Braga CristinaSantaella D

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ARTES

CRISTINA SANTAELLA BRAGA DA HORA

O REAL DO CORPO NO FLAMENCO: O DUENDE EM ATO

THE REAL BODY IN FLAMENCO: THE ELF IN ACTION

CAMPINAS
2016
CRISTINA SANTAELLA BRAGA DA HORA

O REAL DO CORPO NO FLAMENCO: O DUENDE EM ATO

THE REAL BODY IN FLAMENCO: THE ELF IN ACTION

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em


Artes da Cena do Instituto de Artes da Universidade
Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos
para a obtenção do título de Doutora em Artes da Cena,
na área de concentração Teatro, Dança e Performance.

Thesis presented to the Arts Institute of the Univesrsity of


Campinas in partial fulfillment of the requirements for
the Degree of Doctor in Scenic Arts, in the area of
concentration Theater, Dance and Performance.

ORIENTADORA: PROFA. DRA. CASSIA NAVAS ALVES DE CASTRO

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO


FINAL DA TESE DEFENDIDA PELA
ALUNA CRISTINA SANTAELLA BRAGA DA HORA, E ORIENTADA PELA
PROFA. DRA. CASSIA NAVAS ALVES DE CASTRO

CAMPINAS
2016
Ao sentido do amor

José Antônio V. Braga

Fernando Gomes da Hora

Leonardo Braga da Hora


AGRADECIMENTO

À Fapesp (Fundação de Âmparo à pesquisa do Governo do Estado de São Paulo)

Ao grande amigo Jairo da Rocha por toda a produção gráfica.

Aos amigos, sempre presentes, em especial a Gisela Dória, Monita Ruedas, Maira Rocha,
Nelson Carroso, Oscar Cesarotto, Leda Tenório da Motta e Cláudio Cesar Montoto pela
presença, antes de tudo, em momentos de muita angústia.

Ao Matteo Bonfitto, Angela Becker, Graziela Rodrigues e Cassiano Quilici pelas preciosas
interlocuções.

A Cássia Navas que há nove anos, aceitou me acompanhar nessa empreitada que eu não sabia
onde iria dar. Ela sabia, mas não me contou, permitindo que eu descobrisse os caminhos com
o seu suporte. Obrigada por me apoiar nesse casamento teórico e artístico. Minha sempre
gratidão por ti!

A Lucia Santaella pelo carinho materno e decisivas interlocuções.

A Isabel Marazina que no manejo entre a lei e o amor vem propiciando encontros de
escrituras que me faz corpo.

À Oficina Flamenkera e, em especial, ao diretor musical, Gabriel Soto. Cada pedacinho dessa
tese pertence a cada um(a). Um(a) a Um(a). Fui apenas a porta voz.

À diretora artística Cylla Alonso que, num atrevido cálculo cauteloso, esse medido pelos
grandes artistas, soube, com maestria, a me conduzir a um lugar possível de contorno de um
vazio cheio de notas.
RESUMO

Do mestrado (2010), trouxemos para o doutorado uma questão a ser resolvida, a saber, a
questão da genialidade dos artistas, especificamente dos dançarinos. O que se passa quando
essa genialidade é incorporada em cena, neste caso, performática? Quando se trata do
flamenco, essa questão se fortalece nas leituras sobre o mistério do duende, no sentido
teorizado, poetizado e refletido pelo poeta-escritor Frederico Garcia Lorca. Pensar na
intersecção entre a dança e a psicanálise vem de longe, desde a Iniciação Científica que
versou sobre Carmen, de Mérimée (2003). As inquietações que aí nasceram passaram para
uma nova etapa, agora focalizada na questão do duende. As tentativas de compreender o
duende com apoio nas técnicas teatrais ou nos métodos de dança, tanto em um quanto em
outro caso, em vez de dar suporte, foram desviando o trabalho de seu verdadeiro foco. Nessa
medida, quanto mais os caminhos ensaiados se revelavam, se não inadequados, pelo menos
incompletos e tergiversantes, mais forte se tornava a aposta na psicanálise. Afinal, o problema
da criação artística e literária nunca foi estranho a Freud e Lacan. Portanto, seguir essa
fundamentação teórica e a metodologia que dela decorre foi se revelando promissor na
medida em que o duende não vem de fora, como nos lembra Lorca: “o duende não está na
garganta; o duende sobe por dentro a partir da planta dos pés”. Uma vez que isso nos leva,
irremediavelmente a algo da ordem do impalpável, mas, ao mesmo tempo e paradoxalmente,
instaurador de realidades em cena, a pesquisa foi se sistematizando teórica e
metodologicamente na direção daquilo que Lacan caracterizou como Real. Isso nos permitiu
chegar a articulações complexas, mas reveladoras sobre as relações entre dança e psicanálise,
em especial nos permitiu penetrar nos enigmas do duende em ato.

Palavras-chave: flamenco, psicanálise, duende flamenco.


ABSTRACT

From the Master thesis (2010), we brought an issue to be resolved, namely the question of the
artists’ geniality, especifically the dancers’ geniality. What happens when that admirable
talent is built on the scene, in this case, in performance? When it comes to flamenco, this
issue strengthens in face of the duende’s mystery in the sense theorized, poeticized and
reflected by the poet-writer Frederico Garcia Lorca. Thinking about the intersection between
dance and psychoanalysis comes from afar, since our first research (2003) on Carmen, by
Mérimée. The concerns that there were born passed to a new stage, now focused on the issue
of the duende. Attempts to understand this issue with support on theatrical techniques or
methods in dance, both in one and in another case, rather than giving support, worked away
from the real focus. Hence, the more the tested paths were revealed, if not inadequate, at least
incomplete and deviating, the stronger became the bet on psychoanalysis. After all, the
problem of artistic and literary creation has never been a stranger to Freud and Lacan. So to
follow this theoretical framework and methodology gradually proved to be promising since as
noted by Lorca, "the duende is not in the throat; it rises from inside, from the soles of the
feet”.This leads us inevitably to something of the order of the impalpable, but at the same
time and paradoxically, to the embodiment of realities in the scene. Therefore, the research
was necessarily directed toward the theoretical and methodological systematization of what
Lacan characterized as the Real. This allowed us to come to the complex but revealing joints
about the relationship between dance and psychoanalysis in particular it has allowed us to
penetrate the puzzles of the duende in act.

Key-words: flamenco, psychoanalysis, duende flamenco.


LISTA DE FIGURAS

Figura 1: O Triângulo da Composição ........................................................................... 21


Figura 2: Modelo de Fluxo ............................................................................................. 37
Figura 3: Foto Daniel Cunha – Tablao Oficina Flamenkera, Villa Flamenca ............... 48
Figura 4: Seguidillas (Baile dos Ciganos) ...................................................................... 78
Figura 5: Cafés Cantantes .............................................................................................. 78
Figura 6: Bailaora Petra Camara ................................................................................... 78
Figura 7: Bailaor Escola Bolera Luis Alonso................................................................ 78
Figura 8: “La Gitanilla” de Cervantes ............................................................................ 78
Figura 9: Carmen de Prosper Merimée .......................................................................... 78
Figura 10: Anselmo Gonzáles Climent – palavra flamencologia .................................... 78
Figura 11: Silvério Franconelli ........................................................................................ 78
Figura 12: Antonio Chacón .............................................................................................. 78
Figura 13: Antonio Mairena ............................................................................................. 78
Figura 14: Manuel de Falla .............................................................................................. 78
Figura 15: Pepe Marchena ............................................................................................... 78
Figura 16: La Niña de Los Peines ……………………………………………………… 78
Figura 17: Manuel Vallejo ............................................................................................... 79
Figura 18: Diretor Luis Buñuel ........................................................................................ 79
Figura 19: Carmen Amaya ............................................................................................... 79
Figura 20: Cantaor Valderrama ....................................................................................... 79
Figura 21: Niño Ricardo .................................................................................................. 79
Figura 22: Sabicas ............................................................................................................ 79
Figura 23: Antonio Ruiz Soler ......................................................................................... 79
Figura 24: Cia de Pilar Lopéz .......................................................................................... 79
Figura 25: Zambra ........................................................................................................... 80
Figura 26: Rosa Durán ..................................................................................................... 80
Figura 27: Guitarrista Paco de Lucía ............................................................................... 80
Figura 28: Cantaor Camarón de la Isla ………………………………………………… 80
Figura 29: Antonio Gades ................................................................................................ 80
Figura 30: Cantaor Enrique Morente .............................................................................. 80
Figura 31: Cantaora Estrella Morente ............................................................................. 80
Figura 32: Cantaor Miguel Poveda ................................................................................. 80
Figura 33: Manolo Caracol .............................................................................................. 80
Figura 34: Manuel Torres ................................................................................................ 80
Figura 35: Ramon Montoya ............................................................................................. 80
Figura 36: Trindade Huertas “La Cuenca” ...................................................................... 80
Figura 37: Carmen Dauset Moreno, “Carmencita” .......................................................... 80
Figura 38: Rosario Monje, La Mejorana .......................................................................... 80
Figura 39: Pastora Império ............................................................................................... 81
Figura 40: Matilde Coral .................................................................................................. 81
Figura 41: La Argentina ................................................................................................... 81
Figura 42: Vicente Escudero ............................................................................................ 81
Figura 43: “La Argentinita” ............................................................................................. 81
Figura 44: “El Farruco” .................................................................................................... 81
Figura 45: Juan Manuel Fernández Montoya .................................................................. 81
Figura 46: Mario Maya .................................................................................................... 81
Figura 47: Manuela Vargas .............................................................................................. 81
Figura 48: Israel Galván de los Reyes ………………………………………………..... 81
Figura 49: Eva Yerbabuena .............................................................................................. 81
Figura 50: Rocio Molina .................................................................................................. 81
Figura 51: Félix Grande ................................................................................................... 81
Figura 52: José Caballero Bonald .................................................................................... 81
Figura 53: José Luis Ortiz Nuevo .................................................................................... 81
Figura 54: Faustino Nuñez ............................................................................................... 81
Figura 55: Juan Vergillos ................................................................................................. 81
Figura 56: José Manoel Gamboa ..................................................................................... 81
Figura 57: Foto de Daniel Cunha – Tablao Oficina Flamenkera, Villa Flamenca .......... 86
Figura 58: Foto de Daniel Cunha – Tablao Oficina Flamenkera, Villa Flamenca .......... 123
Figura 59: Foto de Daniel Cunha – Tablao Oficina Flamenkera, Villa Flamenca .......... 157
Figura 60: Foto de Daniel Cunha – Tablao Oficina Flamenkera, Villa Flamenca .......... 207
Figura 61: Nó borromeo ................................................................................................... 221
Figura 62: Foto de Maria Tiurina - Duende, do Espanhol ............................................... 246
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 13

CAPÍTULO 1
BUSCAS, CAMINHOS E PERCALÇOS .................................................................. 18
1.1 O ponto de partida .................................................................................................. 20
1.2 Uma passagem: performance, ritual e mito ......................................................... 26
1.3 Ponderações e perspectivas: outra entrada .......................................................... 31
1.4 A teoria do fluxo ..................................................................................................... 33
1.5 O encontro no fio da navalha: há que se escavar esse Real ................................ 38

CAPÍTULO 2
O FLAMENCO DO PASSADO AO PRESENTE ..................................................... 49
2.1 As origens ................................................................................................................ 49
2.2 O baile e o cante do século XIX ............................................................................. 52
2.3 Os cantes flamencos ................................................................................................ 55
2.4 Os grandes nomes do baile Flamenco ................................................................... 61
2.5 Por uma história viva do flamenco ...................................................................... 65
2.6 Entrevista com Cylla Alonso: explicitando seu método ...................................... 71

CAPÍTULO 3
EL DUENDE: O FIO CONDUTOR ........................................................................... 87
3.1 O duende se faz como presença ............................................................................. 93
3.2 Antes de se fazer metáfora-duende: o inconsciente ............................................. 98
3.3 Uma estranheza que se faz duende ....................................................................... 102
3.4 Pelo duende, os traços do inconsciente: sinal do não-tempo .............................. 109

CAPITULO 4
RUMO AO REAL ........................................................................................................ 124
4.1 Inconsciente e linguagem: do sonho à inversão do signo linguístico .................. 125
4.2 O jogo da repetição no Fort-Da ............................................................................. 134
4.3 A questão do corpo ................................................................................................. 135
4.4 A imagem se faz espelho ......................................................................................... 142
4.5 O desejo e a falta ..................................................................................................... 146
CAPÍTULO 5
FRENTE A FRENTE COM O REAL ........................................................................ 158
5.1 Pulsão vs instinto: a distinção se fez verbo ........................................................... 158
5.2 Três tempos pulsionais: descrição pulsional do Estádio do Espelho ................. 165
5.3 Caminhos e tropeços da pulsão de morte ............................................................. 168
5.4 Da pulsão ao desejo, deste à demanda: o que o Outro deseja? .......................... 171
5.5 Sublimação: uma possibilidade ............................................................................. 175
5.6 Entre a Coisa (das Ding) e a fantasia .................................................................... 179
5.7 Ritornellos: repetir é preciso ................................................................................. 183
5.8 Sintoma: mal que nos fala num gozo bem-dito .................................................... 187
5.9 O ritornello da fantasia .......................................................................................... 197

CAPÍTULO 6
O CORPO FLAMENCO NA VOZ E OLHAR DA PSICANÁLISE ....................... 208
6.1 Por que dizer não à sublimação ............................................................................ 209
6.2 Duende e objeto a: diálogo possível ou impossível? ............................................ 213
6.3 Voz e música na cena flamenca ............................................................................. 216
6.4 O rasgo do real ........................................................................................................ 218
6.5 Do gozo e seu apagamento ..................................................................................... 222
6.6 O encontro do corpo en-cena com o das Ding ...................................................... 225
6.7 Atando os fios em nós ............................................................................................. 228

CONCLUSÃO
PARA CONCLUIR: DE ALGUM LUGAR, SEMPRE INCONCLUSO................. 238

REFERÊNCIAS ........................................................................................................... 247


13

INTRODUÇÃO

Este doutorado nasceu de uma questão deixada suspensa na dissertação de


mestrado que, sob o título O ensino-aprendizagem da dança à luz da psicanálise, foi
defendida em 2010, na Unicamp, sob a orientação de Cassia Navas. Na época, conforme será
melhor explicitado no capítulo 1, estudamos de que maneira a posição do professor poderia
auxiliar ou não no trabalho das alunas (grupo piloto) nas aulas de flamenco sob a ótica de
alguns conceitos psicanalíticos selecionados para o problema. O que percebemos é que, por
mais que o professor atuasse de maneira a ancorar, sem excessos, disponibilizando-se como
suporte “suposto”, que ali se fazia, em presença ausente ou em ausência presente, algo
impedia algumas integrantes do grupo de se fazer, de se contar em cena. Na época, foram
realizadas diferentes dinâmicas com diversos profissionais da área das artes, e, ao fim do
percurso, veio a confirmação: algo não permitia que o corpo se contasse, ali em/na cena. A
figura se perdia e a plasticidade ficava como que ancorada num corpo duro, compactado e
sem a linguagem que pudesse dar voz à especificidade do baile flamenco.
Finalizado o Mestrado, a inquietação encontrou uma pausa, embora a
pesquisadora seguisse no aperfeiçoamento do trabalho como intérprete-bailaora, junto com
uma interrupção na atividade de professora. O Mestrado fechou essa porta, mas abriu uma
outra, que ainda nos era desconhecida. Descobriu-se, no percurso, que a pesquisadora
precisava dar “mais conta” do seu próprio corpo e do trabalho cênico, em vez de seguir no
trabalho de construção/des-re-construção de outros corpos no bailado.
Assim, no ano de 2014, a pesquisadora bailou no grupo chamado Rueda Flamenca
sob a direção de Monita e Carlos Ruedas. Aqui, buscava-se uma resposta que se fazia latente
desde o Mestrado, ou seja, o que acontecia no corpo para que a plasticidade, não a entendendo
aqui enquanto forma, mas possibilidades de se fazer em-formas, se perdesse em cena? Porque
o trabalho em sala de aula se dissolvia? Essas questões persistiram por um tempo até se
ancorarem em um lugar de acomodação, não mais latente como antes.
Em meados do ano de 2014, deu-se a saída do Grupo Rueda Flamenca para a
realização de um sonho alimentado no decorrer de dez anos: integrar o grupo Oficina
Flamenkera, sob a direção de Cylla Alonso e Gabriel Soto. Como em todo sonho sonhado na
vigília, o pedágio se estreitou e, se, por um lado, a alegria expandia o corpo, por outro, as
modificações frente ao processo traziam susto. Ora, tocar o desejo tem o seu preço! Nesse
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percurso, veio a certeza de que não se estava mais falando de outros corpos, mas do próprio
corpo, cujas descobertas, em algum momento, depois de percorrida a jornada, poderiam ser
extensivas a outros corpos. Enquanto isso se dava e o doutorado despontava, o corpo-próprio
ia se tornando um corpo-estranho, na literalidade da palavra, na medida em que realizava um
trabalhado de (des)-construção, acabamento e (re)-conhecimento
Nos dois primeiros anos de doutorado, época em que a questão latente deixada no
mestrado ainda se fiava em âncoras teóricas, ensaios com teorias e métodos das artes não
trouxeram muito êxito. Esses percalços estão, de passo em passo, detalhados no capítulo 1.
Ao fim e ao cabo, eram trânsitos teóricos alheios àquilo que neles fazia falta, o corpo em si
que baila, ao mesmo tempo em que o saber psicanalítico, já despontado desde a iniciação
científica, que versou sobre a peça Carmen, de Prosper Merimée, ia ganhando força, embora
ainda na sua face de psicanálise aplicada e não implicada no corpo-devir-linguagem.
O que não mudou desde o começo, antes mesmo do mestrado, já na iniciação
científica, foi o objeto de escolha: o baile flamenco. O tema é certamente amplo e em cada
passo, da iniciação ao mestrado e deste para o doutorado, o recorte investigativo dentro dele
foi diferenciado. No fundo, desde o início, a questão que sempre palpitou, sem coragem de vir
à tona, não era outra senão: como explicar o talento prodigioso e arrebatador de algum(a)s
bailaore(a)s em cena? A leitura do magnífico texto de Lorca sobre o duende, várias vezes
citado e discutido nesta tese, funcionou como um estopim. É justamente da questão de que
brotou esta tese que o texto trata (ver especialmente o capítulo 3). Depois de muitos ensaios e
erros, finalmente o problema da tese ganhou contorno: o que vem a ser o duende, como
explicá-lo na vivência do corpo que se coloca em ato? Estaria nisso o segredo do talento
flamenco?
Entretanto, seguir à frente a partir desse umbral prometia ter que se defrontar com
muita pedra no meio do caminho, ou seja, o trabalho de resistência entre a escrita e o corpo.
Apesar disso, uma vez prometido e iniciado, não há via de retorno. Assim, a escrita foi se
tentando corpo num corpo que se fazia gesto na colheita significante. Em quatro anos de
investigação, os dois primeiros podem ser tomados como anos de embates, rebatimentos e
remates pulsionais até que se deu o encontro com o processo do corpo-escritura à luz da
psicanálise.
Passemos às principais pedras do caminho. Por mais que se tentasse colar alguns
dos conceitos psicanalíticos ao corpo em movimento, uma recusa ao ato se fazia presente.
Algo do corpo, quando dado ali em presença, ia se fazendo estória, desde um lugar de fortes
resistências a uma soltura de linhas e formas como possibilidade de se dizer. Dizer o quê?
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Porque se dizer? O que nesse corpo contorna algo do incontornável? É por essas e(s)ntranhas
que a pesquisa entre furos foi se fazendo costura.
Outra pedra, ou sequência de pedregulhos: a analogia do duende em ato com o
sentimento-comoção de uma morte iminente encaminhava o saber psicanalítico, que buscava
desvendá-lo, para a direção do real do corpo. Portanto, para um afastamento dos
convencionais discursos acerca da anatomia e fisiologia do corpo que se põe em cena com
seus instintos naturais, sua inspiração e suas técnicas absorvidas. Mais do que isso, mesmo em
sua entrada pelo real do corpo, o duende e a vivência corporal dele repudiavam a saída,
também mais convencionalmente aceita, da explicação da criação artística pela sublimação.
Não havia jeito: o furo do real funcionava feito um buraco negro, aspirando a reflexão para
dentro dele. Felizmente, esse buraco não calou a voz da escrita, nem desviou o corpo en-cena
de sua aventura. Assim, o trabalho foi se fazendo em seis capítulos aqui brevemente acenados
ao leitor.
No primeiro capítulo, as buscas, caminhos e percalços, a partir de autores da
dança, do teatro e da psicologia, que marcaram os dois primeiros anos da pesquisa, serão
rememorados. Embora pouco a pouco descartados, eles trouxeram grande aprendizado,
enquanto o problema da pesquisa ia se ajustando ao seu recorte e a escolha pela psicanálise
como fundamentação teórica e metodológica ia se fortalecendo.
O segundo capítulo tem por função trazer ao leitor um pouco de intimidade com o
universo flamenco, num resgate breve de seu desenrolar no tempo até o momento presente,
que é complementado por uma pesquisa do tempo vivo, nas palavras de bailaore(a)s que
falam sobre suas experiências no roçar do duende. Por fim, é apresentada uma entrevista com
a maestra Cylla Alonso, fundamental para que se conheça seu método de trabalho como
bailaora, coreógrafa e diretora, sob cujas interferências, no grupo Oficina Flamenkera, a
experiência viva do corpo em cena desta pesquisadora foi se dando.
No terceiro capítulo será apresentado o recorte específico que o tema do flamenco
recebeu neste trabalho, ou seja, a questão do duende, vista, antes de tudo, na radicalidade
poética da voz de Lorca e de seus comentadores, uma radicalidade que acabou por determinar
as escolhas conceituais da tese. Essas escolhas, ditadas diretamente das exigências que o
duende impunha, nos conduziram para a questão da presença na arte que desembocou, sem
escapatória, no encontro com o estranho do real do corpo.
Penetrar no real do corpo, todavia, é se munir da coragem de penetrar em uma teia
conceitual nada simplificadora, por mais que se busque a clareza, por mais que nos façamos
acompanhar por uma pluralidade de admiráveis vozes que trilharam esse caminho antes de
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nós. De fato, a tese busca pagar seu devido tributo a essas vozes. Afinal, não estamos aqui
redescobrindo a roda. Isso nos conduzirá para dentro da dinâmica do inconsciente a partir de
Freud. Então, de Freud à Lacan, passaremos do inconsciente que se constrói com o outro ao
inconsciente estruturado como linguagem, não qualquer linguagem, mas aquela que se faz
borda pelo olhar e voz materna. Falar de linguagem é falar da constituição do corpo do infans,
desse que ainda não fala. Então, do corpo falado, fazer-se falar, na cena e na vida.
No capítulo 5, estaremos frente a frente com o Real, na distinção fundamental
entre pulsão e instinto, tema que, caso fosse estudado de maneira ainda mais profunda, daria
uma tese por si só. Os caminhos pulsionais, inclusive a pulsão de morte, abrem a rota para a
sublimação, que nesta tese não será tomada como a rota exclusiva e privilegiada. A
radicalidade do real irá nos desviar dessa saída pela qual muitos pensam encontrar a
explicação para os mistérios da criação. Abandonada essa saída, seguiremos o aceno da Coisa
Freudiana, essa que teve a sua origem naquele Freud mais neurologista visto no capítulo 4. A
Coisa para sempre perdida, que nos atém/retém num furo sempre suturado pelas fantasias
imaginárias, pede, como no grito do infans, que a pseudo naturalidade das necessidades
instintivas sejam contornadas pelo corpo pulsional.
No capítulo 6, o corpo flamenco na voz e olhar da psicanálise, os conceitos serão
postos à prova na sua habilidade em responder as intrincadas questões que foram levantadas,
desde o final do capítulo 1, para retornarem em variadas entonações ao longo dos capítulos.
As questões são muitas, algumas se respondem, outras ficam suspensas, pois ser humano é ser
inconcluso.
A tese pretende encontrar seu arremate em uma reflexão a partir da ótica
psicanalítica e da prática da pesquisadora como intérprete, a saber, como a instabilidade da
cena, ao roçar o real, traz como consequência ao corpo treinado uma doce aspereza que ficou
marcada em nosso diário de bordo. Este irá aparecer pouco a pouco no entremeio dos
capítulos, uma maneira de ir levando ao leitor o gradual desenvolvimento do corpo no baile
no confronto com os grânulos de uma escrita que não se quer alheia ao corpo.
Portanto, tem-se aí um diário de bordo, relato de experiências de palco que
caminharam pari passu com a construção teórica e analítica. A princípio, esse diário seria
colocado em anexo, visto ser esta uma pesquisa de caráter teórico e o diário poderia quebrar a
textura conceitual que se espera dela. Mas, no decorrer dos trabalhos artísticos no intenso ano
de 2015, fomos compreendendo que a prática aqui foi determinante aos diálogos e
questionamentos conceituais. Assim nos parece que um precisa do outro para caminhar, pois,
sem esse duplo trâmite, a pesquisa iria novamente assumir um caráter unilateral, sem riscos e
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desafios. A ideia do diário não é a de servir de ilustração ao leitor, mas questionar o que, sem
ele, na teoria se manteria camuflado. É inquestionável que, na teoria, ainda que haja a
construção individual, vamos nos ancorando nos autores, buscando neles proteção, ao passo
que a prática, solitária ou em grupo, por assim dizer, nos desarma e nos obriga a um olhar a
mais, um olhar junto, em conjunto.
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CAPÍTULO 1
BUSCAS, CAMINHOS E PERCALÇOS

Dois sublimes que se antagonizam no Ocidente. Um se planeja no salto, o balé


clássico, o outro busca no solo a sua ressonância, o flamenco. Mas por que aqui colocamos
em pauta o balé clássico? Porque, com relação à bibliografia, quando buscamos referências de
dança, nos deparamos, via de regra, com vastas referências ao balé clássico, algumas ao
contemporâneo e poucas outras informações dispersas. Nessa história, de quem se fala, quem
é falado? O balé.
Considerando-se a quase ausência, ou presença marginal do flamenco, esta tese
nos auxiliará na compreensão da sua importância no cenário mundial. Não me refiro aqui
somente à Espanha, mas, sobretudo, ao modo como o flamenco fica limitado, ali ao final dos
livros de dança, à sua consideração como um baile meramente folclórico, tal como muitos
ainda pensam. Por isso, vamos recontar a sua estória para tornar-se história, sempre tão
ficcionada e mítica nos livros. Sem esquecer, entretanto, que o enfoque central dessa pesquisa
localiza-se no olhar psicanalítico sobre o ato artístico do intérprete flamenco em cena. Desse
modo, a história se torna uma porta de entrada à forma como esse olhar vai se construindo:
Sob alguns aspectos, esta pesquisa segue um percurso iniciado no mestrado.
No mestrado, o que se buscou compreender foi um aspecto específico da dança, o
ensino e aprendizado da dança flamenca para além de uma técnica. Sem minimizar a
complexidade das formas de movimentação corporal, o foco foi colocado na construção da
imagem corporal e nas possíveis mudanças na posição subjetiva do sujeito que a dança
poderia propiciar. A hipótese era de que a transferência do aprendiz com o mestre pudesse ser
crucial na construção e nas mudanças, visto que a imagem modelar do mestre aciona um jogo
especular que coloca em cena processos identificatórios de tipo muito especial que a pesquisa
visou investigar. Algumas questões foram se apresentando ao longo da pesquisa, de como
trabalhar com o corpo em movimento quando a dinâmica dos afetos escapa da autoridade do
aluno e também de como possibilitar a dinâmica do trabalho corporal quando há recusa no
decorrer do processo?
Essas questões nos sugeriram a importância das situações transferenciais em sala
de aula, visto que, sem esse trabalho, o corpo parecia resistir às inúmeras possibilidades de se
construir, recriar e experimentar novas formas. Tendo isso em vista, justificou-se que o
psiquismo da imagem corporal e o conceito de transferência seriam tomados como
19

ferramentas teóricas básicas para entender a posição do professor em aula, e em que medida
esse lugar pode beneficiar ou prejudicar o trabalho do aluno.
Como a proposta do projeto era pensarmos a intersecção com a psicanálise, sob o
ponto de vista que a representação psíquica do corpo e a transferência nos dariam, e o ensino
da dança como metodologia de trabalho em construção, alguns textos, que discutiram o
sentido do movimento na dança, também embasaram a reflexão sobre o caminho a ser
buscado.
Considerando-se que a construção da imagem corporal e as mudanças na posição
subjetiva do sujeito parecem-nos fundamentais na dança, com base nos conceitos de imagem
corporal e transferência-contratransferência na psicanálise, no caminho a ser percorrido,
tratou-se de investigar como a imagem corporal, enquanto representação psíquica, e os
conceitos de transferência-contratransferência eram entendidos sob a ótica estritamente
psicanalítica. Então, foi preciso re-operacionalizar esses conceitos de modo a evidenciar sua
importância no contexto do ensino-aprendizagem da dança.
Para isso, as indagações teóricas foram embasadas nas situações concretas de sala
de aula em um laboratório do corpo com a participação de alunos-voluntários. Esse
laboratório consistiu da participação, devidamente autorizada, de oito a dez voluntários-
aprendizes e funcionou em espaço cedido pela Escola de Dança Al Compás. As aulas foram
ministradas duas vezes por semana, durante 22 meses, incluindo ensaios e apresentações em
espetáculos.
No Laboratório do corpo, parte empírica da pesquisa, algumas integrantes do
grupo na época desistiram no meio do processo, alegando ser ele muito difícil, nebuloso e
incômodo. A pergunta que surgiu na época, compartilhada e confirmada por outra(o)s
professora(e)s de flamenco versava sobre os fatores que determinam esse impasse. O que se
interpõe em meio ao processo de formação do bailaor e bailaora? Acompanhamos alunas
tecnicamente brilhantes, mas no momento de se dar à cena, o corpo se desfigurava em formas
sem linhas. A dinâmica das linhas se perdia. Era como se o corpo se colocasse de maneira às
avessas ao trabalhado e ensaiado em aula. Esse problema seguiu-nos no decorrer do mestrado,
sem que, então, pudesse ser perseguido, dada a sua complexidade. Em função disso, ele
retorna e se faz central no doutorado. Entretanto, para chegar com coerência ao foco do
problema atualmente válido, vários caminhos foram ensaiados, acabando por se revelar
inadequados. Passemos, pois a esse relato. Ora, não seria pela lente da psicanálise que
podemos nos aproximar do sujeito, observando, na época, de que lugar o professor enuncia o
seu desejo aos alunos. É através do espelho que nos orientamos sobre as questões vinculadas
20

ao corpo e à constituição subjetiva do sujeito. É pela transferência que compreendemos os


trâmites das relações que se estabelecem entre professor e alunos. É pela posição do professor
desenraizado de um todo-saber que podemos nos tornar causa do desejo do aluno.

1.1 O ponto de partida

Partindo das preocupações que não puderam ser respondidas no mestrado, a


primeira versão do projeto de doutorado levava o título: O gesto criador e os limites da
técnica: do teatro do movimento ao baile flamenco. Nesse momento, a pesquisa parecia partir
de um lugar seguro ao se apoiar numa metodologia de ensino da dança criada por Lenora
Lobo e sistematizada por Cássia Navas (2003). Já no mestrado, tomamos conhecimento das
obras de Lobo e Navas (2003, 2008). Tratava-se da exposição e reflexão sobre o método do
teatro do movimento. As técnicas corporais do triângulo da composição, discutidas nessas
obras, nos serviram de base, na época, para beneficiar a plasticidade corporal das alunas no
ensino do baile flamenco. Lobo declara que:

Pensando na dança e no teatro, como artes que se escrevem em e por corpos em


movimentos, elaborando composições cênicas com objetivo de comunicar seu
imaginário, é que organizo este método, com o objetivo de auxiliar a formação
daqueles que chamo artistas do movimento. (...) Com meu trabalho na formação do
artista do movimento, escrevo este método como uma colaboração para estudantes e
profissionais que desejam se aventurar na difícil tarefa de encontrar identidade na
arte a que se propõem. (2003, p. 74,78)

As premissas fundamentais do método, sistematizado no Teatro do movimento,


partem do trabalho de consciência corporal, dos estudos do movimento e da experimentação e
das vivências pedagógicas a ele relacionadas. Lobo propôs conjuntos de conhecimentos
básicos a respeito de temas específicos, fundamentais à dança, teatro e outros trabalhos
corporais.
A criação do seu método é marcada “pela volta a um corpo original, a ser
resgatado como um primeiro entre muitos, através da memória corporal de cada artista ou
aluno-intérprete” (LOBO, 2003, p. 26, 30, 43). A autora busca um fundamento anterior à
construção de cada artista, para que a sua expressão em cena revele marcas da história de cada
um. Ela “articula estas preocupações com a busca de um corpo-memória ou de uma memória-
corpo que constrói o movimento e, a posteriori, a dança de cada um” e também uma
dramaturgia coreográfica. A proposta do Teatro do Movimento foi dada no cruzamento do
21

trabalho de Klauss Vianna com o método de Rudolf Laban, que serão aprofundados teorica e
praticamente no decorrer da pesquisa.
A autora afasta-se de técnicas codificadas em dança, focando seu trabalho na
consciência corporal, no treinamento do corpo do ator e bailarino, que, sozinhos devem
descobrir suas necessidades, elegendo as formas de treinamento mais pessoais. Em 1990, em
meio a esse percurso, Lobo fundou seu grupo e a seus membros vão sendo propostas
estratégias de criação, improvisação e pesquisa que irão resultar em espetáculos. “Nesses
processos, avança a sistematização e a concretização do método Teatro do Movimento,
estruturando-se uma forma de trabalho, mas também uma ética em relação a ele, fundada no
respeito a cada um dos intérpretes e no intuito de se trabalhar com dança dentro do Brasil”.
Ora, toda essa trajetória revela um processo permanente de formação pedagógica,
em busca de um novo modelo para a criação em dança no Brasil, levando-se adiante as
tradições modernas de dança ocidental, que mescladas a estratégias contemporâneas da
linguagem transformam a Alaya numa Compania de características peculiares. (ibid., p. 46, 49
e 51).
Para tanto, Lobo parte de sete premissas fundamentais que estão estruturadas a
partir de pontos-chave da consciência corporal e dos estudos de movimento (coreologia),
servindo também para outros sistemas e métodos de interpretação. (ibid., p. 59). Pensando
nessas questões, Lobo começou a elaborar a dança e o teatro enquanto escrita ou composição
cênica, partindo da interligação de três eixos fundamentais, que nomeou como: Corpo Cênico,
Movimento Estruturado e Imaginário Criativo.

Figura 1: O Triângulo da Composição


Fonte: http://www.alayadanca.com/metodo.html
22

O triângulo aproxima-se do “princípio da tríade/trindade “energia, matéria e ação”


e, neste sistema, a energia se manifesta em matéria e, juntos, dando origem a uma ação de
movimento. Cada um dos eixos está presente em qualquer etapa da estruturação e aplicação
do método”. (ibid., p. 75).

No eixo imaginário criativo, estabeleço uma relação com um estado imaterial onde
residem as imagens e ideias. O que se costuma chamar de energia espiritual pode se
mesclar com o que chamo de energia mental, o estado consciente mais o
inconsciente e, para que este estado imaterial se manifeste é preciso que ele se
estabeleça em uma forma que é denominada corpo. Juntos, imagem e corpo
proporcionam uma ação que se apresenta através do movimento. A partir daí, temos
a composição, cuja resultante final vai ser produto de uma química singular de cada
coreógrafo e/ ou diretor, que seleciona e estrutura suas criações de maneira única.
(ibid., p. 75-76).

Nesse eixo, habitam os “conteúdos e ideias percebidas, vivenciadas, sentidas,


inscritas e imaginadas no corpo”. Aqui, associa-se a energia morada do corpo que impulsiona
a criação. O imaginário criativo como conteúdo é capaz de revelar um corpo, em plenitude, e
informações armazenadas na memória corporal e processadas na imaginação. O termo
Imaginário é associado à palavra criativo, posto que, no vértice do Imaginário Criativo, ocorre
o trabalho de estimulação específica para o desenvolvimento da imaginação criativa do artista
corporal. Logos onde se corporificam nossos mais profundos desejos, sonhos e essências
(2008, p. 22, 183,186). “É o próprio corpo, imbuído de sensações, sentimentos, memórias,
ideias e conteúdos percebidos e imaginados. É o corpo, organismo de onde brotam as
nascentes de nossa criação. É onde cada artista toma consciência do quer expressar e dos
motivos dessa expressão”. (ibid., p. 30, 31). No trabalho didático desenvolvido nesse vértice,
são utilizados os procedimentos adotados em três fases no decorrer de cada aula/laboratório
de Lobo. São eles:
. Sensibilização
. Improvisação
. Conclusão
Subdividindo os procedimentos, temos:
. Estímulos à criação
. Estímulos básicos ao movimento
. Improvisação e investigação
. Seleção de imagens corporais e em movimento
. Configuração e forma
23

. Construção e pequenas frases em cena


. Análise (ibid., p. 32, 34).

No projeto inicialmente proposto, como vimos, pretendia-se fazer a leitura desse


método à luz dos três registros lacanianos do Imaginário, Simbólico e Real. A triangulação do
teatro do movimento parecia apresentar similaridades com esses três registros e, de acordo
com nossa hipótese, na época, o método lido à luz da psicanálise poderia nos trazer elementos
para compreender porque alguns(mas) aprendizes são capazes de incorporar o gesto criador e
outro(a)s não, embora tenham passado pela transmissão das mesmas técnicas. De fato, a
psicanálise contém elementos conceituais que podem nos indicar como inibições e traumas
podem ser capazes de travar a criatividade.
Entretanto, reflexões e testes com essa hipótese levaram à constatação de que tal
proposta estaria meramente realizando uma colagem da teoria psicanalítica ao método para
que os registros psicanalíticos ali se apresentassem. Era necessário, portanto, retomar o
caminho. Nessa retomada, emergiu a pergunta que realmente me perseguia e que os impasses
da insuficiência da técnica estavam apenas mascarando, a saber: como falar de genialidade
sob a ótica psicanalítica, ou seja, como pensar naquilo que fala nos artistas em cena e não
simplesmente daquilo sobre o que se fala?
A preocupação, portanto, que estava lá encapsulada no mestrado era a de pensar a
questão da genialidade dos artistas, no caso, os dançarinos. O que se passa quando essa
genialidade é incorporada em cena, neste caso, performática? Quando se trata do flamenco,
essa questão se fortalece nas leituras sobre o mistério do duende, no sentido que lhe foi dado
por Lorca, como será visto abaixo, como potência do corpo que dança. Apesar disso,
entretanto, o tema é bastante controvérsio e, também, dependendo da leitura que se faça,
aparentemente ingênuo, ainda mais quando se toca no ponto nevrálgico que é o dom, o
talento, nesta era em que politicamente correto é postular que todos são iguais e que
reivindicar a presença da genialidade não passa de rescaldo romântico. Para complicar ainda
mais a questão, tudo parecia indicar que o problema indagado requeria, sem subterfúgios, que
ele fosse enfrentado pelas vias da psicanálise.
No nosso percurso, pensar na intersecção entre a dança e a psicanálise vem de
longe, desde a Iniciação Científica (2003), que versou sobre a modalidade da histeria da
personagem Carmen, na peça do mesmo nome de Prosper Merimée, sob a orientação de
Christian Dunker. Nessa jornada, foram se apresentando inquietações que sempre esbarravam
24

em questões relacionadas ao corpo, à dança e à trama das relações institucionais, clínicas e


suas extensões para além do espaço privado.
Sobre o pano de fundo dessa experiência passada, nessa nova etapa, agora
focalizada no conceito central do duende, o trabalho adquiriu um outro título, que parecia
mais adequado ao percurso pretendido: Barreiras e inibições à criação do intérprete
flamenco: itinerário para o surgimento do duende. O termo “gesto”, tão estudado por várias
áreas, inclusive por autores do teatro, foi abandonado, então, para dar lugar exclusivamente ao
duende, teorizado, poetizado e refletido pelo poeta-escritor Frederico Garcia Lorca em Teoria
y Juego del Duende, parte de uma conferência dada em 1933 por ele na Argentina.

Para o duende entrar, deve-se empobrecer em faculdades e em segurança; quer dizer,


ter que afastar a musa e ficar desamparada, para que o duende possa aparecer e
dignar-se a lutar com os braços nus. A chegada do duende pressupõe sempre uma
transformação radical em todas as formas sobre os velhos planos, dá sensações de
frescor totalmente inéditas, como uma qualidade de rosa recém-criada, de milagre,
que chega a produzir um entusiasmo quase religioso. (LORCA, 1933, p. 1)

Dentro dessa perspectiva e dessa preocupação com a questão do ato ou


desempenho criador do artista, o trabalho partiu, então, do estudo realizado por Bonfitto no
livro O Ator-Compositor (2011) e de alguns teóricos do teatro que refletiram sobre o processo
criador do ator, mais especificamente Dalcroze e Delsarte também estudados pela autora Lobo
criadora da metodologia do Teatro do Movimento (2003) e sua continuidade na Arte da
Composição (2008). Bonfitto (2011) aprofunda e sistematiza as técnicas trabalhadas por
alguns ícones do teatro, o que o leva a refletir sobre a composição no trabalho do ator. Para tal
estudo, Bonfitto escolheu três importantes referências, que, segundo ele, representam os
fundamentos que deram origem a uma nova atitude e a um novo olhar em relação ao trabalho
do ator. São eles: François Delsarte, Èmile Jacques-Dalcroze e os teatros orientais. Nesse
momento, tanto quanto podíamos ver, compreender as técnicas usadas pelo teatro do
movimento, no confronto com o estudo de Bonfitto, deveria deixar mais claro saber de onde a
autora Lobo partiu e como contextualizou e construiu um método particular para intérpretes-
criadores da dança.
Segundo Bonfitto (ibid., p. XVIII-XX), François Delsarte (1811-1871) com o seu
Sistema produziu um importante deslocamento conceitual, permitindo futuras elaborações
acercado trabalho do ator. Através de suas formulações, o pensamento sobre o homem
deslocou-se, do pólo da representação para o da expressão. A atuação do ator na Europa do
século XIX fazia-se pelo representar. E esse representar, “seguia certos códigos definidos
26

de ação física envolve tanto as ações executadas exteriormente quanto as ações internas
desencadeadas pelas próprias ações físicas. As emoções estariam ligadas à utilização da
memória. As emoções deveriam ser resgatadas de um repertório de experiências pessoais,
iguais ou análogas às da personagem que deveria ser construída. Existia uma ligação quase
necessária entre memória e emoção. Aqui não estamos falando apenas da memória das
emoções, mas também das sensações, baseadas nas experiências, ligada aos nossos cinco
sentidos.
Da ação psicofísica à improvisação, da improvisação ao conceito de performance
e sua incursão no ritual e no jogo. Quando estabelecemos essas relações, surgiu a pergunta:
não seria essa também uma possibilidade de ir ao encontro do duende?

1.2 Uma passagem: performance, ritual e mito

Tudo parecia indicar que a performance também poderia ser uma intermediária do
encontro pretendido. Isso fez com que o âmbito da pesquisa fosse ampliado para abraçar a
performance.

O que é performance? Uma peça teatral? Dançarinos dançando? Um concerto


musical? O que você vê na TV? Circo e carnaval? Uma entrevista coletiva de um
presidente da República? As imagens do papa, do modo como ele é retratado pela
mídia – ou as constantes repetições do instante em que Lee Harvey Oswald era
baleado? E esses eventos tem a alguma coisa a ver com rituais, (...) ou danças com
máscaras como aquelas de Peliatan, em Bali? Performance não é mais um termo
fácil de definir: seu conceito e estrutura se expandiram por toda parte. Performance é
étnica e intercultural, histórica e atemporal, estética e ritual, sociologia e política.
Performance é um modo de comportamento, um tipo de abordagem à experiência
humana; performance é exercício lúdico, esporte, estética, entretenimento popular,
teatro experimental e muito mais. (...) (SCHECHNER; Mcnamara, 1982).

Performances são fazer-crer no jogo, por prazer, “como se”. Elas são tão somente
o jogar fora das formas, como também jogar com formas, deixando ações suspensas e sem fim
(SCHECHNER, 2012, p. 19). Sejam elas artísticas, esportivas ou da vida diária, as
performances consistem na ritualização de sons e gestos. “As performances artísticas moldam
e marcam suas apresentações, sublinhando o fato de que o comportamento artístico é ‘não
pela primeira vez’, mas feito por pessoas treinadas que levam tempo para se preparar e
ensaiar”. Assim, a performance pode ser considerada um comportamento altamente estilizado.
São comportamentos duplamente exercidos, codificados e transmissíveis, gerados através de
27

interações entre o jogo e ritual. Se como um “comportamento ritualizado condicionado/


permeado pelo jogo”, a performance implica definir o que são os rituais?
Para Schechner (ibid., p. 49-50), rituais são uma forma de as pessoas lembrarem.
“Rituais são memórias em ação, codificadas em ação”. Possibilita pessoas e animais a lidarem
com transições difíceis, relações ambivalentes, hierarquias e desejos que problematizam,
excedem ou violam as normas da vida diária. Tanto jogo como ritual acabam levando as
pessoas a uma “segunda realidade”. Para o autor (2012, p.53, 54), os rituais podem ser
divididos em dois tipos principais; o sagrado e o secular. Os sagrados são associados à
expressão ou à promulgação de crenças religiosas, envolvendo o comunicar-se, orar, isso
“quando não invocar forças sobrenaturais”. Essas forças, segundo o autor, podem residir
internamente ou serem simbolizadas por deuses ou outros seres sobre-humanos. Já os rituais
seculares são associados a cerimoniais de estado e qualquer outra atividade de caráter não
especificamente religioso.
“Os movimentos, proveniências e posturas dos rituais humanos são
frequentemente ações ordinárias que foram exageradas, simplificadas e tornadas repetitivas”.
Essas qualidades do ritual realçam funções. Sob a ótica etológica, as funções servem para
reduzir o confronto mortal dentro de um grupo, determinar e manter a hierarquia, reforçar a
coesão do grupo, demarcar e proteger território, dividir alimento e regular as relações. (ibid.,
p. 62). Assim, “os rituais humanos são como pontes sobre as águas turbulentas da vida”. As
experiências rituais não são sempre agradáveis ou divertidas. “Elas também podem ser
apavorantes. Um meio de encontrar memórias e forças enormes, demoníacas ou divinas”
(ibid., p. 63, 69). A performance não nasce em um ritual mais do que em um gênero estético.
Sua origem pode residir nas tensões criativas do jogo binário feito na eficácia e
entretenimento.

A performance se origina da necessidade de fazer que as coisas aconteçam e


entretenham; obter resultados e brincar; mostrar o modo como são as coisas e passar
o tempo; transformar-se em um outro e ter prazer em ser você mesmo; desaparecer e
se mostrar; incorporar um outro transcendente e ser “apenas eu” aqui e agora; estar
em transe e no controle; focar no próprio grupo e transmitir aos maior número de
pessoas possível; jogar para satisfazer uma necessidade pessoal, social ou religiosa;
e jogar somente com contrato ou por dinheiro! A mudança de ritual para
performance estética ocorre quando uma comunidade participativa se fragmenta,
tornando-se ocasional, com clientes pagantes. O movimento da performance estética
para o ritual acontece quando um público formado por indivíduos se transforma em
uma comunidade. As possibilidades de movimento em qualquer das direções estão
presentes em todas as performances. (ibid., p. 83)
28

Os rituais estabelecem estabilidade, ajudam nas mudanças, oferecendo


passagem de um estado ou de uma identidade à outra. “Eles dão a impressão de permanência,
de ter sempre sido”. Essa é a versão representada ao público. Numa pequena investigação,
nota-se que os rituais mudam de acordo com as circunstâncias sociais (ibid., p.84). Como
salienta Schechner, os artistas, desde os anos 1960, passaram a inventar rituais. O seu impulso
é uma tentativa de superar uma sensação de fragmentação individual e social através da arte.
“A necessidade de construir uma comunidade é incentivada pelo ritual. E se os rituais oficiais
não satisfazem, ou são rituais notórios e exclusivos, novos rituais serão inventados ou alguns,
mais antigos, adaptados, para encontrar o sentido que necessitam”. (ibid., p.85)
Assim, o ritual humano dá continuidade elaborada ao ritual animal. Rituais são
usados para controlar conflitos, passar por períodos difíceis de transição, conectar a um estado
coletivo e, ao mesmo tempo, a um “passado místico na construção de uma solidariedade
social, para formar uma comunidade”. Segundo Pastore (2012, p. 21, 22), o objetivo
fundamental do mito, seja ele grego ou não, é dar conta de contradições, como ressalta Lévi-
Strauss. “E, ao nos referirmos à questão da verdade trazemos com ela a sua antítese, ou seja, o
esquecimento - Léthe, em grego, cúmplice do silêncio, de censura e de obscuridade”. Pastore
continua:

Na psicanálise, desde os seus primórdios em 1900, com a obra fundante do método


psicanalítico, A interpretação dos sonhos, o mito figura como objeto de fascínio,
como fonte ímpar de inspiração e reflexão para Freud pavimentar suas teorias acerca
do funcionamento psíquico. Nesse texto, o mito aparece como via de compreensão
para os processos inconscientes. A linguagem dos oráculos é ambígua e se aproxima
da linguagem dos sonhos, uma vez que o oráculo indica os desígnios, mas fica a
cargo do homem a sua interpretação. O sonho, à semelhança do mito, abarca a
projeção de desejos inconscientes de um sonhador particular. Portanto, o mito
expressa o sonho da humanidade, ao passo que o sonho de um sujeito designa seu
mito singular, ou o mito individual do neurótico, segundo Jacques Lacan. O mito é
um saber que nos atravessa sem que o saibamos, assim como o inconsciente é um
saber que não se sabe que se sabe.

Em Totem e tabu, Freud bebe da antropologia, em especial da “obra O ramo de


ouro, do evolucionista James George Frazer, que contém os mitos provenientes do mundo
inteiro, conferindo um lugar privilegiado aos relatos míticos de autores gregos e latinos, a fim
de confrontá-los com os dos povos primitivos”. Sua investigação se dirige “para o ritual, a
memória, o inconsciente social e, também, para uma reflexão sobre o poder e os modelos da
transmissão, ou seja, sobre as relações entre o simbólico e o poder”. Freud constrói o mito da
horda primitiva –“o banquete totêmico e a matança do pai tirânico”, o grande detentor de
tudo. É a partir desse mito que se elabora uma compreensão psicanalítica sobre a origem da
29

cultura e suas restrições morais e religiosas. Freud trata das impetuosas pulsões psíquicas
dadas nas relações, erigindo a existência de uma lei psíquica primordial, a que a humanidade
está irremediavelmente submetida cuja função é barrar o excesso pulsional. Dualidade
marcada entre as pulsões sexuais e as de destruição. Conflito entre Eros e Tânatos. O desejo e
sua proibição caminhando lado a lado, legado que Freud assimilou dos mitos.
Schechner afirma ainda que “embora a crença generalizada de que a performance
artística tenha sido originada nos rituais, não há evidências históricas ou arqueológicas para
comprovar essa afirmação”. É provável que, desde os primeiros tempos, as qualidades de
entretenimento da performance estivessem presentes como um elemento do ritual. “Todas as
performances atualmente são, na verdade, entretenimento e eficácia”. Artistas de várias
culturas têm feito arte utilizando, em rituais, música sacra, peças de altares e pinturas
devocionais, templos, máscaras e outros. Além disso, primeiramente pela influência do
colonialismo e, mais tarde, pela globalização, ocorreu uma atração dos artistas para rituais de
muitas culturas, com a sua utilização em suas próprias obras. Alguns já vêem investigando
não apenas rituais específicos, mas o próprio processo ritual, a fim de sintetizar rituais
existentes ou inventar novos. (ibid., p.88).
Entendendo o jogo como intrinsecamente parte da performance, por criar o “como
se” na arriscada atividade de fazer-crer, a questão da performance acaba escorregando sobre o
jogo. Entende-se que “jogar é fazer algo que ‘não para valer’, está, como ritual, no coração da
performance”. Para o autor, a performance pode ser tida como um “comportamento
ritualizado condicionado/permeado por jogo”. O jogo pode ser performance quando feito
abertamente, publicamente, e performativo quando privado, até mesmo secreto, como
estratégia de devaneio mais do que uma exibição. “Nessa interioridade, o jogo é separável do
ritual, que deve sempre ser encenado” (ibid., p. 91-96).
Para Bonfitto (2013, p. 29), podemos pensar a performance como uma saída do
espectador de sua condição habitual. Frente aos casos analisados pelo autor, o espectador é
posto, colocado frente a manifestações que não solicitam dele simplesmente uma atitude de
“decifrador de signos”. “As ocorrências expressivas fogem da estrutura da representação, não
remetendo o espectador a conteúdos específicos, mas sim em estados, atmosferas” e outros.
Se pensarmos no ator e no performer, podemos definir o ator como aquele que “habita
completamente uma personagem imaginária, mergulhando sua personalidade em um ato de
identificação e autotransformação”. O ator representa sua personagem, fingindo não saber que
é apenas um ator de teatro. Já o performer, por sua vez, é aquele que se “impregna totalmente
30

e somente quando a sua individualidade floresce sob o foco de atenção do público”. A pessoa
que “fala e age em nome próprio, e como tal, dirige-se ao público” (ibid., p. 96).
A produção de significado do ator e do performer será associada aqui com a
“esfera da representação, portadora de referencialidade, que envolve, por sua vez, a
exploração de intenções”. Já a “produção de sentido será associada com a esfera de
presentação, portadora de autorreferencialidade, que envolve a exploração de intensões”.
Significado e sentido não são opostos que se excluem, mas sim pólos que, quando inter-
relacionados podem oferecer abertura potencializadora de inúmeras possibilidades
expressivas. Tanto o significado quanto o sentido estão associados ao campo da semântica,
extremos num continuum. Assim, os fenômenos e as experiências, nesse âmbito, quanto mais
facilmente traduzíveis em palavras, mais próximos se localizariam do extremo significado, e
vice-versa, quanto mais dificilmente traduzíveis em palavras, mais próximos estariam do
extremo sentido. Esses dois pólos não são excludentes. Cabe aqui perceber as tensões
estabelecidas por tais pólos em cada caso (ibid., p. 112-113).
A produção de sentido, que emerge do trabalho do ator e do performer, pode ser
tida como um “processo de catalisação da presentação com a intensão”. Nesse caso, produzir
sentido implicaria a produção de qualidades expressivas autorreferenciais não reduzíveis a
signos, processo que envolve a exploração de intensões e suas implicações: “articulações
subjetivas profundas, instauração de campos relacionais que funcionam como agentes
aglutinadores de fluxos perceptivos e como geradores de ações desprovidos de
representação”. (ibid., p.115)

Erika Fischer-Lichte, por exemplo, fez referência ao que chamou de perceptual


multistability (multiestabilidade perceptiva). Nela, duas ordens perceptivas estão
associadas a duas manifestações corporais distintas. Na “ordem da representação”, o
corpo é percebido como signo e remeteria a personagens ou seres ficcionais, e na
“ordem da presença” o corpo se manifestaria e seria percebido em sua dimensão
fenomênica. Dentre as implicações produzidas por essas ordens perceptivas e suas
respectivas manifestações corporais destaca-se aquela de acordo com a qual a ordem
da representação é vista como geradora de significados ao passo que a ordem da
presença é vista como geradora de associações, memórias, que se materializam de
forma totalmente imprevisível para o observador ou espectador, e que implicam em
uma dissolução, no ator e no performer, das fronteiras existentes entre corpo e
mente, gerando múltiplas possibilidades de incorporação (embodiment)
(BONFITTO, 2013, p. 158).
31

A partir disso, Bonfitto distingue duas categorias diferenciadas de treinamento.


a. Treinamento como práxis (treinamento estruturado): objetivos
estabelecidos a priori, ou seja, os objetivos são guiados pelos seus fins. Meio
que serve a uma finalidade. Aplicação de sistemas de atuação.
b. Treinamento como poiesis (treinamento não estruturado): não
envolve uma busca determinada por uma finalidade pré-estabelecida, sua
função emerge do processo de seu fazer. Cria-se condições para que os
materiais emerjam, para que eles possam vir à tona. Procedimentos e atividades
colocados em prática não seriam necessariamente pré-determinados ou
elaborados antecipadamente. Exploração de princípios.
Ambos são conceitos que remetem às atividades humanas, modos de atuação.
Contudo, enquanto práxis (do grego prattein = fazer) está associada ao praticar ações, poiesis
(do grego poiein = fabricar) está relacionada à atividade de construir ações. A práxis
envolveria ações intencionais, ações que são um meio para um fim. A poiesis remete a ações
não intencionais, as ações através das quais algo é gerado e passa, assim, a existir. Envolveria,
portanto, antes de mais nada, a ação de trazer algo à tona. Eles são, por assim dizer, dois
modos de conceber e colocar em prática o treinamento do ator. “O performer é o filósofo da
prática e as ações executadas por ele funcionariam antes de tudo como dispositivos” (ibid., p.
188-189).
Será que não poderíamos pensar no improviso como um mergulho no processo,
numa lógica regida pela experiência e não pelo espetáculo? A pura demonstração de
habilidades estaria mais para um over acting do que propriamente para um mergulho na cena
como experiência. Nesse ponto do percurso, em mais esse momento de ponderação, surgiu a
indagação sobre como as práticas exemplificadas acima poderiam contribuir para pensarmos
nas possibilidades de um mergulho em cena.

1.3 Ponderações e perspectivas: outra entrada

Vale notar que, nessa etapa, agora incrementada por teorias acerca do processo
criador do ator e teorias da performance, ainda se mantinha no projeto o ponto de partida
inicial das possíveis conexões da tríade construída por Lobo (Corpo Cênico, Movimento
Estruturado e Imaginário Criativo) com os registros do Imaginário, Simbólico e Real.
Contudo, essa relação deixava aí de ser um fim, tornando-se apenas um meio para ser guiado
32

pela psicanálise, compreender a incorporação do duende pelo(a) bailaor(a). Esperava-se que a


psicanálise pudesse trazer pistas para detectar possíveis inibições e barreiras do intérprete que
impediam tal incorporação. Com vistas a fortalecer essas pistas, foi pensada a realização de
entrevistas com bailaores e bailaoras que, na sua performance, não sofrem barreiras nem
entraves. Contar com indícios de como esse(a)s artistas sentem ou percebem a ocorrência do
duende poderia funcionar como um contrapondo para as questões teóricas. Chegamos até a
realizar encontros com algumas bailaoras para esse fim.
Entretanto, na medida em que a pesquisa se desenvolvia, cada vez menos
justificava-se a presença do Teatro do Movimento. Não obstante sua importância para os fins
a que se propõe, no caso deste trabalho em questão, era perceptível que essa incursão mais
nos afastava do que nos aproximava do objetivo que a pesquisa visava atingir, ou seja,
perscrutar o instante do duende no ato do seu acontecer. Persistia, contudo, a hipótese de que
os modos como a articulação do Imaginário, Simbólico e, especialmente, do Real se dá na/em
cena seria capaz de funcionar como guia para, até certo ponto, reconstituir a atuação, no corpo
do intérprete flamenco, do duende poetizado por Lorca, na medida em que é esse conceito que
evidencia com propriedade o inexplicável do ato criador quando ele toma conta de um corpo
em cena.
Assim, conforme a questão da pesquisa ia se conduzindo para a sua raiz fundante,
tanto mais a aproximação da psicanálise parecia prometedora para tratar a marca de uma
experiência de encarnação radical do instante criador em cena. Foi nesse momento que o
levantamento teórico realizado acerca do estudo do Bonfitto (2011) e de Schechner (2012)
também foram descartados, sem serem evidentemente abandonados. Afinal, além de
aprendizagem, foram eles que foram proporcionando a aproximação rente ao ponto chave
desta pesquisa. O descarte ocorreu quando ponderamos: será que fazia algum sentido
introduzir as técnicas de criação do ator, quando se está lidando com uma questão
extremamente sutil e que, embora possa incluir, não procede de uma transmissão de técnicas,
mas sim de uma incorporação em ato? Não se quer com isso desdenhar a importância das
técnicas do ator. Contudo, é preciso reconhecer que se tem aí, na comparação do processo de
criação do ator com aquele de um(a) bailaor(a), um choque de especificidades, muito embora
possam existir possíveis similaridades.

Todas as artes são capazes de duende, mas onde ele encontra maior campo, como é
natural, é na música, na dança e na poesia falada, já que elas necessitam de um corpo
vivo que interprete, porque são formas que nascem e morrem de modo perpétuo e
alçam seus contornos sobre um presente exato. (LORCA, 1933, p. 1)
33

Entretanto, o foco voltado para o trabalho do ator poderia nublar a especificidade do duende
que se entroniza no corpo que dança. A questão, portanto, re-corria. Na medida em que os
estudos dos métodos utilizados no teatro foram se desenvolvendo, mais o duende como
presença em cena ia se distanciando de questões de método e técnica. Isto porque
compreender o duende com apoio nas técnicas teatrais ou nos métodos de dança, tanto em um
quanto em outro caso, em vez de dar suporte, parecia desviar o trabalho de seu verdadeiro
foco. Todavia, vale notar que nesse estágio do desenvolvimento da pesquisa, os estudos
realizados não haviam sido inteiramente descartados. Não se pode negar que há no duende
elementos psicofísicos. A busca de aprofundamento dessa questão, formulada no teatro por
Stanislávisk e discutida por Bonfitto, das ações físicas como “iscas de processos interiores”
conduziu-nos à busca de fontes, inclusive fontes que trouxessem mais de perto esses lampejos
de processos interiores. Com a convicção de que um importante aspecto, que nos parecia estar
presente na incorporação do duende, consiste no ato de entrega do corpo-alma a uma
experiência que é grata, a pesquisa caminhou para a teoria dos fluxos, mesmo sabendo que
essa se situa em um campo antagônico à psicanálise, especialmente do fulcro do real, de
fundamental importância no duende, um real que surge sempre ao modo do tropeço e não de
uma entrega feliz.

1.4 A teoria do fluxo

Ainda que a teoria da Descoberta do fluxo, formulada por Mihaly


Czikszentmihalyi (1990) advenha da escola americana apoiada na vertente da psicologia, a
ciência que estuda o ego, essa teoria trazia no seu bojo uma das questões mais discutidas no
universo flamenco, desde Lorca até os estudiosos contemporâneos, aquela de um estado
caracterizado como “enduendado” que pode ser comparada ao que é tido por
Czikszentmihalyi como um “estado alterado da mente”, seja esse o caso de um esportista ou
de qualquer tipo de atividade capaz de levar a uma modificação de estado.
A Teoria da Descoberta do fluxo é uma obra que se tornou citação recorrente em
vários campos, especialmente nas artes e na estética dos games. Não negamos que a leitura
desse livro tão comentado e discutido nos leva a ver que os escritos de alguns comentadores
são muitas vezes mais interessantes do que o texto do próprio autor. O autor vem da escola
americana, a da teoria sobre a elasticidade e disciplina do ego, enquanto nossa pesquisa
direcionava-se para uma leitura inversa, cada vez mais apoiada na psicanálise. Nada poderia
35

Para Czikszentmihalyi (ibid., p.33-35), é por meio do investimento organizado da


energia psíquica, proporcionado pelas metas, que um indivíduo cria ordem nas experiências.
Para executar operações mentais com alguma profundidade, uma pessoa precisa aprender a
concentrar a atenção. Sem foco, a consciência se torna caótica. Geralmente quanto mais difícil
uma tarefa mental, maior é o esforço para se concentrar nela. Mas, quando uma pessoa gosta
do que faz e está motivada a fazê-lo, focalizar a mente se torna fácil mesmo em presença de
grandes dificuldades. Aprendendo a se concentrar, uma pessoa adquire controle sobre a vida
psíquica, o combustível básico do qual depende todo pensamento. Não há espaço na sua
consciência para conflitos e contradições. O que há de comum nesses momentos é que a
consciência está repleta de experiências, e essas experiências estão em harmonia umas com as
outras. Ao contrário do que acontece demasiadamente na vida cotidiana, em momentos como
esses, o que sentimos, o que desejamos e o que pensamos se harmonizam. Esses momentos
excepcionais são o que é chamado de experiências de fluxo, algo que, sem dúvida, se
aproxima da experiência descrita por Gumbrecht.

A melhor descrição que conheço do momento em que a disposição serena, que nos
prepara para o acontecimento da experiência estética, se transforma em experiência
estética foi feita por um atleta. Foi a resposta de Pablo Morales, atleta olímpico
medalha de ouro de natação, à pergunta sobre por que, após se ter afastado da
competição, havia voltado a qualificar-se para as Olimpíadas e a ganhar uma nova
medalha de ouro. Sem hesitar, Morales respondeu que fizera esse esforço
extraordinário porque estava viciado na sensação de “estar perdido na intensidade
concentrada”. A escolha da palavra “intensidade” confirma que a diferença trazida
pela experiência estética é, sobretudo, uma diferença de quantidade: desafios
radicais produzem níveis radicais de desempenho, nas mentes e nos corpos.
(GUMBRECHT, 2010, p. 133)

De fato, a metáfora do Fluxo foi utilizada por muitas pessoas para descrever a
sensação de ação sem esforço experimentada em momentos que se destacam como os
melhores de suas vidas. Atletas se referem a eles como atingir o auge, místicos religiosos
como estar em êxtase, artistas e músicos como enlevo estético. O fluxo costuma ocorrer
quando uma pessoa encara um conjunto de metas que exigem respostas apropriadas. As
atividades que induzem o fluxo podem ser chamadas de “atividades de fluxo” porque tornam
mais provável que a experiência ocorra.
Outra característica das atividades de fluxo é que elas oferecem um feedback
imediato: elas deixam claro o seu desempenho. Com cada passo, o alpinista sabe que subiu
mais um pouco. Depois de cada compasso de uma canção você pode escutar se as notas que
você cantou correspondem à partitura. O fluxo tende a ocorrer quando as habilidades de uma
38

deixar-se dançar, se deixar atravessar, e nada é mais assertivo do que esse estado da mente no
ato da cena. No entanto, essa teoria, vinda da escola americana, da psicologia do ego, não
permitiria o diálogo com a psicanálise a qual, cada vez mais nos trazia a perspectiva de
perscrutar duende de frente, sem contornos e subterfúgios, pois é no duende que o corpo se
faz Real em cena. Além disso, emergia, a partir disso, com muita intensidade a demanda de
colocar a teoria no confronto com a prática de palco da própria pesquisadora, os seja, dos
riscos e travessias da cena no embate entre o trabalho da escrita da tese e da experiência do
corpo em cena. Os dados estavam lançados.

1.5 O encontro no fio da navalha: há que se escavar esse Real

De fato, quanto mais os caminhos ensaiados se revelavam, se não inadequados,


pelo menos incompletos e tergiversantes, mais forte se tornava a aposta na psicanálise. Afinal,
o problema da criação artística e literária nunca foi estranho a Freud e Lacan. Ao contrário.
Mas não se pode esquecer que estamos lidando com a dança. Não se trata, portanto, de
simplesmente tomar os conceitos psicanalíticos como abstrações para serem aplicados ao
campo sob questionamento. Quando a questão da pesquisa está em xeque, é o momento de
arejar.
Ora, o duende não vem de fora, como nos lembra Lorca: “o duende não está na
garganta; o duende sobe por dentro a partir da planta dos pés”. Isso nos leva,
irremediavelmente a algo da ordem do impalpável, mas instaurador de realidades em cena.
Ora, não é esse algo, perto do intraduzível, que nos conduz diretamente àquilo que Lacan
caracterizou como Real? Na irrupção do Real da/na cena? Se é disso que se trata, como se
daria a articulação do Imaginário e Simbólico nessa cena, dada a inseparabilidade dos três
registros? Como, no corpo do bailaor(a), se trava a articulação entre os três registros, na
especificidade de um acontecimento em ato, presentidade da presença? É daqui que se pode
testemunhar o duende? Nesse vazio, nesse buraco, o Real, como o impossível, impossível de
ser simbolizado, ou seja, aquilo diante do qual o imaginário se desvia e no qual o simbólico
tropeça? Não é no real do corpo que o duende fala? Naquilo que falta na ordem simbólica, o
resíduo, resto ou sobra de toda articulação, que pode ser aproximada, mas nunca capturada?
Como entender essas articulações em cena? Eis aí, finalmente, as questões da pesquisa mais
finamente articuladas. Sem subterfúgios, trata-se de enfrentar o duende que fala no corpo para
nele resplandecer a entronização da genialidade que estamos buscando.
39

São ao menos questões que parecem dar conta do trabalho em si do intérprete


flamenco em cena, quando se pretende lançar algumas luzes sobre o intraduzível do duende
como expressão própria do talento intraduzível do intérprete. Não é novidade para ninguém
que colocar o dedo no conceito do real lacaniano é tocar num ponto nevrálgico uma vez que é
irradiador e irradiado de vários outros conceitos da teoria. Estamos cientes de que isso exigirá
que o caminho se faça em passos cuidadosos na busca de fios condutores que, como o fio de
Ariadne, nos guie no labirinto.
Não se quer, entretanto, abandonar o campo da improvisação, como salientou
Bonfitto, para pensar a dança no ato de sua execução como condensadora de processos
interiores e de elementos físicos, dados nas variações de tensões, ritmo e equilíbrio. O duende
evidentemente não pode excluir a instauração da ação física. Ora, quem a executa deve estar
absorvido nela. Fernandes nos dá respaldo para ampliar as implicações dessa questão, quando
explora a teoria e estética da repetição no trabalho da coreógrafa alemã Pina Bausch. Porque a
escolha dessa autora especificamente? Porque é uma das poucas autoras que dialogam com a
psicanálise no entendimento da construção do trabalho da artista/coreógrafa em cena. Ao
deslizar as construções significantes na obra de Pina Bausch, concomitantemente à teoria
lacaniana, o autor fortalece nossa proposta de concentração do olhar da psicanálise sobre o
flamenco.
Para Fernandes (2007, p. 28-29), os gestos podem ser caracterizados como
movimentos corporais realizados no cotidiano ou em cena. No dia a dia, podemos entendê-los
como parte de uma linguagem associada a determinadas funções e atividades. No palco,
denotam outra função, a estética. Isto porque se estilizam e são tecnicamente estruturados
dentro de vocabulários específicos. “Através da repetição, o meio teatral da palavra torna-se
um referente à fisicalidade da dança”.
Falar da palavra como referente da fisicalidade da dança implica que alguns
elementos da teoria psicanalítica venham aqui brevemente antecipados, inclusive como meio
de sinalização da coerência de nossa escolha pela psicanálise para discutir as questões acima
elencadas, inclusive também para denunciar a impossibilidade de se trabalhar o real que não
seja na intersecção do imaginário e do simbólico.
A imagem corporal, para Fernandes (ibid., p. 30), constitui-se na infância pela
“sucessiva internalização de específicas imagens externas”. “A construção desse ‘mapa
corporal’ não depende de leis biológicas, mas sim de significações e fantasias de familiares a
respeito do corpo”. É pela imagem corporal que o esquema dos gestos e posturas de uma
sociedade é transmitido, tema este discutido acima a partir da psicanálise. O ponto chave que
40

a autora trabalha se refere não somente à cadeia significante como também às relações entre o
real, imaginário e simbólico numa trama que não pode ser desatada e que pressupõe os
conceitos de significante e significado que Lacan absorveu de Saussure ([1916] 1993)
transformando-os. A linguagem, na visão saussuriana, implica que um significante (a imagem
acústica mental, digamos de uma palavra) não se significa a si mesmo, ou seja, um signo é
sempre uma relação arbitrária entre significante e significado (o conceito dessa imagem
acústica). Logo, para haver um signo, são necessários dois elementos, pois o signo lingüístico
resulta da articulação de duas instâncias, o significante e o significado.
Lacan descarta a concepção biunívoca saussuriana de signo e elabora uma teoria
do significante que tem como ponto de partida o seguinte algoritmo: S/s, ou seja, significante
sobre significado, correspondendo esse “sobre” à barra que separa as duas etapas. A barra
implica privilegiar a pura função do significante em detrimento da ordem do significado. A
estrutura do significante se caracteriza pela articulação e pela introdução da diferença que
funda os diferentes.
Em “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud” (1958), já tendo
abandonado a visão estritamente saussuriana do significante, Lacan demonstrou que o
inconsciente é estruturado como linguagem. Assim, a articulação significante não se produz
sozinha, é necessário que haja um sujeito. O significante só pode passar para o plano da
significação porque há um sujeito operando a cadeia do significante. Essa relação do sujeito
com o significante é denominada de relação fundamental. Por isso, o sujeito da psicanálise é
um ser atravessado pela linguagem que é entendida como uma rede de significantes que se
deslocam. Através da circulação destes significantes, um significante, especificamente, irá
representar o sujeito aos outros significantes de uma trama encadeada por significantes. Um
único significante é capaz de determinar o sujeito, ou melhor, o sujeito é determinado por esse
significante. Ocorre que algo escapa da rede de significantes. Este algo é caracterizado por
Lacan como resto. Por que algo escapa? Porque somos regidos por algo de que não temos
controle, a que não temos acesso direto, sobre o qual não temos domínio: o inconsciente. Se
algo escapa no desfiladeiro dos significantes, é porque, em certa medida, o sujeito não é todo
representável pela linguagem.
Justamente por isso, o discurso do sujeito freudiano estaria sempre marcado
por este outro, o inconsciente, que não dominamos. Dividido entre o seu domínio e algo que o
domina, o sujeito define-se num inevitável embate com esse outro que o habita. Por isso,
permanentemente, vive a busca ilusória de tornar-se um. A linguagem estaria a serviço desta
busca, lugar da condição paradisíaca e originária do sujeito uno, pleno de poder.
41

Contudo, é a tripartição estrutural real-simbólico-imaginário (RSI) -- estabelecida


por Lacan desde sua conferência em julho de 1953 na Fundação da Sociedade Francesa de
Psicanálise e intitulada “O Simbólico, o imaginário e o real” – que permite atar as pontas do
pensamento lacaniano. Os três registros, ou três instâncias, apresentados como três registros
muito distintos e essenciais da realidade humana, não podem ser isolados, uma vez que se
unem de modo indissolúvel na topologia do nó borromeano ou cadeia borromeana, de modo
que se cortarmos apenas um deles, todos os outros se desligam simultaneamente.
Podemos pensar que o imaginário amarra o simbólico na medida em que só
consegue constituir-se diante da confirmação dada pelo olhar desejante do outro. O outro
como espelho e testemunho para que a criança possa se reconhecer no espelho do olhar do
outro. Assim, o sujeito se constitui através da relação imaginária com o outro. O imaginário é
portanto o campo ou registro da relação dual com a imagem do outro. O eu é fundado assim
numa relação especular, primeiro nessa relação especular com o outro e depois imaginária.
Mas o imaginário também amarra o real, visto que, no fenômeno da ilusão, o imaginário
inclui o real, ao mesmo tempo em que o forma, pois, em todas as nossas relações com o
objeto, está implícita uma relação imaginária. Contudo, o real falta na ordem simbólica,
porque se trata dos restos não elimináveis pela articulação significante, aproximados, jamais
capturados.
O real é a realidade fenomenal, aquela impossível de ser simbolizada, lado
contrário do imaginário, que transborda de significados diversos. O simbólico é um sistema de
representação fundado na linguagem, de duplo sentido e de valor binário na cadeia
significante. A ordem das palavras substitui-se às coisas e as palavras umas pelas outras. A lei
ordenadora do social se instaura. Ocorre que o real independe do nosso desejo, pois está fora
do alcance da linguagem. O imaginário é um arranjo, uma transformação do real. O
imaginário ocupa o lugar de proteção ao real, o lugar da brincadeira, do mundo de faz de
conta, espaço de visita, “pegar um fôlego”. Sem o imaginário, o real da vida seria da ordem
do insuportável. Ele passa a ser uma estratégia de suporte. Assim, vamos costuramos o real a
todo momento, em nossa realidade numa tessitura de fantasias.
Diante disso, vem a pergunta: será então que a arte é capaz de recobrir o real? A
dança como corpo em ação suaviza a brutalidade de nossas vidas? Mais questões no rol de
questões que procuraremos ir desatando no decorrer da tese. Mais uma vez é Fernandes
(2007, p. 42, 46) que dá respaldo à nossa escolha pela psicanálise, quando afirma que a
linguagem da dança pode ser lida como a da “constante busca entre a fisicalidade e a
linguagem, inerentemente dupla e paradoxal (...). Como na teoria de Lacan, o Real (a
42

fisicalidade da dança), o Imaginário (a imagem projetada pela dança) e o Simbólico (os


desencontros entre a forma e o significado da dança) coexistem, constantemente”. Pensando
assim, a linguagem da dança, e muito especialmente o duende, está longe de qualquer
esquema fixo, está mais para a linguagem da não-linguagem.
Assim também, o trabalho (espetáculo) de Bausch em Bandoneon, em que o tango
pode ser bom para tudo? implica em relembrar e, com isso, a instigar a memória emocional e
sua transformação em linguagem simbólica. Isso, de saída, nos remete de volta aos passos de
Stanislávski. Ao pedir para o bailarino descrever suas experiências independente do tempo,
elas se tornam reconstruções simbólicas em ação, tradução de movimentos e palavras que se
deslocam e se substituem a todo momento. As expressões não são mais diretas e espontâneas,
elas vêem de um logo.

A experiência original (significado) é relevante apenas como uma memória


esteticamente reconstruída. Nesta fase do processo criativo, a re-presentação
Simbólica traz as experiências passadas precisamente como a ausência da
experiência atual. Apenas mais tarde, como será visto, diferentes experiências e
significados irão emergir desta linguagem. (FERNANDES, ibid., p. 50)

Segundo o autor (ibid., p. 57-58), a dança, com ou sem a repetição formal de


movimentos técnicos ou cotidianos, repete-se por pertencer justamente à ordem do simbólico.
Se pensarmos no gesto, ele está pendente à linguagem e não propriamente à manifestação
motora, sua consequência. Na cadeia significante, “os movimentos da dança necessariamente
multiplicam suas possibilidades de interpretação, ao invés de conceberem uma clara
mensagem ou significado”. Na dança teatro de Bausch, a repetição passa a ser usada como
instrumento autorreflexivo, na exploração de sua natureza repetitiva da arte dentro do
simbólico. “A dança não está simplesmente incluída na cadeia significante, tentando passar
conteúdos externos a si mesma. Através da repetição de movimentos e palavras, a dança
explora formalmente seus meios, bem como o poder do Simbólico sobre as “manifestações
motoras”. Na cadeia significante, quando o significado parece ter sido capturado, dissolve-se
na trilha em ainda mais significantes. “Através da repetição, a dança articula sua inerente
qualidade efêmera”. (ibid., p. 63).

Dentro da ordem simbólica, a busca de completude e significação através da


linguagem verbal e gestual não traz comunicação e repouso. A cadeia significante
constantemente multiplica e desafia significados, aumentando ainda mais o desejo e
carência. Nossa identidade constrói-se, então, sobre esta constante busca por
completude externa e recorrente perda através e dentro da linguagem. (ibid., p. 111)
43

Será que, a partir de Fernandes, podemos afirmar que a inscrição do Real se dá


nos repetitivos desencontros do simbólico? O real atrás da repetição, assim como a presença
atrás da fantasia? O real manifestando-se precisamente por sua ausência, pelo trauma do
encontro perdido? A presença do intérprete está na possibilidade de fazer corpo-dançado em
cena num avançar para o futuro, guardando seus passados vazios em lugar da busca constante
da presença-presente de uma falsa completude. Essas são questões que estão relampejando no
fazer da pesquisa.
Assim, a repetição poderia se tornar um “instrumento criativo através do qual os
dançarinos reconstroem, desestabilizam e transformam suas próprias histórias enquanto
corpos estéticos e sociais”. Se estamos aqui pontuando a repetição como possibilidade de re-
criar, não estaríamos no campo do sintoma para a psicanálise? Pergunta que se espera poder
responder oportunamente a partir da ideia da repetição como repetição, em direção à
compulsão, à pulsão de morte ou à possibilidade de repetir criativamente na vida. Este o
ângulo pelo qual pretendemos aqui abordar o universo da dança na esteira das hipóteses de
que se encontra na arte a possibilidade de recobrir o real, assim como o sintoma surge como
um repetir-se criativamente na vida.
Diário de Bordo I

Começo aqui as minhas anotações, um diário de bordo, ou melhor, uma tentativa


de me aproximar da experiência junto a certas aflições que quero crer serem características
de uma pesquisadora às voltas com seu objeto de pesquisa. Antes, num caminho de certezas,
apoiando-me em escritos buscava justificar o texto. Paralelamente à minha experiência em
cena, dava-se a entrega dos capítulos para a avaliação. Os prazos sempre minimizam a
poética da escrita. É preciso finalizar o processo. Mas como? Estou no meio dele. Há que se
escavar para achar. Duplo encontro. O da cena e o da escrita, e aqui escrita como
condensação da experiência. Uma tentativa. Um modelo que não faça o leitor pular páginas
até chegar ao momento em que julga ser o clímax desse encontro. Vou tentar fazer desse
diário uma maneira de trazer o leitor para a experiência, tendo, no conforto inquieto, a
escrita como minha aliada. Não faz mais sentido colocar a experiência da cena em um lugar
e a escrita desse processo em outro, como se fossem duas coisas antagônicas. Sua
conciliação está na relação. Uma alimenta a outra. Uma força a outra. A cada entrada, uma
saída diferente. A escrita precisa sofrer modificações à medida que meu corpo vai para a
cena e vice-versa.

Desde o meu Mestrado, numa tentativa de me aproximar desse afeto tão doloroso
e tão necessário ao caminho das artes, o diálogo, a reflexão e a experiência viva truncavam-
se por conta de uma incessante busca por algo que pudesse responder, sem pestanejar, as
minhas indagações, seja ancorada na psicanálise, seja na literatura. Sempre me aliava a
essas disciplinas para responder algo que precisava vir de maneira, talvez, mais brutal, mais
Real, no sentido lacaniano da terminologia. Por covardia deixaria esse diário em anexo, com
alguma esperança de que passasse desapercebido, assim como alguns momentos meus em
cena: estar sem estar, estar por estar. Mas, ele vai se achegar, mesmo que timidamente. Se
ele não protagonizar, do que estamos falando aqui? E eu, sempre tão cautelosa com os
processos, sempre tão crítica com bailarinos que se diziam em primeira pessoa. Talvez
porque nunca tivesse de fato ido ao encontro da cena, nessa paradoxal captura prazerosa no
ápice da angústia. Atravessada por algo de outra ordem. Perpassa e esse algo se produz.
Ora, sempre quando me vejo lendo uma boa tese, me pergunto, quais os caminhos que tal
pesquisador (a) trilhou? Como se deram os impasses e como ele (a) resolveu sua saída?
Como tal bailaora(o) fez tal coisa em cena, como ela(e) é capaz de se revelar em um desvelar
escancarado? Quando passo pelo processo artístico, comprometo-me com o leitor ao contar
um pouco dessa história. Por que não o convidar a essa experiência tão assustadoramente
familiar, num desnudar-se, ao preço que me for justo perder para ganhar. Não gostaria de
tornar esse diário um modelo de escrita-tese, mas tampouco fazer desse espaço um setting
analítico no qual a associação livre se faz imperativo. Vamos pensar como um momento de
compartilhar com quem lê e se interessa por esse reinar – trapacear e cair da jornada --, um
pouco do que ocorreu no percurso.

O processo, um estar entre, digamos assim, sempre me causou incômodo.


Pensamos na facilidade que é tomar um caminho e seguir. Mas aqui isso se torna uma
impossibilidade, de fato. O imediatismo e a resposta clara e rápida aliviam a sobrecarga da
indecisão, do deixar-se à deriva, do não necessariamente colocar os pés sempre no mesmo
lugar. Nostalgia das respostas que vinham sem eu precisar parar, sentir e entregar. A ideia
desse texto pode ser indício de que o duende se aproxima, e eu, muito “educadamente” lhe
estendo as mãos não sem estremecimento, com certa tensão. Esse texto nasce junto com a
dificuldade do deixar-se levar pela experiência, quase sempre paralisante. Falar do duende a
partir de Lorca, e mais tantos teóricos, sem me colocar em cena, na cena..., começa a não
fazer mais sentido. Dar sentido é sempre possível, mas é preciso ir ao encontro desse outro
sentido que te deixa em suspensão, que te obriga a sair do colo do conforto.

Em meio a uma tese sempre me envolvo com as literaturas, uma necessidade de


sair dessa estória e entrar em outras que não me permitem mais protagonizar, mas olhar
para o outro, de fora. Mas, de fora é o que vem me forçando para o dentro. Como se a saída
apontasse para um único lugar. Uma angústia se estreita e pede para ser simbolizada numa
escrita que desliza e traz junto com ela as memórias para se contar essa estória. Cada vez
que subia num tablao, afinal estamos falando do duende, ao subir num tablao, a sensação da
deriva entremeada a uma nova estória, nunca se fazia.
Desde a iniciação científica, no convívio com Carmen de Prosper Merimée, até o
mestrado sobre a relação professor-aluno no ensino-aprendizagem da dança flamenca,
tentava costurar uma estória. Mas não era a minha estória. Agora se trata de penetrar no
ato, evento, acontecimento, no enigma do instante em que um(a) bailaor(a) é capturado(a)
pelo duende. Nesse momento, é preciso se entregar à primeira pessoa, do discurso e da cena.

Sempre da cochia sentia esse aroma, mas sem nunca me permitir prová-lo. A
prova parecia sempre me levar ao discurso da loucura. Ao medo de ser pega pela loucura,
daquele limiar do ir e não vir. A loucura, de um lado e a entrega, do outro. A entrega é uma
parte disso, a outra parte é loucura. Mas é a loucura que nos faz dialogar com algo que nos
surpreenda no mistério da cena. Ali diante do olhar do outro. Do inquietante estranho tão
familiar. A loucura como sinônimo de autorização? Autorizar-se à entrega do desejo.
Recurso que exige labutar. A possibilidade de não me reconhecer na cena. Algo da ordem do
pânico dava mostras de sua estadia. Algo da ordem do trauma? Um terror que se debruça
sobre a surpresa do porvir. O medo desse encontro de si com o si mesmo. Encontro que
desmascara, sem o menor pudor, as relações que se foram tecendo na vida desse corpo-
linguagem que se habita através do outro, pelo/no outro. Falar dessa entrega não é
simplesmente apontar para o processo, mas daquilo que esse processo fala, por quem ele é
falado, antes de falar-se de/por si.

A cada ensaio, uma descoberta tão desconcertantemente desconstrutiva. O corpo


só se faz forma ao lado do impasse. Será que já me autorizo a lançar-me onde vejo e sou vista
de outro lugar? Mas, como pensar num novo lugar? Ensaio após ensaio. Uma franca
angústia. Uma falta. Do que especificamente, não seria capaz de nomear aqui. Estou atrás do
quê? Uma pergunta que vai e retorna, cíclica, no impulso da dança ao caminhar da análise,
insistente, ainda que eu me esforce para esquecê-la. Estou atrás do quê e para chegar aonde?
De perto não sei responder a isso. Quase uma busca desenfreada por aquilo de que não se
sabe exatamente, mas insiste no apelo para se ir atrás. E nessa busca um não sei que me
aponta a garantia de algo que, de alguma maneira, não fracasse, não me decepcione. Que
desilusão! Pois, na justa medida em que a corrida se ligava a essa ideia, a desilusão da
corrida ia se completando vagarosamente no faltoso.
Uma crise constante de angústia debruçava-se, como um véu, sobre o meu corpo.
Não há mais como manter o controle das coisas, ainda que a tentativa de localizar o não
nomeável se fizesse cena a todo momento. Uma voracidade pede para ser devorada, quase
irreconhecível. Na medida em que o controle insiste em se instalar, o cansaço se estende, um
longo cansaço..., um longo e sofrido cansaço. Aqui dou conta de alinhavar, rascunhar sobre
essa angústia que não se faz verbo. Quase uma associação livre..., falar o que vem à cabeça.
Mas não. O que talvez queira dizer aqui, na carne viva do processo, é que estar no processo
é, de imediato, sair do controle, amansar, amaciar, renunciar..., é fragilizar..., a
vulnerabilidade como protagonista na incerteza do caminho. Sentir-sem ti..., foi aí que se deu
o início do meu percurso, o aceno do duende.
49

CAPÍTULO 2
O FLAMENCO DO PASSADO AO PRESENTE

Um dos capítulos da dissertação de mestrado, já antes mencionada, foi dedicado à


contextualização histórica do flamenco a partir de vários autores. Após a vinda de Juan
Vergillos (2014/2015) ao Brasil, considerado um dos maiores flamencólogos da atualidade, a
história das origens do flamenco tomou, para nós, novos rumos, mudando o cenário e o
contexto frente ao discurso que vinha se fazendo dele até então. Para situar o leitor no campo
dessa arte, este capítulo pretende apresentar uma síntese do antigo cenário em contraponto
com a nova perspectiva que se descortina. Desse modo, aparte da história já descrita no
mestrado pode ser agora lida como incompleta, pois nela ainda se preservava, de certa
maneira e involuntariamente, “A” ficcionalidade mítica do “conto” flamenco. Para completar
o capítulo, buscamos fontes no presente vivo da arte flamenca, ao fazer uso da metodologia
conhecida como história oral, aquela que se fia em relatos registrados por meio de
documentos gravados e transcritos.

2.1 As origens

Segundo Vergillos (2014, p. 1), as origens do flamenco se deram a partir dos


árabes, gregos, judeus, ciganos, mas também e em consonância com os negros, italianos e
franceses. Infelizmente, a história manteve-se por muitos anos presa ao relato do nascimento
do flamenco, exclusiva aos ciganos e árabes, visão que adotamos no mestrado. Veremos agora
que seu contexto é um pouco mais complexo do que isso.
Thiel-Cramér (1991, apud Braga 2010, p.18-21), por exemplo, nos informa que
grande parte das raízes do flamenco teve sua origem a partir da rica mescla da música profana
e litúrgica orientais do século XV, época na qualos ciganos chegaram à Andalucia. Sabemos
que o país de origem dos ciganos é a Índia. Considera-se que foram perseguidos e hostilizados
pelos arios– a principal casta social da Índia - sendo esta a causa de sua vida desenraizada.
Durante vários séculos os ciganos viveram uma existência nômade na Ásia, Europa e
provavelmente no Norte da África. Calcula-se que 180.000 ciganos entraram na Espanha em
etapas, permanecendo sua grande maioria em Andalucía. De acordo com a autora (ibid., p.
26):
50

Hay dos grupos de gitanos: los nómadas y los sedentarios. No fue por causalidad
que estos últimos, que formaban el grupo más grande, eligieran Andalucía como su
patria final. Félix Grande dice: La profunda simbiosis gitano andaluza que significa
ese fenómeno cultural sobrecogedor al que llamamos el arte flamenco, indica –
sugiere al menos un mínimo de semejanzas culturales básicas. Típicos rasgos del
carácter como el miedo, el orgullo, la vivacidad, la resignación y arrogancia son
comunes de andaluces y gitanos.

Depois das árduas migrações, os ciganos encontraram em Andalucía uma terra


que lhes parecia paradisíaca: clima benigno, extensos campos de oliveiras, encostas com
vinhedos, bosques, rios e montanhas. Uma terra rica, mas onde também se encontrava pobreza
e miséria. As grandes propriedades pertenciam a poucos e as pessoas que não tinham ou não
podiam pagar eram maltratadas.
Em Portugal, ocupada pelo Espanha, Felipe III determinou, em 1586, que os
ciganos, que quisessem continuar vivendo no país, teriam que morar em uma cidade
constituída por mais de mil famílias. Sem poderem usar seus vestidos tradicionais, seus
nomes e idiomas próprios, este foi um golpe mortal para a identidade cigana. Eles, enquanto
raça e população, deveriam ser exterminados. Foram acusados de todos os tipos de crimes,
inclusive de canibalismo. Naturalmente, os ciganos cometiam alguns crimes para
sobreviverem. Roubavam todo tipo de animal doméstico para vender ou comer, por exemplo.
Em Andalucía, no entanto, eram aceitos pela população e também pela
aristocracia. Encantavam a classe alta pela maneira elegante e extravagante das canções e
danças das mulheres. Por conta disso, aristocratas tornaram-se protetores de algumas famílias
ciganas. Existiam grandes diferenças entre as classes. É de se supor que os grupos nômades
eram os que sofriam mais, os que eram terrivelmente maltratados pelos beatos e acomodados
que tinham o poder. Os que foram viver em Sevilha, Jerez, Cádiz e cidades vizinhas sofreram
duros castigos pelos menores delitos. Os ciganos viviam em uma espécie de comunidade, por
um lado, com o campesinato pobre de Andalucía, e, por outro, com os mouriscos que haviam
ficado na região depois da expulsão do século XV.
A autora também nos informa (ibid., p. 32) que esses grupos tinham muito em
comum: sua baixa posição social, a extrema pobreza, a fome constante, e a música popular
andaluz com suas melodias e ritmos próprios, “las melismas norafricana y orientales de los
morros”. Melisma vem do grego - consiste em um grupo de tônus sucessivos cantados sobre
uma mesma sílaba, um modo de adorno ou floreio vocalizado. Nos países ocidentais,
encontramos a melisma principalmente nos cantos gregorianos e na música popular dos países
nos quais foi importante a influência da cultura arábica. É também uma característica da arte
musical da Índia. No decorrer dos anos, essas formas musicais se mesclaram e se chamaram
51

“cante gitano-andaluz”. Os ciganos, que haviam sido expostos aos mais duros castigos das
autoridades, começaram a dar voz a esse sofrimento. Estes se expressavam, tomando suas
formas nos lamentos que constituíram a origem de todo o flamenco. Segundo a autora (ibid.,
p. 34), Ricardo Molina declarou em seu livro Misterios del Arte Flamenco que:

Y nos hemos dicho que el proletariado andaluz y el perseguido gitano tenían que
entenderse perfectamente a través de algo vagamente parecido a una instintiva y
común conciencia de clase. Desde el punto de vista antropológico, como hecho
fundamentalmente humano y en calidad de expresión artística de una colectividad,
el cante flamenco es la queja de un pueblo secularmente subyugado.

Os ciganos deram uma forma mais forte, expressiva e pessoal ao baile e cante dos
mouros. O flamenco traz consigo essa releitura marcada pelos ciganos por um grito elementar,
em suas formas primitivas de um povo às margens da pobreza e da ignorância, para quem só
existem as necessidades peremptórias da existência primária e os sentimentos primitivos. É
justamente aqui que se busca a motivação social e psicológica das coplas (versos - letra das
canções) que não são outra coisa senão a representação da desesperança, depressão, do
lamento, renúncia, expansão biográfica, superstição, magia e confissão obscura de uma alma
ferida. Ainda segundo a autora (ibid., p. 34), Félix Grande diz: “Y alguna noche, alguna
madrugada, algún amanecer, uno de esos sístoles de la historia ha gemido de una manera
remotamente musical, apoyándose en una tradición casi invisible que debe tanto a la
onomatopeya, al alarido, al resuello de rabia y miedo, como a las tentaculares músicas
andaluzas del siglo XV o XVI”.
Nos três séculos que se passaram, pouca coisa ocorreu até a chegada do final do
século XVIII. Supõe-se que os ciganos andaluzes, durante este tempo, sofreram uma vida tão
miserável e cheia de sacrifícios e castigos que seus lamentos eram seu único conforto, uma
espécie de terapia pela arte. Quando os ciganos chegaram à Espanha no século XV,
encontraram outros grupos que haviam permanecido no local, vivendo ao Sul de Andalucía,
em Sevilha, Jerez e Cádiz e nas aldeias entre estas cidades. Ali encontraram um ambiente,
uma heterogeneidade de pessoas das quais iriam fazer parte, integrando-se. A população local
era composta por pobres campesinos, grande parte de mouriscos que haviam permanecido
depois das expulsões, e umas tantas famílias judias que conseguiram se esconder nas
inacessíveis matas e bosques durante os tempos da cruel inquisição. Durante esses três
séculos, essas três classes de pessoas, que teriam muito em comum, trocaram, compartilharam
e assimilaram suas culturas, sobretudo no que tange à música. Tudo isto faz parte das raízes
do flamenco lida pela convenção. Das fontes profundas do cante, do pobre e maltratado povo
52

cigano-andaluz pode ter germinado algo novo e fresco. O flamenco como cante, baile e toque
é uma arte nova marcada pela expressão pessoal de uma tragédia, um transporte à alegria, um
momento lúdico de sentimentos que brotam do coração e da alma (ibid., p. 36).
Todavia, conforme esclarece Vergillos (2015), os ciganos vão se fazendo
intérpretes do baile flamenco, não tendo criado, na realidade, em nenhum momento algo
novo, como se vinha pensando até então, visto que utilizam um repertório que já existia na
Espanha. Evidentemente, não podemos negar a marca dramática e intensa com que marcaram
sua interpretação. Existiam muitos ciganos militares que nunca foram nômades na Espanha.
Em Flanders, território da atual Bélgica, antiga colônia da Espanha, muitos ciganos, bons
guerreiros, iam brigar por lá. Assim, a palavra “flamenco”, sem ainda associar-se ao diálogo
entre o baile-cante e guitarra, como o conhecemos atualmente, surge aqui para caracterizar
essa gente que provinha dos Flanders, da guerra. Era uma maneira de dizer que eram valentes,
mas também delinquentes.

En la época de Cervantes no había baile o canto alguno que recibier a el nombre de


flamenco. De hecho, esta palabra pasó a ser sinónimo de valiente, “echaopalante” e,
incluso, delincuente, y más tarde de gitano, después de las guerras de Flandes, en las
que participaron muchos soldados profesionales de esta etnia, razón por la que se
produjo esta asimilación. La verdades que la palabra flamenco, asociada a bailes y a
cantes, no aparece en la literatura española hasta los años 40 del siglo XIX. Pero en
la obra cervantina podemos encontrar abundantes referencias a los bailes y cantos de
su época, muchos de los cuales serían llamados, pasado el tiempo, flamencos. La
obra que contiene más referencias a las danzas y los cantos, tanto de la calle como de
palacio, esla novela ejemplar ‘La gitanilla’. Se trata de una novela en el más puro
sentido de la palabra en la época de cervantes: una novedad, un suceso curioso.
Refleja de manera idealizada, aunque con elementos picarescos y costumbristas, una
sociedad gitana encontra posición e interacción con las sociedades no gitanas. Son
gitanos nómadas y ladrones que poco o nada tenían que ver con los gitanos de carne
y hueso de la época, ya que por entonces, 1613 si atendemos al año en el que se
publicó la novela, la mayor parte de los gitanos españoles vivian asentados y bastante
asimilados socialmente. Sí resulta verosímil, sin embargo, por su relación con otras
noticias de la época y anteriores, la referencia al empleo profesional que muchos
gitanos hacían de la danza y el canto. Esta asociación seguirá con buenas aludenlos
dos siglos siguientes hasta el punto de que hacia 1840 se empieza a llamar flamencos,
como sinónimo de gitanos, a los bailes y cantos que hasta entonces se llamaban
nacionales, del país, españoles, andaluces y también de palillos y boleros. Ello fue
consecuencia de los câmbios sociales y estéticos que se dieron en el romanticismo
español. (VERGILLOS, 2016, p. 1)

2.2 O baile e o cante do século XIX

Desde o Renascimento já se escutavam os ciganos bailando as Seguidillas (Figura


4). Quanto aos bailes boleros ou voleros, estes surgem como resposta à influência do balé
ítalo-francês. Ao incluir saltos, parecia que os bailarinos voavam. Vergillos (2014, p. 1-3)
53

afirma que encontramos, nas origens da dança flamenca, elementos que, assim como no balé,
hesitavam pela vontade de síntese de distintas tendências artísticas, virtuosismo técnico que
deveria competir na época com o balé francês, a vocação cênica e os espetáculos
profissionais, que acabaram contrastando com o substrato popular que constituiu as suas
origens. O teor exótico se deu por conta de elementos ciganos, que estão presentes no teatro
popular hispânico e no culto, não somente hispânico. O orientalismo também se apresentou
nas músicas populares do flamenco estilizado. Isso porque o flamenco é uma arte estilizada,
uma criação de profissionais como reação à preponderância da ópera italiana e da dança
francesa.
As primeiras manifestações flamencas, com que se tomou contato, apresentaram-
se na metade do século XIX, nos teatros e academias de baile, passando, no final do século
XIX, a se apresentar também nos cafés cantantes. Ainda que, em seu princípio, estes locais,
importados da Europa, não tivessem como objetivo a representação da arte flamenca, foram
importantes para os cantaores jondos (cantes mais existenciais), que desenvolveram suas artes
nesses cafés. A escola bolera veio como uma versão acadêmica do baile, por isso não há uma
linha divisória entre as ruas e o cenário. O baile flamenco pode ser assim considerado como
uma evolução dos bailes boleros que são uma sistematização e uma síntese entre os bailes
nacionais, boleros e a dança francesa. A percussão dos pés vem do zapateado da escola
bolera. E, para completar a origem dos acessórios, o mantón teve a sua origem na China e o
abanico na Corea.
Os cenários são os teatros, mas também as academias, como a do Senhor Barrera,
e, ao final deste período, foi surgindo um novo espaço cênico que lentamente se estabeleceu
como centro do universo flamenco, Os Cafés Cantantes (Figura 5) (ibid., p. 5).
Aqui duas grandes referências de baile dessa época foram, em 1835, a bailaora Petra Camara
(Figura 6) que bailou pela primeira vez uma Soléa1. Bailaora bolera, ela foi uma das

1
Palo é o nome que se dá às sub-classificações do Flamenco. Dependendo do compasso, da escala utilizada, da
progressão de acordes, do tema abordado na letra e de outras características mais destacadas das músicas, estas
podem classificar-se de diferentes maneiras, de forma que músicas em um mesmo palo apresentam
características semelhantes. Dentre os principais palos flamencos destacam-se a Seguiriya, a Soleá, a Bulería, a
Alegría, a Rumba, o Tango, o Fandango e a Sevillana. O Martinete é considerado o palo mais antigo, chamado a
palo seco, ou seja, sem acompanhamento de violão. De certa forma, alguns destes palos eram músicas
tradicionais que posteriormente foram incorporadas ao Flamenco. Assim sendo, muitos não consideram as
Sevillanas, por exemplo, como sendo Flamenco. Vale notar que existem vários outros palos além destes, uma
centena, como Canastera, Alboreá, Petenera, etc. Cada palo contém características marcantes que podem
identificá-los. Assim os palos jondos são mais pesados, tristes, como a Soleá. Há contudo músicas que
apresentam uma certa mistura dessas características. O palo mais antigo no Flamenco, acompanhado de algum
instrumento é a Seguiriya. Antes a ele as músicas eram apenas cantadas, sem dança nem violão (as chamadas
Tonás), como no caso do martinete, onde aparece a bigorna como acompanhamento, por exemplo. Após as
Seguiriyas vieram as Soleá, quando o Flamenco passou a ser apresentado, inclusive com dança. E então vieram
54

primeiras a bailar com o acompanhamento da voz flamenca de Enrique Prado, no teatro de


San Fernando de Sevilha em 1862, e Luis Alonso (Figura 7), cigano da escola bolera, que em
1927, estreou o baile Petenera.
O reduto nativo do baile flamenco, segundo Leite (1994, p. 20), pode ser
determinado mais ou menos como um quadrilátero cujos vértices foram: Cádiz, Ronda, Ecija
e Sevilla. Os primeiros testemunhos de suas formas básicas datam do final do século XVIII,
quando os ciganos cantavam tonás e siguiriyas, bailando zapateado e Jaleos. Mesmo sem
saber a forma como essa composição se deu, sabe-se que foram entre as províncias de Cádiz e
Sevilla. Então, pode-se afirmar que destas regiões saíram as formas rudimentares de tonás e
improvisações de cantes festeiros ou de Jaleos.

O centro dos bailes de jaleo e dos cantes por tonas, siguiriyas, soleares e tangos,
seguia vinculado à zona geográfica em que nasceram: os bairros ciganos de Jeréz,
Sevilla, Cádiz e El Puerto, Alcalá e Utrera, Arcos e Lebrija. Na região compreendida
entre Córdoba e Málaga, Jaén e Almería, Granada e Huelva, Badajóz e Ciudad Real,
Múrcia e Albacete, o flamenco seguiu apropriações dos cantaores populares da cada
região, com os cantes, na sua maioria, derivando dos fandangos. (ibid., p. 20)

Mas o nascimento propriamente da palavra flamenco, associada a cantes e bailes,


se refere a Lázaro Quintana em 1802. A denominação de flamenco é dos anos 40 do século
XIX, quando essa arte foi tomando seu lugar como herdeira das danças boleras, com a
castanhola, de origem grega do século XVIII. Antes se tocava somente com um dedo, depois
se incorporaram os quatro. A castanhola passará a ser símbolo do baile espanhol. É através da
escola bolera e do baile bolera que o baile propriamente flamenco passou a existir. Os bailes
boleras, que nasceram no século XIX, logo passaram a ser chamados de flamenco.
As relações dos ciganos com a música e com a dança podem ser encontradas na
literatura espanhola, como na “La Gitanilla” de Cervantes (Figura 8), Carmen de Prosper
Merimée (Figura 9) e outras. Nestas referências o que é original nos ciganos não é o
repertório, que segue sendo o mesmo desde as Seguidillas, mas a forma de fazer, intensa e
dramática (ibid., p. 2). Sendo o mesmo repertório da Espanha, o que se tornou de fato
importante foi a maneira de executá-lo, incorporando o cigano para indicar a forma de baile,
ou seja, “gitano”, “a lo gitano” e/ou “a lo flamenco”. Neste momento, cigano e flamenco
passam a ser sinônimos. Assim, o que antes era baile por jaleos (ritmo flamenco) passa a ser
baile por jaleos gitano com o mesmo intérprete, ou seja, é a mesma coisa, mas qualifica o
cigano no baile.

as Bulerías, que apresentavam um caracter mais festivo, com danças mais aceleradas. As Bulerías são o palo em
que o guitarrista/violonista ou o bailaor podem mostrar suas melhores habilidades, havendo muita improvisação.
55

Já a palavra flamencologia apareceu em 1955 pelo portenho Anselmo Gonzáles


Climent (Figura 10). Fala-se, nos livros dessa época, de um flamenco mais primitivo como se,
antes da guerra, não tivéssemos tido tanto os cantes jondos como os adocicados. Essa divisão
se deu muito mais por conta de uma realidade financeira do que uma real necessidade de
mudança estética do cante flamenco. Nessa época, surgiu a antologia do cante flamenco, cada
cantaor publicará a sua antologia. Vergillos (2015) lembra que quase todos os festivais da
época estavam voltados para o cante. O baile ocupava um lugar secundário ao lado do cante.
Por conta disso, a flamencologia desse período acabou intitulando, na origem, primeiro o
cante e depois o baile.
Os espaços cênicos da época eram os teatros e academias de baile, que no futuro
se tornariam os cafés cantantes. Ainda que, em seu início, esses lugares, importados da
Europa, não tivessem como objetivo a representação da arte flamenca, eles foram importantes
para a solidifição artística do cante jondo (profundo e existencial) até o ponto em que os
grandes criadores do cante jondo do final do século XIX, criadores do repertório que hoje
conhecemos por flamenco, desenvolveram sua arte nos cafés cantantes. Assim, a primeira
etapa conhecida da existência da arte flamenca data do ano de 1800-1860. Os cantaores eram
ciganos, e quase nunca tocavam fora de seu círculo. Mas às vezes, em festas como bodas,
batizados e outras solenidades, eles eram chamados para animarem os convidados com seu
cante e baile. Foi em1847 que começou a articulação entre cigano e flamenco. O modelo e a
palavra bolero saíram de moda para darem lugar à palavra flamenco. Em 1853 nos jornais de
Sevilla, apareceu o artigo “El jaleo Gitano”, o flamenco e o cigano se articulando como
sinônimos. Em 1856 estreou um salón (academia de baile) que em 1870 se converteria num
Café Cantante em sua estreia.

2.3 Os cantes flamencos

Para Vergillos (2015, p. 1), no que diz respeito ao cante, Silvério Franconelli
(Figura 11), criador do cante flamenco, nunca utilizou o termo “flamenco” para isso, mas sim,
“cante andaluz” ou “cante espanhol”. Ele foi o responsável pela independência entre cante e
baile. Decidiu fazer um café de cante flamenco. Ele tinha a intenção de priorizar o cante em
lugar do baile. Historicamente, o flamenco nasce do baile. Antes da Guerra Civil não existia o
conceito de cantaores para baile. Antonio Chacón (Figura 12) foi outra importante figura dos
cafés cantantes. Na época, o ritmo e a estrutura não eram restritos.
56

O cante especificamente para baile surgiu na Guerra Civil. Assim, surgiram os


bailes boleros/bailes flamencos-cantes flamencos. Os cafés cantantes, que tiveram o seu início
com os cantaores, pouco a pouco, se fizeram baile acompanhado pelo cante. Tida aqui como
a idade de ouro do cante flamenco, nela começaram as óperas flamencas com uma explosão
de intérpretes. O conceito de “Cante gitano andaluz” surgiu com Antonio Mairena (Figura 13)
na época franquiana. Uma divisão que se fez necessária na época somente para que os ciganos
tivessem mais trabalho. Dessa forma, a divisão discriminatória entre ciganos e não ciganos
como domínio do território flamenco foi seguindo trilha discursiva em livros desde a Guerra
Civil. Dada a miséria, os ciganos precisavam se sobressair, assim, afirmavam serem melhores
intérpretes, por serem ciganos.
A consequência da Guerra Civil se viu refletida na brusca mudança do flamenco.
Uma das mudanças pode ser vista na diferença entre o baile masculino e o baile feminino.
Muitos flamencos de esquerda na ditadura fascista se foram à América, outros foram presos e
tantos outros fuzilados. Aqui não há separação social nas ruas e no teatro, bailam a mesma
coisa. A proibição dos bailes exóticos, realizado pela minoria cigana, estava muito
relacionada ao poder das igrejas que estavam ali metidas no governo. Por isso, nessa época se
dá uma mudança estética.
Em 1922 Lorca e o compositor Manuel de Falla (Figura 14) abriram um recital
flamenco, por assim dizer, o primeiro festival de cante jondo, e, neste mesmo ano, Lorca
escreveu o poema Del cante jondo, publicado em 1931. O festival fracassou porque
mantiveram uma visão romântica, aquela do flamenco do povo, dos ciganos, e existencial,
quando tentaram, numa frustrada tentativa, recuperar uma época de ouro, que, a rigor, nunca
deixou de existir.
Nos anos 30, mais especificamente de 1931-1935, entra-se numa etapa dourada do
cante. Em 1931, a Espanha deixou de ser monárquica e passou a ser democrática com a
instalação da República. A esquerda chegou ao poder. Era possível gastar dinheiro com a arte.
Os artistas pelas ruas, o povo apoiando o cante e os artistas flamencos. Época das óperas
flamencas, dos recitais flamencos. Na realidade, ainda que as óperas tenham esse caráter
aristocrático, seu nascimento foi estratégico, elas vieram porque óperas pagavam menos
impostos. Mas, na realidade, eram recitais de cante. Temos os artistas de “cantes dulces”, em
que cada um criava a sua própria melodia. Um cante sentimental e muito pessoal. Criou-se
com isso uma nova estética. Cantes reivindicatórios, de problemas reais, nas vozes dos artistas
como Pepe Marchena (Figura 15), La Niña de Los Peines (Figura 16) e Manuel Vallejo
57

(Figura 17). Manuel Nina de los Peines dizia que Vallejo foi o melhor no sentido rítmico, o
primeiro a cantar canções a ritmo por bulerias (por 12 tempos).
Aqui também se deu o início dos cinemas sonoros, os cinemas musicais
flamencos, polarizados entre conservadores (onde não aparecem os flamencos) e a esquerda,
marcada pelo flamenco. O diretor Luis Buñuel (Figura 18) foi o primeiro a dar oportunidade
ao cinema musical republicano, tomando a frente nesse percurso. Ele foi um dos primeiros a
dar oportunidade a Carmen Amaya (Figura 19). Ela saiu em um de seus filmes de folhetins.
Carmen Amaya (1913-1963), filha do guitarrista El Chico, em 1923 começou suas viagens
por Espanha e Paris. Em 1941 se apresentou em Nova York. Em 1942 interpretou diferentes
papéis nos cinemas na América do Sul e Hollywood. Em 1954, inaugurou a “Fuente de
Carmen Amaya” em Barcelona (ibid., p. 14). Essa lógica se seguirá até a entrada de Franco,
de um flamenco mais conservador (flamenco não cigano) em oposição a um flamenco cigano,
reivindicatório. A arte de conflito ético mostra sua vestimenta.
Já em 1936, com a chegada de Franco, o cantaor Valderrama (figura 20) dizia em
meio à guerra e à diáspora dos artistas “donde nosotros cantaban en la Plaza del toro,
estavan fusilando a la gente”. Os cantaores dessa época, que não conseguiram sair da
Espanha, para conseguirem dinheiro, cantavam nas festas de senhores de posse. O cante foi se
refugiando nesses lugares, ou melhor, foi se prostituindo pelo dinheiro. As grandes Cias de
baile partiram para os Estados Unidos e Argentina. A cigana Carmen Amaya, por exemplo, se
converteu na “Queen of the Gipsy”. A arte étnica, entre o místico e o exótico, era o que
interessava nessa época.
O Franquismo desativou o potencial social e crítico do flamenco que passa a ser
uma arte marginal. A fala franquista era: “Dale el flamenco a los gitanos entonces”. Isso é
tudo que Franco lhes dará. O flamenco se relacionava com o mundo dos ciganos e isso
interessava a Franco. A arte de massas politizadas se converteu em uma arte marginal, sem
direitos nem dinheiro. Antes havia o flamenco na Plaza Del Toro, o flamenco da massa
politizada. Esse flamenco mais juguetón (divertido) deu lugar a um flamenco mais existencial
e radical, polarizando-se de um lado mais folclórico, o das bolas, flores e colorido, para outro
mais radical. Ao fim e ao cabo, toda a arte mudou depois da Segunda Guerra Mundial. Dos
jogos de Vanguarda dos anos 20 e 30 rumo a uma variação de tendências. No pós-guerra, em
meados dos anos 50, houve uma troca estética flamenca para um flamenco racial. Um
flamenco mais jondo (existencial) em oposição a um flamenco mais açucarado, digamos
assim. Um flamenco somente para os ciganos. Cria-se uma guerra civil flamenca, entre os
payos (não ciganos) e os ciganos, a briga à identidade flamenca “original” se fez. Fechou-se
58

em uma única estética. Para competir nesse mercado instalado, havia Antonio Mairena como
uma figura central. Era um grande investigador, tido como um cigano “legítimo”. Ele
inventou a enciclopédia do cante. Reivindicou um cante de voz forte, ao lado de Mairena,
Pepe Marchena (1903-1976), não cigano e apolítico. Juan Vergillos considera Marchena o
cantaor mais importante da época. Ele se converteu em inimigo dessa onda do cante gitano
como único a ser validado. Mairena e Marchena eram capazes de ativar diferentes registros
àqueles que o escutavam, numa voz que nos convoca-invoca. O cante por soléa (ritmo jondo
flamenco), de Mairena, nos leva a um lugar familiarmente desconhecido. Como um grito, um
chamamento, característico do ritmo jondo flamenco. Essa questão freudiana do estranho
familiar deverá ser tratada com vagar no decorrer da tese.
Segundo Vergillos (2015), insistiu-se nessa temática de um flamenco mais
dramático. Fixou-se na história através dos livros que, antes da guerra, não havia um flamenco
autêntico, o que é um grande equívoco. Nessa época, o que se tinha era o ícone do cante
açucarado, suave, melódico e existencial na voz do cantaor não cigano Pepe Marchena. O
pós-guerra aproximou os intelectuais do flamenco, reivindicando um flamenco mais
dramático, aquele capaz de dizer, retratar o momento histórico. Assim, a etapa dos anos 1950
pode ser caracterizada como a etapa do cante flamenco.
Nos anos de 1940-60, tinha-se Niño Ricardo (Figura 21) e Sabicas (Figura 22)
como referências na guitarra flamenca. Niño Ricardo foi o grande maestro do pós-guerra.
Exerceu forte influência no maior guitarrista da história, Paco de Lucia. Sabicas, outro grande
guitarrista, nessa época, estava fora da Espanha. Ele tinha uma técnica assombrosa, uma
grande velocidade na guitarra. Em 1970 fez fusão entre rock e flamenco. Sabicas criticou
Paco de Lucia dizendo que ele deveria tocar a sua própria música, as suas próprias
composições e não as melodias de Niño Ricardo. Isso marcou e mudou a arte de Paco de
Lucia. Mas a grande figura do baile em 50 foi Antonio Ruiz Soler (Figura 23), conhecido
como Antonio “El Bailarín”. Se Pepe Marchena foi o ícone do cante na história flamenca,
Antonio “El Bailarín” foi do baile. Já o baile pós-guerra teve como referência a Cia de Pilar
Lopéz (Figura 24).
A partir de 1955, criou-se um espaço cênico para o flamenco, os tablaos. O
primeiro tablao no centro de Madri data de1954, com o nome Zambra (Figura 25). A primeira
referência de bailaora no tablao Zambra foi Rosa Durán (figura 26). O Zambra durou de
1954 até 1975, com a morte de seu fundador.
O café cantante foi na realidade uma tentativa de juntar o comer e a arte. Isso nos
lembra a fala de Eva La Yerbabuena, uma das maiores bailaoras da contemporaneidade,
59

quando disse, em um programa de entrevista, que a medida, para saber se havia bailado bem
ao final da noite, era quando as pessoas paravam de comer e beber para vê-la bailar. Assim, os
cafés cantantes chegaram até a guerra civil e o último fechou em 1936. Foram os cafés
cantantes que se tornaram tablaos. Espaços marcados por um ambiente cênico mais íntimo
para o consumo dos estrangeiros, o que se segue até os dias atuais em várias cidades da
Espanha.
Como vimos, antes da guerra, havia os teatros e os cafés cantantes e, no pós-
guerra, os tablaos, que são nada mais e nada menos do que os resquícios dos cafés cantantes.
Com o nascimento dos tablaos, dada a demanda dos turistas, o baile precisava dialogar com o
cante, antes exclusividade somente do segundo. No pré-guerra não se sabia cantar para baile.
Entre 1936-55, o flamenco tinha pouco espaço. Os tablaos caminharam junto às demandas
que com ele se foram fazendo da aliança entre cante-baile/baile-cante. Os artistas, que
precisavam trabalhar, desenvolveram bailes mais longos junto a um apurado trabalho técnico
para os tablaos, por isso, a demanda de se criar um baile longo, técnico na relação com o
cante, nasceu nos anos 50, antes havia bailes rápidos, pequenos, de improviso e sem muita
técnica. Os repertórios de baile eram os mesmos, ainda que nomeados de três diferentes
formas: “gitano”, “a lo gitano” e “a lo flamenco”. Neste momento, gitano e flamenco eram
sinônimos, tanto que antes se bailava “el jaleo”, que é um tipo de ritmo flamenco, e agora
baila-se “el jaleo gitano”, incluindo o mesmo intérprete. Assim sendo, podemos falar de uma
mesma função. O cenário são os teatros, salões e academias.
Em 1960-70 ocorreu um giro para os novos tempos. Aqueles, que eram tidos
como papas do ritmo, entraram em ação. O guitarrista Paco de Lucía (Figura 27) e o cantaor
Camarón de la Isla (Figura 28) marcaram uma linha divisória nos anos 70 até a atualidade.
Eles tinham uma impressionante condição técnica e rítmica, o que, até então, não havia
ocorrido, ou seja, cantaores virtuosos em ritmo. Revolucionaram o flamenco que veio dos
antigos tempos.
Quando o flamenco mudou de paradigma depois de 1950, o ritmo foi priorizado.
Isso começou a marcar e mudar a história, o flamenco e o ritmo. A melodia, antes
protagonista, foi abrindo lugar para o ritmo. Evidentemente, os dois devem caminhar juntos,
mas antes o ritmo era posto de lado. A voz era prioridade sobreposta ao ritmo. Camarón
colocou elementos tradicionais e pontos comerciais em sua discografia até 1979. Em 1978 fez
um giro na carreira fusionando o flamenco com o Rock Andaluz, na voz de Pata Negra e
Alameda (grupo de rock), introduzindo também guitarra, teclado e elétricos. La Leyenda del
Tiempo é um dos mais importantes trabalhos de fusão de Camarón.
60

Assim, Paco de Lucia, ainda muito jovem, juntou-se à Cia de José Greco. Depois
à de Antonio Gades (Figura 29). Paco conheceu o Brasil de 60 e seu estilo será fortemente
influenciado por isso. Os contratempos e o cajón, ainda que este seja um instrumento
peruano, começam a ser trabalhados por ele após a sua vinda para o Brasil com Gades. Ele
também sofreu forte influência do jazz, abrindo o seu universo harmônico. Os
contemporâneos de Paco introduziram o cajón, a flauta e outros recursos por causa dele. Paco
e Camarón se inclinaram um pouco mais para um estilo festeiro, porque chegava com maior
rapidez ao público jovem, mas sem excluir as grandes criações bastante complexas dos cantes
jondos. Juntaram a melodia e a rítmica. Até então, não havia criação no cante, somente cópia.
O cantaor Enrique Morente (Figura 30) foi o único criador. Por conta de Antonio Mairena,
que disseminou um discurso de que o conceito de cante já estava feito, o cante não conseguiu
se renovar. Diferente da guitarra e do baile que sofreram grandes modificações.
Em 1989, Sabicas gravou um disco com Morente. Enrique Morente também
revolucionou, mas nada comparado a Paco de Lucia. Enrique Morente se apoiou mais na
expressão do que propriamente na técnica, como fez Paco. Em 1971, introduziu poemas em
seu cante e, em 1977, homenageou Antonio Chacón. Nos anos 80 retornou ao flamenco de
1930, àquele na voz de Marchena e Valderrama, doce e suave. Nesse retorno melódico ao
cante dos anos 30, temos os cantaores atuais nas vozes de Estrella Morente (Figura 31), filha
genética de Enrique Morente, e artística, de Miguel Poveda (Figura 32).
Para sintetizar este tópico, seguiremos com grandes nomes do cante flamenco
como Manolo Caracol (Figura 33) e Manuel Torres (Figura 34), seguidores de Mairena. E o
mais contemporâneo, Fosforito. Ramon Montoya (1879-1949) (Figura 35) foi criador da
guitarra flamenca, o guitarrista mais importante da história até a chegada de Paco de Lucia,
enquanto Manuel Torres foi o ídolo de Antonio Mairena. Os Cafés Cantantes se fizeram nas
figuras de Antonio Chacón (1869-1929) e de Silvério Franconetti (1829-1889). Com
Franconetti, deu-se a independência do cante flamenco em relação ao baile. Nina de los
Peines, conhecida como Pastora Pavón Cruz, cigana de Sevilla (1890-1969), tem a maior
discografia do flamenco, depois de Mairena, e foi discípula de Chacón. Pepe Marchena (1903-
1976) foi o grande responsável por cantes mais melódicos e suaves.
61

2.4 Os grandes nomes do baile Flamenco

A malagueña, chamada Trindade Huertas “La Cuenca” (Figura 36), foi a primeira
a sapatear (taconear), importante figura na composição do sapateado para o baile por soléa,
introduzindo nesta o sapateado/taconeo. Foi também a primeira vez que uma mulher bailou
com vestuário masculino, vestida de toureiro. Ela percorreu os principais teatros da Espanha e
outros países. Esse baile pode ser considerado como uma evolução das danças boleras que,
como já vimos, são conhecidas como jaleos. A soléa também foi uma derivação dos bailes de
jaleos boleros (ibid., p. 6). Carmen Dauset Moreno, “Carmencita” (1868- 1902) (Figura 37),
foi um ícone na interpretação de la Cachucha. Rosario Monje, La Mejorana (Figura 38), uma
bailaora puntera, foi mãe da futura estrela da dança, Pastora Rojas Monje, Pastora Império
(Figura 39). A mãe foi a responsável pela introdução de mãos, punhos e braços no baile e
também a primeira a bailar com a bata de cola, cujo uso, até o final do século XVIII, era
característico das mulheres da classe alta de Andaluzia. A origem da bata se deu em Paris. Era
o traje típico da aristocracia parisiense. Eram eles, os aristocratas, que ditavam moda na
Europa. Esses bailes foram levados aos teatros de Sevilha, Málaga e Cádiz e aos cenários
mais modestos dos cafés cantantes, que em Andaluzia eram cafés de cantes flamencos e não
de baile e de academias.
Até então, os cantes eram cantados e bailados ao mesmo tempo por alguns desses
intérpretes, quase sempre mulheres. A partir de então, o cante e o baile tomaram caminhos
distintos, até o ponto em que o baile passou a ser feito por um acompanhamento instrumental
até depois da guerra civil espanhola. Pastora Imperio, segundo Vergillos (2014, p. 8, 10), foi a
responsável pela transição para o século XX, ao estabelecer o flamenco como um espetáculo
definitivamente teatral, embalando um estilo de baile que hoje se conhece como a escola
sevilhana de baile flamenco. Matilde Coral, discípula direta de Pastora Império, é a fundadora
e autora atual da “Escuela Sevillana de baile”. Macarrona (1870-1947), La Malena (1877-
1956) e Pastora apresentam um baile de cabeça e braços, muito sensível e equilibrado frente
ao excesso de pés, baile sutil frente ao “barroquismo hiperrítmico”. Figuras, desenhos, linhas.
Classicismo e helenismo. A linha clara frente à linha bronze. É dessa tensão que a apreciação
do baile flamenco se faz.

La sucesión de períodos luminosos, clásicos, justos, y periodos barrocos,


excessivos, decadentes, lujosos y lujuriosos. (...) La danza femenina es en esta época
lenta y protagonizada por los marcajes propios de los bailes Boleros así como el
baile femenino de la cintura para arriba: caderas, busto, cabeza, mirada, brazos,
muñecas, manos. La bata de cola es el atuendo que simboliza esta etapa del baile
62

flamenco, una tendência que llega hasta hoy y que, siendo barroca en su intención,
resulta clásica por su inspiración y desenvolvimiento. (VERGILLOS, 2014, p. 9).

A máxima representante atual da escola ministrada por Matilde Coral (Figura 40)
pode ser considerada como a primeira “encarnación consumada” do clacissismo do baile
flamenco. Ela é defensora do bom flamenco barroco. Trabalhou de perto com El Farruco,
representante contemporâneo desse estilo barroco. O sapateado é mais tranquilo e o
importante aqui são as marcações próprias dos bailes boleros, assim como o baile feminino
“de la cintura para arriba”. A bata de cola é um acessório que simboliza essa etapa do baile,
uma tendência que segue até os dias atuais e que, sendo barroca em sua intenção de origem,
resulta clássica por sua inspiração e desenvolvimento. A bata se apresenta como um símbolo
estético. Este acessório é um ser vivo e, como qualquer ser vivo, é muito sensível.

La bata es el símbolo de una estética. Afirma Matilde Coral, máxima defensora de


la bata de cola en la actualidad, que esta prenda es un ser vivo y, como cualquier
ser vivo, es sumamente sensible. El arte de la bata de cola es aquél en el que acaban
las prisas, el frenesi de nuestro tiempo. Es el arte de recrearse en el gesto mínimo,
en el detalle. Hay que acariciar la prenda en su movimiento con el interior de la
pierna y la cadera. (VERGILLOS, 2014, p. 10)

Em 1915 estreou “El Amor Brujo”, no teatro Lara de Madri, uma obra que
formará parte do repertório dos bailarinos espanhóis da época e que, sem pretender, iniciou
um gênero novo, o balé flamenco. A obra apresenta o repertório das principais Cias do
momento e a estreia da grande La Argentina (1925) (Figura 41), com composição de Falla.
Antonia Mercé, La argentina (1888-1936), alternava como todas as bailaoras de sua época, o
cante e o baile. Em 1911 se instalou em Paris. Seguiu com giras internacionais, e, em 1929,
formou a sua própria Cia “Les ballets spanols”, emulando Diaguilev e seus balés russos. Esta
obra marcará o início do balé flamenco. Ainda que alguns bailes boleros apresentassem
autênticas coreografias narrativas e o flamenco contasse com a “sorte” das touradas, em
termos narrativos, foi a primeira vez que um repertório de passos e mudanças abstratas, lírico,
concebido à expressão emocional direta, era também uma narrativa. A música orquestral e
sinfônica incorporou-se ao flamenco. Falla compôs um outro balé “El sombrero de três picos”
para Diaguilev, cuja coreografia contou com a participação do bailaor sevilhano Félix el
Loco. (ibid., p. 9)
SegundoVergillos (2014, p. 7), neste primeiro momento, acompanhamos o
germinar da dança flamenca, como um tipo de baile eclético, de influências diversas que vão
desde a escola Bolera, as danças do povo, religiosas e profanas, os bailes de negros afro-
63

americanos até o balé francês. “Ecletismo e barroquismo” marcam o baile flamenco, tal qual o
conhecemos nos dias atuais, desde sua origem. Os ritmos das alegrias e jaleos podem ser
vistos como um perfil popular sempre vinculado a Cádiz. Estes representariam, junto com os
tangos, a parte mais festeira do repertório flamenco dançado, ao passo que a soléa, bailada por
La Cuenca, com seu sapateado e extraordinária técnica de braços e mãos, representa a parte
mais grave e jonda desses ritmos.
Vicente Escudero (Figura 42), bailaor, em 1905 decidiu aprender o baile
flamenco, integrando parte do elenco do café cantante “La Marina”, do qual foi despedido por
não conhecer o compasso flamenco. Daí foi a Santander, Bilbao, onde conheceu, no “Café de
las Columnas”, a Antonio el de Bilbao, que lhe ensinou os segredos do compasso flamenco.
Reintegrou-se, assim, ao circuito dos Cafés Cantantes de Madri. Em 1920 ganhou um
Concurso Internacional de dança organizado pelo teatro da Comedia, o que lhe permitiu
instalar-se definitivamente em Paris. Em 1924, abriu sua academia, ampliando seu repertório.
Interpretou também obras de Falla, Turina, Albéniz e Granados. Em 1935 estreou com a sua
própria Cia em Nova York. Em 1947 publicou o livro Mi baile, iniciando uma carreira
paralela de escritor, pintor e conferencista. Seguiu, ao mesmo tempo, uma carreira
internacional e gravou alguns discos como cantaor. Em 1980 morreu em Barcelona aos 91
anos. Antonio Gades, Barón, Galván e Marín se reconheceram como seus discípulos. (ibid.,
2014, p. 11-12).
Encarnación López Júlvez, “La Argentinita” (1897-1945) (Figura 43), já em 1905
começou a sua carreira aos oito anos de idade no Teatro Circo de San Sebástian. Em 1909
atuou em Madri. Em 1914 participou do programa del Romea com um espetáculo em que
cantou, recitou e bailou. Em 1920 vestiu o papel de atriz. Em 1927 fundou a Cia de baile
Andaluz (ibid., p. 11). Antonio Ruiz Soler, por sua vez, em 1927 ingressou na Academia de
Realito. Em 1937 iniciou um grande touseu pela América e depois fez filmes em Hollywood.
Em 1949 retomou seu tour pela Europa, Oriente Médio e Norte da África. Em 1980 tornou-se
diretor artístico do Balé Nacional (ibid., p. 15). Já Antonio Montoya Flores – “El Farruco”
(Figura 44), no início da guerra, teve seu pai fuzilado e sua mãe encarcerada. A família, com a
sua mãe, conseguiu escapar em 1938 para Sevilla. Ele iniciou sua carreira em 1943 no Teatro
San Fernando, depois nos tablaos. Em 1962 participou como convidado do concurso de
Córdoba. Em 1965 ingressou na Cia de José Greco. Em 1970 ganhou o prêmio Nacional de
Baile Flamenco de la Cátedra de Flamencologia. Entre 1982-1984 participou da Bienal de
Sevilha, realizando também tours internacionais. Em 1991 recebeu o Compás del Cante de la
Fundación Cruzcampo. (ibid., p. 15)
64

Ainda há muitos outros como Juan Manuel Fernández Montoya (Figura 45),
Farruquito (1982), da lendária dinastia “Los Farruco” é considerado como um dos maiores
representantes do flamenco atual. Filho do cantor El Moreno, da bailaora La Farruca e neto
de El Farruco. Farruquito fez sua estréia nos palcos da Broadway aos cinco anos, estrelou no
filme de Carlos Saura, Flamenco, aos doze anos, e estava dirigindo seus próprios shows por
quinze anos. O também famoso Antonio Esteve Rodenas (1936-2004) – Antonio Gades, em
1952 entrou para a Cia de Pilar López. Em 1961 saiu da Cia e iniciou carreira solo
percorrendo com o seu próprio espetáculo Nova York, Itália, Londres, Paris e muitos outros
lugares. Em 1962 tornou-se o primeiro bailarino del Scala de Milán. Em 1964 apresentou a
sua própria Cia em “El Corral de La Morería”. Em 1974 filmou Bodas de Sangre. Em 1979
foi nomeado diretor do Balé Nacional. Em 1983 filmou Carmen. Em 1985, no papel de
Carmelo, filmou a nova versão do El Amor Brujo.
Mario Maya (1937) (Figura 46) iniciou sua carreira em “Las Cuevas del
Sacramonte”. Depois de quatro anos na Cia de Pilar López, formou a sua própria Cia. Sua
estadia em Nova York no final de 60, em contato com as últimas tendências da dança
contemporânea, transformou substancialmente seu conceito de baile flamenco. De volta a
Madri, montou com Carmen Mora e El Guito “El Trío Madri”. Na realidade, Maya encontrou
na marginalização dos ciganos, em sua história, por assim dizer, uma via de expressão de suas
próprias inquietudes, o que o tornou o olimpo dos criadores contemporâneos da dança
flamenca. Em 1933 recebeu o encargo do governo de criar a Cia Andaluza de Danza, fora
muitos prêmios pelo caminho (ibid., p.17). Manuela Vargas (1945) (Figura 47), por seu lado,
iniciou sua carreira nos tablaos com doze anos. Não estava satisfeita com os cenários de
tablao, sempre teve predileção e vocação teatral. Em 1963 ganhou o prêmio Internacional da
Danza com “Antologia Dramática del Flamenco”. Em 1964 participou da Feira Mundial em
Nova York, sendo a artista mais conhecida da época. Foi chamada para bailar em muitos
cenários dos Estados Unidos e participou de muitos programas televisivos. Em 1969 recebeu
o Prêmio Nacional de Baile de la Cátedra de Flamencología de Jerez de Frontera e em 1970 e
1971, o Prêmio Nacional de Teatro. (ibid., p. 18-19)
Ainda no elenco dos bailaores atuais, Israel Galván de los Reyes (1973) (Figura 48),
filho de bailaores iniciou sua carreira em tablaos ainda criança. Esteve na Cia de Mario Maya.
Teve o primeiro prêmio en La Unión, Córdoba e na Bienal de Sevilha e Prêmio Nacional de
Danza. Seus espetáculos representam a máxima vanguarda do cenário flamenco (ibid., p. 19).
Eva Yerbabuena (1970) (Figura 49) é uma das intérpretes mais importantes da atualidade.
“Impecable y casi dolorosa en las secuencias a cámara lenta. Demorándo se,
65

parando el tiempo. Porque solo quiénes capaz de hacer cinco gestos por segundo, como ella, es
capaz de pararse de esa manera. En ella vemos nuestro sentimiento íntimo que traduce con
total honestidad, con la inconsciência de quién no necesita pasar por la cabeza el corazón...
(ibid., 2014, p. 20). E assim fechamos esse ciclo de grandes nomes do flamenco com o
fenômeno atual, Rocio Molina (1984) (Figura 50), bailaora e coreógrafa que, em 2010,
juntamente com os Anjos Margarit, ganhou o Prêmio Nacional de Dança concedido pelo
Ministério da Cultura da Espanha na modalidade de interpretação entre tantos outros prêmios.
Por fim, falar hoje do flamenco é nomear alguns importantes teóricos contemporâneos, que vêm
contribuindo de forma sistemática à pesquisa e entendimento dessa arte no contexto social e
cultural. Félix Grande (Figura 51) e José Caballero Bonald (Figura 52) escreveram muito na
época do governo de Franco. Eram autores, assumidamente de esquerda, que gostavam de
escrever sobre o flamenco marginalizado, como metáfora política. Depois da morte de Franco,
pararam de escrever.
Neste momento, as notícias sobre as novas danças flamencas surgiram sob o olhar
dos pesquisadores José Luis Ortiz Nuevo (Figura 53) e Faustino Nuñez (Figura 54). “Los
primeros datos que encontramos en la prensa de la época referidos a las nuevas danzas
flamencas se lo debemos a los investigadores José Luis Ortiz Nuevo y Faustino Núñez” (ibid.,
2014, p. 5). Aqui, referiam-se mais propriamente ao tango e à soléa. O tango aparece
primeiramente como “tango de negros” ou “tango americano”. Assim, podemos dizer que é
uma dança e cante de origem negra e habanero, que chega à Espanha no final do século
XVIII e que se tornará o que passamos a conhecer por flamenco na metade do século
seguinte. O famoso cantor de jerez Curro Durse, em 1867, foi o primeiro a cantar e bailar a
forma flamenca no teatro Principal da sua cidade natal. Faustino Nuñez, assim como Juan
Vergillos (Figura 55), têm um blog no qual atualizam as notícias do flamenco. Dois outros
grandes pesquisadores são José Luiz Ortiz Nuevo e José Manoel Gamboa (Figura 56) com o
seu emblemático livro sobre a história do flamenco. Neste livro, podemos também encontrar,
ali disseminada, a visão de Juan Vergillos. Esses autores trabalham com artigos da imprensa,
hoje bastante acessíveis.

2.5 Por uma história viva do flamenco

Há algumas décadas, a narrativa da história não mais se realiza exclusivamente a partir


da consulta a documentos escritos, devidamente sistematizados. Desde o surgimento da Nova
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História, a história oral e outros procedimentos similares, passaram a ser legitimados também
como formas de acesso à memória ainda viva (BURKE (org.), 1991). Valendo-nos desse
paradigma, hoje largamente aceito na historiografia, recolhemos depoimentos e relatos de
bailaores(as) que, ao que tudo indica, podem enriquecer a nossa visão sobre como poderia ser
feita uma história viva do flamenco. No que se segue, apresentamos apenas alguns
sinalizadores acerca da maneira como tal construção poderia se dar. Ao mesmo tempo, é
preciso dizer que conduzimos tendenciosamente nossa questão para receber dos entrevistados
pistas sobre a maneira como incorporam e sentem o duende. Afinal, do flamenco, o que nos
interessa aqui é o duende em ato. Os relatos são internacionais e nacionais. Os internacionais
foram colhidos em um autor que se antecipou a nós (MORA, 2008). Quanto aos nacionais,
dada a proximidade, foram realizados por meio de entrevistas e relatos, em especial com o
grupo da Ofs (Oficina Flamenkera) do qual sou parte integrante, sob a direção de Cylla
Alonso e Gabriel Soto. Os relatos se tornaram imprescindíveis à pesquisa por dois motivos.
Primeiro porque deslocaram a pesquisadora de uma visão apenas subjetiva e, segundo, porque
tornaram o impalpável, o irrepresentável, o inefável do duende algo passível de ser abordado,
e, acima de tudo, sobre o qual é possível até mesmo escrever uma tese.
A pergunta feita aos intérpretes nacionais versou sobre o que os aproximava e os
afastava de uma sensação prazerosa em cena e o que entendiam ou sentiam como uma
qualidade própria do duende. Foi uma tentativa de capturar o duende no discurso daqueles que
muito provavelmente passam por essa experiência. Após os relatos, seguiremos para a
transcrição de uma entrevista, realizada ao final de 2015, com a maestra Cylla Alonso,
idealizadora e fundadora do Método Coreológico Flamenco, sob o qual, como bailaora, esta
pesquisadora veio se aperfeiçoando há dois anos. Ora, falar, estudar e trabalhar diariamente
através do método é, de alguma maneira, poder a-vistar o duende, numa metáfora que vai se
conciliando à vida, uma vez que as ferramentas dispostas por esse método tendem a
disponibilizar a entrada do intérprete em cena. Para começar, seguem depoimentos de
bailaores(as) sobre o enigma do duende tal como fala no corpo, e que, nesta tese, se está em
busca de decifrar.

Yo soy más seguro que Manuel Torre, aunque no tengo aqui aquel pellizco. Con
él se tiraba el señorito por la ventana. Hice vários discos com el Niño Ricardo y me dijo que
en seguridad no había comparación. Puede tener noches malas. A veces le gustan mucho a la
gente. Yo no me gusto y al público le encanta. Eso será porque tu no te hás oído. Es muy
difícil de entender. Um mistério. Tú no te gustas y el publico goza: eso es el duende. (EL
CHOCOLATE, 2008, p. 96)
67

Pero eso hay que elegir siempre el camino de la libertad. No hay que tener miedo
al flamenco. Hay que arriesgar. (SARA BARAS, 2008, p. 213)

Hoy es todo má difícil y subirte al escenario te asusta más: hay que ofrecer
mucho más que antes a la gente, dar algo que tenga interes...El duende sin un buen sonido no
viene. Hay que poner las condiciones para que salga. Si estás calentito en el teatro, cantas
mejor. El duende no sale a bajo cero. (CARMEN LINARES, 2008, p. 111)

La inquietud es eso mismo, equivocarse alguna vez. Todas las experiências


suman. Adquieres conocimientos con los errores y las equivocaciones. El camino fácil es
aprender más despacio, pero me gusta mucho el precipício, mientras voy aprendiendo a
buscar la forma de no caerme. (MIGUEL POVEDA, 2008, p. 129)

Si no buscas, no te equivocas. El silencio existe porque existe el ruído, y si no te


mojas, no nadas. Lo hacía para ser mejor que yo. Y el zapataeado nos es percusión. Es la
continuación de un sentimiento. Si tienes miedo, deja de torear. (ANTONIO GADES, 2008,
p. 192-199)

Calor, frio, ao mesmo tempo, sobem pela espinha. As vísceras, muito vivas,
remexem, se comunicam diretamente com a garganta. Um nó. Por vezes um aperto, quase um
vazio... na primeira entrada do meu solo, quentura e adrenalina. Um turbilhão caótico vai
ganhando sentido quando começa a salida de cante. Parece que os ancestrais vêm num
cortejo, comigo, enquanto subo no tablado, e isso invade o corpo, preenchendo-o de muitas
vozes e dizeres, pra além do meu, pra além de mim. O trabalho, o canto, a criação, os ritos,
Estamira, cavalo marinho, maracatu rural, muitos universos entram comigo naquele lugar e
parecem dar sentido pra sequência de movimentos que vou executando, sem saber
exatamente quando, porque preciso acompanhar o cante, que não sei como vai seguir... uma
piscina imensa, um corpo à deriva, que não afunda. Dança. Muitos universos, muitos
contextos, um corpo a costurá-los à sua maneira. Na segunda entrada do solo, sou a última a
bailar. Instantes antes de entrar, um vazio, aterrador. Começa a salida, algo invade, vem o
choro, os ancestrais retornam, os universos, os dizeres, os trabalhadores, os ritos... de novo
me jogo nesse mar, sem saber exatamente como nadar, mas, algo em mim sabe. Algo em mim
conhece o caminho. Preenchida, alimentada e fisicamente exausta, durmo. (CAROLINA
MOYA, 2016, integrante da Ofs, Azougue-Laboratório de Experimentação Cênica e Núcleo
Manjarra)

A mí un dia me coge maravillosa y outro no estoy bien, no me llega la


inspiración. Procuro que salga el duende, pero hay dias que te pongas como te pongas no
sale. (MANUELA CARRASCO, 2008, p. 205)

Sin riesgo el artista no crece y la emocion no aparece. (SARA BARAS, 2008, p.


213)

A sensação que sinto em cena é a sensação de liberdade. Eu posso liberar toda a


minha energia, mostrar tudo o que eu acho, tudo o que eu penso. Uso o palco como válvula
de escape. O canal para se aproximar e se afastar do duende não é um canal único, muda de
tempos em tempos. O que me ajuda a ter esse canal é a segurança do que irei fazer, o que eu
posso fazer, para onde posso ou não ir. Eu estou livre para fazer o que eu quiser, mesmo
estando presa numa estrutura. (BEATRIZ CARRAZZA, 2016, integrante da Ofs)
68

A cena dependerá muito dos pares que estarão comigo e o palo (ritmo) que
bailarei. A história que quero contar. Uma sensação de plenitude, do aqui e agora e não
haverá outro momento na minha vida que eu desfrute tanto, quando estou dançando.
Enquanto danço estou totalmente ali e era exatamente isso que queria estar fazendo. Ainda
não sei o que é mais prazeroso, se quando estou me apresentando ou aprendendo. Gosto de
fazer aula em grupo. Na aula particular o improviso é mais custoso, ao passo que, na cena,
me vem mais natural. O movimento me conecta muito comigo, me joga mais em mim, e isso é
muito prazeroso. Em cena estou muito concentrada. (CAMILA MONTE, 2016, integrante da
Ofs)

A sensação em cena é sempre um buraco no desconhecido. Talvez a cena seja um


trânsito entre emoções muito diferentes, é difícil falar de uma só. No flamenco, o duende em
si não está no enlouquecer, na fantasia, ele pode estar muito mais na esquina com dois
amigos brincando de flamenco do que muitas vezes num cenário. O duende pode ter
aparecido ali. Essa metáfora é um estado de ser. Estado de viver aquele momento, e não de
estar representando outro momento de alguém, enlouquecendo de propósito. O uso do
flamenco como algo concreto, da vida. Não como fantasia artística. Muitas coisas que escuto
estão muito vinculadas à histeria, a força, a sensualidade, uma série de coisas que o
flamenco em si para mim pode ter, mas ele pode não ter e, nem por isso, ter menos duende. A
metáfora pode ainda estar no estereótipo. Até que ponto o duende não está numa capa
transparente que a gente aceita como a verdade do flamenco. A arte em si, quem faz a arte, é
o estado mágico metaforicamente. Sem roupagem e adereço, ele está pelo estado de ser e não
o de convencer. (CYLLA ALONSO, 2016, diretora da Ofs)

Cada persona ve una cosa; sacrificarme para ser entendido no me interesa; me


da igual que se les olvide todo lo que hecho; lo único que me interesa es meter al público em
um viaje de ideas, de ritmos, de efectos visuales, con el cuerpo y con la música; aunque no
entiendan nada, que se queden con un estado de cuerpo distinto. Me gusta que el escenario
sea um laboratório y dejar que vean lo que estoy haciendo sin dar muchas explicaciones; me
preocupa que, aunque no se entienda, la gente esté conectada. El peligro es cuando el ojo no
ve emoción sino una sucesión de pasos; eso me da miedo y huyo de eso. (ISRAEL
GALVÁN, 2008, p. 217)

Eu posso estar plena em cena desde que eu me aceite, não os outros, eu para mim
mesma, me aceitando naquele momento. Eu entro com uma linha atrás do buraquinho da
agulha. Eu preciso passar a linha neste buraquinho. Para isso, preciso de um foco, uma
atenção delicada. Se eu sei o que é o duende, eu diria que é o momento depois desse.
Momento em que tudo e todos estão juntos, alinhavados com um mesmo propósito. Você não
sente que a música é uma coisa, o cante é outra e você e os seus passos outras. E qualquer
coisa que você faça, por mais simples, quando se está junto, vai ser muito bom. Eu sou levada
por todos e todos são levados por mim. É um corpo perfeito para o momento, que vai bailar
ali a guitarra, o compás, o cante, a união. E aí você diz, isso aqui foi muito especial.
No entanto, se eu perder esse foco, nada mais vai acontecer, nem o passo
ensaiado vai sair. E não tem pensamento nessa hora. Não tem uma coisa prévia. É uma coisa
que acontece e você age, e isso não tem nada a ver com o controle.
Eu não desisto da cena e sempre retorno para poder existir em outro lugar. Eu
vou visitar outra pessoa que sou eu mesma, mas uma visita necessária para que aquela da
vigília consiga sobreviver. Eu venho com a ideia da conexão, mas deixo ela solta, se eu
pensar nela, não haverá nada na cena, porque isso vem do ineditismo. Você chega e acontece
ou não. Se eu trabalhar o foco da linha que eu imagino na hora é um baile suficiente. Sem a
69

conexão com todos, não há flamenco e nem a possibilidade duende. Sem uma das pessoas ali,
não acontece. Se o pensamento atravessar esse momento, nada de interessante acontecerá.
Precisa ter muita coragem. Porque na realidade se trata de uma experimentação. Para ir
buscando esse momento você vai experimentando. Você vai se jogando. Você vai fazer coisas
que não sairão legal. Tem momentos que você acha que vai e não vai. Eu fui sozinha e
ninguém foi comigo e, aí sim, é a sensação de queda no precipício. E isso vai muito da
generosidade, se cada um estiver pensando no seu, não acontece. Nessa união se faz olhar de
acolhimento. E cada vez é uma vez. Mas, se você vai para dar aquilo tudo o que tem, vira
show de aprovação, onde você só vai mostrando aquilo que sabe fazer. E as pessoas vão sair
com a sensação de que foi bonito. Assim, podemos pensar em camadas.
A primeira camada é a da beleza, da ilusão, do quadro. E na medida em que
vamos nos aprofundando, entramos numa camada mais profunda/instintiva. De poder estar
ali em cena para resolver uma questão sua que faça um eco e toque a outra pessoa. Tocar o
público é fazê-lo se ver ali, é a representação dos sentimentos dele, é da vida, do ser humano
que colocamos ali. Você consegue comunicar sem querer comunicar. Se você quiser
comunicar, já acabou. Se a pessoa entrar em cena querendo comunicar, não irá, pois ela já
partirá do pressuposto racional. Entrar sem estar é entrar com o que você acredita que as
pessoas estão esperando de você. Não é você. É você com outros ideais. Quando você entra
no preciso fazer, você não entra, porque te falta coragem de ser. Vamos criando uma bolha,
que começa pequena e vai aumentando. E quando estou no meio da cena e sei que não fisguei
todo mundo, também se abrem possibilidades. A sensação do já perdi tudo. Correr em
direção ao precipício ou correr no sentido contrário. Poder entrar em contato ou evitá-lo. É
uma escolha de estar sujeito na cena. Ter coragem de ser você com todas as suas mazelas. Se
perder, como na vida. Você pode montar a sua casa preconcebida com manual sem ter nada
de você nela. Isso não me satisfaz. Eu prefiro ver algo que não foi bem feito, estava feio, mas
eu estava lá, inteira, isso me traz completude, mas sempre na busca de melhorar
tecnicamente. (MONITA RUEDAS, 2016, Família Ruedas, de São Paulo)

La música es matemáticas. El flamenco también. Incluso el más intuitivo, el más


tradiconal, el más tribal, está dentro de um sistema, tiene su orden, su estructura, sus escalas,
su cultura; la música tonal occidental es un artifício sobre la naturaleza que se va creando a
partir de um analises permanente; el flamenco trata de escaparse del sistema para
convertirse en arte... (MANOLO SANLÚCAR, 2008, p. 256)

Quando o artista em cena está com a sensibilidade tão aguçada, que pode até
ouvir a respiração do bailarino e perceber o instante exato em que aquele movimento de
corpo irá acontecer, podendo antever o seguinte movimento e acompanhá-lo com a melodia
precisa dentro de uma história rítmica que ganha todo o sentido a partir dessa união, tão
amarrada que corpo, movimento, harmonia, melodia e ritmo se convertem em um só, juntos
ou simplesmente se complementando. Quando o conhecimento e a técnica se diluem em um
fluir constante a serviço da arte, e o tempo deixa de existir. Ele simplesmente é, e acontece
em passado, presente e futuro, ganhando o sentido único de SER e ESTAR. Não existe fim,
nem objetivo, apenas o meio de se chegar a um estado que, quando se alcança, você desejaria
apenas não ter alcançado, pois não quer que acabe, nem que o aplauso chegue. Quando o
risco do erro te impele ao acerto, pois não há alternativa, a não ser a de converter aquele
sapateado, aquela linha percorrida pela voz do cantaor, pelos braços do bailarino em algo
audível, em combinações sonoras que se complementam e contam uma história. Quando o
imprevisível te leva a lugares nunca antes imaginados, e a emoção do momento te leva a
regiões nunca antes exploradas. Quando nada mais importa, a não ser aquele momento único
e irrepetível, ao mesmo tempo tão contraditoriamente condenado à efemeridade de sua
70

natureza quanto à eternidade de seu efeito. Quando a criação se torna uma constante
imparável e condição sine qua non para o sentimento de realização plena em cena, livre de
travas de qualquer tipo. Quando você simplesmente deixa de existir, e a única coisa que
existe é o momento. Isso é o duende.
Já o duende não acontece quando não há entrega, quando não há diálogo,
quando a técnica se sobrepõe à arte em vez de estar a serviço dela, tornando-se tão fria como
o metal. Quando o ego do artista se sobrepõe aos demais, quando a ausência de domínio ou
de conhecimento provoca o desconforto do não saber como fazer, quando o suor não vem do
esforço, mas, sim do nervosismo, quando não há controle das ferramentas, quando não há o
que dizer em cena, mas apenas a execução de uma letra, de uma melodia, percussão ou
movimento. Então não há duende. (GABRIEL SOTO, 2016, guitarrista e diretor musical da
Ofs)

O que me dá mais prazer em cena ou em qualquer outro posto que eu possa


ocupar é a liberdade, a tranquilidade, a cumplicidade, que as coisas não sejam pesadas, não
no sentido das emoções a serem trabalhadas, mas no convívio com o outro, com os pares de
trabalho, que possa ser leve, tranquila e amistosa, desde os ensaios até a cena. De pesada já
tem a vida.
Essa liberdade e tranquilidade transparecem tanto nas composições como nas
encenações vão para a composição e encenação e, isso, transparece. O que me tira o prazer
está ligado às minhas altas exigências, coisas que trabalho muito para silenciar ou
apaziguar, ou nos momentos em que não esteja relaxada, sentindo liberdade, no sentido de
relaxamento comigo mesma ou com o entorno. Mas em especial como estou comigo mesma,
às vezes estou mais quietinha, às vezes não estou muito disponível para me expor, numa fase
mais quietinha, quando será menos prazeroso estar em cena, porque a cena é sempre uma
exposição, ainda mais para o bailarino que expõe todo o corpo em detalhes.
O duende para mim é o momento mágico em que as coisas acontecem. Existem
momentos em que você está em cena com alguém ou até num ensaio em que acontece algo,
costumamos dizer, “hoje aconteceu”, momento que dizemos de uma sintonia que não tem
muito como explicar em palavras e pode durar apenas segundos, ou no teu baile inteiro, ou
no baile do teu amigo, enfim, muito difícil que isso se sustente no show inteiro, mas isso
provavelmente pode contaminar o show inteiro. Eu acho que tem uma coisa de harmonia, de
sinergia, de congruência de todas as pessoas em cena naqueles segundos em que a gente
sente uma epifania artística. O duende é esse momento de epifania artística.
Mas é muito importante ressaltar que isso não irá acontecer sem muito trabalho,
individualmente ou com o grupo, até o momento do encontro, porque temos nossas bagagens.
E isso não acontecerá se não houver a harmonia, relaxamento e liberdade individual e/ou no
coletivo. Tudo isso ajuda a resultar nesse momento mágico, que não necessariamente é um
improviso, pode ser uma coisa que foi estudada, marcada e trabalhada, mas que naquele
momento sai de uma maneira nova. Num primeiro momento, o duende é uma crença em que
não acredito, eu acredito no trabalho, no suor do estúdio, não acredito tanto em talento,
acredito em trabalho, mas mesmo assim, é inegável que existam esses momentos. Afinal, a
arte dá possibilidade para esses momentos. (JULIANA PRESTES, Cia del Puerto, 2016)

Llevo desde niño practicando todos los días una media de 14 horas y a eso, en mi
tierra, le llaman duende. (PACO DE LUCIA)
71

2.6 Entrevista com Cylla Alonso: explicitando seu método

A entrevista e os comentários que se seguem são de fundamental importância


para a compreensão tanto do percurso que estará sendo enunciado ao longo do diário de bordo
quanto nas articulações, relativas à interferência do coreógrafo, a serem enlaçadas no capítulo
6, depois que se der nossa travessia pelos conceitos psicanalíticos. Por enquanto, fiquemos
com a explicitação do método utilizado por Cylla Alonso, sob cuja direção foi desenvolvida a
experiência em cena da pesquisadora na sua qualidade de bailaora.
Desde muito cedo, Cylla, filha de pai letrista, engajou-se com a música, em
especial o samba. Mas o flamenco entrou em sua vida de modo original e intenso. Por volta
dos quinze anos, tudo o que via era flamenco, tudo era importante para isso, desde uma roda
de samba até a salsa, ela via flamenco, o flamenco estava assim inserido em tudo. Desse
modo, foi construindo um caminho de ensino individual que, depois, se tornou a
sistematização de uma didática de ensino de maneira intuitiva e de pesquisas a partir da
demanda desse percurso individual. Estamos falando de uma pesquisadora que da prática foi
para a teoria com muito mais intuição do que conceitos preparados de livros. A história da
coreologia flamenca, que é o nome que deu ao seu método, não nasceu de uma necessidade de
criar um método, “nem absolutamente nada disso”. Ela começou a notar que a quantidade de
informações, que existia sobre apenas um dos aspectos do flamenco, era muito vasta. “E eu
não tinha condição de repetir duas vezes da mesma maneira, pela quantidade de informações
e, muito menos, explicando para alguém”. Num primeiro momento, foi uma maneira de dizer
que, em um só aspecto, era possível observar vários pontos. Quase um método comparativo. E
quando mudava o ritmo ou o passo,

estava ali estudando outra coisa, observava que isso, que estava notando, já tinha
sido notado em outro momento. Nas minhas aulas, fui sentindo necessidade de
organizar o meu pensamento para poder ensinar. Para que, no momento em que
quisesse introduzir uma outra visão sobre aquele passo, pudesse fazer isso. Assim,
não se poderia jogar tudo ao mesmo tempo, portanto, fui caminhando por
prioridades. E, na realidade, cada aluno vai ensinando, de alguma forma, a passar
essa mesma informação de outra maneira. Até que você consegue um método
científico em si, a partir do ensaio e erro. Você passa a informação de uma
maneira, vê que isso não gerou resultado, então tem que arrumar uma solução,
mudar a fórmula, e aí vai chegando a certas respostas que podem ser mutáveis e
sempre melhoradas.

A partir dessa demanda interna de aprendizado e transmissão, isso foi se tornando


um método, “à medida que ia estudando para mim mesma e para poder ensinar”. As anotações
do percurso pessoal didático foram se tornando, paulatinamente, uma fórmula para uma
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didática de ensino. “Então, chegou um momento em que, de fato, comecei a desenvolver uma
linha de raciocínio que me parecia interessante. Nunca foi com qualquer intenção que não
fosse aquela de conseguir enxergar como pensava, o que conseguia ver e ir agregando
informações”. De fato, o flamenco contém muita informação corporal o tempo inteiro.
A partir de então, Cylla começou a criar um sistema gráfico, uma coreologia
flamenca que não tem nada a ver com outros sistemas coreológicos, embora o princípio seja o
mesmo. Foi uma maneira de colocar no papel aquilo que “você faz para enxergar a quantidade
de possibilidades feitas com o corpo, fora a questão da partitura. E o flamenco sempre teve
um empecilho que é, ao mesmo tempo, o grande barato, a questão da percussão”. Então, diz
Cylla, “eu teria que ser um músico e um bailarino, senão como iria colocar tudo no papel”.
Qual o caminho para criar o sistema gráfico? Os sistemas de movimento partiram do
pensamento e análise de cada movimento, “como faço isso, como faço aquilo, em uma busca
interna e muito paciente das reações do corpo”.
Foi, então, estudar os métodos didáticos que existem para o ensino da música,
pois, querendo ou não, são as referências que se tem no campo da percussão. Nisso se apoiou
inicialmente, mas, ainda assim, não fazia sentido. Fazia sentido no musical, mas ela não
conseguia enxergar como aquilo poderia ajudar na representação gráfica. Aí foi para o papel
com base nas definições musicais, contudo, muito mais para a parte filosófica da música do
que qualquer outra coisa. Assim, buscou uma maneira de pensar o flamenco dentro dessa
teoria, embora não fosse possível pensá-lo da mesma maneira que um músico e um bailarino,
até porque, “trabalhamos com música ao vivo, com regras. Bom, e aí fui desenvolvendo o que
se transformaria em um método”.
A partir de uma planta (metatarso apoiado no chão) foi surgindo a necessidade de
saber como o corpo funciona, do que o machucava ou não, o que ficava mais fácil e mais
difícil, enfim, uma sequência de testes. Por conta disso, foi buscar livros de anatomia, para
investigar por que a perna sai de tal lugar, porque o equilíbrio é melhor naquele ponto. Tudo
isso numa pesquisa inicial com o seu próprio corpo. Ela não foi estudar a anatomia humana,
mas a anatomia daquele processo específico de funcionamento no corpo.
A questão da percussão seguiu por igual caminho. Deveria haver critério nesse
aspecto. Se era possível a comunicação com as pessoas, o que promoveria isso? Foi, assim,
buscar os métodos que existiam de música, na partitura. Alguns fatores que funcionavam para
o corpo, não funcionavam para a percussão dos pés, outras, por sua vez, funcionavam para a
percussão e não funcionavam para o corpo. Então, foi dissociando. Uma vez que o bailarino
tem que ter consciência musical, consciência de ciclo, saber onde está a pulsação do ritmo,
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então, foi buscar esses aspectos naquilo que já estava escrito. Outros autores já haviam
formalizado a vida desses elementos. Leu vários livros. Suas primeiras formulações, entre
2002-2004, foram anotadas e constam de um material de cem páginas escritas à mão. O início
da sistematização, que segue abaixo de maneira sintetizada, permite compreendermos o
esboço da criação do método:

1. Revisão Postural
2. Isolamento mecânico das mãos
3. Estudo da linha dos braços
4. Conjunção dos braços e das mãos
5. Projeção corporal na marcação
6. Linhas de projeção corporal
7. Palmas: estudo preliminar
8. Teoria rítmica
9. Aplicação da teoria rítmica no sapateado
10. Precisão mecânica do sapateado: divisão do tempo no processo mecânico
11. Introdução das palmas de base na mecânica com divisão rítmica
12. Estudo do compasso simples
13. Simetria
14. Estudo do compasso composto
15. Divisões e palmas no compasso composto
16. Introdução às escobillas
17. Estudo do deslocamento espacial e corporal
18. Pulsações rítmicas no movimento
19. Associação mecânica do braço com o sapateado
20. Dimensões do movimento nos passeos e escobillas
21. Braço e sapateado
22. Fragmentação corporal
23. Diferenciação dos palos (ritmos) com relação à divisão rítmica
24. Relação entre o acento da mecânica e o acento da divisão na criação do
acento do pulso

O material é enorme e, para cada item acima, existem subdivisões nas quais não
entraremos, pois elas nos levariam longe demais do escopo deste tópico que aqui comparece
74

como indicador do papel desempenhado pelo agenciamento desse método que muito
contribuiu para a experiência da cena vivida pela pesquisadora na qualidade de bailaora. O
que vale a pena colocar em relevo é que o método seguiu para a definição do tempo e seu
papel nesse tipo específico de bailado. “Aí, vi que não sabia o que era o tempo. Trabalho com
ele e não sei dele”. Estudou, então, sua definição, mas quando o levou para o papel, já não era
aquele tempo do músico, do percussionista. “Precisava responder as minhas perguntas
flamencas e não as perguntas do universo da dança em geral”. Dentro do significado do que é
tempo, começou a enxergar o que a nota fazia dentro dele. Provavelmente, de uma maneira
completamente diferente daquela de um músico que toca um instrumento harmônico ou que
toca um instrumento melódico ou um instrumento percussivo que tem duração. Quer dizer,
são diferentes definições de tempo, por que? “Se estou fazendo o meu tempo, ele não dura e a
consciência passa a ser outra”.
Por isso, passou a fazer a grafia com barras e bolinhas. Achou que com bolinhas
ficasse mais fácil de enxergar. Isso permitiu não somente ao seu corpo comunicar e entender
musicalmente, percussivamente o que se dá em qualquer universo, inclusive fora do flamenco,
o que lhe possibilitou falar de música com pessoas que não fazem flamenco, mas sim, música.
A troca ficaria mais fácil. E daí o sistema gráfico foi nascendo. Era necessário anotar os
timbres que se dão como consequência do sapateado. Uma planta não poderia ser igual a um
taco (parte do salto no chão), pois dificultaria a leitura por não se saber qual a mecânica que
estaria sendo usada. Assim, criou notações, desenvolvendo ciclos, aprendendo na medida
mesma em que se vai lendo a grafia. Com isso, percebeu que havia padrões cuja realização,
muitas vezes, não é percebida pelo ouvido atento à execução e que o papel tornava mais
perceptível.
O método tem a vantagem de ser para todos, visto que, para cada aluno fica mais
fácil ou mais difícil entender cada coisa de uma maneira diferente. Agregam-se várias
informações sobre a mesma coisa para que todos possam entender e aumentar suas memórias.
A memória tem camadas, no método, estipulam-se seis. Assim, na medida em que são
repetidas, todos aprendem. Quem aprende melhor pelo som, vai aprender cantando, quem
aprender melhor pela contagem, aprende graficamente.
Na Ofs, seu trabalho se estrutura em um tripé: professora, coreógrafa e diretora,
todas essas funções executadas com base no método desenvolvido ao longo dos anos. Para
ela, as qualidades de um bailaor(a) revelam a maneira como ele (a) se comunica em cena com
naturalidade para não resvalar em uma caricatura. Não ser o que o outro quer ver, senão ser
ele(a) próprio(a). Obviamente, ritmo, técnica e todos os outros quesitos fazem parte da
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linguagem. Trata-se de encontrar a naturalidade de conseguir se expressar no flamenco de


modo análogo ao domínio de um idioma, de poder conversar com as demais pessoas,
inclusive com o público. Um (a) bailaor(a) é um ser dançante que fala flamenco ou que quer
falar flamenco. Ou seja, deve falar flamenco como linguagem. O movimento muda de acordo
com o momento. Dentro do baile sempre há uma narrativa, é preciso começar e terminar o
que se veio dizer, mas isso muda muito rapidamente. Por isso, há uma grande diferença entre
o profissional e o amador. Ao profissional, a exigência é evidentemente muito maior.
Como professora, Cylla tenta suprir tecnicamente o que falta ao aluno. O primeiro
trabalho é técnico e, num segundo momento, é preciso trabalhar a capacidade de expressão.
Ensinar como o aluno pode se expressar de maneiras diferentes a partir de uma mesma base.
Como coreografa, não trabalha diretamente no que é mais latente no (a) intérprete, senão o
que é menos latente, buscando o que essa pessoa pode dar. Então, são saltos que a própria
coreografia pode permitir ao (à) bailaor(a) para que não fique estancado(a) na zona de
conforto. Normalmente não é o que se faz. Ora, “se eu tiver uma coreografia de um dia para o
outro, ao montá-la, vou pegar o que cada um tem de mais disponível”. Mas se há tempo para
trabalhar com isso, o olhar do coreógrafo pode colocar o intérprete numa posição menos
confortável, mas que, ainda assim, pode lhe dar chance de se sair muito melhor.
Assim, num grupo profissional, a primeira coisa é não plastificar. O que é muito
difícil, uma vez que o (a) próprio(a) intérprete carrega uma tendência a se plastificar porque
sente que é assim que seu corpo funciona. Talvez até seja, “mas não acredito nisso”. No
grupo, o trabalho de expressão é muito individual. Trabalhar individualmente com cada um é
essencial, para “equilibrar a balança”, pois não se trata de pessoas diferentes fazendo a mesma
coisa plasticamente. Se não fosse assim, o grupo não responderia e o efeito seria destoante.
Segundo Cylla, é imprescindível trabalhar a questão do modo pelo qual cada um
se expressa para que se possa chegar a uma plasticidade comum, com conhecimento técnico
dos caminhos que levam àquela plástica, não da pura e simples imitação do coreógrafo. Na
realidade não é trabalhar a dificuldade de cada um, mas sim, o que “você sabe que aquela
pessoa pode retornar ao coreógrafo naquele momento. Mesmo porque isso irá ensinar a perder
o medo de enfrentar as dificuldades. Creio que isso equilibra a balança de um grupo inteiro. O
que resultará em algo muito mais verdadeiro e coeso na cena”. Para ela, o caminho para
coreografar é tanto cerebral quanto emocional ou musical. Não tem nada pensado antes. “É
pura reação, ou seja, ou é uma reação à minha mente, ou à música, ou a uma emoção, ou é
uma reação única e exclusiva do meu corpo, o que ele quer dizer naquele momento, e depois
76

vou pensar num sentido para isso”. Mas não existe um processo pré-determinado, ele
dependerá do dia, do momento.
Ainda para ela, falar de flamenco puro, tema polêmico no meio, seria o mesmo
que permitir uma ausência de reação ao ambiente. O flamenco nasce de uma reação. Mas, se
estamos no Brasil, o nosso corpo reagirá de maneira diferente, o tipo de movimento que
estamos acostumados a produzir é diferente, a vida que levamos é diferente, então, o corpo
não dançará da mesma forma. Mesmo assim, porque não pode ser flamenco ou por que não se
pode reler o flamenco em outras fontes? Em que sentido isso não é puro? “Ora, se flamenco é
uma linguagem, enquanto não buscarmos o movimento em nós, até a cópia será malfeita. A
questão é não ter medo de se colocar dentro do flamenco. Não ter medo do olhar do outro”.
Ao dançar flamenco no Brasil, automaticamente, nos colocam numa outra
cidadania. Na Espanha, para que o flamenco chegue nas pessoas ou não, dependerá da
linguagem. Primeiro você se expressa e depois as pessoas vão decidir se você fala flamenco
ou não, não importando da onde você venha. Ninguém pergunta primeiro de onde você veio.
As pessoas primeiro veem você. Aqui, tem-se um certo temor ao olhar do outro. Nos grupos
flamencos da Espanha, existe sim um caráter mais plástico. Trabalhando sete anos em Madri,
Cylla se tornou a auxiliar do Javier Latorre. Quem consome rápido e executa rápido é uma
pessoa apta a trabalhar como intérprete. Grandes talentos conseguem copiar, então trazer para
si, transportar o movimento do outro para o seu corpo sem cópia, dando uma personalidade
diferente àquele movimento. Normalmente são os solistas. Mas não estamos aqui falando
somente do mundo profissional que é minoria frente à maioria esmagadora do mundo amador.
O diretor é capaz de ver o todo, capaz de ir trabalhando o que é mais cênico, dirigindo pessoas
ou grupos, ele não precisa ser um coreógrafo e, tampouco, um bom bailarino, mas pode ser
um bom diretor.
Assim, o diferencial do trabalho da Cylla Alonso está na construção. Construir a
linguagem. Quando a linguagem está construída e a pessoa começa a conseguir se expressar
através dela, não decorando uma frase, senão expressando o que ela realmente quer, formando
sentenças de alguma maneira, então se chega ao que ela é, e, aí sim, se começa a trabalhar
com interpretação. Cylla e Gabriel desenvolvem um trabalho de grupo. Cylla precisava de
uma guitarra. Ele já havia tocado em algumas aulas antes. Foi ver o trabalho de grupo, gostou
e há anos estão juntos. Não somente em espetáculo, mas na parte didática também. Coisas que
foram construindo juntos, ao buscar uma maneira funcional para que Gabriel fosse o segundo
professor dentro da sala de aula, e não um instrumento musical que ficasse repetindo sem
parar. É necessário que as pessoas percam o medo da música ao vivo e aprendam a conversar
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com o guitarrista. A insegurança com a música ao vivo se dá porque nunca estamos com ela.
Diz ela, “tinha acesso a guitarristas e cantaores quando comecei, de 2 a 3 guitarras. De
repente, o CD passou a ser barato e o músico foi retirado do cenário”. Entretanto, se ele está
ali apenas durante o espetáculo, o diálogo não acontece. Afinal, no CD a música não é
gravada para se ter um diálogo, mas gravada para ser música, para se escutar.
Na visão de Cylla, um dos problemas do flamenco no Brasil está relacionado à
rítmica e à linguagem. Não é um problema apenas no flamenco, mas ressalta mais no
flamenco, porque aqui o (a) bailaor(a) é um(a) percussionista exercendo duas funções. “Mas
julgo esse um problema do quadro da dança no sentido geral. Aprendemos que bailarino é
intérprete. O bailarino bom é aquele que vai e tem uma predisposição corporal, copia e
executa rápido”. Então, se o aluno tem qualquer tipo de dificuldade, isso não é observado,
visto que o caminho seguirá sendo o de copiar e ir adiante. “Não considero o quadro de ensino
hábil o suficiente para que se possa aprender a suprir os problemas, aprender a desenvolver
caminhos para que o(a) aprendiz possa seguir e, principalmente, para que aprenda sobre
aquilo que está dançando, sobre o seu corpo, e não simplesmente passos, a emenda de um
passo no outro num tempo x. “Porque se mudar esse passo de lugar no tempo, já não será o
mesmo passo”. Então, esse contexto não é trabalhado didaticamente. A didática está baseada
na execução. O professor tem que saber achar caminhos, a sua função é fazer com que
qualquer pessoa seja capaz de dançar melhor.
Em suas aulas na Espanha, Cylla percebeu que a necessidade lá é completamente
diferente da nossa aqui. O ouvido é diferente porque a cultura é diferente. O que se ouve, o
que se consome enquanto estímulo é diferente. Mas não existe uma pré-disposição maior. O
que existe é um ambiente flamenco, coisa que aqui não existe, pois não há locais onde se
possa ir para ouvir flamenco. Lá, as famílias, querendo ou não, podem não cantar
profissionalmente, mas cantarolam coisas, ou seja, o feedback da música espanhola está
inserido no universo do flamenco. Para eles é, portanto, mais visceral. E para nós? É algo
como uma anomalia no sistema? Ora, o flamenco não é um corpo estranho, ele é rebuscado,
mas não está fora do sistema. Ele pode ser comparado a qualquer estilo de música e dança,
porque tem regras como qualquer outra. Assim, nada impede que, em um processo de
transposição, ou melhor, tradução cultural, se possa encontrar uma verdade do flamenco em
terras brasileiras, à la brasileira.
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Figura 4 Figura 5 Figura 6

Figura 7 Figura 8 Figura 9 Figura 10

Figura 11 Figura 12 Figura 13

Figura 14 Figura 15 Figura 16


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Figura 17 Figura 18

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Figura 20 Figura 21 Figura 22

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Figura 25 Figura 26 Figura 27

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Figura 29 Figura 30 Figura 31

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Figura 43 Figura 44 Figura 45 Figura 46

Figura 47 Figura 48 Figura 49

Figura 50 Figura 51 Figura 52

Figura 53 Figura 54 Figura 55 Figura 56


II

Sem o calor do grupo. A estrada é só. É sem ti, na literalidade da palavra. É sem
o outro como sombra. Só. Na solidão, o corpo -- nu. Despojado, desnudado, pode falar por
si. Não sei se tem o que falar. Mas pode falar. Ele tem que dizer, ali, onde posso estar sem o
outro, mas com o outro. O outro como composição, não como fusão. E aí, esse calor se
resfria. Dou-me conta de que o trajeto é meu. Com todas as consequências e riscos que ele
tenha. No momento, não consigo pensá-lo como algo bom. Apenas como uma travessia, --
que travessia! Quando lia sobre a travessia na teoria psicanalítica, parecia algo distante da
minha realidade. A verdadeira travessia é visceral. Deixa marcas, desfaz e refaz. Basta saber
de que lugar vamos partir. O corpo precisa dessa marca. Lugar em que se trilha um caminho
que se perfaz só. Na solidão, a narrativa se constrói. Da solidão, uma possibilidade, mas
também o medo. Tão vulneravelmente inquieta. Radicada no outro, pelo outro. Caminho que
me parece mais contundente. Ali onde o corpo busca, tento entregar-me. Aqui na escrita, me
recomponho, leitor. Mas, em cena, tento tirar cada peça da roupa, tendo que admitir o olhar
do outro, como o que ainda me determina. Há que se des-dizer nesse olhar.

Se danço não escrevo. Num momento em que escolho dançar a dança, a escrita
emperra. Se me proponho a fazer um dos dois..., em algum lugar, a falta se apresentará.
Nesse momento, com toda a frustração que isso me causa, abandono a escrita. Recupero-a,
cansada, quando sento e, aqui, em frente ao computador me disciplino a ficar horas..., e a
dança se recolhe. Quero dançar a dança, repito. Mas há que se falar sobre ela. Justamente
quando pensei que o doutorado fosse me trazer a distância necessária para desabrochar a
escrita, meu corpo grita e meu pensamento para. Leio, sem nunca abandonar os romances,
que me abastecem no caminho e suavizam a ansiedade corporal. A escrita pede disciplina,
junto com o corpo que só dança na disciplina do imperativo do corpo dançado. Nem antes,
nem depois. O momento. Para ser uma bailaora, há que bailar, praticar..., romper. Para
escrever, há que se sentar em frente ao computador e, sem subterfúgios, disciplinar. Duas
disciplinas que me pedem tanto, e de tanto pedirem, tão pouco dou. E assim vou me
esforçando a fazer..., sem que uma ou outra me dissipe no processo. Há sim que se tomar
uma
certa distância para deixar-se reagir. Colados não produzimos. Ficamos novamente presos
no desejo do inacessível desejo do outro.

Ao contar parte desse percurso quero compartilhar a dificuldade que é dividir o


processo em dois, a princípio um, mas, quando estamos aqui, falando de um trabalho de
pesquisa, falo de um... depois dois, agora um. E nesse um, devo descrever um percurso que
pede dois..., a prática do indiscernível, não simbolizável, o Real que só sabe falar no corpo,
seguida da teoria. E não a teoria fortalecida na prática. Inverto o processo e saio da minha
zona de conforto. O caminho é solitário. É a possibilidade de se surpreender. É lançar-se ao
risco sem cobrar a causa. E não há outra possibilidade para que algo se instale em ti. A
paradoxal angústia do contentar-se a cada conquista, mas vinda numa velocidade tão
vagarosa que seu aroma se perde nas frestas das ventanas. Um misto de estremecimento
desconcertante diante daquilo que era, com a tímida coragem do que virá. Parece uma
grande desmesura..., até posso concordar, mas quando há que se lançar numa escrita para
dizer algo que não escapa à experiência, mas foge das palavras, o nó se estreita. E de repente
me vi no percurso, tão rodeada da minha própria solidão. Duas alternativas, lutar contra ela
e todas as surpresas desse encontro ou me entregar ao preço que custa uma boa travessia.
Uma sensação de que, da construção, os recursos se foram. E todas as minhas
possibilidades? Temporariamente em silêncio. A escrita que insiste em não se fazer, num
corpo que lateja e que tenta se contar. Um momento de estabilidade se achega, mas tão
ilusório, tão alegremente fugaz. Novamente devo me ater a esse compromisso de um corpo
que, ao cair, se despedaça. De uma escrita cristalizada num saber que insiste em não se
inscrever. Soterrar tudo isso e dizer que o processo foi tranquilo? Omitir os passos? Isso
parece covardia. Por isso, essa tímida coragem, uma vez que a fragilidade, no seu ponto mais
feroz, me fez apostar que nada é mais seguro do que o corpo em carne viva. O corpo que
está. Que se abre. Apostando nesse des-encontro. E no seu lugar mais desconhecido, no
ponto onde os nós não se atam, deixar os fios soltos. Nesse lugar, ao léu. Acreditar nas asas
desse grande salto, ao abismo. Vai cair, mas há sempre alguém que olha por ti. Que te dá
suporte, ali onde a vestimenta vacila.

Nesse momento, só danço a dança do temor, com medo, mas sem deixar margem
às resistências. É no medo que me aventuro. Que bato e volto. Que bato e vou. Que bato e
choro, mas vou. Não um duende edulcorado, na traição a Lorca, mas um duende que te
arranca as vísceras.

Sinto-me tão solitariamente misturada que não sei a quem posso dar entrega. No
calor e inquietude do outro, me recolho. O outro que me fez crer olhar por mim, quando, na
realidade, quem olhava por mim era o seu desejo que me prendia às suas escolhas. Que
ingrata escolha. Me faz escolher o que, da escolha, nada sei dizer. Isso é agônico.

E numa solidão e cansaço corporal, a escrita aqui me conforta, me consola. Um


corpo que pede silêncio, num desrespeitoso barulho. E nesse antagonismo não reina a briga,
ela só te faz crer que o desejo te perde de vista. Mas há que se esbarrar nesse nevrálgico
desejo. Há que se levar pelos/nos riscos. Com todo medo-dano que isso possa custar.

É um tempo tão castigado na plenitude de sentidos. Mas um sentido amedrontado.


Não o encontro que, na rasteira, dá uma fisgada. Um corpo que não mais se reconhece no
olhar do outro. Eu e o meu percurso. E o que tinha antes, desconheço. O que me chega,
estranho. Um não-lugar. Adaptar-se num não lugar. Parece poético. Quando lia isso nos
livros, julgava tão clichê. Mal sabia que esse encontro estava fadado ao que não tenho como
prever. Um misto de tormenta e liberdade. A liberdade acena de longe, lá onde a servidão
ainda me sustenta. Tudo pode ser mais leve. Mesmo? Num corpo que intensifica a carga.
Não.

Em Lorca, debruçava olhos fascinados. Essa sensação mascarada, fadada ao


fracasso da completude. Um a mais de um solitário caminho. Beirando a inocência. O estado
de suspensão cujo afeto não se liga à palavra, invoca a fúria do Real, esse que violenta,
marcando o corpo que ainda hospeda certa ingenuidade, resvalando apenas na dor,
lentamente, respirando ao preço de um peso que não se acomoda à carne. O imaginário
lastra um canto, marca um certo lugar, alucinatório de conforto. Mas do lugar onde o duende
habita, não há sossego para se fazer palavra. Acreditar que o colo é instalação e não
construção, traz um corpo fugidio. Sem despedaçar o corpo olhado no dar-se ao olhar de um
corpo que se perfaz, não haveria lugar possível para se alocar. Duende. Uma vez que você
lhe diz: --- “pode entrar”, ele te responde, sem permissão, “já estou”. E aqui começa a
história. O que fazer desse lugar nunca habitado antes?

Não estou em nenhum momento descartando a técnica cravada na carne. O


duende não se atreve no corpo destreinado. O seu império se faz no doutrinado corpo que só
sabe se dizer na liberdade. Essa liberdade é de um valor bem pouco poético. O treino avista o
duende. Não o esperar, invoca-o. E dizer que desse lugar nada se teme, o instala. Entre o
diário e a escrita acadêmica, nesse jogral que percorre o treino, uma palpitação física me
acompanha. Tensão, sem dúvida. Mas mais do que isso. Um corpo que começa a se contar,
antes anestesiado por tentativas de estórias que me contavam. O corpo tem que descolar e se
re-colocar. Há um preço para essa história. Ele não viria sem que tivéssemos que pagar um
valor por essa cota. Eu luto com um corpo que pede para retroceder, mas como? Na medida
em que vamos travando uma batalha, a inércia vem se acochando, como se, na paralisia,
pudéssemos resolver a questão. Só na dor desse imprevisível encontro é que a dupla se faz
cena: a escrita e a dança. É nesse embate que a narrativa esboça algo, insípido, mas com
contornos.

Certamente, há um momento de calmaria se aproximando. A entrega vem


timidamente se apresentando, como se não houvesse mais desculpas. A entrega sinaliza.
Recuar não é mais possível. Parar, quando o corpo padece de movimento? E a angústia vai
permitindo se perder em outras arestas. Descanso.

A rotina de construir e desconstruir corpos. Há que suportar sua ausência. O


lugar nunca está pronto, acomodado, entregue. Traz uma sensação de uma incontestável
duração, nessa intangível viagem. Uma busca infinita que enquanto repousar em sua finitude,
não logrará. E nesse misto de insatisfação é onde apoio o meu vazio. Que o meu corpo me dê
conta. Que o meu desamparo encontre contornos. E na minha insatisfação me deito. Me
deleito. Me fortaleço. Nela, na insatisfação.
87

CAPÍTULO 3
EL DUENDE: O FIO CONDUTOR

Iluminada pela vivência, que é sempre esquiva ao discurso, desenharei, a seguir,


um percurso que nos orientará na construção da imagem daquilo que o poeta Federico García
Lorca nomeou por duende em seu escrito Juego y teoria del duende (1933), contando também
com o auxílio de alguns comentadores contemporâneos. No capítulo 2 esboçamos um
histórico do flamenco em um traçado breve. O que nos interessa, contudo, é penetrar no
segredo do duende, o que, aliás, implicará toda a jornada desta tese. Neste momento, cumpre
discutir o texto de Lorca que nos levará, nesta primeira aproximação, ao conceito de presença
nas artes e ao primeiro encontro com um olhar psicanalítico que significará -- para sermos
fieis ao ser do duende–encontrar-se com o estranho familiar freudiano, pois, como se verá, o
duende implica esse paradoxo de estar em casa e, ao mesmo tempo, fora dela.
Segundo Montaño (2013, p. 14), tudo indica que a raiz da palavra duende provém
do latim domus ou domitus, que significam casa e domesticado respectivamente, pois vem da
raiz indo-germânica demb, que se relaciona com casa ou em casa. No dicionário da ERA
(Real Academia Espanhola), o nome provém da abreviação de duende, casa no castelhano
antigo, significando dono da casa. A palavra faz ainda frequentemente referência a um
espírito travesso que habita as casas e, na Real Academia da Língua espanhola, aparece como
encanto misterioso e inefável, o mais próximo daquilo que Lorca definiu. Assim, o duende é
uma palavra de origem jergal, que situa o termo “flamenco” dentro do léxico próprio da
Germania, de acordo com o qual “flamenco” deriva de “flamancia”, palavra que provém de
“flama” e que, para os germânicos, refere-se ao temperamento fogoso dos gitanos. O que se
tem aí, na realidade, é uma palavra poética e popular que nomeia um estado de criação
extrema e seu significado foi se enriquecendo de um sinfín de relações geográficas, históricas,
etimológicas e semânticas.

Así podemos concluir que el término de duende tiene un origen jergal como muchas
otras palavras, y es de uso cotidiano en el campo del arte flamenco, pero lo que
cabe destacar es lo que representa, pues por un lado condensa la manera que tiene
una cultura de entender un hecho vivenciado y por outro lado describe un estado de
creácion extraordinário que podemos encontrar en diversas expresiones artísticas
en el mundo. En sus orígenes encontramos principalmente três relaciones
semânticas, la primera la del artista o ejecutante, que es el que dirige la acción, que
es un mediador, es un iniciado, un maestro, es un puente comunicativo. La segunda,
la de un espíritu, mistério, una fuerza exterior, un ente extraordinário y vinculado a
la naturaleza. Ya la tercera la de lo originário, lo arcaico, la herencia, la sangre, la
tradición. (MONTAÑO, ibid., p. 24)
88

Ainda segundo o autor (ibid., p. 36, 53), pode-se observar uma estreita relação do
duende com a morte, já que a morte é um sentimento nutrido por uma experiência extrema. A
verdadeira vulnerabilidade encontra-se aí, na borda do abismo onde o rasgo faz vislumbrar o
real, justo no sentido de radicalidade que a psicanálise dá a esse termo, conforme será
devidamente explicitado nos capítulos à frente. Se o artista não experimenta uma situação
limite, não pode chegar ao fundo, de onde emerge a vulnerabilidade necessária para que o
duende apareça, ali, onde a verdade da morte se escancara, sumindo no estado mais profundo
do ser, e, poeticamente falando, desnudando-se.

Yo he tenido momentos de trance, eso que se llama también momentos de éxtasis, de


creerte que estás en outro mundo, de palpar con tus sentidos la grandeza del más
allá. Cosa grande esta. Después es como si te diera miedo o rabia. Después te
quedas como prendido de hilos que se suspenden en algo que no conocemos, porque
yo cuando canto no abro los ojos, porque para cantar tengo que soñar, tengo que
no ver cuando despierto del letargo si lo he hecho bien mi espíritu es como si
hubiera estado en un le já no cautiverio. Después quedo libre de mi cautiverio,
alhaber dado rienda suelta a mis íntimas satisfacciones. (MAIRENA apud
MANTOÑO, 2013, p.59)

A associação da experiência do duende com a sensação de sermos levados ao mais


profundo de nós mesmos, de mãos dadas com a morte, mas sem medo, sem tempo e sem
história, também é lembrada por Grande (1992, p. 67). Ora, esse ensimesmamento, a princípio
terrível, transfigura-se, exalta-se, fazendo-nos conhecer o ar puro e absoluto da liberdade.
Ocorre o mesmo com a guitarra flamenca. A melodia vai armando um diálogo que se delineia
em cumplicidade. Durante alguns segundos,

Esa complicidad busca la nuestra. Finalmente, la encuentra . (...) Todos ustedes


han visto a un artista flamenco em el momento de la ceremonia expressiva y
comunicatoria. Recuerden, por ejemplo, a una bailaora: hay un instante en el que la
quietud y el vértigo se juntan en el ritmo, hay un instante en el que mientras el
cuerpo y apoya en los tacones, el baile parece como si levitase; hay un instante, en
fin, en que la danza, infinitamente presente y absolutamente real, comienza
misteriosamente a estar fuera del mundo. Están solo un instante, pero esse instante
literalmente nos saca de nosotros mismos, nos desaloja nuestra história, nos da un
empujón que nos reintegra a nustra inocencia perdida, un empujón que nos lleva a
reencontrarnos con nuestra exaltación. En esse instante – si logramos emerger de
nuestra exaltación y usar nuestra mirada -- veremos que esa artista tiene la cara
terriblemente em simismada: se le mueve la boca en un monólogo cuyo idioma ni el
misma conoce; y entre esos movimientos remotos de sus lábios hay algo parecido a
una sonrisa; parecido, porque no es meramente una sonrisa: al mismo tiempo, es
una mueca de dolor. Y entre tanto, lo quiero repetir, algo más levita, tiene mayor
presencia y mayor realidad. En ese instante puede no currir dos cosas: que
sonriamos como niños, o que lloremos. Es decir: há ocurrido el contagio: esa
mezcla de sonrisa y de lágrimas es lo que tiene en su boca remota esa artista
terriblemente em si mismada. (GRANDE, 1992, p.12-13)
89

Aí está a borda, a ferida e a tempestade: Lorca sugere que coloquemos um nome


no duende. Talvez lhe convenha este nome: “el sentimiento de la muerte” (ibid., p. 79) que é,
por definitivo, aquilo que percebemos quando olhamos algo verdadeiramente, nos momentos
de limite,

Los ojos de la vida, y lo que en vuelve en desasosiego y majestad a todas las


grandes obras de arte. (...) Se trata de convertir a la fatalidad, al sentimiento de la
muerte,y además combatiendo con domínio – con el domínio que nos aguarda en el
fondo del desamparo, en una exaltación, en una ceremonia, en un resplandeciente
consentimiento con la sombra. Se trata, enfin, de que, por un instante, la finitud se
convierta en inmortalidad. (ibid., p. 80)

Anjo, musa e duende: a trilogia de colaboradores do artista. O anjo e a musa, a


graça, a inspiração, o brilho, a fortuna, o dom e o talento, nomeiem como queiram, mas aqui
não temos o essencial, pois o essencial é o duende. Essa espécie de sutura entre a intimidade
do artista e a intimidade da arte, é dessa sutura de que consiste o duende. Ele reside no fundo
do ser, no fundo do desamparo, na autenticidade desse interno. “El duende no se regala a
nadie”, temos que buscá-lo, despertá-lo, “es decir, hay que merecerlo” (ibid.). Hernández
(2011) se debruça sobre a teoria do duende de Federico García Lorca, com ênfase na teoria
estética que dela se pode extrair.

Detrás del Lorca simbolista, surrealista o ne o popular hay algo más, están la
genialidad y la singularidad de un creador difícil de etiquetar con el rótulo de turno
para disipar el vértigo y el asombro que su voz nos sigue produciendo. Hay en él
una nueva concepción del arte y de la creación artística, tan importante como
ignorada, que no se encuentra desarollada sistematicamente en forma de tratado o
ensayo, sino condensada y resumida, como un pensamiento destilado, en la más
extraordinária de sus conferencias, la que lleva por título “Juego y teoria del
duende”. (ibid., 2011, p. 1)

Este texto, para Lorca, é “una sencilla lección sobre el espíritu oculto de la
dolorida España”, e foi pronunciado pela primeira vez no dia 20 de outubro de 1933 na
Sociedade de Amigos da Arte de Buenos Aires. Nascido em 5 de junho de 1898, no vilarejo
de Fuente Vaqueros, Província de Granada, Andaluzia, Lorca foi músico, dramaturgo e
desenhista. Segundo Hernández (ibid., p. 2), essa conferência carrega uma das mais profundas
reflexões sobre a criação artística, ao pretender manifestar uma peculiar contribuição do
espírito espanhol à cultura universal. “El escrito de García Lorca no es una meditación al uso
sobre el arte, sino que, como su título indica, es teoría y juego al mismo tiempo, síntesis del
concepto de metáfora, de precisión e imaginación, y está lleno de intuición es aún
no
90

superadas sobre la esencia del arte español y sobre el origen de su emoción estética más
profunda”.
De fato, Lorca realiza aí um exercício prodigioso de metamorfoses, a partir da
linguagem popular, flamenco e taurino, a palavra “duende” se vê transformada em uma nova
categoria estética, em uma nova visão da gênese da arte. “La gran virtud de esa conferencia
está no solo en querer desentrañar e iluminar lo esencial de un arte tan español como el
Flamenco, sino, sobre todo, en partir de la raiz del Flamenco para establecer desde ahí la
sustância última de todo arte”. (ibid.)
“Juego y teoria del duende” é um escrito revolucionário em muitos sentidos.
Lorca denuncia sem alardes, com uma naturalidade incrível, o classicismo e o menosprezo
que se ocultam por trás da velha distinção entre a arte culta e a arte popular. Recorre, ao falar
das pessoas, e não das grandes teorias estéticas, à invenção de uma nova concepção do
artístico.

Hace suyo el tópico castizo y rancio de la España de flamencos y toreros y es capaz


de alumbrar la profunda verdad que ese lugar común encierra. Recoge con gran
sutileza y sina somo de pendantería el concepto nietzscheano de lo dionisíaco en el
arte y lo enriquece con una inédita interpretación. Se adentra en el inconsciente
colectivo de los españoles y vuelve de allí cargado con un tesouro de intuiciones.
Hace, en fin, del duende, palabra humilde y oscura, una nueva categoria del arte
universal. (HERNÁNDEZ, ibid., p. 3)

“Juego y teoria del duende” é também uma prodigiosa indagação poética sobre a
gênese da emoção na arte. Lorca situa no interior do artista a origem dessa emoção. Ele
compara duas velhas metáforas de inspiração artística, a do anjo e a da musa, com uma nova
metáfora, a do duende. O anjo, segundo Lorca, causa deslumbramento, voa sobre a cabeça do
homem, derrama sua graça, e o homem, sem nenhum esforço, realiza a sua obra. A musa dita,
e em algumas ocasiões, surpreende. Ambos, anjo e musa vêm de fora, os anjos trazem as
luzes e, a musa, as formas.

Pero el duende tiene su morada en las últimas habitaciones de la sangre y es allí


donde hay que atreverse a despertalo para pelear en él y quemarse con su fuego”.El
duende es un poder y no un obrar, un luchar y no un pensar, es estilo vivo, creácion
en acto, espíritu de la tierra. Para buscar-lo no hay mapa ni ejercicio, pero para
encontrarse conéles preciso rechazar al Angel y dar un puntapié a la musa.
(LORCA, ibid., p. 3)

Estilo vivo, criação em ato, o duende não se repete nunca. Todas as artes, como
afirma Lorca, são capazes de duende, mas onde ele encontra mais campo é na música, na
91

dança e a na poesia falada, já que essas, de alguma maneira, clamam por um corpo vivo que
as interprete. São formas que nascem e morrem de modo perpétuo e elevam os seus contornos
sobre um exato presente. Lorca concebe a criação artística como “un trânsito del alma, un
alumbramiento interior en el que su protagonista solo oye três fuertes voces que afluyen
dentro de sí: la voz del arte, la voz del amor y la voz de la muerte”. (ibid., p. 3-4)
Através da teoria do duende, para completar, Lorca mostra uma nova relação entre
a arte e a verdade, entre a ética e a estética e um novo e surpreendente conceito da arte. Nesta
revelação, sugere-se uma filosofia trágica, uma ética da paixão, da autenticidade, da expressão
pura, da catarse, em que as expressões das emoções são um meio para o autoconhecimento,
uma concepção ritual da arte, “en la que este no tiene ya simplemente una función social, sino
una misión comunitária, pues se convierte em creador de comunidad”. Ao final de sua genial
conferência, como salienta Hernández, Lorca nos apresenta sua última e definitiva revelação:
a íntima relação que existe entre a arte e a morte. “El duende no llega si no vê posibilidad de
muerte, si no sabe que há de rodar su casa, si no tiene seguridad de que há de meceres as
ramas que todos llevamos y que no tienen, que no tendrán Consuelo”. (ibid., p. 4)
Para Lorca, a arte só pode ser entendida a partir de um sentimento mágico da
realidade e, se queremos compreender o que significa aquilo que Lorca nomeou por “espíritu
de la tierra”, temos que abandonar a concepção racionalista do mundo, que acaba por
secularizá-lo e desencantá-lo privando-o de alma e espírito, contrapondo o espírito à natureza
como se fossem ideias contrárias. Há que recuperar sua concepção mágica, a única capaz de
sentir e testemunhar a presença da anima mundi, mundo da alma ou do espírito. Estamos
acostumados a uma visão racional e dual, a pensar o espírito somente como um poder divino
que vem do céu e, desde a terra, como uma graça angelical que os deuses derramam sobre os
homens. “Hemos olvidado otro sentimiento de lo sagrado y del espírito que lo experimenta en
la naturaleza y en la tierra, que lo siente como un temblor interior, un ímpetu furioso que nos
conmociona e ilumina nuestra raíces”. (ibid., p. 5)
Para compreender melhor esse tema, Hernández segue para a música. Nela há
vozes, como por exemplo, no canto gregoriano que, por seu modo de sentir e de dizer, nos
eleva e nos transporta mais além desse mundo, invocando e despertando nossa natureza
celestial, já que somos educados para desenvolver uma técnica sublimatória das emoções.
Mas há também outras vozes, como a do flamenco, que, por ser de condição muito distinta,
mais espontânea, natural e primitiva, nos faz sentir nossa natureza terrestre, humana, “y nos
arraigan al suelo que pisamos expresando una emoción elemental y desnuda”. Ou seja,
92

Las primeras serenan el alma; las segundas, en cambio, la hieren y la desgarran.


Unas adormecen el cuerpo y nos hacen olvidar que somos carne; otras, sin
embargo, lo hacen vibrar y lo tensan recordándonos nuestra condición corporal y
carnal. La voz enduendada del Flamenco es, ante todo, voz de un cuerpo terrenal
que canta y que lo hace desde un estado de ánimo peculiar pasional y extremo. Su
modo próprio de decir es el grito, el ay, la síntesis del gozo/queja de estar vivos, la
voz de la pasión. (HERNÁNDEZ, ibid., p. 5-6)

Na concepção estética de Lorca, a arte se apresenta como uma experiência do


sagrado na natureza, como um testemunho inflamado do mistério que nos cerca. A voz do
espírito da terra, a voz do duende, é a que transmite de forma imediata e direta, pré-
linguística, essa experiência estética do mundo. Chamamos duende, segundo o autor (ibid., p.
6-7), “al gênio tutelar que se apodera de nosotros y nos introduce en esa experiência y
decimos que tiene duende la persona capaz de adentrarse en ella”. O duende não é anjo e
nem demônio, “es, a un tiempo, diabólico y angélico y siempre terrenal”. O autor continua:

Esa voz ya no es, hablando con propriedad, música; es sonido natural que se situa
en el origen sonoro, en el umbral de toda música. Es grito pánico, gemido, aullido,
bramido, estertor, refleja el terror, la angustia, el espanto de vivir en el caos y en la
negrura de la vida, pero grita desde esse caos, desde esa noche oscura del alma,
con el deseo desesperado de ser oído en alguna parte, con la acongojada esperanza
de que no sea delito el mero hecho de haber venido a este mundo. (ibid., p. 7)

Repetimos com Lorca: “El duende no llega si no ve posibilidad de muerte”.


Estabelece-se, como se pode ver, uma íntima relação entre a aparição do duende e o vislumbre
da morte. A arte aqui não é masoquista e tampouco niilista, não está animada por uma pulsão
da morte em si, senão de vida, não olha para a morte por diversão ou curiosidade. A morte
está presente na experiência estética radical como certeza absoluta, como incontestável
evidência que nos subjuga.

Esa evidencia no tiene que ir el artista a buscarla a ningún lugar recôndito ni


esforzarse en pensarla como problema que atormenta a la razón, la tiene a su lado
en la experiência cotidiana, está en su mano como negro pan nuestro de cada dia.
Por eso es verdad que solo se canta lo que se pierde, se canta también lo que nos
pierde y contra aquello que es causa de nuestra perdición. (ibid.)

Isso ocorre porque é justamente a morte que nos faz humanos, terrestres,
balançando toda a nossa segurança, obrigando-nos a cantar, pensar ou rezar a partir desse
lugar estremecido. O duende não encontra morada no conforto firme e seguro de nossa força,
tampouco nos visita quando nos sentimos amparados ou acomodados no mundo, “sustraídos
al espanto y al vértigo de la existência, sino cuando la tierra se abre de súbito bajo nuestros
pies”.
93

Contudo, para invocá-lo não basta simplesmente sabermos de nossa mortalidade e


do nosso ser para a morte, é preciso senti-lo como algo iminente, apertando a alma com a
queixa de dor e agonia, fazer vibrar a frágil corda que nos une à vida e à sua última verdade.
O duende é a verdade da arte sempre que se abre à possibilidade da morte. “Si la muerte se
olvida, se oculta o se silencia, si no se la tiene en cuenta viviendo como si ella no existiera, la
vida misma queda disminuida, frívola y superficial como um tránsito vacío y gris, sin pena ni
gloria”. A presença da morte na criação artística não é um fim, senão o seu princípio, o
começo de uma vida verdadeira, que sabe e reconhece a sua mortalidade e resiste à morte. “Se
trata de ser en la muerte, no para ella” (Hernández, ibid., p. 8). Esse autor continua:

La teoria estética del duende de Federico García Lorca no se erige em juez de la


condición humana, sino que la muestra atravesada e iluminada por la pasión, con
sudesvalimiento y fragilidad, con su radical incertidumbre, viviendo entre una
lúcida ceguera y una ciega lucidez, mitad luz y mitad sombra, tan incapaz de
gobernar su destino como de aceptarlo con resignación. En ella el arte es entendido
como una prodigiosa mezcla de lucidez, coraje, piedad y inocência, como una
mirada que contempla cada dia con asombro y entusiasmo el amanecer del mundo
(ibid., p. 9).

Tudo isso insinua uma ligação muito próxima do duende com os ritos de
passagem, conforme veremos abaixo.

3.1 O duende se faz como presença

Segundo Turner (1974. p. 117-132), Van Gennep (1960) já havia definido os ritos
de passagem como “ritos que acompanham toda mudança de lugar, estado, posição social de
idade”. Ele já havia indicado também que todos os ritos de passagem ou de “transição” se
caracterizam por três fases, são elas: separação, margem ou Limen que no latim significa
“limiar” ou agregação. A terceira fase é dada pela consumação da passagem.
Na primeira fase, a separação caracteriza-se por levar ao comportamento
simbólico de afastamento do indivíduo ou grupo. Durante o período limiar (intermédio), as
características do indivíduo e do ritual são ambíguas, isso porque se passa através de um
domínio cultural que tem poucos, ou quase nenhum dos atributos do passado ou do futuro. Os
atributos de liminaridade, como dito acima, são necessariamente ambíguos, porque as pessoas
escapam à rede de classificações que geralmente determinam a localização de estados e
94

posições num espaço cultural. Essas entidades não estão nem cá e nem lá, estão entre, no meio
de posições atribuídas e ordenadas pela lei, pelos costumes, convenções e cerimonial.
A liminaridade pode ser também associada à morte, do estar no útero, na
invisibilidade, na escuridão. Essas entidades liminares podem ser representadas como se nada
possuíssem, ou seja, como seres liminares não possuem status. Em tais ritos, observa-se “um
momento situado dentro e fora do tempo”, dentro e fora da estrutura social profana, que
revela, embora efemeramente, certo reconhecimento. Ora, a liminaridade implica que “o alto
não poderia ser alto sem que o baixo existisse, e quem está no alto deve experimentar o que
significa embaixo”. (ibid., p. 119)
Segundo Silva (2004, p. 2), Turner, entre outros autores, fala de rituais de
passagem como um ritual de distanciamento do indivíduo da sua estrutura social e, depois, um
retorno, com novo status. A liminaridade, ou fase liminar, pode ser tida como a fase
intermediária entre o distanciamento e a reaproximação em que as características do indivíduo
que está “transitando” são ambíguas, misturando, por exemplo, sagrado e profano.
Por isso, a liminaridade é frequentemente comparada à morte, invisibilidade e
outros “estados” que demonstram que, como seres liminares, os indivíduos não possuem
status. Poderíamos pensar o conceito de liminaridade como passagem que envolve algo como
um renascimento. Não é à toa que Turner nos dirá que o tema da liminaridade deve ser
tomado como uma tabula rasa, uma lousa em branco na qual se inscreve o conhecimento e a
sabedoria do grupo. O conceito de liminaridade também nos leva ao encontro da presença ou
à produção da presença e seus efeitos no liminal. Não faltam autores que trabalham
diretamente com essa temática e suas consequências para o universo da arte. O caminho
percorrido por Gumbrecht (2010), por exemplo, apresenta-se em seu livro Produção de
Presença: o que o sentido não consegue transmitir. O autor parte de um diálogo crítico com
diversas áreas das ciências humanas: a teoria literária, a historiografia e a filosofia, buscando
alternativas epistemológicas ao que denuncia como “o predomínio praticamente absoluto e
injustificado da autocompreensão das humanidades” como saberes cuja tarefa exclusiva é
extrair ou atribuir sentido aos fenômenos que analisa. (ibid., p.8).
A presença é pensada, em primeiro lugar, nas coisas que, estando à nossa frente,
ocupam espaço, são tangíveis aos nossos corpos e não são apreensíveis, estritamente por uma
relação de sentido. Para compreender a presença, partimos daquilo que podemos
experimentar, primordialmente, fora da linguagem. Ora, mas numa cultura eminentemente do
sentido, como lidar com essas experiências de modo não interpretativo ou não hermenêutico?
Essa é justamente a questão do autor.
95

Para ele (ibid., p. 13, 32), a palavra presença não se refere a uma relação temporal.
Antes, refere-se a uma relação espacial com o mundo e seus objetos. No sentido etimológico
(do latim producere), refere-se ao ato de “trazer para diante” um objeto no espaço. Assim,
produção de presença aponta para todos os tipos de eventos e processos nos quais se inicia ou
se intensifica o impacto dos objetos presentes sobre corpos humanos. “Todos os objetos
disponíveis em presença serão chamados aqui – as coisas do mundo”.
A questão central que se impôs para Gumbrecht, assim como para outros autores,
era a de saber como os diferentes meios e as “diferentes materialidades de comunicação
afetariam o sentido que transportavam”. Pensamos na palavra presença a partir de uma
referência espacial. O que é presente para nós, comumente é o que está à nossa frente, ao
alcance e tangível aos nossos corpos. Então, pensar “na produção de presença com as
materialidades de comunicação é também um efeito em movimento permanente”. Falar dessa
produção implica que o efeito de tangibilidade (espacial) está sujeito a movimentos de maior
ou menor proximidade e de maior ou menor intensidade. (ibid., p.39). O autor nos lembra que
o prazer da presença é a fórmula mística por excelência, e uma presença que escapa à
dimensão do sentido tem de estar em tensão com o princípio da representação. “A presença
não vem sem apagar a presença que a representação gostaria de designar”.
A autorreferência predominante num mundo de sentido é o pensamento, ao passo
que a autorreferência predominante, numa cultura de presença, é o corpo. Numa cultura desse
tipo, além de serem materiais, as coisas do mundo já têm por elas mesmas um sentido que
lhes é inerente, não apenas um sentido interpretativo, e os seres humanos consideram seus
corpos como parte integrante da sua existência.
Numa cultura do sentido, ao contrário, a legitimidade se dá se tiver sido produzida
por um sujeito no ato de interpretar o mundo, campo da hermenêutica. Para uma cultura da
presença, por sua vez, o conhecimento é legítimo se for conhecimento tipicamente revelado.
Conhecimento revelado pelos deuses ou por outras variedades daquilo que se poderá
“descrever como eventos de autorrevelação do mundo”. (ibid., p.106-107). O que mais se
aproxima de um conceito de “ação” (motivação) numa cultura do sentido é, numa cultura da
presença, o conceito de magia, ou seja, a prática de tornar presentes coisas que estão ausentes
e ausentes coisas que estão presentes.
O autor (ibid., p. 134- 139), diz que a presença e o sentido sempre aparecem
juntos e em tensão. Os fenômenos de presença surgem sempre como efeitos de presença
porque “estão necessariamente rodeados de, embrulhados em, e talvez até mediados por
nuvens e almofadas de sentido”. Sob esse ponto de vista, a experiência estética traz o
96

confronto com a tensão e a oscilação, entre a presença e o sentido. Buscando ampliar ainda
mais essa reflexão, sob o título de epifania, Gumbrecht (ibid., p. 140, 142) comenta três
características que moldam a maneira como se apresenta diante de nós a tensão entre presença
e sentido; nunca sabemos se ou quando ocorrerá uma epifania; não sabemos qual será a sua
intensidade e a epifania na experiência estética é um evento, pois se desfaz como surge. Ora,
podemos compreender o desejo de presença como reação ao todo dia que se tornou âncora de
sentidos, sentido pelo sentido, mais sentido, ou se preferirem, universo predominantemente
cartesiano ao longo dos últimos séculos.
A experiência estética vem como uma âncora na recuperação da dimensão
espacial e corpórea da nossa existência, tão policiada pelo imperativo dos sentidos. Ora,
“experienciar as coisas do mundo na sua coisidade pré-conceitual reativará uma sensação pela
dimensão corpórea e pela dimensão espacial da nossa existência”. (ibid., 2010, p. 145-147).
Não se trata aqui de fazer uma apologia romântica ao mundo anti-cartesiano, ao mundo da
presença cujo comando está marcado pelo universo das sensações. É que dar sentido ao
sentido é perder de vista o que a arte, de modo geral tem a nos oferecer.
O tema da presença tornou-se muito atual, recorrente nas artes da cena que são,
por excelência, artes da presença. Navas (2013, p.1) analisa questões vinculadas à
permanência e efemeridade dos espetáculos, “a dança que resta em nós”, buscando uma
descrição a partir de conteúdos que circulam entre artistas da cena e o público. “A dança
como fenômeno de comunicação humana, pode ser vislumbrada através de espécies de
molduras – os espetáculos -, onde presenciamos a vontade revelada de expressão de um
artista-coreógrafo concretizadas em corpos de artistas-bailarinos”.
A partir disso, podemos pensar as “coisas do mundo”, a partir de Gumbrecht, na
condição de efemeridade que é própria das artes da cena? Para Navas, a efemeridade se
constrói-reconstrói, a todo momento, entre obra e público. Se esse refazer não se instaurasse,
em última instância, “de cada coreografia nada restaria”. A autora continua: “Neste sentido, o
efêmero não está na criação em si, portadora de suas estruturas de base, guardadas e
recolocadas no mundo mediante o sistema de memória – enquanto lembrança e esquecimento
– que se estrutura a partir de sua origem basal, na qual se enraízam os traços de sua existência
e operação” (ibid. p. 5-6).
A rigor, a autorreferencialidade da cultura da presença intensifica-se nas artes da
cena, pois o artista dança por nós, a cada dia em que se coloca em cena. Algumas vezes nos
dança, no sentido de mostrar/expressar/comunicar nossos pensamentos através desta mídia na
qual a questão do corpo assume uma centralidade basal. (NAVAS, ibid., p. 7). É por isso que
a
97

efemeridade está na presentificação da obra ali, naquele instante. É esta característica que
aponta “para uma de suas bases de origem, enquanto arte do tempo/espaço, que se perfaz em
tempo específico, restando como memória corporal nos artistas que a interpretam”. É nessa
medida que “O corpo-território de cada bailarino lança-se no espaço – território da dança, este
sim transitório frente a cada unidade de público, construído no aqui-e-agora a partir de traços
– rastros anteriores” (ibid., p. 3). Dessa forma, imaginar uma cultura de presença implica,
necessariamente, o desafio de imaginar um conceito de eventidade. “Não existe emergência
de sentido que não alivie o peso da presença”. Isto porque:

A intimidade de um corpo que comunica conteúdo adivinhado, a partir de uma


experiência inaugural, de uma idéia em dança, tatuada no particular do corpo de
cada um.
No entanto, por mais particular que seja uma situação dançada por um corpo em
especial, aquele bailarino carrega consigo traços dos homens e mulheres de seu
tempo e espaço e, por isto, frente a nós também está “um corpo cultural”.
A adivinhação, que se revela como “experiência estética” é revelação íntima,
interna, mas se dá a partir de percepções/cognições do ambiente onde cada um
trafega: locais de um tempo-espaço, portanto locais de uma história.
Quando um bailarino dança, o que faz é constrangedoramente íntimo, e ao mesmo
tempo, público, por sua exposição devassadamente aberta, mas também por sua
dança carregar em si um bocado de conteúdos da comunidade que com ele partilha
parcela do que ali se expõe. (NAVAS, 2009, p. 6)

Entretanto, a experiência estética, de certa maneira, nos empurra o não familiar,


para fora da experiência de todo dia. Atravessados por essa experiência, um furo no cotidiano
e um estado outro, digamos assim, realiza-se com destreza. “É experiência advinda de uma
crise, de um limite e nos joga em outro estado de percepção, do qual saímos diferenciados. A
experiência estética impera na vida, mas é programa, meta a ser alcançada na arte e pela arte”.
(ibid., p. 2)
A aproximação com o duende torna-se evidente, perto do indiscutível, quando se
pensa a presença como instauradora e como iminência, especialmente no campo da arte da
dança. Entretanto, para nós, há um desafio ao pensamento, há um enigma quase indecifrável
no duende, justamente isso que os comentadores clamam como sendo um lapso, abismo de
abertura para a morte. Sendo fiéis à nossa hipótese, há uma possível rota que se abre à
tentativa de decifração. Essa rota é a da psicanálise, o campo de saber que mais se aproxima
dos segredos íntimos do psiquismo e de suas manifestações mais primorosas nas criações
estéticas. Portanto, é a rota, relativamente detalhada, da psicanálise que estaremos abrindo e
acompanhando daqui para frente até que se dê o reencontro com o duende.
98

3.2 Antes de se fazer metáfora-duende: o inconsciente

Freud não foi o pioneiro na descoberta do inconsciente ou a inventar essa palavra


para nomeá-la. Ele, na realidade, usou essa palavra para fazê-la o principal conceito da sua
doutrina. Foi com Freud que o inconsciente deixou de ser uma “supraconsciência” ou um
“subconsciente”, “situado acima ou além da consciência, e se tornou realmente uma instância
a que a consciência já não tem acesso, mas que se revela a ela através do sonho, dos lapsos,
dos jogos de palavras, dos atos falhos etc.” (ROUDINESCO, 1998, p. 375). O inconsciente
para Freud tem a particularidade de ser ao mesmo interno ao sujeito e externo a qualquer
possibilidade de dominação pelo pensamento consciente.

Na linguagem corrente, o termo inconsciente é utilizado como adjetivo, para


designar o conjunto dos processos mentais que não são conscientemente pensados.
Pode também ser empregado como substantivo, com uma conotação pejorativa, para
falar de um indivíduo irresponsável ou louco, incapaz de prestar contas de seus atos.
Em psicanálise, o inconsciente é um lugar desconhecido pela consciência: uma
“outra cena”. Na primeira tópica elaborada por Sigmund Freud, trata-se de uma
instância ou um sistema inconsciente constituído por conteúdos recalcados que
escapam às outras instâncias, o pré consciente e o consciente (Pcs-Cs)... (ibid., p.
374-375)

Segundo Freud (1996, p. 172), a psicanálise nos ensinou que a essência do


processo de repressão é evitar que a ideia venha à consciência. Quando isso acontece, afirma-
se que a ideia se encontra num estado inconsciente. Tudo aquilo que é reprimido deve
permanecer nesse estado inconsciente, “mas, logo de início, declaremos que o reprimido não
abrange tudo que é inconsciente. O alcance do inconsciente é mais amplo: o reprimido não é
apenas uma parte do inconsciente”. Mas como chegar ao conhecimento daquilo que
nomeamos por inconsciente? Só teremos acesso a ele depois de sofrer “transformação ou
tradução para algo consciente”.

Nosso direito de supor a existência de algo mental inconsciente, e de empregar tal


suposição visando às finalidades do trabalho científico, tem sido vastamente
contestado. A isso podemos responder que nossa suposição a respeito do
inconsciente é necessária e legítima, e que dispomos de numerosas provas de sua
existência. Ela é necessária porque os dados da consciência apresentam um número
muito grande de lacunas; tanto nas pessoas sadias como nas doentes ocorrem com
frequência atos psíquicos que só podem ser explicados pela pressuposição de outros
atos, para os quais, não obstante, a consciência não oferece qualquer prova..., nossa
experiência diária mais pessoal nos tem familiarizado com ideias que assomam à
nossa mente vindas não sabemos de onde, e com conclusões intelectuais que
alcançamos não sabemos como. (ibid., p. 172)

Quando todas as nossas lembranças latentes são levadas em consideração, torna-


se inadmissível desconsiderar a existência do inconsciente. As experiências com a hipnose
99

nada mais fizeram do que revelar não somente a existência como o modo operacional do
inconsciente.

A consciência torna cada um de nós cônscio apenas de seus próprios estados


mentais; que também outras pessoas possuam uma consciência é uma dedução que
inferimos por analogia de suas declarações e ações observáveis, a fim de que sua
conduta fique inteligível para nós... que sem qualquer reflexão especial atribuímos a
todos os demais a nossa própria constituição, e portanto também a nossa
consciência, e que essa identificação é uma condição sine qua non para a nossa
compreensão. (ibid., p. 174)

Assim, quando os outros são os nossos semelhantes, no sentido de supor a


existência de uma consciência neles, apoiamo-nos numa inferência. A psicanálise exige que
“também apliquemos esse processo de inferência a nós mesmos”. Ora, interpretamos
relativamente bem as outras pessoas, ao passo que esses mesmos atos nos recusamos a aceitar
como mentais em nós mesmos. A análise revela “que os diferentes processos mentais latentes
que inferimos desfrutam de alto grau de independência mútua, como se não tivessem ligação
um com o outro, e nada soubessem um do outro”. Esses processos latentes, possuidores de
peculiaridades estranhas a nós vão de encontro aos atributos familiares conscientes. “O que
está provado não é a existência de uma segunda consciência em nós, mas a existência de atos
psíquicos que carecem de consciência”. (ibid., 1996, p. 175-176)
Freud descentra a sede do sujeito de sua consciência, esse inconsciente subverteu
de modo radical o cogito cartesiano, da certeza que o sujeito pensante tem de sua própria
existência, “Penso, logo existo”, introduzindo a dimensão de uma racionalidade
completamente nova. Nasio (2014, p. 9), afirma que “o inconsciente é a força que nos leva a
reproduzir ativamente, desde a mais tenra infância, o mesmo tipo de afeição amorosa e o
mesmo tipo de separação dolorosa que escalonam inevitavelmente nossa vida afetiva”.
Assim, de acordo com a primeira tópica freudiana, um ato psíquico passa por duas
fases sobre as quais se interpõe uma espécie de censura. Na primeira fase, o ato psíquico é
inconsciente e, se, por alguma razão, for negado pela censura, dizemos que foi reprimido,
devendo manter-se ali, inconsciente. Por outro lado, se não lhe for negado pela censura,
passará para a segunda fase, pertencendo ao segundo sistema, consciente. Em vista dessa
capacidade em tornar-se consciente, denomina-se o sistema consciente de pré-consciente.
Assim, o sistema pré-consciente participa das características do sistema consciente, e a
censura se faz presente no ponto de transição do inconsciente para o pré-consciente ou
consciente.
100

O núcleo inconsciente procura, de alguma forma, descarregar sua catexia, ou seja,


a concentração da energia psíquica num dado objeto. As catexias são isentas de contradição
mútua, caminhando lado a lado. Aqui não há negação, a censura começa a ser introduzida
entre o inconsciente e o pré-consciente. As intensidades catexiais são móveis e, dado o
processo de deslocamento, uma ideia pode ir cedendo à outra toda a sua quota de catexia. Já
pelo processo de condensação pode apropriar-se de toda a catexia de várias outras ideias.
Aqui temos o processo psíquico primário no inconsciente e o processo secundário no sistema
pré-consciente.
O processo primário, que aponta o modo de funcionamento inconsciente, é o
responsável pelos mecanismos da condensação e deslocamento. No processo de condensação,
uma representação pode se apropriar de todo o investimento pulsional de várias outras
representações, e, pelo deslocamento, há a “transmissão de todo quantum de investimento de
uma para outra representação” (FABRINNI, 1999, p. 56). Os processos primários, obedientes
ao princípio do prazer devem ser descarregados, no sentido de uma descarga excitatória, e
fazem “redes de representações”, acentuado quando do sistema inconsciente para o pré-
consciente e consciente.

Logo a “energia livre”, ou o fato original quantitativo das pulsões, transforma-se-á


em “energia ligada”, isto é, em representação, em linguagem, que virá a ampliar as
cadeias significantes, abrindo para cada sujeito possibilidades singulares de
acolhimento, nomeação, compreensão e mudança das significações daquilo que é
vivido a cada momento, o que neste sentido, implica múltiplas formas de
sublimação. Não há, pois, descarga energética imediata, isto é, atos e ações mais
diretos, mas transformação do pulsional, do fluxo vivente, na qual, ao longo da
cadeia, o que é investido pela pulsão são novas representações, significantes novos,
ou ainda descoberta de outras possibilidades de relação entre os significantes já
existentes. (ibid., p. 56-57)

Os processos do sistema pré-consciente são responsáveis pela comunicação entre


os diferentes conteúdos de modo que possam influenciar-se mutuamente, dando-lhes uma
ordem no tempo, além de estabelecer censuras e o princípio de realidade.
Tenhamos claro por enquanto, já que a questão da pulsão, ou seja, o impulso
energético interno, na fronteira entre o mental e o psíquico, será trabalhada em mais detalhes
oportunamente, que os conteúdos do inconsciente não são as pulsões como tais, visto que,
nunca poderão tornar-se conscientes. O que Freud caracteriza como “representantes-
representações”, baseia-se num representante das pulsões de traços mnêmicos. As fantasias,
por exemplo, logos no qual a pulsão se fixa, nada mais querem do que descarregar os seus
investimentos pulsionais, “sob a forma de moções de desejo”.
101

A diferença dos conteúdos inconscientes reside na natureza e força do


investimento pulsional. “Esse mecanismo de investimento, cujas formas essenciais foram
definidas por ocasião do estudo do trabalho do sonho”, dado através da condensação,
deslocamento e a figuração (processo primário) e o sistema pré-consciente, mais estável e
organizado, por assim dizer, o processo secundário. A incompatibilidade entre os dois
sistemas denuncia-se sob diversas formas, “em especial a da comicidade ou do riso provocado
por alguns lapsos ou chistes, índices da irrupção de elementos do processo primário no
processo secundário” (ROUDINESCO, 1998, p. 377). Os processos do sistema inconsciente
são atemporais, o que nos remeterá mais à frente ao que Le Poulichet (1996), afirma ser o
“tempo que não passa”, que trará, via transferência, acesso àquilo que não cessava como
representação intolerável. Essa referência de Freud ao sistema inconsciente como atemporal
aponta para uma inalteralidade com a passagem do tempo, sem qualquer referência a ele. “A
referência ao tempo vincula-se, mais uma vez, ao trabalho do sistema consciente”. (FREUD,
1996, p. 191- 192)
Os processos do inconsciente nos alcançam pela égide dos sonhos e da neurose
(ibid., p. 198-199). Derivados do inconsciente tornam-se conscientes na “qualidade de
formações de sintomas substitutivos”, depois de terem sofrido distorções em confronto com o
inconsciente. “O inconsciente é rechaçado, na fronteira do pré-consciente, pela censura, até
atingir um alto grau de organização e alcançar certa intensidade de catexia no pré-consciente”.
Como pontua Fabrinni (1999), esse modo de operar, característico do inconsciente, gira em
torno de três importantes eixos de compreensão, que são eles, o topográfico, o dinâmico e o
econômico.
Na topografia (do grego τόπος, topos significa “lugar”, “região”, eγράφω, grapho,
que significa “descrever”, portanto “descrição de um lugar”), nomeamos os lugares
possíveisonde as representações podem ou não se encontrar no interior do sistema consciente,
pré-consciente e inconsciente. Entre o sistema consciente e pré-consciente, há uma certa
continuidade, apesar da censura, visto que, em geral, o pré-consciente é aquele lugar latente,
“aquilo que pode estar disponível para o sujeito quando evocado”, ou seja, passível de tornar-
se consciente. O mesmo não ocorre no sistema inconsciente e consciente. Pode haver uma
recusa na passagem no sistema inconsciente para o consciente, mediada pela censura, e, até
mesmo quando liberada, muitas vezes pela própria censura, não se fará presente na
consciência, permanecendo latente, portanto, pré-consciente.
Ora, se formos levar isso tudo para o campo da criação, especialmente no que diz
respeito ao duende, como nos lembra Rivera (2005), o processo de criação convoca em
102

questão o próprio funcionamento psicanalítico do inconsciente que, por enquanto, será


interrogado sob o signo do estranhamento.

3.3 Uma estranheza que se faz duende

É justamente a experiência de um furo, experiência de limite que a poética do


duende, à luz de Lorca, leva ao paroxismo na sua ênfase em uma iminência comparável à
morte. Essa iminência pode nos levar a um paralelo com o estranho familiar freudiano.

O Outro do desastre é aquele que não posso alcançar e que escapa. Estrangeiro esse
eu-outro que me escapa e me convoca “fora de mim”, me roça a pele, causa rumor
em seu silêncio estrangeiro, fala uma língua que não entendo e que, no entanto, é
próxima. Rumor estrangeiro que encontra pouso em cada tecido do corpo
inquietando-o com a estranheza da língua – uma língua “jamais escrita, mas sempre
a prescrever”. Como se ao pé da orelha esse “sem rosto”- o mesmo que produz a
mão que escreve – nos soprasse palavras sem sentido, mas que, ao fazerem do corpo
eco, o colocassem a balançar, a fazer da carne caminho/desacaminho. (LIMA, 2012,
p. 35)

Como aponta Martins (2009), com O estranho Freud acena para o retorno do
recalcado, ao explicitar a Coisa com uma lente de aumento, ou seja, a de ser familiar e, sobre
determinadamente, estranha. O familiar e o estranho num mesmo objeto. Esse fenômeno
reforça a existência de algo fora da representação. Lugar possível das artes, quando aponta ao
recalcado pulsional, propiciando ao eu reaver suas coordenadas de satisfação. O horror, a
paralisia e o temor se apresentam na medida em que as coordenadas, que se repetem como
unidade para o eu, perdem as suas referências e signos de orientação. Nessa experiência de
desconstrução do eu, uma demanda recobra as representações familiares para não sucumbir.
Rivera (2005), afirma que o estranho suscita a angústia justamente porque o recalque está em
operação. A problemática do estranho vincula-se à questão do olhar em suas possíveis
relações com a castração, visto por Freud a partir do conto fantástico, “O homem de areia” do
escritor romântico alemão, entre outras coisas, E.T.A. Hoffmann.
A história gira em torno da personagem Nathanael. Quando criança, escutava
histórias da babá, aquelas que transitam entre o terror e o fascínio, que elas costumam contar
para que a criança durma. Ela dizia que o homem de areia jogava areia nos olhos das crianças
que não queriam dormir e, depois os arrancava para dá-los de comida a seus filhos que teriam
bicos pontudos como corujas. Seu pai e um amigo chamado Coppelius costumavam passar
noites a fazer alquimias secretas. Coppelius, para Nathanael, vinha como o verdadeiro
103

representante do homem de areia. Espiando os mistérios da alquimia, Nathanael é ameaçado


por Coppelius que o desmascara.
Nathanael, agora jovem e na faculdade, acredita ter encontrado Coppelius na
figura de um vendedor de óculos, Coppola. Junto com isso, apaixona-se perdidamente por
Olympia, um autômato construído por seu professor Spallanzani e Coppola. Ao descobrir que
Olympia não passa de um boneco, isso desencadeia os delírios que o levam à loucura e ao
suicídio. Nathanael criou seu próprio universo imaginário em suas hesitações com o universo
real. Tudo poderia ter permanecido apenas como lembranças do imaginário infantil. A mistura
entre a fantasia e a realidade, vivenciados intensamente na infância, marcaram Nathanael
levando-o a um quadro progressivo de desestruturação psíquica.
Freud ([1924], 1996, p. 167-171), em “Neurose e Psicose” define a psicose em
linhas gerais como um conflito do ego com o mundo externo, refletindo um fracasso no
funcionamento do ego. Mas o que Freud extrai do conto é aquilo que os sonhos, as fantasias e
os mitos revelam, ou seja, que o medo de ferir ou perder os olhos, o medo de ficar cego é,
muitas vezes, um substituto da angústia de ser castrado. Quando Natanael encontra o suposto
“homem de areia”, surge uma relação entre a perda dos olhos e a perda do amor, representada
na figura do pai que, ao ser substituído pelo homem de areia, torna-se o pai temido, possível
fonte da castração.
O processo pulsional, abordado por Freud ([1915], 1996, p. 132-137) inclui a
transformação de uma pulsão em seu oposto, nos famosos pares entre sadismo-masoquismo, o
prazer de olhar/exibição e o contemplar/ser contemplado, pares que nos revelam o processo
pulsional como um retorno contra si próprio, tema que será discutido no capítulo 4. Por
enquanto é necessário apontar que, na base desses pares opositivos, está a questão dos olhos,
salientados por Rivera (2005) como substitutos privilegiados. De fato, o espelho sempre
guarda uma dimensão de opacidade da tela, em que o eu se torna sede de uma estranheza
escondida, mas sempre à espreita. Essa relação entre passivo/ativo nos coloca na trilha da
repetição, na qual o trauma, vivido passivamente e sem preparação, vem tornar-se uma
constante experimentação ativa, ou seja, tornar-se dono daquilo que foi vivido passivamente.
Vem daí a relação que Freud estabelece entre o conto de Hoffman e a questão do estranho.
Para Freud ([1919] 1996, p. 238-239), o estranho filiou-se à categoria do
assustador que, ao fim ao cabo, nos remete àquilo que é conhecido, velho, e há muito familiar.
O que sabemos é que “aquilo que é novo pode tornar-se facilmente assustador e estranho;
algumas novidades são assustadoras, mas de modo algum todas elas”.
104

... entre os seus diferentes matizes de significado a palavra “Heimlich” exibe um


que é idêntico ao seu oposto, “Unheimlich”. Em geral, somos lembrados de que a
palavra “Heimlich” não deixa de ser ambígua, mas pertence a dois conjuntos de
ideias que, sem serem contraditórias, ainda assim são muito diferentes: por um lado,
significa o que é familiar e agradável, e por outro, o que está oculto e se mantém
fora de vista. Segundo Schelling, Unheimlich é tudo o que deveria ter permanecido
secreto e oculto mas veio à luz. (ibid., p. 242-243).

Entre as tantas coisas assustadoras, desde a literatura até as construções de nossas


próprias ficções da vida cotidiana, segundo Freud (ibid., p. 258), deve haver uma categoria na
qual o elemento amedrontador pode revelar ser algo reprimido, mas que retorna. Um
sentimento primitivo aparece em forma de algo estranho. O animismo, a magia e a bruxaria, a
onipotência dos pensamentos, a atitude de homem para com a morte, a repetição involuntária
e o complexo de castração compreendem praticamente todos os fatores que transformam algo
assustador em algo estranho. (ibid., p. 260)

Quando esses resíduos, sob a forma de suspeitas, parecem se ver confirmados na


realidade material, isto é, se parecem passar pelo teste de realidade (e este tem como
objetivo reencontrar na percepção real um objeto que corresponda ao representado,
convencer-se de que está lá), a antiga crença recebe novo vigor pela prova recente.
Seu reviver é então sentido como estranho - há um emparelhamento do arcaico com
o presente, que dificilmente aceita o primeiro sem restrições. Situa-se aqui o
fenômeno do duplo enquanto duplicação, divisão e intercâmbio do eu: personagens
idênticos, processos mentais telepáticos revelando uma vida psíquica em comum,
dúvidas sobre quem é o verdadeiro eu, substituição do eu por um estranho, reflexos
em espelhos, sombras, espíritos guardiães, crença na alma (imortal, primeiro duplo
do corpo), medo da morte. (FERREIRA, 1983, p. 6)

Assim, a criação do duplo, nada mais é, nesse primeiro momento, do que uma
função de defesa narcísica contra a morte, ou seja, negá-la para se assegurar de que o ego não
será destruído. Como salienta Becker (2010, p. 14), em 1923, Freud afirma que a falta de
pênis é entendida como uma castração, ou seja, “há um reconhecimento da falta”, um conflito
que se fará trajeto no percorrer da história da vida psíquica. O duplo está na base do
Unheimlich, pois se trata de algo que uma vez foi Heimilich, ou seja, familiar. O prefixo “un”
não seria sinal da repressão? “Pode ser verdade que o estranho (Unheimlich) seja algo que é
secretamente familiar (Heimlich-Heimisch), que foi submetido à repressão e depois voltou, e
que tudo aquilo que é estranho satisfaz essa condição”. (FREUD, ibid., p. 262)

Examinando o radical da palavra - heim/ unheim - Heim indica a casa do homem e o


homem encontra sua casa num ponto situado no Outro, para além da imagem de que
somos feitos e este lugar representa a ausência em que estamos. É a presença que faz
esse lugar como ausência. A experiência do unheimlich é sempre fugidia. O
Unheimlich- o horrível, o duvidoso, o inquietante - surge nas frestas, de repente,
subitamente. O surgimento do unheimlich-heimlich (porque um se revira no outro,
105

neste ponto de dobradiça), no sentido radical daquele que não passou pelas redes do
reconhecimento, é o fenômeno da angústia. (RINALDI, 2013, p. 1)

No texto “A negativa”, para (Freud [1925] 1996, p. 265- 269), o conteúdo de uma
imagem ou ideia reprimida pode caminhar até a consciência, na condição de que seja negada.
Na realidade, a negativa é uma maneira de tomar conhecimento do que foi em algum
momento reprimido. “Com o auxílio do símbolo da negativa, o pensar se liberta das restrições
da repressão e se enriquece com material indispensável ao seu funcionamento correto”. O
reconhecimento do inconsciente numa análise por parte do ego se revela numa formula
negativa. Ora, a negação, enquanto o retorno do recalcado, possibilitará que certos
significantes, “liberados” do recalque, entrem e se coloquem à disposição do desfiladeiro na
cadeia discursiva. Podemos pensar, a partir de outro texto de Freud ([1925] 1996, p. 266), que
estamos às voltas com um mecanismo primitivo em que as experiências desprazerosas são
expulsas para o exterior do eu. A negação nada mais é do que um modo de aceitar a parte do
material que fora recalcado, entendendo que a parte intelectual se desligou do afeto
correspondente. Negar algo em julgamento é, no fundo, dizer: “Isto é algo que eu preferia
reprimir”.
O inconsciente é o fio condutor que perpassa toda a obra freudiana. “O Estranho e
a Negativa” denunciam algumas das formas do funcionamento do inconsciente. Pensar nesses
dois funcionamentos é começar a tatear que lugar o duende ocupa no corpo discursivo das
artes. “O prazer estético sempre implicaria a vivência do das Unheimlich, trazendo à tona
fantasmas infantis recalcados, o que implica fascínio e repulsa. O Unheimlich é aquela
variedade do terrorífico que remonta ao já sabido há muito tempo, ao familiar”.
(CHNAIDERMAN, 1997, p. 220)
O estranhamento, ainda no dizer de Freud, é uma espécie de divisão de si mesmo
em duas pessoas, uma que é capaz de se espantar e a outra de se surpreender, percepção
vacilante como uma espécie de alucinação. Rivera (2005, p. 53-54), nos lembra que o
“fundamental para o estranho parece ser um certo funcionamento ou modo de apresentação –
o que faz com que tal efeito seja muito mais frequente na literatura do que na vida”. Nada
mais familiar do que a antiga casa da criança, “o ventre materno”, que, ao cair nas mãos do
recalcamento, se vê tão estranho. Às voltas com o processo de criação artística, Freud o
comparou ao mecanismo de formação dos sonhos e sintomas, sugerindo uma similaridade
entre o artista e o neurótico, visto que a criação artística se alimenta de afetos e percepções
inconscientes. Se partirmos desse princípio, a consequência será que a obra de arte, e mais, as
artes em geral são passíveis de serem “interpretadas”, “analisadas” a partir de seus sentidos e
106

motivações inconscientes. Embora não seja este o propósito desta pesquisa, ou seja, o de
transportar a arte para um setting analítico, o que seria um prejuízo tanto para uma quanto
para o outro, há algo de inconsciente, especialmente em presença com o duende, que precisa
ser desvendado até onde seja possível. Será que não podemos entender o estranho que vem na
(des)forma da angústia por conta da falha do recalcamento? O recalcado que retorna como
estranho. É este afeto que testemunha esse instante Unheimliche.

Assim, a indizível angústia imprime aquilo que escapa à Gestalt imaginária e torna-
se efeito-sinal, clinicamente perceptível, daquilo que é passível de irromper: o real.
Neste sentido há um perigo de que falte o valor da impressão da perda subjetiva,
valor de mediação fundamental para a ligação do movimento-desejo com o aparelho
de imagens.
A angústia é o som proveniente deste domínio estranho, música sem letra que
anuncia o investimento da percepção ameaçadora e do desejo imperioso em busca de
realização. (FRANÇA, 1997, p. 15, 25)

Para entrarmos mais a fundo no tema do estranho, que parece relevante ao nosso
problema, faz-se necessário abordarmos o estado do desamparo, cujo sentido específico, na
teoria freudiana, se dá a partir da relação mãe-bebê. Desamparo nos remete a um estado
inicial do bebê o qual depende, crucialmente, de um outro capaz de satisfazer suas
necessidades básicas. Mas esse outro, aqui representado pela figura do(a) cuidador(a), nunca
será suficientemente capaz de realizar uma ação específica para pôr fim a uma tensão
acumulada. Este desamparo é o retrato do trauma, ou se preferirem, da experiência do horror.
“Do ponto de vista econômico, há uma intensidade que o trabalho psíquico não pode
dominar”. É desse lugar de desamparo que a constituição do psiquismo se constrói em uma
relação de alteridade, dada na vivência de satisfação e sua reprodução alucinada. “Na raiz
disso tudo nos remetemos à situação traumática, pois o apelo já pressupõe uma
incompletude”. Afinal, é somente a partir do campo do Outro que o sujeito fala e deseja.
(ibid., p. 17)
Assim, a angústia nos vem como uma resposta imprecisa frente a um perigo, aqui,
o da separação entre o bebê e sua mãe. Esta angústia remete ao que há de mais familiar, ou
seja, “a representação do desejo inconsciente do Outro que nos lança no abismo da falta de
“ser”. A angústia é um afeto “assignificado” e, justamente por isso, um “afeto por
excelência”. (ibid., p. 25)
A angústia nesse lugar de “puro” afeto e, por isso, indizível, revela a falta de
um simbólico, de um “dizer apaziguante diante da incompletude”. Sendo assim, ela pode ser
tida como um motor mesmo para o recalque, numa busca de significação. “A angústia é
testemunha do real traumático que o constitui” (ibid., p. 27). A experiência da estranheza nos
107

empurra para algo da nossa constituição, de uma linguagem arcaica, ou linguagem pulsional,
que se direciona ao Outro do simbólico, mas que se aproxima de um vazio não preenchível.
Estamos no mais familiar dos lugares, ancorados nessa indizível angústia, o corpo materno.
Esse corpo materno que nos leva a uma ardilosa proximidade da realização de um desejo,
sempre imperioso, proibido e incestuoso, por isso, estranho. (ibid., p. 67)
O familiar, portanto, não é a angústia em estado bruto, se é que podemos nomeá-
la assim, digamos, o afeto, mas sim “o angustiante” que aponta ao intenso perigo frente à
possibilidade de uma realização impossível. A angústia sinaliza a surpresa, aquilo que não se
faz anúncio, colocando a “presença do indefensável e que marcamos através do insólito efeito
de estranheza inquietante” (ibid., p. 69), ou seja,

há um estranho impossível de suprimir ou de expulsar e que remete ao ponto da


falha na imagem a que Unheimliche se presta, indicando uma estrutura aberta,
“lapsada de imagem”, que vai ecoar no processo criativo, permitindo a
intensificação da dinâmica pulsional e a produção de novas inscrições, novos efeitos
de linguagem... (ibid., p. 70)

A estranheza vem à cena quando sua dimensão é estranha à duplicidade do eu,


visto que a angústia do duplo é característica de uma identificação maciça do eu com o outro
numa terrível ameaça de fusão. O eu reage a esse devoramento fusional na roupagem de um
estranho inquietante. O duplo nada mais faz do que apontar a nossa divisão estrutural, no
reconhecimento estranhamente familiar “daquilo de que somos feitos”. O eu iludido com sua
imagem especular, e assim, perfeita, nega a sua divisão constituinte.

A estranheza inquietante fascina pela ausência de objetividade. Não é o objeto


inquietante que desencadeia o fenômeno, é justo a queda do objeto diante dos
próprios olhos que remete a uma experiência de indeterminação que representa, no
campo do Outro, o traumático da constituição do sujeito. O lugar que testemunha
este momento é o afeto-angústia, topos de encontro com o nada, pois na experiência
Unheimliche o mundo objetivo desaparece. (ibid., p. 77)

Com a queda da imagem, o pesadelo do vazio de ser, junto à impossibilidade de


decifrar o desejo do Outro, se apresenta, “experiência de manchamento do eu no Outro”. Na
alienação, a função do eu se faz efeito de imagem, lugar enganoso que se deixa sustentar
sobre a incompletude da falta. O lapso da imagem faz irromper o des-engano da des-ilusão
narcísica. Na queda da imagem, a máscara que veste o eu se desmascara, fazendo surgir um
lugar que falta à forma.
Nas aproximações possíveis com a dança, como diz Lima (2012, p. 63), “... o
bailarino mapeia ausências... É necessário esquecer para dançar... Alimentar-se dos rastros,
108

farejar marcas. Despertar as mais remotas regiões, uma memória de algo que se foi e que o
corpo visitará como uma ausência viva”. E nessa estranheza, o eu não se reconhece em sua
vertente especular. O estranho baila, habita no eu e sua vestimenta cai. Esse lapso pode ser
tido como uma “falha na miragem, efeito do inconsciente, tropeço no real, que movimenta o
sujeito através do seu som angustiante e o recoloca enquanto desejante na busca incessante de
significação...”. Na realidade, sair da prisão às fixações imaginárias traz ao cerne da questão,
uma aposta de produção de efeitos de liberdade subjetiva. (FRANÇA, 1997, p. 84-85)
Nesse lapso de imagem, como caracteriza a autora (ibid., p. 87), seu efeito se faz a
posteriori, momento de abertura que aponta à opacidade do jogo especular entre o real e
virtual, “no plano do símbolo do olhar do outro”. Há um despertar do sujeito para o inevitável
e angustiante abismo de ser, o fantasma faz caminho, não há como não sentir o efeito de
ruptura no aflorar do real que se faz cena, ruptura constitutiva do duende. Uma vivência sem
forma, quase como um exílio momentâneo, em que o eu se antepara com o estranho dele
mesmo, como se fosse algo externo, mas é, na realidade, a coisa mais familiar do seu ser.
Fixar-se imaginariamente implica a parada do desejo, este que se faz no movimento. “Este
vazio angustiante impede, com sua radicalidade ruidosa e impactante, a paralisação do desejo
diante das fixações imaginárias. O desaprisionamento dos objetos imaginários só é possível
nos cortes significativos, golpes fatais na promessa de completude imaginária”. (ibid., p. 101)
Agora já nos aproximamos o suficiente para dizer que o Unheimliche é a irrupção
do não especularizável, para ele não há espelho. O simbólico não é capaz de recobrir o real.
Nesta falha da imagem, o estranho se revela e indica o real impossível, cuja falha imaginária
traz a angústia como anteparo de um afeto indeterminado, trazendo à tona o desamparo do
sujeito diante da ameaça de destruição do ser. A estranheza inquietante é uma das formas de
demonstrar a marca registrada do recalque, como “um certificado de origem”. O estranho que
se faz revelação aponta ao desconhecido desejo, algo que toca o imprevisível. Esse
Unheimliche descentra do eu, submetendo-o à singularidade do desejo. “O vir a ser representa
o desconhecimento do eu daquilo que o estrutura e que falha” (ibid., p. 145, 147). A angústia
do real que descentra o Eu produz desilusão, pois remete o sujeito a uma perda sofrida pelo
Eu de seu suporte no Outro. O Unheimliche é o estranho anunciador do “eterno retorno dos
mortos” justo porque apresenta a divisão constituinte do eu”. (ibid., p. 168)

... o Unheimliche é a queda do objeto e da imagem especular (determinados


fantasmaticamente), o que vai remeter ao retorno de uma experiência de
indeterminação e manchamento. Isto representa, no campo do Outro, o traumático que
constitui o sujeito.O estranho que retorna é de uma importância singular na rede
109

conceitual freudiana, pois é o que se impõe como o reencontro perdido com a nossa
estrutura falha. (ibid., p. 185, 187)

Na realidade, ser atravessado pela estranheza acarreta um sentimento de


identidade do eu fenomênico que se vê próximo à fragmentação, visto que a queda do objeto
nos leva a uma experiência de indeterminação que representa, no campo do Outro, o
traumático constituinte. “O eu se destitui de sua roupagem narcísica diante da desconstrução
dos significados, permitindo a intensificação do movimento desejante, cujo deslocamento
deixa as formas imagéticas sem repouso em busca de uma reordenação” (ibid., p. 196). O
imperativo reside nesse eterno e incontrolável retorno do Unheimliche do desejo, enquanto
efeito-surpresa. Interrompe o desfiladeiro de imagens, desloca o desejo a partir do “tropeço no
real, que quebra a unidade, que, sendo dupla, se revela intensamente como o “estranho
anunciador da morte”. (ibid., p. 198)

Ao cair o véu encobridor do objeto feito de falta, surge a nudez do especular que é
vazio de ser, lugar da horrível exclusão. Esta dor da pura perda, enquanto
significante de um limite, escapa no para-além da imagem e deixa entre-ver o
horrível estranho que ameaça. Esta cortante visada do Belo em sua relação com o
desejo. (ibid., p. 198)

Há que se dizer que o imaginário não dá conta de tudo, e, justamente por isso, não
barra aquilo que não se pode ver. Ao falhar, o contexto da estranheza nos vem como um
míssil. A surpresa de nosso não-saber, a surpresa do que não estávamos procurando, mas
achamos,... assim,... à deriva para ser enlaçado, não nos vem como uma romance, mas como
um terror. E aí sim o habitar da cena tem que se pôr no estranho que só se fará conhecido no
próximo passo, no passo da dança.

3.4 Pelo duende, os traços do inconsciente: sinal do não-tempo

Como nos lembra Castro (2008, p. 63-65), afinal, o inconsciente ignora a


passagem do tempo em um desejo indestrutível fora do tempo. Tempo da primeira infância,
do deleite, do momento dionisíaco. Tempo insuperável. A noção que conhecemos por tempo é
trabalho da consciência, pois o trabalho do sistema perceptivo está intimamente ligado à
consciência. O consciente rege o tempo, seu senhor, ao passo que o inconsciente não se
encaixa nessa ordem cronológica. “Um inconsciente atemporal em relação ao tempo
progressivo da consciência”.
110

Nesse “outro tempo” que não respeita a cronologia, nesse tempo do só depois, há
movimento – que retranscreve, que articula novos nexos, rearticula as inscrições do
vivido – construindo sonhos no dormir, fantasias e pensamentos na vigília. Há
movimento das dimensões pulsionais e desejantes que, misturando os tempos,
produz novos sentidos. O tempo não passa no sentido do tempo sequencial, numa
direção irreversível, mas, na mistura dos tempos, as marcas mnêmicas nas mãos do
“processo primário” condensam-se, deslocam-se e criam novos sentidos. A
diferenciação dos funcionamentos temporais no psiquismo está presente ao longo da
obra de Freud, sendo um dos fios importantes da metapsicologia freudiana. As
concepções de memória e causalidade psíquica subvertem a psicologia da
consciência e são parâmetros básicos que fundamentam a clínica psicanalítica.
(ALONSO, 2006, p. 52-55)

Tempo do duende. O duende e sua morada. Tempo de esquecer, recordar e


elaborar. Tempo como promessa de um estado outro. Tempo da consciência não mais
vigilante, mas liberta, flanando por outros Aires. O fragmento, que se segue, refere-se a uma
obra de teatro, o complexo drama vanguardista, Así que pasen cinco años (1933), que Lorca
substituirá mais tarde por Leyenda del tiempo, na qual retrata a tragédia do homem, vítima de
seus sonhos e do tempo. Mais tarde, o fragmento foi popularizado pelo cantor Camarón de la
Isla no álbum “La leyenda del tempo” (1979), que deu nome ao disco.

El sueño va sobre el tiempo


flotando como un velero.
Nadie puede abrir semillas
en el corazón del sueño.

¡Ay, cómo canta el alba, cómo canta!


¡Qué témpanos de hielo azul levanta!

El tiempo va sobre el sueño


hundido hasta los cabellos.
Ayer y mañana comen
oscuras flores de duelo.

¡Ay, cómo canta la noche, cómo canta!


¡Qué espesura de anémonas levanta!

Sobre la misma columna,


abrazados sueño y tiempo,
cruza el gemido del niño,
la lengua rota del viejo.

¡Ay, cómo canta el alba, cómo canta!


¡Qué espesura de anémonas levanta!

Y si el sueño finge muros


en la llanura del tiempo,
el tiempo le hace creer
que nace en aquel momento.
¡Ay, cómo canta la noche, cómo canta!
¡Qué témpanos de hielo azul levanta!

(Federico García Lorca, Así que pasen cinco años, 1933).


111

Lorca e, posteriormente, na voz de Camarón de la Isla, já anunciava, -- como


salientou Marinas (2014) em uma palestra proferida em São Paulo, -- em suas letras, uma
possível relação que perpassa entre sonho, tempo e duende. Um voo onírico? É desse lugar
que o duende se apresenta? Muito poético, mas pouco explicativo. O acontecimento, como já
dizia Freud e recapitulou Lacan, tem o poder de marcar o tempo submetendo-o à estrutura de
ficção fantasmática, tópico que aprofundaremos nos próximos capítulos. A emoção até
mesmo o arrebatamento, no momento de apego ao duende, certamente, acessa algo da ordem
inconsciente. A informação vaza, da mesma maneira que público e intérprete são pegos na
cena. Algo escapa e nos captura (ir e vir) na cena. Se pensarmos que o tempo tem uma relação
estreita com o sistema perceptivo da consciência, logo a noção do tempo que corre no relógio
vem da consciência, vigia-vigília-vigilância das horas. O consciente sim rege esse tempo no
qual o inconsciente não se enquadra, a não ser, e sob a ríspida decisão dos restos mnêmicos
que escapam à consciência.

A possibilidade de ser consciente esgota-se fenomenicamente aí e, por isso mesmo,


a consciência é uma qualidade descontínua e o tempo – aqui uma vez mais o vemos-
em seu sentido conhecido e abstrato, liga-se ao modo do inconsciente. Entre a
consciência e os sistemas nos quais a memória se inscreve, as durações não se
correspondem: entre a efemeridade do sentido e percebido num dado instante e seu
registro num outro lugar, há toda uma eternidade que pode elidir e separar este
“meu” do “mim”; se a presença do presente faz um efeito de sentido na
imediaticidade, no momento mesmo em que isto sulca-se de modo indestrutível no
registro da memória, paradoxalmente este sentido torna-se passível de mudança: o
futuro pode alterar o passado e o passado comprometer o futuro, ou seja, isto coloca-
se fora da possibilidade de controle e domínio da consciência. (FABRINNI, 1999, p.
66-67)

Para Le Poulichet (1996, p. 9, 15), o tempo analítico pode ser pensado como
análogo a esse tempo que se perde em duração na cena, para a cena, tempo que será
trabalhado no próximo capítulo, junto à analogia que faremos posteriormente entre a travessia
de um final de análise e a do artista entregue em cena. Indo de encontro a um tempo linear, “a
análise provoca tempos de atualização e anacronismos que subvertem a trama do tempo,
dando lugar aos acontecimentos psíquicos. Ora, esse tempo, como também aponta
Csikszentmihalyi (1992, ver capítulo 1), não está sujeito ao relógio e não se compreende em
um tempo sequencial. “É precisamente na transferência que esses acontecimentos encontram
seu lugar e seu tempo próprios. A transferência é um tempo de realização dos acontecimentos
psíquicos. Ela lhes dá presença em todas as suas ressonâncias temporais”. O que se tem aí é
um “momento de abolição do tempo que é também, por isso mesmo, um momento
112

privilegiado de afirmação do tempo, pois essa ‘rasgadura’ na trama do tempo dá justamente


presença ao acontecimento”. (ibid.)
A flecha do tempo linear, responsável por distinguir um passado, um presente e
um futuro, é violentamente “contestada por essa presença que põe em jogo a associação dos
vestígios mnésicos. E é nesse momento em que se manifesta a presença, pela superposição
dos vestígios de um acontecimento presente e de um acontecimento passado, que esse passado
pode ver-se assim historicizado, subjetivado” (ibid., p. 18). Algumas analogias com o fator
duende é o que seguirá.

Assim, a pergunta “O que faz o tempo?” se transforma nesta outra pergunta: o que
fazem os tempos da transferência? Fazem ouvir e realizam o que estava à espera no
tempo. Escrevem as partituras anacrônicas nas quais ressoa o desejo e assim voltam
a questionar a representação tirânica da flecha linear do tempo. Esse é o tempo
aberto e multiplicado nos tempos do silêncio, da fala ou do sonho que realizam
transferências, que transpõem os acontecimentos para seus tempos psíquicos: no
ponto em que eles soam, entre linguagem e pulsão, em combinações inesperadas.
(ibid., p. 9)

Os lugares do corpo, cuja manifestação marca de um modo completamente


arcaico a presença do desejo, encontram-se gerados pelas experiências temporais. “Um lugar
pulsional seria o produto de uma identificação temporal; através da experiência do grito,
evocada por Freud, ele resultaria da repetição de encontros e superposições entre grito e seio”
(ibid., p. 21-22). Entre o corpo da mãe e o da criança, inadequações e coincidências vão
colocando em jogo a alternância entre a presença e a ausência. O corpo que se faz elaboração
no tempo não recobre exatamente o corpo no espaço, ele estará no processo de subjetivação
no justo intervalo entre o Mesmo e o Outro.
Freud ressalta que a ficção de um aparelho psíquico primitivo tem como objetivo
o esforço em evitar um acúmulo de excitação, mantendo-se na medida do possível, sem
excitação. O acúmulo de excitação é vivido como desprazer, colocando o aparelho em ação,
com o intuito de repetir a vivência de satisfação, ou seja, um decréscimo da excitação sentida
no sistema como prazer. “A esse tipo de corrente no interior do aparelho, partindo do
desprazer e apontando para o prazer, demos o nome de “desejo”, visto que só o desejo é capaz
de pôr o aparelho em movimento e que seu curso excitativo é automaticamente regulado pelas
sensações de prazer e desprazer. O primeiro desejar, lembramos, consistiu numa catexização
alucinatória da lembrança de satisfação.
Haverá no aparelho primitivo uma persistente inclinação a abandonar
imediatamente a imagem mnêmica aflitiva, caso algo a reaviva, pela razão de que se sua
113

excitação transbordar até a percepção, teríamos a sensação do desprazer. Evitar a lembrança,


que não é senão a repetição da fuga anterior frente à percepção, é “facilitada pelo fato de que
a lembrança, diversamente da percepção, não possui qualidade suficiente para excitar a
consciência e assim atrair para si uma nova catexia”. Essa evitação da lembrança de algo
qualquer que lhe fora aflitiva, “feita sem esforço e com regularidade pelo processo psíquico,
fornece-nos o protótipo e o primeiro exemplo do recalcamento primário”. (FREUD, [1900-
1901],1996, p. 626)
Le Poulichet (1996, p. 34) diz que “somos atravessados por dois tipos de tempo: o
que passa e o que o não passa”. A representação que fazemos do tempo lhe traz consistência
que se ordena na temporalidade, ao passo que os processos inconscientes deixam os
acontecimentos psíquicos no insistente lugar daquilo que não cessa. Nesse tempo que não
passa, os acontecimentos se encarregam de não cessar. “A expressão ‘não cessa’ parece ser
aqui a que melhor se adapta para designar acontecimentos que não acabam, que não têm
termo e que não se tornam passados”. Mas isso não quer dizer que permaneçam imóveis e
idênticos. Esses seguem o trabalho e a transformação da lógica dos processos inconscientes,
“mesmo não obedecendo às leis de um tempo que passa ou escapando à prova da realidade”.
Ora, a fantasia inconsciente nos apresenta claramente o acontecimento que não cessa, no
sentido de organizar o laço entre o sujeito e o objeto, tema que também será recuperado nos
capítulos subsequentes.
Por conta de uma operação de transferência interna, um novo modo temporal se
instaura entre o tempo que passa e o tempo que não passa. Desse encontro, a repetição
germina, atualizando no conflito a presença do desejo, assim como na formação do sintoma.
O sonho se apresenta como o protótipo desses acontecimentos psíquicos, “nos quais os
desejos inconscientes compõem com as exigências e as “existências” do Pré-consciente”.
Freud continua (1996, p. 79): ... “ocorre às vezes que os sonhos mostram extraordinária
persistência na memória. Tenho analisado sonhos de pacientes meus, ocorridos há vinte e
cinco anos ou mais, e lembro-me ainda de um sonho que eu próprio tive há mais de trinta e
sete anos e que, no entanto, está mais nítido que nunca em minha memória. Tudo isso é muito
notável e não é inteligível de imediato.
Para que as representações atinjam um certo grau de suscetibilidade de modo a
serem lembradas, é imprescindível que não permaneçam isoladas, mas que possam estar
dispostas em concatenação e agrupamentos apropriados. Assim, quando as palavras são postas
numa ordem apropriada, uma palavra vai ajudando a outra, e o todo, “estando carregado de
sentido, é facilmente assimilado pela memória e retido por muito tempo. (ibid., p. 80)
114

De acordo com Scheiermacher (1862, 351), o que caracteriza o estado de vigília é o


fato de que a atividade do pensar ocorre em conceitos, e não em imagens. Já os
sonhos pensam essencialmente por meio de imagens e, com a aproximação do sono,
é possível observar como, à medida que as atividades voluntárias se tornam mais
difíceis, surgem representações involuntárias, todas elas se enquadrando na categoria
de imagens. (ibid., p. 85)

Será que poderíamos pensar o lugar da cena assim como num setting, ou seja, que
esse encontro palco-público/analista-analisando(a), nos seus próprios tempos, funcionam
como mobilizadores de passagens daquilo que não cessa? Um pela via da palavra, o outro
pela via do corpo, que não deixa de se fazer palavra, robusta, encorpada, mas palavra. A
transferência é aqui pensada para além de uma reatualização do passado no presente, mas
como o encontro de um tempo que passa e de um tempo que não passa. Um rápido adendo
para lembrar que a transferência aqui é tida, como nos mostra Freud na “Interpretação dos
Sonhos” [1900], como lugar de passagem da energia psíquica de um representante para outro.
E desse encontro emerge a presença do desejo, marcado como o momento em que dois
objetos e duas palavras mutuamente se identificam. Aqui podemos nos transportar para a
cena, não no formato de recorte e cola, mas justamente a cena que reatualiza os tempos,
atravessada pelo corpo o qual, no movimento, deixa escapar aquilo que não cessa, corpo na
ação de uma palavra que, ao tentar omitir, desvela o desejo num corpo que se move-palavra.
Desse encontro a palavra ainda dissimulada se veste, ao passo que, por mais que o corpo se
faça omissão, há algo no movimento que o denuncia. Pela reação do corpo ao que se
desenrola na cena, dá-se a mistura dos tempos e, este que não cessa, não encontra muitas
vezes outra saída, a não ser cessar.
Mas o que quer dizer esse tempo que não passa? Podemos falar num primeiro
aspecto que seria o “sexual infantil inconsciente”, o recalcamento propriamente dito, visto que
a operação do recalque exige um isolamento e uma entrada das representações intoleráveis
num tempo que não passa. “Para esse recalcado, o sonho, o sintoma, e o tratamento analítico
oferecem lugares diferentes de transferência”. O sintoma traz à cena encontros que não
cessam junto ao que ocorre no aqui e agora. Será que não damos corpo a essas representações
intoleráveis e a esse excesso pulsional que não cessa num corpo que se faz inscrição? Ainda
nessa linha de raciocínio talvez pudéssemos pensar o corpo que reage pelo movimento como
um possibilitador de um furo no virtual, proporcionando uma abertura por onde um tempo,
que não passa, escoa sem barreiras. Aquilo que não cessava porque não tinha lugar, ganha a
roupagem corporal como caminho. (LE POULICHET, ibid., p. 38-41)
115

O tempo do sonho representa, sem dúvida, um dos únicos lugares em que um sujeito
se encontra completamente identificado com o seu próprio olhar – esse estranho
objeto destacável e evanescente – a ponto de ser confundido com ele. No campo do
sonho, as coisas não são para si mesmas nem para alguém, mas elas organizam
passagens; e o próprio objeto da figuração não é uma coisa, mas o laço de uma coisa
com uma outra. O sonho não é em nada uma cópia louca ou fantasística do real
deformado pelo desejo; ele dá, antes, olhar ao que não se pode ver: ele dá figura aos
laços. (ibid., p. 44, 45)

É muito poético pensar, como aponta a autora (ibid., p. 45-46) que o trabalho do
tempo no sonho funciona como uma atuação do tempo nas imagens, que realizam passagens.
É esse tempo não linear, por justamente desconhecer a distinção de passado-presente e futuro,
que se coloca em figuras. Nessas figuras vislumbra-se um tempo fora de toda representação
do tempo, “que produz superfícies em devir instável, nem internas nem externas, mas
desenhando laços entre as duas”. Isso nos remete a Lorca quando diz:

... que La Niña de los Peines teve que corromper sua voz porque sabia que estava
sendo escutada por pessoas especiais que não pediam formas, mas sim medula de
formas, música pura com o corpo sucinto para poder manter-se no ar. Teve que
empobrecer em faculdades e seguranças; quer dizer, teve que afastar a musa e ficar
desamparada, até que o duende viesse e se dignasse a lutar com ele, braço a braço. E
como cantou! Sua voz já não brincava, sua voz era um jorro de sangue dignificado
pela dor e pela sinceridade, e se abria com uma mão de dez dedos pelos pés
cravados, mas cheios de borrasca, de um Cristo de Juan de Juni. (LORCA, 1933, p.
1)

Ora, não é disso que se trata? Há que se alcançar um alto nível de intensidade, e
aqui, intensidade referente à metapsicologia freudiana, no ato performático. Estamos às voltas
com outro estado de consciência do intérprete e não necessariamente às voltas com uma
entidade extra corporal, ou seja, algo de fora que nos toma, mas sim algo de uma excitação
interna que pede vazão. Há uma alteração de registro numa repetição sempre outra, cujas
recomposições inesperadas nos carregam ao achado e à surpresa. Num ato premeditado, assim
como o de um analisando frente a um discurso pronto, ou de um artista ensaiado cujo
esquema não pode mudar, forja-se essa instância cuja surpresa cessa numa construção que
deveria se fazer no próprio ato de se deixar contar. Há outra referência de Lorca com relação
aos “sons escuros” e aos “sons negros” que nos convocam necessariamente à pulsão invocante
que será explicada mais à frente. O estar sozinho do artista, o desnudar na pausa da solidão, a
princípio piegas quando posto em escritas descontextualizadas, nos remete sim à primeira
cena cuja imagem se faz de fora, pelo Outro materno, que faz da nossa imagem sentido
enquanto incompleto.
116

Retomar a memória do tempo do sonho que traz o corpo na lembrança


reatualizada de um encontro, como na análise, constitui um acontecimento que instaura o
tempo de uma travessia de planos de identificações. “Só o sonho pode, de fato, oferecer um
lugar de figuração para encontros enigmáticos, que manifestam a verdadeira singularidade da
composição pulsional de um corpo” (LE POULICHET, 1996, p. 49). Ora, muitas coisas se
passam nos sonhos sob forma de resíduos e representações verbais. O que os caracteriza,
como afirma Freud ([1900], 1996, p. 85), são os elementos de seu conteúdo que se
comportam como imagens, que se assemelham mais às percepções, ou seja, como
representações mnêmicas.

... há alguns sonhos que são realizações indisfarçadas de desejos. Mas, nos casos em
que a realização de desejo é irreconhecível, em que é disfarçada, deve ter havido
alguma inclinação para se erguer uma defesa contra o desejo; e, graças a essa defesa,
o desejo é incapaz de expressar, a não ser de forma distorcida. (ibid., p. 176)

Na realidade, os sonhos, supomos, segundo Freud, recebem a sua forma mediante


a ação de duas forças psíquicas ou sistemas, onde uma constrói o desejo expresso no sonho,
ao passo que a outra exerce uma censura sobre esse desejo onírico, forçando uma distorção ou
encobrimento na expressão do desejo. Ora, nada poderá atingir a consciência a partir do
primeiro sistema sem passar pela segunda instância, e a segunda instância, por sua vez, não
permitirá “que passe coisa alguma sem exercer seus direitos e fazer as modificações que
julgue adequadas no pensamento que busca acesso à consciência”. Então, a relação da
segunda instância com os sonhos é de natureza defensiva e não criativa e desejante como na
primeira instância. (ibid., p. 178, 180)

No trabalho do sonho, está em ação uma força psíquica que, por um lado, despoja os
elementos com alto valor psíquico de sua intensidade e, por outro, por meio da
sobredeterminação, cria, a partir de elementos de baixo valor psíquico, novos
valores, que depois penetram no conteúdo do sonho. Assim sendo, ocorre uma
transferência e deslocamento de intensidades psíquicas no processo de formação do
sonho, e é como resultado destes que se verifica a diferença entre o texto do
conteúdo do sono e dos pensamentos do sonho. (ibid., p. 333)

A pulsão ocupa o lugar do tempo de passagem da fronteira, sempre renovada.


Conceito limite, como afirmou Freud, entre o somático e o psíquico, o sonho entra como um
trabalho de autofiguração e de composição do pulsional nas redes por onde perfilam o desejo.

O gozo impossível de ser reencontrado e os significantes sempre inadequados serão


causas de montagens oníricas. Assim, pode-se entender também o não-senso do
sonho, que reflete essa condição do sujeito: sua própria existência não está inscrita
117

em algum lugar de maneira fixa e ele segue um desejo que corre de vestígio, em
vestígio, sem saber para onde isso leva. (LE POULICHET, 1996, p. 51-52)

Tenhamos em mente que esse corpo, que se propõe em um fazer-se em


construção em cena, está aliado a essa analogia com os sonhos, na medida em que algo do
recalque pede passagem e escorre. Não se trata aqui do corpo histérico, fisgado pelo sintoma
de descontrole e ausências e que, atravessado pelas conversões, dá voz a um corpo de
representações recalcadas. Por isso, na escuta dos sonhos que os pacientes lhe narravam,
Freud “demonstrava que a única possibilidade de compreender os sintomas histéricos era não
os interpretar pelas manifestações anatômicas, mas sim pela condição de representação que
traziam”. (BECKER, 2010, p. 13). No esconderijo do inconsciente, a pulsão pode, atravessada
pelos sonhos, apresentar-se por figuras, ligando-se ao desejo, investindo as imagens do eu que
nunca apareceriam como tal no tempo da vigília.

São os acidentes do instante que fazem existir esse sujeito evanescente, mais além
dos hábitos e das certezas. Não procurando mais reter uma imagem fixa, mas apenas
pintar a passagem do instante para o instante, Montaigne toma conhecimento da
descontinuidade e faz do instante uma ocasião. Não se pode “pintar a passagem”
quando os instantes não são mais do que golpes desferidos contra um eu
desarticulado. (LE POULICHET, 1996, p. 80, 81)

Como salienta Becker (2010, p. 15-16), no encontro do corpo que se des-vela em


sonhos, “um dos sonhos de felicidade é eliminar o peso de existir, e isso se relaciona com o
corpo real que fala. Se por um lado só há corpo a partir de um código; por outro, não há como
representá-lo de modo total, essa é a nossa angústia”. O corpo como “palco onde o complexo
jogo entre psíquico e somático” se revelam. Assim, os sintomas, no tempo da vigília, e os
sonhos, no tempo onírico, nada mais são do que lugares que escancaram a complexidade dos
impasses identificatórios. “É passando e repassando pelos fios dessas composições que a
prensa do sofrimento pode se afrouxar, quando o eu desperto reconhece os espelhos que o
capturam e a lógica das suas viradas identificatórias”. (ibid., p. 52-53)

Os pensamentos oníricos a que chegamos por meio da análise revelam-se como um


complexo psíquico da mais intrincada estrutura possível. Suas partes mantêm entre
si as mais variadas relações lógicas: representam primeiros planos e panos de fundo,
condições, digressões e ilustrações, sequências de provas e contra argumentações.
Cada cadeia de pensamento é quase invariavelmente acompanhada por sua
contrapartida contraditória. Não falta a esse material nenhuma das características
que nos são familiares por nosso pensamento de vigília. Ora, quando tudo isso tem
de ser transformado num sonho, o material psíquico é submetido a uma pressão que
o condensa enormemente, a uma fragmentação interna e a um deslocamento que
criam, por assim dizer, novas superfícies, e a uma operação seletiva em prol de suas
partes mais apropriadas para construir situações. (FREUD [1900-1901], 1996, p.
678)
118

Se, na análise, o sonho recebe um estatuto de acontecimento que tem o poder de


desencadear a travessia do plano das identificações, será que isso não nos remeteria a
justamente esse lugar da solidão na cena, cujas identificações vão se desalinhando da função
do Outro para que a linha da sua história possa ser vista? Nessa reatualização transferencial,
os diferentes tempos que não se cruzavam, podem chocar-se ali e daí -- e a partir daqui -- um
poder fazer algo com esses tempos “em mãos”, como uma das molas do que se chama
“mudança psíquica” no tratamento analítico. “Ora, importa que esses tempos sejam reunidos
em compassos na transferência, como as linhas de uma partitura musical, para que ressoem
verdadeiramente os acontecimentos psíquicos”. (Freud, ibid., p. 62, 63).
Os encontros faltosos tocam na nossa estrutura de crenças e valores estabilizados.
A grande ilusão traz um saber que, no fio da navalha, nada sabe, apenas supõe um norte para a
vida. Nessa dança da solidão que a cena escancara como território de ação, assim como num
setting analítico, é de um saber lacunar, desestabilizado que se trata e, como consequência
disso, uma maior mobilidade e plasticidade pode se ancorar nessa via expressa. Quase como
uma escolha forçosa, somos impelidos a re-manejar o destino pulsional no qual o nó do
sintoma insiste. Amarração, abrindo espaços para que a pulsão encontre maneiras de escoar
mais livremente.
Na análise e na cena a marca do provisório se autentica. Uma busca que trará em
si a marca da impossibilidade, atravessados pelas apresentações do inconsciente. Um espaço
do corpo-palavra. Palavra que tropeça, e desse tropeço falha, abre-se para o corte, do corte à
produção. E daqui para frente vamos começar a pensar a trama a partir de um tal furo, de uma
tal impossibilidade, que, ao fim e ao cabo, possibilita novas criações, quer sejam oníricas,
quer surjam em seus relatos analíticos, quer ocorram de forma mais visceral na cena.
Sonho, transferência, o estranho como possibilidade de aparição da castração
foram até aqui nos conduzindo por sendas de aproximação à experiência do duende.
Entretanto, nossa hipótese, para atender à radicalidade com que essa experiência foi
concebida por Lorca, exige que a próxima jornada seja tomada na direção do Real, sem
dúvida um dos mais complexos conceitos na trama conceitual lacaniana, conforme será
examinado no próximo capítulo.
III

O corpo recomeça, assim como o caminhar da pulsão, em um vai e vem, rumo a


algum objeto que possa me trazer uma suposta satisfação. O corpo também cansa de tantas
insatisfações. Mas, logo o vejo num movimento intermediário entre a velocidade da perda e a
pausa da angústia, o contorno pontilhando. Numa vacilação intermitente. E esse outro vem
para lhe dizer qual o seu lugar. E aí me pergunto. O duende aceita esse lugar? O lugar do
outro que diz sobre você? Há que se fazer uma aposta, a princípio, desleal, depois, justa.
Assumir que somos sem sentido para possibilitarmos uma brecha à criação, nos reinventando
a partir do não sentido. A intervenção do outro é que deve sustentar a minha imagem? Ora,
escolhemos sem saber. O inconsciente não é pretexto para dizer algo de mim. Somos sim
frutos de escolhas que não se reconhecem enquanto tal. Aí reside o enrosco. De que modo
sou determinada? Aí falamos de escolha. Negar as minhas determinações. Não. Ver o outro
como suplemento e não complemento? No outro me alieno, sim, de início sim, mas se os
sintomas persistirem, estaremos às voltas com o ideal de totalização e, a partir daí, dá-se o
fim de um corpo que se propõe a se cruzar no compromisso com o nada, aventurando-se no
não sentido, inventando qualquer direção. Nutrir-se do outro para se apropriar, criando um
lugar. O outro como complemento numa relação una, estamos às voltas com o não se
surpreender. E então se percebe, de maneira estupidamente inocente que, no Real, esse outro
nada mais é do que o seu estranho familiar. Esse outro ancorado na poça fantasística, que,
desse lugar -- leitor, lhe digo como bailaora, se dissolve num esvaziamento que compõe a
narrativa em cena, concomitantemente a um lugar de vazio que vai se preenchendo fora dela,
a cada momento. Uma sensação de inteireza tão solitária e tão degustadora, num lugar que
nem o outro poderia ser capaz de ocupar. Mas é para esse outro que me dirijo. Que me
convoca e eu respondo: a que lugar é que a importância do ato se vinculará. Que outro é
esse? O outro que não te faz em cena. A cena se faz no Real do corpo, e aqui marco ‘Real’,
não no sentido de realidade, mas daquilo que Lacan nos sinalizou e que prossegue no
caminho desta tese.
E dessa minha posição, devo me (h)a-ver com as fraquezas, assumir
responsabilidades nesse corpo treinado. Uma insistência em não saber me dizer. O se-dizer-
(se) é ato de bravura. Para mim, caracteriza-se quase como uma agressão, a entrega ao
risco. Submeter-me a uma nova história. Fazer-se contar de um outro lugar. Caibo tão bem
nessa ficção alimentada por anos. Prazerosamente desgastante. A insistência nesse véu do
sempre não saber, não traz contornos, e inicia lentamente o seu lugar de angústia. Assumir
envolve a dupla, temor e angústia no resultado da potência. Há que suportar um não-lugar
para que a cena prazerosa se instale num corpo frágil de uma certa memória ficcional. Aqui,
o corpo se diz justo onde a palavra fracassa. Há que suportar a posição de saber. Da fábrica
de fazer-se, pouco sei, as estórias fracassam. Histórias que se perdem em tantas outras
construções. O gozo agradece. Suportar saber que sabe algo é de uma outra ordem
perturbadora. Amarga. Saber sem se alienar ao saber do Grande Mestre. Desse lugar, a
paralisia é a única protagonista. Que eu possa fazer e rever a cada dia, cansada, mas que a
expectativa morra na ousadia do me recontar. Ouso aqui começar a me dizer de um outro
lugar, ainda assustador. Um corpo que não cessa em se re-construir.

De onde respondo ao desejo do outro, não sigo. Só sigo do lugar onde algo me
causa, onde o desejo se desprende e vaga freneticamente. E nesse vagar, me encontro, quase
capturada por uma ânsia de não parar, querência de corpo exausto, corpo que contorna, no
canto da dor. E nesse ir e vir, e nesse pedir e renunciar, o corpo vai ditando as regras,
ironicamente se impondo à cena. Sem pedir permissão, se coloca. O corpo real sem
travessuras do campo imaginário. Corpo que assola. Corpo que se debruça. Corpo que
despedaça. Apelo ao simbólico. Lentamente, o simbólico vai rastreando um espaço para que
o Real não faça carne, fale dessa carne. O simbólico se encontra enamorado desse tal
imaginário para que o Real não ganhe de forma escancarada essa guerra. Mais devagar. É
muito corpo. Quero menos corpo. Mais palavra. Me rechaço nessa escrita que não se diz
toda. E ao não se dizer toda, me entristeço.

A palavra aqui enxuga os excessos, sinaliza seus limites. Mas o corpo que dança
me pede no excesso a sua forma, enquanto tento fazer da escrita uma aproximação cada vez
menos inibida do polo pulsional, de maneira que a forma visceral se faça corpo-texto. Na via
do polo representacional, mantinha-me tranquila, serena, anestesiada. Tanto a arte como a
psicanálise buscam vestígios, do contorno do indizível ao objeto sempre perdido. Olhar como
se fosse a primeira vez.

Escutar-me no solado dos sapatos nos quais o Real se desdobra, quebrando


sentidos viciados na produção de efeitos simbólicos outros. Andar em cena é ir atravessando
o vazio, desbravando significantes. Suportando a ausência de uma busca indeterminada.
Pressa em encontrar, mas por quê? Há que contornar esse vazio... e, quando podemos estar
em suspensão sem o sentimento do abismo, algo de muito singular se passa. Algo nos
atravessa. Sou atravessada por algo de que as palavras não dão conta, num corpo que se diz
imperativo. Um estado de liberdade nunca antes vivido. E daí finalmente o corpo pede
descanso. Se acalma. Em estado de vigília, quase, como se estivesse preparado para uma
emboscada, esse corpo vai saber sair..., há que entrar...

E numa sessão de análise, qual o imperativo que a rege? Conseguiria apreender


a satisfação desse trabalho? O que me leva a pensar no flamenco também como um lugar que
se dá num retorno tão miserável? Dar o que não se ganha. Mas a sensação que fica no corpo
em cena me traz um corpo Real de sensações. Sensação que transita entre a euforia e a
calmaria. Um vazio que se faz costura após o seu trabalho. A palavra não se sabe toda em
análise. A palavra prende um corpo em inércia. A palavra se faz resistência ali no setting.
Logo, se faz deslocamento na cadeia. Na cena, o corpo se esvazia e nesse vazio um estado de
excitação e completude se transmuta apreensível. Será que o lugar do intérprete não
dialogaria com o lugar do analisando? Dois lugares na captura do inapreensível, regidos
pelo inconsciente na escadaria do desconhecido. O corpo em movimento traz uma excitação
ao alcance de uma satisfação que escapa à palavra, e escapa muito numa sessão de análise.
Palavra que não dá conta de um corpo que, no ato de se contar, perdeu-se na história. O
corpo vai dissolvendo a palavra encrustada, a palavra se faz corpo ao se contar na duração
do trajeto. Palavra que dói no setting analítico. Palavra que transita no corpo que desenha a
cena. Quase como uma crítica. Sim, não nego. O corpo em movimento faz a palavra entrar
em outro lugar na operação significante. O corpo, no ato de se falar, não diz nada sobre
aquilo que possibilitaria seu salto. E desse salto, não aquele da bailarina, mas aquele em que
o corpo vai se ocupando de outro lugar, habitando terrenos ainda sombrios, no desconhecido
da cena. Cena sem máscaras. E daí a solidão. Uma cena que se faz costura quando o sujeito
atende ao seu desejo. Ao seu desejo, e não àquilo que se julga ser o que o outro deseja do
meu desejo. Um efeito que tem como função apaziguar o tropeço do encontro do seu próprio
desejo, dando lugar ao encontro da demanda. Essa demanda do amor.

Na ordem da paixão, a palavra tenta se costurar no setting analítico e, na cena,


tenta responder ao que o olhar do outro deseja de mim. O outro. Ele mesmo que me constitui.
Faço-me alienação na tentativa de separação. Que visão é essa que lentamente deixa de
cumprir a sua função a favor do meu olhar? Permitir a saída desse outro em estado de cola é
dizer-se de um outro lugar. O lugar desse corpo que caminha no sentido de (se) de-satar.
Mas de qualquer lugar, sempre me sinto presa às exigências do outro. Um texto que se repete
no significante da angústia, que nada mais é, simplificadamente, do que a perda do amor do
outro. E confesso que, enquanto esse amor resistir desse lugar onde a submissão cala, o
corpo não se fará cena. Um desânimo tomado nas malhas dessa angústia que me obriga a
uma renúncia. Em cada renúncia, alimento a consciência moral, severa e intolerante,
alimentando novas renúncias. Quanto mais cerco as renúncias, mais distantes vão se
tornando de mim. Nesses momentos de impasse e desânimo, é quando se obriga a viver da
experiência. A experiência do tempo, como disse Eliane Brum, “essa experiência do tempo
que é o tecido da vida”.

A cada sinal de desistência, no contorno da escrita, me faço pretexto. E, logo, sou


tão acolhida pelos sentidos das palavras que o corpo, muitas vezes embriagado pela
repetição do movimento, não responde. Retorno ao treino, infindável treino. Corpo insistente.
Corpo que não cansa de se re-contar. Cansada desse corpo, escrevo e me significo, lá de
onde tento estabelecer um possível diálogo entre a dança e a análise. Na primeira, me lanço
a momentos de inteireza, ao passo que a segunda leva a momentos de um delicado corte. No
tablao podíamos pensar no retorno das primeiras marcas, lá se escapa à ordem do
espaço/tempo. Saio de órbita, deshabito, e nesses momentos, preciso do auxílio do tempo
consciente e cronológico para me trazer novamente a essa segunda viagem corporal.
Imaginário e simbólico se reduzem para dar vazão ao Real ---- daqui as sensações gritam,
aquele primeiro grito primordial do bebê atrás de alguém que restabeleça o equilíbrio
orgânico-vital, da necessidade como desejo na falta, do que falta.
124

CAPÍTULO 4
RUMO AO REAL

A complexidade da teoria psicanalítica, aquela que vem da tradição freudiana-


lacaniana, é reconhecida. Sua extensão também está muito longe de caber no reduzido espaço
de um ou dois capítulos. Portanto, o que aqui se apresentará é um roteiro conceitual que, sem
qualquer escopo de exaustão, pretende selecionar um percurso teórico que permita ao leitor
dar continuidade à leitura introduzida no capítulo anterior sobre a relação do duende com o
Unheimlich (estranho) no corpo do intérprete flamenco em cena. Para isso, entretanto, surge
uma dificuldade adicional. Como foi adiantado nas reflexões sobre o duende e no trilhar
gradativo do diário de bordo, relato de uma experiência, o que vimos tentando expressar é,
justamente, essa possibilidade que quase beira o impossível, a saber, falar sobre o duende
enquanto ato instaurador que se diz no corpo. Quer dizer, falar de algo que escapa às palavras,
que é da ordem do indizível, sinônimo de inarrável, indescritível, intraduzível, mas também
inefável. São duas as palavras que parecem nos dar pistas da natureza do duende: indizível e
inefável, pois esta última carrega também o significado daquilo que é inebriante. De fato, falar
sobre o duende é intraduzível, mas experimentá-lo no corpo tem algo de inebriante,
arrebatador.
Freud nos diria que há algo aí que nos remete ao Estranho, àquilo que, entre o
horror e o encantador, eclode como uma revelação. Como transcrevê-la? Partir para uma
poética? Ora, Lorca realizou isso de modo admirável em sua conferência “Teoria y Juego del
Duende”, já comentada. Como diria Cruxên, “os artistas sempre tomam atalhos para bem
dizer o que o teórico só consegue com muito esforço” (2004, p. 44). Buscar, então, uma
costura da prática na teoria? Uma teoria que poetize a prática? De qualquer modo, não restam
muitas alternativas senão aceitar a ideia da incompletude, na justa medida em que isso ocorre
tanto em cena quanto em um processo analítico. Dupla experiência que aparentemente pode
parecer confundir mais do que ajudar, mas que, no âmago da questão, se encontra às voltas
com o Real do corpo em cena na fala que falta ao Real da clínica. Resta deslizar neste
caminho, portanto, na tentativa de aproximar o leitor dessa via de mão dupla, teoria e prática,
para a qual aqui se busca uma aliança. É em razão disso que os conceitos psicanalíticos, que
serão trabalhados a seguir, representam uma seleção guiada pelo propósito de irmos,
gradativamente, nos aproximando do conceito do Real, o mais espinhoso da articulação
125

teórica de Freud, Lacan e seus comentadores, mas, sem subterfúgios, num caminho que nos
parece o mais adequado para refletir sobre o duende.

4.1 Inconsciente e linguagem: do sonho à inversão do signo linguístico

Um dia, na nossa mais remota infância, tramamos cometer os dois maiores


crimes de que alguém pode ser acusado: o parricídio e o incesto. Estes
crimes, porém, jamais foram efetivamente cometidos. Por incompetência ou
por medo, permanecem como desejos.
Essa é a verdade fundamental da psicanálise: a verdade do desejo. No
entanto, os fatos do nosso cotidiano não nos remetem diretamente a ela, não
nos oferecem essa verdade já pronta, mas dissimulada enquanto distorcida. A
verdade é um enigma a ser decifrado, e a psicanálise constitui-se como teoria
e prática do deciframento.
Na verdade, nós não apenas não cometemos esses crimes, como sequer nos
lembramos de tê-los tramado algum dia. Não há traço em nossa memória
consciente desses desejos infantis; no entanto, eles produziram efeitos que
perduram por toda nossa vida. São esses efeitos que, uma vez identificados,
funcionarão como indícios de algo em nós desconhecido para nós mesmos.
(ROZA, 1993, p. 9-10)

Vamos aproveitar o gancho acima para trabalhar, com base em Roza (ibid., p. 20),
a relação entre percepção e memória, a partir dos sonhos e, portanto, do inconsciente. Aqui,
talvez, um Freud mais neurologista. Se pensarmos nos sonhos, a que ele afinal aspira?
Podemos pensar que a grande audácia dos sonhos seria poder passar da imagem à palavra,
mas, tenhamos claro que não se trata de desvendar uma ou outra palavra, “mas entendermos
que aquilo para o qual ela aponta é a palavra, sua busca é a busca do simbólico. Não se trata
aqui da profundidade da consciência, mas de um outro lugar psíquico, distinto da consciência
e regido por leis próprias”.
A palavra e, aqui, estendendo também ao corpo como carne-significante, torna-se
responsável por formatar representativamente a multiplicidade sensorial. A palavra é a real
alteridade do inconsciente no interior da representação. Representar é poder presentificar a
ausência, não efetivamente aquilo que está ausente, mas uma outra coisa que lhe toma o lugar
e pode acabar atuando como se fosse a própria coisa.
Por que os sonhos? Porque, para falar da descoberta do inconsciente, devemos
compreender como Freud foi construindo o seu pensamento a partir dos sonhos, do seu
próprio sonho. Quer dizer, o sonho se constitui em via régia para o inconsciente. Roza nos diz
que podemos pensar os sonhos sob três vertentes. A primeira é a de que os sonhos possuem
um sentido, o segundo, os desejos que se realizam no sonho são de ordem inconsciente e,
126

terceiro, que os desejos inconscientes são de natureza sexual. Na Carta 52 Freud diz que o
aparelho psíquico é fundamentalmente um aparelho de memória. “A memória desse aparelho
é memória de linguagem, de uma escritura”. (ibid., p. 29). Esse aparelho não vem pronto, ele
vai lentamente se formando na relação com outro aparelho de linguagem. Esse outro não diz
respeito ao mundo, mas é invariavelmente outro aparelho de linguagem. Nesse aparelho, as
palavras ou representações-palavra ganham significado na relação que a imagem acústica
(complexo representação-palavra) mantém com a imagem visual (complexo formado pela
associação de objetos). A representação-objeto não está aí pronta, aguardando a
representação-palavra, para daí significar. A percepção não fornece objetos com os quais a
palavra irá se articular afim ao seu significado. A percepção por si só não é capaz de fornecer
objetos. Do mundo, ela recebe imagens elementares, visuais, táteis, acústicas e outras, que vão
construindo o complexo das associações de objeto.
As associações-objeto sozinhas não formam um objeto. Somente na relação com a
representação-palavra é que essa unidade surgirá. O significado nascerá da relação das
representações. É a palavra que constrói o objeto como objeto, e ele, por sua vez, fornece
significado à palavra. O significado do objeto se dá não pelo externo, mas sim, pela
articulação das associações de objeto com palavra. Essa ideia de que a relação entre as
associações de objeto e a coisa é uma relação sígnica, enquanto que a relação entre as
associações de objeto e a representação-palavra é uma relação significante (ou simbólica,
como a denominava Freud), por si só justificaria o ensaio sobre as afasias. (ibid., p. 31-32).
Como afirma Volich (2000, p. 67-68,), esse modelo espacial do aparelho psíquico
determina, a partir das dinâmicas internas, “as condições de acessibilidade de experiências,
recordações, representações ao conhecimento do sujeito”. O acesso à consciência é
determinado pela quantidade de afeto, excitação investida, ligada a uma determinada
representação, e é pelo conflito entre essa representação investida e a censura que marca o seu
lugar nas passagens de uma instância a outra. É através da ligação da representação e o afeto
que a ideia, a sensação e a experiência se apresentam como objetos da consciência. O recalque
seria o responsável por essa quebra de ligação. “Ao separar afeto e representação, o recalque
pressiona a representação desinvestida em direção ao inconsciente, ao mesmo tempo em que
essa representação é atraída pelas representações inconscientes”.
As representações de coisas são construídas a partir das vivências de ordem
sensório-perceptivas e de comportamento experienciado pelo bebê. De ordem inconsciente,
elas podem ou não estar ligadas a afetos, porém, não conseguem sozinhas as associações de
ideias. “As representações de palavras surgem da ligação das representações de coisas com a
127

linguagem, a partir da relação ao outro, constituindo a base da comunicação humana e das


associações de ideias”. (ibid.)
A característica fundamental do aparato anímico, que Freud nos revela no Projeto
([1895], 1996) é a memória. É através da memória que o aparato se constrói. Podemos dizer
que o traço permanece, o que se repete enquanto memória não é o traço, mas sim as
diferenças entre os trilhamentos. Pode-se falar de traços permanentes e memória diferencial.
A memória é pré-condição para a formação do aparato psíquico. Não há psíquico sem
memória.

Estamos acostumados a pensar o Projeto como um texto que nos fala de neurônios e
quantidades, texto que nos oferece um modelo de aparato neuronal segundo uma
concepção quantitativa, o que em parte é verdade, mas que não é toda a verdade.
Sem dúvida Freud nos fala de neurônios, mas nos fala também de representações
(Vorstellungen), assim como também é verdade que nos propõe uma concepção
quantitativa, embora seja discutível se está falando de quantidades ou de
intensidades. O fato, porém, é que através de noções como as de investimento
colateral, ligação, barreiras de contato, trilhamento (Bahnung), signo de realidade ou
signo de qualidade, Freud nos oferece um fantástico (nos dois sentidos do termo)
modelo da subjetividade humana. (ROZA, 1993, p. 35)

Para Freud ([1895], 1996, p. 351-352), uma das principais características do


tecido nervoso é a memória. “Uma teoria psicológica digna de consideração precisa fornecer
uma explicação para a memória”. Para ele, a memória de uma experiência dependerá de um
fator nomeado por magnitude da impressão junto à frequência com que essa mesma impressão
se repetirá. A facilitação dependerá da quantidade intercelular que passa pelo neurônio nesse
processo excitativo e, também, do número de vezes em que o processo é repetido. A tendência
do sistema nervoso, mantida a cada modificação, é a de evitar que ele fique carregado de
quantidade intercelular, mas sob as pressões da exigência da vida, o sistema nervoso forçou-se
a guardar uma reserva de catexia, ou seja, de investimento de energia. Para ficar com uma
grande reserva de catexia, recorre às facilitações existentes entre os neurônios2.

2
A teoria das barreiras de contacto apresenta duas classes de neurônios, que são eles; os que deixam passar
quantidade intercelular (Qn´) como se não houvesse ali barreira de contacto, permanecendo iguais a cada
passagem de excitação e, aqueles cujas barreiras dão sinal, de modo que só permitem a passagem da quantidade
com dificuldade ou parcialmente. A classe dos neurônios que dificulta a passagem da quantidade, após cada
excitação, fica num estado diferente do anterior, “fornecendo assim uma possibilidade de representar a
memória”. Podemos daqui nomear duas classes de neurônios, os permeáveis (o), os que não oferecem resistência
e nada retêm, destinados à percepção e, os impermeáveis (símbolo da psico), resistentes e retentivos de
quantidade de intercelular, portadores da memória. O sistema de neurônios impermeáveis como vimos acima,
fica alterado a cada passagem de excitação. Se pensarmos na barreira de contacto deles, elas ficarão
permanentemente alteradas. Para Freud ([1895], 1996, p. 352), o conhecimento psico(lógico) re-aprende com
base na memória, o que torna as barreiras de contato menos impermeáveis, portanto, mais similares às do
sistema dos neurônios permeáveis. Assim, Freud descreve esse estado de barreiras de contato como graus de
facilitação (Bauhnung). Portanto, “a memória será representada pelas facilitações existentes entre os neurônios
(psico)”. (ROZA, 1993, p. 35-36)
128

Roza (ibid., p. 35) mostra que a noção de trilhamento “responde pelo percurso de
uma excitação pela trama dos neurônios”. Nesse percurso, aparece uma trama de trajetos
neuronais, facilitadores em certas direções e, em outras, dificultadores, traçando uma “cadeia
de percursos diferenciados para a excitação”. O trilhamento é associado à noção de barreiras
de contato ou sinapses neuronais, tendo em vista que as sinapses podem ou não oferecer
resistência à passagem de excitação numa determinada direção, dando lugar, assim, à
“repetição de percursos facilitados”. O que podemos concluir a partir daqui é que a “memória
é constituída pelas diferenças nas facilitações”.
Portanto, a memória é um “processo que implica um diferencial de valor entre
caminhos possíveis”. Freud nos lembra que é preciso, para cada neurônio, diversas vias de
conexão com outros neurônios, isto é, de várias barreiras de contato. Disso dependerá a
possibilidade de escolha ditada pela facilitação. Assim, a memória se desdobra em vários
tempos ou períodos, sofrendo rearranjos dos traços que a compõem. O objeto mítico original
se perdeu, assim, a permanência se encarrega pelos traços, trilhamentos, caminhos que irão
inscrever-se no aparelho psíquico, criando a memória e o próprio inconsciente.
A memória não é estática, os traços em tempos e tempos vão sendo submetidos a
re-transcrições. Nem todo traço, que é percebido, é gravado pelo aparelho psíquico. Gravamos
[traços] das impressões que vamos recebendo. A impressão em si mesma não constitui a
memória. Os traços, que serão registrados e depois organizados numa rede, nos permitem
observar a construção do eu a partir da experiência primária de satisfação. O eu constitui a
totalidade dos investimentos do binômio prazer-desprazer.
A não coincidência entre a percepção e o acúmulo de excitações endógenas do
bebê traria como efeito a alucinação do objeto perdido. A existência constante de um corpo de
neurônios catexizados, constituirá a base fisiológica do eu. A impressão pode ser vista como
um momento primário da elaboração mnêmica. “A impressão (posteriormente) traumática tem
que ser mediatizada por algo que a represente, uma lembrança que a ela se ligue e que a
presentifique não mais como impressão, mas como símbolo mnêmico”. Esse símbolo
representa a produção da memória, articulando a impressão infantil e o acontecimento que,
num segundo momento, a reatualizará. (ibid., p. 53-54)
Atentemos ao fato de que a impressão em si mesma é exterior à linguagem e ao
sentido. Ela só forma uma série significante na medida em que se liga a outras impressões. As
impressões são impiedosas ao fazerem exigências ao psíquico, à memória, por assim dizer.
129

Essa exigência surge como exigência de trabalho ao aparato mnêmico, assim como no
trabalho do sonho, “que é a de elaborar, sob a forma de um sistema de traços”.
Na origem, a memória não é um documento em forma de texto imutável, mas sim
de diferenças não identificáveis. “Seria extremamente difícil conciliar os sistemas de traços
que constituem o inconsciente – traços que são inscritos, transcritos e retranscritos – com a
ideia de uma permanência imutável sob a forma do original”. (ibid., p. 59, 85). O que
aterrorizava Freud não era a irracionalidade do inconsciente, mas paradoxalmente a sua
racionalidade. Frente ao irracional e ao instintivo nada temos a fazer senão, na medida do
possível, conter seus efeitos indesejáveis. Frente a um inconsciente estruturado, desejante e
dotado de uma racionalidade própria, aquilo com o que temos de nos defrontar não é senão a
carga desse desejo. (ibid., p. 79)
Complementando o que já foi introduzido no capítulo anterior, Freud chegou ao
conceito de inconsciente pela consideração de certas experiências em que a dinâmica mental
desempenha um papel, ou seja, o estado em que as ideias existiam antes de se tornarem
conscientes é chamado de repressão. Dessa forma, se o conceito de inconsciente parte da
repressão, o reprimido pode ser considerado o protótipo do inconsciente. Freud alerta para
dois tipos de inconscientes: o latente, capaz de tornar-se consciente, e outro que é reprimido,
mas que não é, em si próprio e sem mais trabalho, capaz de tornar-se consciente. O latente é o
inconsciente apenas descritivamente, não no sentido dinâmico, chamado de pré-consciente. O
termo inconsciente destaca-se do reprimido dinamicamente inconsciente.
O indivíduo possui, assim, uma organização coerente de processos mentais a que
chamamos de ego. É a esse ego que a consciência se liga. O ego é responsável pela descarga
das excitações para o mundo externo. Ele é a instância mental responsável pela supervisão de
todos os seus processos constituintes e que vai à noite, exercendo a censura sobre os sonhos.
Desse ego também procedem as ditas repressões, por meio das quais se tenta excluir certas
tendências da mente, não simplesmente da consciência, mas também de outras formas de
capacidade à atividade. O inconsciente não coincide com o reprimido. É verdade que tudo o
que é reprimido é inconsciente, mas nem tudo que é inconsciente, é reprimido. Nestes termos,
uma parte do ego também pode ser inconsciente.
De acordo com a primeira tópica freudiana, a consciência é a superfície perceptiva
do aparelho mental. Ela é o primeiro sistema a ser atingido pelo mundo externo, mas essas
percepções sensórias advindas do externo e as internas (sensações) e sentimentos são
conscientes desde o início. O pensamento inconsciente ou ideia é construído em algum
material que permanece desconhecido, ao passo que a ideia pré-consciente é colocada em
130

circulação com representações verbais que lhe são correspondentes. Assim, essas
representações mentais, tidas também como resíduos de lembranças, foram antes percepções
e, como todos os resíduos mnêmicos, podem tornar-se conscientes de novo somente quando já
fora outrora uma percepção consciente.
Os resíduos verbais ocorrem primariamente das percepções auditivas de maneira
que o sistema pré-consciente possui, por assim dizer, uma fonte sensória especial. Em
essência, uma palavra é, em última instância, o resíduo mnêmico de uma palavra que foi
ouvida. As percepções internas produzem sensações de processo que surgem nos diversos e
profundos estratos do nosso aparelho mental. As sensações e sentimentos só se tornam
conscientes quando atingem o sistema pré-consciente. Se o caminho para frente é barrado,
elas não conseguem existir como sensações, ainda que o curso das excitações seja como se
elas chegassem a existir.
Por meio das interposições das representações verbais, os processos internos de
pensamento são transformados em percepções. O próprio corpo como superfície constitui um
lugar de onde podem se originar sensações tanto externas quanto internas. Ele pode ser visto
como qualquer outro objeto, mas, ao tato, produz duas espécies de sensações, uma das quais
pode ser equivalente a uma percepção interna. Dessa forma, o ego não é uma entidade de
superfície, mas é a própria projeção de uma superfície, ou seja, ele não só pode ser encarado
como uma projeção mental da superfície do corpo como também representar as superfícies do
aparelho mental.
Tais articulações dão fundamento ao trabalho do sonho. Temos dois registros
distintos do sonho, um consciente e, assim, o sonho como dele temos conhecimento e, um
outro, completamente inacessível, que corresponde ao desejo inconsciente. Estes dois
registros, Freud nomeou como, “conteúdo manifesto do sonho e pensamentos latentes do
sonho”. Àquilo que temos acesso é da ordem manifesta, já o latente é aquilo de que não temos
consciência a não ser pelo seu substituto distorcido que vem à cena. Mas o que seriam esses
conteúdos? Como se dá a sua formação?
O que é próprio do sonho é a linguagem. Podemos, como aponta Roza (1993,
p.81, 86) pensar o sonho como “uma escritura psíquica”, na qual imagens são consideradas a
partir de seu valor significante e não apenas tomadas como imagens. Isso porque a imagem
não dá conta de ser ela mesma portadora de seu significado. A imagem nos remete às palavras
e não às imagens, ou seja, “as imagens remetem às imagens, numa composição pictórica em
que a articulação dos elementos ocupa o lugar das palavras”. (ibid., p. 81, 86)
131

Os pensamentos do sonho e o conteúdo do sonho não são apresentados como duas


versões do mesmo assunto em duas linguagens diferentes. Ou, mais
apropriadamente, o conteúdo do sonho é como uma transcrição dos pensamentos
oníricos em outro modo de expressão cujos caracteres e leis sintáticas é nossa tarefa
descobrir, comparando o original e a tradução.
O conteúdo do sonho, por outro lado, é expresso, por assim dizer, numa escrita
pictográfica cujos caracteres têm de ser individualmente transpostos para a
linguagem dos pensamentos do sonho. Se tentássemos ler esses caracteres segundo
seu valor pictórico, e não de acordo com sua relação simbólica, seríamos claramente
induzidos ao erro. (FREUD, [1900], 1996, p. 303)

O material dos sonhos sofre distorções. E porque precisa sofrer distorções,


interrupção das associações, julgamentos e esquecimentos? Porque é necessário que essa
matéria passe pela resistência, pois, como salienta Roza, “a verdade do desejo inconsciente
não se oferece docilmente ao intérprete”. O eu do sonhador não hesita em oferecer resistência,
e, quanto maior ela for, mais próximo se estará do substituto manifesto e do desejo
inconsciente. A distorção não é um efeito do tempo, mas uma exigência imposta pela censura.
Ela se refere à relação entre o indivíduo e a linguagem, e, se estamos na linguagem, somos
necessariamente lançados à ordem da lei. E, quando interiorizada e dirigida pelo eu, ela se
fará presente sob a forma de resistência (ibid., p. 87). A censura é responsável pela
deformação a que são submetidos os pensamentos latentes, a resistência, por sua vez, objetiva
a censura, esse lugar marcado pelas lacunas, distorções, apagamentos e deformações oníricas.
Avançando nos mecanismos do trabalho do sonho, a condensação “designa o
mecanismo pelo qual o conteúdo manifesto do sonho aparece como uma versão abreviada dos
pensamentos latentes”. Já o deslocamento é o efeito da censura onírica e opera de duas
maneiras: “a primeira, pela substituição de um elemento latente por um outro mais remoto que
funcione em relação ao primeiro como uma simples alusão; e a segunda maneira, mudando o
acento de um elemento importante para outros sem importância”. (ibid., p. 94-95)
Confirma-se, assim, a tese central de que o sonho é uma linguagem. Portanto, o
sonho é uma escritura psíquica de imagens que não devem ser consideradas em seu valor de
imagem, mas sim, em seu valor significante. A imagem não é por si só portadora de seu
significado. “Significante e significado [constitutivos do signo] são de duas ordens distintas,
constituindo duas redes de articulações paralelas”. O que isso representa? O modelo
estruturalista saussuriano do signo se constitui de uma relação biunívoca do significante
(imagem mental do som) e significado (o conteúdo semântico). Lacan refuta essa relação,
pois, para ele, há um deslizamento constante do significado sob o significante e é “a rede do
significante, pelas suas relações de oposição, que vai constituir a significação do sonho”. A
distorção é justamente consequência desse deslizamento do significado sob o significante,
132

distorção responsável pelos mecanismos de condensação e deslocamento. “O que Lacan faz,


em adição, e sob influência do amigo linguista, Roman Jakobson, é assimilar esses
mecanismos à metáfora e à metonímia” (ibid., p. 96).
Na linguística, a metáfora corresponde à organização dos signos em função de
suas relações de similaridade que estão em ausência, mas ficam em reserva no tesouro de
significantes e significados de que a língua se compõe. Por exemplo, na frase “o menino
correu”, em lugar de “menino” poderia ter entrado, nessa mesma posição, a palavra “jovem”
ou “garoto”, e assim por diante. O eixo da metonímia, ao contrário, corresponde à
organização dos signos na sua presença, um depois do outro, na sequencialidade do discurso.
Portanto, trata-se da relação de “O”, seguido de “menino” que é seguido de “correu”, o que
nos dá a metonímia: “O menino correu”. Lacan, então percebeu a coincidência desses dois
princípios com aqueles que Freud encontrou nas operações do sonho, a saber, o deslocamento
(metonímia) e a condensação (metáfora). Mas Lacan foi além, pois, quando tomou essas
noções freudianas,

... de condensação e deslocamento para sua teoria do inconsciente, ele também


utilizou o conceito de Freud de representantes ideacionais para desenvolver essa
teoria. Freud formulou o conceito de representantes ideacionais para dar nome às
expressões inconscientes daquilo que sofreu repressão. Portanto, na teoria lacaniana,
como já mencionado, os mecanismos de condensação e deslocamento estão
representados por metáfora e metonímia, respectivamente, enquanto os
representantes ideacionais são representados pelos significantes. De acordo com
Lacan, metáfora e metonímia são efeitos de linguagem e são o resultado do trabalho
de repressão que acontece no inconsciente. Para a psicanálise, repressão é um
mecanismo pelo qual determinadas situações de difícil manejo na vida do Sujeito
são suprimidas da memória como, por exemplo, os desejos edipianos, e,
consequentemente, representadas por significantes através dos processos de
metáfora e metonímia. Os efeitos de linguagem revelam simbolicamente ao Sujeito a
causa da sua repressão primordial, permitindo, desta forma, uma subjetivação da
realidade ao seu redor, que ocorre no momento em que o Sujeito consegue significar
as circunstâncias em sua volta, criando, assim, um entendimento simbólico de perdas
e faltas. (OLIVEIRA, 2012, p. 112)

Desse modo, a partir de Lacan, o inconsciente sofreu uma releitura advinda da


etologia e da linguística. Para ele o inconsciente é estruturado como uma linguagem. Isso
aponta para uma estrutura, quer dizer, o inconsciente não é um caos, mas sim estruturado.
Como dizia Freud, o inconsciente pensa. Para Lacan (1953, p. 6),

... esse pensamento se forma a partir de uma rede de oposições significantes. (...) no
interior do sistema total do discurso, do universo de uma linguagem determinada,
que comporta, por uma série de complementaridades, um certo numero de
significados; o que tem que significar, a saber, as coisas, é preciso acomodá-las,
dando-lhes um lugar.
133

Assim, do ponto de vista da linguística pós-saussuriana, cunhada por Lacan, o


efeito de alteração do sentido é tido na metáfora, ou seja, na substituição de significantes que
apresentam entre si uma relação de similaridade e, na metonímia, pela substituição de
significantes que mantêm relações de contiguidade (ROZA, ibid., p. 97). Fazer a equivalência
da condensação e do deslocamento com a metáfora e a metonímia significa afirmar que os
processos inconscientes não formam um conjunto anárquico, alheio a qualquer ordem, lugar
do misterioso e do impensável, mas que são processos sistematizáveis de acordo com
determinadas leis”. (ibid., p. 98)
Todo o sistema da língua, de que as palavras tomam parte, não passam de uma
convenção coletivamente internalizada e aceita. Somos, portanto, inelutavelmente capturados
não pela naturalidade da fala-mãe, fala-pátria, fala-nativa e outras retóricas, mas, justamente,
pela malha de significantes arbitrários de que as línguas são feitas. Isso é constitutivo do
registro do Simbólico, ou seja, o campo do Outro (grande outro), distinto do outro (pequeno
outro), este definidor das relações com o semelhante, primordialmente encenadas no vínculo
da criança com a mãe. Assim, o Outro significa a condição humana de um sujeito atravessado
pela linguagem e pela cultura.

A ideia lacaniana de uma primazia da linguagem – e, portanto, do significante-


repousa no dado primordial de que o indivíduo não aprende a falar, mas é instituído
(ou construído) como sujeito pela linguagem. Por ser captada num universo
significante, a criança começa a falar muito antes de saber conscientemente o que
sua fala diz. (ROUDINESCO, 1998, p. 378)

Lacan (1978, p. 226) afirma que o sujeito se faz servo da linguagem, “ele o é mais
ainda de um discurso cujo movimento universal” marca sua inscrição, o seu lugar desde o
nascimento, ainda que seja somente e ainda mais sob a forma de seu nome próprio. Freud
descobriu, por meio da simples observação cotidiana, o jogo primordial do Fort-Da, encenado
pelas crianças, jogo em que se anuncia o processo abstrativo da presença-ausência que se
encontra nos fundamentos da linguagem. Esse jogo será discutido a seguir, dadas as
implicações que dele podem ser extraídas na sua relação com as repetições das quais
emergem diferenças criadoras no corpo flamenco. Esta articulação será devidamente
trabalhada quando chegar sua hora, com alguns apontamentos já no final deste capítulo e seu
detalhamento nos próximos capítulos. Por enquanto, acompanhemos Freud na acuidade com
que refletiu sobre as brincadeiras de seu neto.
134

4.2 O jogo da repetição no Fort-Da

Nas observações do neto de um ano e meio, após sua estadia por algumas semanas
em sua casa, Freud ([1920], 1996, p. 23-28) percebeu que a criança nunca chorava quando sua
mãe o deixava por algumas horas. “Esse bom menininho, contudo, tinha o hábito ocasional e
perturbador de apanhar quaisquer objetos que pudesse agarrar e atirá-los longe para um canto,
sob a cama, de maneira que procurar seus brinquedos e apanhá-los, quase sempre dava bom
trabalho”. Ao brincar, digamos assim, seu neto emitia um longo e arrastado “o-o-ó”,
acompanhado por certa satisfação. Sua filha e o próprio Freud, concordaram em achar que
isso não era uma simples interjeição, mas representava a palavra alemã “fort” (ir embora).
Freud percebeu que, nesse jogo, o único uso que seu neto fazia dos brinquedos,
era justamente de brincar de ir embora com eles. Certo dia, Freud fez uma observação que
acabou confirmando o que vinha formulando. Com um carretel de madeira com um pedaço de
cordão amarrado em volta dele, seu neto nunca brincou de puxá-lo pelo chão atrás de si,
simulando um carro, como alguns meninos costumam fazer. Ao contrário disso, o que ele
fazia era segurar o carretel pelo cordão e com muita “perícia arremessá-lo por sobre a borda
da sua caminha encortinada, de maneira que aquele desaparecia por entre as cortinas, ao
mesmo tempo em que o menino proferia seu expressivo o-o-ó”. Ao puxar então o carretel
para fora da cama novamente, por meio do cordão, “saudava o seu reaparecimento com um
alegre “da” (ali)”.
Aí podemos visualizar a brincadeira completa de um desaparecimento e retorno
do objeto. Como salienta Freud, o primeiro ato, incansavelmente repetido como um jogo em
si mesmo, não deixa dúvida de que o prazer maior reina, sobremaneira, no segundo ato, o do
retorno. Isso nos dá uma explicação plausível com relação a uma certa renúncia à satisfação
instintual vivida pela criança, quando da partida da mãe, sem choros e escândalos na porta,
como comumente assistimos às crianças dessa idade. Após constatar o movimento do seu
neto, Freud levantou a seguinte questão, fundamental, por assim dizer. “Como, então, a
repetição dessa experiência aflitiva, enquanto jogo, harmonizava-se com o princípio do
prazer”? Freud diz que a saída da mãe deveria ser encenada como preliminar necessária a seu
alegre retorno, e que no retorno residia o verdadeiro propósito do jogo. (FREUD, 1996, p. 25-
26)
Outra característica do jogo que aí se encena pode ser detectada quando a criança,
de início, se achava numa situação passiva, dominada pela experiência, mas repetindo-a, por
mais desagradável que fosse, assumiria papel ativo. Pode-se entender o Fort-Da também
135

aliado a uma teoria da visão e outra da encenação. Ora, nesse vai e vem, o prazer da criança
podia ser medido pelo procedimento repetitivo característico do jogo de desaparecer-aparecer.
Noronha (2007, p. 67) afirma que o jogo aqui entra como possibilidade de simbolização dos
modos de presença-ausência da figura materna que, “além dos cuidados físicos implicava
também o estado entre o cuidado e o olhar que se depositava da mãe em direção ao filho e do
filho na procura da mãe”. Não precisamos ir muito além para inferir que era a mãe que ia e
vinha nesse jogo simbólico promovido pelo neto.

A criança ritualizava a saída de cena da mãe através do objeto e, através do


mecanismo constituído, restituía a si o objeto e o prazer advindo de uma certeza
simbólica da volta da própria mãe. Assim como o carretel, a mãe também retornaria
sempre. Mas não apenas isso. A criança tomava a si o poder – simbólico- de mandar
a mãe e o objeto embora e de trazê-los de volta quando lhe fosse aprazível. (ibid., p.
67)

Segundo Lacan (2008, p. 76), o que a criança solicita à mãe destina-se a estruturar
para ela a relação presença-ausência vista na brincadeira de Fort-Da, como primeiro exercício
de dominação. “Há sempre um certo vazio a preservar, que nada tem a ver com o conteúdo,
nem positivo nem negativo, da demanda”. Com isso, já podemos estender o Fort-Da a um
possível universo do corpo-arte, num jogo de aparecer-desaparecer. Neste ponto, não se pode
esquecer que a representação se serve como elemento central no processo de criação.
Representar, como vimos na cena de Fort-Da, designa um ato de pôr em cena. Assim
também, o que vamos ver em cena é a forma como o sujeito desejante se coloca no mundo,
constituindo a realidade a partir das ausências de objeto do desejo. “A criança, ao jogar,
elabora o trauma da perda e encontra para ela uma saída positivada – criadora (no jogo). E
não é disso que se trata ou se trava em cena? Em sua origem, o objeto escapa, a cena vem
como co-adjuvante no movimento de elaboração da perda e o jogo comparece como seu
protagonista. É neste momento que a questão do corpo se impõe para que se possa, então,
retomar o Fort-Da e o corpo en-cena, ao final deste capítulo.

4.3 A questão do corpo

Segundo Braga (2010 apud Cukiert, 2000, p. 5-7), Freud era um jovem
neurologista inquieto com as questões que iam para além da estrutura do corpo subordinado
às leis da distribuição anatômica dos órgãos e sistemas funcionais. Afastando-se da noção de
136

corpo da anatomopatologia e do campo da medicina, Freud foi o fundador da psicanálise a


partir de seu estudo arqueológico sobre o funcionamento do inconsciente. Temos, de um lado,
a história da psicanálise em busca de uma resposta ao problema da histeria, impasse ao qual o
exame anatomopatológico não responde. De outro lado, a teoria desenvolvida por Freud,
apresenta a possibilidade de se pensar as relações entre o corpo e o psiquismo, a partir do
tratamento da histeria.
Embora a questão do corpo na psicanálise implique uma jornada conceitual
intrincada, para nós, ela se torna necessária, porque, aquilo que se quer evitar, neste trabalho,
é justamente a leitura do corpo como continente e conteúdo quer seja de instintos, quer seja de
funções fisiológicas ou ainda que o corpo fique encapsulado exclusivamente nas confortantes
ilusões do imaginário.
Freud propôs que a figura da histeria se articula no campo da representação e não
mais no campo do corpo anatomopatológico como vinha sendo trabalhado até então. Este
deslocamento epistemológico rompe com a racionalidade médico-psiquiátrica, constituindo
uma nova problemática teórica. É justamente dentro desta perspectiva que a visão puramente
fisiológica do corpo perdeu terreno nesta pesquisa, conforme enunciado na introdução e
explicitado no capítulo 1.
Para o fundador da psicanálise, os sintomas histéricos fundam-se na imagem do
corpo, e não em sua cartografia anatomopatológica. Se há uma ordem corporal representada,
logo, podemos pensar numa anatomia estrutural imaginária. Ora, o histérico produz seus
sintomas somáticos, sofrendo suas dores muito mais na imagem do corpo do que na
materialidade de sua estrutura anatômica, sendo, desse modo, um corpo que pede sob
sofrimento a re-tomada de marcas no registro da história e do relato.
Em 1905, a psicanálise sofreu um novo desdobramento com a formulação de
Freud sobre a sexualidade infantil e com a proposta de um corpo erógeno que se constitui a
partir desse representado originário. Ao afirmar a existência de uma sexualidade infantil e das
chamadas zonas erógenas, Freud reconheceu a presença das atividades que buscam o prazer
independente de uma função biológica. É neste contexto, então, que se situa o conceito de
pulsão (Trieb) colocado como conceito limite entre o psíquico e o somático. É sabido que as
satisfações sexuais do bebê são vivenciadas apoiando-se nas funções corporais necessárias à
conservação da vida. Por isso, o conceito de pulsão desempenha, no interior da teoria
psicanalítica, o papel de “operador teórico” que servirá de mapeamento à nova problemática
do corpo. É nela que nos apoiaremos para pensar o real do corpo, conforme será detalhado no
137

capítulo 5, hipótese que irá nortear nossa leitura do duende e sua instauração no corpo no
capítulo 6.
Para isso, valemo-nos, neste momento, de Anzieu (1989) em paralelo com Freud e
Lacan. Uma questão que parece importante aponta para o lugar da pele como “invólucro
psíquico e físico”. O eu pode ser compreendido como uma estrutura cronologicamente
intermediária do aparelho psíquico entre a mãe e o seu infans em que a pele desempenha o
papel de locus de tramitação entre o interno-externo. Lugar de passagem que pode vir a re-
cobrir ou não fissuras comunicativas dadas na relação entre a mãe e o infans. A linguagem na
transmissão de uma noção ainda pré-consciente de que a pele da mãe é, antes e acima de tudo,
a pele primeira.
O dispositivo Eu-pele pode ser lido como um envelope narcísico capaz de
assegurar ao aparelho psíquico a certeza da constância de seu bem-estar. Não estaríamos às
voltas com uma representação na qual se apoia o eu da criança, durante as fases iniciais de seu
desenvolvimento, para representar a si mesma como eu dotado de conteúdos psíquicos a partir
de sua experiência com a superfície do corpo? Momento de diferenciação entre o Eu psíquico
e o Eu corporal? Toda atividade psíquica se estabelece sobre sua função biológica. O Eu-pele
encontra seu apoio sobre as diversas funções da pele.
Assim, a pele como nossa primeira função, pode ser tida como uma bolsa que
contém e retém em seu interior o bom e o pleno armazenados com o aleitamento, os cuidados,
o banho das palavras e o toque da mãe nessa superfície. A pele é a interface que marca o
limite com o de fora, mantendo-o no exterior. É também a barreira que protege o ser da
penetração pela cobiça e pelas agressões vindas dos outros, seres ou objetos. A pele é uma
superfície de inscrição de traços deixados das relações. É nessa origem epidérmica e
proprioceptiva que o Eu herda a dupla possibilidade de estabelecer barreiras (defesas
psíquicas) e filtro de trocas com o Id, superego e o mundo exterior (conforme estes conceitos
da segunda tópica freudiana serão vistos mais à frente). Tanto no embrião ou no recém-
nascido, a sensibilidade tátil é a primeira que aparece junto ao desenvolvimento do ectoderma,
origem neurológica da pele e do cérebro.
No momento do nascimento, vivencia-se uma experiência de massagem por todo
o contorno do corpo e de fricção generalizada da pele durante as contrações maternas e
durante a expulsão para fora do envelope vaginal dilatado para as dimensões do bebê. Esses
contatos táteis naturais estimulam o desencadeamento das funções respiratórias e digestivas.
O desenvolvimento das atividades e das comunicações sensoriais pelos cinco sentidos,
audição, visão, olfato, paladar e o tato serão favorecidos pela maneira como as pessoas do
138

círculo da maternagem carregarão a criança, acalmando-a ao apertar seu corpo contra o delas
e amparando sua cabeça ou sua coluna vertebral. A pele possui uma prioridade estrutural
sobre todos os outros sentidos por algumas razões, é o único sentido que recobre todo o nosso
corpo na sensação de calor, dor, frio, contato, pressão entre outras. É nessa aproximação física
que a contiguidade psíquica vai sendo promovida.
O toque é o único dos cinco sentidos que serve também como uma estrutura
reflexiva para a criança. Ora, a criança não experimenta com o seu dedo a dupla sensação de
ser um pedaço de pele que toca ao mesmo tempo em que é um pedaço de pele que é tocado?
Essa experiência tátil tem como consequência a construção de outras reflexividades sensoriais
no universo da criança. Elas são marcadas pelo escutar, emitir sons, aspirar seu próprio odor,
olhar-se no espelho e, posteriormente, o desenvolvimento da capacidade reflexiva. O círculo
materno circunda o bebê com um envelope externo feito de mensagens a que ele se ajusta
com certa flexibilidade, deixando espaços disponíveis ao envelope interno, à superfície do
corpo, lugar e instrumento de emissão de mensagens. Ser um Eu é sentir a capacidade de
emitir sinais ouvidos pelos outros.
Não se pode esquecer a necessidade de irrupção do segundo momento marcado
pelo desaparecimento dessa pele comum junto ao reconhecimento que cada um tem de sua
própria pele, marcando a impossibilidade de uma interface simbiótica dada na relação dual e
inseparável, num primeiro momento, entre a mãe e o infans. O envelope psíquico origina-se
por apoio e consequência do envelope corporal. Portanto, o Eu em seu estado originário,
corresponderia, na obra de Freud, ao que Anzieu caracterizou por Eu-pele.
Em 1974 (p.111-115), em seu primeiro artigo sobre Eu-pele, esse autor assinalou
“três funções do Eu-pele”. Uma função de envelope unificador do Self, uma função de
barreira protetora do psiquismo, uma função de filtro das trocas e de inscrição dos primeiros
traços, função possibilitadora da representação. Assim como a pele funciona como
sustentação do esqueleto e dos músculos, o Eu-pele mantém o psiquismo. O Eu-pele como
representação psíquica emerge do jogo entre o corpo da mãe e o corpo da criança junto às
supostas nomeações da mãe frente às sensações e emoções do bebê ali presente.
O envelope sonoro irá redobrar o envelope tátil. Assim como a pele envolve todo
o corpo, o Eu-pele envolve todo o aparelho psíquico, pretensão que parece abusiva, mas
necessária no princípio. O Eu-pele pode ser representado como uma casca e o Id pulsional
como núcleo e, cada um dos dois tendo necessidade um do outro. O Eu-pele só é continente se
houver pulsões para serem contidas e localizadas em fontes corporais, diferenciadas mais
tarde. A pulsão (conceito já mencionado no capítulo anterior, a ser detalhadamente
139

contemplado no capítulo 5) só é sentida como tensão geradora, como força motriz, se ela
encontra limites e pontos específicos de inserção no espaço mental. Ela se mostra e sua
origem deve ser projetada em regiões do corpo dotadas de uma excitabilidade particular. Esta
complementaridade da casca e do núcleo fundamenta o sentido da continuidade do Self.
O interdito primário do tocar transpõe, no plano psíquico, o que o nascimento
biológico promoveu. Há proibição do retorno ao seio materno, retorno este que só poderá vir
sob a forma de fantasia, diferentemente do autista que não cessa de continuar vivendo
psiquicamente no seio materno. Já a interdição apresenta-se de maneira implícita pela mãe
que, paulatinamente vai se distanciando fisicamente de seu bebê dando passagem para dois
corpos, duas peles e o nascimento de um indivíduo. A palavra do outro, quando oportuna,
viva e verdadeira, permite à criança reconstruir seu envelope psíquico continente, e ela o faz
na medida em que as palavras ouvidas criam uma pele simbólica que seja um equivalente, no
plano semântico, dos ecotactilismos originários entre o bebê e seu meio materno e familiar.
(ibid., p. 270)
O corpo é um organismo vivo, reprodutor e perecível. O corpo é uma força que se
dirige para os seres e as coisas que proporcionam seu desenvolvimento, mas é também uma
força se opondo aos seres e às coisas que travam seu desenvolvimento. O corpo são as pulsões
de vida que nos ligam ao mundo, bem como as pulsões de morte que nos separam de tudo que
ameaça nossa integridade; os dois grupos de pulsões, de vida e de morte, trabalham a serviço
da vida. É o corpo pulsional que denominamos corpo real ou corpo sentido. Para Nasio (2009,
p. 122), o corpo é forma, silhueta, o protótipo universal de todos os objetos criados pelo
homem. Nós o denominamos corpo imaginário ou corpo visto. Já o rosto “é o símbolo do
inconsciente, sua vitrine. Nós o denominamos corpo simbólico ou corpo significante”. Como
“organismo, força, forma ou símbolo, o corpo continua sendo o indispensável substrato de
todo sentimento de si”. Na busca do reconhecimento, oferecemos o corpo ao olhar do outro.
Da mesma forma, somos solicitados pelo corpo do outro a reconhecê-lo com nosso olhar. O
corpo é o nosso primeiro universo.

... nas crianças de tenra idade (e nas crianças em crescimento) o que primeiro
notamos foi que elas derivavam seus objetos sexuais de suas experiências de
satisfação. As primeiras satisfações sexuais autoeróticas são experimentadas em
relação com funções vitais que servem à finalidade de autopreservação. Os instintos
sexuais estão, de início, ligados à satisfação dos instintos do ego; somente depois é
que eles se tornam independentes destes, e mesmo então encontramos uma indicação
dessa vinculação original no fato de que os primeiros objetos sexuais de uma criança
são as pessoas que se preocupam com sua alimentação, cuidados e proteção: isto é,
no primeiro caso, sua mãe ou quem quer que a substitua. (FREUD, 1996, p. 94)
140

O narcisismo é a condição da formação do eu, mas, no autoerotismo não há uma


representação do corpo como unidade. O que nele falta é a formação do eu, representação
complexa que o indivíduo faz de si mesmo. Dessa forma, o eu se refere a uma representação
complexa cuja fonte última está nas imagens provenientes das impressões externas. Por isso,
segundo Wajntal (2004, p. 15-20), a mãe se faz presente para o filho, quando é capaz de
oferecer o alívio de tensões, proporcionando-lhe prazer. Ao agir a partir de quaisquer
manifestações do filho, a mãe constrói gradativamente um repertório psíquico que
desencadeará uma organização na vida psíquica do infans
Partindo de sua própria experiência e história, a mãe faz uma suposição das
necessidades do bebê. A voz, cheiro, tato e olhar são percebidos pela criança como a presença
ou ausência da mãe. Essas respostas, dadas em função da suposição materna, são primordiais
à comunicação mãe-bebê no que diz respeito à estruturação psíquica da criança. É
fundamental a presença desse outro, constante e experiente, para que todos esses atributos
marcados, em conforto e desconforto, satisfação e dor, se reúnam como organização de uma
função tida como função materna. Essa função tem como principal característica a mãe servir-
se de mediadora para o bebê na eliminação de suas excitações internas, transformando-as em
marcas que desencadearão uma organização psíquica em torno de um objeto. É desta maneira
que o outro se torna uma alteridade capaz de eliminar a dor. É por meio desses indícios do
próximo, caracterizados pelos cuidados maternos, que se construirá uma identidade entre o
corpo do outro e o próprio. Identidade esta que, posteriormente, permitirá a obtenção da
autonomia.
A percepção do próximo será composta com base na oposição entre os indícios
constantes ou já conhecidos e os que estão por vir. As vivências de satisfação e dor que são
reconhecidas fornecem notícias do próprio corpo. Notícias que, de alguma maneira, se
fizerem como registro das experiências anteriores. Esta percepção mnêmica é a responsável
direta da constituição, a posteriori, do pensamento que levará o sujeito à autonomia. Dessa
forma, o que se representa no psiquismo são os estímulos provindos das sensações dos órgãos
como, por exemplo, fome, frio, dor e outras sensações cujos destinos dependem da mediação
de uma alteridade.
Admite-se que, desde o nascimento, o bebê está submetido a uma construção
marcada tanto por uma herança biológica, quanto por uma história e por uma temporalidade.
Assim, ante uma necessidade, o bebê sente uma excitação, agita-se e chora. A mãe, por sua
vez, apresenta-lhe uma resposta que satisfaz essa necessidade. A ação materna deixará uma
marca mnêmica no sistema nervoso do bebê, uma experiência de satisfação. Há o
141

reconhecimento da mãe nesta função. Mas toda criança é fruto da relação de um casal. A
posição materna está diretamente vinculada com a parceria, condição de nascimento de uma
criança, feita com o pai, quer esta parceria seja desejada ou não. Esse trabalho psíquico
consiste no investimento pulsional do pai em relação ao bebê para conter a loucura materna.
Este trabalho ou função paterna sustenta uma distância entre a mãe e o bebê, necessária ao
surgimento do sujeito psíquico.
O que importa enfatizar neste ponto é que o ego é, antes e acima de tudo, um ego
corporal. O ego se constitui, se constrói. A noção de autoerotismo, por sua vez, designa um
estado original do psiquismo, anterior ao ego e às relações com o objeto, caracterizado pela
consciência de qualquer organização do conjunto pulsional. É imprescindível que algo seja
acrescentado ao autoerotismo para que o narcisismo se dê, ou seja, o investimento libidinal
dos pais no corpo da criança. A consequência desse investimento materno, no corpo do bebê,
o leva da fragmentação à construção de um corpo unificado, narcísico. As pulsões
autoeróticas são primordiais, estão lá desde o início; portanto, algo tem que se acrescentar ao
autoerotismo, uma nova ação psíquica, para que o narcisismo se constitua. O que se
acrescenta ao autoerotismo, para dar forma ao narcisismo, é o eu (Ich).
Entretanto, o eu encontra-se indissoluvelmente entrelaçado ao supereu e ao Id. Os
precursores do supereu podem ser averiguados desde o início da obra de Freud, mas sua
formalização se deu pela primeira vez em O Ego e o Id [1923], a partir da segunda tópica, que
divide o aparelho psíquico em isso (Id), eu (ego) e supereu (superego). Foi a descoberta da
pulsão de morte, no texto Além do Princípio do Prazer [1920], que levou Freud a abandonar a
primeira tópica (consciente, subconsciente, inconsciente) uma vez que esta não daria conta da
complexidade que o aparelho psíquico exige quando se apresenta um mais além do princípio
de prazer. Este traz consigo a pulsão de morte no aparelho psíquico, tema que será explorado
no próximo capítulo, já que este capítulo está dedicado à questão precedente da imagem
corporal na sua constituição do eu e do registro do imaginário, na formulação lacaniana.
Segundo Freud (ibid., p. 36-39, 52), o superego, herdeiro daquilo que mais tarde
se fará Lei em lugar do corpo materno, não é apenas resíduos das escolhas primitivas objetais
do Id, ele também se faz formação reativa energética contra essas escolhas. O que se passa, na
realidade, é que o ideal do ego tem por função reprimir o Complexo de Édipo. Se assim for, o
ideal do ego, herdeiro do complexo de Édipo, constitui paralelamente a “expressão dos mais
poderosos impulsos e das mais importantes vicissitudes libidinais do Id”. Assim, enquanto o
ego é o representante do mundo externo, o superego coloca-se a serviço do Id, o mundo
interno. “O ego é formado, em grande parte, a partir das identificações que tomam o lugar de
142

catexias abandonadas pelo Id”. As percepções internas são responsáveis pela produção de
sensações de processos que se originam no mais profundo estrato do aparelho mental.
Não há como separar a formação do ego e do psiquismo de sua vinculação ao
corpo. Um corpo narcísico que, por ser o alvo investido de libido e erotizado, se constrói a
partir da relação intersubjetiva entre o bebê e sua mãe (ou figuras substitutas). Nasio (2009, p.
19-21) nos diz que a imagem inconsciente do corpo é caracterizada pelo conjunto das
primeiras impressões gravadas no psiquismo infantil através das sensações corporais de um
bebê. Essas sensações foram sentidas pela criança antes mesmo de sua aquisição da palavra e
antes da sua imagem cartografada no espelho.
Uma excelente sistematização da ideia relacional mãe-bebê, constitutiva da
formação do eu, encontra-se na comunicação de Lacan no Congresso Internacional em
Marienbad, no ano de 1936, cujo título leva o nome de Estádio do Espelho, reescritura
lacaniana do narcisismo em Freud e do qual Lacan extraiu o registro do Imaginário.

4.4 A imagem se faz espelho

O que marca a reflexão lacaniana é o fato do infans ser capaz de ver a imagem
unificada de seu próprio corpo e, “por uma identificação a essa imagem, formar um primeiro
esboço do eu (moi)”. Nessa experiência especular, o infans se vê numa totalidade organizada.
“O que importa para Lacan e para a psicanálise não é o fato de uma criança entre os seis e os
dezoito meses de idade ser capaz de perceber uma Gestalt, mas sim que ela faça dessa Gestalt
percebida o correlato identificatório do seu próprio eu” (ROZA, 1990, p. 110).
Assim, a primeira descoberta do infans acontece muito cedo. Entre 6 e 18
meses, o bebê surpreso, alegra-se ao ver seus contornos refletidos no espelho. Fascinado pela
imagem dupla, ou melhor, por seu duplo ali no espelho, a criança sente-se em estado de
júbilo. Ainda que seu sistema nervoso e motor estejam em desenvolvimento, a criança tem a
ilusão de triunfo e domínio sobre o próprio corpo ainda imaturo. Foi esse reconhecimento
lúdico da imagem especular do corpo, ou até mesmo da imagem global percebida pela criança
que Lacan conceitualizou jutamente como Estádio do Espelho, fonte para o entendimento do
que chamou de registro do Imaginário.
A imagem de seu próprio corpo, refletida no espelho, surpreende o lactente, pois
se vê esculpido em uma Gestalt que nada mais é do que uma imagem antecipatória da
coordenação e integridade que não possui naquele momento. “O fato de que sua imagem
143

especular seja assumida, jubilosamente, pelo ser ainda mergulhado na impotência motora e na
dependência da lactância”, em que se encontra aquele pequeno ser, “nesse estágio infans,
parecer-nos-á, portanto, que manifesta, em sua situação exemplar, a matriz simbólica na qual
o Eu (je) se precipita, em uma forma primordial, antes de se objetivar na dialética da
identificação com o outro e antes que a linguagem lhe restitua, no universal, sua função de
sujeito" (LACAN, 1949, p. 87). Isso ocorre porque “a forma total do corpo, graças à qual o
sujeito se adianta, em um espelhismo, à maturação de seu poder, não lhe é dada senão como
Gestalt”. Isto quer dizer que lhe é dada em “uma exterioridade onde, sem dúvida, esta forma é
mais constituinte do que constituída, mas onde, principalmente, tudo lhe aparece em um
relevo de estatura que a coagula e sob uma simetria que a inverte, em oposição à turbulência
de movimentos com que se experimenta a si mesmo, animando-a” (ibid., p. 87-88)
À luz de Lacan, portanto, a constituição do eu, também inseparável do corpo, se
dá na imagem especular. Para ele, “o Outro é aquele que me vê”. Ora, o que temos aí para nos
tornar presentes uns para os outros é o nosso corpo. “Se nos esforçarmos por assumir o
conteúdo da experiência da criança e por reconstituir o sentido desse momento”, diremos que
esse sentido se dá através do movimento de virada da cabeça, quando a criança ali se volta
para o adulto, invocando seu assentimento, e que, ao retornar à imagem, ela parece pedir a
quem a carrega, “e que representa aqui o grande Outro, que ratifique o valor dessa imagem”.
(LACAN, 2005, p. 32, 41, 100)
Essa lógica do olhar, segundo Lacan, tem início quando se dá a maturação da
visão do bebê. O Eu poderá se organizar frente ao olhar do Outro numa imagem totalizante na
fase de maturação visual da criança. O olhar do Outro faz marcas antes desse momento de
captura especular. “Antes de a criança estar apta a capturar, com a visão, qualquer estímulo
visual, ela é capturada por tais estímulos ou pelo olhar do Outro” (ibid.). Essa impressão
primitiva de captura pelo Outro segue na vida adulta e é de fundamental relevância, conforme
será visto oportunamente, para se pensar a questão do corpo em cena, pois não nos faltam aí
situações para marcar essas sensações primitivas, de um continuum de captura pelo Outro.
O protagonista do “Estádio do Espelho” não é o bebê, nem tampouco seu olhar,
mas sim a sua ilustre imagem especular cravada no espelho. Ao brincar com o espelho, a
criança sente-se orgulhosa de existir e dominar uma imagem que ela faz mexer como e no
momento em que quer. Ela deleita-se com a ilusão da onipotência e de domínio da sua
imagem e de seu corpo ali no espelho. Ao brincar com sua silhueta frente ao espelho, o infans,
embora feliz, vive também uma experiência desconcertante. Como podemos afirmar isso?
Quando vemos a criança desviando-se do espelho em busca imediata do olhar acolhedor e
144

cúmplice do adulto que a leva nos braços. Esse gesto de virar a cabeça revela-nos uma relação
triangular e não dual da criança com o espelho. O Outro, marcado pela presença do adulto que
a carrega nos braços, confirma com um sorriso ou outro gesto acolhedor que as duas imagens
refletidas no espelho são de fato as suas. O adulto não é somente cúmplice da alegria da
criança, mas também e, acima de tudo, crucial testemunha da cena.
O que ocorre, contudo, quando se perde de vista o olhar materno? Podemos
pensar a partir de Assoun (1999 apud QUEIROZ, 2007, p. 69-70) que há uma dor nomeada
como “trauma escópico de origem”. Ocorre uma espécie de “terremoto corporal no qual o
infans realiza a vivência da ausência do Outro”. Ele se dá conta da ausência da mãe pelo seu
campo visual, ao mesmo tempo em que falta o seu olhar sobre ele. “Cada um porta no seu
íntimo a marca do Outro Primordial”. Essa é a “marca indelével que institui, na unidade mãe-
bebê, a alteridade. Sob uma dupla ocorrência, a mãe ocupa, para a criança, o lugar do Outro
como tesouro dos significantes, instigadora do gozo”. (QUEIROZ, ibid., p. 75)
Como salienta Lasnik (2013, p. 162, 166), o que ocorre no registro do olhar,
também acontece no registro acústico. Quando a mãe fala com o seu bebê, ele responde com
um som qualquer. Assim, é da mesma ordem do som o olhar que antecipa aquilo que o bebê
ainda não é, ou seja, a unidade que se constitui através do olhar do Outro fundador e, assim
sendo, o que o bebê enxergará mais à frente será “o orgânico aureolado por este investimento
libidinal de que é objeto”. A resposta sonora do bebê é investida falicamente pela mãe, ela
escuta para além de um burburinho.
Como consequência, a vivência especular é, ao mesmo tempo, jubilatória, por
trazer a ilusão de completude, domínio e unidade que a imagem proporciona à criança, ao
mesmo tempo em que é dolorosa, por perceber a não correspondência de tal imagem com a
verdade da criança, visto que continua na dependência desse Outro. Ela se depara aqui com o
drama de confrontar-se com o desejo do Outro em contraposição ao seu próprio desejo. Nessa
“alienação essencial”, assim nomeada por Lacan, o sujeito tem a sua forma num campo fora
de si, mas cuja imagem é aquilo de que consiste o ego. É através do Outro que os limites da
forma vão fazendo corpo, mas se esse Outro se ausenta, no embate entre o sujeito e o espelho,
a imagem não se faz contorno pelas marcas que o olhar do Outro vai tecendo em presença
(QUEIROZ, 2007, p. 68-69). Essa “alienação essencial” de que fala Lacan é de fundamental
relevância para nós, pois, na maior parte das vezes, é essa alienação que a maior parte dos
discursos sobre o corpo deixam de perceber, embrulhados que costumam estar no júbilo
embevecido da ilusão de completude. É justamente esse embrulho que precisamos abrir para
chegar ao real do corpo que o duende nos pede.
145

De todo modo, o modelo constitutivo da criança parte de seu próprio reflexo. Ela
é o seu próprio modelo. Diante dessa imagem-modelo rudimentar de si, surge o Eu imaginário
e o Eu simbólico. Atravessada por esta imagem, a criança sente que ela é nos outros e que os
outros, por sua vez, são nela. Por isso, Nasio afirma que somos alienados em relação à nossa
imagem e ao nosso semelhante. Nossa imagem confunde-se com a do nosso semelhante.
Porém a grande questão é que, para sermos nós mesmos, somos obrigados a desvincular nossa
imagem da imagem do nosso semelhante. É desta trama que somos constituídos. Sem isso não
podemos dizer eu. É somente diante do semelhante que nos tranquilizamos, ao nos ver
humanos como ele, mas, ao mesmo tempo, a distância dele constitui o eu. Então, é sempre
dele que depende a nossa constituição? É condição sine qua non, a presença e, a posteriori, a
distância do Outro na constituição do que entendemos como eu?
A resposta pode ser encontrada se considerarmos o estádio do espelho como um
jogo entre o ver e ser visto. “Há o olhar do Outro que atesta a visão da criança e há o olhar
como objeto. A criança se volta para encontrar no olhar da mãe a confirmação do que ele
viu”. Se ficássemos na confirmação do olhar materno da imagem da criança frente ao espelho,
a coisa seria mais fácil, pois bastaria um olhar gratificado para dizer da criança a sua imagem.
Ocorre que, quando a criança olha para a mãe, pedindo a confirmação do seu reconhecimento
frente à sua imagem que se desenha no espelho, ela busca paralelamente se ver através do
ponto de vista do Outro, ou seja, ela interroga no olhar do Outro, o que esse Outro quer ver.
“O que eu vejo no espelho é o que tu desejas contemplar?” (QUEIROZ, 2007, p. 68-69).
Sim, pois o eu existe em nós e fora de nós, antes de tudo no espelho e no nosso
semelhante, pulsando dentro e fora. Essa concepção de um eu-extensão para além do
indivíduo é o outro lado da noção de eu-pele discutido por Anzieu, limitada ao indivíduo. O
eu-dentro direciona-se à imagem de nossas sensações internas, e o eu externo volta-se à
imagem especular refletida numa superfície ou sugerida pelos contornos de um outro. Por isso
mesmo, o eu não está somente em nós, mas também internalizado naqueles que amamos ou
odiamos. “É possível admitir que o substrato de nosso eu seja feito de uma profusão de
imagens corporais internas e externas, impressas ao longo de toda a nossa existência,
justapostas, superpostas e tão bem imbricadas que não saberemos dizer onde começa uma e
onde termina a outra”. (NASIO, 2009, p. 107)
Como arremate, resta neste ponto considerar que Lacan desenvolveu os conceitos
de Imaginário, Simbólico e Real. Esses três conceitos devem ser tidos como inseparáveis,
formando uma estrutura. Assim, o corpo pode ser estudado através de três pontos de vista
complementares, sendo eles: o Imaginário, como a imagem do corpo próprio a partir do outro
146

que marca a constituição subjetiva e, assim, a imagem assumida pelo sujeito; o Simbólico
como o corpo que é marcado pelo significante, levando a articulação entre a fala, a
linguagem, o corpo; o Real como energia psíquica da qual o corpo orgânico seria como uma
caixa de ressonância (CUKIERT, 2000, p. 110).

4.5 desejo e a falta

A partir desse ponto, a narrativa ficcional que vamos desenrolando internamente


nos vai colocando em certos lugares frente ao desejo do Outro. Mas por quê? Porque qualquer
resposta será sempre um desmentido da realidade do desejo do Outro, haja vista a
impossibilidade de acesso completo ao conhecimento do Outro, tampouco saber qual lugar ele
nos reserva ou qual o nosso lugar em seu desejo, a não ser supondo. “Dessa divisão, desse
duplo, dessa ilusão decorre um sujeito dividido” (ibid.). Essa divisão, para Lacan, também
está do lado do Outro, o outro minúsculo e o Outro maiúsculo. O outro minúsculo é aquele
que penso conhecer, pois o vejo como um semelhante, um outro de carne no jogo especular. O
Outro maiúsculo é aquele que tentamos interrogar, vermo-nos a partir do seu ponto de vista,
ou seja, impossível de circunscrever, determinar. Não há no campo do Outro, nem do sujeito e
nem de qualquer relação que aqui se possa pensar, um traço ou um significante que dê conta
do ser, a falta é sinônimo de inscrição. Para todo o ser da linguagem, a falta celebra inscrição.
Ao final da odisséia, no percurso da narrativa, que se faz em vida, é o objeto em relação ao
qual, no princípio do prazer, nos colocamos atrás, ou passamos a circular.
Conforme foi discutido acima acerca dos trilhamentos em Freud, o que o traço
carrega é, na verdade, o suposto encontro com o objeto. É através do objeto que ele surge, e
há algo do objeto que o traço retém. Essa falha original na identificação ao traço acarreta esse
sempre desencontro inaugural na constituição do sujeito. Assim, vamos incansavelmente
repetindo as trilhas, como um cão farejador a fim de restaurar o encontro mítico, numa
tentativa de síntese do eu, esse eu des-ser, um faltoso, por fundamento. Por isso, o ideal,
justamente por propor uma forma ideal, e assim, imaginária, de totalidade, é “produto da
apreensão direta da imagem no espelho que corresponde ao ‘eu ideal’, ou seja, à imagem ideal
de si mesmo, enquanto a outra forma, ‘o ideal do eu’, dependerá do olhar do Outro, uma
imagem que se formará para além do espelho”. Essa operação imaginária tem os seus efeitos
simbólicos, pois, ao confirmar a imagem do filho no espelho, essa mãe lhe diz, ao mesmo
147

tempo, que o lugar dessa criança está inscrita numa genealogia. “Através do discurso sem
palavras, encenado pelo olhar, a criança acessa a palavra” (QUEIROZ, 2007, p. 69).
Assim, o Outro é vivido numa alternância de Outro onipotente e de Outro faltante.
A criança passa a viver dessa dupla na relação maternal junto à falta em relação ao Outro, ou
seja, a vivência infantil da falta (na) mãe e a falta (da) mãe. A separação do corpo da mãe
estabelece um vácuo entre a mãe, como corpo, continente, como afirmou Anzieu (1989), e a
mãe como Outro, produzindo com isso uma demanda de reencontrar, incessantemente aquele
continente que fora perdido pela/na separação materna. “Se ao nascer, ele perde a intimidade
do corpo materno, em contrapartida, ganha o olhar – olhar do Outro Primordial”. (ibid., p. 76,
77)
Ora, em algum momento, há que se interromper esse engodo materno. Segundo
Lasnik (2011, p. 103), para Lacan, a criança buscará apreender o desejo da mãe o que em
certa medida, pressupõe que essa mãe “esteja em busca de um desejo que ela possa significar
à criança como se desenhasse um lugar fálico primitivo”. O problema para a criança, que
busca perceber o desejo da mãe, reside justamente no fato de ser ou não desejada, isto é,
“poder vir ocupar o lugar do falo no desejo da mãe”. Mas, para essa questão se colocar, é
preciso também, pelo menos nas representações da mãe, “que a função do pai seja
reconhecida de modo que ele possa privá-la de seu filho. Essa privação constitui um primeiro
pedaço retirado no Outro materno”. No segundo tempo do Édipo, a função paterna se
apresenta como proibidor. “É com a fala uma vez que é ela que suporta a lei com que a
criança está às voltas”. No terceiro tempo da função, é necessário que haja, efetivamente, um
pai potente. O que se quer dizer com pai potente? Aquele capaz de satisfazer a mãe, visto que
é, por essa instância paterna, que a criança vai se identificar enquanto ideal do eu, àquele para
além da imagem no espelho.
Por isso, a rigor, o desejo não tem objeto. O desejo é marcado por uma busca
constante por algo a mais. O desejo deseja continuar desejando. Ele tem uma causa e não um
objeto. O que causa o desejo (objeto a) na criança é o desejo do Outro. “O objeto a é o resto
desse processo de constituição de um objeto, os restos que escapam ao domínio da
simbolização. Ele é o resto da perdida hipotética unidade mãe-criança”. (FINK, 1998, p. 120)
O desejo indecifrável no desejo do Outro funcionará como causa do desejo da
criança. Ora, a criança almeja ser o único e irrestrito objeto de afeto da mãe, mas o desejo
materno está além da criança. “Há algo sobre o desejo da mãe que escapa à criança, que está
além do controle desta”. A independência do desejo da mãe em relação ao desejo da criança
cria um corte entre elas, “uma lacuna, na qual o desejo da mãe, incompreensível para a
148

criança, funciona de uma maneira singular” (ibid.). O corte que se faz entre o desejo da mãe e
da criança leva ao surgimento do objeto a. “O objeto a pode ser compreendido como o resto
produzido quando a “unidade hipotética se rompe”, como último resquício da unidade, último
resto dessa união”. E quanto mais o sujeito se apega a esse resto na ilusão de uma totalidade,
mais ignora a sua divisão, ou seja, o corte que deve se operar. Esse apego é o que podemos
chamar de fantasia. O modo como vamos desejar está vinculado justamente a esse resto, ao
objeto a, mais precisamente à forma como gostaríamos de estar “posicionados com relação ao
desejo do outro” (ibid., p. 82-83).
Segundo Rivera (2005, p. 41-42), a Coisa, que está irremediavelmente perdida e a
busca em reencontrá-la, não cessa de se repetir, encontra-se encarnada no primeiro outro, a
mãe. “A nostalgia deste “objeto absoluto” guiará toda a atividade desejante do sujeito”, em
torno de frágeis simulacros desse objeto, que é ele próprio sem representação. Dessa maneira,
o que está em ação nessa empreitada, é reencontrar a Coisa, mesmo “cientes” da
impossibilidade radical desse re-encontro.
Na realidade, os objetos só se desligam e se separam do corpo ao preço da ação da
fala, ao preço do simbólico. Demandar do Outro equivale a dizer que a demanda erra o seu
objeto, possibilitando transformar o objeto real (seio) numa abstração mental (imagem
alucinada). Assim, o seio demandado, por intermédio da fala, converte-se em seio alucinado
do desejo. E o que nos mobiliza é a miragem dessa imagem que nos faz crer que, em algum
lugar, esse objeto será reencontrado no conforto do colo materno. A fala rasga o seio orgânico
rumo à viagem ao seio psíquico. “O seio que se separa do corpo da mãe e da boca do lactante
é transformado num seio psíquico, é o seio que aparece como imagem na alucinação de uma
criança satisfeita, no tocante a sua fome, mas insatisfeita no tocante a sua demanda”. O objeto
a assume a forma do seio alucinado, “reconhecemos seu estatuto de objeto do desejo, mas,
estritamente falando, em termos profundos, o objeto a não é o seio alucinado”. (NASIO, 1993
p. 104-105)
Portanto, é a linguagem que se responsabiliza por proteger a criança de uma
relação dual bastante perigosa, ao substituir o desejo materno por um nome (Nome-do Pai),
ou seja, o desejo da mãe é pelo pai. Nomeia-se o Outro do desejo materno o que tira a criança
da possibilidade de ser devorada por essa mãe. A língua materna, essa falada pela mãe, é a
língua da pele, de tudo o que é relativo ao corpo: numa palavra, do gozo. Lacan pontuará
alíngua, para firmar o quanto o inconsciente se manifesta numa língua. Alíngua é parte que se
mama, é a parte materna e gozosa da língua. Intimamente ligada ao corpo, Alíngua é cheia de
sentido (ibid., p. 54-55).
149

Somos falados, marcados por um Outro que sempre tem algo a dizer de nós, seja
por meio de seus desejos, frustrações, seja por seus anseios pessoais. “Esclareço a propósito
que, quando escreve o Outro com A maiúsculo (de Autre), como notou Lacan, convém
entender ao mesmo tempo a presença interiorizada de todos aqueles que foram, são ou serão
meus eleitos, bem como, mais globalmente, a influência social, econômica e cultural do
mundo em que vivo” (ibid., p. 61).
O ritornello3 do corpo especular e do eu pode ir nos conduzindo para a conclusão
deste capítulo, o eu que pode ser considerado como composto por duas imagens de naturezas
distintas, mas indissociáveis em sua constituição, sendo, portanto, a imagem mental de nossas
sensações corporais e a imagem especular da aparência refletida no espelho de nosso corpo.
Quando afirmamos que o eu é subjetivo, isto se dá porque obtém seu fundamento se e
somente se vivido de nossas imagens corporais. Ele é um conjunto de imagens de nós, quase
sempre contraditórias e mutáveis. Nunca falamos de um eu puro, mas sim como resultado de
uma interpretação pessoal e afetiva do que sentimos e do que vemos do nosso corpo. Essas
imagens sejam elas as das nossas sensações ou da nossa aparência serão sempre alimentadas
pelo amor e pelo ódio que sentimos de nós mesmos. Por isso, muitas vezes temos imagens
distorcidas de nosso eu afetivo e volúvel.
Na verdade, nunca sabemos e jamais saberemos sentir ou ver nosso corpo tal qual
ele é, mas sempre escravos de como pretendemos ou tememos que ele seja. A percepção que
temos de nós e do mundo é sempre modificada porque é fortemente influenciada pelos nossos
sentimentos primários, digamos assim de amor e ódio conscientes ou inconscientes. Essa
percepção deforma-se na medida em que as emoções infantis vão ressurgindo junto à presença
do Outro. “Concluímos, então, que muita gente vive, ama, sofre e morre sem saber que um
véu sempre deformou a realidade dos seus laços afetivos” (NASIO, 2007, p. 9-10). As nossas
fantasias existem graças aos nossos desejos que nos agitam. A fantasia pode ser vista como
“teatro mental catártico que encena a satisfação do desejo e descarrega sua tensão”. Ela
sempre encenará a satisfação de um desejo imperioso, e assim, incestuoso, que não pode ser
saciado na realidade. A fantasia nos serve no sentido de substituir uma satisfação real

3
Ritornello se refere ao verso ou versos que se repetem no fim de cada estrofe de uma composição. Significa
também prelúdio musical que se repete no decurso de uma composição. Seu sentido figurado é o de algo que se
repete muito. Essa palavra ritornello era bastante cara a Gilles Deleuze dada a grande atenção que esse filósofo
dava ao fenômeno da repetição e da diferença. É justamente essa dupla da repetição e da diferença que
enfrentamos quando se trata da transmissão do sabe psicanalítico cujos conceitos formam uma rede tramada, sem
que uma ordem linear possa ser estabelecida. Daí os retornos dos conceitos sob uma nova entonação e em uma
distinta articulação. Além disso, o caminho pulsional, que pretendemos percorrer no capítulo 5, tem tudo a ver
com o ritornello, assim como tem a ver com as repetições, sem as quais o flamenco não se faz.
150

impossível, por outra possível, no cenário psíquico. O que organiza a estrutura fantasística?
Poderíamos dizer que é a identificação do sujeito transformado em objeto. Ora, e mais,
“somos, na fantasia, aquilo que perdemos” (ibid., p. 37-38). Se aqui estamos delineando o
percurso daquilo que perdemos, vamos então, como resposta a isso, construindo a fantasia,
um anteparo, um véu, um corpo. A fantasia é resultante das operações psíquicas até aqui
exploradas. A fantasia entra em cena fixando o sujeito em certos fragmentos sobreinvestidos
do corpo.

Aí está o limiar, a condição mínima para que uma fantasia se instaure: que o sujeito
tome este ou aquele significante vindo do Outro com se lhe fosse destinado, isto é,
como signo. No nosso caso, o sujeito assume uma imagem significante para o signo.
Investir uma imagem significa supor-lhe uma destinação sem perceber que somos
corporalmente concernidos pelos efeitos que ela produz no real do nosso corpo. É
esse poder de provocar efeitos no real que outorga valor significante à imagem. Há
fantasia quando a imagem significa alguma coisa para o sujeito; nesse caso a
imagem é um signo; e, quando a imagem leva o sujeito à ação, a imagem é
significante. (ibid., p. 82)

Para se constituir, o humano deve servir-se como objeto do olhar do Outro capaz
de desenvolver um lugar no campo deste Outro. O reconhecimento deste Outro, a partir do
olhar que captura e nomeia, permite o acesso ao universo simbólico. Atravessados pelo Outro,
aprendemos a nos reconhecer. Então, o desejo assim como o corpo, ambos não são
inicialmente vividos como nossos, mas projetados e alienados no Outro. A criança é
inicialmente o desejo da mãe. O que vemos nessa relação é um desejo alienado no desejo do
outro. A saída da alienação se dá pela entrada do Simbólico, ou seja, a possibilidade de um
sujeito do próprio desejo, ali onde antes habitava apenas o desejo materno.
Ora, admitimos que a dinâmica alienação-separação percorre nossos caminhos no
decorrer da vida. É através dessa dinâmica que vamos aprendendo a lidar, manejar, guiar a
entrada de um e saída de outro e vice-versa. Na alienação, o Outro toma o lugar de sujeito, na
separação, “o objeto a enquanto desejo do Outro toma a frente e tem precedência sobre o
sujeito ou assujeita”. Na travessia da fantasia, abre-se a possibilidade de o sujeito ser capaz de
subjetivar a causa de sua existência, numa entrega ao que tange o desejo sem um objeto.
(FINK, 1998, p. 93)
A ausência não se veste de pura ausência, mas de um momento de contínua
sucessão de presenças-ausências, libertando o sujeito de um discurso que insiste em mantê-lo
refém de uma história que se tornará sua. O brincar é possibilitador de criação de litorais,
como lembra Anzieu (1989), como constituintes do sujeito. Criar (do latim creare) diz sobre
produzir uma coisa, que até então não existia, e que aqui tomamos como o nosso litoral. Ora,
151

pelo brincar, a condição de se tornar autor(a) dos atos criativos desdobra-se num saber-fazer-
se, o que implica retomar o Fort-Da nessa nova perspectiva.
Quando transpomos o saber-fazer-se para a encenação, há que se salientar algo
fundamental: o lugar do olhar. Nesse jogo de esconde-esconde, algo não se deixa alcançar
pelo olhar. Se pensarmos numa elaboração do simbólico, pode-se compreender que o carretel
é objeto visual no momento em que desaparece e se constitui visualmente na mente. “Seu
desaparecimento físico instala a imagem dentro de nós. O nosso próprio ato de ver não nos é
dado a ver, nem o modo como somos vistos por outros. Ou seja, não podemos ver como
somos olhados”, nos diz Noronha (2007, p. 72). O que vemos não é exatamente o que nos
olha. Ora, desde a nossa tenra idade somos olhados, constituídos subjetivamente por uma
exterioridade que nos olha, liga e afeta através do olhar do outro. Ao nos colocarmos em cena,
num ato de representação, estamos frente a um jogo que nos ensina a nossa condenação a
sermos objeto do olhar do outro. Nossa imagem é marcada por um olhar, que vai
cartografando uma forma ideal. Nosso eterno sonho do domínio. Porém, “essa imortalidade
sonhada e ligada a uma forma, o eu ideal, tenta sustentar uma unidade que não há”
(FRANÇA, 1997, p. 133).
Afinal, conforme foi afirmado por Noronha (ibid., p. 73), “somos constituídos
enquanto corpo e enquanto forma através do olhar e da imagem, do olhar do outro (do que nos
olha) e da imagem espelhada (quando nos olhamos no espelho e, inicialmente, nos
imaginamos um outro dentro do espelho”. É justamente nessa imagem que traçamos a
idealização que nos acompanhará e por meio da qual “resistimos ao corpo real, acessível
através da alucinação, da dor, do sofrimento, do êxtase físico”. Por isso, “somos um outro, um
outro no espelho e um outro aos olhos dos outros. E, nessa fixação emblemática, buscamos
uma eternização na imagem. Buscamos o emblema que sempre revigorará o objeto perdido
que somos e que apenas encontramos na esquina imaginária”.
Em função disso é que, para França (ibid.), a angústia produzida tanto na criação
artística, como no desfiladeiro dos significantes, este que tenta seu sentido no processo
analítico, se dá pela não garantia a partir de seus efeitos, mas pela produção de novos outros.
O seu efeito é causado pelos tropeços no real, numa origem desconhecida.

Aparentemente, durante o processo de constituição narcísica, após o momento do


narcisismo primário, que se põe o problema de pôr algo em cena, algo no lugar de,
como representando algo para alguém. É nesse momento que saímos em busca dos
objetos exteriores e temos de suportar as tensões (pulsionais). Jogado nesse espaço
indefinível, debatendo-se nos encontros com o real, o sujeito é submetido a novos
aspectos e a novas exigências da pulsão que, em seus movimentos constantes,
152

permite promover o surgimento da representação criadora. Cada momento da


criação desvela, assim, sua condição traumática. (NORONHA, 2007, p. 70)

Será que aqui já não se poderia pensar acerca da fantasia como a mediadora
responsável nas trombadas do sujeito com o Real? Afinal, ela funciona como uma defesa
contra o Real. A fantasia como uma tela capaz de dissimular esse temido encontro, momento
intolerável que precisa ser mascarado. Mascarar o que? A castração, a falta primordial,
constitutiva. E aqui nos vem uma questão. Por que a falta é tão desagregadora na vida
cotidiana e faz tanto sentido no universo teórico? Ora, ainda que a castração nos venha
representada como um corte, sendo justamente próprio ao objeto de satisfação faltar, é que a
criança pode vir a se tornar um sujeito desejante. Se a mãe estivesse sempre lá, não haveria o
movimento inaugural da demanda. A fantasia funciona como uma matriz simbólica-
imaginária que permite ao sujeito fazer frente ao Real do gozo, tema que nos encaminha
necessariamente para a pulsão de morte a ser discutida no próximo capítulo.
A preocupação deste capítulo foi a de acionar os grandes eixos conceituais
concernentes à natureza inalienavelmente corporal do eu tanto em Freud quanto na imagem
especular de Lacan, imagem capturada no espelho do olhar do Outro e no desejo como falta
constitutiva. A incursão justifica-se porque estamos buscando fazer juz à radicalidade do texto
de Lorca, uma radicalidade que não pode ser minimizada em visões meramente imaginárias
do corpo, aliás, importante, mas nunca suficientes especialmente quando o corpo se vê apenas
traduzido em uma coleção de metáforas encobridoras. O que buscamos é aquilo que se
instaura no real do corpo. Entretanto, o que foi aqui apresentado são conceitos indispensáveis,
mas apenas introdutórios para a pretendida aproximação do real. Este ainda implica mais um
avanço a ser realizado no próximo capítulo.
IV

Em cena, a completude ensaia se instalar. Nesta escrita, diário que se faz público,
as confissões me levam a dizer e des-dizer a todo instante aquilo que, há instantes, me
nomeava. Cansada de me remontar frente ao espelho, não mais me reconheço nesse corpo e,
por isso, resisto. Quero sim conforto, um pouco de berço na armadilha narcísica. Com
calma, a analista vai impondo o real na costura imaginária. Breca esse estado idílico, na
completude de pequenas doses, pouco a pouco, no recurso do véu. Na análise, a coisa se
passa quando a fala tem o poder de atar o significante ao significado. A voz como resto dessa
operação. Libertado o dizer de suas amarras, novos enlaçamentos transformam a inércia do
gozo em plasticidade do desejo --- timidez metonímica. O complicado, de fato, é dar sentido
ao corpo para além da mecânica, um corpo que se desdenha na permissão. Um corpo que se
des-Ata em nós na demanda do duende: a carne se faz Real em cena.

Um cansaço me chega. Não sei se o encosto à satisfação enquanto a tolerância à


insatisfação é enorme. Um corpo que começa a pedir desistência. Tão cansada. O trabalho
me parece sempre tão longe de mim. No fazer me perco no que já fiz. Não sei se vem como
atuação, mas a dor da angústia que vai se aproximando é tão arrebatadora. Um enlace à
satisfação sempre me chega como terror. Te procuro, me movo em ti, mas quando nos
aproximamos é o terror que vejo. Exausta, insisto nisso. E conforme insisto, desisto. Há um
desejo que segue, e o outro que paralisa. E nesse meio do caminho, a sombra do
desconhecido deixa o rastro da suspensão e, com isso, da dor. E o verdadeiro significado da
atuação se revela. Única saída para uma dor tão espaçosa. E dessa saída me vejo no único
não-lugar possível para me equilibrar novamente. Segurar-se onde a escolha não venha à
frente. Dar voltas na dor. De um lugar, a técnica, do outro, a presença. Um corpo que se
revela quando o sujeito ainda não sabe o que é esse corpo. Olhar do outro que não é mais
constituidor da nossa própria ficção. Corpo esvaziado. Corpo que debocha. Corpo que agora
pede um lugar para se contar. Preciso encontrar um lugar para ele.
E o fantasma se achegou. Que dor. Dor corporal. Qual o lugar da
suportabilidade disso tudo? Preciso olhar mesmo para esse fantasma? Dissolver fantasias?
Para quê? Questiono-me. Como lidar com novas, tão antigas imagens? Será que as novas
formações me trarão alguma garantia de uma melhora, em termos de sintoma? Deixar que o
racional pare para que o corpo tome a rédea? Uma alternativa. Sempre pelos rastros dos
retalhos, fiz busca. Fisgada pelo dissabor da impossibilidade de atuar. No novelo, não cabe
mais uma história reportada ao corpo sempre do e no mesmo lugar. A repetição beira o
insuportável. Sujeito cansado se faz queixa. O corpo retorna, regride e resiste numa posição
que sempre cai no mesmo ponto. Algo novo pede inscrição, o anterior não abre brechas. Na
mão dupla, no aguente flamenco e na suspensão em análise. Meu corpo pede linha. Meu
corpo grita história... a antiga, lá onde a nova põe em repouso sua ação. Solidão por não
saber me dizer num discurso outro que nada mais me diz sobre mim. Como me fazer corpo-
história? Na atuação, perco o processo, em atuação, reescrevo o meu lugar. E nas outras
histórias, alimento a minha calmaria. Não vou iniciar a saga do meu próprio conto. Um
pouco de antagonismo para que a história não me sufoque.

Na minha trajetória na dança, desde o balé clássico até o flamenco, facilmente


escorreguei em situações em aula nas quais me deixei levar pela premissa de que a estética
corporal seria capaz de trazer a imagem no espelho de um corpo perfeito. A ideia de um
corpo perfeito surge de quem e a partir do quê? Quando comecei a me fazer essas perguntas,
da minha posição subjetiva de um sujeito desejante de linhas e contornos ditados pelo meu
desejo de imagem ideal, a angústia se aproximou sem entender para quem se devia essa
construção.

Ora, há que conter a captura da imagem do Ideal do eu refletida no espelho pelo


olhar do maestro. É sempre gratificante ver exatamente o nosso corpo moldado ali na
silhueta que nos devolve o espelho a partir do desejo do Outro. O lugar da contenção da
angústia se dissolve em prol do desejo do outro e, portanto, na impossibilidade de novas
formas e estilos corporais. O que o Outro quer de mim? Essa pergunta perfaz a história de
um corpo que se ergue e se re-constrói.
Há algum tempo, não consigo mais depositar meu olhar sobre este diário de
bordo. O corpo cansado não fala mais de si. Cansado entre a dança e a escrita, não se
localiza em nenhuma das duas atmosferas. Um corpo que se refez tanto, e de tanto se
recontar numa emergente angústia do dar-se, na medida que cresce, renuncia-se. Como
numa sessão analítica, a cada ganância da palavra, um momento de pausa. Um momento que
resiste na palavra. Nada mais antagônico ao corpo. A cada saída da acomodação, uma
entrada à desistência. Se o corpo não se coloca em seu lugar, a dispersão invade. A luta
finaliza. É uma decisão. Assim como a palavra. Onde colocá-los? Um na cena, outro no
setting. Um acompanha o outro. Um é causa do outro.

Pela composição da escrita, o corpo se altera, sem manuscritos. Pensei que seria
um tempo mais extenso, mas, no embate do corpo e a sua retórica, o esboço das palavras
tenta deslocar-se. Como finalizar essa fábula sem me colocar naquilo que me propus a fazer -
- corpo? Retornei. Nesse repetitivo corpo arredio. Insiste, imperiosamente na gratidão em
não se fazer. Trapaceia. Como um grato inimigo na voz de um soldado impiedoso. Na forma
de um grande acting out, uma acrobacia sem salto, arrastada na escrita pela cena. Fatigando
na reserva da dor, a luta se faz impotente. Violando os seus direitos, o corpo se des- diz
novamente. Cansada, deito-me no olhar do outro que desvia e grita calado no seu dizer. Aí
está. Sem pretensões no comando, aquele que sabe sobre o seu corpo, oferta-se.

Repito-me para não perder as palavras que me vêm ao encontro. Encontro entre
este corpo escritura e o corpo em movimento que se narra-ação. Escritura do corpo numa
forçada lição de trazer o que do intransponível morre no ato de se tentar dizer. Insisto nesse
lugar onde o espaço se solidifica abismo.

Ao retomar a escrita, novamente, a mesma ladainha. Cansada, leitor. Certamente


você não está sozinho nessa empreitada do mesmo. O clímax não se recolhe. Imagine que a
escrita, que me faço, repete sim, à maneira das infindáveis sessões de análise. A cada
mergulho, se mais profundo, um descanso interminável no qual a repetição se faz eco, pobre,
gloriosamente eco. Num grande sacrifício, exibe um sorriso. E esse Outro? O que me espera
nesse outro. É para esse Outro que reservo um esboço da trilha de um novo caminho. Não
quero me acomodar no círculo que se conta nesse vai e vem, mas o corpo não me oferece o
novo, quando muito, uma sensação.

Outro que me faz crer na reserva da completude. Que me alia à cena, contesta e,
nesse movimento, me faz cair --me levanta. Nessa ciranda infantil, algo de muito peculiar se
mostra. Um sujeito desafiado a assumir um lugar sem se colocar à prova de objeto do outro.
Quero me fazer sujeito. A-brigo-me objeto.

Ora, mas não sejamos injustos. Esse Outro me ajuda a mapear aquilo que do meu
corpo escapa. É nesse olhar que o meu corpo é capaz de se re-desenhar. Nas dores, na
tensão, ... o olhar dita o seu dissolver. E nesse dissolver vou me fazendo o outro. Um outro
que dispensa a capa das identificações que me ditam, e eu, entre a falta de graça e a
vergonha, descanso no receio, aceito e depois me arrependo do momento perdido. Por que
não se arriscar em um não lugar outro? Momento que vai se finalizando em um misto de
alívio e dor. Esse meu outro parte e me deixa um vazio. Momento de instalação. Sem rodeios,
me faço circular.

E o persistir-corpo volta a resistir. Costura dolorosa. E quanto mais se exalta,


menos se coloca. Um desejo de brecar e não mais recomeçar. O ditado da cartografia de um
corpo que se diz na negativa. Uma rota repetitiva. Cansada da palavra que simula a silhueta
que demarca. E no andar de uma escritura que se esgota, porque não me debruçar sobre
aquele tempo fugidio, tempo de um respiro, tempo do impasse, tempo da decisão? Nesse meu
tempo...
158

CAPÍTULO 5
FRENTE A FRENTE COM O REAL

5.1 Pulsão vs instinto: a distinção se fez verbo

A discussão realizada no capítulo 4 fica ainda mais complexa quando


avançamos para o conceito psicanalítico da pulsão, imprescindível para penetrarmos no Real.
Faria (2003, p. 31) afirma que este é o conceito que melhor define a compreensão freudiana
de sexualidade. Nos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” ([1905], 1997), Freud define
a pulsão como representante psíquico de uma fonte contínua de excitação em contraste com
um estímulo vindo de fora. Assim, pode-se dizer que o conceito de pulsão se situa na fronteira
entre o psíquico e o físico. Apenas para apresentar brevemente, tendo em conta que serão
esmiuçadas mais abaixo, são quatro as características da pulsão: possui uma fonte somática;
exerce uma pressão no interior do organismo; sua finalidade é a descarga de tensão oriunda da
excitação somática; seu objeto é qualquer um que possa promover a diminuição de tensão
pulsional no interior do organismo. Uma vez que as manifestações pulsionais ligam-se às
experiências de satisfação, o campo pulsional se ordenará, inicialmente, em torno da boca
como órgão de excitação e de satisfação (devido à importância da amamentação no contato
inicial com a mãe). Em seguida, em torno do ânus (quando começa a adquirir importância à
obtenção do controle esfincteriano) e por fim nos genitais, com as primeiras manifestações da
masturbação infantil.
A forma mais primitiva tida na relação da pulsão com os seus representantes é a
fixação, nomeada por Freud de recalcamento originário. A fixação é a responsável pelo
primeiro contorno referente aos lugares psíquicos, atribuídos por Freud, na sua primeira
tópica, como inconsciente, pré-consciente e consciente. “A fixação à qual estamos nos
referindo é, pois, a fixação da pulsão em seus representantes psíquicos, e que é correlativa da
fixação da excitação nestes representantes”. Através dos representantes da pulsão, sua
presentificação se faz no psiquismo, delimitando, as suas instâncias, paralelamente, pela via
do recalcamento primário. (ibid., p. 49)
Quando se fala em pulsão, tende-se a pensá-la como sinônimo de instinto, o que
não é correto, pois a psicanálise nos coloca, desde sempre, no lugar da linguagem. É
substancial que essa distinção seja feita, especialmente no campo dos estudos referentes às
artes do corpo, em que o instinto costuma ser tomado como via para o exclusivo refúgio no
159

imaginário do corpo, ou seja, a tida e repetida “inspiração do artista “como a única saída
encontrada para a sempre encoberta fuga pulsional. Como se a criação artística fosse sede do
instinto ao qual a linguagem não chega, como se fôssemos apenas animais, só corpos
desprovidos de fala e, portanto, alheios à falta de que somos constituídos. Em Freud (1996, p.
124), ao contrário, a relação da pulsão Trieb com o instinto (Instinkt) é descrita pelo termo
apoio. A pulsão se apoia no instinto não para confundir-se com ele, mas para desviar-se dele.
Aliás, a pulsão pode ser tida como a perversão do instinto, ao desnaturalizá-lo, na medida em
que ela se desvia de seu objetivo natural que é o da autoconservação. A pulsão só se faz
presente através de seus representantes psíquicos: a ideia e o afeto. Mas “a pulsão jamais atua
como uma força que imprime um impacto momentâneo, ao contrário, sempre como um
impacto constante. Além disso, visto que o impacto incide não a partir de fora, mas de dentro
do organismo, não há como fugir dele”.
Segundo Roza (1990, p. 13-15), o conceito de pulsão pode ser compreendido nas
relações entre o corpo e os objetos do mundo, pois a fonte da pulsão é o corpo. Referida à
linguagem, a pulsão ocupa uma região de silêncio. Está além. “Refere-se ao corpo, mas não é
corpo em si, sendo ainda corpo; ao mesmo tempo em que está além da linguagem, mas a
pressupõe. Conceito-limite, a pulsão nos ameaça com o silêncio teórico”. (ibid., 1986, p. 9)

Só a partir de algo que poderia estar inscrito de um modo permanente e indelével,


(isto é, como linguagem) é que foi possível originar-se uma nova ordem de ser,
diferenciada daquela na qual as demais criaturas se movem no interior de seu
ambiente, de como lidam com tudo aquilo que as cerca. É na medida mesma que
este modelo “natural” é subvertido que algo “falha” no humano, que esta brecha abre
espaço para uma diferenciação do mundo orgânico no qual tudo parece ajustar- se.
Mas é esta falha a abertura paradoxal na qual a existência torna-se possível.
(FABRINNI, 1996, p. 46)

É necessário admitirmos, segundo Roza (1986, p. 14), ainda que de forma


provisória, nesse primeiro momento, “a ficção de um mundo natural”, ou seja, “de um mundo
composto de corpos materiais e ordenado segundo leis que lhe são imanentes, mundo este
totalmente independente da linguagem”. “Ficção” não significa aqui negar sua existência, mas
“manter presente em nossas mentes que um tal mundo jamais é ‘dado’. Outro pressuposto
necessário para que possamos adotar a estratégia proposta é o de que o discurso possa ser
tomado como o lugar neutro a partir do qual a ordem do mundo será enunciada”. Por isso,
Roza (ibid., p. 13) dirá que o corpo pulsional é de outra ordem. “Não é representável”, não é
interceptado pela linguagem e não se faz sentido. O corpo pulsional distingue-se do corpo
simbólico e do corpo biológico. Mas não é pelo simbólico que falamos de uma pulsão como
160

algo distinto do natural biológico? “Se abandonamos a referência à linguagem, não há como
distinguir a pulsão (Trieb) do instinto (Instinkt)”. Mesmo sendo efeito de uma in-habitação da
linguagem, a pulsão seria a região do silêncio (num além), ela escapa à trama da linguagem e
da representação, marcando assim o limite do discurso conceitual. “É por metáforas que
falamos da pulsão”.
De fato, só podemos falar da pulsão devido ao corpo simbólico, ou seja, do “efeito
dessa in-habitação da linguagem que transforma o organismo vivo em corpo. Não foi este o
objeto das primeiras preocupações de Freud? O corpo da histérica? Que corpo é este? Esse
corpo, nomeado por Freud de corpo erógeno ou corpo imaginário, diferente de corpo
pulsional. “O corpo imaginário é o efeito de superfície resultante da articulação do real com o
simbólico”. Se admitíssemos o corpo pulsional como o corpo do simbólico, seríamos
erroneamente levados a colocar a pulsão no “espaço da representação, e não no espaço do
real”. Evidentemente há rastros da pulsão no psiquismo, mas há que se diferenciar: uma coisa
é o representante da pulsão no psiquismo, outra coisa é a pulsão ela mesma. Se estamos aqui
falando do representante e da pulsão ela mesma, há que se admitir “um outro registro do
corpo, para além do corpo simbólico”, este, por sua vez, cravejado pela marca da linguagem.
(ibid., p. 59, 60)
Temos que admitir, de saída, como foi explicitado no capítulo 4, que o corpo,
“enquanto corpo natural, é marcado pela falta”. Impossibilitado em sua autossuficiência, o
infans necessitará de algo externo a ele: “um outro corpo, para se manter vivo”. O corpo
natural é faltante. A essa falta, “as chamadas ciências da vida deram o nome de necessidade
(natural)” cuja narrativa diz que, uma vez instaurada, “a necessidade impõe uma ação cujo
objetivo será a supressão da necessidade e, assim, o preenchimento da falta. Essa falta será
preenchida pelo objeto (também natural)”. Isso pressupõe uma adequação natural entre as
necessidades do corpo e determinados objetos do mundo. Adequação natural pode ser
chamada de “adaptação ou harmonia estabelecida”. Essa “harmonia pré-estabelecida impõe
que a ação se faça segundo caminhos pré-formados”, a que chamamos “instinto”. Todavia, ao
conceber o mundo dessa maneira, somos inclinados a compreender “que as faltas naturais são
preenchidas com objetos naturais, e que, portanto, o natural não necessita de nada externo a
ele”. Para sua manutenção, basta um mundo estritamente natural visto como sem falta, fendas
e furos, ou seja, se o bebê tem fome, ele suga (ibid.).
A história teria um final “feliz”, e em seu sentido casual, o da completude, se,
neste mundo natural e sem fendas, a palavra não surgisse como uma emergência. Se a palavra
se faz emergência, ela necessariamente passa a significar os corpos naturais. Atravessados
161

pela linguagem, os objetos do mundo passam a receber a “insígnia enigmática” de serem


significativos. Ora, não estaríamos aí precisamente às voltas com “dois registros inteiramente
distintos: o dos corpos materiais e o da linguagem”?

Não podemos, portanto, falar da pulsão senão por referência ao simbólico, apesar
dela própria não ser da ordem do simbólico. No entanto, é o simbólico que em
última instância distingue a pulsão do instinto, pois é em função do simbólico que a
relação entre o corpo e os objetos do mundo sofre uma metamorfose, de tal modo
que, uma vez articulados como signos, os objetos produzem como efeito o sujeito.
Se “anatomia é o destino”, quem comanda esse destino é a palavra. Sem ela sequer
nos daríamos conta de nossa própria morte. É pela palavra que nos tornamos
mortais. (ROZA, 1986, p. 114)

A esse ser no qual a palavra fez sua emergência – e que foi por ela constituído --
podemos chamar humano. A rigor, a palavra não fez sua emergência no humano, mas o
humano, isto sim, constitui-se como um efeito dessa emergência. É a palavra que
“ressignificou ou simplesmente significou o próprio corpo com suas faltas, assim como os
objetos do mundo. O efeito imediato foi uma desnaturalização do corpo, das suas
necessidades e dos objetos do mundo, assim como o surgimento de uma nova ordem: a ordem
simbólica”. Como consequência dessa emergência, “o objeto absoluto foi perdido, e em seu
lugar entrou a falta, não natural”. Aquela harmonia pré-estabelecida se rompeu, os meios pré-
formados foram perdidos “e a adaptação tornou-se inviável”. A estória não se encerra por
aqui, a linguagem não exterminou com as faltas, elas permaneceram no corpo. O corpo
permaneceu com a sua não autossuficiência. “Só que agora, a ação desencadeada por essas
faltas ficou sem direção pré-determinada” (ROZA, 1990, p. 16). À deriva, o ser humano não
dispunha mais dos sinais inequívocos do objeto anteriormente natural e adequado. Sem esse
sinal, marcado por um objeto determinado e pleno, a satisfação tornou-se impossível. Isso não
é devido “a uma sinalização deficiente e ambígua, ou ainda a uma carência natural do objeto,
mas ao fato de que a ordem natural foi perdida e que, em decorrência, não há mais objeto
específico. Daí por diante, apenas uma satisfação parcial a ser possível”. (ibid., p. 17)
É por isso que, a partir da linguagem ou em consequência dela, a suposta ordem
natural, que o corpo teria em si mesmo, fora perdida e reduzida a uma ordem mítica. Se a
linguagem intercepta esse corpo biológico, naturalizado, e é disso que se trata na psicanálise,
há uma recusa, de saída, da ordem natural como princípio explicativo. Se a psicanálise afirma
ter seu ponto de partida na linguagem, há que encarar o corpo segundo referenciais que serão
os dela e não os da biologia (naturalista). “Isso significa que ela não pode considerar como um
dado, e, mais ainda, não pode considerar o corpo biológico como um dado essencial, sob pena
162

de se constituir como uma biologia de segunda mão” (ibid.). Isso não quer dizer que ela
recuse ao recém-nascido ser possuidor de um sistema nervoso, tronco, membros etc., mas que
estes elementos “não formam inicialmente um conjunto organizado da mesma forma que o
são para a biologia”, aqui ele nada mais é do que matéria sem forma, sem totalidade, de-
formada de partes, de limites indefinidos, sem organização própria e princípio de
funcionamento.
De fato, Lacan (2005, p. 78) nos lembra que não se trata de rejeitarmos as
referências biológicas, “mas desde que percebamos que, de fato, a diferença estrutural muito
primitiva introduz rupturas nelas, cortes, introduz de imediato a dialética significante”. O
significante, salienta o autor, não vem a ser outra coisa do que “aquilo em que se vê
aprisionado um animal à procura de seu objeto”.

O pequenino humano mama o amor e aspira para um além do leite, objeto de sua
necessidade, assim como aspira incorporar um seio invisível, uma inútil teta do
amor. O amor é o suplemento de alma cuja carência mata seguramente tanto quanto
a carência de alimento. Podemos supor que originalmente se esteja na presença de
uma pulsão, de uma única força cujas primeiras diferenças são as variáveis de
intensidade com que investem campos e objetos. Muito rapidamente, em função do
conflito psíquico, tais forças vão se dissociar em duas vias pulsionais que, a partir de
Freud, podemos chamar Pulsões de Vida e Pulsão de Morte. (ZYGOURIS, 1999,
p.9-10)

Roza (1990, p. 18-19) afirma que “essa matéria sem forma pode ser concebida,
como pura potência indeterminada, pluralidade de intensidades anárquicas”, a ver, pulsões.
Estas instalam uma nova realidade corporal, “irredutível ao natural, ao instintivo”, não
somente como desvio ao natural, como visto acima, mas “diferença pura”. As pulsões podem
ser vistas como puro estado de dispersão, “estado disjuntivo por excelência”. Assim, o corpo
resultante como diferença pura, será um corpo atravessado pela ordem simbólica, ou seja, pela
linguagem. Quando falamos de um corpo atravessado pela ordem simbólica, estamos
reafirmando, como visto no capítulo anterior, que o corpo biológico se refere às leis da
distribuição anatômica dos órgãos e dos sistemas funcionais, enquanto o corpo psicanalítico
obedecerá às leis do desejo inconsciente, àquele que é entrevisto nos sonhos e que se
engancha na história individual de cada um. Desse modo, como lembra Birman (1991),
passamos da lógica anatômica para a lógica da representação, portanto, para um corpo
atravessado pela linguagem e acossado pelas pulsões. É deste corpo que estamos tratando
nesta tese, o que implica um desconfortante arrebentamento das costumeiras e ilusórias,
embora necessárias, costuras do imaginário. Por conta disso, a “verdadeira dualidade em
163

psicanálise não seria a dualidade corpo/linguagem, mas sim a dualidade corpo-


linguagem/pulsões anárquicas”. Dualidade esta que também poderá ser concebida como uma
dualidade Ordem/Acaso. No lugar da Ordem, o corpo-linguagem, e do acaso, as pulsões, estas
que não deixam de ser puro estado de dispersão. Essa intromissão do acaso pulsional já nos
permite aqui algumas ilações acerca da questão do improviso, especialmente quando o
intérprete está em cena.

Improvisar é prever, recusar o acaso, organizar antecipadamente, fazer face ao


imprevisto (improvisus), descartar o que sobrevém de improviso. Isto porque
improvisar é retomar, repetir. O ouvinte para quem certamente há o improviso do
inédito, aceita-o unicamente se ele sabe e se ele sente que ele não é um deles para o
artista. Dizendo de outra forma, este imprevisto não imprevisível da improvisação
obedece às leis gerais da linguagem e da comunicação. O improvisador, músico que
se lembra, fala música como outros falam a língua materna. (...) Improvisar é falar
música. Um locutor não cria a língua do seu pensamento, mesmo se ele forja alguns
neologismos para precisá-la e exprimir uma descoberta. A improvisação, estrito
senso, retórica do discurso musical, não é uma criação, mas um agenciamento
inédito de vocábulos sonoros anteriormente conhecidos. (LACAS Enciclopédia
Universal, apud VIVES, 2016, p. 1-2)

A improvisação se desvela, portanto, como um saber e um poder, saber lidar com


esse idioma linguajeiro que nos foi transmitido pelo grande Outro, já enunciado no capítulo
anterior. É essa linguagem materna assimilada que torna possível e essencial imprimir, entre a
contingência e a necessidade, a marca da nossa subjetividade. Como afirma Vives (2016, p.
3), a resposta vinda do ambiente materno, não tem a ver com o imprevisto, mas “repousa
sobre a relação que ele entretém com a língua e a lei, como na música, o improvisador se
executa em função de regras musicais interiorizadas”. Num ambiente capaz de improviso,
campo para se reinventar, já para o infans advém a fala, introduzindo-o na ordem simbólica,
isto é, nas leis da linguagem, sem que esta lei seja uma lei louca.
Isto supõe que o ambiente seja não somente apto a ouvir um grito da criança e a
interpretá-lo como demanda, mas que possa trazer aí uma resposta singular na qual pode-se
ler surpresa e prazer, no improviso da canção materna, “o que implica que ela preludia e
improvisa levando em conta os ‘solos’ da criança”. O que se coloca em jogo aqui é a
vocalização, como visto no capítulo anterior com Lasnik (2013). O interesse da criança se
voltam “ao timbre materno, ao grão da sua voz, que a conduz a se alienar na linguagem.
“Atraída pela isca”, dada na vocalização materna, “a criança morde no anzol da linguagem e
ei-la fisgada”.
Assim, quando falamos do improviso, isso pode ser visto como espaço onde o
sujeito se coloca e responde ao Outro, e sem uma resposta pronta, definitiva, ele se
164

Relançará ao acaso. Becker (2010, p. 127), dirá que, “a improvisação libera o indivíduo, de
certo modo, a ordenar o mundo e lhe oferece uma possibilidade de ordenamento menos
visível”. O acaso não seria, assim, o encontro com pedaços do Real? O risco inicial marcado
pela relação mãe-bebê pelo olhar/voz fundantes deixa vazios no próprio movimento da
pulsão, que, na dança, pode ser pensado como escritas corporais convocatórias do acaso.
Assim, o improviso liga-se a um certo relaxamento, a uma organização antecipatória, na
recusa ao caos como completa desorganização.
Falar do acaso ainda nos remete àquilo que Becker (2010, p. 127-128) diz, a partir
de Caillois (1969), sobre o conceito de vertigem, tido como “um fascínio que produz um
chamado sem possibilidades de recusa. Seria uma sedução mortífera, impossível de resistir,
experiência de um ser vivo que se lança para sua morte, numa contradição à pulsão de
autoconservação. Como se tivesse tomado por uma atração irrecusável...”. Assim “o que atrai
é o preenchimento inevitável deste vazio, tornando contínuo o que estaria descontínuo”. Lorca
(1933, p. 5), já nos dizia que “o duende ama a borda, a ferida, e se aproxima dos lugares onde
as formas se fundem num anelo superior a suas expressões visíveis”.
Tudo isso se torna mais compreensível quando se leva em consideração que as
pulsões não estão às voltas com o corpo organizado, mas sim com o corpo naquilo que ele
mantém de anárquico. “A pulsão não é uma força natural, mas não deixa de ser uma potência
corporal” (ROZA, 1990, p. 55). Disso Zygouris (1999, p. 15) conclui que a pulsão, “em sua
origem não é, portanto, nem boa nem má, ela só procura satisfação: é apenas devido à
inadequação do objeto e impotência do sujeito em encontrar o objeto adequado que ela se
torna destruidora do objeto tanto quanto do sujeito tentando manter um estado de menor
tensão”.
A fim de delimitar e diferenciar entre a ordem do instinto e a da pulsão, Freud
detalhou as características da pulsão cuja natureza parte do sexual: pressão (Drang), alvo
(Ziel), objeto (Objekt) e a sua fonte (Quelle). Segundo Fabrinni (1996, p. 47), a pressão diz
respeito diretamente ao papel ativo exercido pelo trabalho pulsional; o alvo direciona-se à
satisfação, que, como vimos discutindo a partir do Projeto freudiano, consiste numa remoção
da excitação interna desde sua fonte; o objeto através do qual a pulsão alcança seu alvo, que
não é de maneira alguma fixo, desloca-se quando mais próximo à satisfação e, finalmente, a
sua fonte, “que corresponde aos processos somáticos localizados, desde os quais as excitações
internas seriam representadas na vida psíquica”.
Contudo, já no seu início, a pulsão sexual é inibida quanto ao seu objetivo,
desviada de seus fins explicitamente sexuais e dirigida para objetos que não apresentam
165

nenhuma relação aparente com o sexual. Mesmo quando permanece alguma marca de sua
origem sexual, podemos afirmar que houve um desvio de objetivo e uma substituição de
objeto. Essa inibição quanto ao objeto Freud nomeou como sublimação. É enquanto
impossibilitada de sua realização, mas como ideia, que a pulsão se faz presente no psiquismo,
sendo que a sua satisfação se faz de forma fantasmática. O objeto é o que há de mais variável
na pulsão dada a impossibilidade da satisfação ser atingida. Portanto, a cultura não é um
resíduo inútil da pulsão, mas a multiplicação de suas possibilidades de satisfação (ibid., p.
16).
A suposição freudiana é a de que a pulsão procura uma satisfação que já foi obtida
um dia, na nossa “pré-história individual”, antes do interdito que nos tornou humanos.
“Portadora do gozo e da morte se viu forçada a fazer-se representar pelos seus representantes
para poder ter acesso ao mundo da subjetividade” (ibid., p. 17). Se, como já vimos, a pulsão é
tida como desvio do instinto, ela é, assim, um desvio da ordem. Toda pulsão é pulsão de
morte, já que ela não tem por objetivo a autoconservação a repetição do mesmo, mas é,
sobretudo, expansão, produção de diferenças, puro lugar de dispersão: “o instinto seria
reativo, ao passo que a pulsão seria atividade pura”. (ibid., p. 18).

5.2 Três tempos pulsionais: descrição pulsional do Estádio do Espelho

Em um trabalho bastante original, Lasnik (2013) levantou três tempos no


movimento da pulsão que muito nos esclarece sobre esse percurso. No primeiro tempo
pulsional, caracterizado como ativo, o infans vai à busca de um objeto oral externo, seja ele o
seio materno ou a mamadeira, “para dele apoderar-se”. O segundo tempo é marcado pelo
autoerotismo do bebê. Um momento reflexivo, tomando como objeto uma parte do corpo
próprio. Autoerotismo já nos dá a premissa desse trajeto, trata-se de um bebê que seja capaz
de chupar o seu próprio dedo ou outros objetos. Justamente aquilo que será caracterizado
como a “experiência alucinatória de satisfação, intimamente relacionada com o
autoerotismo”. O que não se consegue pensar, mesmo entre os psicanalistas, é a existência,
pensada por Freud, de um terceiro tempo “necessário ao remate do circuito pulsional, e ao que
podemos propriamente chamar de satisfação pulsional” (ibid., p. 27-29). É então que a criança
vai se fazer objeto de “um novo sujeito”, ou seja, ela irá se assujeitar a um outro que se
tornará o sujeito de sua pulsão. É aquele momento do deleite, em que a criança coloca os seus
166

pés e dedinhos na boca de sua mãe, e ela, por sua vez, lhe responde fingindo comê-los de
maneira extravagantemente prazerosa.

Só podemos falar de um verdadeiro autoerotismo se a dimensão de representação do


Outro, e mesmo do seu gozo, se inscreveu sob a forma de traço mnêmico no
aparelho psíquico da criança. Este momento particular de jogo – não se trata aí de
saciar uma necessidade qualquer- é pontuado pelos risos maternos, enquanto ela
comenta o valor gustativo do que lhe é oferecido pela atribuição de diversas
metáforas gastronômicas onde o açúcar tem um lugar privilegiado. Tudo isto
desperta em geral sorrisos na criança, o que nos indica que ela buscava justamente
fisgar o gozo do Outro materno. (ibid., p. 28)

Se assim for, uma forte atividade vem disfarçada de passividade na criança. É de


maneira ativa que ela se fará comer por este outro sujeito, para o qual se faz objeto. E é
justamente nesse assujeitamento que se dá a possibilidade de fisgar o gozo deste Outro. “O
bebê vai à pesca do gozo de sua mãe, enquanto ela representa para ele o grande Outro
primordial, provedor dos significantes”. A pulsão não é a necessidade. Não obstante, a pulsão
conhece “uma pressão constante e não as flutuações próprias da fisiologia do organismo”.
O apoio do instinto na pulsão, “possibilita a Freud estabelecer uma representação
teórica do aparelho psíquico que supõe uma historicidade – o que é muito importante – e um
laço com um Outro Primordial que ele chama de próximo assegurador” (ibid., p. 75). O
assegurador é aquele que apaziguará as necessidades da criança. Saciada a necessidade,
inevitavelmente haverá uma queda da tensão interna para o bebê, vivida como uma
experiência de satisfação. Essa experiência se inscreverá no polo alucinatório de satisfação.
“Mais tarde, quando é deixado sozinho, o bebê poderá reevocar os traços mnêmicos dessa
experiência de satisfação, bem como os traços deste Outro atento, e reencontrar um
apaziguamento; e a experiência alucinatória primária”.
Pode-se pensar o autoerotismo como análogo à experiência alucinatória, mesclado
a certos traços desse Outro Primordial, assim, assegurador. A autora (ibid., p. 79) lembra que
Lacan falará de pulsão referindo-se somente às pulsões sexuais parciais, e todo o resto
relacionado à conservação do indivíduo num outro registro. Assim sendo, e, esperado, todo o
registro referente à necessidade sai do campo pulsional. O impulso, a fonte e o objeto, no
circuito das vicissitudes da pulsão, desenhado por Freud, serão lidos como os três
componentes da pulsão. É necessário acrescentarmos um quarto, como aponta Lasnik. E esse
quarto será a base para compreendermos a outra parte teórica que virá a posteriori: “a meta
que é atingir a satisfação pulsional que consiste na montagem de um circuito pulsional em três
tempos”. Ora, é a realização desse percurso, trajeto ou circuito que traz a satisfação à pulsão.
167

Este trajeto fecha-se em seu ponto de partida. “A partir daí, para a pulsão, não se trata mais de
ir na direção de um objeto da necessidade e de satisfazer-se, mas sim de encontrar um objeto
que a cause, isto é, que permita a ela percorrer todos os tempos necessários para o seu remate
e isto, inúmeras vezes”.
É importante frisar que, quando o terceiro tempo ocorre, há uma garantia de que,
no polo alucinatório de satisfação do desejo, haverá traços mnêmicos desse Outro materno,
assegurador. “Mas, mais precisamente, traços mnêmicos de seu gozo, deste momento em que
a mãe sorri de prazer para esse bebê que se faz olhar ou que oferece seu pé para ser comido”.
Como consequência, quando o bebê estiver ali sozinho, chupando o seu dedo ou chupeta
haverá reinvestimento dos traços mnêmicos desse Outro materno que Freud caracteriza como
representações do desejo. (ibid., p. 80)

Freud acredita que, se a experiência de satisfação for suficientemente repetida, no


momento em que o estado de pressão ressurgir, o investimento encontrará
trilhamentos eficazes para retornar a esse conjunto de imagens e vivificá-las. Freud
chama essas imagens de Wunschvorstellungen, representações de desejo. Segundo
ele, a vivificação produz a mesma coisa que uma percepção. Considera que a
satisfação alucinatória primaria é central para a experiência humana. (ibid., p. 141)

Na realidade, é através dessas repetidas experiências de satisfação que se vão


criando permanentes trilhamentos em direção ao complexo de representações do desejo
alojado nesse mesmo polo alucinatório, instalando, assim, o representante da representação da
pulsão. Graças à função inibidora do Eu, esse polo de representações do desejo não retém
todo o investimento. Uma parte vai em direção ao polo perceptivo “e se transforma em
atenção psíquica à procura do objeto de satisfação no mundo externo”. (ibid., p. 142)
Como já discutido, o universo simbólico preexiste ao sujeito, entretanto, os
símbolos necessitam de uma carcaça corporal para se dizer. É na relação imaginária que a
inserção do simbólico se apresenta. Como dizia Lacan no discurso pronunciado em 1953, sob
o título, O simbólico, o Imaginário e o Real, a palavra desempenha o papel essencial de
mediação, mas também a realidade em si mesma. A construção do objeto do desejo se faz via
relação narcísica do eu-outro. Pelo narcisismo, os desejos dos outros vão se fazendo inscrição,
uma possível definição do significante pode ser lida, na medida em que um elemento da
cadeia de linguagem se faz inscrição pelo desejo do outro. “E a imagem do corpo fornece o
quadro das inscrições significantes do desejo do outro” (ibid., p. 61). Para Nasio (1997, p. 61-
63), “a imagem do corpo representa o primeiro engate dos significantes e, inicialmente,
dos
168

significantes da mãe. O modo como eles se inscrevem, sobretudo a sucessão das


identificações, determina as modalidades segundo as quais se farão as flutuações libidinais”.
Aqui é possível pensar que essa palavra mediadora, entre, na dança seria capaz de
se fazer passos, num circuito metonímico, quando a palavra se transmutaria em corpo-gesto.
Mas deixemos essa hipótese para ser discutida mais à frente, pois, neste ponto, não se pode
esquecer da sublimação que costuma ser tomada como via mater da teoria freudiana para
todos aqueles que se propõem relacionar a psicanálise com a literatura e as artes em geral.
Embora esteja em nossa proposta realizar um desvio em relação a essa via já convencional --
conforme será devidamente explicitado no capítulo 6, no qual os nós com o corpo em cena
devem ser atados --não caberia deixar de incursionar, no momento oportuno, para esse
conceito, o da sublimação, tão caro às vicissitudes da pulsão. Entretanto, por enquanto, temos
que nos manter na rota pulsional até encontrarmos a repetição e a pulsão de morte, essa que
faz ressonância à entrada do duende.

5.3 Caminhos e tropeços da pulsão de morte

Para Zygouris (1999, p. 10), a pulsão de morte pode tomar dois caminhos. O
primeiro leva a pulsão ao destino da homeostase, que tende ao mínimo de tensão, o outro, por
sua vez, destrutivo, tende a atacar ambos os objetos, internos (“incorporados”), e externos
(“inadequados a acarretar prazer”).

Poderíamos dizer que é possível falar em termos de pulsão de morte quando o


tempo, enquanto experiência vivida de duração, desaparece. A diferença entre
pulsão de vida e pulsão de morte seria, então, uma diferença da problemática
temporal que se expressaria em investimentos espaciais. A partir do momento em
que o tempo é percebido, já estamos numa problemática do objeto, logo, do espaço e
do corpo, o que implica na presença do afeto. Espera, angústia da perda,
ambivalência, amor, ódio, destruição do objeto. Objetivamente o tempo passa de
qualquer jeito, mas a repetição e colocação em ato invisível unicamente da pulsão
independentemente de qualquer espera ou investimento de objeto sela a presença de
uma dominante da pulsão de morte. (ibid., 1999, p. 11)

A compulsão à repetição marca a pulsão de morte. A compulsão (Zwang) é um


tipo de domínio no qual o sujeito não cessa de repetir. “É um simulacro de ato que falha e
deve sempre retornar”. Isso pode ser visto em três momentos. O primeiro é marcado pela
autodestruição, o segundo, da transformação da autodestruição à heterodestruição, e, o
terceiro, pela possibilidade de saída da heterodestruição rumo à produção de pensamentos e
afetos, caminho para a criação (ibid., p. 14-15).
169

Na sua obra de 1986, em contraposição a muitos autores, Roza propõe que a


pulsão de morte não nega os limites de validade do princípio do prazer. A questão da pulsão
da morte, ainda muito controversa na psicanálise, não está vinculada à morte individual e
tampouco à destrutividade, como muitos afirmam, mas à compulsão à repetição.
Evidentemente, a morte em si, e não a pulsão da morte, aponta para um limite da nossa
existência e o limite do próprio discurso.

A morte como limite é o muro de Sartre, o que não pode ser experimentado porque
assinala o fim da própria experiência – pelo menos da experiência humana.
Poderíamos argumentar que, se a experiência da nossa própria morte é impossível,
podemos pelo menos ter a experiência da morte do outro. No entanto, tal experiência
é também impossível; quando muito podemos ter a experiência dos últimos
momentos da vida do outro, mas não podemos ter a experiência do seu próprio
morrer. Portanto, entre a morte, enquanto possibilidade última da existência de cada
um de nós, e a pulsão de morte, enquanto hipótese metapsicológica, há uma
considerável diferença. No entanto, ambas são recobertas pelo silêncio. Assim como
não podemos falar nada da morte em si mesma, também a pulsão de morte
permanece silenciosa. Isto não quer dizer, porém, que ambas não se façam presentes
na vida; em torno delas construímos nossos fantasmas, nossos mitos, nossas
religiões. Em torno da morte construímos, sobretudo, nossas ilusões. (ibid., p. 72)

Parte-se, sim, do princípio de que a pulsão de morte é vontade de destruição, no


sentido de vontade de recomeçar com novos custos. Vontade de outra coisa. Se, a partir da
pulsão, o natural tem que ser recriado, sua identificação com a vontade de destruição é
legítima. O que se recusa é a concepção da pulsão de morte como uma tendência a reproduzir
o mesmo. Ela pode ser renovadora, ao colocar em causa tudo o que existe, ela é potência
criadora, diferente da pulsão sexual, que é conservadora (constitui uniões e tende a mantê-
las). Enquanto Eros tende à unificação/indiferenciação, a pulsão de morte, como princípio
disjuntivo é produtora de diferenças. Enquanto potência disjuntiva, a pulsão de morte é o que
impede a repetição do mesmo, provocando assim a emergência de novas formas. Ela pode ser
criadora e não conservadora. Impõe novos começos ao invés de reproduzir o mesmo. A
verdadeira morte seria a morte do desejo e, portanto, da diferença que sobrevém por efeito de
Eros e não da pulsão de morte. O alvo da pulsão é a repetição, mas ela repete como diferença.
(ibid.)
O que até então era visto como algo negativo passa a ser considerado como um
princípio de constituição do objeto. Se a pulsão de morte é desunião, é justamente ela a
responsável pela ausência da satisfação. A criança não é capaz de distinguir entre o seio
materno e seu próprio corpo, para ela seio + corpo funcionam como uma única entidade. Esse
sistema fechado sujeito-objeto só será rompido no momento em que a satisfação não chegar à
criança, levando-a à desilusão junto à renúncia à satisfação pela via alucinatória. “O aparelho
170

psíquico é compelido então a reconhecer a existência de uma exterioridade, o que o obrigará a


uma mudança real através da introdução de um novo princípio de realidade. Não se trata mais
agora de distinguir o agradável do desagradável, mas o real do alucinado”. (ibid., p. 78)
Freud aponta, a partir dessa separação, que a experiência passa a ser marcada pela
repetição, pois o objetivo primeiro da prova realidade “não é encontrar um objeto que
corresponda à representação, mas reencontrar tal objeto”. (ibid.). Então, já podemos afirmar
que o alvo da pulsão é a repetição, como pura diferença. Pensando como Roza (ibid., p. 137),
numa repetição diferencial. Sabemos das pulsões pelos seus efeitos no nível de representação
e não por elas próprias. Mas o que sem dúvida é marcado pela repetição é Eros, ou seja, a
pulsão sexual. O nosso primeiro encontro amoroso já é uma repetição daquilo que foi vivido
pelo infans em suas primeiras relações com a cuidadora e que passa a alucinar em tantos
outros encontros da vida. Então, estamos aqui falando de repetições de encontros que não
foram vividos por nós. O sexual é o que se repete.

Essa repetição jamais é desnuda, ela não aponta para um primeiro termo, mas
está irremediavelmente constituída pelo jogo interminável das máscaras. Não
possuímos uma sexualidade que é mascarada; a sexualidade é constituída
pelas próprias máscaras. A sexualidade humana é, essencialmente, disfarce.
Isto quer dizer que a repetição não é representação, a máscara não representa
um objeto, ela significa algo.
Ora, isto significa, então, que antes da pulsão constituir seus representantes
psíquicos pelo recalcamento primário, ela não é pulsão sexual, pois é
precisamente o diferencial prazer-desprazer que vai caracterizar o sexual,
segundo Freud. Neste caso, não é absurdo afirmar que é o recalcamento
originário que constitui a própria pulsão. (ibid., p. 51)

Será que não podemos, a partir disso, pensar que o recalcamento é o responsável
pelo jogo de máscaras no qual a participação da pulsão se dá pelos seus representantes? Ora, a
repetição é um ato pelo qual a pulsão se des-vela em seus representantes. Será que o Real não
estaria imbricado nesse ato de velar a pulsão na repetição? Mas como teríamos acesso ao
Real? Se aqui estamos às voltas com o seu disfarce? Ora, através das máscaras. Mas, não nos
enganemos ao pensar que o Real se revela nas máscaras. Ele está além delas. Além do
princípio do prazer. “O real está além da repetição, não porque seja contrário a ela, mas
porque a funda”. A pulsão é corpo na medida em que busca uma maneira singular do corpo se
articular com a linguagem e os objetos. É na rede significante que a sexualidade se constitui e
em relação à qual podemos dizer sobre o desejo.
171

5.4 Da pulsão ao desejo, deste à demanda: o que o Outro deseja?

Como já sabido, o desejo põe em movimento o aparelho psíquico, orientando-o


segundo a dupla perceptiva do agradável-desagradável. O desejo tende a preencher a falha,
que nada mais é do que a separação da mãe, a castração. A criança deseja ser o falo da mãe, a
sua completude, o complemento da sua falta. Jamais a cargo desse serviço de completar essa
hiância, o desejo vai se aplicando, ao longo de nossa vida, a substitutos da mãe. O desejo,
então, se produz para além da demanda. Não pode satisfazê-la jamais. A demanda invade e
subtrai o desejo, incapaz de satisfazê-lo, o faz renascer mais frenético, pois, quanto mais se
segue a rota dessa trilha, mais deseja, no objeto de seu desejo, nada além do que preservar,
manter e proteger a tal imagem especular (NASIO, 1993). Assim, “quanto mais envereda por
esse caminho, que muitas vezes é impropriamente chamado de via de perfeição da relação de
objeto, mais o ser humano é enganado”. “O desejo, portanto, é lei. É claro que o que constitui
a substância da lei é o desejo pela mãe, e que, inversamente, o que normatiza o próprio desejo,
o que o situa como desejo, é a chamada lei da proibição do incesto”. Assim, dada a existência
do inconsciente, podemos ser “esse objeto afetado pelo desejo”. Aparentemente o desejo é
indefinido, porque a falta, que sempre se alia a algum vazio, “pode ser preenchida de várias
maneiras”. (LACAN, 2005, p. 51, 166, 35)
No estrato instintivo, biológico, estamos sempre atrás de objetos específicos,
como comida, água e outros a fim de reduzir a tensão interna do organismo. Entretanto, uma
vez que as necessidades são atravessadas pela linguagem, vão se tornando porta vozes de
demandas. A criança demanda, pede à mãe que lhe forneça o objeto de sua necessidade para
que ela elimine sua falta para ter. Mas há um porém nesse pedido, quando ela demanda, já é
sem saber, é demanda de outra coisa. Essa demanda se apresenta como pretexto para
conseguir “algo” de que o sujeito sente falta e que pressupõe que o outro se disponha a
fornecer-lhe reconhecimento e amor. Sempre existe uma demanda para sermos reconhecidos e
amados, porque, no fundo, o que queremos é sermos preenchidos, plenos, nessa causa
impossível. Então, a demanda será sempre um lugar que solicita uma presença-ausência
sempre dirigida ao Outro, como um pedido de amor e expectativa de preenchimento. A
demanda visa sempre uma outra coisa, visa sempre o Outro, comportando um pedido de
reconhecimento.
É por isso que a pulsão e o desejo nos diferenciam dos animais, esses seres de
puro instinto, seres de necessidade, apenas. Vamos construindo a nossa ficção pessoal, pois,
algum dia e em algum lugar, fomos algo para o desejo do Outro primordial (mãe). E é neste
172

núcleo de nada, esse núcleo de ter sido o desejo do Outro que nos dá sustentação, buscando o
reconhecimento nos olhares dos outros (semelhantes). Todavia, no lugar da falta, surge a
angústia não como sinal de uma falta, senão algo que nos aparece duplicado, ou seja, a falta
de apoio dada pela falta. (ibid., p. 64)

O que provoca a angústia é tudo aquilo que nos anuncia, que nos permite entrever
que voltaremos ao colo. Não é, ao contrário do que se diz, o ritmo nem a alternância
da presença-ausência da mãe... o que há de mais angustiante para a criança é,
justamente, quando a relação com base na qual essa possibilidade se institui, pela
falta que a transforma em desejo, é perturbada, e ela fica perturbada ao máximo
quando não há possibilidade de falta, quando a mãe está o tempo todo nas costas
dela, especialmente a lhe limpar a bunda, modelo da demanda, da demanda que não
pode falhar. (ibid.)

Na teimosa repetição do que fomos um dia para o desejo do outro, é que vem o
gozo, tema que será tratado com cuidado à frente. A demanda é sempre demanda de algo que
possa eliminar a falta-a-ser, sim, falta-a-ser desse lugar que demandamos e ao qual nunca
chegamos. Na origem da falta-a-ser está a castração, o corte da unidade mãe-filho. Daí
condiciona-se o desejo que mobiliza a demanda. Esta vem sempre de um lugar imaginário. O
que sou para o outro? E sair da demanda imaginária do que o Outro quer de mim exige uma
transferência de saber, da ordem simbólica. O desejo do sujeito não encontra outra saída a não
ser fazer-se palavra endereçada ao outro. E o desejo não tem uma relação com os seus objetos
concretos, mas sim com o fantasma e as fantasias que vão se construindo.
Nesta dinâmica da alienação e castração (corte) fatores que se implicam
reciprocamente, a castração cumpre a função de impulsionar o sujeito a ir ao encontro do
Outro. O objeto falta, a saída para o sujeito é formular a fantasia. A fantasia para o objeto
faltoso é a representação imaginária do objeto perdido. Esse objeto, suporte da fantasia não é
nada mais do que a representação imaginária do objeto perdido, aquele que causa o
movimento do desejo. Sem desejo não há deslocamento, não há procura, não há busca desse
objeto, sempre faltoso. Toda a realidade do sujeito será atravessada pelo desejo que enquadra
e emoldura a realidade. Ela é a roupagem da pulsão. O eu é como a voz do Outro e seu
intérprete interno.
Ora, o eu aprendeu, desde a tenra idade, que a satisfação vinha sempre do outro. O
eu confundiu a procura da satisfação pulsional com a procura de amor. Ao concluir que a
satisfação vinha do outro e que era preciso respeitá-lo, o eu vai barrar, impedir toda moção de
desejo que precisamente comprometa o respeito e o amor do Outro. O eu entra numa
emboscada, preso na armadilha, na ilusão de que ele não pode obter satisfação senão através
173

do outro que está no lugar do desejo, reconhecimento e legitimação. O eu aprende a sacrificar


a pulsão pelo amor. Renunciou ao prazer do erotismo para poder ser amado. Assim,
interioriza-se o Outro, com suas prescrições e proibições. O eu fica identificado aos ideais do
Outro.
Seguindo numa luta pela manutenção de um compromisso entre a pulsão e o
Outro, para garantir a satisfação pulsional, o eu se torna escravo das leis do Outro. Há um
único mestre, a pulsão que busca satisfação através da repetição do percurso do trilhamento
primordial. Ela clama pela repetição desse caminho. É a partir do movimento do outro em
direção à satisfação, que os caminhos da satisfação pulsional vão se inscrever em nosso
sistema mnêmico. Qual seria, então, a tarefa? Não parece haver outra: dar conta de fazermos o
nosso próprio estilo, sem ficarmos presos ao estilo importado do Outro.
O Real, portanto, tem a ver com a falta ao encontro marcado, “e em cujo vazio
toma lugar o significante”. O objeto, enquanto falta fundamental, é a coisa (das Ding), a ser
elaborada mais à frente. “O que constitui o objeto como perdido é a nossa procura”. O Real
não retorna, o que retorna são os signos, que se repetem como falta. O Real confere realidade
ao mundo. O Real é o que se repete, e nessa repetição acaba fundando o próprio mundo
enquanto realidade. (ibid., p. 42-43)
Um encontro amoroso marcado pelo encontro materno, em si mesmo, já é
máscara. A mãe se apresenta como transição de uma espécie a outra, ou seja, a maneira como
nossa experiência começa, mas que já se encadeia a outras experiências realizadas por outro.
Quando nos referimos a esse encontro, que daí para frente será alucinado, está se falando
dessa experiência primária de satisfação, momento de instauração de uma experiência
diferencial, prazer-desprazer, quantidade-qualidade. E é só a partir dessa primeira experiência
que podemos falar de identificação primária, representante primário e fantasia primária, que,
por referência à pulsão, vai se construir como instância psíquica, o Id. O Id não são as
pulsões, mas sim, seus representantes, sendo que cada representante é uma síntese ou uma
ligação de excitações.
A pulsão só se faz presente no psiquismo pelos seus representantes, estes
primários, que irão construir o Id cuja forma mais primitiva da relação com os seus
representantes é a fixação ou inscrição, tida como recalcamento originário. A fixação é o
primeiro delineamento desses lugares e a precursora do recalcamento propriamente dito e a
repetição é a responsável pela presentificação da pulsão. Esse é o caminho que Lacan marcou
como registro do Real no qual está, por sua vez, marcado o corpo pulsional. Que corpo é esse
que insiste em não se inscrever, quando o imperativo do Real intimida a ação do simbólico?
174

Falamos da histeria como vetor para o entendimento dos conceitos que nasceram no corpo
biológico rumo a um corpo simbólico. Mas esse corpo real? Do que se trata?
Na relação natural entre corpo-objeto, estamos às voltas com a sonhada plenitude,
ao passo que, na relação humana entre corpo-objeto, mediada pela linguagem, se marca a
impossibilidade de completude. Esse objeto absoluto é a Coisa (das Ding). Sendo assim,
qualquer objeto pode ser objeto da pulsão, visto que não se trata de um objeto específico. E
para ser objeto da pulsão é necessário ter relação com o desejo. Entre a pulsão e o desejo, há a
fantasia. “Desta forma, um objeto só se constitui como objeto da pulsão se ele se fizer objeto
para o desejo. Como é pela fantasia que o objeto se articula com o desejo, ela é mediação
necessária entre a pulsão e o objeto”. (ROZA, 1990, p. 65)
Nessa medida, “a pulsão é a relação que o sujeito mantém com o objeto pela
fantasia. E aqui, retornando à fantasia, conceito já brevemente enunciado no capítulo anterior,
ela é responsável pela articulação entre a pulsão e o objeto, ao mesmo tempo em que oferece
ao desejo seus objetos”. Ela se faz tela entre o sujeito e a pulsão. “O objeto a é, ao mesmo
tempo, resíduo e índice da Coisa”. Ele pode ser tido como efeito da perda do objeto absoluto.
No lugar dessa perda há um furo, uma falta central na qual se organizamos significantes.
“Esse furo, Lacan afirma, é da ordem do real”. Seria a responsável em domar o gozo para que
o prazer faça a sua entrada. (ibid., p. 66)
Segundo Volich (2000, p. 133-134), pelo prazer da lembrança da primeira
satisfação e da possibilidade do bebê em reproduzi-lo, estrutura-se a experiência autoerótica,
e, assim, a vida da fantasia. Isso fica mais claro se nos lembrarmos do segundo tempo
pulsional, pontuado por Lasnik (2013), sobre o qual já discorremos mais acima. Por conta
dessa experiência primordial de satisfação, a atividade da fantasia vai se estruturando. A
fantasia exerce uma “função de ligação da excitação do organismo, sendo também uma
condição essencial para a estruturação das instâncias psíquicas e para a constituição do
princípio de realidade”. É através dela que, diante da “reemergência” de um estado de
excitação, “a inscrição da experiência de satisfação [pode] ser psiquicamente reinvestida e
evocada como uma primeira tentativa de evitar” o prazer atravessado pela lembrança da
experiência da satisfação e o desprazer marcado pela tensão.
Como salienta Lacan (2008, p. 71, 75), o mundo da percepção que nos foi
revelado por Freud, parece depender da alucinação fundamental sem a qual não poderia haver
qualquer atenção disponível. Na realidade, o que é buscado é o objeto sobre o qual o princípio
do prazer funciona. Funcionamento este que, no tecido da trama, torna-se suporte ao qual se
vincula toda a experiência prática. A perda do objeto absoluto é a perda de algo que nunca
175

existiu, visto que estamos, desde o começo, inseridos na e atravessados pela linguagem. Lacan
(ibid.) acrescenta que a coisa só se apresenta a nós na medida em que é capaz de acertar a
palavra, “como se diz acertar na mosca”. Por isso, no texto freudiano, a maneira pela qual o
estranho se apresenta, na primeira experiência da realidade, é através do grito. “A busca
encontra assim, pelo caminho, uma série de satisfações vinculadas à relação com o objeto,
polarizadas por ela, e que, a cada instante, modelam, temperam, embasam seus procedimentos
segundo a lei própria ao princípio do prazer”.
A pulsão e a perda desse objeto são resultantes da incidência da palavra sobre o
corpo, sem contar com um antes, estado anterior relativo a essa incidência. Na pulsão, o
desejo e seus objetos nada mais são do que efeitos da linguagem. “O homem é pensado a
partir dessa falta do absoluto, e, no entanto, é para esse absoluto que ele se dirige enquanto
desejo. Se o desejo é falta, ele aspira à plenitude”. Mas se esse objeto falta, algo fica em seu
lugar assinalando a falta. E o que fica é justamente o objeto a. O objeto a nada mais é do que
um furo por onde os significantes flanam. “Ele não é o seio, não é corpo da mãe, não se
identifica com a Coisa: ele é aquilo que, no espaço de representação ou na rede de
significantes, aparece como falta central”. Todos os objetos vão se apresentando como
pretendentes ao seu lugar. A falta marca o real, e não este ou aquele objeto.
No movimento rumo ao objeto, “a pulsão o contorna e retorna à fonte”. Se o
contorna, não o faz efetivamente, pois cria uma distância permanente entre o objeto faltoso e
o objeto para o qual ela se dirige. Essa distância é tida como índice da falta, que acaba
fazendo com que ela retorne em direção à fonte, reiniciando o seu movimento em direção ao
objeto. Não havendo a satisfação plena, visto que nenhum objeto é plenamente adequado, a
insatisfação sempre será pano de fundo à pulsão que não se esgotará no objeto “nunca
absoluto”. Por conta disso é que se denuncia um movimento de idas e vindas, esse retorno em
circuito, que nada mais é do que a repetição (ibid., p.68), uma repetição que encontra na
sublimação um tipo de vicissitude cuja consideração é importante no campo da criação
humana, no caso, na dança da qual estamos aqui tratando, já que promete o encontro com a
satisfação, mesmo que à custa do desvio que promove quanto ao seu alvo sexual.

5.5 Sublimação: uma possibilidade

A teoria freudiana que versou sobre o conceito de sublimação sofreu modificações


no decorrer dos anos. A princípio, a sublimação foi tida como atividade de criação humana
176

sem aparente relação com a sexualidade, provocando o deslocamento da força pulsional


sexual para investimentos em objetos socialmente valorizados, como as atividades artísticas,
por exemplo. Nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud ([1905] 1996) afirmava
que a sublimação envolvia um escoamento, para outros campos, de excitações intensas
originadas das fontes da sexualidade.
Essa primeira teoria freudiana situava a sublimação como uma defesa,
considerando as grandes produções humanas como originárias da sexualidade infantil, como
foi por ele visto no caso de Leonardo Da Vinci ([1910], 1996) que será comentado logo
abaixo. A pulsão mudaria assim o seu alvo, de-sinvestindo-se de sua qualidade sexual;
dessexualizá-la seria resultado do recalque sobre a sexualidade perverso-polimorfa da criança.
Quando aqui pontuamos sexualidade perverso-polimorfa, falamos da satisfação que advém
das múltiplas zonas erógenas do corpo, e que o prazer se centrará em certas fixações
relacionadas às fases da sexualidade.
Em Introdução ao narcisismo ([1914], 1996), Freud ressaltou que a dinâmica da
sublimação dependia da potencialidade de satisfação narcísica para que o objeto sexual
pudesse ser dessexualizado de modo que a criação passasse pelo ideal do criador. Mas o que
na realidade ocorre é que o sujeito jamais se desaloja de seu originário desamparo, ele precisa
fazer uma eterna negociação com os seus conflitos.
Em O eu e o id ([1923], 1996), Freud afirma que o eu terá que tolerar e participar
das atividades de uma outra parte dos investimentos objetais que permanecem sob o domínio
do Id. O eu vai trabalhando para que as pulsões de morte controlem a libido no Id. Assim, a
sublimação passa a considerar a própria pulsão sexual, trazendo-a de volta do recalque,
reutilizando a pulsão, pela via do retorno do recalcado, na produção criativa de novos objetos
que possam oferecer satisfação. Rompendo com as fixações originárias e se livrando das
idealizações, sublimar é retornar às origens míticas do psiquismo e permitir novas formas de
erotismo e de gozo. Criar é romper fixações e idealizações presentes no circuito pulsional.
(PARAVIDINI et al. 2013, p. 1)
Em uma definição panorâmica, a sublimação se caracteriza pelo desvio das
pulsões de seus alvos sexuais em direção a outros que não apresentam nenhuma relação
aparente com o sexual. A sublimação descreve algo da pulsão que corresponde à libido do
objeto. E a exigência feita a esse objeto é a de que ele seja valorizado socialmente. A
sublimação nada mais é, como lembra Freud, do que uma forma de satisfação da pulsão,
satisfação obtida pelo desvio do alvo, de modo que ela seja obtida em outro lugar. O destino
177

pulsional da sublimação é oposto às paralisações e fixações pulsionais. O tônus se forma na


plasticidade e movimentação pulsional.
A pulsão é plástica e, por ser plástica, vários são os caminhos que podem levá-la à
satisfação. Ela pode ser recalcada, “revestida em seu oposto”, retornar em direção ao eu ou ser
sublimada. A pulsão manterá o seu teor sexual, cuja finalidade agora passará a ser social
(CRUXÊN, 2004, p. 9). É só na articulação com a cadeia de significantes que uma certa
ordem é imposta às pulsões, que quase sempre estão soltas quando não submetidas ao mundo
dos signos, e, portanto, da ordem. Essa ordem sendo-lhe externa, porque é a ordem dos signos
e não das pulsões, torna possível apenas uma satisfação parcial, e, não total, sempre almejada.

O que nos interessa no momento não é tanto a impossibilidade da pulsão ser


satisfeita, mas as incontestáveis maneiras dela ser satisfeita..., parcialmente. Se por
um lado a submissão ao mundo dos signos impede a satisfação plena, por outro lado,
essa mesma submissão multiplica de forma incomensurável suas possibilidades de
satisfação. Este é o equívoco fundamental da pulsão. O mundo ao qual ela se dirige
é um mundo emprestado, mundo no qual não há que buscar o objeto perdido, posto
que ele jamais o habitou. (ROZA, 1990, p. 70)

Freud tomou Leonardo da Vinci como exemplar do processo de sublimação.


Detentor de uma imensa curiosidade, Leonardo tornou-se reconhecido como um gênio que
não encontrou limites. Isso pode ser evidenciado pelos registros de muitas de suas criações e
estudos, em vários cadernos. Dentre as suas anotações, uma recordação lhe veio de súbito, de
sua tenra infância. “Guardo como uma de minhas primeiras recordações que, estando em meu
berço, um abutre desceu sobre mim, abriu-me a boca com sua cauda”. O que se tem aí é uma
“recordação [que] não poderá certamente, ser considerada real. (...) Parece tão pouco provável
e tão fabuloso. (FREUD, 1996, p. 90).

Na realidade, não é o talento artístico a resultante da vicissitude sublimatória, mas


sim, a fantasia que se manifesta de maneira recorrente e peculiar, através dessa
atividade, isto é, a emergência de certos indícios que deixam transparecer lances de
uma outra cena, que lhe habita o inconsciente na forma de representações insabidas.
Assim, a arte enquanto fonte de expressão inconsciente é explicada por Freud
através da fantasia do artista. (MARTINS, 2009, p. 68)

Assim, o efeito da fantasia é o de possibilitar ao artista, através de sua obra, expor


a sua relação com a realidade psíquica. “A obra artística, por assim dizer, “embrulha” o
recalque de seu autor na forma estética, a qual proporciona a satisfação ao artista, na medida
em que essa suporta a expressão do representante pulsional – a Vorstellungsreprasentanz. A
representação da pulsão constitutiva do inconsciente deteria assim, o seu destino enquanto
pulsão, na fantasia do sujeito”. (ibid., p. 70)
178

Ora, mas as fantasias nos causam sentimento de repulsa, visto que são oriundas
daquilo que é recalcado. Freud conjectura que, caso o artista nos relatasse suas fantasias, isso
nos causaria, de imediato, vergonha, exatamente como aquela que vivemos numa sala fechada
com o analista. Esse relato desprazeroso nos leva a sentir repulsa, ou, então, quando é contado
por um terceiro, nos deixa indiferente ao conhecimento de suas fantasias. A grande questão
em voga é que, ao contrário, quando um escritor criativo nos apresenta suas façanhas, ou nos
relata o que julgamos ser seus próprios devaneios, sentimos um grande prazer. Lacan (2008,
p. 166) afirma que, “os artistas utilizam a descoberta das propriedades das linhas para fazer
ressurgir alguma coisa: que eu esteja justamente lá onde não se sabe mais para onde se virar –
ou seja, exatamente, um lugar nenhum”. Isto porque:

A expressão estética que nos é oferecida promove liberação de um prazer


proveniente de fontes psíquicas profundas, como nos revela Freud. Sendo
assim, a forma estética propicia o com-partilhamento da sublimação do
artista, como possibilitadora de uma liberação de tensões de nossos próprios
estratos psíquicos mais profundos. Ora, a expressão artística também suporta,
no sentido de amparar e não reparar, as fantasias dos expectadores, ou seja,
deixa-o livre de reprovações, julgamentos e vergonha frente aos seus próprios
desejos. Fantasias que comumente se omitem frente às revelações que a fala
proporciona.
Tanto na religião quanto na ciência, embora estruturas de sublimação e,
portanto, referidas ao mistério da origem, podemos perceber um afastamento
do ato criativo. Na religião, este afastamento se refere à burocratização e à
ritualização, perdendo com isto a religião sua referência à origem e à criação.
Na ciência, do mesmo modo, as referências ao positivismo lógico e à prova
experimental demonstrativa reduzem os pressupostos criativos a meras
correspondências. Ambas, religião e ciência, podem manter suas estruturas
apesar da ausência de questionamentos e de referência ao ato criativo. Na arte
é diferente. (FRANÇA, 1997, P. 136)

Não nos esqueçamos de que a origem da fantasia se localiza na infância. Com a


derradeira entrada no universo adulto, a brincadeira vai cedendo seu lugar ao encobrimento
das representações recalcadas às outras pessoas. O artista constrói uma brincadeira de
“adultos” quando contorna seu/nosso recalque através da fantasia. Mas a questão não se
encerra aí, quando se leva em consideração que Lacan trouxe uma forma mais clara de se
pensar a desnaturalização do corpo pela psicanálise. O que Freud nos mostrou em Introdução
ao Narcisismo é que toda relação com o objeto tem como ponto de partida uma relação
narcísica, por assim dizer, imaginária. Ocorre que os objetos que irão se constituir a partir
dessa relação narcísica, não são os objetos da pulsão (ROZA, 1990, p. 73). Esta se usa deles
para alguma satisfação advir. Para que isso ocorra, faz-se necessário que, nesses objetos, haja
um mínimo de real, “um mínimo de coisidade”, “sem a qual não haverá a dose mínima de
satisfação exigida pela pulsão”.
179

As nossas relações com os objetos são sempre mediadas pela fantasia, levando-
nos ao estatuto da coisa (Das Ding). “Esse objeto estará aí quando todas as condições forem
preenchidas, no final das contas, é claro que o que se trata de encontrar não pode ser
reencontrado. É por sua natureza que o objeto é perdido como tal. Jamais ele será
reencontrado. Alguma coisa está aí esperando algo melhor, ou esperando algo pior, mas
esperando”. (LACAN, 2008, p. 68)

5.6 Entre a Coisa (das Ding) e a fantasia

Os objetos capturados pelo sentido humano da visão são caracterizados por Kant
como “fenômenos ou entes do sentido: objetos da percepção que possuem uma materialidade
empírica” (QUINET, 2002, p. 33, 37). De maneira bem resumida, a experiência para Kant é
uma síntese das percepções, na qual a percepção visual ganha um papel de destaque. Ora,
“nos fenômenos, os objetos e mesmo as qualidades que lhes atribuímos são sempre vistos
como algo de realmente dado”. A partir disso, podemos dizer que a experiência nos dá os
objetos como fenômenos, mas nunca as coisas em si. A coisa em si (das Ding), diferente do
objeto da experiência fenomenológica, não tem como ser conhecida, por não ser apreendida
pela percepção visual ou qualquer outra e, tampouco, pela representação. “A coisa em si é a
coisa considerada como independente de nossos sentidos e de um conhecimento empírico”. O
que nos resta então é apenas [pensar] na coisa em si, uma vez que “conhecer e pensar se
divorciam, seus objetos divergem”.
Lacan retoma o caminho aberto por Kant com o conceito de coisa em si para
formalizar o seu conceito de objeto ao qual nossas primeiras visitações se deram no capítulo
4. Associar a coisa em si e objeto a é falar da sua irrepresentabilidade, aproximando-a do
conceito freudiano de das Ding. “O para além do mundo fenomenal é o para além do
imaginário e do simbólico que o sustenta”. O que isso quer dizer? O registro do Real é aquele
que escapa ao espelho e à representação, no lugar do nada, do “nenhum ser”, restando apenas
seu semblante. O objeto a é assim tomado como véu de ser para o sujeito. O ser é o furo. É a
falta-a-ser. O ser é nada. Esse falso ser, apoiado no simulacro do objeto a, encontrará
suportes, “encarnações determinadas pela pulsão do sujeito, ou seja, as quatro modalidades do
objeto a: oral, anal, olhar e voz”. Vamos nos ater às duas últimas.
180

Pensamos no objeto a como perda quando ele se reveste das imagens semânticas
relativas aos lugares erógenos do corpo: o seio, o olhar, a voz etc. Todas essas
imagens são, na verdade, capas de a, máscaras carregadas de uma significação
corporal, maquilagens que Lacan categoriza com o termo “semblante de ser”; mas,
insisto, o próprio objeto a é, em si, um real opaco, um gozo local, impossível de
simbolizar. (NASIO, 1993, p. 108)

A partir disso, pode-se melhor compreender a articulação entre o Simbólico-Real-


Imaginário na trama da constituição do ser. O simbólico, esse que se faz banho de linguagem,
vestimenta significante ao bebê, age como barreira entre o imaginário da ilusão do incesto e o
Real enquanto furo, ao mesmo tempo em que os articula. O Registro do Imaginário,
trabalhado no capítulo anterior, é o campo do visível, dos objetos perceptíveis e da imagem
especular. É onde reina a falsa ilusão de um eu que governa, enquanto, na verdade, o cargo do
governo compete ao simbólico, ao Outro enquanto inscrição da lógica significante. E o Real,
esse que esta escrita teimosamente busca, em que o corpo se perde, reivindica um lugar na
cena. Contudo, ele é o lugar do registro pulsional. Assim, o Simbólico estrutura-se por conta
do Édipo, esse cujo significante dado pela interdição paterna (Nome-do-Pai), esvazia a
satisfação (gozo) materna no lugar do Outro do sujeito.
A Coisa analítica de Freud, das Ding em Lacan e a Coisa em si em Kant, é nela
mesma vazia, sem substância. “É aquilo em torno do qual se organiza toda a atividade do
sujeito, toda sua orientação subjetiva”. A Coisa ordenará a percepção do ser conforme as
coordenadas do desejo lançada à primeira experiência de satisfação vista no Projeto
(QUINET, ibid., p. 50). A Coisa em psicanálise é da ordem do irrepresentável e, por ser
irrepresentável, retorna em outro lugar numa tentativa de se fazer abordar. Esse retorno se dá
através do gozo no sintoma. O vazio da Coisa em si é o lugar da Lei moral. “Lá onde há das
Ding como Coisa vazia, encontraremos a lei moral, lei do supereu que comanda o sujeito e
que dá o aspecto imperativo ao sujeito. A Coisa é, portanto, esse elemento que o sujeito isola
na origem e que se apresenta cada vez que seu interesse (sempre marcado pela libido) é
despertado por outro”. (ibid., p. 54)
Portanto, a Coisa, por definição, está fora do significante. Ela confere a lei do
desejo. Ela guia o caminho do desejo, nas coordenadas simbólicas pelos [traços] significantes
da primeira experiência de satisfação. O que barra a Coisa é o traço significante, ou traço
unário, “marca da identificação do sujeito no registro simbólico”. O traço, então, vem ocupar
o lugar da Coisa. Esse traço é a marca da Lei dada pelo pai, na medida em que a mãe ocupa o
lugar da Coisa (ibid., p. 55). Esta é barrada pelo significante da lei que vem no seu lugar, mas
que não a nomeia. Esse significante, que barra a Coisa, chama-se Nome do Pai (significante
181

da lei). A lei que ocupa o lugar da Coisa se apresenta a nós como a lei moral, lei do Supereu
no Édipo. O universal da lei moral, uma lei para todos é, paradoxalmente, o que toma o lugar
do mais particular do sujeito, a Coisa. A forma como o ser humano articula o desejo, que
nasceu dessa Lei, é que nos faz trilhar caminhos distintos e subjetivos retificados pelo objeto
a.
A articulação assim se ata: o objeto a aponta ao retorno no real do gozo esvaziado
da Coisa pela Lei simbólica, resto da operação simbólica promovida pela Lei. Essa Lei vem
para cortar o estado de completude impossível ao gozo do desejo materno, efetivado pela
transgressão ao incesto. A Lei esvazia esse lugar mítico e impossível. Um lugar que só
aparece como traços alucinatórios para fazer com que o desejo não pare. O objeto a não deixa
de ser experiência, não na ordem fenomenológica. Mas experimentamos o objeto a na medida
em que causa o nosso desejo ao final da entrada da Lei.
É neste ponto que se cobrem de relevância as origens de um das Ding neuronal,
termo que foi utilizado por Freud no Projeto ([1895], 1996, p. 377-380), ao discutir suas
hipóteses sobre o aparato psíquico humano, com as quais demos início ao capítulo 4. O ego,
em sistemas de neurônios permeáveis quando se encontram em “estado de desejo”, acaba por
catexizar novamente a lembrança de um objeto, colocando o processo de descarga em
atividade. Ocorre que, ao re-catexizar o objeto, a satisfação não se impõe, visto que o objeto
não é real, “mas está presente apenas como ideia imaginária”. Isso porque o sistema de
neurônios permeáveis é incapaz de estabelecer essa distinção, já que só pode “funcionar como
base da sequência de estados análogos entre neurônios”.
Ao lado da catexia do desejo, há uma percepção que corresponde a essa catexia
apenas em parte. As catexias perceptivas são sempre catexias de complexos e não de
neurônios isolados. A suposição de Freud é a de que a catexia do desejo se relaciona com o
neurônio a + neurônio b, e as catexias perceptivas, com o neurônio a + neurônio c. “Também
aqui a experiência biológica ensina que não é seguro iniciar a descarga se as indicações da
realidade não confirmarem a totalidade do complexo, mas só uma parte dele”. Podemos dizer
que o neurônio a se mantêm em constância, e que o neurônio b é, habitualmente variável. “A
linguagem aplicará mais tarde o termo juízo a essa análise e descobrirá a semelhança que de
fato existe [por um lado] entre o núcleo do ego e o componente perceptual constante e [por
outro] entre as catexias cambiantes e o componente inconstante.” A linguagem nomeará o
“neurônio a de a coisa, e o neurônio b, de sua atividade ou atributo – em suma, de seu
predicado”. O neurônio a (a coisa) se apresenta constante, no meio externo e, no mundo
interno, liga-se a uma identidade perceptiva, que não se representa sem a presença do
182

neurônio b, que seria os seus predicados. “A materialidade real que não pode mais ser
alcançada, não sendo assimilável ao pensamento, deixa um lugar vazio, criando uma
diferença, que será apreendida e nomeada através do juízo”. (FABRINNI, 1999, p. 76).
Freud (ibid., p. 380-384), afirma que julgar é um processo dos sistemas de
neurônios impermeáveis graças à inibição pelo ego “e que é evocado pela dessemelhança
entre a catexia do desejo de uma lembrança e a catexia perceptual que lhe seja semelhante”. A
coincidência entre as catexias se converte num sinal biológico que coloca fim à atividade do
pensamento, permitindo uma descarga. Quando as catexias não conversam, a atividade do
pensamento retoma curso, que voltará a ser interrompida pela coincidência entre ambas. Se o
neurônio a coincide nas duas catexias, mas o neurônio c, por exemplo, é percebido no lugar
do neurônio b, a atividade do ego trilhará as conexões de c, e mediante uma corrente de
atividade intercelular, fará surgir novas catexias até que se encontre acesso para o neurônio b
desaparecido. O projeto será voltar ao neurônio b desaparecido, liberando a sensação de
identidade, isto é “o momento em que só é catexizado o neurônio b e em que a catexia
migratória desemboca no neurônio b”. Ele será alcançado quando um deslocamento de
quantidade de ordem intercelular se faça ao longo de cada via possível. O juízo se caracteriza
como uma atividade intelectual, que substitui o recalque, possibilitando o reconhecimento de
algo que:

tendo sido percebido originalmente como pura exterioridade, deixa em seu rastro um
nada, um vazio, uma impossibilidade ou um “não”. Este “não” é o que dá –
paradoxalmente, a possibilidade para eu decidir se uma ‘descarga” (ou um
investimento objetal) pode ser efetuada tendo como alvo um objeto que se encontra
no mundo, na realidade, para além da representação. É claro que a regulação desta
descarga pelo processo de juízo ou julgamento só se tornará possível se houver
coincidência entre o investimento ligado a uma lembrança e o investimento
perceptivo em algo que guarde com a mesmas relações de semelhança. (FABRINNI,
ibid., p. 76-77)

Isso nos leva a crer que a identidade da coisa, como perdida, será substituída, do
ponto de vista do funcionamento neuronal, por algo que lhe seja equivalente, jamais igual. Por
isso, iremos insistir no fato de que a separação da mãe ou do seio que a representa
originalmente para a criança, “é uma espécie de imago da coisa freudiana, das Ding”.
Estamos em torno de uma identidade inicial perdida, um “fora-do-significado” (ibid., 1999, p.
80).
Roza (1990, p. 83) enfatiza que das Ding, como já apontado acima, é o objeto
perdido, ainda que nunca o tenhamos tido e que deve ser representado. O que é mais
importante ao entendimento dessa questão reside no fato de que, ao procurarmos essa coisa, a
183

trama das representações (Vorstellungen) se constrói na trilha da memória. O que fazemos é


girar em torno de um centro que nunca é atingido: das Ding. A partir do momento em que a
pulsão constrói o seu primeiro representante, visto que falamos de pulsão a partir de suas
representações, coloca-se uma proximidade em relação a das Ding, mas também uma
distância. Por quê? Porque uma vez constituído o registro das representações, sempre
estaremos distantes do objeto perdido.

Freud confere à sua Vorstellung um sentido próprio. Para ele, a Vorstellung diz
respeito ao elemento imaginário do objeto, a uma composição imaginária que forma
o que Lacan chamou de “substância da aparência”, entendendo-se “substância”
como a decepção fundamental com que é marcada toda aparição. A Vorstellung é o
que se constitui ao redor da coisa (Ding) como fantasma. (ibid., p, 86)

5.7 Ritornellos: repetir é preciso

Como discutido no Estádio do Espelho, mas agora avançando para a relação com
Das Ding, a mãe ocupa o lugar de das Ding para o infans. Ela não é o das Ding, mas ocupa
esse lugar, na medida em que das Ding é o centro por onde circulam as representações-coisa.
Isso fica muito mais compreensível quando se percebe que “das “em alemão pertence ao
gênero neutro o que lhe permite ocupar a posição imantadora das representações-coisa.
“Desejar a mãe é, portanto, desejar das Ding”. Essa mãe é interditada pela cultura, e graças a
isso nos constituímos como humanos, ou seja, a interdição do incesto funda o humano. Ora, o
que possibilita a demanda, fundadora do inconsciente, é a impossibilidade de satisfazer o das
Ding. Possuir o das Ding é análogo à infração do incesto ao registro do natural. Ora, satisfazer
o desejo pela mãe nos levaria ao fim, ao término, “à abolição do mundo inteiro da demanda,
que é o que estrutura mais profundamente o inconsciente do homem” (LACAN, 2008, p. 85).
Interessante pensar, com Lacan através de Freud, essa ideia de que não existe um Bem
Supremo e que esse Bem Supremo, que é das Ding, que pode ser caracterizado pela mãe, o
objeto do incesto, é um bem proibido, não havendo, de fato, outro bem.

O mundo freudiano, ou seja, o da nossa experiência, comporta que é esse objeto,


Das Ding, enquanto o Outro absoluto do sujeito, que se trata de reencontrar.
Reecontramo-lo no máximo como saudade. Não é ele que reencontramos, mas suas
coordenadas de prazer, e nesse estado de ansiar por ele e de esperá-lo que será
buscada, em nome do princípio do prazer, a tensão ótima abaixo da qual não há mais
nem percepção nem esforço. (ibid., 2008, p. 68)
184

Algo no nível das representações ou significantes aponta para a coisa. “Esse algo
não é uma coisa, nem tampouco a própria coisa disfarçada, travestida de objeto, mas um vazio
que não pode ser preenchido adequadamente por objeto algum”. Isso é o que Lacan nomeia
por “objeto a”. Para que não façamos confusão, o objeto a não é o das Ding sobre que vimos
falando, mas a testemunha do “das Ding como objeto perdido”. Testemunha porque não se
trata de um objeto específico, mas de um furo, um vazio. Esse objeto, por ser um furo, é
ausente, para sempre. O objeto a é objeto causa do desejo e não o objeto do desejo. Se
pudéssemos nomear o objeto do desejo, falaríamos de fantasia. A satisfação só será possível,
impreterivelmente quando mediada pela representação. Já vimos que a pulsão não tem objeto
próprio (natural), seu objeto será oferendado pela fantasia, obrigando à pulsão a articulação da
cadeia significante.

A sexualidade constitui-se a partir da captura das pulsões pela rede significante. O


sexual pertence ao registro do desejo e não ao registro da pulsão, e, enquanto tal,
implica, além do imaginário, o simbólico. O real da pulsão permanece como o seu
suporte. O sexual é a forma ou determinação que a pulsão vai receber, e não o
atributo da pulsão ela mesma. Enquanto pura potência, a pulsão é vazia de forma, de
sentido, não é nem sexual nem agressiva, nem de sociabilidade, mas a pulsão, pura e
simplesmente. Quando distinguimos “pulsão oral”, “pulsão anal”, “pulsão fálica”,
“pulsão escópica” e etc., o que estamos fazendo é apontando a diversidade das
fontes pulsionais e não estabelecendo uma diferença qualitativa com respeito às
pulsões elas mesmas. (ROZA, 1990, p. 144-145)

A função do objeto a, por mais estranho que possa parecer, é ser “produtor da
falta, e sua relação com a pulsão é a de ser contornado por ela”. “Aquilo que aponta para das
Ding, mas que ao mesmo tempo a contorna, é a pulsão” (ibid., p.88-90). Interessante notar,
ainda com Roza (ibid., p. 97), que, em Freud, a característica fundamental do aparelho
psíquico é que ele está voltado não para a satisfação da necessidade, mas sim para aluciná-la.
Ora, o princípio de realidade não se dá à aparição para corrigir o mundo interno em relação ao
externo, mas sim o “mundo interno em relação a ele próprio”. Na verdade, o objeto procurado
não é aquele que encontramos. O que encontramos é um efeito ilusório de nossa procura. A
função do objeto encontrado é preencher o vazio do objeto procurado, sem jamais consegui-
lo. Enquanto presença ilusória, ele não possibilita a satisfação plena. Esse é o objeto do
desejo. Das Ding é o objeto da pulsão. (ibid., p. 105)
É no caminho de incessante busca para atingir das Ding que se cria o lugar do que
é perdido. “O objeto a é o furo brilhante do olhar que porta a imagem do gozo, imagem
inapreensível, sempre a escapar”. Esse furo nos leva às aberturas, orifícios, buracos ou bordas
erógenas geradas sempre pela tensão e movimento. O objeto a não tem imagem especular, ele
185

devolve o seu vazio, aquela parte onde a forma não se faz imagem. A esse objeto inacessível
ao espelho é que a imagem especular vem dar uma vestimenta, assumindo uma infinidade de
formas (FRANÇA, 1997, p. 89). O objeto a é faltoso por excelência e, na medida em que o
desejo, para se colocar em circulação, mantém uma relação íntima com a falta, o objeto a
assumirá o lugar de objeto causa do desejo. Sem falta não há desejo, porque o desejo precisa
se prestar da falta para se movimentar. Por isso, o objeto a nos serve para assumir o lugar de
falta-causa. Jorge (2000, p. 52, 54-55), de forma clara diz:

Assim, se Lacan destaca quatro objetos a primordiais, cujo traço comum é o de não
possuírem imagem especular – quais sejam, o seio, as fezes, o olhar e a voz -, é justo
porque eles são unidos pelo mesmo denominador comum, o nada. O seio é o objeto
a somente na medida em que “especificado na função do desmame, que prefigura a
castração”, e o excremento, na medida em que é o objeto que o sujeito “perde por
natuteza”. O olhar e a voz, do mesmo modo, presentificam tal perda, uma vez que
representam “suportes que [o sujeito] encontra para o desejo do Outro”.

A demanda da criança mira o corpo nutridor e erra o alvo, ao passo que o desejo
visa ao incesto impossível e se depara com o seio erótico. Por isso, insistimos na ideia de uma
demanda insatisfeita na medida em que nunca será encontrado o objeto real que se almeja de
que decorre o desejo também insatisfeito, porque nunca alcançará, na mesma medida, a meta
impossível, o incesto. A relação se construirá da seguinte maneira: a demanda não é satisfeita
pelo objeto concreto que lhe falta e o desejo ficará insatisfeito por não poder atingir o incesto
impossível. À demanda sempre lhe faltará o objeto que é, portanto, irrealizável, ao passo que,
ao desejo, falta o incesto, mas ele se “ergue” no sentido de se deslocar, na medida em que
encontra pelo caminho um substituto, o objeto alucinado, objeto este que se apresenta sob a
capa da fantasia.
Evidentemente o desejo é intolerável, mas ainda capacitado para nos proteger de
um gozo infinitamente mais intolerável. E vamos aqui compreendendo as tais satisfações
parciais do desejo, ganhas pelo caminho da busca de uma satisfação total jamais atingida.
“Todos esses objetos de natureza diferente sustentam e mantêm o desejo aquém da suposta
satisfação absoluta que seria a posse incestuosa do corpo total da mãe”. Repetimos: “a criança
jamais possuirá o corpo inteiro da mãe, mas apenas uma parte”. E essa parte só existirá na
cabeça dela pela alucinação e por uma outra produção psíquica, a fantasia, que são
equivalentes no que tange à “posse” psíquica do objeto parcial do desejo”. (NASIO, 1993, p.
110-111)
Queiroz (2007, p. 55), dirá que, para Lacan, a construção freudiana de objeto
perdido é um tanto quanto nostálgica. Lacan prefere conceber que há uma falta inicial sem
186

apoio de objetos próximos à satisfação da necessidade. “É enquanto faltante que tal objeto
nomeado como ‘objeto a’ põe em movimento o sujeito e não o sujeito que, por iniciativa
própria, lança-se em sua procura”. Lacan parte do simbólico no qual todo objeto assume valor
de troca. Trata-se sempre de uma dinâmica em que o sujeito, na relação com objeto, demanda
ou recusa, proposto ou imposto, ou se trata de um objeto que lhe exige, signo de amor ou
ódio. “O objeto a, enquanto real, corresponde ao objeto pulsional”. Mas resta ainda perceber
que esse objeto de pulsão, o objeto a, é uma espécie de quociente constante, uma forma de
designar com a letra “a” uma desconhecida, a constante da perda através das perdas
sucessivas. Diferentes elementos virão alternadamente ocupar o lugar vago do furo, para
depois abandoná-lo. (NASIO, 2007, p. 71)
Dessa forma, vemos na boca e no ânus os dois orifícios do corpo por onde passam
as primeiras marcas das trocas primordiais entre o sujeito e o Outro e que receberão “a
significação segundo o seu valor de dom recebido ou recusado. Dar ou tomar são verbos
ativos pelos quais o sujeito interroga o lugar que ele ocupa na relação com o Outro”. E é
justamente isso que está em causa na pulsão escópica, “qual é o desejo do Outro para além do
que ele mostra e do que o bebê é capaz de captar?” (ibid.). Ora, não é o objeto enquanto tal
que é desejável, porque se assim o fosse, estaríamos às voltas com algo mais apreensível,
mais linear e menos retórico, por assim dizer, mas o que está de fato em jogo, é esse tal
desejável objeto, enquanto objeto do desejo do Outro. Aí sim, a pergunta trama-xamã desse
grande imbróglio psíquico se faz história.
Assim como ver se trata da função do olho e o olhar da pulsão escópica, o ouvir é
função do ouvido e a voz é objeto da pulsão invocante. Dessa forma, o olhar como objeto a,
“longe de assegurar a possibilidade da visão, é o que não deixa ver o objeto porque o
atravessa”. Sempre estaremos atrelados a um outro que nos olha e nos captura. O olhar vem
primeiro de outrem e, por tal razão, a pulsão guarda um lugar especial na formação do Eu
dada na relação primitiva com o Outro (ibid., p. 56-57). No dizer de Queiroz (2007, p. 61):
“sem o olhar do outro, não existimos, mas a maneira como somos olhados define um destino”.
Na sua relação com o conceito psicanalítico do gozo correlato ao sintoma,
segundo Nasio (2014, p. 84), o objeto a é o nome que o real assume quando o localizamos no
cerne de um acontecimento que se repete. “O objeto pequeno a é o nome do gozo que o
sujeito experimenta inconscientemente na cena fantasística e que experimenta
conscientemente no sintoma” (ibid., p. 84).
O gozo é o que vem para substituir, mais precisamente, a perda da unidade mãe-
criança. “Podemos imaginar um tipo de gozo antes da letra”, antes da entrada do simbólico,
dada na relação unificada e sem mediadores entre a dupla, uma ligação “real entre
187

elas, que cede ante o significante”, anulada devidamente à função paterna. Uma parte dessa
ligação real é encontrada na fantasia, “na relação do sujeito com o resíduo ou o subproduto da
simbolização”. (FINK, 1998, p. 83)
Tendo isso em vista, a questão, que aqui se precipita no que diz respeito ao corpo
em cena, assim se enuncia: se pensarmos na fantasia como um estado no qual a divisão
subjetiva, essa que é operada por um corte significante, não vacila, deixando o sujeito fixado
em certos fragmentos sobreinvestidos do corpo, não estaríamos falando de um sujeito cuja
travessia não se fez e acaba congelando significantes em cena, em vez de “metonimizá-los”
como caminho, atalhos em construção? Com medo de apagar-se nessa cadeia capaz de trilhar,
própria do sujeito da linguagem, a fantasia se faz forma ao desejo que não cessa. “A realidade
psíquica é uma fantasia forjada no movimento de contornar e tratar o furo do real; a essa
definição, acrescentamos agora: o modo segundo o qual o sujeito trata o real é um modo
corporal, é com o corpo que a fantasia se sustenta e faz barreira ao gozo”. Corpo este que se
tenta unificante à imagem que sempre falta. Nas encruzilhadas, é o corpo que responde como
substância corporal de um suporte imaginário na construção da sua “defesa”, a fantasia. (ibid.,
p. 77-78)

Aí está o limiar, a condição mínima para que uma fantasia se instaure: que o sujeito
tome este ou aquele significante vindo do Outro com se lhe fosse destinado, isto é,
como signo. No nosso caso, o sujeito assume uma imagem significante para o signo.
Investir uma imagem significa supor-lhe uma destinação sem perceber que somos
corporalmente concernidos pelos efeitos que ela produz no real do nosso corpo. É
esse poder de provocar efeitos no real que outorga valor significante à imagem.
Há fantasia quando a imagem significa alguma coisa para o sujeito; nesse caso a
imagem é um signo; e, quando a imagem leva o sujeito à ação, a imagem é
significante. (NASIO, 2007, p. 82)

Talvez se possa pensar a construção em cena, justamente desse lugar, no


precipitar-se no real, como possibilidade de se fazer imagem significante? Interrogação que
adiantamos, antes de procedermos às elaborações que articulam o enigma do duende no real
do corpo em cena, questão que, junto a outras, será devidamente trabalhada no capítulo 6, não
sem antes passarmos em revista os temas entrelaçados do sintoma e do gozo.

5.8 Sintoma: mal que nos fala num gozo bem-dito

O sintoma pode ser tido como uma das “imagens através das quais a experiência
se apresenta”. Se transportarmos isso à análise, porque, afinal, é daí que toda essa rede de
188

teorias se alçou, os psicanalistas certamente se interessariam unicamente por aquele lugar


onde a linguagem tropeça. Onde a fala vacila, o gozo mostra sua face. Nos momentos em que
somos ultrapassados pelo dito, surge o gozo. O sintoma é um “mal-estar que se impõe a nós,
além de nós, e nos interpela” (NASIO, 1993, p. 13). Um mal-estar que necessariamente nos
reconduz à estrutura do inconsciente, ou seja, à sua face significante, portanto, à face da
linguagem. Então, pode se pensar que o sofrimento é “um acontecimento dentre outros que
lhe estão rigorosamente ligados, um acontecimento que, ao contrário do signo, não tem
sentido”. É necessário retomar aqui um fio que foi lançado nas primeiras páginas do capítulo
4:

A ordem do significado é efeito da cadeia do significante e, justamente por isto, é na


cadeia do significante que o sentido insiste. A significação não está, portanto, em
nenhum elemento particular da cadeia. O deslizamento incessante do significado sob
o significante, por ação do inconsciente, não quer dizer que não haja a prevalência
de um sentido em jogo. Lacan faz questão de pontuar que seria um erro "pensar que
a significação reina irrestritamente para-além. Pois o significante, por sua natureza,
sempre se antecipa ao sentido, desdobrando como que adiante dele sua dimensão"
(LACAN, 1998, p. 505). É precisamente no significável que se engendra a paixão
pelo significado. A fascinação por certas metáforas cristaliza o sentido, emperrando
o deslocamento (Verschiebung) metonímico dos significantes na cadeia. Do
congelamento do significante nasce não só a paixão pelo sentido que,
inevitavelmente, surge sob a forma de um bem como ideal, mas também o
aprisionamento do sujeito ao gozo retirado desse sentido cristalizado, obstaculizando
o processo de significação e a posição do sujeito em relação ao desejo. (FERREIRA,
2002, p. 1)

O sintoma se traduz como um compromisso entre um desejo e sua realização.


Assim ele tem um sentido a ser revelado pela interpretação, ponte de construções
intersubjetivas que devem permitir a significação do sintoma ou a re-significação do material
que se faz causa dele. A intenção do sintoma reside no sentido que acaba revelando dos traços
singulares ao particular de cada sujeito. Se pensarmos na dimensão simbólica, a da cadeia
significante, o sintoma é mensagem que se sustenta num sentido recalcado a ser
decifrado/interpretado. Ora, pelos mecanismos de condensação e deslocamento vistos a partir
da dinâmica operacional dos sonhos, o sintoma tornou-se uma satisfação substituta de uma
série de fantasias e recordações de experiências traumáticas. O “sem sentido” se apresenta
porque há um significante de um significado (signo) recalcado. A cadeia significante -- como
vimos com Lacan a partir de sua máxima de que o inconsciente se estrutura como linguagem -
- precisará se articular para decifrar o sintoma, ou seja, fazer deslizar e desdobrar os
significantes recalcados que a ele estão ligados.
189

Ora, como se sabe, o significante é uma categoria formal, que, no caso do


sintoma, pode ser revelado pelos lapsos, sonhos, chistes e outros, cujas manifestações podem
ser “legitimamente qualificadas de acontecimentos significantes”. Se pensarmos na realidade
individual do sintoma, eles nunca se repetem idênticos a eles mesmos, mas do ponto de vista
formal e significante, eles são idênticos, justamente porque aparecem, “um por um, no lugar
do Um”. O que isso quer dizer? Que todos os acontecimentos que ocupam o lugar do Um se
repetem, idênticos, independentes da sua realidade material (ibid., 12-19). Cumpre aqui
entrarmos na notação lacaniana a fim de entendermos mais à frente, o que, desde o início
deste nosso trabalho, estamos buscando persistentemente, a saber: o que é mais propriamente
esse real que se faz cena.
Lacan nomeia o acontecimento significante por S1. O S é a notação da palavra
significante e o número 1 revela, justamente, que se trata de um acontecimento único, por
isso, dizíamos acima que o sintoma é sempre da ordem do 1. E é esse 1 que nos vem como
surpreendente imprevisto, ou seja, nos informa sobre fatos ignorados da nossa própria história
e, depois, vai se repetindo como outro Um e assim por diante. E aqui, com Nasio (ibid., p.
20), entende-se melhor o significante em sua trama na cadeia significante, por exemplo, por
meio do chiste. O chiste nada mais é do que dizer algo sem saber, “mas com tamanho senso
de oportunidade e tamanha exatidão, que todos riem”.
Segundo Dunker (2002, p. 31-34), Freud analisa o chiste como um processo social
e sua propagação. Ele nos proporciona uma satisfação manifestada pelo riso acompanhado por
uma sensação de relaxamento corporal. Ainda que proporcione satisfação, é inegável a
ineficácia de um chiste de se conter a si mesmo e “reaproveitar a graça do instante inicial”.
Por isso, é necessário se contar esse chiste a uma outra pessoa a fim de recuperar aquele
prazer evocado na primeira vez. Para o autor, uma série de propriedades da concepção de
Lacan referente ao gozo comparece nessa observação do chiste. Através da repetição, o gozo
vai se apresentando e, pela repetição, algo que fora perdido é retomado, “mas nessa retomada
preserva-se apenas um parco simulacro da experiência que a repetição visa reconstituir”. Sem
a mediação da linguagem, o gozo não pode ser denunciado.
O chiste revela o como e o quanto de gozo tem passagem e o quanto não tem, ou
seja, o quanto deverá permanecer sob recalque. Se pensarmos no chiste aqui, na matriz
linguística, ele é constituído por uma perda inaugural, tanto é que ele deve se “reciclar” para
um Outro, pois “não se pode contar o chiste para si mesmo..., nem recuperar a surpresa e
desconcerto que ele evoca com suas relações inusitadas”. Mas essa perda produz “mítica e
retrospectivamente” um retorno ao momento original quando não se mostraria perdido. Dessa
190

forma, as trocas ou a própria distribuição da libido serão responsáveis pela representação da


experiência de totalidade no tempo passado ou futuro.
A partir disso, pode-se pensar a dança como o caminho para a repetição de um
passo, de um retorno, permitindo que o objeto do desejo vá e volte como causa. Quer dizer, a
dança como responsável por encenar a alternância da repetição e do desejo, repetição que nos
leva a engatar o próximo passo, embriagando a cadência no desejo. E nesse desencontro com
o Outro, a face do duende se faria presença? Caminhemos passo a passo, de volta ao gozo.
Ainda segundo Dunker (ibid., p. 36-37), o gozo possui um duplo caráter, ou seja,
ligado ao significante e ao valor que “receberá sua solução em Lacan, através do
desenvolvimento do conceito de falo”.

O valor exprime assim a tensão entre a identidade e a diferença. Ele se determina


linguisticamente pela relação que um significante possui com os outros significantes
com os quais pode ser comparado, mas também pela troca que este significante
permite em relação a outros significantes, o que determina a sua significação. Por
exemplo, a palavra portuguesa angústia ou francesa angoise pode ter a mesma
significação que o alemão Angst, mas não o mesmo valor, isso por várias razões, em
particular porque, por exemplo, ao falar da sensação produzida por um animal
ameaçador, o alemão dirá Angst e o brasileiro medo. Isso ocorre porque na
comparação entre termos como ansiedade e medo em português, sem correlato
direto com o seu valor em alemão. Ou seja, a palavra pode ser trocada por uma
significação aproximada, mas não possui, comparativamente, o mesmo valor.
(DUNKER, 2002, p. 37)

O conceito de valor foi utilizado na linguística por Saussure, como diferença,


negatividade que indica os limites entre um significante e outro. Nasio (1993, p. 21) afirma
que um significante se repete idêntico a um outro, pois há sempre um acontecimento que vem
ocupar a casa formal do Um, enquanto outros acontecimentos, ausentes e virtuais ficam
aguardando o seu lugar na casa do Um. O Um é lido como o acontecimento efetivamente
ocorrido, e os outros acontecimentos, na espera do “trono” do Um, aguardam, tanto os
passados quanto os que estão por vir, a casa do Um.

O inconsciente é uma trama tecida pelo trabalho da repetição significante, ou, mais
exatamente, o inconsciente é uma cadeia virtual de acontecimentos ou “dizeres” que
sabe atualizar-se num “dito” oportuno, que o sujeito diz sem saber o que está
dizendo.
O inconsciente é uma linguagem que liga os parceiros da análise: a linguagem liga,
enquanto o corpo separa; o inconsciente ata, ao passo que o gozo afasta. (ibid., p.
23)

Se, para o eu, o sintoma vem à superfície como vestal da dor, para o inconsciente,
por sua vez, significa desfrutar de uma certa satisfação. É essa morada apaziguadora
191

inconsciente do sintoma que podemos tomar como uma das imagens principais do gozo. O
gozo seria uma satisfação inconsciente? Sim, mas isso seria simplório. Para não ficarmos na
superfície, é preciso caminhar com Nasio (1993) e Dunker (2002) a fim de entendermos a
teoria do gozo proposta por Lacan, teoria complexa que irá distinguir três modos de gozar que
serão imperiosos para as articulações a serem desenvolvidas no capítulo 6.

A palavra gozo evoca espontaneamente em nós a ideia de volúpia. Mas, como


frequentemente acontece, uma palavra do vocabulário analítico fica tão marcada por
seu sentido habitual que o trabalho de elaboração do teórico, muitas vezes, reduz-se
a desvincular a acepção analítica da acepção comum. Esse é exatamente o trabalho
que deveremos efetuar, aqui, com a palavra “gozo”, separando-a nitidamente da
ideia de orgasmo. (NASIO, 1993, p. 25)

Lembramos que Freud já dizia que o ser humano é “perpassado pela aspiração”
latente e nunca realizável de atingir um objetivo impossível, que é aquele da felicidade
absoluta. Essa felicidade se reveste de diferentes roupagens, dentre elas a de um “hipotético
prazer sexual absoluto”, vivenciado no incesto. Essa aspiração a que chamamos desejo, esse
ímpeto nascido pelas zonas erógenas corporais, gera uma tensão psíquica, “uma tensão tão
mais exacerbada quanto mais o ímpeto do desejo é refreado pelo dique do recalcamento”.
Quanto mais austero o recalcamento, mais o aumento de tensão se faz. Frente a esse
implacável muro chamado recalcamento, o desejo se articula de maneira simultânea para duas
vias opostas. A via da descarga (energia que se dissipa) e a via da retenção (energia que se
conserva e se acumula como uma energia residual).
Sendo assim, uma parte da energia atravessará o muro do recalcamento,
descarregando-se ao exterior, “sob a forma do dispêndio energético que acompanha cada uma
das manifestações do inconsciente (sonho, lapso ou sintoma)”. É essa descarga, incompleta
que nos proporciona certo alívio; a outra, confina-se no interior do sistema psíquico,
superexcitando as zonas erógenas, superativando assim o nível da tensão interna. E uma
terceira possibilidade, tão hipotética quanto real, a saber, a descarga total de energia, ou seja,
o prazer sexual absoluto, aquele da ordem do impossível para que o desejo se faça possível.
(NASIO, 1993, p. 26). Pensando com esse autor (ibid., p. 29), os três destinos apontados pelos
caminhos da energia psíquica corresponderiam ao que Lacan designou pelo termo de gozo,
em seus três estados de gozar. Teríamos na correspondência:
1. O gozo fálico como a energia que se dissipa durante a descarga
parcial, tendo como efeito um alívio relativo, sempre incompleto na leitura
192

inconsciente. Gozo fálico porque o limite que abre e fecha o acesso à descarga
energética é determinada pelo falo, se preferirem uma leitura freudiana, o
recalcamento. O falo (barreira/muro) regulará a parcela do gozo que vazará e a que
permanecerá dentro do sistema inconsciente. É nesse vazar que os acontecimentos
inesperados, palavras, fantasias e o sintoma darão as suas caras.
2. O mais-gozar é a energia (gozo) que permanecerá retido no
interior do sistema psíquico, cuja saída, de maneira um pouco grosseira, é
impedida pelo muro freudiano ou pelo falo lacaniano. O advérbio “mais” indica
essa energia não descarregada e, seu excedente o responsável pela constante tensão
da intensidade interna.
3. O gozo do Outro, estado tão almejado na mesma medida em que
se faz hipotético, corresponderia à situação perfeita, em que a tensão fosse
totalmente descarregada, sem o entrave do muro-falo, ou seja, sem limite algum.
Esse é gozo complicador, na medida em que o sujeito supõe no Outro, sendo o
próprio Outro, igualmente, um ser suposto.

Um parêntese relativo a esse último tópico se faz necessário, visto que, de alguma
maneira, o gozo do Outro acaba nos remetendo à questão da constituição subjetiva, cujo
olhar/toque/voz se fazem protagonistas da cena. Lembramos que, como afirmou Queiroz
(2007), qualquer que seja a resposta lançada do Outro à criança será sempre um desmentido
da realidade do desejo do Outro.
Dunker (2002, p. 38) diz que, através do conceito de falo, a teoria do valor,
explicitada acima, assumiu uma importância mais clara. “Se o falo não é o pênis é porque o
falo é o valor atribuído ao pênis”. O falo é capaz de introduzir o sujeito no problema da
diferença sexual, pois ele vai coordenando as trocas necessárias ao desejo junto ao valor de
gozo, efeito dessas trocas. Gradativamente, Lacan foi aprimorando o conceito de gozo, que
não apresenta mais tantas saídas através de operadores puramente linguísticos, e o falo, por
sua vez, foi se limitando. O que quer dizer esse limite? Que o falo passará a ser pensado como
uma função, a função fálica, por assim dizer. Se o falo toma o lugar de função, o gozo ganha
força e forma para ser inscrito. E dessa combinação teremos o gozo fálico. Construção
importante para delimitarmos, mesmo que ainda de maneira crua a relação do corpo dançante
em cena a um gozo fálico que ali se faz gesto.
Assim, na teoria lacaniana, o falo não vem como uma nomeação do órgão genital
masculino. Nasio (1993, p. 31) afirma que “é o nome de um significante muito particular,
193

diferente de todos os outros significantes, que tem por função significar tudo o que depende,
de perto ou de longe, da dimensão do sexual”. Ainda que o gozo não tenha significantes que o
representem, o falo se responsabiliza em delimitar o trajeto do gozo. O falo marca e significa
cada uma das etapas que o gozo percorre. “Ele marca a origem do gozo, materializa pelos
orifícios erógenos, marca o obstáculo com que se depara o gozo (recalcamento), marca ainda
as exteriorizações do gozo, sob a forma do sintoma...”.
Para Dunker (ibid., p. 42), Lacan mostrará que “o gozo é algo que se imagina e se
antecipa como realizado no Outro”. Para além de uma satisfação vivida na experiência sexual,
a pergunta de como tal experiência foi para o outro é sempre crucial. Crucial porque nessa
satisfação, como já vimos desde o infans, acaba-se por calcular a inclusão ou a exclusão da
satisfação do outro nesse container. E nesse movimento, a noção de gozo se faz por um
“ultrapassamento, um acréscimo, na realização da pulsão”. Haja vista, como vimos frisando,
que aquilo que retorna do Outro, o materno primordial da linguagem, sempre portará a marca
da insatisfação ou da parcialidade.

... o gozo é uma espécie de anomalia da experiência de prazer. O gozo se caracteriza


pela intensidade excessiva (além da satisfação), de duração repetitiva, com uma
certeza antecipada (imaginariamente eternizável).
Além disso, ele está a meio caminho entre uma grandeza positiva (prazer) e negativa
(dor). Se o gozo constitui uma anomalia do prazer conclui-se que ele aparecerá
também como uma anomalia no cálculo do prazer. (DUNKER, ibid., p, 48-49)

Não podemos pensar o gozo como não inscrito no cálculo do prazer. Ai está ele
sim, mas como anomalia no sistema. O gozo investe na suposição de uma completude
atribuída ao Outro. A administração feita pelo gozo ou o cálculo do gozo, segundo Dunker
(ibid.), trará consigo sempre a imagem da completude e, se estamos presos na imaginarização
da totalidade, retomamos a dinâmica com o Outro cravado na alienação, no fazer-se objeto do
gozo do Outro (terceiro momento do circuito pulsional, marcado por Lasnik (2013), discutido
mais acima). O gozo aqui implicará de certa forma, a submissão, o assujeitamento do outro ou
a mestria de um corpo dócil, pensando na cena, neste momento. Mas o gozo aqui não nos
remeteria à pulsão de morte, assim, a uma certa destrutividade? Entendemos que falamos de
algo que extrapola o prazer, e, assim seríamos levados ao sadismo em Freud.
Dunker (ibid., p. 80-81), aponta algo importantíssimo com relação à posição do
corpo no gozo. Se voltarmos para Freud, a finalidade da pulsão é sempre o prazer. “O prazer
dependerá de uma região no corpo que recolhe o circuito pulsional, as zonas erógenas”. Os
objetos visarão à sua utilidade no circuito pulsional. Existe assim o valor que algo assume
quando pode ser reduzido, incorporado ou utilizado na esfera do corpo. Não estamos aqui
194

falando do corpo biológico, mas sim do corpo fantasmático. “É para este regime corporal que
o prazer assume valor como realização imaginária”. As fantasias, para Freud, sustentam o
sintoma, segundo Dunker. Já Lacan nomeou de fantasma o articulador central dessas fantasias
inconscientes. É, portanto, ao fantasma que as formações parciais de gozo são remetidas,
apresentando-se em sintomas específicos.
Assim sendo, o elemento, que organiza a sexualidade humana, não é propriamente
o órgão genital masculino, mas a construção da sua representação com base nessa parte
anatômica masculina. O falo vai, de alguma maneira, orquestrando a evolução da vida sexual
infantil e adulta conforme esse pênis imaginário, esse que se refere à ordem da representação
psíquica. Lacan, como já foi mencionado, sistematizou a dialética do jogo presença/ausência
em torno do falo através dos conceitos de falta e significante (NASIO, 1997 p. 33). Por isso,
as satisfações serão sempre parciais e, no campo da insatisfação, toca a vida do gozo
incestuoso. O significante fálico se apresenta como o limite que separa o mundo da
sexualidade, de saída, insatisfeita, do mundo “imaginário” e, portanto, suposto de um gozo
absoluto, esse marcado pela hipotética completude. A castração, conceito que se tornou uma
fala corriqueira do senso comum, não se define somente pela formulação freudiana da ameaça
provocadora da angústia no menino, nem tampouco, pela constatação de uma falta na origem
da inveja do pênis na menina. Ela concerne, fundamentalmente, a separação entre a mãe e a
criança.
A mãe coloca o filho no lugar de falo imaginário e, ele, receptivamente,
identifica-se com esse lugar, colocando-se à disposição no preenchimento desse desejo
materno. A criança se encaixa na parte faltosa do desejo insatisfeito do Outro materno,
consolidando, imaginariamente, a mãe como possuidora do falo e o filho como quem acredita
sê-lo. Nesse engodo do ter e ser, o pai, agente responsável pelo corte, se é que podemos
nomeá-lo assim, é o representante oficial da lei, e, portanto, da proibição daquele gozo
absoluto que desembocaria no incesto. Só que há que se pensar que esse ato não é
necessariamente “produto de uma pessoa física”, mas a operação simbólica da fala paterna.
“O agente da castração é a efetuação, em todas as suas variações, dessa lei impessoal,
estruturada como uma linguagem e completamente inconsciente” (ibid., p. 37). A castração é
simbólica na medida mesma em que assujeita cada um à ordem simbólica na assunção de um
limite ao gozo. Ainda que a castração seja simbólica, o objeto é imaginário. “Ela é a lei que
rompe a ilusão de cada ser humano de se acreditar possuidor ou identificado com uma
onipotência imaginária”. (ibid., p. 38)
195

Lacan não toma o gozo por uma entidade energética, na medida em que ele
corresponde à definição física da energia como uma constante numérica: a energia
não é uma substância, lembra Lacan, “é uma constante numérica que cabe ao físico
descobrir em seus cálculos”; e, mais adiante: “qualquer físico sabe, claramente...,
que a energia não é nada além da cifra de uma constância”. Exatamente por essa
razão, o gozo”... não constitui energia, não pode inscrever-se como tal”. Como
vemos, para Lacan, não sendo o gozo matematizável por uma combinação de
cálculos, ele não pode ser energia. Não obstante, apesar do extremo rigor da posição
lacaniana, fiz questão de apresentar e definir o gozo servindo-me da metáfora
energética – tantas vezes empregada por Freud-, porque ela me parece a mais
apropriada para dar conta do aspecto dinâmico e clínico do gozo. (ibid., p. 32)

Parece bastante ilustrativa e válida essa correlação realizada pelo autor, uma vez
que podemos pensar que o trabalho inconsciente implica o gozo e o gozo, por sua vez, uma
energia que se desprende (gozo fálico) no trabalho do inconsciente. Ainda que gozo do Outro
seja a possibilidade de um gozo supremo, aquele que mata o desejo, tenhamos em mente que,
mesmo assim, essas imagens excessivas e absolutas não deixam de ser “imagens fictícias,
miragens enfeitiçadoras e enganosas que seguem alimentando o desejo”. Não é o “engodo que
fascina e ilude os olhos da criança edipiana, levando-a a crer que o gozo absoluto existe e que
seria experimentado numa relação sexual incestuosa igualmente possível”? Por conta disso, o
gozo, seja qual for a sua forma, será sempre um gozo sexual. Mas, vejamos que não se trata
de um gozo da ordem do genital, mas que tem no seu destino a marca da imagem mítica.
(ibid., p. 28)
O gozo do Outro, que corresponderia à posse psíquica do corpo total da mãe, é
substituído pelo mais-gozar (objeto a) que corresponde ao corpo parcial. “O objeto a para
Lacan não é, propriamente falando, o seio alucinado, objeto do desejo. Em termos escritos, ele
é o furo, o gozo enigmático e inominável que Lacan chama de mais-gozar”. O “mais” remete
exatamente ao advérbio de intensidade como um excesso ou um a-mais de energia residual,
inassimilável para o sujeito. “Esse excesso de gozo inominável e enigmático, chamado a,
pode assumir todas as imagens corporais, visuais, auditivas, olfativas ou táteis que participam
do encontro desejante (incestuosamente insatisfeito)”, entre a dupla mãe-bebê ou, como
viemos nomeando, entre o sujeito e o Outro. (ibid., p. 117). “Numa palavra, o gozo é, no
inconsciente e na teoria, um lugar vazio de significantes”. Dunker (2002, p. 128), nos lembra
que “o gozo é quantidade fora de lugar, é quantidade indecifrável”.
É a partir disso que Lacan formulou sua controvertida frase: “Não existe relação
sexual”. Ele não quer dizer que não exista o encontro, a união genital entre o homem e a
mulher, mas que não existe relação simbólica entre um suposto significante gozo masculino e
um suposto feminino. Isso porque, para o inconsciente, não há significantes capazes de
196

significar o gozo de um e de outro. O que isso quer dizer? Que o gozo é um lugar sem
significante e sem marca que o singularize. Por isso, para Nasio, “Não existe relação sexual
absoluta, isto é, não conhecemos o gozo absoluto, não existem significante que o signifiquem
e, por conseguinte, não pode haver relação entre dois significantes ausentes”. ( ibid., p. 31)
Assim, o encontro do homem e da mulher, do ponto de vista do gozo, é um
encontro que diz respeito a lugares parciais do corpo. “É um encontro entre o meu corpo e
uma parte do corpo de minha parceira, entre diferentes focos de gozos locais”. Não há, como
dito acima, significantes que signifiquem a natureza de um gozo, seja ele absoluto (ilimitado)
ou relativo (limitado). Ainda assim, o gozo pode, sem que haja um significante que o
represente, se aproximar, delimitar e circunscrever as zonas locais em que o corpo goza. “A
psicanálise conhece apenas as fronteiras significantes que delimitam as regiões do corpo que
são focos de gozo” (ibid., p. 30). “Confrontado com os efeitos maléficos de um vazio
constituinte” aquele que cria “não pode senão bordejar, criar algo que acalme o furo em seu
aspecto voraz. Há, desta forma, uma substituição. Cria-se um objeto no lugar da Coisa. O
objeto reencontrado pela criação permite que a coisa seja perdida. (CRUXÊN, 2004, p. 42)
Se admitimos que o inconsciente é uma cadeia de significantes em ação e que o
gozo não tem um significante que o represente, não faltaria, nessa cadeia, um elemento?
Suponhamos que a resposta seja sim. O que deveria ter representado o gozo como
representante significante apresenta-se apenas como lugar. O do furo. Gozo como furo sem
representante. Sem seu representante, ele não ficará ileso nessa trama, ele se contentará, como
que sem saída, com os véus da fantasia e do sintoma. O gozo como a comunhão entre o furo e
o véu. Aqui se encontraria o duende, nessa jornada de lusco-fusco de um corpo a criar,
operador que causa o desejo e o faz circular pelas trilhas dos passos? Duende que percussiona
e ressoa nos ecos em consonância com o olhar e a voz que se fazem desenho entre o furo e o
véu?
Ora, lembremos que o gozo é aquilo que se tenta omitir nas brechas que escapam
pelo véu. A esse gozo desmedido (gozo do Outro), o desejo vai se realizando com fantasias
através do sintoma. Qual seria a nossa defesa frente a um tirano desenfreado na busca de uma
satisfação total, portanto, impossível -- o desejo? “Para não alcançar o gozo do Outro, apesar
de sonhado, o melhor é não pararmos de desejar e nos contentarmos com substitutos e telas,
sintomas e fantasias”. (ibid., p.36)

E, enquanto falarmos, enquanto estivermos imersos no mundo simbólico, enquanto


pertencermos a esse universo em que tudo assume mil e um sentidos, jamais
chegaremos à plena satisfação do desejo, porque, daqui até a satisfação plena,
197

estende-se um campo infinito, constituído de mil e um labirintos. Já que falo, basta


que, no caminho do meu desejo, eu enuncie uma palavra ou execute um ato,
inclusive o mais autêntico, para esbarrar imediatamente numa multidão de
equívocos, na origem de todos os mal-entendidos possíveis. O ato, então, pode ser
criador, porém o mais puro dos atos, ou a mais exata das palavras, jamais poderá
evitar o aparecimento de um outro ato ou de uma outra palavra que me desvie do
caminho mais curto para a satisfação do desejo. (ibid., p. 38)

Como salienta o autor, a linha do desejo é um “caminho que não é traçado de


antemão, mas que se abre a cada experiência”. Assim, em cena, o desejo se faz deslocamento
na medida em que o corpo reage à comunicação que ali vai se construindo, sem, de antemão,
se dizer corpo nos desenhos que o movimento vai cartografando. Talvez, aqui sim,
poderíamos pensar na entrega como uma maneira de dizer o corpo flamenco como aquele que
está ali, entregue na medida em que não se sabe o que vai dizer, mas se constrói ali mesmo
nas trilhas que os pés vão ritmando. Uma metonímia da qual o som é protagonista. A fala que
se fala no som, que se conta. Um som que significa, pelo movimento, o traçado significante
daquilo que não pode ser (re)deduzido, mas falado, livre associado numa reação sempre da
ordem do inesperado.
Ora, se pensarmos no corpo, poderemos entendê-lo como lugar para onde o gozo
se reporta, lugar em que gozamos, “espaço em que circula uma multiplicidade de fluxos de
gozos. Por isso, entende-se o gozo como um estado para além do prazer, porque aí se faz uma
tensão excessiva, num máximo de tensão, que, se retomarmos Freud, lembraremos que quanto
maior a tensão, mais desprazer se instala. (ibid., p. 46-47).

5.9 O ritornello da fantasia

Trazendo de volta a relevância da construção da fantasia, poderíamos enxergá-la


como uma cena difusa, de embaralhados e imprecisos contornos que se arquiva no
inconsciente da criança no momento do trauma. Essa cena nos leva ao lugar do sintoma, seu
“suporte oculto”. Atrás do sintoma uma fantasia sempre se mostra. Assim, seguindo Nasio
(2014, p. 20), “a fantasia é a recordação inconsciente, o vestígio deixado no inconsciente, por
um psicotrauma infantil”. Não nos enganemos ao achar que a fantasia é uma memória passiva
e quieta, ela é pulsante, inquietante, que lateja desde a infância até a idade adulta. A emoção,
que sentimos na vida adulta através do sintoma, nada mais é do que a repetição dessa emoção
infantil escondida sob a máscara da fantasia em “estado” inconsciente. Inconsciente porque
198

nada sabemos dela a não ser em sua formatação digitada num sintoma consciente. A fantasia
se reserva num lugar mais profundo, ao passo que o sintoma vem à superfície.
Se o sintoma vem numa tentativa de nos dizer pelo sofrimento, há que se fazer
uma pergunta elementar e, por aí, ir entrando um pouco mais fundo nos conceitos que nos
foram cruciais nesta pesquisa. Ora, o que em nós repete? De saída, já podemos afirmar que o
que se repete em nós é algo que, evidentemente, já aconteceu no passado, mas que volta para
o presente sem cessar. Assim, o presente nos chega, como afirma Nasio (ibid., p. 40), como
uma “lente deformada do passado”. Por isso, a recordação é o resultado da reinterpretação
subjetiva de uma realidade passada e, nunca, em sua fiel versão. O ponto crucial é saber que
repetimos uma maneira de amar, mas também uma maneira de nos separar ou fazer o luto de
alguém que amamos. A repetição está ligada a atos de amor e a atos de separação.
A partir daí, podemos entender uma certa dinâmica que nos é posta quando em
cena. Será que ali não reatualizamos a cena dionísica de completude com o Outro, momento
em que nos empoderamos e re-construímos a cena de um tão sonhado reencontro? Como no
ritornello, há que ir e voltar. É também disso que se trata: poder fusionar e separar. Ir para
poder voltar. Quase como num estado psicotizante na possibilidade de separação. Mobilidade
de labuta e trabalho. Ao fim e ao cabo, aí reside o verdadeiro trabalho artístico da vida,
transitar entre as duas dinâmicas, o amor e a separação, responsáveis por tecer os fios da
nossa história subjetiva.

O essencial para mim é a matéria emocional que, desprovida de sua amarra


significante, transforma-se numa bola de fogo desenfreada no inconsciente. Mas
antes que o gozo seja recalcado e se transforme na bola de fogo desenfreada,
convém saber que, no exato momento do trauma, o gozo é envolto – por assim
dizer- em uma imagem cênica, um véu sobre o qual está gravada uma cena que
denominamos Fantasia inconsciente. (ibid., p. 54)

Inconsciente porque, tão logo se construa, a fantasia já é recalcada, relegada ao


inconsciente. Tem-se aí a foraclusão do gozo, porque não é simbolizada e, logo depois,
recalcamento da fantasia que contém gozo, os relegados do inconsciente. Assim, o gozo
sempre estará envolto pela fantasia. O gozo foracluído e recalcado, enquanto fantasia, tem por
objetivo “perfurar a superfície do Eu e implodir um corpo tornado adulto” (ibid.). Dada a
impossibilidade de representação consciente, o gozo se encaixa numa representação cênica
inconsciente. Essa cena cuja “ação se congelou” pode ser chamada de “Cena fantasística”,
segundo Nasio. E aqui, movidos pelo entendimento do gozo, se fossemos pensar no trajeto
199

pulsional, poderíamos visualizar uma flecha que se projeta para frente, retrocede, mergulha
naquele passado traumático, enlaça o gozo e retoma sua progressão para frente.
Ora, tudo aquilo que nos toca afetivamente na vida nunca é real, mas fantasiado,
como vimos repetidamente afirmando. Então, podemos dizer que toda fantasia é, de alguma
maneira, precedida por outra fantasia, marcando assim, a nossa história por uma
“estratificação de fantasias significativas”. Por trás de um sintoma que se repete, há uma
fantasia que se revela e, por trás dela, há o real. “O real é o enigma do começo, mas é também
o enigma do fim..., o real é o desconhecido que emoldura a repetição na ordem do tempo..., é
também o cordão que liga as diversas miçangas da série repetitiva”. Assim sendo, o que
insiste em se repetir é o gozo foracluído, aquele recalcado numa cena fantasiada. Cada
reaparição do gozo, sob o disfarce de um sintoma, será um significante, ao passo que sua série
de reaparições será a cadeia dos significantes. A repetição se coloca como função no efeito da
produção do sujeito do inconsciente. (ibid., p. 82, 87).

Todo gozo foracluído e recalcado, isolado e à deriva no seio do inconsciente, quer


exteriorizar-se compulsivamente na vida do sujeito sob a forma de uma ação ou
sintoma, por exemplo. Em outros termos: toda repetição compulsiva é seguramente
desencadeada por um gozo que se anseia por se fazer ouvir. Como se o gozo não
simbolizado, não ligado a uma representação, fosse um cavalo furioso que apenas
uma fala oportuna do analista pudesse acalmar. A partir do momento em que o
terapeuta encontra uma significação para o sintoma, isto é, revela a seu analisando a
cena fantasística cuja expressão é o sintoma, o gozo integra-se no eu, se acalma, para
de se repetir e o sintoma desaparece. (ibid., p. 116)

É interessante pensar que a repetição da cena traumática não passa de uma


tentativa do eu de controlar ativamente o que foi vivido passivamente. Essa repetição se dá na
cadeia significante e, portanto, em uma série de significantes que insistem em dizer de um real
indizível. Vimos que, por trás da repetição de um sintoma, há uma fantasia que se atualiza. E
encapsulado nessa fantasia reside o gozo traumático, núcleo do real. “No começo, era o real
do gozo traumático” (ibid., p. 121). Será que talvez pudéssemos pensar a construção flamenca
em cena, justamente desse lugar, no precipitar-se no real, como possibilidade de fazer-se
imagem significante? No próximo capítulo pensaremos sobre essa questão no feixe de muitas
outras questões em que ela se enrosca.
V

Uma travessura fez-se corpo. Mas foi um movimento tão rápido que o motivo se
enlaça para lá das palavras. Escorregam, sim, como num brinquedo, elas me vão e não
retornam, na imagem de uma criança que se acomoda em sua descoberta. Uma sonoridade
esgarçada na falta de vínculos. A sensação do inesperado em cena. Veio e se foi tão
rapidamente que o único registro que se tenta aqui é aquele de um suspiro. Um corpo que se
cansa na habilidade do fracasso. Sim. Adaptado aos erros. No susto, um acerto que dialoga
de outra casa, a vizinhança se aproxima. Não é algo tão estranho assim enquanto cena.
Depois, o respiro. Vacilo. Esperar o inesperado para se dar. Correr nesse espaço. Na pausa,
me redesenho. Preencher como se pode num corpo que se contorce. Pela rota, me falo gesto.
Sempre impreciso, mas ali um esboço se traduz. É nele que preciso me ater. E nessa
querência de sensações, me prezo, escaldada sensação. Não quero aqui me debruçar sobre o
voltar da cena, mas do ir, refutar e voltar. É nesse lugar que vou me focar, se o corpo deixar.
É nesse ir e habitar. É nesse ir e me fazer desejar. Tentativa severa de não ocultar o desejo
que se quer. Desejo de desejar. É nessa carência que me desejo nesse querer. Querer de ir.
Querer de apropriar. Querer de memorar. Querer de não se afugentar nas esguias manobras
daquilo que me repete. E na repetição não tenho um caminhar que se faça verdade. É na
repetição que me sobreponho frente a um desejo que me oferece ir. De tão covarde, a pausa
se oferece um ir e não voltar. E como me atrever a ante-ver algo que de mim não foi?
Atrevida manobra. Nessa audácia me recolho sujeito. Objeto que se diz no espelho do olhar
do Outro. Pelo Outro que me elege? Enquanto presa na suposição de um olhar que me diz
sempre num desdizer, o corpo regressa. Nesse olhar me conto. Não. Me esquivo. Enquanto
trapaça, me esqueço corpo.

Num novo pulsar, a música me afasta. Bailar o inaudível? Nos insípidos retornos,
uma marca capaz de causar -- baile. Uma luta que se estende entre notas musicais e corpo
que se de-forma. Um antagonismo que me impede de bailar. Há que se fazer pela música. É
atravessado por ela que o corpo prepara sua ficção. Num desfiladeiro de notas, o corpo se
apresenta nas marcas do Outro, e, nesse Outro, se conta verbo. Outro que me denuncia numa
escondida voz. Voz que me traz de volta à música. Deixar-se embalar por notas que me fazem
movimento. Alguns instantes audíveis, outros, na paralisia do corpo sem fala. Sem música
não me faço baile. No barulho aprendi a me compor. E como sair de uma voz para entrar em
outra? Nesse trânsito, a circulação torna-se o obstáculo. Não há outro barulho que não seja
o meu. Que outro corpo pode falar co-migo? Mas é nessa manobra que o corpo toca o
duende. Sem a possibilidade de livre acesso à musicalidade que o baile nos propõe, como
dialogar? Como criar pontes de suspensão onde a percussão me trai no corpo?

E o tão sonhado solo. Solo como emblema de fora-borda. Com solo no diálogo, a
solidão é apenas substanciada sem tornar-se verbo. Desse verbo fujo corpo. Como se a
âncora viesse de cá, de lá..., enquanto o hesitar de compor uma música, do falar grupo, o
solo musical se contará pendência. E desse lugar onde a suspensão paralisa o acesso à
criação, o corpo vai soterrando. A angústia vem como aviso de apagamento. Sujeito sem
apostas, não vê o deslizar do desejo. Fixamente em antigos laços, identidades que me re-
tornam, sempre, ao mesmo lugar. É daí que não quero me fazer discurso. Sair daí propõe
uma rítmica de se colocar ali, na cena, na relação com o outro. E na medida em que meu
corpo-escrita se aproxima desse final, mais me afasto daquilo que me propus fazer.

Então, escuto do maestro: “Há que se bailar a musica e não a coreografia”. E


depois de umas semanas, essa frase eclode em mim. Não como um grito, mas um sinal. Aqui
retomo na fala de um outro corpo que se faz história. Um corpo sem rota, que aguarda,
desrespeitando a antecipação, e pausa ao adiantar. Parar nesse momento. Parar para que a
voz me habite. Uma estranheza não se faz corpo. A carne se faz vazio num triunfar de
sensações. O corpo começa a se dizer. Não na voz do outro, mas na voz que a mim me faz
dizer. Um corpo que possa escutar a melodia. Que possa se fazer no movimento. Sem agoniar
no imperativo de um outro. Um outro vai lentamente me abandonando e, sem que me dê
conta, o corpo me resgata. E nesse trilhar, as palavras me dizem num corpo vazio de verbo e
aberto a sensações. Não são sensações que escrevo para que o texto ganhe qualidade, mas as
vísceras que se abrem carne para me contar de mim. O outro como alguém que me ajuda na
caminhada. Um corpo que, de tão cheio, não cartografa. Nessa cartografia, o desejo daquilo
que conto vai me construindo. Uma pulsação que não venha como assombro ou vazio.
Costura. Faz-se no dois, a dois. Ocupa-se num lugar de sentidos. Remete a lembranças
custosas, mas possíveis. Um caminho possível num corpo que, de tanto doer, esvazia-se para
receber. Uma nova posição se faz cena. Um novo corpo se traduz agora em palavras
fracassadas num corpo que quer reagir em outro lugar.

Vou escrevendo essa experiência pelas palavras que me fazem alívio e do corpo
que só de palavra não se diz. A poesia também faz movimento. Entregar-se à sensação, sem
calar o corpo em maremotos de trapaças, lembranças que não te deixam escutar o pulsar. E
como não impor imaginário quando o outro me olha e me diz? A costura simbólica se rende à
renovada teia imaginária. E quando o corpo não quer se dizer, e quando o espaço de
contorno da cena converte-se num grande e profundo abismo? Como brincar? Como deixar-
se ir e levar, na ruptura do abismo, algo que faça o corpo pulsar e desejar, ali mesmo, na
cena? Um Fort dá que fracassou? Na presença, a ausência faz ação. Se o momento não é
entendido como único, expandido e fora do cronológico, como falar da cena como lugar de
entrega? E quanto mais me faço entrega, mais buracos me lançam ao vazio. A ausência como
rito do brincar. Plástica em construção. Corpo que se apoia num lugarzinho onde a casa me
desabriga num amargo abrigo. Lugar capaz de cobrir o desamparo para que o corpo se faça
desconstruir, não demolir.

No setting, no par, algo vai sendo restaurado. As minhas tantas histórias vão se
canalizando em uma estória, uma intérprete. A solidez da ausência vai lentamente
evaporando numa inscrição de lugar. Um lugar se insinua. Me arranha. Tão solitária quanto
sustentadora. Sem saber dessa intimidade, meu corpo sabe o vazio. Não escuta a música. E
não sabe soar o próprio som. No lugar da música: o grito. Puro apelo, no lugar do estilo.
Nada me resta, a não ser saber que sempre se falta -- esse resto. Aí sim a própria ficção se
diz início. Lugar onde o Outro não dita, re-edita. Nas palavras, o Outro se diz, sem me dizer
em sua totalidade. Um pouco de mim na alteridade do Outro. Levitando nessa gama de
fixações. Meu corpo congela. Peço, não imploro. Quero sentir essa carne que me habita e me
faz borda nas linhas tão saturadas de pontilhados.

Mas, de súbito, o corpo vem me fazer textura. Sem vazar. Traz-me a sensação
compacta. Sob o olhar de uma direção que me chama para assumir um lugar. Uma tentativa
se faz sujeito, frente a esse objeto que insiste em se fazer cena. Na forma de objeto, não se faz
rastro. A costura se perde para a dimensão do ato do Outro. A separação não tarda. Há de
vir para que o estado de suspensão na tensão se narre-corpo. Quero falar, habitar nesse
estranho que me conta o corpo. Esse que me agita, inquieta. Des-habita. Num caloroso
desdizer do mal dito. Quero poder olhar esse estranho e dizer: no terror de sua estranheza,
me recorto, não recolho, me faço trama.

E lentamente o som me vem flertar, ainda de longe. As notas vão se


encadeando,... deslizam, voltam e ressoam. O pavor que antes me anunciava como barulho,
recebe pausas para que o som se abrigue e não me povoe. O silêncio das pausas me obriga
ao diálogo. Sem esses instantes, o estável não debruça. Como suportar um lugar que vai me
fazer bailar? Lugar estranho porque fala do surpreendente. Corpo que se desloca na voz, na
guitarra, nas palmas e na percussão. É nesse grupo que os meus pés vão traçando
linguagem..., com o outro, quase no Outro. É nesses tantos outros que o meu corpo se tenta
borda pelo som, na imagem presente do líder, esse que nos anuncia do próprio corpo. Esse
Outro que me diz sobre aquilo que, do meu corpo, não se faz consciência. Entre o medo e o
pavor, reside o desejo.

Há que circular. O medo é uma constante. Mas na medida em que a música me


abraça, encontro sustento. Esse que se pede cena a todo momento e, no prazer do sem som,
nega movimento. Um traço vai se inscrevendo nos lugares vazios. O vazio do saber ir e vir.
Do vazio da permissão do tropeço..., e, nele, o apoio. Vou transitando entre o setting de uma
voz que se inscreve nos espaços vazios e os vazios em que me tento movimento. Espaços de
abismo e apelo. Espaços que, junto com o corpo na cena, vão me tentando verbo. Vão
arriscando construção. Como falar de um corpo que teme o imprevisto? Que cala o gesto a
cada incerteza? Não há como me fazer cena, e, tampouco, frágil presença nas trilhas de
ausência. Ausência que começa lentamente a apontar para um fim, e nesse embaraço do
meio, um saber de si sem governo. E nessa entrega, o corpo perfila. Uma tentativa de carne
que me faz traço e desse traço começo a pedir, implorar a cena.

Permitir que a vida me abrigue. Eis o fardo! Da arte que me apodera da vida.
Uma única sensação me permite vigília. Sem refutar. Movimento de todos os instantes, o
tímido esboço de felicidade que me mascara. É nessa justa empreitada, o lugar onde o corpo
pode se recolher e se levantar pelas peripécias da vida. Um esforço voraz para que o tempo
não me esbarre. Na necessidade de não se deixar levar pelas contingências que os momentos
nos oferecem, e aí sim a brincadeira se acerca, gasto tudo na imperdoável tentativa de forjar,
com toda a força, os tais instantes de embriaguez. Esses que não conseguirão se desfrutar
num desejo impiedoso de não se deixar levar, na cena, na vida e na análise. Como desfrutar
de algo que se arrasta sem a iminência da queda? Preocupada em cobrir tantas outras
possibilidades, me perco em construir as minhas próprias ciladas. Nem na calmaria e nem no
furor. Não me entrego a elas.

Entrego-me quando me perco na vontade de um corpo que não me diz do seu


querer. Resvalo em mim. Quero-me doação. E nesse término, um misto de desespero e vazio
se a-loca. Abro espaço para que a criação não se esquive de um desejo de me fazer sujeito-
corpo na ação de redigir um ato. Hiato de grito. Voz que me toca. Música que se acalenta
nesse pedaço de carne que me conta-corpo. Exausta. Essa dupla sensação inscreve-se, sem o
menor constrangimento. Uma tristeza encharcada num avassalador estado de liberdade,
nunca antes avistado nesse terreno. O amor vai lentamente rabiscando o cuidado. Vestindo-
se pelos seus contornos.

Há momentos em que me pego em pedidos, imploro. Na vigia-trapaça. A


sensação. No silêncio. A-Brigo. Uma moradia tão distante daqueles sonhos arrastados atrás,
como se a busca não permitisse, neste momento, retroceder. Não se deixe guiar por esse
miserável amor. Abandone-se. Ao preço que lhe custar. É possível sonhar junto. Um segundo
alucinatório antes de seguir no que seria um lugar menos recheado de imaginário. Real. Um
traçado, aparentemente brutal.

No outro, desapego, me-Pego.As marcas sem localização se inscrevem. Encoste-


se nesse afeto. Enlace-se nesse mal dizer. A verdade se escancará dali. O desenho do corpo
dá sua primeira aparição: timidamente ousado. A euforia e a desânimo lutam pelos espaços.
Sem validade. Na despedida, rastra. Rasga aforma. Quero o meu antigo corpo. A volta à
vestimenta que não me cabe mais. Desaproprio-me do corpo. Lamento duvidoso. Um
pontilhado de borda se tenta sensação, arrastadamente, rastreia. O corpo não se cansa de
Olhar. Silêncio. Enfurecido na causa do movimento. Age e perfaz. Dilui-se na bola ocular
daquele Olhar. Crescente. Sem casa, à causa se-Am-pára. Para a barra. Uma despedida
bruta se faz, costurando o que falta, alinhando os excessos: assustador. De-S-amparo.
Amparo. Tôrno.Torto. Na soleira da solidão.

Uma comunicação interna se achega. Perfaz uma história que reconta. O


encontro sinaliza sua via de acesso. Perdoar, o perdão. Suportar o brinde do outro no fardo
de quem o recebe num sereno sentido que espera recriar. Permissão ao encanto encharcado
de velhas histórias. Forço-me ao novo. Nesse silêncio, a rota conta, tropeça, recomeça e pede
contorno. Lentamente me vazo.

Entra. Te escuto, reluto. Cala: movimento. O corpo. Nos ha-vemos com os


desenhos. Deixar ir. Não às consequências. Deixar ir: Insisto. Na ruidosa trilha, dia após dia,
nó-o. Recuo. Na coerência da emboscada. Desencontro. Os pés vão ganhando força e a
pulsação se faz chão. Na esquina onde embosco o pensar, o corpo Baila: se encara, se
repara, na esquiva, se grita. Traz para si a sensação, sem dela a esperança do resto. Nossa
consequência. O-colo? Executa. Lambuza-se. No amargo, esbarra-se. Corpo cansado. Nele
resisto: me resgata-Me. Na repetição sem memorização. No cansaço, dê-forma. Alo-falta.
Como te falo?

Quando a luz se permite no embaraço. Trégua ao pulso. Deixa-se ir. Tocar como
se fosse a primeira vez. O corpo começa a dizer. Tímido. Inseguro. Mas diz ainda sem pudor:
siga. Mesmo que o preço seja residir na luta do que tento me dizer e no gesto que se faz
escritura. Uma escritura-corpo.

Sei que preciso terminar esta escritura. O término me situa num tempo que me
leva à perda na ação. Não quero finalizar. Medo de perder as palavras que se construíram
texto. Medo de esquecer. Mas não há outra maneira para aquilo que do corpo me escapa.
Abandonar o lugar da escrita para me dar corpo em cena. E é nesse borrão que as tintas
biográficas atravessaram esse percurso. Caro leitor, não houve uma maneira mais
acadêmica de oferecer a vocês essa trilha, que se tentou escritura sem véus que protegessem
esta pele, do último ano para cá. Foi preciso decantar, desencantar, por assim dizer. É no
bordejar da carne que se tentou corpo. Vestimenta no refúgio. Um refugiado no seu próprio
exílio. A pesquisadora na sua forma mais sóbria. E sei, com lamento, que se faz tempo de
suportar o vazio como um espaço de início e fim. Porque na finitude de um vazio que se
encena, o desejo cava a sua cova.
208

CAPÍTULO 6
O CORPO FLAMENCO NA VOZ E OLHAR DA PSICANÁLISE

No princípio, foi a deriva: do corpo à escrita e desta de volta ao corpo. Conforme


a pesquisadora tateava nas incertezas da aplicação “interpretativa” da psicanálise, o corpo ia
se fazendo intérprete. Colocar-se em movimento na companhia da psicanálise não era a
proposta inicial, mas um caminho que foi se tornando rota, nesse bordado significante que se
esquiva e re-surge sempre em outro lugar, em outra parte. O inconsciente se fazendo cena. As
leis do inconsciente que tragam o sujeito do desejo atravessado pela linguagem, essa lei que
nos tira do biológico como destino. Um caminho similar ao dos sonhos traduzido em anéis
significantes que se conectam como colares e se articulam entre si.

Só temos acesso às significações dos sonhos uma vez que são relatados, ou seja,
quando a experiência solitária noturna do espectador-sonhador é partilhada com um
interlocutor por meio das palavras escolhidas para relatá-lo. É na passagem do sonho
para as palavras que nasce a psicanálise, quando Freud aponta que o intérprete do
sonho é o próprio sonhador. (QUINET,2012, p. 1)

Bulcão (2012, p. 1) afirma que o aparelho psíquico é, antes de tudo, um aparelho


de memória. Memória esta, conforme já vimos, capaz de arquivar experiências para utilizá-las
depois como “gira de ação”, para nós uma ação que gira na cena. O que é importante é que o
aparelho psíquico se faz entre homens que constituem uma comunidade falante e, por isso,
esse aparelho de memória irá “tornar-se” aparelho de linguagem, e, portanto, um aparelho,
para Lacan, de anéis significantes. O aparelho nunca é isolado, ele existe e só existe na
relação.
Vale aqui recuperar sinteticamente o percurso percorrido na psicanálise aqui
empreendido. Por sermos atravessados pela relação com o outro enquanto falante é que o
aparelho de linguagem se forma não com o outro enquanto objeto do mundo, inclusive porque
o outro só se constitui enquanto objeto de linguagem. Portanto, não há como escapar da
linguagem. Estamos na ordem da linguagem e esse aparelho psíquico é simbólico e não
psicológico. Da associação entre os objetos mais as palavras, nascerá o sentido, no universo
do simbólico, dada a articulação das associações entre as representações objetos e palavras.
Contudo, é a pulsão que se constitui na cena primeira que inaugura a espécie,
tirando-a do desamparo biológico, apenas para re-posicioná-la no desamparo pulsional.
Assim, “os impulsos pulsionais humanos foram gerando sua própria demanda, seu próprio fim
e objeto de satisfação a partir do contato experimentado com o outro”. (PERSICANO, 2012,
p. 198).
209

6.1 Por que dizer não à sublimação

Toda a construção freudiana do conceito de pulsão, que realizamos no capítulo 5,


visou à inserção do corpo nesse novo dispositivo: o corpo que, ao precisar dos cuidados que
sua vulnerabilidade lhe impõe para sobreviver, teve, desde o princípio, “o seu corpo loteado
em zonas erógenas” pelo adulto que dele se ocupa. “A construção de uma cartografia erógena,
independentemente dos feixes de nervos da base somática corporal, confirma, de modo
contundente”, a concepção de Freud de que o corpo para a psicanálise é um corpo mergulhado
na linguagem. (PINHEIRO, 2012, p. 239)
Desse modo, deslocamo-nos da visão de um corpo meramente mecânico,
anatômico, fisiológico, instintivo ou técnico, rumo a um corpo tecido de memória e
linguagem. Fazer o corpo se soltar na sequencialidade metonímica de uma memória que falha
quando o espelho da voz e do olhar do Outro não se faz moldura. Assim, somos
inevitavelmente inclinados à cena da infância na qual determinados significantes se fixaram.
“Cada cena tem seu memorial presente como música”, num encadeamento de determinadas
notas que levam a determinadas palavras. (QUINET, 2012, p. 4)

Lalíngua é aquilo da língua materna que o sujeito recebe como chuva, tormenta de
significantes próprios àquela língua idiomática que se depositam para ele como
material sonoro, ambíguo, equívoco, cheio de mal-entendidos, cheio de sentido e, ao
mesmo tempo, sem sentido. (ibid., p. 8)

Por isso, caímos na lalíngua, resultado para o sujeito daquilo que lhe veio da
língua materna, esbarrando na pulsão invocante, como foi visto em Lasnik (2013). Esse banho
significante vocal que a criança pode ir experimentando pela prosódia materna. Nesse ritmo
musical, as notas e o silêncio vão se organizando num espaço e num tempo. Ora, a lalíngua
existe antes mesmo do advento da fala propriamente dita. E, assim, um ritmo regular é o que
encontramos no chamado jogo do Fort-Da. “O real não faz sentido, mas ressoa. Ele se
manifesta na ressonância de lalíngua, na sua musicalidade – por onde se expressa o real do
inconsciente. Lá onde o sentido se esvai, desvela-se um novo cogito para o ser falante que é,
em suma, um corpo cantante: Eu sôo, logo existo”. (ibid., p. 12)
Nessa experiência, que aqui atravessamos, entre o desafio da escrita e o corpo em
cena, ocorreu que, neste, o ritmo falou mais forte e foi se impondo, as notas foram
parafraseando a dupla prazer-desprazer que se fez escritura de um corpo. Os silêncios
fundaram abismos para que o desejo se re-instaurasse.
210

Lembremos que a ideia inicial, vista no capítulo 1, era trabalhar os três registros
(RIS) de Lacan a partir do método de Lobo, que veio sofrer um cruzamento com o método da
ação psicofísica. Isso, na verdade, atropelava o duende, ao mesmo tempo em que nos
convidava a resvalar para o conforto teórico da sublimação como método de interpretação do
ato criador. Quando se trata da investigação da intersecção da literatura, das artes e da dança
com a psicanálise, o caminho sempre mais óbvio é o da sublimação como uma saída
satisfatória para a pulsão, com a promessa de prazer que ela traz e que é ainda acrescida pela
tarefa do artista ser plenamente reconhecida socialmente. Como já foi visto, mas para
recordar, nas vicissitudes da pulsão, a sublimação traz prazer, ao preço de desviá-lo de seu
alvo sexual. Portanto, prazer conquistado, porém desviado.
Ora, no nosso caso, não se tratava apenas de escrever, mas de levar a escrita ao
acompanhamento de um corpo que, no ato da cena, sente, vive, é afetado, parcial ou na
promessa do pleno, pela instauração do duende – que esse enigma se instale! Por isso, falar
mais uma vez numa tese sobre a sublimação, calcada nas fantasias de um artista, não nos
deixaria avançar, nem pelas bordas, para além de um corpo cansado de se fazer suporte sempre
atravessado pelo Outro, e, tampouco, poderia nos estimular para o desafio de uma escritura
que não se soltasse, mas ficasse rente ao corpo.
Ora, falar do corpo é ser falado por uma desprogramação instintual. Nossos
interesses se movem conforme as marcas registradas do binômio prazer-desprazer, moduladas
a partir de trocas desejantes com os outros. É nesse momento que o corpo psicanalítico é da
ordem do corpo pulsional. Corpo erógeno que se afasta da biologia uma vez que sofre ruptura
pela linguagem. Assim, uma perda de gozo existe porque, ao nos afastarmos do instinto, a
pulsão, em sua composição e, por definição, se escreve por desvios e perdas.
Pensar como alguns autores que a sublimação funcionaria como um processo, que
busca de alguma maneira a adaptação social, ou uma aceitação cultural da obra do artista,
significa ficarmos presos a uma “espécie de felicidade comportamental, adaptada ao
socialmente desejável e elogiável”. (HARARI, 1997, p. 142 apud TOREZAN & BRITO,
2012, p. 252)

Propomos a interpretação de que o processo sublimatório reproduz, em alguma


medida, o engano que existe ao redor da Coisa enquanto o objeto mítico da
completude e, ao mesmo tempo, atesta a importância deste objeto não por sua
existência concreta, mas sim pela presença da mais pura falta. (TOREZAN &
BRITO, 2012, p. 254)
211

Aí está o conforto e, ao mesmo tempo, o engodo da sublimação, especialmente


quando se trata do corpo, mais especialmente ainda quando ele surge ou re-surge em cena.
Compreendemos que a sublimação permite ao sujeito distanciar-se de sua identificação fálica
“na medida em que a obra ocupa o lugar do que se era para o Outro”. Quando Lacan afirma
que “a sublimação eleva o objeto à dignidade da Coisa”, o sujeito consegue, mesmo que, à
maneira de um relâmpago, libertar-se “das vias de oferenda de seu corpo ao desejo do Outro”
(ibid.).
No Projeto freudiano, minuciosamente discutido no capítulo 4, Freud nos
apresenta o das Ding, supondo a situação em que um outro próximo seja o objeto da
percepção do sujeito. Este objeto interessa porque é, ao mesmo tempo, o primeiro objeto de
satisfação. Mesmo sendo semelhante ao sujeito, o complexo perceptivo do outro se decompõe
em dois elementos. Um caracterizado por uma estrutura constante e que permanece reunido
como Coisa (das Ding), inassimilável, ou seja, componente do neurônio a, que quase nunca
muda e que passará a se chamar “a coisa” (das Ding); e o outro que é tecido pelo trabalho da
recordação, ou seja, rastreado até uma notícia do próprio corpo (LUCERO e VORCARO,
2009, p. 1).
O que vemos em Freud é a Coisa localizada na sua parte inalterável, atrelada aos
primórdios da organização psíquica. Objeto: das Ding, para sempre perdido. “Um reencontro,
portanto, impossível de se dar, mas é em função desta infindável busca pela Coisa,
comandada pelo princípio do prazer, que se forma a rede de representações através dos
caminhos da memória”. Das Ding está presente no psiquismo pela marca da sua ausência, um
furo, em torno do qual orbitam as representações de coisa. Das Ding, “não pertence ao campo
das representações, mas, paradoxalmente, está presente no psiquismo ainda que por sua
ausência”. (TOREZAN & BRITO, 2012, p. 253)
A perda originária, inaugural, não definida por nada anterior, por assim dizer, falta
de nada, é a Coisa lacaniana. Isso porque somente através dessa falta de nada é que a
possibilidade do desejo se faz aderência. Assim, não há desejo sem a mítica ilusão da
plenitude, justo aquilo que o duende promete instalar ao preço de uma iminência de morte.
Sem a falta inaugural, essa, a da ilusão de um gozo total, não se faz o vislumbramento da
Coisa como causa do desejo. Por estarmos às voltas com a causa, retornamos à discussão do
imaginário através do Estádio do Espelho junto ao resto que se faz marca pelo objeto a. Aqui
nos deparamos com a pulsão invocante e escópica, sem termos planejado isso logo de saída. O
trajeto foi se realizando na justa medida em que duende e objeto a se identificavam e nos
212

contavam histórias, belas estórias subjetivas, enquanto o corpo ia, de alguma maneira,
desbravando o vazio.
O que viemos conceituando e, agora num momento final de articulação,
insistimos, é que há uma luta constante de domar o corpo. Quando ele se faz presente, numa
espécie de vingança, encarna o estranho. Entre o corpo e o eu, o encontro é devidamente
coxo, levando-o, como que obrigado, a uma instabilidade. Quando falamos no estranho,
imediatamente somos levados a pensar esse lugar tão familiar e tão estranho que nos convoca
-- e o que disso respondemos pelo corpo.

Assim, o Unheimlich se refere a algo que desconcerta a subjetividade no registro do


eu, na medida em que aquilo que parecia ser familiar para esse se transforma
imediatamente em algo não-familiar. O familiar que não deveria nos surpreender e
inquietar se transforma, subitamente, naquilo que não é familiar. O horror que a
experiência provoca seria produzido justamente por isso, uma vez que a
subjetividade perde momentaneamente as suas referências e os seus signos de
orientação, de maneira que parece que o mundo foge aos seus pés. Com isso, a
angústia do real faz a sua emergência na cena psíquica, anunciando algo da ordem
do traumático para a subjetividade. (BIRMAN, 2002, p. 125)

Conforme já discutido no capítulo 3, pensar no anúncio desse estranho invoca,


como afirma Birman (2002, p. 126, 129), um não reconhecimento do eu em suas bordas e
consistência, desestabilizando seus eixos de sustentação. Unidade do eu perdida,
temporariamente para que a desconstrução narcísica se refugie num processo de criação.
“Nessa experiência antinarcísica de desconhecimento e desconstrução do eu, a subjetividade
seria lançada no desamparo radical, no registro do grau zero da subjetivação”. Assim, demolir
os tijolos da ficção fálica, que julga controlar o psiquismo, encontraria na estranheza o seu
porto seguro concreto à produção. O risco se faz protagonista, uma vez que a subjetividade é
impelida a colocar os seus signos de reconhecimento em questão. “Seria preciso desconstruir
as certezas narcísicas, que nos remetem sempre ao mesmo, numa repetição infinita, para que o
“outro” como diferença possa acontecer efetivamente”. (ibid.)
Toda a discussão, neste trabalho desenvolvida, ressoa energicamente quando o
corpo se coloca em cena. Pode-se, então, pensar em como transformar um movimento,
absorvido nos rebatimentos que lhe roubam a significação, em um gesto significante. O Real,
que insiste porque não cessa em se inscrever, tem seu sentido posto na função do simbólico.
Mas o sentido é sempre imaginário. É disso que se trata: articular o ato artístico no gesto de
um corpo que se constrói no flamenco, cujos registros só podem se dizer num Real que vem
como surpresa no caminho desse intérprete em cena. Experiência do Real que embala nos
contornos que, por si mesmo, perfaz. Ora, como afirma Becker (2010, p. 169), afinal a dança
213

é oferecida ao olhar do Outro, numa constante busca pela construção de identificações, “por
onde o traço unário possa se sustentar. É a voz e o olhar do Outro que inscreve o sujeito”.

6.2 Duende e objeto a: diálogo possível ou impossível?

A partir disso, vamos tentar traçar um caminho de reflexão permeado por Lorca e
sua construção acerca do duende, buscando o diálogo com o objeto a teorizado por Lacan.
Como afirma Becker (2010, p. 26), o objeto a como “pedaço que resta fora da imagem”. Essa
relação de um com o outro nasceu de uma pergunta, aparentemente inocente que foi feita à
pesquisadora, mas que já estava ali articulada na fala ao final de um seminário do psicanalista
Oscar Cesarotto (2015), quando perguntou: “O que é o duende para a psicanálise? ”Entre
interrogante e certeiro, ele disse num tom de voz baixo e calmo: objeto a. E riu.
Acompanhada desse riso, a nossa busca frustra do corpo inteiro na cena nunca se completava,
e, como uma saída possível, deu-se o nascimento das primeiras partes de um diário de bordo.
Em princípio, o diário foi tentado como costura de uma angústia que, como num tropeço,
ventilou espaços ao desejo de reconstrução de uma trilha outra para, num segundo momento,
vir como uma tentativa de tornar aquele riso de fato um chiste e não um constrangimento
frente ao não saber, este que nos apura despercebido em cena.
Contudo, esse trabalho só se faz Real por meio daquele que, ocupando o lugar do
Outro, intervenha, isto é, que interprete simbolicamente e que auxilie na inscrição do gesto em
uma cadeia significante. O(A) coreógrafo(a)é aquele(a) que se ocupa desse lugar, crucial no
processo e cujo método, no caso desta tese, foi explicitado no capítulo 2. Ele(a) é capaz de
ajudar a fazer amarras, quando o corpo perde seu fio. Evidentemente, ele(a) não será capaz de
tornar esse corpo, sempre estrangeiro, um lugar tão familiar a ponto de apagar os efeitos de
estranheza. Afinal, estar na cena não nos impõe sairmos da posição de objeto tornando-nos
sujeitos? O corpo que baila convoca, a todo o momento, a nossa constituição, ou melhor, o
que desse corpo, que nos fala, controlamos e não controlamos. A criança, nos braços do(a)
cuidador(a) corre o risco bascular de desaparecer como sujeito, tornando-se objeto do gozo do
Outro. É a mostra da vivência de indeterminação com o Outro. Eis a questão a se pensar: estar
em cena/na cena é retomar como se deu a saída de cada sujeito do Estádio do Espelho?
Como salienta Becker (ibid., p. 8-12), “a unidade corporal resultante do espelho,
sempre inacabada, moverá o corpo na busca constante desse acabamento. Assim, surgirão os
gestos no espaço e no tempo, coreografando as tentativas de confirmar a forma corporal”.
214

Ora, assim, a nossa única certeza em cena é a de que a instabilidade é a nossa verdadeira
vocação, e que, nesse lusco-fusco com o Outro, o corpo se coloca à prova, para o Outro e para
nós, que ali lapidamos, a cada espetáculo, um corpo que nos dá a confirmação de um
interminável jogo de escape. “Este aparente acabamento que nós não possuímos, faz-nos
idealizar seus movimentos. Os humanos, na intenção de transmitir algo a outrem, tropeçam
em sentidos imprevistos, que se atravessam no caminho da comunicação”.
Dessa discussão, que vai nos dando moldes da finitude insistente nos contornos,
tentaremos articular os conceitos, de maneira a não somente importá-los, mas implicá-los. Só
uma psicanálise, capaz de trazer conceitos que dialogam com a prática, pode nos levar,
cuidadosamente, à tentativa de cartografar os impasses de uma escritura cênica.
Como vimos no decorrer desse trabalho e, em especial na carta de 52 de Freud, o
humano é formado e forma parte da linguagem, por habitar o universo simbólico, que o
determinará como tal. Por isso, está incluído na cultura e não no reino animal. Através do
diálogo entre mãe e filho o que está em jogo pertence à ordem do desejo. Dessa relação se vão
expandindo caminhos bordeados por meio de decodificações das ações e, do corpo do outro,
numa conversa que aponta para o desejo responsável pelas representações e metaforizações. É
por meio disso que a experiência corporal vai se falando como metáfora, delineando
condições para o corpo humano ser discursivo e simbólico. Repetimos, então, a pergunta:
como transformar um movimento sem significação em um gesto significante? Talvez
possamos pensar que a sua existência se dá àquele que ocupa o lugar do Outro, daquele que
intervenha, que interprete simbolicamente, inscrevendo o gesto numa cadeia significante.
Pensamos, assim, que o lugar do(a) cuidador(a) da infância se reedita no lugar do(a)
coreógrafo(a), a cada convite do corpo à significação, quando se perde em significantes sem
encadeamento.
Ora, dado o insuficiente reconhecimento do olhar da mãe ao seu filho no Estádio
do Espelho, enquanto constituinte na formação do eu, passamos a vida a “reencontrar esta
confirmação de unidade corporal no olhar dos semelhantes” (Becker, ibid., p. 44). É assim
também que o flamenco vai pontuando o trajeto de idas e vindas significantes, em
intermináveis turnos na procura do objeto para todo o sempre em outro lugar. “O que há em
das Ding é o verdadeiro segredo” (Lacan, 2008, p. 60). Esta fenda já foi inscrita com a perda
do corpo materno e a interdição do incesto. Falta estrutural vista pelo traço unário que se
rende à incompletude irremediável de tudo aquilo que se tenta criação. Há que bordejar para
não calar. Uma abertura sem sutura. O bisturi do corte. O corpo projeta costuras, irreparáveis
frente à procura que se instala. A língua por si só, incapaz de abrigar a Coisa. O corpo,
compacto, mas tampouco capaz de conter a Coisa, apenas a contorna.
215

Sendo assim, pensar o corpo é pensar num código que o organiza. Também é em
relação a este código, que se organizam as relações entre os indivíduos. Surpreende-
nos que, diferentemente da linguagem humana, os animais parecem possuir um
entendimento imediato quando se relacionam entre si. Não precisam explicar-se, já
que o seu código tem um sentido único; daí a impressão comum de que os animais
possuem uma aura de saber e equilíbrio. Não há divisão na identidade, pois entre o
corpo e o código não há separação. (BECKER, 2010, p. 12)

Estamos sempre às voltas, nas voltas a mais, em torno da Coisa. Buraco incapaz
de ser tamponado. Mesmo na luta, no mais fervoroso destino de fechar o percurso, o que nos
resta é a própria trilha de se fazer percurso. Esse tal inominável, de que viemos falando em
várias páginas, faz-se presente como presença de um centro em torno do qual todos os
movimentos simbólicos transitam. “O objeto que se encontra sempre coincide, apenas
parcialmente, com aquele que gerou satisfação”. E, nos gestos, os giros desejantes nos fazem
sujeitos itinerantes desse im-próprio corpo. (Becker, 2010, p. 54)
No trabalho dos ensaios, quando o corpo abre margem às palavras, muitas vezes
sem fundamento, é necessário fazer com que o significante da palavra se desloque para o
corpo. É preciso colocar o significante corporal em circulação. O silêncio deve permitir que o
corpo comunique através do movimento em cena. As palavras são uma via fácil de acesso à
comunicação e demanda. O corpo precisa trabalhar, limitar-se, respeitar-se, antes de
demandar e concluir. As cenas infantis estão lá em pregnância no inconsciente.

... a mãe entona sua voz ao bebê, causando nele estupefação e alegria. Esta prosódia-
que apresenta características específicas de gramática, pontuação e escansão –
permite ao bebê identificar-se como o objeto causa de um gozo deste Outro
primordial. O bebê procurará, então, o rosto e o olhar desta voz particular,
procurando fazer-se objeto deste olhar e desta voz. No seio da voz materna, estão
harmonia e melodia. (Becker, 2010, p. 47)

No Real da cena, o que nos faz possibilidade de encontro é o tropeço, como num
acidente, que desconcerta o esperado. É tão mais simples se repetir atravessados por uma série
de identificações alienantes, essas que vão recobrindo imaginariamente o Real. Ultrajante
buraco que não se fecha, mas orbita e vacila. “A dança do corpo está entre a carne viva
carregada de memória e a memória invisível, sempre pronta a se encarnar” (ibid., p. 182).
Mas há que suportar, como diz Goldenberg (2014, p. 135), o psicanalisante, aqui estendido ao
intérprete, que vê “estilhaçar-se o seu próprio ego”.
É interessante notar que quanto mais domínio se “tem” do corpo, maior parece ser
a criatividade em brincar, jogar, se lançar no espaço-corpo. Jogar nos remete quase que de
imediato ao Fort-Da. É através desse jogo simbólico com o carretel que a função de
separação e individuação se faz corpo próprio. A criança, no jogo de ir e vir do carretel,
216

trabalha numa busca que lhe permite sair da passividade, reconhecendo a ausência no
distanciamento do objeto, elaborando a “falta pela significação internalizada imaginariamente
do real”. Dessa forma, “não é a palavra que a criança balbucia que importa e sim o que
simboliza o espaço da falta”. (PIZUTTI, 2012, p. 15)
Ora, os limites do corpo são colocados à prova em cena, corpo que se busca na
insinuação da dupla presença e ausência. Então, como pensar as presenças cujas ausências se
fizeram imperativas? Como seria possível pensar o artista construindo essa falta estrutural,
não no sentido de clivagem do sujeito, mas do holding materno sem nunca ter tido essa
inscrição? O corpo parece muitas vezes resistir à chegada desse processo, visto que, para se
aproximar desse lugar, é necessário o trabalho mental de controle e equilíbrio na execução,
aprimoramento nas repetições, ouvido para a rítmica, prazer no encontro com o outro e
consigo mesmo, respeito ao tempo que cada um leva para encontrar o espaço que cabe ao
corpo e à mente.
Quando líamos sobre tais questões em livros de dança e psicologia, vinha o
julgamento de que se tratava mais de romance do que de prática, mas quando o corpo se põe a
dançar, essas questões gritam, apavoram, desmancham-se e refazem-se incessantemente. Um
corpo que se organiza no espaço é também um corpo que sabe, no momento adequado, dar
lugar e tempo às palavras. Interditar o corpo num espaço sem limites é abrir as portas à
confusão, à desestruturação, à impossibilidade de se fazer parte, de se fazer grupo.
A separação da ordem simbólica é sempre frágil, o tempo inteiro, lugar que
sempre precisa se re-fazer. Estamos aí falando do retorno ao terceiro tempo pulsional?
Estamos falando em se dar ao olhar do outro como sujeito? O corpo dançante, esse corpo em
cena revela, sem pestanejar, como nos colocamos no lugar do desejo do outro. O corpo na
dança põe-se de mãos dadas com o modo como a criança se colocou no lugar do desejo do
outro. Sem a separação, o corpo não poderia encadear-se em gestos significantes pelos
tropeços, porque, ao barrá-los, interrompe-se a movimentação significante. Lugar, portanto,
de não despregar o corpo próprio da forma do desejo do Outro, daquilo que lhe falta.
Revisitamos esse lugar na dança?

6.3 Voz e música na cena flamenca

E a música? Seria a voz do Outro (materno) que embala o bebê? É a voz materna
que vai fazendo o corpo do infans dançar, deslocar-se. Uma voz rítmica que vai dando um
217

tônus na constituição do corpo. A voz é diferente da palavra, enquanto a primeira é a música


que leva o corpo da criança à dança, a segunda faz com que a mãe, aos poucos, vá
introduzindo os códigos da língua. A música que a fala desenha com o tom, o andamento, as
pausas, assim “como um intérprete de um instrumento musical faz com uma partitura”, evoca
o sentido do texto, sem, no entanto, enunciá-lo. (QUINET, 2012, p. 12)

A voz ganha significante quando se perde de vista o objeto. É dentro desta mesma
lógica que acontece o brinquedo do fort-da. É na elaboração da perda do objeto que
a criança vocaliza sua ausência e presença. A voz recorta o vazio deixado pela
ausência do objeto, impedindo que esta ausência se transforme em puro real e que,
com isso, o sujeito corra o perigo de perder-se. (BECKER, 2010, p. 60)

As sonoridades musicalmente ouvidas não precisam de decodificação, nem


mesmo podem ser traduzidas, pois não há palavras que as representem. Assim sendo, são
reconhecidas de forma sincrônica, sem fazer parte da cadeia significante montada pelo aparato
simbólico, acessando de forma direta o registro do Real. Emprestar voz para que grite o
desejo de reencontro, barrado pelo recalque imposto pela interveniência do simbólico, é talvez
uma importante função da música e um motivo do prazer experimentado nela. A partir disso,
tendo em vista que o flamenco se constrói atravessado pela música, lembramos que a voz e o
olhar são objetos pulsionais, conforme foi explicitado tanto por Lasnik quanto por Quinet no
capítulo anterior.
Segundo Paravidini, Neves e Ferreira (2013), a voz, nota musical primordial,
invoca o bebê que vai se interessando pelos traços melódicos deixados pela mãe. Uma base de
sustentação, antes mesmo da inserção da palavra. Essa prosódia materna transmite o
significante originário, traço do sujeito que irá advir à cena. Esse traço marcará a matriz
simbolicamente, criando espaço para que a palavra germine numa declaração materna de
desejo e gozo diante de seu filho. Aqui podemos falar do espelho do som como constituinte.
É preciso voltar a esse canto que Lasnik tão bem nomeou em seu livro A voz da
sereia (2013), justamente porque esse canto contém, como já visto na mitologia grega, a
sedução que vem das sereias. Os marinheiros eram atraídos pelo seu canto e ao se
aproximarem, capturados pelo belíssimo som, descuidavam-se e naufragavam. Eis a questão,
voltar a esse canto nos faz reviver o momento original em que tínhamos a ilusão do tempo
sem as barreiras da palavra. Palavra que se funda pela ordem simbólica fundadora do aparelho
psíquico, revelando o encontro sempre faltoso, sem solução. Se houvesse solução,
naufragaríamos, assim como no mito de Narciso, capturados pela nossa própria imagem
refletida n’água.
218

Podemos pensar na música como um passeio que retorna ao Real, mítico e


fundante do sujeito. A arte como possibilidade sublimatória quando erotiza e rompe com o
mítico frente à falta impreenchível. Tocar no recalque de maneira a prosseguir criando, sem
que o excesso de desconforto cause inibição ou paralisia, aquela paralisia que nos conduz à
mitologia da Medusa, para a qual basta olhar e petrificar-se.

As sonoridades musicalmente ouvidas não precisam de decodificação, nem mesmo


podem ser traduzidas, pois não há palavras que as represente. Assim sendo, são
reconhecidas de forma sincrônica, sem fazer parte da cadeia significante montada
pelo aparato simbólico, acessando de forma direta o registro do Real. Emprestar voz
para que grite o desejo de reencontro, barrado pelo recalque imposto pela
interveniência do simbólico, é talvez uma importante função da música e um motivo
do prazer experimentado nela.
No silêncio da música, ausência de som necessária para que haja uma sequência
melódica e um desencadear andante da música, existe uma previsibilidade de
retorno, pois o ritmo marcado pede um novo evento sonoro. A garantia de retorno da
"presença" subentendida na música é confortante, é apaziguadora da tensão
despertada pela ausência. Essa movimentação rítmica de ir e vir é estatuto do Outro
e na música há uma revivência dessa alternância. (PARAVIDINI, NEVES e
FERREIRA, 2013, p. 1)

Num ir e vir similar, dançando também gozamos até nos fundirmos com o Outro,
em estado de completude. A fusão, como em um movimento psicotizante, nos desloca para
aquele lugar sem furos, para logo encontrar uma barreira que incita o retorno. É porque o
retorno se dá que somos capazes de recontar essa história. Por ser fugaz, a ilusão do pleno
escorrega e cai. Irremediavelmente encontra a barreira do real que compele o retorno ao
estado da incompletude constituinte. É um ir e vir.

Com os gestos, o corpo ensaiará sua unificação e, a cada encontro com o Outro, os
processos de alienação e separação estarão presentes novamente.
Os gestos ensaiarão, imaginariamente, tentativas de acabamento, no espaço e no
tempo, sendo que as vicissitudes do real do corpo exigirão uma contínua retomada
destas coreografias na busca constante de uma imagem que confirme a sua forma.
(BECKER, 2010, p. 64)

6.4 O rasgo do real

Montaño (ibid., p. 36, 53) nos alertou sobre a estreita relação do duende com a
morte, já que a morte é um sentimento de que se nutre uma experiência extrema. A verdadeira
vulnerabilidade encontra-se aí, na borda do abismo, onde o rasgo é o real. Se o artista não
experimenta uma situação limite, não pode chegar ao fundo, um fundo que roça a
vulnerabilidade necessária para que o duende apareça, ali, onde a verdade da morte se
219

escancara, sumindo no estado mais profundo do ser, e, poeticamente falando, desnudando-se.


Com base nisso, revela-se uma relação do duende com a pulsão de morte.

A separação faz nascer “para-si”, ao instituir a sua liberdade como suspensão da


significação congelada que tinha recebido de fora. A liberdade se verifica como
abolição do sentido que me fixa, momento em que estou apto a declarar o Outro
incompetente ou insuficiente para dar conta do que sou. (GOLDENBERG, 2014, p.
154)

Becker (2010, p. 34) nos lembra que “a pulsão de morte foi descrita por Freud
como a pulsão sem representação. Isso abre o campo para se pensar o irrepresentável: há algo
que escapa à representação do corpo, que transborda e se presentifica como pulsão de morte”.
É com esse excesso pulsional que estaríamos em cena, excesso que, ao escapar, transbordar,
se faz também tentativa de borda, no passo a passo, como estruturação e estilização,
inscrevendo a pulsão no Real da simbolização. O baile possibilita a borda, a beira, o ensaio do
limite e, desse ponto conseguir retornar de maneira mais organizada. É como se esse lugar
fosse propício ao ultrapassamento dos limites, eliminando as bordas, onde se dá a experiência
da vertigem e o encontro iminente da morte que o duende propõe. Essa dinâmica é possível
uma vez que o Fort-Da se fez enlace no jogo do ir, e saber vir, do ir e voltar, do ir, suspender
e voltar. Para isso, vimos em vários relatos no capítulo 2, a possibilidade de ir porque existem
os pares, a equipe que complementa, que traz, na sensação de união, a fusão necessária para
sermos fisgados de volta no caso do abismo simular a devoração do não retorno. Ao fim e ao
cabo, tratar-se-á da busca dessa primeira satisfação, sempre perdida, cujos vestígios o(a)
artista busca, dando contorno ao indizível do objeto sempre ali, em outro lugar que é,
portanto, já perdido. Não se teria aqui um estar em/para a cena como se fosse a primeira vez,
num compromisso com o nada, na quebra de um corpo viciado? Às voltas, circulando,
circunscrevendo o objeto perdido, o intérprete vai (re)-construindo um lugar outro, distinto
daqueles prescritos pelas convenções.
Isso se torna possível porque a cultura não é somente um resíduo inútil da pulsão,
mas a multiplicação de suas possibilidades de satisfação. Freud já dizia que a pulsão procura
uma satisfação que já fora obtida um dia, naquela nossa pré-história individual, antes do
interdito que nos fez equívoco-linguagem, portanto, humanos. “O corpo é guardião de
memórias, lembranças, reminiscências, como afirmava Freud sobre suas histéricas. É
submetido à cultura, à linguagem, a uma inscrição na história”. (ibid., p. 37)
Testemunhar em movimento o que um dia fomos para o desejo do Outro
primordial nos remete a um núcleo, o núcleo do nada, repetimos. O nada porque imaginamos
220

ter sido o desejo do Outro, e, com isso, ficcionamos uma sustentação, tão inviável quanto um
corpo sempre familiar. Essa busca de reconhecer-se nos outros olhares molda um corpo.
Entretanto, como re-criar um corpo no estranho que nos habita? Via de regra, o familiar se
rende ao imaginário encantador. Contudo, por ser tão encantador nos captura e nos fixa em
lugares carregados de muitos outros que nos falam.
Se fossemos animais, os dos grupos dos instintos e necessidades, uma felicidade
habitaria esse lar a cada meta cumprida do ciclo biológico de fome e sexo. Mas aqui, nessa
estória humana, a linguagem veio como lança. Vem para nos fazer in-conformes, uma vez que
demandamos sempre de um outro lugar, de uma coisa outra. Essa outra coisa pode ser
chamada de um pedido de reconhecimento, não no mesmo lugar da necessidade, mas lá onde
o mal-estar escancara o corpo.
O corpo-linguagem demanda. A demanda é sempre demanda de algo que possa
eliminar o mal-estar. Mal-estar daquele nada, porque nunca fomos, a não ser na nossa
confeitaria imaginária, o desejo do Outro. Mal-estar que fala dessa falta-a-ser e que, na sua
origem, está ali: a castração como o corte capaz de separar o desejo que fala no desejo do
Outro. Um pedido de simbólico para que a porta da criação se faça presente. Fazer-se corpo
criativo em cena como uma palavra endereçada ao Outro. Desejo de/como saída?
É na fantasia, nessa morada que, como tela, se dissimula o tão esperado momento
da cena: o Real? O corte que castra nos faz função. Impulsiona a trilha do desejo. Esse Outro
rememorado, da infância retida no suposto bem-estar, bem-dizer, nos coloca na ilusão de que
a satisfação não poderá vir se não atravessada pelo Outro, lugar de legitimação e
reconhecimento. A domesticação da pulsão pela via do amor. Sujeito preso aos ideais do
Outro. E como conjugar essas exigências e as da pulsão? Pela sublimação. Fazer a rota do
próprio estilo sem importá-lo, em seu duplo sentido, do Outro.
Neste ponto, retomamos a pergunta formulada ao final do capítulo 5, lá deixada
sem resposta. Não estaríamos falando de um sujeito cuja travessia não se fez e, quando entra
em cena, acaba congelando significantes, em vez de “metonimizá-los” como caminhos,
atalhos em construção? Com medo de se apagar nessa cadeia que é capaz de trilhar, cadeia
que é própria do sujeito da linguagem, a fantasia se faz forma ao desejo que não cessa. No
movimento de contornar e tratar o furo do real, forja-se a fantasia. É de um modo
inalienavelmente corporal que o sujeito trata o real, pois é com o corpo que a fantasia se basta
e faz barreira ao gozo. O corpo busca sua unificação na imagem, mas esta sempre falta. Nas
encruzilhadas, é o corpo que responde como substância corporal de um suporte imaginário na
construção da sua “defesa”, a fantasia. (NASIO, 2007, p. 77, 78)
221

O corpo dançante é aquele que possui dupla dimensão: uma visível e manifesta,
outra secreta latente. Entre esses dois corpos está o abismo a viver e ultrapassar. A
dança do corpo está entre a carne viva carregada de memória e a memória invisível,
sempre pronta a encarnar. (BECKER, 2010, p. 182)

Não há corpo sem as amarras simbólicas e sem os orifícios nos quais o objeto a se
localiza. Portanto, trajeto do corpo imaginário ao lugar do corpo representado por
significantes. Os orifícios vão dando consistência ao corpo, este tecido por significantes e
imagens. Para Tfouni& Laureano (2001, p. 1-4), os três registros -- o real, o simbólico e o
imaginário -- são responsáveis pela composição e funcionamento da cadeia significante (RSI).
Um nó feito de três círculos, nos quais se entrelaçam e coexistem, em dependência direta, um
não pode existir sem o outro.

Figura 61: Nó borromeo


http://clinicalacaniana.blogspot.com.br/

O a faz interagir os três registros. Como se pode ver na ilustração, que aí


comparece para a retomada dos conceitos, os registros se interpenetram. O objeto a
desempenhará distintas funções de acordo com o registro que toca. Por exemplo, ao tocar o
real, o objeto a marcará a falta, enquanto nos registros do imaginário e do simbólico, ele terá
como função tamponar essa mesma falta. Recoberto ou velado como véu pelo imaginário e
dito pelo simbólico, o objetivo é dar conta da falta, estrutural, como já vimos no capítulo 4.
Quando se trata do discurso, a marca da falta aparecerá em suas formações que provêm da
fonte inconsciente. O objeto a circula nos três registros a partir do contorno realizado pela
pulsão que sustentará toda a cadeia significante e a linguagem. O sujeito se movimenta entre
significantes, como dirá Quinet (2002) mais à frente. No “entre” eles, o sujeito aparece.
222

O que se passa, contudo, quando se trata do corpo flamenco quando nele se


instaura o duende? Neste ponto das articulações, para nós, não há dúvida de que o duende no
flamenco corresponde, sim, ao objeto a na psicanálise. Objeto que se faz pedaço do Outro
imaginário. O espaço para a travessia produzirá um punhado de ferramentas, na queda do
objeto a, e, como consequência, na queda da identificação imaginária. A sua ferramenta se
fará ação no confronto com o vazio, o Real. A fantasia como forro do eu vai se gaseificando.

Somos assim condenados a procurar objetos substitutivos que nunca satisfazem


inteiramente, e, entre esses objetos, nos confrontamos com os fonemas e as palavras
que nos permitem investir o mundo. As palavras só preenchem essa função quando
reenviam a uma experiência sensorial que foi acompanhada por palavras.
(QUEIROZ, 2003, p.1)

Mas a nossa fome, para além dos fonemas, é a do reencontro com a satisfação
absoluta através do das Ding. Algo não assimilável na organização psíquica. Só queremos
reencontrá-la. Só que tendemos a recuar frente a esse objeto mortífero. O gozo absoluto é
morada da abolição do sujeito. Que sujeito? Esse, sem causa e sem desejo. Por isso, o corte
dito pela castração é a lei que impede o gozo absoluto no lugar do possível. Mas negar a
satisfação, que se fez rota no aparelho psíquico em moldes de traços mnêmicos, é desdenhar
esse tão sonhado re-encontro. No ponto marcado certeiro da satisfação. A cada exigência, a
memória da primeira satisfação é evocada e invoca-nos. À procura de tal Coisa, das Ding, a
rede de representações psíquicas vai se fazendo pelo caminho da memória, como apontou
Freud no Projeto de 1895. Contudo, o objeto a vem como Real, uma vez que não se amarrou à
representação. E aí surge a hipótese de que, na medida em que o Real se alardeia numa não
representação em cena, o simbólico faz voz percussiva como rede representacional.

6.5 Do gozo e seu apagamento

Pensando um pouco mais no método coreológico flamenco criado pela maestra


Cylla Alonso, brevemente explicitato no capítulo 2, há aqui uma barra ao gozo. Há um
código, uma lei que rege e obedece a regras. Há uma adaptação das normas e conceitos
criando outros novos, como ocorre com a língua, enquanto código comunicacional. A lei
apóia o gozo. Gozamos em cena e vamos além. Gozar sempre em um lugar onde a medida se
faz borda. Sem um certo suporte, o corpo desfalece e o desejo paralisa. Uma travessia
223

enquanto desistência de ser falo imaginário da mãe, do objeto ali do gozo da mãe, que se faz
gozo-renúncia.
Sem enfrentar a travessia, estamos às voltas com o sujeito do gozo,
completamente alienado na sua relação com o objeto a. Quem dá o comando na cena é o
objeto. O sujeito se perde no bordado imaginário, sem a possibilidade de o Real fazer
encontro como borda. Se pensarmos no desejo como movimento que nos leva a uma falta de
sentido, ou melhor, a uma procura, e se pensarmos o gozo, como o nada de fora, numa relação
direta com o sentido, como construir um espaço possível do corpo em cena? Becker (2010, p.
67), afirma que o movimento se dá no intervalo entre a voz materna e a palavra desejante.
Nesta busca de preencher o vazio tido na separação do corpo da mãe e o da criança, o
movimento ocorrerá.
Estamos às voltas com um olhar internalizado. A ilusão de que o de fora rege é
apenas uma maneira ingênua de tocar na coisa. O mapeamento, que o corpo fornece ao
externo, está imbricado no mapeamento que lhe foi dirigido outrora. O ritmo da voz materna
faz com que a criança pulse em um ritmo interno que vai se refletir na maneira como é tocada
pelo mundo exterior. Quando pensamos num estilo, seja o da escrita ou do baile, estamos
abordando algo de absolutamente singular, porque o estilo nada mais é do que a marca
deixada por esse olhar, pela voz inaugural da mãe que marcou a sua criança.
Não nos esqueçamos de que a proibição do incesto regula a distância necessária
entre o sujeito e a Coisa. Mas será que abriríamos mão tão facilmente dessa lei feroz que nos
tira de um projeto de satisfação total? Claro que não, pagamos com algo ao abrir mão do
desejo incestuoso, esse algo é nomeado por gozo. A labuta aqui do artista, neste caso, do
(a)bailaor(a), cujo corpo se faz seu imperativo, é que o domínio do corpo se dá em tempo
integral, no entanto, na medida em que o dominamos, ele nos escapa. E a estranheza vem à
baile, com um tal susto que grita no estranho corpo que nos habita. Isso nos remete à metáfora
de Clarice Lispector no conto “Amor” do livro Laços de Família (1998).

Incapaz de se mover para apanhar suas compras, Ana se aprumava pálida. Uma
expressão de rosto, há muito não usada, ressurgia-lhe com dificuldade, ainda incerta,
incompreensível. O moleque dos jornais ria entregando-lhe o volume. Mas os ovos
se haviam quebrado no embrulho de jornal. Gemas amarelas e viscosas pingavam
entre os fios da rede.
Só então percebeu que há muito passara do seu ponto de descida. Na fraqueza em
que estava, tudo a atingia com um susto; desceu do bonde com pernas débeis, olhou
em torno de si, segurando a rede suja de ovo. Por um momento não conseguia
orientar-se. Parecia ter saltado no meio da noite.
Era uma rua comprida, com muros altos, amarelos. Seu coração batia de medo, ela
procurava inutilmente reconhecer os arredores, enquanto a vida que descobrira
224

continuava a pulsar e um vento mais morno e mais misterioso rodeava-lhe o rosto.


Ficou parada olhando o muro...

Na possibilidade de se fazer na vida como na arte, as coisas vêm em uma mesma


tradução. Por isso, nos remetemos ao conto da Lispector, quando a realidade enquanto
encobrimento é o que é mobilizado pelo sujeito para fazer anteparo ao Real. Aqui, o Real
protagoniza num momento em que a surpresa desse corpo, que habita em Ana, carece de
representação. Nessa mesma linha, porque não fazermos uma aposta lá onde o corpo bordeja
o irrepresentável? Trazer o corpo, que ali tenta se dizer, mesmo que des-dizendo o que dele
vaza. A separação, sem a prerrogativa da palavra de um setting analítico, impõe ao corpo um
fazer-se. O corpo quer fazer-se falar como sujeito da ação e não ancorado como objeto que
reage. Eis que a castração precisa bater à porta. O simbólico como registro mediador do não
senso do Real. Pelo simbólico e imaginário, o encontro do Real se aproxima. E o artista é
posto como aquele capaz de colocar a verdade dos objetos consagrados disponível ao vacilo.
Disso advém uma produção que vai se construindo em cena como um novo
arranjo da linguagem e do gozo. Ora, o nosso corpo é depositário de cacos significantes que,
sem sombra de dúvida, ou com sobras imaginárias, produzem efeito de gozo. Apagamento do
gozo, se é que podemos falar assim, seria a possibilidade de não ter a nenhum Outro a quem o
apelo se faz. Consentir no movimento desse buraco do vazio estrutural, para aquilo que o
sujeito seja capaz de sustentar. Nesse assentamento, a configuração do seu próprio desejo.
Sim, habitar a estranheza do próprio corpo. Bordejando a Coisa sem estar
aprisionada ao gozo do Outro, porque na medida em que a captura se faz, o desejo se perde.
Na medida em que a percussão vai se fazendo nos pés do(a)bailaor(a) junto aos componentes
da cena, guitarrista, cantaor(a) e palmeros(as), a nomeação do Real, que nos aparece, vai se
fazendo simbólico. O ritmo, aquele advindo do materno que se propôs a lançar a dança do
bebê ao mundo, re-assegura, aqui, o re-encontro bem-sucedido com o Outro. Mas, uma vez
que a dinâmica de alienação e separação se faz processo a todo tempo, esse re-encontro não é
nenhuma segurança da trilha. Evidentemente, a música aqui tocará o corpo para além da
palavra. Num gozo “empoderado”, digamos assim, naquele gozo fálico, do ter ou não ter, o
simbólico vai tentando dar conta dessa carne Real, sempre inquietante. O movimento do
corpo faz o caminho do movimento significante, e a cada estado de suspensão, no instante de
escassez, o sujeito circula numa narrativa, sob a carcaça de um corpo.

A dança torna ultrapassadas as tentativas de interpretação, pois ela brinca com os


códigos. Ela nada tem de amor ao corpo ideal. O corpo dançante é o que opera
linguagens e espaços, sendo ele o suporte destas operações. Não se trata de falta de
linguagem simbólica na dança, mas sim de referir-se à linguagem anterior às
225

palavras. É como se o sentido pudesse objetivar-se, ser colocado em cena. O dançar


é o movimento do corpo que rompe o silêncio das trevas. Não importa se os gestos
são controlados ou desajeitados; eles fazem sua função como provocadores de
abertura a novas representações. (BECKER, 2010, p. 71)

A ritmada voz materna não é invocante pelo seu enunciado, mas pelo tom do seu
afeto. Comemora-se, atravessada pelo ritmo, a leveza de um corpo que acolhe o retorno do
embriagado instante dionísico. Imagina-se aqui a criança quando experimenta o prazer
girando o seu corpo até perder o equilíbrio. O simbólico dessa dança se encarrega em domar
as invasões do Real, furando o narcisismo primário.
Como diz Becker (2010, p. 132), a voz que nomeia não é a mesma que embala.
“A voz do pai é aquela que impede que o sentimento oceânico, provocado pela voz da sereia,
se instale”. A separação desse corpo materno que embala é necessária para que o sujeito não
dissolva o seu desejar frente ao enigma do desejo do Outro.

... o separar-se é estabelecer uma forma de reconhecimento em que o sujeito fica


representado por seus próprios atos. Isto supõe uma transformação da demanda de
reconhecimento aos pais, em desejo, na sustentação de suas próprias produções.
Digamos que é nesta passagem que se encontra a grande dificuldade do ser humano,
não só na adolescência, mas ao longo da sua vida. (ibid., p. 152)

Quando o intérprete, ainda que sob o olhar e direção coreográfica, se coloca no


lugar de demandante, pede ao Outro um significante que lhe dê consistência. O diretor, por
exemplo, em momentos de desconstrução, pode se colocar de maneira que o intérprete
consiga ali fisgar um significante capaz de fazer laço. Mas, ainda assim, segue-se sem
garantias de um corpo completo, sem fendas e furos. O corpo que se separa é aquele capaz de
narrar com os cacos significantes o seu tropeço-corpo. E, pela cena, o das Ding vai sendo
rastreado até noticiar o próprio corpo. Não seria o mesmo que dizer de um rastrear análogo ao
que tanto almejamos em cena, só que tendo o duende como metáfora poética para falar do das
Ding?

6.6 O encontro do corpo en-cena com o das Ding

Vamos traçando uma busca em qualquer objeto capaz de eliminar, e aqui


retornamos a Freud, uma excitação sentida no corpo. E vamos trocando, repetindo, re-fazendo
essa busca, porque o objeto guarda a sombra cerrada do das Ding. Seguimos ecoando essa
opacidade. Afinal, “o corpo é palco privilegiado da ilusão que oferecemos ao Outro”. E no
226

Outro vamos forjando, justificando e interpretando objetos capazes de satisfazê-lo. O das


Ding é responsável por seguirmos para algum lado, visto que a experiência com o objeto é, de
saída, sempre faltosa, e por faltar, nos causa. O encontro com o objeto faltoso é veículo, uma
espécie de co-piloto de gozo. Não vamos encontrar esse objeto. A satisfação está em
contorná-lo, e não no objeto em si. (ibid., p. 75)
Pelo contorno, as trocas simbólicas se ativam, expondo o vazio a partir de outro
objeto que será posto nesse lugar. O corpo en-cena vai organizando simbolicamente esse Real
e, ao se encontrar com o das Ding, a estranheza vem nos embalar. Nessa estranheza
inquietante que causa repulsa, vamos com o corpo formando fantasias prazerosas, desenhando
e desdenhando o impostor, o vazio imposto. Enquanto presos por identificações imaginárias, a
técnica fará sobreposição ao ato artístico. Quando a arte impera, não nos reconhecemos mais
na nossa própria imagem. Sim, parece ousado, mas aquela fortaleza do eu, importada de
lugares enganosamente fixados, vai se dissolvendo. E lá, o objeto nos aponta àquilo que resta.
Como disse Lima (2012, p. 100), “como um Unheimilich (o estranhamente familiar) que
desarranja o conforto visual, sonoro, discursivo, enfim, que desarruma a casa”.
E o que fazemos com isso? Daí supomos que faremos arte, em seu duplo sentido.
Se o terror -- e leiamos o terror como abismo de sermos reabsorvidos ao empréstimo do
corpo-carne materno (Real) -- roçar o corpo, a ameaça de diluição no vazio se fará imperativa,
e em lugar de contornar o das Ding, teremos o domínio do Real do gozo. Se estivermos aqui
falando de um Real que impera sem as amarras dos registros do simbólico e imaginário, o
corpo poderá, por exemplo, paralisar-se, petrificar-se, enclausurando-se, uma vez que estes
deveriam vir à realidade ligados como um nó.
No tempo e no espaço, o corpo vai se deslocando e modelando na construção de
um corpo que visa ao Outro, velejando pelas bordas, na medida mesma em que o objeto nos
escapa. E o afeto bruto, nomeado aqui pela angústia, nos chega quando o sujeito regride ao
corpo-carne, esse que marca o lugar da angústia como a irrupção do Real. Afinal, “a dança
torna a relação do corpo com o espaço um batimento de aberturas e fechamentos, produzindo
um jogo de lugares. O corpo caminha em vão e se agita no vazio”. Não estaríamos às voltas
com a sustentação em algo que é da ordem do insustentável, marcado sempre pelo olhar da
indeterminação? (ibid., 2010, p. 161)
O sintoma, como outra manifestação do Real pode ser presa fácil no não
deslizamento do corpo no espaço. O corpo-carne grita no desmanche da imagem e na fixação
de uma impossibilidade de se fazer deslocamento. Aqui sim, o buraco do abismo se abre, e
aquele corpo que iria se contar, nas travessuras de se reinventar, paralisa-se. Isso “implica
227

suportar a angústia que coloca em xeque nossa relação com o saber sobre o corpo a partir do
momento em que se enovela a um não-saber que se precipita e se institui como horizonte” da
experiência. (LIMA, 2012, p. 100).
Ora, como salienta Dumoulié (2011, p. 1), “o corpo, para o homem, é o lugar de
um investimento imaginário e simbólico infinito. É trabalhado por incessantes metamorfoses,
como se, de corpo em corpo, a humanidade tentasse provar que é capaz de inventar O corpo”.
Atravessado pelo Outro, constrói-se um novo corpo. A ousadia de sentir-se estranho em sua
própria morada, decidido em ir a a, eis que aqui nos damos conta da falta e do desamparo, e
com essa ferramenta, que aparentemente nos faz ver como mancos, nos conduz à criação.

A chegada do duende pressupõe sempre uma transformação radical em todas as


formas sobre velhos planos, dá sensações de frescor totalmente inéditas, com uma
qualidade de rosa recém criada, de milagre, que chega O duende... Onde está o
duende? Pelo arco vazio entra um ar mental que sopra com insistências sobre as
cabeças dos mortos, em busca de novas paisagens e acentos ignorados; um ar com
cheiro de saliva de menino, de erva pisada e véu de medusa que anuncia o constante
batismo das coisas recém-criadas a produzir um entusiasmo quase religioso.
(LORCA, 1933, p. 1)

O objeto a faz alusão à falta, apreensível somente no registro simbólico. As duas


facetas do a, o desejo e a angústia, são canais que nos tocam pelo registro do Real e que
podem eclodir no deslocar de um desfiladeiro ou de um breque numa imagem congelante.
Mas não seria pela angústia que uma tradução subjetiva de a se faz cena? A angústia, que nos
remete à primeira parte do diário de bordo, resistia num lamento de permanecer no
desconhecimento daquilo que faltava, ou melhor, que nos falta, ao insistir que o Outro é o
guardião daquilo que pode nos completar.
Se entrar em cena é colocar o “saber” de nós na voz do Outro, onde ficaria o lugar
da falta fundante e mobilizante? Ora, a falta, que nos funda, não é nossa por direito. Entregá-
la ao Outro, numa ilusão de inteireza, nos devolve o apego a repetir, não em contorno a a, mas
em gozar numa des-construção à criação. É dizer não ao lugar do estilo, esse que só na
subjetividade se faz verbo. Falar dessa falta é retornar ao momento traumático do corpo,
tratando pelo simbólico esse Real. Poderíamos nos atrever a dizer que um artista reinventa um
Real? É no metro quadrado da falta que a criação faz margem. A emergência do Real vai nos
aproximando de uma operação de redução do imaginário. No vacilo coreografado, visto que
esse corpo nos garante muito pouco, reorganizamos algo em torno do vazio deixado pelo
objeto perdido. É na sua inexistência que o nosso desejo se faz alojamento.
228

Angústia que aponta para um confusionamento entre saber e não-saber. Angústia de


ser lançado à questão de saber (na verdade, de não saber) o que vem a ser o meu
próprio corpo, entre a sua capacidade de fazer volume e sua capacidade de se
oferecer ao vazio, de se abrir. (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 38 apud LIMA, 2012,
p. 96-97)

Pela castração, o Real do gozo nos coloca num ponto indizível e o saber fazer vem
à tona. Saber-fazer como parceiro da impossibilidade de se evitar o vazio da Coisa. É dela
mesma que tiramos proveito. Ora, o improviso não seria uma maneira de lidar com esse Real,
que, em alguns momentos, em cena nos parece furioso, enquanto vamos percebendo que se
deixar reagir ao seu toque, nos leva para um além do objeto, para o indizível. Experiência de
enfrentamento do imprevisível. Os limites do corpo são colocados à prova, como no Fort-Da,
no jogo/ brincar que se insinua na dupla presença e ausência de um corpo que se tenta próprio.
É sim na falha/falta que o corpo se investe cena. Nesse lugar, vamos construindo uma borda
para o invasivo Real do corpo, deixando o desejo decantando, não como descanso, mas como
transformação, no lugar da busca sobre a verdade, essa sempre tão enganosa acerca do Real
que é responsável por trazer um certo fascínio a quem vê e a quem se deixa ser visto.

Porque a dança, conforme lembra Alain Badiou, é o oposto positivo do desfile


militar, cuja essência é, por definição, “obediência e boas pernas”. Ao invés, dança é
“a mostração corporal da desobediência a uma impulsão”; é corpo não forçado, nem
mesmo por si próprio. Dança é sexo, sexo subtraído de qualquer vulgaridade.
(MENEGAZ, BIANCHI E CARVALHO, 2014, p. 1)

6.7 Atando os fios em nós

Os limites do corpo são colocados à prova em cena, como no jogo doFort-Da,


no qual um corpo se busca na insinuação da dupla presença e ausência. Então, como pensar as
presenças cujas ausências se fizeram imperativas? Por exemplo, se nunca se aprendeu a
brincar/jogar simbolicamente com o carretel, então, o que tornaria alguém “de fato” um(a)
artista seria a capacidade de, justamente na cena, costurar o vazio que nunca se fez inscrição?
Como seria possível pensar o(a) artista construindo essa falta estrutural, não no sentido de
clivagem do sujeito, mas do holding materno sem nunca ter tido essa inscrição. A genialidade
está aí? Construir o que não foi inscrito no corpo pelo próprio corpo posto em cena? A
sublimação dá conta do significante da ausência que se faz presença?
Eis as perguntas que não cessam de retornar e cujas respostas não se dão pelo
discurso da completude, mas do lugar das ferramentas que podem ser articuladas em cena.
Evidentemente, os momentos desestruturantes em cena sempre ocorrerão, ainda que tenhamos
229

o coreógrafo, o grupo, os músicos para fazer enlace significante. Não há como fugir da
estrutura. Ora, a falta é estrutural. E por conta dessa marca fundante, nunca estaremos seguros
da relação com o nosso próprio corpo. Esse corpo, sempre estrangeiro para nós.
Diferentemente do animal que é o seu corpo, nós, falantes/falados, temos o nosso corpo, não
somos o nosso corpo. Dentro e fora da cena, buscamos sempre alguma amarra com ele, e, a
cada busca, nos deparamos com um estranho, esse lugar de desconhecimento. E ai está: sem o
significante para fazer laço, nos chega o abismo.

Nada é mais impróprio que o nosso pretenso “corpo próprio”. Lacan dá uma
explicação para isso em seu texto sobre o “estágio do espelho”, onde ele mostra que
construímos nosso corpo em função de uma imagem, tal como é vista no espelho,
uma imagem invertida, à qual nos alienamos. Porém, essa alienação imaginária é
também simbólica, pois, num canto da imagem, intervém o olhar ou o sinal de um
Outro, que constitui o que Lacan denomina “traço unário” de identificação. E é
através de traços simbólicos e de modelos imaginários que recompomos
incessantemente nosso corpo. (DUMOULIÉ, 2011, p. 1)

Vamos, em certa medida, nos ancorando na sensação de uma hipotética


completude que nos mantém na insistência à cena. Ali, no ao vivo, na coreografia que pode
falhar, no improviso que vai se encostando no corpo é que temos a experiência de uma
abertura com um corpo não representável. Sim, a representação pendente nos corpos que
pedem catarse. Essa é abertura que se dá para o corpo fazer o que quiser e não o que nós
queremos. É esse exercício que se vê em cena, na abertura do corpo, quando tentamos
notificá-lo dos movimentos. As coreografias em grupo nos trazem o de sempre, uma certa
mestria do corpo, ou seja, a facilidade em domar as pulsões. Apostar em algo fora da mestria
coloca a nossa sexualidade ali nos olhos por onde somos olhados. Um furo que pe(r)de borda.

Portanto, o corpo é exatamente como a alma. E, aliás, sempre caminham juntos:


estão associados ao que Kant chama de “a coisa em si”. Tudo o que apreendemos
quando dizemos O corpo, fora das representações imaginárias, é, como Deus, como
o Mundo: uma ideia transcendental, no sentido rigorosamente kantiano do termo.
Para prová-lo, nada melhor do que nossa época de suposta liberação do corpo, que
transformou em slogan o retorno nietzschiano ao corpo: na verdade, ela sempre
correu atrás de uma ideia tão abstrata e inapreensível quanto a própria alma.
(DUMOULIÉ, 2011, p. 1)

E desse olhar e ser-visto (ativo-passivo), o eu está tanto dentro como fora. Há um


gozo na encenação, visto pelos sinais do voyeurismo e exibicionismo da pulsão escópica.
Vamos explorando esse gozo na cena. Há também o gozo da platéia, gozar na posição de
quem olha e de quem é olhado. O inesperado e o estranho no corpo traz o enigma. Enigma
como lugar do objeto a como Real. Não devemos nos esquecer que o objeto a, como salientou
230

Jorge, tem várias conotações. Aquilo que não se amarrou na representação sempre estará
presente. Dominar esse corpo que não cessa de nos escapar, especialmente da linguagem que
queremos fazer dele. Não sabemos se iremos conseguir, mas a possibilidade de fazer dele essa
linguagem ao entrar em cena, nos faz gozar, nos leva à aposta, numa ingênua esperança de
totalizar o que nunca será totalizado. Como lembra Lima (2012, p. 130), “se não investimos
imaginariamente a ideia de um “super corpo” – um corpo heróico e bem treinado –
exatamente para dar conta do corpo que nos escapa”. A presença em cena do corpo falante
traz a substância gozosa, gozo este fálico de poder dominar o corpo e lhe impor uma
linguagem.

O corpo é uma cadeia temporal de linguagem inconsciente por onde circula o gozo.
O corpo vivo é corpo gozante que se movimenta. A pulsão invocante dá o ritmo, o
andamento; e as partituras gestuais do corpo fazem ecoar ali a melopéia de uma
lalíngua outrora ouvida; a pulsão escópica o coloca na cena do mundo desenhando
seu deslocamento espacial. O corpo é o palco das manifestações do inconsciente
real: partes esquecidas, movimentos falhos, lesões involuntárias – são inúmeros os
lapsos do corpo.
O corpo em transformação permanente se vincula às cadeias associativas do
inconsciente que o corpo é estruturado como uma linguagem – a linguagem da
pulsão. (QUINET, 2010, p. 23-24).

Lima (ibid., p. 154), acrescenta a essa discussão algo bem importante pontuada
por Quinet referente à lalíngua. Para nós, a lalíngua sempre nos empurra para um ponto de
encontro com o não saber, “mas que se presentifica nos vazios da carne”. Por isso, a nossa
condição de estrangeirismo à língua, porque seu dizer, de saída, nunca diz o bastante. O que
conseguimos capturar da língua materna vai nos trazer um estilo próprio, calcado numa
maneira muito particular de estar com esse corpo posto no mundo. “O ponto como cada um de
nós enovela o fluxo pulsional”. Lançar o corpo em cena é, de alguma maneira, suportar um
esvaziamento dos significantes que nos repetem em história. Isso nos leva sempre ao vazio de
sentido, mantendo aquilo que Lacan nos disse acima, o que há em das Ding é o lugar do
enigma.

Com ideia, com som ou com gesto, o duende gosta das bordas do poço em franca
luta com o criador. Anjo e musa escapam com violino ou compasso, e o duende fere,
e na cura dessa ferida, que não se fecha nunca, está o insólito, o inventado da obra
de um homem. (LORCA, 1933, p.1)

Esse hiato que se faz no ato criativo, nos chama ao desamparo. Imaginemos a
cena análoga ao processo analítico, aquele frágil momento em que o silêncio provoca
aberturas de um sentido suspenso e, por isso, esse vão, sem a garantia de um sentido que se
231

faça chão. Becker (ibid., p. 75) diz que a “arte e a psicanálise têm, em comum, a sustentação
do trabalho significante”.
A imagem, que outrora se construiu, é uma construção que se tenta totalizante
quando cedida às querências imaginárias, visto que essa imagem nunca terá uma consistência,
mas insiste na apropriação de si, “oferecendo-se constantemente ao olhar do Outro”. (ibid., p.
84). Nessa aventura singular de se dar ao olhar do Outro, ser vista em um lugar de
legitimidade, vamos nos reconhecendo com o movimento do corpo, deslocamentos
significantes nos desdobramentos de significações. A dança cujos significantes se agitam,
movimenta algo do Real do corpo, articulando imaginário e simbólico. Os limites que se
conferem em cena, desinflamo imaginário, trazendo o simbólico na inscrição da carne. Da
expressão pulsional à inscrição do desejo, nessa busca pelo ideal do corpo perfeito, esse que
só existe pela morte, pois é só na querência de perfeição que o corpo busca. O treino se coloca
a serviço do desejo. A música que pode servir de guia em lugar do abismo.
Na imagem desejável de um ideal de transgressão do desejo, e, portanto, da lei, o
Real se apresenta sob feições de morte, num gozo absoluto, este inibidor de qualquer causa
que desloque o desejo.

Não é permitida nem ao psicanalista, nem ao artista, qualquer forma de


burocratização, pois ela cortaria a possibilidade de presentificação de um radical
desconhecido e, portanto, aboliria a referência ao ato criativo. Em alguns de seus
trabalhos Freud associa a interpretação psicanalítica ao ato criativo, textos onde
podemos apreciar a irrupção do imaginário no simbólico, presentificando o real e
causando efeitos de busca e movimentação de sentido. (NORONHA, 2007, p. 61)

Não há como negar -- ainda que o Real esteja tão amedrontadoramente perto da
experiência oceânica com que validamos em cena -- que a realização pulsional traz o corpo
das fantasias, operando torções pulsionais em seu curso como alimento ao desejo. Enquanto
os palcos alheios, daqueles que nos ditam, forem tomados como nossos, o solo próprio i-
nexiste. Tanto na posição de intérprete, como na de analisanda, há um trabalho, como no
bordado de re-conquistar cotidianamente um corpo que se sustenta.

Os grandes artistas do sul da Espanha, ciganos ou flamencos, quer cantem, dancem


ou toquem, sabem que não é possível nenhuma emoção sem a chegada do duende.
Eles enganam as pessoas, e podem dar a sensação de duende sem que ele esteja lá,
como as enganam todos os dias autores ou pintores ou modistas literários sem
duende; mas basta atentar um pouco, e não se deixar levar pela indiferença, para
descobrir o engodo e fazê-lo fugir com o seu tosco artifício. (LORCA, 1933, p. 1)

É nesse processo de alienação e separação que nós, ao sair do Estádio do Espelho,


enfrentamos os percursos impostos da vida e do corpo que se fundem num ideal de
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completude da imagem, ao mesmo tempo em que a falta trama sua cena ali no despedaçado,
desestruturado.
A tão sonhada certeza se funda na suspensão e, somente daí, poderemos falar de
significação. Desbravando vazios, vamos construindo escritas de presença e ausência, como
no jogo de carretel que nos faz adultos. O corpo da experiência é um corpo que pede
desmanche. Ora, não são aos movimentos fixos onde queremos chegar. Não há aquele objeto
prévio da pulsão nos assinalando o caminho da verdade. O que temos é a possibilidade de
criar novos mapas, deixando os ideais de objetos para trás, não somente no sentido de
rememorar e elaborar, mas no sentido de não mais se fixar no imaginário, pois os limites do
corpo são colocados à prova em cena, como no jogo do Fort-Da, no qual um corpo se busca
na insinuação da dupla presença e ausência.

Siempre que me preguntan qué hay que hacer para bailar bien, digo lo
mismo: hay que estar toda la vida intentando aprender a colocarte para a la
hora de la verdad descolocarte del todo. No sé explicar por qué, pero bailar
bien consiste em eso, em descolocarte.
Cuesta mucho encontrar-se con una misma, sentarse y decir “a ver quién
eres”, mirarte al espejo pero mirarte com honradez. (EVA LA
YERBABUENA, 2008, p. 154)

Voltando ao lugar do(a) líder, vamos compreendendo o lugar aqui do(a)


coreógrafo(a) como um(a) captador(a) de movimentos pulsionais, capaz de lidar com
materiais vivos que lhe vão chegando. Pela repetição da manobra, isolamento e agrupamento
de vozes percursivas vai se formando um todo, assim como no caminho da condensação e do
deslocamento encontrados nas produções oníricas. E aqui se pode descrever parte do percurso
de um(a) coreógrafo(a), o que nos faz pensar na função do(a) diretor(a), ao encontro daquilo
que Freud nomeou por líder, no seu texto Psicologia de Grupo e Análise do ego([1921] 1996)
Como lembra Goldenberg (2014, p. 42-43), o coletivo e o individual obedecem à
mesma estrutura e respondem às mesmas leis. A diferença se faz na força do desejo que antes
permanecia sob o controle do indivíduo, e que se revelava no grupo. “Como se para cada um
dos participantes não fosse mais necessário cuidar das regras de polidez e decência, já que a
multidão é sem lei”. Ora, o olho daquele que governa não me enxergará no meio da multidão
e o meu cuidador interno também poderá relaxar da vigilância. O desejo comandado pela
fantasia no bando levará sempre a melhor. O grupo fabrica o líder de que precisa.
Freud lembra que há um “sentimento de onipotência: para o indivíduo num grupo,
a noção de impossibilidade desaparece” ([1921], 1996, p. 88). Nos casos de colaboração,
formam-se laços libidinais que prolongam e solidificam a relação para um ponto além do
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simplesmente lucrativo, o que confirma que, “o amor por si mesmo só conhece uma barreira:
o amor pelos outros, o amor por objetos” (ibid., p. 113). Sabemos que a identificação remonta
à história primitiva do complexo de Édipo.

A identificação, na verdade, é ambivalente desde o início; pode tornar-se


expressão de ternura com tanta facilidade quanto um desejo do afastamento
de alguém. Comporta-se como um derivado da primeira fase da organização
da libido, da fase oral, em que o objeto que prezamos e pelo qual ansiamos é
assimilado pela ingestão, sendo dessa maneira aniquilado como tal. (ibid.,
p.115)

O laço comum entre os membros é da natureza de uma identificação baseada


numa importante qualidade emocional residente da natureza do laço com o(a) líder, que nada
mais é do que uma nova percepção de uma qualidade comum partilhada. É o(a) coreógrafo(a)
que fisga com a função de amarra significante quando este nos escapa. A persistência do
trabalho corporal, numa incessante repetição, não como mestria do corpo dócil e obediente,
mas como busca de uma pulsão total. O que sempre encontramos, todavia, é uma pulsão
parcial, que nos deixa um sentimento de que há algo faltante. Ora, satisfazer-se plenamente é
sempre uma frustrada tentativa de reeditar uma satisfação primeira, tentativa esta que se
repete através dos inúmeros objetos incapazes de ocupar o lugar do primeiro objeto, aquele
que hipoteticamente foi capaz de proporcionar a experiência de satisfação. Múltiplas
experiências sobre um resto que nenhum objeto será capaz de encobrir. A cena nos leva à
presentificação dos restos, num trânsito entre o mundo dos objetos.
Tanto na análise como em cena, espaços de construção, não encontramos nenhum
significante capaz de nos designar. O que ocorre é que um significante representa o sujeito
para outro significante. Sujeito dividido entre dois significantes como um vazio, um “entre-
dois”, como aponta Quinet (2002). Ora, não seria esse “entre” o espaço necessário para se
fazer metáforas criativas até a próxima caminhada metonímica em cena e em análise? Na
medida em que cristalizamos um significante, sem que ele possa trilhar para assim se fazer
representação para o sujeito através de outro significante, não estaríamos num eixo pouco
criativo? Pensando aí que estar num “entre” é se deixar conduzir sem antecipar ou adiantar
um momento de possível significação significante que se faz falar-corpo.
Retorna assim o trabalho do(a) coreógrafo(a) como aquele(a) que nos auxilia à
consciência do nosso próprio corpo, como se fosse o manejo de um ato interpretativo, de
amarra e cortes que se dão a cada (re)construção discursiva-gestual. Um atua sob o discurso, o
outro, sob o corpo. Os dois se oferecem como suporte do que lhes é transferido.
Evidentemente há uma linha divisória notável e imprescindível, pois, no calar do analista, a
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alienação do desejo do sujeito no Outro surge/urge. E aqui, no lugar do(a) líder, a


identificação aliena, mas também produz. Um propõe a separação, o outro a alienação,
contanto que o brincar venha à cena como baile-dialógico, ora vestida de alienação, ora retida
na separação. Um per-cursa o outro. O corpo que cala, mas grita em palavras no setting, é o
mesmo que movimenta e se cala em verbo. Analista e coreógrafo(a) se fazem suportes do
vazio, caminhos que se fazem no lançar-se ao processo, um mental e o outro corporal. Nos
nós que os amarram, tudo não passa de eclosões de suposições.
Na análise há uma condução do analisante ao inconsciente, já que é pelo ponto em
torno da falta que os significantes se estruturam. O caminho corporal também nos leva, pela
ação-reação do em-torno a habitar esses pontos de falta, em redor dos quais se projetam
significantes. Afinal, é no campo da linguagem da alienação-separação que as duas operações
de conjunção-disjunção do sujeito com o outro se faz borda. (KRUEL, 2007).
Aqui nos vem a tentativa de atar o fio deixado mais atrás sobre o For-Da. Será
que o artista seria capaz de fazer-refazer a construção dessa falta estrutural? Se pensarmos no
processo analítico e o corpo em movimento como rememoração, a intervenção do analista e a
marca do(a) coreógrafo(a) vão possibilitando uma inscrição primordial. Rastros, antes
ocupados por espaços vazios de representação psíquica, vão mobilizando cadeias associativas
de maneira que elas possam se constituir a partir das intervenções. Sim, na análise pelo corpo,
do corpo pela palavra emergem caminhos possíveis de amarras e deslocamentos significantes.
A intrincação pulsional se faz nas cenas, certas experiências vão contornando o borrão que
antes eram marcas sem desenho.
Numa aula, por exemplo, de rítmica e pulsação no flamenco, há que pausar ou
seguir os espaços de tempo impostos. Há que suspender o significante da cadeia ou deixá-lo
deslizar, por uma palma no tempo, um pé no contra, uma pausa, um retorno para o tempo
onde a nota se faça produção de música. São instantes nos quais o desfiladeiro significante
marca um som pelo corpo, pelo olhar ou pela voz, nesses espaços sempre permeados pela
linguagem que se faz corpo.
Julgamos bem interessante, sob esse aspecto, o olhar do Quinet (2002, p. 12, 42),
quando diz que “o vazio da janela é a falta do Outro”, buraco interiorizado vazio pelo objeto
sempre perdido. A estratégia do sujeito é fazer com que o objeto a, ou seja, causa do desejo,
volte para a janela vazia. E aí um clarão começa a circunscrever um certo lugar para a questão
que se impõe à cena. Pensar na estratégia como seu fim nos leva a crer que a cena pode ser
tomada como a tal janela vazia e que sua construção se faz em busca de algo para colocar
nesse lugar, para que o objeto causa, através da criação, possa voltar a e-xistir na janela que
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nunca lhe pertenceu de fato. Criamos para substituir a falta do Outro, que como fundante, não
voltará a lugar algum. A realidade, diferente do Real é construída de imaginário, determinada
pelo simbólico de um Real foracluído. “A realidade é um esgar do Real, formatado pelo
imaginário e determinado pelo simbólico” (ibid., p. 12, 42). E aí vamos construindo diferentes
molduras para essa janela que se impõe no vazio fundante do Real.
Ora, lembramos que “a determinação do sujeito pelo significante constitui a
alienação do sujeito ao Outro”, portanto a sua condição de objeto do desejo do Outro. A
fantasia vem para encobrir o furo num lugar, de saída, onde o furo não é aceito. Então,
pensamos aqui que a grande travessia, seja em análise ou em cena, é a possibilidade do sujeito
em discernir na fantasia seu status de objeto, este que nos coloca em apuros frente ao desejo
do Outro (ibid., p. 67). Contornar o objeto pulsional. No contorno de uma satisfação pulsional
fazer-se re-fazendo produções. Que o sintoma fique aquém dessas produções. A pulsão circula
esses objetos, situados do lado do Outro. Se estivermos do lado do Outro, esses objetos
ocupam o lugar da falta. O objeto a surgirá da satisfação pulsional. Esse objeto a é produzido
cada vez que se dá o remate da pulsão.
Velar o nada ou apropriar-se do nada como um lugar que nos funda? Eis a
questão. Na cena, a arte nos empurra para o nada, sem véus de a sem fantasias que nos
conduzam a um lugar de objeto do gozo do Outro. Des-velar nos impõe novas construções
subjetivas. Suportar a música quando as notas devem ser omitidas, mas retidas internamente,
esses tempos que nos permitem percursionar corpo, tempos musicais em suspensão, quase na
mesma órbita do “entre” dois significantes do setting analítico. Suportar esse lugar sem que a
angústia protagonize. É um deixar-se levar nas palavras que se fazem corpo ou no corpo cujos
significantes produzem gestos.
Há um lugar de fissura, que alguns chamam de concentração, outro plano da
consciência e tantas outras caracterizações. Logos que revisitamos quando perdemos o olhar
do Outro como nossa própria imagem. Lugar que se tenta governar e, na medida em que se
governa, o des-governo torna-se seu emblema. O corpo pode sim naufragar no silêncio das
pulsões sem se fazer causa possível para o ciframento simbólico, esse que nos ampara quando
o significante se descola da cadeia. Ora, como nos lembra Bassols (2012, p. 23), “um corpo
não fala por si mesmo, é preciso que esteja habitado, de alguma forma, pelo que escutamos
como o desejo do Outro”.
Discutimos, no capítulo anterior, que o gozo é o produto do encontro do corpo
com o significante. Gozo que mortifica o corpo num corte que recorta a carne. E, quando esse
corte entra como fissura e não encontro, o que pode ser revelado é um Real agitando a
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harmonia das normas do simbólico e do imaginário. Mas a castração, essa inserida no nosso
corpo-linguagem pela interdição paterna, é o que traz unidade corporal num furo que se faz
falta necessária à ciranda do desejo como denúncia do brincar. Sim, esse brincar fundado-
fundante do Fort-Da, aquele que é significante da presença na ausência. Se voltarmos o nosso
olhar ao registro pulsional, a fundamental estrutura de borda, dada à zona erógena, só poderá
ser assegurada pelo contorno que a pulsão realizará em torno do objeto a, este visto por
Quinet (2002) como marca de uma presença pelo furo que pode ser ocupado por qualquer
objeto. Mas se o circuito pulsional se fizer encurtado, refém da satisfação imediata dos
corpos, em que lugar ou não lugar se ancorará o trabalho artístico? Esse trabalho de contorno,
de satisfação pulsional? Depois de cumprido o trajeto para o remate pulsional de uma borda
completa que se faz costura do objeto a?
Aliado a essa discussão, Mozzi (2012, p. 69-70) lembra que “o ser fica tomado
nessa estreita linha evitando o impossível sem dar ao presente a espessura necessária para o
ato”. Poderíamos pensar num trabalho com o corpo numa direção de “descongelar o que ficou
coagulado no dizer”. Ao fim, vamos descobrindo, ainda longe da liberdade de se dizer sem
um Outro parasita, e, por isso, com um certo gosto de pessimismo, que todo corpo está
sozinho no encontro com o traumático. A palavra materna encosta no corpo, promovendo um
encontro-acontecimento de marcas investidas ou des-investidas libidinalmente. Tanto na
análise como na cena há que se desmontar e articular essa palavra de um modo inédito. Há
que se de-sencostar para que o corpo nos seja próprio. Próprio não no sentido de apropriação,
porque desse lugar grita a ilusão, mas de um lugar onde o encontro se torne mote percussor de
uma rede de fios de entregas.
A arte do baile não seria uma resposta inevitável do distanciar-se do corpo
materno em busca do seu próprio corpo? Arte como borda de um gozo sem limites, esse
fundado na satisfação total em ser objeto do gozo do desejo materno. A arte como
possibilidade de nos resgatar no corpo próprio. Como afirma Birman (1999, p. 101), “uma
circulação pulsional que cauteriza o abcesso incontido na carne”. E, na medida em que o
assombro entra no lugar da surpresa, delineia-se um caminho da burocratização do desejo
como modo de se evitar o imprevisto como rota. Na pressa do corpo no baile, especificamente
do baile flamenco, o acelerar do movimento impede esse corpo de se fazer superfície de
inscrição significante, essa que introduz um fora/dentro, indisponibilizando, assim, a ordem
espacial e temporal do sujeito em cena. Escutamos, lemos e vamos traçando a nossa própria
epopeia na medida em que a castração entra como corte/buraco necessário para nos dizer no
237

lugar do nunca dito. Afinal, a grande travessia, aquela que nos anuncia o final de uma análise
e de um gesto significante em cena não se dá pelo encontro com a castração?
Já sabemos que não há corpo sem que a função do corte se opere. Operação
responsável pela separação e, dessa operação, sobra um resto, o objeto a. Corte que é função
entre o corpo próprio e o corpo simbólico do Outro como resultado das operações entre
alienação e separação. Na alienação a identificação, e a separação como perda. É um encontro
no desencontro. O achar-se na perda. Da perda, bordejar. Borda como possibilitadora do
remate pulsional de que advém a sua satisfação. Pela borda aliar-se ao corpo no limite entre a
identificação e a perda. Um diálogo. Interminável conversa que temos que costurar quando a
vida retalha. A pele, como afirmou Anzieu (1989) é o véu que envolve a carne. Lugar que não
deve ficar exposto, visto que é por ela que a borda entre o dentro e fora se faz.

Enquanto o véu na sua mobilidade evidencia a vitalidade indizível do desejo, a


máscara exibe a mortificação quase cadavérica da apresentação sem segredo. Enfim,
a máscara é rígida, dura como um mineral e excessivamente personificada, nada
prometendo na sua exibição grotesca, enquanto o véu opera com a oposição entre
presença e ausência, estando aí a sua malícia e o seu efeito desejante. O véu é
descentrante para o sujeito que o porta e descentrador para o outro que o olha.
(BIRMAN, 1999, p. 61)

Entramos em cena com as ferramentas, com a história, com uma estrutura, e, em


algum momento, isso tudo vacila, faz questão e nos coloca ali no furo do olhar de ser olhado
pelo Outro. Na análise quanto mais o discurso se estrutura num falar vazio, mais o “entre” se
perde e em lugar dele entra a falação, que nada tem a dizer a não ser o tanto que tem a temer.
Nesse lugar de vacilo, do “entre”, como instalação do vazio, o corpo é decidido pela
tolerância de criar ou não. Em um poder ou não se aventurar. E é quando à deriva o
inesperado se deixa contar, o artista toca, penetra em uma estória que nos aponta para o nosso
próprio buraco, sem véus que protejam a carne de roçar o nada. Porque, afinal, é disso que se
trata.
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CONCLUSÃO
PARA CONCLUIR: DE ALGUM LUGAR, SEMPRE INCONCLUSO

Essa tese foi tecida na luta entre a escrita e o corpo, numa insistente escritura em
cena. Sem que a pesquisadora tivesse percebido, no sentido de ter traçado um caminho linear,
vestígios de voltas pulsionais foram se fazendo remates no percurso. Quando o imaginário do
corpo se fazia mais atuação do que escrita, uma tentativa de domínio do Real, do outro lado, a
elaboração de situações, que a psicanálise chama de traumáticas, esforçava-se em re-fazer
acontecimentos munidos pelo simbólico. O apoio no diário de bordo foi uma maneira de não
se perder pela cena e, na cena, de não perder as palavras. A repetição se fez recorrente como
uma maneira de registrar as sensações que o corpo, ao esvaziar-se na cena, fosse capaz de re-
construir no traçado da escrita. “Os escritores sabem disso, alguns bailarinos e atores também.
E não importa o quanto entendamos os caminhos da emoção, o quanto cartografemos o corpo,
não importa o quanto tentemos escanear a vida para impedi-la de agir em nós. É inútil”.
(LIMA, 2012, p. 255)
Assim que demos início ao trabalho, já mencionamos algumas vezes, tínhamos
em mente a leitura do método de Lobo, sistematizado por Navas (2003, 2008), discutido no
capítulo 1, que seria redefinido para o ensino da dança, no caso flamenca, à luz dos três
registros conceituados por Lacan como Imaginário, Simbólico e Real. Esse método, sob a
ótica da psicanálise, poderia nos levar a uma possível solução para a pergunta, deixada ao
final do mestrado no ano de 2010, ou seja, porque alguns(as) aprendizes eram capazes de
incorporar o gesto criador e, outro(as) não, ainda que tivessem passado pelas mesmas
técnicas?
Sem que a pesquisadora tivesse experienciado o método nem tampouco o(a)s
bailaores(as) que lhe pareciam geniais, algum tempo de reflexão e ensaio com as hipóteses
que surgiam levou à constatação de que se estaria fazendo, na realidade, apenas um trabalho
de colagem, ou seja, encontrar na tríade do método de Lobo a equivalência dos três registros
conceituados por Lacan. Por isso, incursionamos para outras rotas, mas sempre com o mesmo
núcleo inquiridor, quer dizer, de onde provém a genialidade de alguns artistas e intérpretes, no
nosso caso, do (a)s bailaores(as) flamenco(a)s?A leitura do famoso texto de Lorca sobre o
duende nos conduziu à hipótese de que o duende deveria ser o caminho a ser tomado para se
compreender o talento arrebatador que alguns(as) bailaores(as) presentificam na cena. Sem
negar que o saber psicanalítico, pelo qual já havia sido fisgada desde a Iniciação Científica,
239

estivesse sempre de tocaia, vários roteiros de trajeto foram tentados para terminarem todos
eles, de alguma maneira, em pontos mortos. “De alguma maneira” porque, certamente, a
pesquisa foi se fortalecendo na medida em que os caminhos iam sendo percorridos e
descartados, até o momento em que esse fortalecimento acabou por desaguar na aposta mais
segura na psicanálise como fundamento conceitual e método para a jornada de
desvendamento do enigma do duende.
A questão do duende e do mistério da genialidade por ele preconizado, a serem
vistos por um olhar psicanalítico, sedimentaram-se com a leitura do livro sobre o trabalho de
Pina Bausch, de Fernandes (2007), no qual a visão da dança pela psicanálise se realiza de
maneira inspiradora. Os famosos três registros de Lacan operacionalizados nos corpos do(a)s
bailarino(a)s de Bauch convidavam ao exercício conceitual de transposição para o universo
flamenco. Mas falar de um corpo flamenco de um lugar externo, a nosso ver, produziria um
entendimento manco, ou seja, manco da vivência, especialmente porque a pesquisadora, neste
caso, ocupa simultaneamente a posição daquela que pesquisa e escreve e aquela que, desde
alguns anos, exerce os papeis tanto de professora de flamenco quanto de bailaora. Era
necessário, portanto, tirar as consequências desse cruzamento. Era necessário inserir, no
território investigativo, a experiência vivida do próprio corpo da bailaora em cena. Daí para
frente, duende e inconsciente passaram a ocupar essa mesma cena.
Aí teve início a grande jornada. Grande não somente por se tratar de uma pesquisa
de doutorado, mas grande no sentido de que o corpo vivido na cena e inscrito no verbo, para
se aproximar do duende, teve, já de cara, que se haver com o estranho. O corpo ia para a cena
numa voracidade tamanha que a escrita precisava ser a sua tradutora, de um lugar não mais
antagonista, mas entrelaçado. Um entrelaçamento por vezes idílico, por vezes agônico.
A experiência do Unheimlich, discutida no capítulo 3, como vivência da dupla
belo-assombroso, naquilo que o corpo conta do que não consegue reconhecer de si mesmo, o
que se tem aí? Um voo onírico? Um estado alterado da mente que se faz na cena e nos
sonhos? Que lugar é esse? Sonho e duende se irmanam? E quanto mais se tentava
conceitualizar o duende, mais a demanda da teoria psicanalítica se fazia necessária. O que era
de fato o duende? Uma intuição, uma inspiração, um insight? Saindo da magia e do
costumeiro lugar mítico, fomos compreendendo que o duende encontrava sua morada na
primazia do Real psicanalítico, fazendo correspondência como objeto a formulado por Lacan
e enunciado, logo de saída, por Oscar Cesarotto.
Duende e objeto a, no coração do Real. Aparentemente uma estranha aliança, a
princípio entrevista nas entrelinhas do sonho. Mas que Real é esse? A inquietação levada ao
240

corpo e à escrita não encontrava descanso. Como aquietá-la em metonímias de passos e


palavras na teimosa fuga à significação do Real? O duende exigia posicionamento, tanto
empírico como teórico.

Os significantes que carimbam o sujeito e o submetem ao que é dito pelo Outro


mostram a operação de alienação, pois o sujeito fala de si pelos significantes do
Outro. Dessa maneira, identificações são construídas, e, por mais que o sujeito tente
delas se desgrudar, algo permanece mostrando a sua constituição faltosa. Através
dessa falta, o desejo é procurado de várias maneiras ao longo da vida, pois não há
“o” objeto de desejo capaz de satisfazer o sujeito, mas objetos substitutivos que vão
lhe dar satisfações parciais. É assim que, numa cadeia significante infinita, o objeto
faltoso desloca-se, metonimicamente. (SIMÕES, 2013, p. 81)

Até aqui tínhamos métodos abandonados e leituras em latência. No concreto,


enquanto representação, o duende, os sonhos e o corpo bailaor se intrincavam. Os conceitos
acerca dos sonhos, lugar de passagem ao vislumbre do inconsciente, como sempre bem
amarrados a tantos outros conceitos nas construções de Freud, tropeçavam nas barreiras que
iam se impondo à pesquisadora em aula, ensaio e cena.

A descoberta do inconsciente impõe essa fórmula negativa na medida em que as


formações do inconsciente – lapso, esquecimento, ato falho, sonho – não comportam
um sujeito capaz de acompanhar suas representações e se assegurar da continuidade
de seu ser. Trata-se de uma escolha forçada (pelo não penso) (BRUDER e
BRAUER, 2007, p. 516)

O corpo brecava, buscava escape. Corpo que se des-dizia, numa entrada marcada
pelo imperativo da negação. Corpo que precisava falar no conluio com sua tradutora, a escrita.
Como afirma Becker (2006, p. 138), “se há corpo falante ou escrevente é porque nele há
buracos através dos quais a relação com o outro acontece (...)”. Uma outra cena se a-cenava,
como que dando provas, de alguma maneira, da nossa inabilidade perceptiva para lidar com o
externo, numa tentativa marcada pela repressão em retirar da ideia afetos perturbadores à
consciência. Foi por aí que o corpo começava a se fazer marca. Num pedido de negação pela
repressão. E porque essa cena se montava dessa forma? A repressão marcava o lugar da
impossibilidade de um fazer-se em cena, e a cena aqui tomada em todas as suas vertentes,
desde a sala de aula, ensaios solitários e/ou em grupo, aula particular, tablao e espetáculos. O
deslocamento -- como redirecionamento de um impulso atravessado pelo movimento para um
alvo substituto -- paralisava.
Paralisar para dizer que, no percurso da vida, há turbulências. O ego se constrói a
partir de uma história preexistente, afinal, somos falados antes mesmo de falarmos por uma
história identificatória, como visto no capítulo 4. Nessa história, o olhar tem função
241

estruturante, proporcionando constância e coesão egoica. Por isso, Nathanael temia a perdada
visão, que apontava para uma deficiência que se estendia à incapacidade de ter insight, na
medida em que não podia contar com a constância materna, aquela frente a qual se pode
elaborar um caminho próprio de construção subjetiva.

A criança tem necessidade do outro como continente para seus conteúdos de que não
consegue dar conta inicialmente. Se pode projetá-los em alguém capaz de
discriminação, que não se deixará contaminar por seu pânico, mas ao invés, poderá
auxiliá-la a nomeá-los de forma que possa recebê-los de volta mais desintoxicados,
vai aos poucos procedendo à elaboração de seus próprios processos.
Transformadas pela mãe nessa relação, os dados (sensoriais) se convertem em
material para pensamento onírico, o que estabelecerá a capacidade para acordar e
dormir, estar consciente ou inconsciente.
Se por outro lado, a mãe não aceita ou não aguenta as projeções, estas são sentidas
pela criança como desprovidas de sentido, e ela as reintrojetará então como um
pavor inominável. E sua reação será no sentido de usar cada vez mais identificação
projetiva, com maior força e freqüência. Ela própria se identifica projetivamente
com a mãe rejeitadora e não-compreensiva, ficando igualmente privada da
capacidade de compreensão. (SIMÕES, 2013, p. 19)

A teoria psicanalítica caminhava para um estudo mais aprofundado da temática


corpo. Do corpo para o espelho do olhar do Outro. Olhar que Nathanael perdeu e só encontrou
em suas alucinações. Quando o seu mundo subjetivo se desestruturou, buscou a reconstrução
no trabalho de seus delírios. Portanto, desprovido do espelho como metáfora de uma
“operação na qual um ser humano [constitui] sua identidade através de uma identificação com
seu semelhante”. (BECKER, 2010, p. 37). Assim, “quando há impossibilidade da instauração
apropriada do estádio do espelho numa criança, não acontece o que Lacan denominou de
“assunção jubilatória” diante da imagem projetada. “Também não poderá acontecer o
momento da demanda de reconhecimento por parte da criança” (ibid., p. 45). Desse lugar do
espelho do olhar e da voz do Outro, a falta começava a se operar e, junto com a sua
descoberta, o distanciamento da sublimação como via de mão única de acesso à criação. Falta
que se impõe pelo atravessamento da linguagem.

Segundo a formulação de Lacan (1960/1998), a alienação é própria do


sujeito; ele nasce por ação da linguagem. O lugar de Outro, que a mãe ocupa
neste momento, oferece significantes, através da fala; o sujeito se submete a
um dentre os vários significantes que lhe são oferecidos pela mãe. O seu ser
não pode ser totalmente coberto pelo sentido dado pelo Outro: há sempre
uma perda. Joga-se aí uma espécie de luta de vida e morte entre o ser e o
sentido: se o sujeito escolhe o ser, perde o sentido, e se escolhe o sentido,
perde o ser, e se produz a afânise, o desaparecimento do sujeito.
Em termos da constituição do sujeito, a alienação consiste no fato dessa
escolha forçada. O sentido emerge no campo do Outro. Por isto, ocorre o
desaparecimento do ser, que é eclipsado numa grande parte de seu campo
devido à própria função do significante. (BRUDER E BRAUER, 2007, p.
515)
242

Ora, a questão que se fazia necessária era a de cavar ainda mais esse lugar mítico,
de onde e para onde esse corpo estava sendo lançado? Que falta era essa que se fazia presença
em vários momentos da cena, da análise e da escrita? Fundante e ao mesmo tempo
assustadora? Como o lugar da falta que funda pode, ao mesmo tempo, ser um lugar de recusa
e sofrimento? Para não pensarmos nisso, a teoria se estabilizava na justa medida em que o
corpo ia para a cena para que essa falta tida nas leituras se diluísse. Foi um movimento de
colocar à prova o corpo nesse lugar. Como uma tentativa de aliviar a tensão entre o corpo e a
palavra num duelo de costura significante. Do setting analítico para os ensaios, dos ensaios
para o setting. Que circulação se operava por ali?
Inocência da pesquisadora quando julgou que esse corpo lançado iria lhe dar
algum retorno do lugar da compreensão. Na medida em que o corpo, cansado de se aventurar
em um constante não-lugar, cujo furo ia apontando para a estranha casa do enigmático
duende, as coisas iam perdendo seus eixos. Lugares nunca antes avistados, assim tão de perto,
arranhando o corpo. De que lugar se poderia descrever o abismo existente entre o corpo, o
duende e a escrita? Lugares de aparição, reserva e esquecimento. Por que dizer não à
sublimação? Por que, quando se fala de arte, em especial da dança, o refúgio é sempre aquele
da sublimação? Seria esse o único caminho possível? Não no nosso caso, pois significaria
perder, em um palavreado retórico e egoico, a radicalidade do flamenco, tal como sentido e
concebido desde Lorca. Dessa recusa, entre muitas leituras e investigações, o corpo foi
pedindo cena.
Mais ou menos na época do aprofundamento da questão-duende na voz da
psicanálise -- aliás, vale enfatizar, muitas vozes que fomos buscar naqueles que
admiravelmente percorreram e ainda percorrem esse caminho psicanalítico, prenhe de vozes
ressonantes -- bordejando essas veredas, a experiência do diário de bordo foi se
intensificando. O corpo da pesquisadora expandia-se para um lugar também de pesquisa. Há
exatamente um ano, época da qualificação, Rodrigues (2015) em sua fala marcou uma trilha
possível para a investigação. Uma fala que não fez efeito imediato, mas que, após um curto
espaço de tempo, veio como um míssil. Ela pontuou que havia cortes no ainda tímido esboço
do diário de bordo, e me perguntou: “O que te aproxima e o que te distancia do duende?”.
Essa voz emanou, trazendo a vivência para o concreto, se é que podemos falar em concretude
quando estamos tateando o irrepresentável. O corpo na prática e na investigação teórica foi se
delineando numa composição de desnudamento.
243

O tempo é derrotado, a arte permanece, supera inclusive a mortalidade de seu


criador. Em sua elaboração um novo real é constituído. (Assim como também o
après-coup nos estrutura). O belo se oferece como tela de constância contra a qual se
processam as transformações, acentuando os efeitos antitéticos de prazer e
desprazer.
A arte promove corte transversal no corpo do funcionamento individual e social,
revelando-o e significando-o, apreendendo-o em sua realidade mais bela e pungente.
Amoral, desvinculada de regras, espada irracional a seccionar âmagos inesperados,
fertilizando-os de criação e parindo momentos infinitos de sínteses de dimensões em
que se vislumbra o Universo em suas formas mais verdadeiras. (SIMÕES, 2013, p.
23)

Quanto mais o corpo se lançava à cena, no imperativo das dificuldades de se re-


fazer corpo, de se re-contar estória, mais a sublimação, na conceituação freudiana, vinha
como interdição de um caminho. Ora, como visto no capítulo 5, a sublimação em Freud
embora tenha sofrido modificações no decorrer dos anos, caracteriza-se pelo desvio das
pulsões de seus alvos sexuais em busca de satisfação. Pulsão plástica que pode levar a várias
rotas de satisfação. Mais do que uma rota, tratava-se de percorrer circuitos em que o olhar e a
voz se faziam instâncias. Foi no olhar e na voz que Lasnik, nesse capítulo, veio marcar os três
tempos pulsionais, na descritiva do Estádio do Espelho. Segundo Becker (2010, p. 56, 57),
“não há como compreender o circuito pulsional se não se considera que a linguagem da
pulsão está relacionada com a perda, e que há um trauma escópico de origem, quando se
realiza a ausência do outro”. A voz e o olhar estão assim “conjugados na sustentação da
imagem narcísica”.
Nesse ponto, entretanto, começamos a tropeçar na pulsão de morte que no duende
encontra ressonância. Fazer o que imagino ou suponho o que o Outro quer de mim,
característico da posição de objeto, empurra o sujeito para o lugar onde a compulsão de um
agir sem pensar toma a frente. Se, de saída, sabemos que o nosso desejo em sua origem é
desejo do desejo do Outro, e se o inconsciente é o discurso do Outro, o desejo é o único capaz
de barrar essa compulsão, aqui destrutiva, cuja obediência, sempre hipotética, nos amarra no
Outro. Desapegar-se das fantasias, para podermos atravessar os pontos de falta no Outro, nos
abre as portas para nos perguntarmos sobre o que queremos.
Evidentemente, como bem apontou Roza no capítulo 5, há repetições que
produzem hiâncias funcionais à possibilidade de criação em cena e em análise. A que Outro
nos dirigimos nas cenas? E aí sim, a experiência da falta advém como uma estilingada,
quando o Outro não mais concede resposta satisfatória ao sujeito, abrindo-se a necessária
fratura no campo do outro. E não é nesse lugar fraturado do Outro em que o desejo faz rota?
Uma abertura possível para um trilhar capaz de marcar um estilo, aquele que conclama a
criação de um saber próprio, não nos deixaria reféns do significado do outro? Talvez
244

pudéssemos também pensar o lugar do estilo como suporte da angústia frente à


impossibilidade de tudo dizer.
Não se trataria de retomar o Fort-Da freudiano visto no capítulo 4? Pelo jogo do
carretel do ir e vir, a possibilidade de um trânsito entre a presença e ausência materna,
desembocando na origem da simbolização. Perceber que o objeto nem sempre estará presente,
e, mesmo assim, conseguir, de certa forma, dar uma continuidade à sua existência,
representando-o mentalmente, e, assim, atenuar a angústia de não o ter concretamente no seu
todo inteiro. Não é desse brincar que se trata na cena, no setting? Como processo de um
tempo de construção e reconstrução corporal interminável? Só não colocamos a escrita nesse
lugar, porque ainda que possa parecer interminável, a escrita nos impõe o terminável. Aqui,
esbarramos na finitude e, na possibilidade de que não é possível abarcar tudo. Com isso, resta
criar o próprio estilo nos rastros em construção. Isso encontra eco nas belas palavras abaixo:

Nas ranhuras, nas centenas de ranhuras, feitas primeiramente sobre as folhas, não se
escreve nada. Nenhuma libido deixa qualquer traço aí. Quando o sujeito toma na
mão uma caneta e massacra a folha até fazer buracos, o fort da não funciona. O
sujeito não tem, pois, a possibilidade de escrever em algum lugar, que sua mãe
partiu. Não há acomodação dos restos da partida da mãe. Com o fort da e o carretel,
quando a mãe se vai, a criança se recupera. No jogo, ela simboliza a ausência e a
presença e encontra-se munida de um carretel a mais. Em seguida, o carretel
transformar-se-á num urso de pelúcia. O que é um urso de pelúcia? É um carretel ao
qual a criança recorre quando ela deve enfrentar uma separação. “É uma reserva de
libido”, diz Lacan. Com esta pequena reserva, fora do corpo, o Outro pode partir.
Ainda que o Outro a deixe desolada por sua partida, resta-lhe isso com essa reserva
de libido, ela pode mobilizar a angústia em que foi deixada pela partida da Coisa, a
mãe real enquanto que ela é o lugar que humaniza a criança. Ela é o centro do
mundo da criança e quando ela se vai, deixa-a numa ausência, onde não há mais
significantes, onde não há mais traços. Ela parte com todos os significantes da
criança. Se isso se passa de uma maneira ruim, a criança pode não ter mais um
significante para si mesma – todos partiram. Para poder falar, para poder escrever
sem se esvaziar, é necessário, pois, que restem alguns, em reserva, no carretel, no
urso de pelúcia. Com isso, a criança tem uma chance se suportar a angústia do nada
de traço da presença da ausência. (LAURENT, apud GUIMARÃES, 2007, p. 4)

Quantas reservas de significante existem na arte? Ora, como afirma Becker (2006,
p. 139), “a ficção oferecida pela arte não remeteria a um Real que pode estar descrito na
forma de relato, da mesma forma que através de uma coreografia composta das imagens
corporais?”.

Encontrar o estilo é tarefa sempre inacabada; implica a necessidade de reunir todos


os outros, de se ver diante do Outro, decodificar todas as falas recebidas. Sem que
percebamos, essas mensagens difusas desses vários outros vão nos constituindo em
um rebotalho chamado Sujeito. Cabe assim àquele que deseja ingressar na arte do
bem dizer a depuração de um estilo, uma via de se fazer ouvir na impossibilidade de
dizer. (FERREIRA, DA SILVA E CARRIJO, 2014, p. 74)
245

O vai e vem do caminho pulsional-- e, por isso, a parada --, partiu da suposição
freudiana de que a pulsão busca uma satisfação que já fora obtida um dia, naquela nossa pré-
história, nos conduzindo a um passo a mais rumo à coisa analítica de Freud, o das Ding em
Lacan e a Coisa em si kantiana. Coisa que, na realidade é, em si, vazia, não obstante seja em
torno dela que pulsa toda a atividade do sujeito. Toda a formulação freudiana do Projeto
encontrou sua relevância no que tange ao nascimento da Coisa no neurônio a, aquele que se
apresenta constante e cuja identidade, perdida, será substituída por um equivalente, e nunca
igual, isso visto já de um ponto de vista neuronal. Uma hipótese que hoje, com o
desenvolvimento da neurociência, soa como metáfora. Mesmo assim uma boa metáfora
quando encontra seu encaixe entre os fios de uma teia.
Lacan dirá que a sublimação mostra o trajeto da pulsão em direção a um objeto
inalcansável. A satisfação não se dispõe a apanhar o objeto, mas sim, circulá-lo, não
importando qual objeto. Valeria, portanto, retomarmos a inquietante estranheza, como lembra
Guimarães (1993, p. 45, 47), para irmos nos deparar com o encontro desconfortante dentro da
nossa própria casa. Encontro relacionado a essa coisa que remete ao vazio, apreensível apenas
se caminhamos pelas teias do pensamento teórico. Assim, a sublimação, agora numa
revisitação distinta da convencionalmente aceita, não é algo que possa ser confundida com
uma mera domesticação pulsional. “Em seus paradoxos, aponta para um objeto que é nada e
também para das Ding, a Coisa inacessível, velada e misteriosa, fascinante e pavorosa com
todo caráter sinistro que isso provoca”.

Na sublimação ocorre um reencontrar, “reencontrar no máximo com a


saudade”, diz Lacan. É importante contornar o buraco que sempre habita nas
cercanias da obra de arte, fazendo esse contorno acontecer de novo,
recomeçar outra vez, embora isso não tenha de fato nunca ocorrido uma
primeira vez. Busca-se aquilo que nunca teve começo. (ibid., p. 47)

Assim, pela insistente repetição de contornos, a escritura-corpo se fez texto, a


mais íntima relação com o leitor se fez fiel, uma vez que o apego nas bordas, que nos contam
fantasias, veio à tona, sem muitos acessórios que protegessem a pele, essa que envolve o Real,
como num setting analítico. Nessas linhas imaginárias, a consistência se fez texto num Real
sempre disforme. Embora o desejo seja da ordem do impossível, nos restos dessas linhas,
inscreveu-se o possível.
247

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