. 246-7. termos muito semelhantesàqueles com os quais James descreve o material: "Mas
elesó é, portanto, 'intermediário' na medida em que o intermediário é autónomo,
i3 Para Deleuze e Guattari, a independência relativa dos termos intermediá- quando ele mesmo se estende em primeiro lugar entre as coisas e entre os pensa-
rios é um dos traços essenciaisdo nomadismo. Mi/le plafeanx, Paris, Minuit, p.
mentos, para instaurar uma relação inteiramente nova entre os pensamentos e as
471: "Um trajeto é sempre entre dois pontos, mas o entre-lugaradquiriu toda a coisas, uma vaga identidade dos dois
consistência, e goza de autonomia, assim como de direção própria. A vida do nõ-
made é intermezzo: í5 Tbe mea?zfpzgo/' frufó, Vll, p. 264.
272 David Lapoujade Do campo transcendentalao nomadismo operário William James 273
pura é compósita. Mesmo sendo contínua e homogênea, não deixa de sas por meio de uma rede cuja amplitude se estende à medida que se
ser feita de pedaços ligados entre si de diversas maneiras. estreitam as malhas [.-] Do ponto de vista desses sistemas parciais, o
É evidenteque encontramos aí a definição do pragmatismo ame- mundo inteiro se sustenta gradativamente, dc diferentes maneiras" 18
ricano como pafcbmorA dada por Deleuze. Pode-se ler, assim, em Crí- James substitui a idéia de um Todo concêntrico que fusiona suas par-
tica e c/híca, no estudo sobre Melville: tespor um mundo abertocompostopor pedaçosou por sistemas--
diversos "pequenos mundos"19 de ligações múltiplas, e que se man-
Nem sequer um quebra-cabeça, cujas peças, ao se têm por sl mesmos.
adaptarem, reconstituiriam um todo, mas antes como um O tema do pafcbmor& ou da filosofia em mosaico terá seu pro-
muro de pedras livres, não cimentadas, em que cada elemen- longamento na Escola de Sociologia de Chicago, por volta dos anos
to vale por si mesmo e no entanto tem relação com os de- 20. A cidade é descrita por tal escola como uma realidadeem peda-
mais [...]; não uma vestimentauniforme, mas uma capa de ços, através da diversidade dos bairros urbanos -- pequenos mundos
Arlequim, mesmo branco sobre branco, uma colcha de re- isolados que abrigam populações imigrantes, junções anónimas de
talhos de continuação infinita, de juntura mú]tip]a [...] a indivíduos em deslocamento. Como diz Park, "os processos de segre-
invenção americana por excelência, pois os americanos in- gação instauram distâncias morais que fazem da cidade um mosaico
ventaram a colcha de retalhos, no mesmo sentido em que de pequenos mundos, que se tocam sem se interpenetrar. Isso dá aos
se diz que os suíços inventaram o cuco"ió. indivíduos a possibilidade de passar fácil e rapidamente de um meio
ambiente moral a outro e encoraja esta experiência fascinante, mas
Há um "estofo" da experiência. Literalmente, o conhecimento perigosa, de viver em vários mundos diferentes, contíguos certamen-
consiste em construir um palcbwor&; é um trabalho por pedaços. E por te, mas, apesar de tudo, distintos"ZU.
isso que com frequência James invoca um tecido da experiência, como No entanto, seguindo a outra dimensão, seguindo o emaranha-
material têxtil. Costuramos ou remendamos nossos pedaços de expe- do das linhas, o mundo forma menos um pafcbwor& do que um gi-
riências uns aos outros, pouco a pouco, por intermédio de séries. Como gantesco nefmor&. Linha e pedaço, /zefmor&e parcbmorh são os dois
diz James: "A própria experiência, tomada no sentido amplo, pode grandes eixos de construção da experiência e de crescimento do mun-
crescer por suas bordas. Não se pode contestar que um de seus momentos do. Segundo um exemplo de James, a natureza funciona exatamente
se desenvolvano momento seguinte por meio de transições, conjuntivas como uma rede postal à qual se superpõe uma rede telefónicaque a
ou disjuntivas, que prolongam o tecido da experiência [...]"i'. recobre em parte, estabelecendo,entretanto, conexões específicas que
Mas não é apenas o conhecimento ou a consciência que se cons- incluem novas unidades. O mundo apresenta-secomo um emaranha-
trói como um pafcbmor&, é o próprio mundo que aos poucos tece um do de relações: por exemplo, a luz como linha de influência, o espaço
gigantesco pafcbmor&. Nesse sentido, James fala de uma filosofia em como relação de junção, o tempo como relação contínua de envolvi-
mosaico. Existe um número incalculávelde redes que se superpõem mento, a linha de consciênciacujo percurso progride através dessas
umas às outras e formam um tecido compósito. Como diz James: "Nós
mesmos criamos constantemente conexões novas entre as coisas, or-
ganizando grupos de trabalhadores, estabelecendo sistemas postais, i8 Some proa/ems o/'pbf/osopby, Harvard University Press, V, p. 69.
consulares, comerciais, redes de vias férreas, de telégrafos, uniões co- i9 Pragmczffsm,Harvard University Press, p. 67: "Disso resultam, para as
loniais e outras organizações que nos relacioname nos unem às coi- diversas partes do universo, inumeráveis pequenos agrupamentos no interior de
agrupamentosmais vastos; pequenos mundos [-.] no interior do universo mais
vasto
iÓ Crílíq e et c/ilzlque, Paras, Minuit, pp. 1 10-1.
zoCitado em Hannerz, Exp/orar /a z/f//e,Paria, Minuit, trad. 1. Joseph, pp
i7 Essays in radica! empiticism, p. 42. 43-5
274 David Lapoujade Do campo transcendental ao nomadismo operário -- William James 275
outras linhas. Eis do que se deve sempre partir: uma multiplicidade de (ou ao artesão prospector de À4flPlafós) do que a um homem de ne-
relações que se entrecruzam, se superpõem em todos os sentidos e se H(Seios.A filosofia de James parece, de fato, mais próxima de uma or-
revelam tão logo as seguimos. Ê preciso citar James novamente: dem social menos triunfante: a de Hobos (cujos modos de vida a Es-
cola de Sociologia de Chicago descrevera). Eles formam o imenso flu-
"Existem inumeráveis relações de diferentes espécies xo disperso dos trabalhadores migrantes que atravessaram os Estados
que coisas especiais podem ter com outras coisas especiais; Unidos, de Chicago até a Costa Oeste, em função dos canteiros de obras
e, em seu conjunto, qualquer uma dessas ligações forma uma c dos empregos sazonais, organizando-se em sociedades provisórias e
espécie de sistema por meio do qual as coisas são ligadas. locais, a "Hoboêmia". "0 veterano da estrada sempre encontra nela
Assim, os homens são ligados no interior de uma vasta rede outros veteranos; o birrento incurável, seu a/fer ego; o radical, o oti-
de conhecimento. Brown conhece Jones, Jones conhece Ro- mista; o trapaceiro, o alcoólatra, todos aí encontram alguémcom quem
binson etc.; escolhendo apropriadamente suas séries de in- se entender [...]. Eles se encontram e seguem seu caminho"22. E]es se
termediários, você poderá fazer com que uma mensagemde distinguemradicalmente dos pioneiros na medida em que são inse-
Jones chegue até a imperatriz da China, até o chefe dos pig- paráveis dos movimentos da economia capitalista americana, em que
meus da África, até qualquer habitante deste mundo. Mas se alternam expansões e crises agudas, em que o uso maciço da demis-
você é logo interrompido, como por um elemento não-con- são se combina com a alta rotatividade da mão-de-obra. Esses ritmos
dutor, quando escolhemal um de seus intermediáriosno rápidos contribuem para a instabilidade dos empregos e para a mobi-
curso dessaexperimentação"z'. lidadeforçada, para o "nomadismo operário". Trata-se de uma ver-
dadeira "dromomania", segundo a bela expressão de Nels Anderson.
O pensamento de James é como um romance de Dos Passos, que ;Essa necessidadese apodera de nós sem avisar [.-] Temos o automó-
descreve a superposição dessas conexões, as redes ferroviárias, marí- vel, o vagão de estrada de ferro, o barco a vapor, o avião -- cuja fun-
timas, aéreas, e as mistura com as biografias humanas e com os peda- ção essencial é, de fato, a de gratificar nossas tendências vagabun-
ços de notícias, o grande romance sincrânico dos itinerários simultâ- das."23 Portanto, eles tampouco são operários sedentários; além dis-
neos que se superpõem. Decerto trata-se de considerar o mundo simul- so, mal conseguemsuportar o controle a distância do sindicato. Es-
taneamentecomo um vasto tecido composto pouco a pouco e como tão, por assim dizer, no entre-lugar, entre as duas Fronteiras, entre a
um sistema de redes: patcbmorh e nefzaori. fronteira das primeiras comunidades de pioneiros (que chegaram ao
Pacífico por volta de 1850) e a fronteira da industrialização (que con-
Se a filosofia oriunda do pragmatismo é talvez a filosofia ameri- cluiu sua expansão por volta de 1920). São eles que percorrem o país
cana por excelência,julgar-se-á sem dúvida que isso se deve ao fato de maneira ambulatória e brilham a rede das conexões. Eles fazem um
de ela pensar as relações como grandes sistemasde netmor&sque po- pedaço de estrada e passam de transições a paradas provisórias, à
dem ser indefinidamente construídos e que se superpõem em todos os maneira dos personagens de London. É, então, de um modo bastante
sentidos, ao fato de antecipar os grandes desenvolvimentos das redes curioso que a filosofia de James é a filosofia do capitalismo americano.
de comunicação do século XX, que vão de cidades-mosaicos a cida-
des-mosaicos. Não estamos, então, longe de retomar a definição tra-
dicional do pragmatismo como promoção do capitalismo americano Tradução de Ana Lúcia Oliveira
e de seus valores comerciais. Entretanto, segundo James, o filósofo é
aquele que, por sua vez, não cessa de deambular por entre essas vas-
tas redes; ele nos parece assemelhar-se mais a um trabalhador itinerante 22Cf. o belo livro de Nels Anderson, Le FÍobo: socio/ogled sa/zs-abri
Nathan, 1993, e o prefácio de O. Schwartz.
zi Pragmallsm, Harvard University Press, IV, p. 67. 23/dem, p. 106.
276 David Lapoujade Do campo transcendental ao nomadismo operário -- William James 277
A PERCEPÇÃO EM SARTRE E DELEUZE
Véronique Bergen
28 G. Deleuze e Guattari, <)u'esf-ce q e /a pbi/osopble?, p. 49. 3i Deste modo, a crítica dirigida por Badiou a Deleuze sobre um sujeito que
se veria retomado, pego por trás pelas dimensões do Uno e do infinito, conserva
29J.-P. Sartre, L'imagifzízflofz, especialmente às pp. 44-5.
ria sua validade apenas no quadro de um barroco leibniziano, não do neo-barro-
300 301
Véronique Bergen A percepção em Sartre e Deleuze
tríplice configuração de imperativos dos acontecimentos (lançar dos dades diferenciais, modulando-se como praia de devires definidos pela
dados) apresentados como questões (dados) que nos assaltam, e cujas forma a prforí do aios, cujo sentido de acontecimento incorporal
Idéias problemáticas (resultantes do lance de dados), "paradoxando", efeito da ordem dos corpos e quase-causa das concreções molares --
medusando as faculdades, modalizam seletivamenteuma resposta, uma garante a ligação entre as séries heterogêneas do ver e do falar nas quais
escalada a um exercício transcendente e superior de pensamento sus- ele se atualiza mantendo sua parte de sombra, seus anos de açor, sua
citado pela impotência, pelo inconscientedos imperativos oncológicos contra-efetuação no entretempo.
que nos estremecem. Plenitude de toda configuração perceptiva, qual- À margem das figuras kantianas de uma doação de um diverso
quer que seja o grau de clareza que possua, bifurcação automática e sensível ao qual se aplicam esquematização temporalizante e apare-
inconsciente capaz de deportar a efervescência molecular a um limiar lhagem categorial, ou hegeliana de um ser sempre já pensado como
consciente, a micro ou macropercepção é o outro nome de uma vida conceito, o dispositivo deleuzeanopõe em cena uma percepçãopro-
nas dobras que incorpora a noite do Fora, de uma "interioridade de jetiva, narcísica, que traça as coordenadas de seu campo de exercício,
espera ou de exceção" (Blanchot) que redobra o Outro, fora de toda e da qual o espelho material não é senão o reflexo de um simulacro
identidade. "0 dentro como operação do fora: em toda a sua obra, percipiente, sombra de uma sombra, onde o semelhado (físico) se en-
Foucault parece perseguido por esse tema de um dentro que seria ape- trega ao modelo (psíquico) do percebido, onde percipiente e percebi-
nas a dobra do fora, como se o navio fosse um dobramento do mar. do se confundem nas metamorfoses arlequinais de um eterno disfar-
A propósito do louco lançado em sua nau, no Renascimento, Foucault ce. Nesse traçado se cruza o relato plotiniano, tal como aparece nas
dizia: 'e]e é co]ocado /zo inferior do ex]erfor, e inversamente, [.-] pri- Enxadas: "Pois é preciso que o olho se torne parecido e semelhante
sioneiro em meio ao mais livre, ao mais aberto dos caminhos, solida- ao objeto visto para se aplicar a contempla-lo. Jamais um olho veria
mente encadeado à infinita encruzilhada, ele é o Passageiro por exce- o sol sem ter se tornado semelhante ao sol". Rizoma plotino-bergso-
lência, isto é, o prisioneiro da passagem'. O pensamento não tem ou- niano enrolado em volta de uma procissão luminosa cuja imanência
tro ser que esselouco mesmo."Jj do efeito que dela emana não resulta, porém, de uma causa que se vê
remanejada em suas conseqiiências, tornando-se efeito do efeito; rizoma
3' . Canografias antológicas acentrado, cristalino, que Deleuze ramifica, junta ao expressionismo
Enfim, as cartografias ontológicas traçadas por Sartre e Deleuze de um Leibniz que desenrola inversamente as dobras solares a partir
podem ser esboçadas em suas diferenciais, muito lapidarmente, como de uma caverna sensorial mergulhada na sombra. Assim se revela, aqui,
segue: à massividade intemporal de um ser em-si, incriado, pleno, sem o quanto essa construção ideal de um diverso intensivo, privado de
distância nem cisão a si, "marulho inferior qualquer" sempre seme- acesso imediato em sua totalidade virtual, choca-se com vigor contra
lhante a si, desprendendo-se acidentalmente num para-si nadificante a figura de pensamento anti-sofística estabelecida por Aristóteles, a
pelo qual o sentido advém ao mundo, opõe-seum ser unívoco, con- saber: a marcha de pensamento pela qual o Estagirita impede que o
junto de todos os acontecimentos ideais, corpo glorioso, que se decli- discurso demonstre o ser como simulacro e destileum impressionismo
na como pura reserva, extra-ser, sem-fundo efervescente de singulari- ontológico: somente a essência de coisas apreendidas em seu ser em-
si, independentementede toda noese,será proposta como padrão de
verdade. O credo aristotélico de um desejável que move o desejante
1966, p. 5. Cf. também Df/X2renceef répéffllon, pp 105-6: "A própria necessida-
jque Sarte retomará por sua conta), de um perceptível em si anterior
de é portanto muito imperfeitamente compreendida a partir de estruturas negati-
vas que a relacionam já à atividade (-.) Também aí, nesseterreno (contemplativo), a todo percipiente,sela a primazia da referênciaextra-lingüísticaso-
somos levados a ver no negativo (a necessidade como falta) a sombra de uma ins- bre uma relação lógica, judicativa, que deixa intocado o ser das coi-
tância mais alta. A necessidadeexprime o boquiabrir de uma questão, antes de sas que ela desvela. E precisamente essa preocupação aristotélica de
exprimir o não-ser ou a ausência de uma resposta. Contemplar é questionar' preservar o ser da visada intencional, de impedir sua redução a um
3s G. Deleuze, Fo caK/f, Minuit, 1986, p. 104. epifenâmeno da consciência, que guiará a fenomenologia husserliana
l
O que pretendo fazer, nesta circunstância, é tentar esclarecer o
texto em epígrafe, que não deixa de ser enigmático, pelo menos à pri-
meira vista. Como podem idéias como "movimento infinito" e "velo-
cidades infinitas de movimentos finitos", de significação originalmente
/laica, qualificar noções como as de "plano de imanência" e de "con-
ceito", que são claramente nela/bicas? Se conseguirmos fazê-lo, mesmo
precariamente, talvez alguma luz seja lançada sobre a concepção de-
leuzeana da filosofia nas suas relações com a história da filosofia, com
a pré-filosofia, e sobretudo, o que talvez importe mais, com a /zão-/;-
/osoPa. Para poder fazê-lo no tempo disponível, vou limitar-me à aná-
lise de um texto curto (o capítulo 111de O que é a /}/osoêa?) e proce-
der em duas etapas. Em primeiro lugar, uma descrição do modo como
Deleuze define a idéia de "plano de imanência"; em segundo, um ba-
lanço dos efeitos mais significativos dessa concepção da instauração
filosófica. Mas, para tanto, será necessárioassumir uma perspectiva
diferencial e comparativa. Um ponto de vista exfer/zo à obra de De-
leuze, que a situe dentro de um triângulo definido por três iniciativas
desigualmentepróximas da sua: a fenomenologia (pensada grosso mo-
do, sem cuidar das mil versõesque recebeul, a Arqueologia de Fou-
cault e a análise gramatical do segundo Wittgenstein. Se os dois pri-
essestermos são vagos e gerais): não é nem a mesma imagemdo pen- Com essas observações, demos o primeiro passo da tarefa a que
samento, nem a mesma matéria do Ser. O plano é pois o objeto de uma nos propusemos, e que está longe de dar conta do sentido ou do uso
especificação infinita, que faz com que ele não pareça ser o Uno-Todo da idéia de plano de imanência no pensamento de Deleuze. Outro passo
senão em cada caso especificado pela seleção do movimento. Essa di- é necessário, para que haja algum progresso, e concerne às relações
ficuldade concernente à natureza última do plano de imanência só pode entre as idéias de plano de imanência e de caos.
ser resolvida progressivamente" 10 qz/eé a Áz/oso/!a?,p. 55).
11
Note-se que a semelhançadas iniciativas (e mesmo a cumplici-
dade entre os autoresl não pode esconder aqui uma discrepância ra- Comecemos por um texto crucial onde podemos ler: "0 plano
dical. O que faz problema para Deleuze é ponto pacífico para Fou- de imanência é como um corte no caos e age como um crivo. O que
cault, ou o ponto de partida de sea traí z/bo (sempre nos limitando, caracteriza o caos, com efeito, é menos a ausência de determinações
aqui, a As Pa/az/rase as coisas). Talvez esse nó -- se ele não fot ima- que a velocidade infinita com a qual elas se esboçam e se apagam: não
ginário -- possa ser desatado se atentarmos para a diferença na ma- é o movimento de uma a outra mas, ao contrário, a impossibilidade
neira como cada um tenta responder à questão -- o qae é pensar?, de uma relação entre duas determinações, já que uma não aparece sem
embora ambos articulem tal questão à reflexão sobre o que é "radi- que a outra tenha já desaparecido, e que uma aparece como evanescente
ca!mente impensável quando a outra desaparececomo esboço. O caos não é um estadoinerte
um perspectivismo sem relativismo? Ele não nos remete imediatamente Para encerrar, apenas algumas observações complementares a
a Nietzsche? Em todo caso, tal idéia parece transparecer na definição respeito da relação entre filosofia e vida. Talvez os cruzamentos aci-
deleuzeanado plano de imanência como um horizonte muito peculiar, ma sugeridos recebam maior verossimilhança se pensarmos nos efei-
isto é, "[...] não [como] o horizonte relativo que funciona como um tos "práticos" de idéias como as de plano de imanência e de jogo de
limite, muda com o observador e engloba estados de coisas observáveis, linguagem. Pois, como para Kant, não parece discutível que a ativi-
mas [como] o horizonte absoluto, independente de todo observador' dade filosófica tenha, tanto para Deleuze como para Wittgenstein, sua
10 que é a fitosofiae, p. S2). justificação plena apenas nos seus efeitos ético-políticos. Mais ainda,
No caso de Wittgenstein, o caráter não relativista de seu pers- pareceque a "ilusão filosófica" só merececrítica, para um como para
pectivismo jao lado do reconhecimento da multiplicidade das formas outro, por causa dos seus efeitos, considerados devastadores, na vida
de vidas é motivado, entre outras coisas, pela proibição de qualquer imediata, individual ou coletiva. No que concerne às relações entre
forma de juízo de valor -- o que não deixa de ser um paradoxo: como filosofia e vida em Wittgenstein, convém registrar as seguintes obser-
descrever a forma de vida contemporânea ou a civilização tecno-cien- vações de Von Wright: "Em razão do entrelaçamento entre a língua
tífico-industrial como "decadente", já que impregnada por essa "la- gem e as maneiras de viver, uma desordem na primeira reflete uma
vagem imunda" que é a ciência, como ele faz, e dizer que não está fa- desordem nas últimas. Se os problemas filosóficos são o sintoma do
zendo nenhum juízo de valor? Talvez não fosse insensato resolvera fato de que a linguagem produz excrescências malignas que obscure-
questão, recorrendo ao que diz Wittgenstein da relação entre o "gê- cem nosso pensamento, então deve haver um câncer no Lebensmefse,
nio" e o simples "homem honesto" (antecipando a comparação entre no próprio modo de vida." (G. H. von Wright, Wlffgenszei/z,T.E.R.,
formas de vida de igual valor), nas Vermlscb e Bemerkungen.Lá po- PP. 22a-91. Diagnóstico catastrofista do presentee concepção "sin-
demos ler: "0 gênio se distingue do homem reco não porque tem mais tomal" da filosofia, que se exprime igualmente nos escritos de Deleu-
pensamento, mas porque dirige todo o pensamentopara uma único ze a partir do Ánfí-Edfpo: lá também não se entrelaçavam a crítica do
ponto, que faz brilhar" l Vermiscbfe Bemer&unge/z, T.E.R., p. 95). E modo de vida instaurado pelo capital e a das "teorias", como a psica-
o que vale para os indivíduos vale para as formas de vida: sem hierar- nálise jnuma crítica diferente daquela que Wittgenstein endereçará,
quizar explicitamenteas formas de vida, Wittgenstein as compara e também com respeito, a Freud), que o exprimem? Na verdade, temos
diferencia, apontando para a que Ihe é mais congenial, aquela que não diante de nós duas filosofias de inspiração essencialmente "anarcân-
proíbe que nos lancemos insensatamente contra os limites da lingua- tica". Em primeiro lugar porque combatem todas as formas de fun-
3 l,'#palsé, que se segue a Qual ef cafres pfêces tour /a fé/éufsíolz, de Samuel "Em fenómeno histórico, como a Revolução de 1789,
Beckett;Paras,Minuit, 1992,p. 57.
a Comuna, a Revolução de 1917, há sempre uma parte de
4 Idem, p. 60: "1 woK/d prever nof fo, segundo a fórmula beckettiana de
Bartleby
5 idem, primeira frase. 6 Bergson, La pensée et /e moaz/ant, Paris, PUF, pp. 14 e 113
zó Parece que esseesquema de atualização já é o do marxismo, em oposição par no presente). Daí por que o operador revolucionário por excelência é a toma
ao socialismo utópico. Seguindo uma passagem célebre de A Ideo/ogfaa/emã: "0 da de consciência, que pressupõe seu próprio conteúdo e dá, paradoxalmente, ao
comunismo não é [...] nem um estado que deve ser criado, nem um laca/ a partir futuro a forma lógica do passado: não a emergência de uma nova sensibilidade. A
do qual a realidade deverá se regular. Chamamos comunismo o movimento real concepção historicamente oposta, o espontaneísmo, tampouco se liberta da ante-
que abole o estado anual. As condições desse movimento resultam da pressupo' cipação, uma vez que a espontaneidade nada mais é do que uma percepção incons-
lição que existeanualmente".(Pauis,Sociales, 1976, p. 33; os grifos são de Marx ciente da meta. A alternativa permanece prisioneira do esquema de realização, como
e Engels.) O comunismo não está,propriamente falando, por vir; eleestá, desde testemunha o ensaio de Lênin, Q e Áazeri; a atualização do virtual nunca tem o
já, presentecomo uma fendêlzcfa,inscrita nas contradições do sistema atual. O que caráter de criação.
permitefalar do futuro, sem descambarem princípio para o sonho ou para o ar-
bitrário, é a possibilidadede decifra-lo no próprio presenteem devir. Mas, desse 27Poulpczr/ers,Paris, Minuit, 1990, p. 23 1
modo, a estrutura de realização aparece combatida de modo insuficiente: tem-se 28L'alar/-(Edlpe, p. 408, coloca, a esse respeito, a alternativa entre o des-
sempre previamente o futuro em imagem, graças ao instrumento dialético; o rea- moronamento psicótico e o devir-revolucionário.
lizávelé apenas elevado a necessário, enquanto o virtual conserva a forma an-
tecipatória de uma mera (essa é a maneira pela qual o futuro continua a se anteci- 29O tema aparecia desde o início do livro, p. ll
3z E como os bolcheviques depois de 1917, os liberais hoje se lamentam 33Cf., respectivamente, "Mai 68 n'a pas eu lieu" e l,'éplrfsé, p. 93.
diante da mentalidade arcaica dos russos jcontudo, não se opta mais pela reedu- 34 Especialmente em Francês Bago?z. Logfq e de /a sensafíon, Pauis, La Diffé
cação forçada, mas pela forma mais civilizada de uma miséria orquestrada pelo rence, 1981, p. 60, após ter precisamenteperguntado como se libertar dos clichês
FMI) como formar uma figura que não seja um clichê.
..
Deleuzenos diz que a sociedadeem que vivemos hoje é a socie-
dade de controle, termo que toma emprestado do mundo paranóico
de um William Burroughs. Ao propor esta visão, ele afirma seguir
Michel Foucault, mas devo reconhecerque é difícil encontrar, onde
quer que seja na obra de Foucault -- em livros, artigos ou entrevis-
tas --, uma formulação clara da passagem da sociedade disciplinar à
sociedade de controle. De fato, ao anunciar tal passagem, Deleuze for-
mula, após a morte de Foucault, uma idéia que não encontrou expres-
samente formulada na obra de Foucault.
A formulação dessa idéia por Deleuze, no entanto, é bastante
exígua: o artigo mal passa de cinco páginas. Ele nos diz muito poucas
coisas concretas sobre a sociedade de controle. Ele constata que as
instituições que constituíam a sociedade disciplinar -- escola, família,
hospital, prisão, fábrica, etc -- estão, todas elas e em todos os luga-
res, em crise. Os muros das instituições estão desmoronando de tal
maneira que suas lógicas disciplinares não se tornam ineficazes mas
seencontram, antes, generalizadascomo formas fluidas através de todo
o campo social. O "espaço estriado" das instituições da sociedade
disciplinar dá lugar ao "espaço liso" da sociedade de controle. Ou, para
retomar a bela imagem de Deleuze, os túneis estruturais da toupeira
estão sendo substituídos pelas ondulações infinitas da serpente. En-
quanto a sociedade disciplinar forjava moldagens fixas, distintas, a
sociedade de controle funciona por redes flexíveis moduláveis, "como
uma moldagem auto-deformante que mudasse continuamente, a cada
instante, ou como um peneira cujas malhas mudassem de um ponto a
OUtl'0 " -l
1. 0 VIRTUAL...
O virtual é um conceito bem antigo. A palavra, que vem de uirfus
ja força) é ligada a acfualfs lo ato que a torna efetivaj; esse par cor-
responde à dy/zamls-e/zergela, que alguns consideram ser o próprio
cerne da filosofia de Aristóteles. No entanto, mais perto de nós, foi
Gilles Deleuze que o retomou, como essencial à filosofia; o virtual, de
acordo com ele, seria a "realidade" do conceitos
Deleuze propõe extrair o virtual da metafísica categorial de Aris-
tótelespara fazê-loentrar em sua "lógica das multiplicidades": a dy-
lzamis sai do quadro hilomórfico e passa, entre gêneros e espécies, em
devires estranhos, em que suas atualizações escapam a qualquer fina-
lidade; antes mesmo de agir ou de se efetuar, ele se mostra pelos sig-
nos de uma expressão obscura e de uma construção complexa, inaca-
bada. Assim, eleexige uma outra "imagem do pensamento" em que
o "potencial" conceitual não está mais fechado no bom senso das
possibilidadeslógicas dadas, mas se move por paradoxos, questões,
temas complexos, anteriores às proposições e aos julgamentos, que
traduzem os acontecimentosque nos forçam a pensar. Em suma, o
virtual, em Deleuze, se torna inseparável de um novo estilo de infe//
gência que se anuncia por uma "virtualização" da grande tradição
filosófica, descobrindo linhagens subterrâneas, pares estranhos. A in-
teligência deleuzeana é, antes de mais nada, uma arte do virtual.
Nessa arte, "o único perigo", nos diz ele, "é o de confundir o
virtual com a realização de um possível2. O perigo é, portanto, lógi-
co, e Deleuze tenta mostrar que a confusão entre a multiplicidade e a
diversidade enumerável, entre o todo aberto e a totalidade fechada,
entre a individuação e a especificação, a diferenciação e a oposição ou
i5 Sobre Aion e Cronos, cf. Logígue dz/sefzs,pp. 1 90-8. 23Searlee Pugnam,por exemplo,tendema ir nessesentido,cadaum a seu
modo. Com a problemáticados "qualia" da consciência,a questãode um "in-
ió PoHrpar/ers, p. 112.
consciente" do "cérebro vivido" e do que elesupõe de possibilidadede nossa "mun-
17Spinozíz: pbi/osopbfe prízffque, Paras, Minuit, 1981, p 124 daneidade" permanece esquivada.
i8 Címéma 2: 1,'fmage femPs, pp. 342 ss. 24Cf. G. Deleuze e C. Parnet, Dra/ogues, pp. 74-7.
8. A SOBREVIDA
Na filosofia, trata-se sempre de vida e de sobrevida; é o que faz
com que ela trace um percurso diferente daquele, por exemplo, das
ciências: um "tempo estratigráfico" de superposições4S. É assim que
a cidade é condição empírica e contingente não apenas da vida da fi-
losofia, mas também de sua sobrevida em novos meios e com novas
45G. Deleuze e F. Guattari, Qlr'esr-ce q e /a pbi/osopbie?, p. 1 18. 4óG. Deleuze e F. Guattari, 11?u'esf-ceque /a pbl/osopble?, P. 104
416 Laymert Garcia dos Santos Código primitivo -- código genético: a consistência de uma vizinhança 417
péciese dentro de cada espécie,na alteração, embaralhamentoe ar- formando a informação enquanto diferençaqualitativa numa diferença
tificialização das sequências genéticas, na produção de seres inéditos, quantitativae abstrata; "colocando preço no valor", para usar a ex-
monstruosos, como a mulher-farmácia, animais transgênicos, bacté- pressão de uma camponesa colombiana a respeito do que se pretende
rias que comem petróleo, tomates que resistemao tempo e não apo- fazer agora com a vida vegetal, animal e humana. Como se a exten-
drecem. Decifração e manipulação do código genético são complemen- são do sistema de patentes que protegia a invenção mecânica indus-
tares e configuram uma intervenção cujas conseqüências são impre- trial para o campo da própria vida consumassea ruptura definitiva
visíveis, para muitos ambientalistas e cientistas, inclusive biólogos com a unidade primitiva, selvagem,do desejoe da produção, que é a
moleculares. Os especialistas em biosegurança chegam até a conside- terra. "Porque a terra", escrevemDeleuzee Guattari, "[...] é entidade
rar a produção de organismos pela engenharia genética mais perigosa única e indivisível, o corpo pleno que se rebate sobre as forças produ-
do que a fabricação da bomba atómica, porque não se sabe como es- tivas e delas se apropria como se fosse o seu pressupostonatural ou
ses organismos interagem com outros e com os ecossistemas,e nao divino. O solo pode ser o elemento produtivo e o resultado da apro-
existe a possibilidade de se controlar a sua proliferação e o seu impacto priação, mas a Terra é a grande estale inengendrada, o elementosu-
em caso de acidente. perior à produção que condiciona a apropriação e a utilização comuns
Não há como dissociar a decifração do código genéticode sua do solo".3
ruptura. Isso fica bastante evidenciado quando à decodificação, à des- Da mais-valia de código à mais-Dália do alto capitalismo. Se con-
territorialização promovida pela biotecnologia, se soma a axioma- cordamos com Deleuze e Guattari em quc "a propriedade é precisa-
tização efetuada pelo capitalismo através da introdução do regime de mente a relação desterritorializada do homem com a terra", podemos
propriedade intelectual. A fusão dos fluxos tecnológicosda Revolu- perceber a que nível de intensidade chegou essa relação com a instau-
ção Eletrânica com os fluxos desterritorializados da emergente Revo- ração de um regime de propriedade intelectualque permite a apropria-
lução Biológica começou a ganhar consistênciae expressãoquando ção e até mesmo a monopolização da informação genética. E é com-
ficou claro que os fluxos de ambas processavama informação como preensível que tal processo seja percebido por muitos como uma des-
a diferença que faz a diferença, para usar as palavras de Gregory Ba- sacralização da vida e a sua redução à condição de mercadoria no
teson. Tal compreensão provocou um ímpeto extraordinário na pes- biomercado. Isso fica evidenciado, por exemplo, na reação dos Guaymi
quisa biotecnológica c abriu um campo novo para a exploração capi- do Panamá à tentativa do secretário do Comércio dos Estados Uni-
talista, na medida em que possibilitava a apropriação da própria vida dos de patentear linhagens de células extraídas de uma das integran-
no seu nível mais ínfimo, que é o da informação genética. Não é à toa tes desse povo, por conterem material genético interessante para a
que geneticistas americanos, europeus e japoneses começaram a fazer indústria farmacêutica. Os índios consideraram o fato uma profana-
/oflzfz,ezzfures
com o capital de risco, criando uma figura nova, a do ção incompatível com o seu código de valores, atitude que contrasta-
cientista-empresário; também não é à toa que as ações das empresas va fortemente com a conduta de John Moore, cidadão americano que
de biotecnologiaforam as que mais se valorizaram em Wall Streete também teve células suas apropriadas e patenteadas, mas moveu sem
na City nos últimos anos; finalmente, cabe ressaltar a disputa entre os sucesso uma ação judicial para reivindicar a posse de seus próprios
próprios laboratórios de biotecnologiapelo que o jornal Fi/zancla/ fragmentos genéticos!...
Tomes considera "a derradeira privatização", aquela em que se con- É interessante notar como o capital industrial e financeiro inter-
frontam os que defendem o patenteamento da informação genética fouf nacional investena instauração do regimede propriedade intelectual
court e os que pretendem patenteá-la embutida num processo ou pro- em escala planetária, para garantir a apropriação de fragmentosde
duto industrial específico. informação de todo e qualquer ser vivo, agora reduzido à condição
Decifrado e rompido, numa palavra, decodificado, o código ge-
nético foi envolvido numa operação de axiomatização que visa re-
territorializá-lo e inscrevê-lo no regime da propriedade privada, trans- 3 Idem, p. 164 (Minuit) e p. 112 (Assírio &: Alvim)
418 Laymert Garcia dos Santos Código primitivo -- código genético: a consistência de uma vizinhança 419
de "recurso genéticovirtual". Como se o advento da globalização OS PRONOMES COSMOLÓGICOS E
económica precisasse se concretizar na exploração mais minimamen- O PERSPECTIVISMOAMERÍNDIO
te localizada; como se agora fosse imprescindível para o capital ope- Eduardo Viveiros de Castro
rar nas duas pontas, ou nos dois níveis, o molar-global e o molecular-
genético, para garantir a sua reprodução e deslocar os seus limites.
O fato de o capitalismo procurar abarcar a questão vital nesses
dois extremos ou níveis torna a situação anual ainda mais desesperadora
do que e]a parecia a De]euze e Guattari no limiar da década de 80, EI ser humano se ve a sí mismo como tal. La Luna.
quando escreveram o "Traité de nomadologie"; naquela época, a bio- la serpiente, el jaguar y la madre de la viruela lo ven, sin
tecnologia e o sistema de propriedade intelectual ainda não faziam parte embargo,como un taparo un pecarí, que ellos matan.
da "máquina de guerra mundial". Entretanto,por maior que seja o IBaer, 1994,p. 2241
alcance da dinâmica do capitalismo, está ficando explícito que ela
própria produz exclusão, em escalacada vez mais ampliada. Le point de vue est dans le corps, dit Leibniz.
Entre os excluídos se encontram, é claro, os povos indígenas que IDeleuze, 1988, p. 161
ainda vivem no mundo. Desprezados como arcaicos e obsoletosnas
eras moderna e contemporânea, tais povos estão despertando o inte-
resse do capital porque permitem um acesso mais rápido aos recursos INTKODUÇÃO
genéticosda biodiversidade, quando não se tornam eles próprios o O tema deste ensaio é aquele aspecto do pensamento ameríndia
recurso genéticocobiçado! Mas não é só por isso que eles parecem que manifesta sua "qualidade perspectiva" (Àrhem, 1993): trata-se da
ganhar atualidade; é que muitas vezes sua relação com o território con- concepção, comum a muitos povos do continente, segundo a qual o
serva ainda, poderosos e intensos, os traços atribuídos por Deleuze e mundo é habitado por diferentes espécies de sujeitos ou pessoas, hu-
Guattari à relação do nâmade com o espaço. Há muito o que apren- manas e não-humanas, que o apreendem segundo pontos de vista dis-
der com os povos indígenas sobre os fluxos que percorrem e consti- tintosi. Os pressupostos e consequências dessa idéia são irredutíveis
tuem o espaço nâmade, conectando a terra como grande estase inen- jcomo mostrou Lima, 1995, pp. 425-38) ao nosso conceito corrente
gendrada à "nova terra" que Deleuze e Guattari desejavam prenun- de relativismo, que à primeira vista parecem evocar. Eles se dispõem,
ciar. Nesse sentido, as páginas de À4í/P/afãs sobre o "absoluto local" a bem dizer, de modo perfeitamente ortogonal à oposição entre rela-
e o "global relativo" são não só decisivas, como de uma atualidade tivismo e universalismo. Tal resistência do perspectivismo ameríndio
Impressionante. aos termos de nossos debates epistemológicos põe sob suspeita a ro-
bustez e a conseqüente transportabilidade das partições cosmológicas
que os alimentam. Em particular, como muitos antropólogos já con-
420 Laymert Garcia dos Santos Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio 421
cluíram (embora por outros motivos), a distinção clássica entre natu- pectivizar nossos contrastes contrastando-os com as distinções efeti
reza e cultura não pode ser utilizada para descrever dimensões ou vamente operantes nas cosmologias ameríndias.
domínios internos a cosmologias não-ocidentais sem passar antes por
uma crítica etnológica rigorosa. PERSPE(:rIV]SMO
Tal crítica, no caso presente, impõe a dissociação e redistribuição O estímulo inicial para esta reflexãosão as numerosas referên-
dos predicados subsumidos nas duas séries paradigmáticas que tradi- cias, na etnografia amazónica, a uma teoria indígenasegundo a qual
cionalmente se opõem sob os rótulos de "natureza" e "cultura«: uni- o modo como os humanos vêem os animais e outras subjetividadesque
versal e particular, objetivo e subjetivo, físico e moral, fato e valor, dado povoam o universo -- deuses, espíritos, mortos, habitantes de outros
e instituído, necessidade e espontaneidade, imanência e transcendên- níveis cósmicos, fenómenos meteorológicos, vegetais, às vezes mesmo
cia, corpo e espírito, animalidadee humanidade, e outros tantos. Esse objetos e artefatos -- é profundamente diferente do modo como esses
reembaralhamento etnograficamente motivado das cartas conceituais seres os veem e se veem.
leva-me a sugerir a expressão ma/final ra/esmo para designar um dos Tipicamente, os humanos, em condições normais, vêem os hu-
traços contrastantes do pensamento ameríndio em relação às cosmo- manos como humanos, os animais como animais e os espíritos (se os
logias "multiculturalistas" modernas: enquanto estas se apóiam na im- vêeml como espíritos; já os animais (predadores) e os espíritos vêem
plicação mútua entre unicidade da natureza e multiplicidade das cul- os humanos como animais Ide presas, ao passo que os animais lde
turas -- a primeira garantida pela universalidade objetiva dos corpos presa) vêem os humanos como espíritos ou como animais (predado-
e da substância, a segunda gerada pela particularidade subjetiva dos res). Em troca, os animais e espíritos se vêem como humanos: apreen-
espíritos e dos significados --, a concepção ameríndia suporia, ao dem-secomo (ou se tornam) antropomorfos quando estão em suas pró-
contrário, uma unidade do espírito e uma diversidade dos corpos. A prias casas ou aldeias, e experimentam seus próprios hábitos e carac-
cultura" ou o sujeito seriam aqui a forma do universal, a "nature- terísticas sob a espécieda cultura -- vêem seu alimento como alimen-
za" ou o objeto, a forma do particular. to humano (os jaguares vêem o sangue como cauim, os mortos vêem
Essa inversão, talvez demasiado simétrica para ser mais que es- os grilos como peixes, os urubus vêem os vermes da carne podre como
peculativa, deve se desdobrar em uma interpretação fenomenológica peixe assado etc.), seus atributos corporais jpelagem, plumas, garras,
plausível das categorias cosmológicas ameríndias, que determine as bicos etc.) como adornos ou instrumentos culturais, seu sistema so-
condições de constituição dos contextos relacionais designáveiscomo cial como organizado do mesmo modo que as instituições humanas
natureza" e "cultura". Recombinar, portanto, mas para em seguida jcom chefes, xamãs, festas, ritos etc.). Esse "ver como" refere-selite-
dessubstancializar, pois as categorias de natureza e cultura, no pensa- ralmente a perceptos, e não analogicamente a conceitos, ainda que, em
mento ameríndio, não só não subsumem os mesmos conteúdos, como alguns casos, a ênfase seja mais no aspecto categorial que sensorial do
não possuem o mesmo estatuto de seus análogos ocidentais -- elas não fenómeno; de todo modo, os xamãs, mestres do esquematismo cós-
designam províncias ontológicas, mas apontam para contextos re- mico (Taussig, 1987, pp. 462-3) que se dedicam a comunicar e admi-
lacionais, perspectivas móveis, em suma, pontos de vista. nistrar essas perspectivas cruzadas, estão sempre aí para tornar sensí-
Como está claro, penso que a distinção natureza/cultura deve ser veis os conceitos ou tornar inteligíveis as intuições.
criticada, mas não para concluir que tal coisa não existe jjá há coisas Em suma, os animais são gente, ou se vêem como pessoas. Tal con-
demais que não existem). O "valor sobretudo metodológico" que Lévi- cepção está quase sempre associada à idéia de que a forma manifesta
StraussIhe atribuiu j1962b, p. 327) é aqui entendidocomo valor se de cada espécie é um mero envelope (uma "roupa") a esconder uma
bretudo comparativo. A florescente indústria da crítica ao caráter oci- forma interna humana, normalmente visível apenas aos olhos da própria
dentalizantede todo dualismo tem advogado o abandono de nossa espécie ou de certos seres transespecíficos, como os xamãs. Essa forma
herança conceitual dicotâmica, mas as alternativas até agora se resu- interna é o espírito do animal: uma intencionalidade ou subjetividade
mem a desideratos pós-binários um tanto vagos; prefiro, assim, pers- formalmente idêntica à consciência humana, materializável, digamos
ETNOCENTRISMO
i3 Ver Radcliffe-Brown (1952 [1929], pp. 130-1), que, entre outros argu-
mentos interessantes, distingue os processos de personiPcação das espéciese fe- Em um texto muito conhecido, Lévi-Strauss observava que, para
nómenos naturais (o que "permite conceber a natureza como se fosse uma socie- os selvagens, a humanidade cessa nas fronteiras do grupo, concepção
dade depessoas, fazendo dela uma ordem social ou moral"), como os que se acham que se exprimiria exemplarmentena grande difusão de auto-etnâni-
entre os Esquimós ou Andamaneses, dos slsfemas de c/asslPcaçãodas espécies
mos cujo significado é "os humanos verdadeiros", e que implicam,
naturais, como os que se acham na Austrália, e que configuram um "sistema de
solidariedades sociais" entre homem e natureza -- isto evoca. obviamente, a dis assim, uma definição dos estrangeiros como pertencentesao domínio
unção animismo/totemismo de Descola, bem como o contraste manfdo/rolem ex- do extra-humano. O etnocentrismo não seria privilégio dos ociden-
plorado por Lévi-Strauss. tais, portanto, mas uma atitude ideológica natural, inerente aos cole-
2z Riviêre ( 1995, p. 194) apresenta um mito interessante, no qual fica claro 23Ver Taylor (1993a, p. 445) e Descola {no prelo). As críticas destesauto-
que a roupa é menos forma que função. Um sogro-jaguar oferece a seu genro hu- res à noção de "sobrenatureza" são legítimas, mas sob a condição de se aplicarem
mano roupas de onça. Diz o mito: "0 jaguar dispunha de tamanhos diferentes de igualmente às noções de "natureza" e "cultura", tão ocidentalistas e reificadoras
roupas. Roupa para pegar a/zfa, roupa para pegar gueixadcz[-.] roupa para pegar quanto aquela; se é possível dar a estas últimas um significado puramente sinóptico,
CKffa. Todas essas roupas eram mais ou menos diferentes e todas tinham garras' como quer e faz Descola, não vejo por que não se pode fazer o mesmo com a pri-
Ora, os jaguares não mudam de tamanho para caçar presas de tamanhos diferen meira. Além disso, a releitura pragmático-comunicativa do mundo dos espíritos,
tes, eles apenas modulam seu comportamento. Essas roupas do mito estão adap- proposta por Taylor j1993a) para os Achuar, equivale a uma definição de "sobre-
tadas às suas funções específicas, e da forma-jaguar só permanecem, pois só im- natureza" do mesmotipo que as que proponho aqui para "cultura", "natureza
portam, as garras, instrumento de sua função. e agora para "sobrenatureza
27 G. Deleuze, Prol/sf ef /es slgmes. 29G. Deleuze, "La littérature et la vie", Crifiqi/e ef c/inlqKe, p. 13
28 G. Deleuze, Loglqae da sons. se Idem, pp. 13-4.
s3M. Proust, "Correspondance avec Madame Strauss", in G. Deleuze, Crf- 35 G. Deleuze, Crifzqae ef c/imiqz/e, p. 13.
fiqz e ef c/iníqua, p. 16.
só Idem, ibid.
34Cf. M. Blanchot, l.czPczrtdu áeue l.'enfrefien in/ini, in G. Deleuze, Crili-
g eefc/iníqua,
p 13. 37G. Deleuze, "Avant-propôs") Crífiqae ef c/Iniqz/e,p. 9. Grifos nossos
* Em francês, palbigue, de pafbos. (N. da T.) 5 G. Deleuze, Prol/sf ef /es sfglzes,Paras, PUF, p. 138
532 533
Haroldo de Campos Barrocolúdio deleuzeano
O CINEMA DO PENSAMENTO
PAISAGEM, CIDADE E CYBERCIDADE
André Parente
emblemática: a linha, o círculo e a banda de Moebius. Essas figuras 72), Buenos Aires, Emecé, 1974. Lembramos que em A/pbapiZle, Godard faz uma
série de citações tiradas deste texto de Borges, entre elas a famosa frase de Scho-
se repetem ao longo do filme sob a forma de sinais e grafismos da cida-
penhauer, que afirma que só o presente existe: Nadie ba Fluido en e/pesado, nadfe
de: flechas, círculos, semi-círculos, a letra alpha, o símbolo do infini- viverá en e! futuro: el presente es la forma de toda vida... Sobre o tempo como
to e o número oito. É todo o filme, em sua montagem, em sua narra- multiplicidade de aparência e o mito de Proteu, ver Michel Serras, Genàse, Paria,
tiva, em seus movimentos de câmera, em suas vozes, em seus gêneros, Grasset, 1982, pp. 33-6.
lz Em Crlflq e ef c/llzfque,Deleuze leva até as últimas consequências a ideia í3 Serge Daney, Dez/anf /a reco descende des saca à mala, Paria, Aléas, 1991
de que todo grande artista e toda grande obra são feitos em uma espécie de língua Raymond Bellour, Entre-fmages, Paris, La Différence, 1990; Pascal Bonitzer, Déca-
estrangeira, uma nova língua, cheia de agramaticalidades, gagueiras e disfunções, drages, Paras, Éditions de L'Étoile, 1987; Jacques Aumont, L'oe// fnfe mflzab/e, Paria
capazes de criar novas conexões cerebrais e novos agenciamentos coletivos Librairie Séguier, 1989; Noêl Burch, l.a / carne de /'iK/inf, Paria, Nathan, 1991
JosÉ Gil
Professor de filosofia na Universidade Nova de Lisboa e corres
pondente do Colégio Internacional de Filosofia. Publicou, entre ou
arostítulos: Á froPO/orla de//eÓorze,Milão, Einaudi, 1983; Mélam07.
ÉRIC ALLIEZ
Professor convidado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro BENTO PRADO JR.
de 1988 a 1996, fundador do Colégio Internacional de Estudos Filo- Professor da Universidade de São Paulo (1960-69); affacbé de
sóficos Transdisciplinares e coordenador da coleção Trans, da Editora recbercbe no CNRS (1969-74); professor da PUC de São Paulo (1975-
34. Entre 1992 e 1998, foidire mr (ü propamme no Collêge International 77); e professor da Universidade Federal de São Carlos desde 1977.
de Philosophie, em Paris. Atualmente, é professor no Institut für Publicou, entre outros títulos: Presença e camPO franscedenra/: Cons-
Kulturphilosophie da Akademie der Bildenden Künste, em Viena. cfêncfa e negaízufdade na P/oso/i(z de Bergs07z,São Paulo, Edusp, 1989;
Livros traduzidos no Brasil: Tempos caP/tais,t. 1: Re/arosda Alguns ensaios: Filosofia, literatura, psicanálise, São Pau\o, M.ax
conqalsfa do temPO,pref. de Gilles Deleuze e trad. de Mana Helena Limonad, 1985; Erro, ilusão, /owcura, no prelo.
Rouanet, São Paulo, Siciliano, 1991; A assinar ra do mundo: O qz/e
é a /i/oso/za de Deleaze e Gzlaffarl, trad. de Mana Helena Rouanet e
Bruma Velar, São Paulo, Editora 34, 1995; Da impossfbi/idade da Áe- ISABELLE STtNGERS
,'omenologia: Sobre a filosofia francesa contemporânea, ttad. de Ra- Filósofa, professora da Universidade Livre de Bruxelas. ultimas
quel de Almeida Prado e Bento Prado Jr., São Paulo, Editora 34, 1996; publicações: CosmoPO/fliques, 7 volumes, Paris, La Découverte, co-
Deleuze: Filosofia virtual {em A.nexos=G. Delenze, o aludi e o uirtual}, leção Les Empêcheurs de Penser en Rond, 1997-98; Sele/icesef pouuofr,
trad. de Helosia B. S. Rocha, São Paulo, Editora 34, 1996. Paras, La Découverte, 1998.
últimas publicações: Les [emPS caP]faux, t. ]], vol. ]: ],'éfaf des
cboses, Pauis, Cera, 1999; (com G. Schõder, org.) À4ezamorpbosezzder
Zeil, Munique, Wilhelm Fink Verlag, 1999; (com E. von Samsonow, FRANÇOIS ZOURABICHVILI
org.) Te/e/zela:Krlllh de7'ulrt e/JenBi/der, Viena, Verlag Tuna + Kant, Doutor em filosofia, diretor de programa no Colégio Internado
1999 nal de Filosofia. Agr(igé de filosofia e responsável por cursos na Uni-
É editor responsável pelas Oeuz/res de Gózbfle/ Tarde, Paris, Sa- versidade de Paris VIII. Publicou: De/e ze: U e pbf/osopbie de /'éué
nofi-Synthelabo, coleção Les Empêcheurs de Penser en Rond. zzemenf,Paris, PUF, 1994.
552 Éric Alliez {org.l Gilles Deleuze: Uma Vida Filosófica 553
FREDRIC JAMESON EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO
Professor de literatura comparada e diretor do Programa de Lite- Antropólogo, professorde antropologiasocial no Museu Na-
ratura da Universidade Duke IEUA). Últimas publicações: Posfmoder- cional desde 1978; professor visitante da Universidade de Chicago
pzlsm, or lbe c /lzlla/ /ogic o//afe mPIZa/fsm, Duke, Duke University Press, j1991l; professor honorário da Universidade de Manchester (1994);
1993; S(gnalures o/fbe z/lsió/e,Londres e Nova York, Routledge, 1992; pesquisador visitante na École des Hautes Études en SciencesSociales
Tbe secas o/[fme, Columbia, Co]umbia University Press, ] 995. e no Laboratório de Etnologia e Sociologia Comparativa da Universi-
dade de Paria X(1986, 1987, 1989, 1995). Publicou, entre outros Ei-
to\os: From tbe enemy's point oft/iew: Hamanity and diuittity in Âma-
RENATO JANINE RIBEIRO go/ziazzsoclefy, Chicago, Chicago University Press, 1992; nestaobra,
Professor de ética e filosofia política no Departamento de Filo- discorre sobre suas pesquisas etnológicas na Amazânia indígena des-
sofia da Universidade de São Paulo. Publicou dois livros sobre Thomas de 1975
Hobbes (A marca do Lez,fala e Ao leitor sem medo, um livro de en-
saios filosóficos (A zí/famarazão dos 7'efs)e vários artigos, dos quais,
em francês: "Thomas Hobbes: Philosophie premiêre, théorie de~+a SUELY ROLNIK
science ct politique", Paras, PUF, 1989; "Rétif et Michelet", l,es É/udc'9 Psicanalista c professora da PUC de São Paulo, onde coordena o
Rélíz/íennes,n' 11, 1989; e "Révolution, souveraineté, histoire: La Centro de Estudos Pós-Gradilados sobre Subjetividade em Psicologia
complicité de trois concepts", em Vovelle (org.), L'fmage de /a Réz/o- Clínica. É autora de: Carlograáía se/ztime?zfa/:
Transformações confem-
/ flozzFrançafse, 1989. Organizou o colóquio Recorc&zrFoucau/f, cujas por.incas do dose/o,São Paulo, Estação Liberdade, 1989; e, com F.
ates foram publicadas em 1985. Guattari, Mlcropo/alga: CarfogrízPas do desejío,Petrópolis, Vozes,
1985. Coordenou, com P. P. Pelbart, o número especial De/euze dos
Cadernos de S b/efípfdade,São Paulo, PUC, 1996. Tradutora de À41/
JOHN RAJCHMAN P/afãs, vo1. 3, Rio de Janeiro, Editora 34, 1996.
Professor do Massachusetts Institute of Technology (MIT), mem-
bro do conselho editorial de diversas revistasde arte e arquitetura (Arl-
Óorzlm,'4fzy, entre outras). Algumas de suas publicações traduzidas para JOEL BIRMAN
o francês: &í]cbel rouca Zr:],a/ibe é de sauofr, Paras, PUF,] 987; 1,'é70rf- Psicanalista, professor titular do Instituto de Psicologia da Uni-
que de !a uérité: Fotlcault, Lacar et la qaestion de I'étbique, Par\s, PUF, versidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e professor associado
1994. Organizou, com C. West, l,a pe/zséeamé lcaine co/zfemPorai?ze, da Universidadedo Estado do Rio deJaneiro. últimos livros publica-
Paras, PUF. É autor de diversos livros em vias de publicação, em inglês: dos: Por ma esf{/Êficada exlsfê/zela,São Paulo, Editora 34, 1996;
Gi/ZesDeleKze: Tbe pb//osopby, Cambridge, Cambridge University Press; Estilo e modernidade em psíca á/ise, São Paulo, Editora 34, 1997 e
Braizz-cify: Dlag7am íznd dias/zosls, Nova York, Monacelli; e, com E. Carfogr.z#as do Áen/Hino,São Paulo, Editora 34, 1999.
Balizar, Frencbpbf/osopbysíncefbe Wa7',Nova York, The New Press.
EDUARDOA. VIDAL
LAYMERT GARCIA DOS SANTOS Psicanalista, membro da escola Letra Freudiana, no Rio de Ja
Professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Uni- negro.
versidade de Campinas e membro diretivo do Conselho da Comissão
Pró-Yanomani ICCPY). É autor de vários ensaiose livros, entre os
quais: 7'empade e/zsaio,São Paulo, Companhia das Letras, 1989.