Braga CristinaSantaella D
Braga CristinaSantaella D
Braga CristinaSantaella D
INSTITUTO DE ARTES
CAMPINAS
2016
CRISTINA SANTAELLA BRAGA DA HORA
CAMPINAS
2016
Ao sentido do amor
Aos amigos, sempre presentes, em especial a Gisela Dória, Monita Ruedas, Maira Rocha,
Nelson Carroso, Oscar Cesarotto, Leda Tenório da Motta e Cláudio Cesar Montoto pela
presença, antes de tudo, em momentos de muita angústia.
Ao Matteo Bonfitto, Angela Becker, Graziela Rodrigues e Cassiano Quilici pelas preciosas
interlocuções.
A Cássia Navas que há nove anos, aceitou me acompanhar nessa empreitada que eu não sabia
onde iria dar. Ela sabia, mas não me contou, permitindo que eu descobrisse os caminhos com
o seu suporte. Obrigada por me apoiar nesse casamento teórico e artístico. Minha sempre
gratidão por ti!
A Isabel Marazina que no manejo entre a lei e o amor vem propiciando encontros de
escrituras que me faz corpo.
À Oficina Flamenkera e, em especial, ao diretor musical, Gabriel Soto. Cada pedacinho dessa
tese pertence a cada um(a). Um(a) a Um(a). Fui apenas a porta voz.
À diretora artística Cylla Alonso que, num atrevido cálculo cauteloso, esse medido pelos
grandes artistas, soube, com maestria, a me conduzir a um lugar possível de contorno de um
vazio cheio de notas.
RESUMO
Do mestrado (2010), trouxemos para o doutorado uma questão a ser resolvida, a saber, a
questão da genialidade dos artistas, especificamente dos dançarinos. O que se passa quando
essa genialidade é incorporada em cena, neste caso, performática? Quando se trata do
flamenco, essa questão se fortalece nas leituras sobre o mistério do duende, no sentido
teorizado, poetizado e refletido pelo poeta-escritor Frederico Garcia Lorca. Pensar na
intersecção entre a dança e a psicanálise vem de longe, desde a Iniciação Científica que
versou sobre Carmen, de Mérimée (2003). As inquietações que aí nasceram passaram para
uma nova etapa, agora focalizada na questão do duende. As tentativas de compreender o
duende com apoio nas técnicas teatrais ou nos métodos de dança, tanto em um quanto em
outro caso, em vez de dar suporte, foram desviando o trabalho de seu verdadeiro foco. Nessa
medida, quanto mais os caminhos ensaiados se revelavam, se não inadequados, pelo menos
incompletos e tergiversantes, mais forte se tornava a aposta na psicanálise. Afinal, o problema
da criação artística e literária nunca foi estranho a Freud e Lacan. Portanto, seguir essa
fundamentação teórica e a metodologia que dela decorre foi se revelando promissor na
medida em que o duende não vem de fora, como nos lembra Lorca: “o duende não está na
garganta; o duende sobe por dentro a partir da planta dos pés”. Uma vez que isso nos leva,
irremediavelmente a algo da ordem do impalpável, mas, ao mesmo tempo e paradoxalmente,
instaurador de realidades em cena, a pesquisa foi se sistematizando teórica e
metodologicamente na direção daquilo que Lacan caracterizou como Real. Isso nos permitiu
chegar a articulações complexas, mas reveladoras sobre as relações entre dança e psicanálise,
em especial nos permitiu penetrar nos enigmas do duende em ato.
From the Master thesis (2010), we brought an issue to be resolved, namely the question of the
artists’ geniality, especifically the dancers’ geniality. What happens when that admirable
talent is built on the scene, in this case, in performance? When it comes to flamenco, this
issue strengthens in face of the duende’s mystery in the sense theorized, poeticized and
reflected by the poet-writer Frederico Garcia Lorca. Thinking about the intersection between
dance and psychoanalysis comes from afar, since our first research (2003) on Carmen, by
Mérimée. The concerns that there were born passed to a new stage, now focused on the issue
of the duende. Attempts to understand this issue with support on theatrical techniques or
methods in dance, both in one and in another case, rather than giving support, worked away
from the real focus. Hence, the more the tested paths were revealed, if not inadequate, at least
incomplete and deviating, the stronger became the bet on psychoanalysis. After all, the
problem of artistic and literary creation has never been a stranger to Freud and Lacan. So to
follow this theoretical framework and methodology gradually proved to be promising since as
noted by Lorca, "the duende is not in the throat; it rises from inside, from the soles of the
feet”.This leads us inevitably to something of the order of the impalpable, but at the same
time and paradoxically, to the embodiment of realities in the scene. Therefore, the research
was necessarily directed toward the theoretical and methodological systematization of what
Lacan characterized as the Real. This allowed us to come to the complex but revealing joints
about the relationship between dance and psychoanalysis in particular it has allowed us to
penetrate the puzzles of the duende in act.
INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 13
CAPÍTULO 1
BUSCAS, CAMINHOS E PERCALÇOS .................................................................. 18
1.1 O ponto de partida .................................................................................................. 20
1.2 Uma passagem: performance, ritual e mito ......................................................... 26
1.3 Ponderações e perspectivas: outra entrada .......................................................... 31
1.4 A teoria do fluxo ..................................................................................................... 33
1.5 O encontro no fio da navalha: há que se escavar esse Real ................................ 38
CAPÍTULO 2
O FLAMENCO DO PASSADO AO PRESENTE ..................................................... 49
2.1 As origens ................................................................................................................ 49
2.2 O baile e o cante do século XIX ............................................................................. 52
2.3 Os cantes flamencos ................................................................................................ 55
2.4 Os grandes nomes do baile Flamenco ................................................................... 61
2.5 Por uma história viva do flamenco ...................................................................... 65
2.6 Entrevista com Cylla Alonso: explicitando seu método ...................................... 71
CAPÍTULO 3
EL DUENDE: O FIO CONDUTOR ........................................................................... 87
3.1 O duende se faz como presença ............................................................................. 93
3.2 Antes de se fazer metáfora-duende: o inconsciente ............................................. 98
3.3 Uma estranheza que se faz duende ....................................................................... 102
3.4 Pelo duende, os traços do inconsciente: sinal do não-tempo .............................. 109
CAPITULO 4
RUMO AO REAL ........................................................................................................ 124
4.1 Inconsciente e linguagem: do sonho à inversão do signo linguístico .................. 125
4.2 O jogo da repetição no Fort-Da ............................................................................. 134
4.3 A questão do corpo ................................................................................................. 135
4.4 A imagem se faz espelho ......................................................................................... 142
4.5 O desejo e a falta ..................................................................................................... 146
CAPÍTULO 5
FRENTE A FRENTE COM O REAL ........................................................................ 158
5.1 Pulsão vs instinto: a distinção se fez verbo ........................................................... 158
5.2 Três tempos pulsionais: descrição pulsional do Estádio do Espelho ................. 165
5.3 Caminhos e tropeços da pulsão de morte ............................................................. 168
5.4 Da pulsão ao desejo, deste à demanda: o que o Outro deseja? .......................... 171
5.5 Sublimação: uma possibilidade ............................................................................. 175
5.6 Entre a Coisa (das Ding) e a fantasia .................................................................... 179
5.7 Ritornellos: repetir é preciso ................................................................................. 183
5.8 Sintoma: mal que nos fala num gozo bem-dito .................................................... 187
5.9 O ritornello da fantasia .......................................................................................... 197
CAPÍTULO 6
O CORPO FLAMENCO NA VOZ E OLHAR DA PSICANÁLISE ....................... 208
6.1 Por que dizer não à sublimação ............................................................................ 209
6.2 Duende e objeto a: diálogo possível ou impossível? ............................................ 213
6.3 Voz e música na cena flamenca ............................................................................. 216
6.4 O rasgo do real ........................................................................................................ 218
6.5 Do gozo e seu apagamento ..................................................................................... 222
6.6 O encontro do corpo en-cena com o das Ding ...................................................... 225
6.7 Atando os fios em nós ............................................................................................. 228
CONCLUSÃO
PARA CONCLUIR: DE ALGUM LUGAR, SEMPRE INCONCLUSO................. 238
INTRODUÇÃO
percurso, veio a certeza de que não se estava mais falando de outros corpos, mas do próprio
corpo, cujas descobertas, em algum momento, depois de percorrida a jornada, poderiam ser
extensivas a outros corpos. Enquanto isso se dava e o doutorado despontava, o corpo-próprio
ia se tornando um corpo-estranho, na literalidade da palavra, na medida em que realizava um
trabalhado de (des)-construção, acabamento e (re)-conhecimento
Nos dois primeiros anos de doutorado, época em que a questão latente deixada no
mestrado ainda se fiava em âncoras teóricas, ensaios com teorias e métodos das artes não
trouxeram muito êxito. Esses percalços estão, de passo em passo, detalhados no capítulo 1.
Ao fim e ao cabo, eram trânsitos teóricos alheios àquilo que neles fazia falta, o corpo em si
que baila, ao mesmo tempo em que o saber psicanalítico, já despontado desde a iniciação
científica, que versou sobre a peça Carmen, de Prosper Merimée, ia ganhando força, embora
ainda na sua face de psicanálise aplicada e não implicada no corpo-devir-linguagem.
O que não mudou desde o começo, antes mesmo do mestrado, já na iniciação
científica, foi o objeto de escolha: o baile flamenco. O tema é certamente amplo e em cada
passo, da iniciação ao mestrado e deste para o doutorado, o recorte investigativo dentro dele
foi diferenciado. No fundo, desde o início, a questão que sempre palpitou, sem coragem de vir
à tona, não era outra senão: como explicar o talento prodigioso e arrebatador de algum(a)s
bailaore(a)s em cena? A leitura do magnífico texto de Lorca sobre o duende, várias vezes
citado e discutido nesta tese, funcionou como um estopim. É justamente da questão de que
brotou esta tese que o texto trata (ver especialmente o capítulo 3). Depois de muitos ensaios e
erros, finalmente o problema da tese ganhou contorno: o que vem a ser o duende, como
explicá-lo na vivência do corpo que se coloca em ato? Estaria nisso o segredo do talento
flamenco?
Entretanto, seguir à frente a partir desse umbral prometia ter que se defrontar com
muita pedra no meio do caminho, ou seja, o trabalho de resistência entre a escrita e o corpo.
Apesar disso, uma vez prometido e iniciado, não há via de retorno. Assim, a escrita foi se
tentando corpo num corpo que se fazia gesto na colheita significante. Em quatro anos de
investigação, os dois primeiros podem ser tomados como anos de embates, rebatimentos e
remates pulsionais até que se deu o encontro com o processo do corpo-escritura à luz da
psicanálise.
Passemos às principais pedras do caminho. Por mais que se tentasse colar alguns
dos conceitos psicanalíticos ao corpo em movimento, uma recusa ao ato se fazia presente.
Algo do corpo, quando dado ali em presença, ia se fazendo estória, desde um lugar de fortes
resistências a uma soltura de linhas e formas como possibilidade de se dizer. Dizer o quê?
15
Porque se dizer? O que nesse corpo contorna algo do incontornável? É por essas e(s)ntranhas
que a pesquisa entre furos foi se fazendo costura.
Outra pedra, ou sequência de pedregulhos: a analogia do duende em ato com o
sentimento-comoção de uma morte iminente encaminhava o saber psicanalítico, que buscava
desvendá-lo, para a direção do real do corpo. Portanto, para um afastamento dos
convencionais discursos acerca da anatomia e fisiologia do corpo que se põe em cena com
seus instintos naturais, sua inspiração e suas técnicas absorvidas. Mais do que isso, mesmo em
sua entrada pelo real do corpo, o duende e a vivência corporal dele repudiavam a saída,
também mais convencionalmente aceita, da explicação da criação artística pela sublimação.
Não havia jeito: o furo do real funcionava feito um buraco negro, aspirando a reflexão para
dentro dele. Felizmente, esse buraco não calou a voz da escrita, nem desviou o corpo en-cena
de sua aventura. Assim, o trabalho foi se fazendo em seis capítulos aqui brevemente acenados
ao leitor.
No primeiro capítulo, as buscas, caminhos e percalços, a partir de autores da
dança, do teatro e da psicologia, que marcaram os dois primeiros anos da pesquisa, serão
rememorados. Embora pouco a pouco descartados, eles trouxeram grande aprendizado,
enquanto o problema da pesquisa ia se ajustando ao seu recorte e a escolha pela psicanálise
como fundamentação teórica e metodológica ia se fortalecendo.
O segundo capítulo tem por função trazer ao leitor um pouco de intimidade com o
universo flamenco, num resgate breve de seu desenrolar no tempo até o momento presente,
que é complementado por uma pesquisa do tempo vivo, nas palavras de bailaore(a)s que
falam sobre suas experiências no roçar do duende. Por fim, é apresentada uma entrevista com
a maestra Cylla Alonso, fundamental para que se conheça seu método de trabalho como
bailaora, coreógrafa e diretora, sob cujas interferências, no grupo Oficina Flamenkera, a
experiência viva do corpo em cena desta pesquisadora foi se dando.
No terceiro capítulo será apresentado o recorte específico que o tema do flamenco
recebeu neste trabalho, ou seja, a questão do duende, vista, antes de tudo, na radicalidade
poética da voz de Lorca e de seus comentadores, uma radicalidade que acabou por determinar
as escolhas conceituais da tese. Essas escolhas, ditadas diretamente das exigências que o
duende impunha, nos conduziram para a questão da presença na arte que desembocou, sem
escapatória, no encontro com o estranho do real do corpo.
Penetrar no real do corpo, todavia, é se munir da coragem de penetrar em uma teia
conceitual nada simplificadora, por mais que se busque a clareza, por mais que nos façamos
acompanhar por uma pluralidade de admiráveis vozes que trilharam esse caminho antes de
16
nós. De fato, a tese busca pagar seu devido tributo a essas vozes. Afinal, não estamos aqui
redescobrindo a roda. Isso nos conduzirá para dentro da dinâmica do inconsciente a partir de
Freud. Então, de Freud à Lacan, passaremos do inconsciente que se constrói com o outro ao
inconsciente estruturado como linguagem, não qualquer linguagem, mas aquela que se faz
borda pelo olhar e voz materna. Falar de linguagem é falar da constituição do corpo do infans,
desse que ainda não fala. Então, do corpo falado, fazer-se falar, na cena e na vida.
No capítulo 5, estaremos frente a frente com o Real, na distinção fundamental
entre pulsão e instinto, tema que, caso fosse estudado de maneira ainda mais profunda, daria
uma tese por si só. Os caminhos pulsionais, inclusive a pulsão de morte, abrem a rota para a
sublimação, que nesta tese não será tomada como a rota exclusiva e privilegiada. A
radicalidade do real irá nos desviar dessa saída pela qual muitos pensam encontrar a
explicação para os mistérios da criação. Abandonada essa saída, seguiremos o aceno da Coisa
Freudiana, essa que teve a sua origem naquele Freud mais neurologista visto no capítulo 4. A
Coisa para sempre perdida, que nos atém/retém num furo sempre suturado pelas fantasias
imaginárias, pede, como no grito do infans, que a pseudo naturalidade das necessidades
instintivas sejam contornadas pelo corpo pulsional.
No capítulo 6, o corpo flamenco na voz e olhar da psicanálise, os conceitos serão
postos à prova na sua habilidade em responder as intrincadas questões que foram levantadas,
desde o final do capítulo 1, para retornarem em variadas entonações ao longo dos capítulos.
As questões são muitas, algumas se respondem, outras ficam suspensas, pois ser humano é ser
inconcluso.
A tese pretende encontrar seu arremate em uma reflexão a partir da ótica
psicanalítica e da prática da pesquisadora como intérprete, a saber, como a instabilidade da
cena, ao roçar o real, traz como consequência ao corpo treinado uma doce aspereza que ficou
marcada em nosso diário de bordo. Este irá aparecer pouco a pouco no entremeio dos
capítulos, uma maneira de ir levando ao leitor o gradual desenvolvimento do corpo no baile
no confronto com os grânulos de uma escrita que não se quer alheia ao corpo.
Portanto, tem-se aí um diário de bordo, relato de experiências de palco que
caminharam pari passu com a construção teórica e analítica. A princípio, esse diário seria
colocado em anexo, visto ser esta uma pesquisa de caráter teórico e o diário poderia quebrar a
textura conceitual que se espera dela. Mas, no decorrer dos trabalhos artísticos no intenso ano
de 2015, fomos compreendendo que a prática aqui foi determinante aos diálogos e
questionamentos conceituais. Assim nos parece que um precisa do outro para caminhar, pois,
sem esse duplo trâmite, a pesquisa iria novamente assumir um caráter unilateral, sem riscos e
17
desafios. A ideia do diário não é a de servir de ilustração ao leitor, mas questionar o que, sem
ele, na teoria se manteria camuflado. É inquestionável que, na teoria, ainda que haja a
construção individual, vamos nos ancorando nos autores, buscando neles proteção, ao passo
que a prática, solitária ou em grupo, por assim dizer, nos desarma e nos obriga a um olhar a
mais, um olhar junto, em conjunto.
18
CAPÍTULO 1
BUSCAS, CAMINHOS E PERCALÇOS
ferramentas teóricas básicas para entender a posição do professor em aula, e em que medida
esse lugar pode beneficiar ou prejudicar o trabalho do aluno.
Como a proposta do projeto era pensarmos a intersecção com a psicanálise, sob o
ponto de vista que a representação psíquica do corpo e a transferência nos dariam, e o ensino
da dança como metodologia de trabalho em construção, alguns textos, que discutiram o
sentido do movimento na dança, também embasaram a reflexão sobre o caminho a ser
buscado.
Considerando-se que a construção da imagem corporal e as mudanças na posição
subjetiva do sujeito parecem-nos fundamentais na dança, com base nos conceitos de imagem
corporal e transferência-contratransferência na psicanálise, no caminho a ser percorrido,
tratou-se de investigar como a imagem corporal, enquanto representação psíquica, e os
conceitos de transferência-contratransferência eram entendidos sob a ótica estritamente
psicanalítica. Então, foi preciso re-operacionalizar esses conceitos de modo a evidenciar sua
importância no contexto do ensino-aprendizagem da dança.
Para isso, as indagações teóricas foram embasadas nas situações concretas de sala
de aula em um laboratório do corpo com a participação de alunos-voluntários. Esse
laboratório consistiu da participação, devidamente autorizada, de oito a dez voluntários-
aprendizes e funcionou em espaço cedido pela Escola de Dança Al Compás. As aulas foram
ministradas duas vezes por semana, durante 22 meses, incluindo ensaios e apresentações em
espetáculos.
No Laboratório do corpo, parte empírica da pesquisa, algumas integrantes do
grupo na época desistiram no meio do processo, alegando ser ele muito difícil, nebuloso e
incômodo. A pergunta que surgiu na época, compartilhada e confirmada por outra(o)s
professora(e)s de flamenco versava sobre os fatores que determinam esse impasse. O que se
interpõe em meio ao processo de formação do bailaor e bailaora? Acompanhamos alunas
tecnicamente brilhantes, mas no momento de se dar à cena, o corpo se desfigurava em formas
sem linhas. A dinâmica das linhas se perdia. Era como se o corpo se colocasse de maneira às
avessas ao trabalhado e ensaiado em aula. Esse problema seguiu-nos no decorrer do mestrado,
sem que, então, pudesse ser perseguido, dada a sua complexidade. Em função disso, ele
retorna e se faz central no doutorado. Entretanto, para chegar com coerência ao foco do
problema atualmente válido, vários caminhos foram ensaiados, acabando por se revelar
inadequados. Passemos, pois a esse relato. Ora, não seria pela lente da psicanálise que
podemos nos aproximar do sujeito, observando, na época, de que lugar o professor enuncia o
seu desejo aos alunos. É através do espelho que nos orientamos sobre as questões vinculadas
20
trabalho de Klauss Vianna com o método de Rudolf Laban, que serão aprofundados teorica e
praticamente no decorrer da pesquisa.
A autora afasta-se de técnicas codificadas em dança, focando seu trabalho na
consciência corporal, no treinamento do corpo do ator e bailarino, que, sozinhos devem
descobrir suas necessidades, elegendo as formas de treinamento mais pessoais. Em 1990, em
meio a esse percurso, Lobo fundou seu grupo e a seus membros vão sendo propostas
estratégias de criação, improvisação e pesquisa que irão resultar em espetáculos. “Nesses
processos, avança a sistematização e a concretização do método Teatro do Movimento,
estruturando-se uma forma de trabalho, mas também uma ética em relação a ele, fundada no
respeito a cada um dos intérpretes e no intuito de se trabalhar com dança dentro do Brasil”.
Ora, toda essa trajetória revela um processo permanente de formação pedagógica,
em busca de um novo modelo para a criação em dança no Brasil, levando-se adiante as
tradições modernas de dança ocidental, que mescladas a estratégias contemporâneas da
linguagem transformam a Alaya numa Compania de características peculiares. (ibid., p. 46, 49
e 51).
Para tanto, Lobo parte de sete premissas fundamentais que estão estruturadas a
partir de pontos-chave da consciência corporal e dos estudos de movimento (coreologia),
servindo também para outros sistemas e métodos de interpretação. (ibid., p. 59). Pensando
nessas questões, Lobo começou a elaborar a dança e o teatro enquanto escrita ou composição
cênica, partindo da interligação de três eixos fundamentais, que nomeou como: Corpo Cênico,
Movimento Estruturado e Imaginário Criativo.
No eixo imaginário criativo, estabeleço uma relação com um estado imaterial onde
residem as imagens e ideias. O que se costuma chamar de energia espiritual pode se
mesclar com o que chamo de energia mental, o estado consciente mais o
inconsciente e, para que este estado imaterial se manifeste é preciso que ele se
estabeleça em uma forma que é denominada corpo. Juntos, imagem e corpo
proporcionam uma ação que se apresenta através do movimento. A partir daí, temos
a composição, cuja resultante final vai ser produto de uma química singular de cada
coreógrafo e/ ou diretor, que seleciona e estrutura suas criações de maneira única.
(ibid., p. 75-76).
de ação física envolve tanto as ações executadas exteriormente quanto as ações internas
desencadeadas pelas próprias ações físicas. As emoções estariam ligadas à utilização da
memória. As emoções deveriam ser resgatadas de um repertório de experiências pessoais,
iguais ou análogas às da personagem que deveria ser construída. Existia uma ligação quase
necessária entre memória e emoção. Aqui não estamos falando apenas da memória das
emoções, mas também das sensações, baseadas nas experiências, ligada aos nossos cinco
sentidos.
Da ação psicofísica à improvisação, da improvisação ao conceito de performance
e sua incursão no ritual e no jogo. Quando estabelecemos essas relações, surgiu a pergunta:
não seria essa também uma possibilidade de ir ao encontro do duende?
Tudo parecia indicar que a performance também poderia ser uma intermediária do
encontro pretendido. Isso fez com que o âmbito da pesquisa fosse ampliado para abraçar a
performance.
Performances são fazer-crer no jogo, por prazer, “como se”. Elas são tão somente
o jogar fora das formas, como também jogar com formas, deixando ações suspensas e sem fim
(SCHECHNER, 2012, p. 19). Sejam elas artísticas, esportivas ou da vida diária, as
performances consistem na ritualização de sons e gestos. “As performances artísticas moldam
e marcam suas apresentações, sublinhando o fato de que o comportamento artístico é ‘não
pela primeira vez’, mas feito por pessoas treinadas que levam tempo para se preparar e
ensaiar”. Assim, a performance pode ser considerada um comportamento altamente estilizado.
São comportamentos duplamente exercidos, codificados e transmissíveis, gerados através de
27
cultura e suas restrições morais e religiosas. Freud trata das impetuosas pulsões psíquicas
dadas nas relações, erigindo a existência de uma lei psíquica primordial, a que a humanidade
está irremediavelmente submetida cuja função é barrar o excesso pulsional. Dualidade
marcada entre as pulsões sexuais e as de destruição. Conflito entre Eros e Tânatos. O desejo e
sua proibição caminhando lado a lado, legado que Freud assimilou dos mitos.
Schechner afirma ainda que “embora a crença generalizada de que a performance
artística tenha sido originada nos rituais, não há evidências históricas ou arqueológicas para
comprovar essa afirmação”. É provável que, desde os primeiros tempos, as qualidades de
entretenimento da performance estivessem presentes como um elemento do ritual. “Todas as
performances atualmente são, na verdade, entretenimento e eficácia”. Artistas de várias
culturas têm feito arte utilizando, em rituais, música sacra, peças de altares e pinturas
devocionais, templos, máscaras e outros. Além disso, primeiramente pela influência do
colonialismo e, mais tarde, pela globalização, ocorreu uma atração dos artistas para rituais de
muitas culturas, com a sua utilização em suas próprias obras. Alguns já vêem investigando
não apenas rituais específicos, mas o próprio processo ritual, a fim de sintetizar rituais
existentes ou inventar novos. (ibid., p.88).
Entendendo o jogo como intrinsecamente parte da performance, por criar o “como
se” na arriscada atividade de fazer-crer, a questão da performance acaba escorregando sobre o
jogo. Entende-se que “jogar é fazer algo que ‘não para valer’, está, como ritual, no coração da
performance”. Para o autor, a performance pode ser tida como um “comportamento
ritualizado condicionado/permeado por jogo”. O jogo pode ser performance quando feito
abertamente, publicamente, e performativo quando privado, até mesmo secreto, como
estratégia de devaneio mais do que uma exibição. “Nessa interioridade, o jogo é separável do
ritual, que deve sempre ser encenado” (ibid., p. 91-96).
Para Bonfitto (2013, p. 29), podemos pensar a performance como uma saída do
espectador de sua condição habitual. Frente aos casos analisados pelo autor, o espectador é
posto, colocado frente a manifestações que não solicitam dele simplesmente uma atitude de
“decifrador de signos”. “As ocorrências expressivas fogem da estrutura da representação, não
remetendo o espectador a conteúdos específicos, mas sim em estados, atmosferas” e outros.
Se pensarmos no ator e no performer, podemos definir o ator como aquele que “habita
completamente uma personagem imaginária, mergulhando sua personalidade em um ato de
identificação e autotransformação”. O ator representa sua personagem, fingindo não saber que
é apenas um ator de teatro. Já o performer, por sua vez, é aquele que se “impregna totalmente
30
e somente quando a sua individualidade floresce sob o foco de atenção do público”. A pessoa
que “fala e age em nome próprio, e como tal, dirige-se ao público” (ibid., p. 96).
A produção de significado do ator e do performer será associada aqui com a
“esfera da representação, portadora de referencialidade, que envolve, por sua vez, a
exploração de intenções”. Já a “produção de sentido será associada com a esfera de
presentação, portadora de autorreferencialidade, que envolve a exploração de intensões”.
Significado e sentido não são opostos que se excluem, mas sim pólos que, quando inter-
relacionados podem oferecer abertura potencializadora de inúmeras possibilidades
expressivas. Tanto o significado quanto o sentido estão associados ao campo da semântica,
extremos num continuum. Assim, os fenômenos e as experiências, nesse âmbito, quanto mais
facilmente traduzíveis em palavras, mais próximos se localizariam do extremo significado, e
vice-versa, quanto mais dificilmente traduzíveis em palavras, mais próximos estariam do
extremo sentido. Esses dois pólos não são excludentes. Cabe aqui perceber as tensões
estabelecidas por tais pólos em cada caso (ibid., p. 112-113).
A produção de sentido, que emerge do trabalho do ator e do performer, pode ser
tida como um “processo de catalisação da presentação com a intensão”. Nesse caso, produzir
sentido implicaria a produção de qualidades expressivas autorreferenciais não reduzíveis a
signos, processo que envolve a exploração de intensões e suas implicações: “articulações
subjetivas profundas, instauração de campos relacionais que funcionam como agentes
aglutinadores de fluxos perceptivos e como geradores de ações desprovidos de
representação”. (ibid., p.115)
Vale notar que, nessa etapa, agora incrementada por teorias acerca do processo
criador do ator e teorias da performance, ainda se mantinha no projeto o ponto de partida
inicial das possíveis conexões da tríade construída por Lobo (Corpo Cênico, Movimento
Estruturado e Imaginário Criativo) com os registros do Imaginário, Simbólico e Real.
Contudo, essa relação deixava aí de ser um fim, tornando-se apenas um meio para ser guiado
32
Todas as artes são capazes de duende, mas onde ele encontra maior campo, como é
natural, é na música, na dança e na poesia falada, já que elas necessitam de um corpo
vivo que interprete, porque são formas que nascem e morrem de modo perpétuo e
alçam seus contornos sobre um presente exato. (LORCA, 1933, p. 1)
33
Entretanto, o foco voltado para o trabalho do ator poderia nublar a especificidade do duende
que se entroniza no corpo que dança. A questão, portanto, re-corria. Na medida em que os
estudos dos métodos utilizados no teatro foram se desenvolvendo, mais o duende como
presença em cena ia se distanciando de questões de método e técnica. Isto porque
compreender o duende com apoio nas técnicas teatrais ou nos métodos de dança, tanto em um
quanto em outro caso, em vez de dar suporte, parecia desviar o trabalho de seu verdadeiro
foco. Todavia, vale notar que nesse estágio do desenvolvimento da pesquisa, os estudos
realizados não haviam sido inteiramente descartados. Não se pode negar que há no duende
elementos psicofísicos. A busca de aprofundamento dessa questão, formulada no teatro por
Stanislávisk e discutida por Bonfitto, das ações físicas como “iscas de processos interiores”
conduziu-nos à busca de fontes, inclusive fontes que trouxessem mais de perto esses lampejos
de processos interiores. Com a convicção de que um importante aspecto, que nos parecia estar
presente na incorporação do duende, consiste no ato de entrega do corpo-alma a uma
experiência que é grata, a pesquisa caminhou para a teoria dos fluxos, mesmo sabendo que
essa se situa em um campo antagônico à psicanálise, especialmente do fulcro do real, de
fundamental importância no duende, um real que surge sempre ao modo do tropeço e não de
uma entrega feliz.
A melhor descrição que conheço do momento em que a disposição serena, que nos
prepara para o acontecimento da experiência estética, se transforma em experiência
estética foi feita por um atleta. Foi a resposta de Pablo Morales, atleta olímpico
medalha de ouro de natação, à pergunta sobre por que, após se ter afastado da
competição, havia voltado a qualificar-se para as Olimpíadas e a ganhar uma nova
medalha de ouro. Sem hesitar, Morales respondeu que fizera esse esforço
extraordinário porque estava viciado na sensação de “estar perdido na intensidade
concentrada”. A escolha da palavra “intensidade” confirma que a diferença trazida
pela experiência estética é, sobretudo, uma diferença de quantidade: desafios
radicais produzem níveis radicais de desempenho, nas mentes e nos corpos.
(GUMBRECHT, 2010, p. 133)
De fato, a metáfora do Fluxo foi utilizada por muitas pessoas para descrever a
sensação de ação sem esforço experimentada em momentos que se destacam como os
melhores de suas vidas. Atletas se referem a eles como atingir o auge, místicos religiosos
como estar em êxtase, artistas e músicos como enlevo estético. O fluxo costuma ocorrer
quando uma pessoa encara um conjunto de metas que exigem respostas apropriadas. As
atividades que induzem o fluxo podem ser chamadas de “atividades de fluxo” porque tornam
mais provável que a experiência ocorra.
Outra característica das atividades de fluxo é que elas oferecem um feedback
imediato: elas deixam claro o seu desempenho. Com cada passo, o alpinista sabe que subiu
mais um pouco. Depois de cada compasso de uma canção você pode escutar se as notas que
você cantou correspondem à partitura. O fluxo tende a ocorrer quando as habilidades de uma
38
deixar-se dançar, se deixar atravessar, e nada é mais assertivo do que esse estado da mente no
ato da cena. No entanto, essa teoria, vinda da escola americana, da psicologia do ego, não
permitiria o diálogo com a psicanálise a qual, cada vez mais nos trazia a perspectiva de
perscrutar duende de frente, sem contornos e subterfúgios, pois é no duende que o corpo se
faz Real em cena. Além disso, emergia, a partir disso, com muita intensidade a demanda de
colocar a teoria no confronto com a prática de palco da própria pesquisadora, os seja, dos
riscos e travessias da cena no embate entre o trabalho da escrita da tese e da experiência do
corpo em cena. Os dados estavam lançados.
a autora trabalha se refere não somente à cadeia significante como também às relações entre o
real, imaginário e simbólico numa trama que não pode ser desatada e que pressupõe os
conceitos de significante e significado que Lacan absorveu de Saussure ([1916] 1993)
transformando-os. A linguagem, na visão saussuriana, implica que um significante (a imagem
acústica mental, digamos de uma palavra) não se significa a si mesmo, ou seja, um signo é
sempre uma relação arbitrária entre significante e significado (o conceito dessa imagem
acústica). Logo, para haver um signo, são necessários dois elementos, pois o signo lingüístico
resulta da articulação de duas instâncias, o significante e o significado.
Lacan descarta a concepção biunívoca saussuriana de signo e elabora uma teoria
do significante que tem como ponto de partida o seguinte algoritmo: S/s, ou seja, significante
sobre significado, correspondendo esse “sobre” à barra que separa as duas etapas. A barra
implica privilegiar a pura função do significante em detrimento da ordem do significado. A
estrutura do significante se caracteriza pela articulação e pela introdução da diferença que
funda os diferentes.
Em “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud” (1958), já tendo
abandonado a visão estritamente saussuriana do significante, Lacan demonstrou que o
inconsciente é estruturado como linguagem. Assim, a articulação significante não se produz
sozinha, é necessário que haja um sujeito. O significante só pode passar para o plano da
significação porque há um sujeito operando a cadeia do significante. Essa relação do sujeito
com o significante é denominada de relação fundamental. Por isso, o sujeito da psicanálise é
um ser atravessado pela linguagem que é entendida como uma rede de significantes que se
deslocam. Através da circulação destes significantes, um significante, especificamente, irá
representar o sujeito aos outros significantes de uma trama encadeada por significantes. Um
único significante é capaz de determinar o sujeito, ou melhor, o sujeito é determinado por esse
significante. Ocorre que algo escapa da rede de significantes. Este algo é caracterizado por
Lacan como resto. Por que algo escapa? Porque somos regidos por algo de que não temos
controle, a que não temos acesso direto, sobre o qual não temos domínio: o inconsciente. Se
algo escapa no desfiladeiro dos significantes, é porque, em certa medida, o sujeito não é todo
representável pela linguagem.
Justamente por isso, o discurso do sujeito freudiano estaria sempre marcado
por este outro, o inconsciente, que não dominamos. Dividido entre o seu domínio e algo que o
domina, o sujeito define-se num inevitável embate com esse outro que o habita. Por isso,
permanentemente, vive a busca ilusória de tornar-se um. A linguagem estaria a serviço desta
busca, lugar da condição paradisíaca e originária do sujeito uno, pleno de poder.
41
Desde o meu Mestrado, numa tentativa de me aproximar desse afeto tão doloroso
e tão necessário ao caminho das artes, o diálogo, a reflexão e a experiência viva truncavam-
se por conta de uma incessante busca por algo que pudesse responder, sem pestanejar, as
minhas indagações, seja ancorada na psicanálise, seja na literatura. Sempre me aliava a
essas disciplinas para responder algo que precisava vir de maneira, talvez, mais brutal, mais
Real, no sentido lacaniano da terminologia. Por covardia deixaria esse diário em anexo, com
alguma esperança de que passasse desapercebido, assim como alguns momentos meus em
cena: estar sem estar, estar por estar. Mas, ele vai se achegar, mesmo que timidamente. Se
ele não protagonizar, do que estamos falando aqui? E eu, sempre tão cautelosa com os
processos, sempre tão crítica com bailarinos que se diziam em primeira pessoa. Talvez
porque nunca tivesse de fato ido ao encontro da cena, nessa paradoxal captura prazerosa no
ápice da angústia. Atravessada por algo de outra ordem. Perpassa e esse algo se produz.
Ora, sempre quando me vejo lendo uma boa tese, me pergunto, quais os caminhos que tal
pesquisador (a) trilhou? Como se deram os impasses e como ele (a) resolveu sua saída?
Como tal bailaora(o) fez tal coisa em cena, como ela(e) é capaz de se revelar em um desvelar
escancarado? Quando passo pelo processo artístico, comprometo-me com o leitor ao contar
um pouco dessa história. Por que não o convidar a essa experiência tão assustadoramente
familiar, num desnudar-se, ao preço que me for justo perder para ganhar. Não gostaria de
tornar esse diário um modelo de escrita-tese, mas tampouco fazer desse espaço um setting
analítico no qual a associação livre se faz imperativo. Vamos pensar como um momento de
compartilhar com quem lê e se interessa por esse reinar – trapacear e cair da jornada --, um
pouco do que ocorreu no percurso.
Sempre da cochia sentia esse aroma, mas sem nunca me permitir prová-lo. A
prova parecia sempre me levar ao discurso da loucura. Ao medo de ser pega pela loucura,
daquele limiar do ir e não vir. A loucura, de um lado e a entrega, do outro. A entrega é uma
parte disso, a outra parte é loucura. Mas é a loucura que nos faz dialogar com algo que nos
surpreenda no mistério da cena. Ali diante do olhar do outro. Do inquietante estranho tão
familiar. A loucura como sinônimo de autorização? Autorizar-se à entrega do desejo.
Recurso que exige labutar. A possibilidade de não me reconhecer na cena. Algo da ordem do
pânico dava mostras de sua estadia. Algo da ordem do trauma? Um terror que se debruça
sobre a surpresa do porvir. O medo desse encontro de si com o si mesmo. Encontro que
desmascara, sem o menor pudor, as relações que se foram tecendo na vida desse corpo-
linguagem que se habita através do outro, pelo/no outro. Falar dessa entrega não é
simplesmente apontar para o processo, mas daquilo que esse processo fala, por quem ele é
falado, antes de falar-se de/por si.
CAPÍTULO 2
O FLAMENCO DO PASSADO AO PRESENTE
2.1 As origens
Hay dos grupos de gitanos: los nómadas y los sedentarios. No fue por causalidad
que estos últimos, que formaban el grupo más grande, eligieran Andalucía como su
patria final. Félix Grande dice: La profunda simbiosis gitano andaluza que significa
ese fenómeno cultural sobrecogedor al que llamamos el arte flamenco, indica –
sugiere al menos un mínimo de semejanzas culturales básicas. Típicos rasgos del
carácter como el miedo, el orgullo, la vivacidad, la resignación y arrogancia son
comunes de andaluces y gitanos.
“cante gitano-andaluz”. Os ciganos, que haviam sido expostos aos mais duros castigos das
autoridades, começaram a dar voz a esse sofrimento. Estes se expressavam, tomando suas
formas nos lamentos que constituíram a origem de todo o flamenco. Segundo a autora (ibid.,
p. 34), Ricardo Molina declarou em seu livro Misterios del Arte Flamenco que:
Y nos hemos dicho que el proletariado andaluz y el perseguido gitano tenían que
entenderse perfectamente a través de algo vagamente parecido a una instintiva y
común conciencia de clase. Desde el punto de vista antropológico, como hecho
fundamentalmente humano y en calidad de expresión artística de una colectividad,
el cante flamenco es la queja de un pueblo secularmente subyugado.
Os ciganos deram uma forma mais forte, expressiva e pessoal ao baile e cante dos
mouros. O flamenco traz consigo essa releitura marcada pelos ciganos por um grito elementar,
em suas formas primitivas de um povo às margens da pobreza e da ignorância, para quem só
existem as necessidades peremptórias da existência primária e os sentimentos primitivos. É
justamente aqui que se busca a motivação social e psicológica das coplas (versos - letra das
canções) que não são outra coisa senão a representação da desesperança, depressão, do
lamento, renúncia, expansão biográfica, superstição, magia e confissão obscura de uma alma
ferida. Ainda segundo a autora (ibid., p. 34), Félix Grande diz: “Y alguna noche, alguna
madrugada, algún amanecer, uno de esos sístoles de la historia ha gemido de una manera
remotamente musical, apoyándose en una tradición casi invisible que debe tanto a la
onomatopeya, al alarido, al resuello de rabia y miedo, como a las tentaculares músicas
andaluzas del siglo XV o XVI”.
Nos três séculos que se passaram, pouca coisa ocorreu até a chegada do final do
século XVIII. Supõe-se que os ciganos andaluzes, durante este tempo, sofreram uma vida tão
miserável e cheia de sacrifícios e castigos que seus lamentos eram seu único conforto, uma
espécie de terapia pela arte. Quando os ciganos chegaram à Espanha no século XV,
encontraram outros grupos que haviam permanecido no local, vivendo ao Sul de Andalucía,
em Sevilha, Jerez e Cádiz e nas aldeias entre estas cidades. Ali encontraram um ambiente,
uma heterogeneidade de pessoas das quais iriam fazer parte, integrando-se. A população local
era composta por pobres campesinos, grande parte de mouriscos que haviam permanecido
depois das expulsões, e umas tantas famílias judias que conseguiram se esconder nas
inacessíveis matas e bosques durante os tempos da cruel inquisição. Durante esses três
séculos, essas três classes de pessoas, que teriam muito em comum, trocaram, compartilharam
e assimilaram suas culturas, sobretudo no que tange à música. Tudo isto faz parte das raízes
do flamenco lida pela convenção. Das fontes profundas do cante, do pobre e maltratado povo
52
cigano-andaluz pode ter germinado algo novo e fresco. O flamenco como cante, baile e toque
é uma arte nova marcada pela expressão pessoal de uma tragédia, um transporte à alegria, um
momento lúdico de sentimentos que brotam do coração e da alma (ibid., p. 36).
Todavia, conforme esclarece Vergillos (2015), os ciganos vão se fazendo
intérpretes do baile flamenco, não tendo criado, na realidade, em nenhum momento algo
novo, como se vinha pensando até então, visto que utilizam um repertório que já existia na
Espanha. Evidentemente, não podemos negar a marca dramática e intensa com que marcaram
sua interpretação. Existiam muitos ciganos militares que nunca foram nômades na Espanha.
Em Flanders, território da atual Bélgica, antiga colônia da Espanha, muitos ciganos, bons
guerreiros, iam brigar por lá. Assim, a palavra “flamenco”, sem ainda associar-se ao diálogo
entre o baile-cante e guitarra, como o conhecemos atualmente, surge aqui para caracterizar
essa gente que provinha dos Flanders, da guerra. Era uma maneira de dizer que eram valentes,
mas também delinquentes.
afirma que encontramos, nas origens da dança flamenca, elementos que, assim como no balé,
hesitavam pela vontade de síntese de distintas tendências artísticas, virtuosismo técnico que
deveria competir na época com o balé francês, a vocação cênica e os espetáculos
profissionais, que acabaram contrastando com o substrato popular que constituiu as suas
origens. O teor exótico se deu por conta de elementos ciganos, que estão presentes no teatro
popular hispânico e no culto, não somente hispânico. O orientalismo também se apresentou
nas músicas populares do flamenco estilizado. Isso porque o flamenco é uma arte estilizada,
uma criação de profissionais como reação à preponderância da ópera italiana e da dança
francesa.
As primeiras manifestações flamencas, com que se tomou contato, apresentaram-
se na metade do século XIX, nos teatros e academias de baile, passando, no final do século
XIX, a se apresentar também nos cafés cantantes. Ainda que, em seu princípio, estes locais,
importados da Europa, não tivessem como objetivo a representação da arte flamenca, foram
importantes para os cantaores jondos (cantes mais existenciais), que desenvolveram suas artes
nesses cafés. A escola bolera veio como uma versão acadêmica do baile, por isso não há uma
linha divisória entre as ruas e o cenário. O baile flamenco pode ser assim considerado como
uma evolução dos bailes boleros que são uma sistematização e uma síntese entre os bailes
nacionais, boleros e a dança francesa. A percussão dos pés vem do zapateado da escola
bolera. E, para completar a origem dos acessórios, o mantón teve a sua origem na China e o
abanico na Corea.
Os cenários são os teatros, mas também as academias, como a do Senhor Barrera,
e, ao final deste período, foi surgindo um novo espaço cênico que lentamente se estabeleceu
como centro do universo flamenco, Os Cafés Cantantes (Figura 5) (ibid., p. 5).
Aqui duas grandes referências de baile dessa época foram, em 1835, a bailaora Petra Camara
(Figura 6) que bailou pela primeira vez uma Soléa1. Bailaora bolera, ela foi uma das
1
Palo é o nome que se dá às sub-classificações do Flamenco. Dependendo do compasso, da escala utilizada, da
progressão de acordes, do tema abordado na letra e de outras características mais destacadas das músicas, estas
podem classificar-se de diferentes maneiras, de forma que músicas em um mesmo palo apresentam
características semelhantes. Dentre os principais palos flamencos destacam-se a Seguiriya, a Soleá, a Bulería, a
Alegría, a Rumba, o Tango, o Fandango e a Sevillana. O Martinete é considerado o palo mais antigo, chamado a
palo seco, ou seja, sem acompanhamento de violão. De certa forma, alguns destes palos eram músicas
tradicionais que posteriormente foram incorporadas ao Flamenco. Assim sendo, muitos não consideram as
Sevillanas, por exemplo, como sendo Flamenco. Vale notar que existem vários outros palos além destes, uma
centena, como Canastera, Alboreá, Petenera, etc. Cada palo contém características marcantes que podem
identificá-los. Assim os palos jondos são mais pesados, tristes, como a Soleá. Há contudo músicas que
apresentam uma certa mistura dessas características. O palo mais antigo no Flamenco, acompanhado de algum
instrumento é a Seguiriya. Antes a ele as músicas eram apenas cantadas, sem dança nem violão (as chamadas
Tonás), como no caso do martinete, onde aparece a bigorna como acompanhamento, por exemplo. Após as
Seguiriyas vieram as Soleá, quando o Flamenco passou a ser apresentado, inclusive com dança. E então vieram
54
O centro dos bailes de jaleo e dos cantes por tonas, siguiriyas, soleares e tangos,
seguia vinculado à zona geográfica em que nasceram: os bairros ciganos de Jeréz,
Sevilla, Cádiz e El Puerto, Alcalá e Utrera, Arcos e Lebrija. Na região compreendida
entre Córdoba e Málaga, Jaén e Almería, Granada e Huelva, Badajóz e Ciudad Real,
Múrcia e Albacete, o flamenco seguiu apropriações dos cantaores populares da cada
região, com os cantes, na sua maioria, derivando dos fandangos. (ibid., p. 20)
as Bulerías, que apresentavam um caracter mais festivo, com danças mais aceleradas. As Bulerías são o palo em
que o guitarrista/violonista ou o bailaor podem mostrar suas melhores habilidades, havendo muita improvisação.
55
Para Vergillos (2015, p. 1), no que diz respeito ao cante, Silvério Franconelli
(Figura 11), criador do cante flamenco, nunca utilizou o termo “flamenco” para isso, mas sim,
“cante andaluz” ou “cante espanhol”. Ele foi o responsável pela independência entre cante e
baile. Decidiu fazer um café de cante flamenco. Ele tinha a intenção de priorizar o cante em
lugar do baile. Historicamente, o flamenco nasce do baile. Antes da Guerra Civil não existia o
conceito de cantaores para baile. Antonio Chacón (Figura 12) foi outra importante figura dos
cafés cantantes. Na época, o ritmo e a estrutura não eram restritos.
56
(Figura 17). Manuel Nina de los Peines dizia que Vallejo foi o melhor no sentido rítmico, o
primeiro a cantar canções a ritmo por bulerias (por 12 tempos).
Aqui também se deu o início dos cinemas sonoros, os cinemas musicais
flamencos, polarizados entre conservadores (onde não aparecem os flamencos) e a esquerda,
marcada pelo flamenco. O diretor Luis Buñuel (Figura 18) foi o primeiro a dar oportunidade
ao cinema musical republicano, tomando a frente nesse percurso. Ele foi um dos primeiros a
dar oportunidade a Carmen Amaya (Figura 19). Ela saiu em um de seus filmes de folhetins.
Carmen Amaya (1913-1963), filha do guitarrista El Chico, em 1923 começou suas viagens
por Espanha e Paris. Em 1941 se apresentou em Nova York. Em 1942 interpretou diferentes
papéis nos cinemas na América do Sul e Hollywood. Em 1954, inaugurou a “Fuente de
Carmen Amaya” em Barcelona (ibid., p. 14). Essa lógica se seguirá até a entrada de Franco,
de um flamenco mais conservador (flamenco não cigano) em oposição a um flamenco cigano,
reivindicatório. A arte de conflito ético mostra sua vestimenta.
Já em 1936, com a chegada de Franco, o cantaor Valderrama (figura 20) dizia em
meio à guerra e à diáspora dos artistas “donde nosotros cantaban en la Plaza del toro,
estavan fusilando a la gente”. Os cantaores dessa época, que não conseguiram sair da
Espanha, para conseguirem dinheiro, cantavam nas festas de senhores de posse. O cante foi se
refugiando nesses lugares, ou melhor, foi se prostituindo pelo dinheiro. As grandes Cias de
baile partiram para os Estados Unidos e Argentina. A cigana Carmen Amaya, por exemplo, se
converteu na “Queen of the Gipsy”. A arte étnica, entre o místico e o exótico, era o que
interessava nessa época.
O Franquismo desativou o potencial social e crítico do flamenco que passa a ser
uma arte marginal. A fala franquista era: “Dale el flamenco a los gitanos entonces”. Isso é
tudo que Franco lhes dará. O flamenco se relacionava com o mundo dos ciganos e isso
interessava a Franco. A arte de massas politizadas se converteu em uma arte marginal, sem
direitos nem dinheiro. Antes havia o flamenco na Plaza Del Toro, o flamenco da massa
politizada. Esse flamenco mais juguetón (divertido) deu lugar a um flamenco mais existencial
e radical, polarizando-se de um lado mais folclórico, o das bolas, flores e colorido, para outro
mais radical. Ao fim e ao cabo, toda a arte mudou depois da Segunda Guerra Mundial. Dos
jogos de Vanguarda dos anos 20 e 30 rumo a uma variação de tendências. No pós-guerra, em
meados dos anos 50, houve uma troca estética flamenca para um flamenco racial. Um
flamenco mais jondo (existencial) em oposição a um flamenco mais açucarado, digamos
assim. Um flamenco somente para os ciganos. Cria-se uma guerra civil flamenca, entre os
payos (não ciganos) e os ciganos, a briga à identidade flamenca “original” se fez. Fechou-se
58
em uma única estética. Para competir nesse mercado instalado, havia Antonio Mairena como
uma figura central. Era um grande investigador, tido como um cigano “legítimo”. Ele
inventou a enciclopédia do cante. Reivindicou um cante de voz forte, ao lado de Mairena,
Pepe Marchena (1903-1976), não cigano e apolítico. Juan Vergillos considera Marchena o
cantaor mais importante da época. Ele se converteu em inimigo dessa onda do cante gitano
como único a ser validado. Mairena e Marchena eram capazes de ativar diferentes registros
àqueles que o escutavam, numa voz que nos convoca-invoca. O cante por soléa (ritmo jondo
flamenco), de Mairena, nos leva a um lugar familiarmente desconhecido. Como um grito, um
chamamento, característico do ritmo jondo flamenco. Essa questão freudiana do estranho
familiar deverá ser tratada com vagar no decorrer da tese.
Segundo Vergillos (2015), insistiu-se nessa temática de um flamenco mais
dramático. Fixou-se na história através dos livros que, antes da guerra, não havia um flamenco
autêntico, o que é um grande equívoco. Nessa época, o que se tinha era o ícone do cante
açucarado, suave, melódico e existencial na voz do cantaor não cigano Pepe Marchena. O
pós-guerra aproximou os intelectuais do flamenco, reivindicando um flamenco mais
dramático, aquele capaz de dizer, retratar o momento histórico. Assim, a etapa dos anos 1950
pode ser caracterizada como a etapa do cante flamenco.
Nos anos de 1940-60, tinha-se Niño Ricardo (Figura 21) e Sabicas (Figura 22)
como referências na guitarra flamenca. Niño Ricardo foi o grande maestro do pós-guerra.
Exerceu forte influência no maior guitarrista da história, Paco de Lucia. Sabicas, outro grande
guitarrista, nessa época, estava fora da Espanha. Ele tinha uma técnica assombrosa, uma
grande velocidade na guitarra. Em 1970 fez fusão entre rock e flamenco. Sabicas criticou
Paco de Lucia dizendo que ele deveria tocar a sua própria música, as suas próprias
composições e não as melodias de Niño Ricardo. Isso marcou e mudou a arte de Paco de
Lucia. Mas a grande figura do baile em 50 foi Antonio Ruiz Soler (Figura 23), conhecido
como Antonio “El Bailarín”. Se Pepe Marchena foi o ícone do cante na história flamenca,
Antonio “El Bailarín” foi do baile. Já o baile pós-guerra teve como referência a Cia de Pilar
Lopéz (Figura 24).
A partir de 1955, criou-se um espaço cênico para o flamenco, os tablaos. O
primeiro tablao no centro de Madri data de1954, com o nome Zambra (Figura 25). A primeira
referência de bailaora no tablao Zambra foi Rosa Durán (figura 26). O Zambra durou de
1954 até 1975, com a morte de seu fundador.
O café cantante foi na realidade uma tentativa de juntar o comer e a arte. Isso nos
lembra a fala de Eva La Yerbabuena, uma das maiores bailaoras da contemporaneidade,
59
quando disse, em um programa de entrevista, que a medida, para saber se havia bailado bem
ao final da noite, era quando as pessoas paravam de comer e beber para vê-la bailar. Assim, os
cafés cantantes chegaram até a guerra civil e o último fechou em 1936. Foram os cafés
cantantes que se tornaram tablaos. Espaços marcados por um ambiente cênico mais íntimo
para o consumo dos estrangeiros, o que se segue até os dias atuais em várias cidades da
Espanha.
Como vimos, antes da guerra, havia os teatros e os cafés cantantes e, no pós-
guerra, os tablaos, que são nada mais e nada menos do que os resquícios dos cafés cantantes.
Com o nascimento dos tablaos, dada a demanda dos turistas, o baile precisava dialogar com o
cante, antes exclusividade somente do segundo. No pré-guerra não se sabia cantar para baile.
Entre 1936-55, o flamenco tinha pouco espaço. Os tablaos caminharam junto às demandas
que com ele se foram fazendo da aliança entre cante-baile/baile-cante. Os artistas, que
precisavam trabalhar, desenvolveram bailes mais longos junto a um apurado trabalho técnico
para os tablaos, por isso, a demanda de se criar um baile longo, técnico na relação com o
cante, nasceu nos anos 50, antes havia bailes rápidos, pequenos, de improviso e sem muita
técnica. Os repertórios de baile eram os mesmos, ainda que nomeados de três diferentes
formas: “gitano”, “a lo gitano” e “a lo flamenco”. Neste momento, gitano e flamenco eram
sinônimos, tanto que antes se bailava “el jaleo”, que é um tipo de ritmo flamenco, e agora
baila-se “el jaleo gitano”, incluindo o mesmo intérprete. Assim sendo, podemos falar de uma
mesma função. O cenário são os teatros, salões e academias.
Em 1960-70 ocorreu um giro para os novos tempos. Aqueles, que eram tidos
como papas do ritmo, entraram em ação. O guitarrista Paco de Lucía (Figura 27) e o cantaor
Camarón de la Isla (Figura 28) marcaram uma linha divisória nos anos 70 até a atualidade.
Eles tinham uma impressionante condição técnica e rítmica, o que, até então, não havia
ocorrido, ou seja, cantaores virtuosos em ritmo. Revolucionaram o flamenco que veio dos
antigos tempos.
Quando o flamenco mudou de paradigma depois de 1950, o ritmo foi priorizado.
Isso começou a marcar e mudar a história, o flamenco e o ritmo. A melodia, antes
protagonista, foi abrindo lugar para o ritmo. Evidentemente, os dois devem caminhar juntos,
mas antes o ritmo era posto de lado. A voz era prioridade sobreposta ao ritmo. Camarón
colocou elementos tradicionais e pontos comerciais em sua discografia até 1979. Em 1978 fez
um giro na carreira fusionando o flamenco com o Rock Andaluz, na voz de Pata Negra e
Alameda (grupo de rock), introduzindo também guitarra, teclado e elétricos. La Leyenda del
Tiempo é um dos mais importantes trabalhos de fusão de Camarón.
60
Assim, Paco de Lucia, ainda muito jovem, juntou-se à Cia de José Greco. Depois
à de Antonio Gades (Figura 29). Paco conheceu o Brasil de 60 e seu estilo será fortemente
influenciado por isso. Os contratempos e o cajón, ainda que este seja um instrumento
peruano, começam a ser trabalhados por ele após a sua vinda para o Brasil com Gades. Ele
também sofreu forte influência do jazz, abrindo o seu universo harmônico. Os
contemporâneos de Paco introduziram o cajón, a flauta e outros recursos por causa dele. Paco
e Camarón se inclinaram um pouco mais para um estilo festeiro, porque chegava com maior
rapidez ao público jovem, mas sem excluir as grandes criações bastante complexas dos cantes
jondos. Juntaram a melodia e a rítmica. Até então, não havia criação no cante, somente cópia.
O cantaor Enrique Morente (Figura 30) foi o único criador. Por conta de Antonio Mairena,
que disseminou um discurso de que o conceito de cante já estava feito, o cante não conseguiu
se renovar. Diferente da guitarra e do baile que sofreram grandes modificações.
Em 1989, Sabicas gravou um disco com Morente. Enrique Morente também
revolucionou, mas nada comparado a Paco de Lucia. Enrique Morente se apoiou mais na
expressão do que propriamente na técnica, como fez Paco. Em 1971, introduziu poemas em
seu cante e, em 1977, homenageou Antonio Chacón. Nos anos 80 retornou ao flamenco de
1930, àquele na voz de Marchena e Valderrama, doce e suave. Nesse retorno melódico ao
cante dos anos 30, temos os cantaores atuais nas vozes de Estrella Morente (Figura 31), filha
genética de Enrique Morente, e artística, de Miguel Poveda (Figura 32).
Para sintetizar este tópico, seguiremos com grandes nomes do cante flamenco
como Manolo Caracol (Figura 33) e Manuel Torres (Figura 34), seguidores de Mairena. E o
mais contemporâneo, Fosforito. Ramon Montoya (1879-1949) (Figura 35) foi criador da
guitarra flamenca, o guitarrista mais importante da história até a chegada de Paco de Lucia,
enquanto Manuel Torres foi o ídolo de Antonio Mairena. Os Cafés Cantantes se fizeram nas
figuras de Antonio Chacón (1869-1929) e de Silvério Franconetti (1829-1889). Com
Franconetti, deu-se a independência do cante flamenco em relação ao baile. Nina de los
Peines, conhecida como Pastora Pavón Cruz, cigana de Sevilla (1890-1969), tem a maior
discografia do flamenco, depois de Mairena, e foi discípula de Chacón. Pepe Marchena (1903-
1976) foi o grande responsável por cantes mais melódicos e suaves.
61
A malagueña, chamada Trindade Huertas “La Cuenca” (Figura 36), foi a primeira
a sapatear (taconear), importante figura na composição do sapateado para o baile por soléa,
introduzindo nesta o sapateado/taconeo. Foi também a primeira vez que uma mulher bailou
com vestuário masculino, vestida de toureiro. Ela percorreu os principais teatros da Espanha e
outros países. Esse baile pode ser considerado como uma evolução das danças boleras que,
como já vimos, são conhecidas como jaleos. A soléa também foi uma derivação dos bailes de
jaleos boleros (ibid., p. 6). Carmen Dauset Moreno, “Carmencita” (1868- 1902) (Figura 37),
foi um ícone na interpretação de la Cachucha. Rosario Monje, La Mejorana (Figura 38), uma
bailaora puntera, foi mãe da futura estrela da dança, Pastora Rojas Monje, Pastora Império
(Figura 39). A mãe foi a responsável pela introdução de mãos, punhos e braços no baile e
também a primeira a bailar com a bata de cola, cujo uso, até o final do século XVIII, era
característico das mulheres da classe alta de Andaluzia. A origem da bata se deu em Paris. Era
o traje típico da aristocracia parisiense. Eram eles, os aristocratas, que ditavam moda na
Europa. Esses bailes foram levados aos teatros de Sevilha, Málaga e Cádiz e aos cenários
mais modestos dos cafés cantantes, que em Andaluzia eram cafés de cantes flamencos e não
de baile e de academias.
Até então, os cantes eram cantados e bailados ao mesmo tempo por alguns desses
intérpretes, quase sempre mulheres. A partir de então, o cante e o baile tomaram caminhos
distintos, até o ponto em que o baile passou a ser feito por um acompanhamento instrumental
até depois da guerra civil espanhola. Pastora Imperio, segundo Vergillos (2014, p. 8, 10), foi a
responsável pela transição para o século XX, ao estabelecer o flamenco como um espetáculo
definitivamente teatral, embalando um estilo de baile que hoje se conhece como a escola
sevilhana de baile flamenco. Matilde Coral, discípula direta de Pastora Império, é a fundadora
e autora atual da “Escuela Sevillana de baile”. Macarrona (1870-1947), La Malena (1877-
1956) e Pastora apresentam um baile de cabeça e braços, muito sensível e equilibrado frente
ao excesso de pés, baile sutil frente ao “barroquismo hiperrítmico”. Figuras, desenhos, linhas.
Classicismo e helenismo. A linha clara frente à linha bronze. É dessa tensão que a apreciação
do baile flamenco se faz.
flamenco, una tendência que llega hasta hoy y que, siendo barroca en su intención,
resulta clásica por su inspiración y desenvolvimiento. (VERGILLOS, 2014, p. 9).
A máxima representante atual da escola ministrada por Matilde Coral (Figura 40)
pode ser considerada como a primeira “encarnación consumada” do clacissismo do baile
flamenco. Ela é defensora do bom flamenco barroco. Trabalhou de perto com El Farruco,
representante contemporâneo desse estilo barroco. O sapateado é mais tranquilo e o
importante aqui são as marcações próprias dos bailes boleros, assim como o baile feminino
“de la cintura para arriba”. A bata de cola é um acessório que simboliza essa etapa do baile,
uma tendência que segue até os dias atuais e que, sendo barroca em sua intenção de origem,
resulta clássica por sua inspiração e desenvolvimento. A bata se apresenta como um símbolo
estético. Este acessório é um ser vivo e, como qualquer ser vivo, é muito sensível.
Em 1915 estreou “El Amor Brujo”, no teatro Lara de Madri, uma obra que
formará parte do repertório dos bailarinos espanhóis da época e que, sem pretender, iniciou
um gênero novo, o balé flamenco. A obra apresenta o repertório das principais Cias do
momento e a estreia da grande La Argentina (1925) (Figura 41), com composição de Falla.
Antonia Mercé, La argentina (1888-1936), alternava como todas as bailaoras de sua época, o
cante e o baile. Em 1911 se instalou em Paris. Seguiu com giras internacionais, e, em 1929,
formou a sua própria Cia “Les ballets spanols”, emulando Diaguilev e seus balés russos. Esta
obra marcará o início do balé flamenco. Ainda que alguns bailes boleros apresentassem
autênticas coreografias narrativas e o flamenco contasse com a “sorte” das touradas, em
termos narrativos, foi a primeira vez que um repertório de passos e mudanças abstratas, lírico,
concebido à expressão emocional direta, era também uma narrativa. A música orquestral e
sinfônica incorporou-se ao flamenco. Falla compôs um outro balé “El sombrero de três picos”
para Diaguilev, cuja coreografia contou com a participação do bailaor sevilhano Félix el
Loco. (ibid., p. 9)
SegundoVergillos (2014, p. 7), neste primeiro momento, acompanhamos o
germinar da dança flamenca, como um tipo de baile eclético, de influências diversas que vão
desde a escola Bolera, as danças do povo, religiosas e profanas, os bailes de negros afro-
63
americanos até o balé francês. “Ecletismo e barroquismo” marcam o baile flamenco, tal qual o
conhecemos nos dias atuais, desde sua origem. Os ritmos das alegrias e jaleos podem ser
vistos como um perfil popular sempre vinculado a Cádiz. Estes representariam, junto com os
tangos, a parte mais festeira do repertório flamenco dançado, ao passo que a soléa, bailada por
La Cuenca, com seu sapateado e extraordinária técnica de braços e mãos, representa a parte
mais grave e jonda desses ritmos.
Vicente Escudero (Figura 42), bailaor, em 1905 decidiu aprender o baile
flamenco, integrando parte do elenco do café cantante “La Marina”, do qual foi despedido por
não conhecer o compasso flamenco. Daí foi a Santander, Bilbao, onde conheceu, no “Café de
las Columnas”, a Antonio el de Bilbao, que lhe ensinou os segredos do compasso flamenco.
Reintegrou-se, assim, ao circuito dos Cafés Cantantes de Madri. Em 1920 ganhou um
Concurso Internacional de dança organizado pelo teatro da Comedia, o que lhe permitiu
instalar-se definitivamente em Paris. Em 1924, abriu sua academia, ampliando seu repertório.
Interpretou também obras de Falla, Turina, Albéniz e Granados. Em 1935 estreou com a sua
própria Cia em Nova York. Em 1947 publicou o livro Mi baile, iniciando uma carreira
paralela de escritor, pintor e conferencista. Seguiu, ao mesmo tempo, uma carreira
internacional e gravou alguns discos como cantaor. Em 1980 morreu em Barcelona aos 91
anos. Antonio Gades, Barón, Galván e Marín se reconheceram como seus discípulos. (ibid.,
2014, p. 11-12).
Encarnación López Júlvez, “La Argentinita” (1897-1945) (Figura 43), já em 1905
começou a sua carreira aos oito anos de idade no Teatro Circo de San Sebástian. Em 1909
atuou em Madri. Em 1914 participou do programa del Romea com um espetáculo em que
cantou, recitou e bailou. Em 1920 vestiu o papel de atriz. Em 1927 fundou a Cia de baile
Andaluz (ibid., p. 11). Antonio Ruiz Soler, por sua vez, em 1927 ingressou na Academia de
Realito. Em 1937 iniciou um grande touseu pela América e depois fez filmes em Hollywood.
Em 1949 retomou seu tour pela Europa, Oriente Médio e Norte da África. Em 1980 tornou-se
diretor artístico do Balé Nacional (ibid., p. 15). Já Antonio Montoya Flores – “El Farruco”
(Figura 44), no início da guerra, teve seu pai fuzilado e sua mãe encarcerada. A família, com a
sua mãe, conseguiu escapar em 1938 para Sevilla. Ele iniciou sua carreira em 1943 no Teatro
San Fernando, depois nos tablaos. Em 1962 participou como convidado do concurso de
Córdoba. Em 1965 ingressou na Cia de José Greco. Em 1970 ganhou o prêmio Nacional de
Baile Flamenco de la Cátedra de Flamencologia. Entre 1982-1984 participou da Bienal de
Sevilha, realizando também tours internacionais. Em 1991 recebeu o Compás del Cante de la
Fundación Cruzcampo. (ibid., p. 15)
64
Ainda há muitos outros como Juan Manuel Fernández Montoya (Figura 45),
Farruquito (1982), da lendária dinastia “Los Farruco” é considerado como um dos maiores
representantes do flamenco atual. Filho do cantor El Moreno, da bailaora La Farruca e neto
de El Farruco. Farruquito fez sua estréia nos palcos da Broadway aos cinco anos, estrelou no
filme de Carlos Saura, Flamenco, aos doze anos, e estava dirigindo seus próprios shows por
quinze anos. O também famoso Antonio Esteve Rodenas (1936-2004) – Antonio Gades, em
1952 entrou para a Cia de Pilar López. Em 1961 saiu da Cia e iniciou carreira solo
percorrendo com o seu próprio espetáculo Nova York, Itália, Londres, Paris e muitos outros
lugares. Em 1962 tornou-se o primeiro bailarino del Scala de Milán. Em 1964 apresentou a
sua própria Cia em “El Corral de La Morería”. Em 1974 filmou Bodas de Sangre. Em 1979
foi nomeado diretor do Balé Nacional. Em 1983 filmou Carmen. Em 1985, no papel de
Carmelo, filmou a nova versão do El Amor Brujo.
Mario Maya (1937) (Figura 46) iniciou sua carreira em “Las Cuevas del
Sacramonte”. Depois de quatro anos na Cia de Pilar López, formou a sua própria Cia. Sua
estadia em Nova York no final de 60, em contato com as últimas tendências da dança
contemporânea, transformou substancialmente seu conceito de baile flamenco. De volta a
Madri, montou com Carmen Mora e El Guito “El Trío Madri”. Na realidade, Maya encontrou
na marginalização dos ciganos, em sua história, por assim dizer, uma via de expressão de suas
próprias inquietudes, o que o tornou o olimpo dos criadores contemporâneos da dança
flamenca. Em 1933 recebeu o encargo do governo de criar a Cia Andaluza de Danza, fora
muitos prêmios pelo caminho (ibid., p.17). Manuela Vargas (1945) (Figura 47), por seu lado,
iniciou sua carreira nos tablaos com doze anos. Não estava satisfeita com os cenários de
tablao, sempre teve predileção e vocação teatral. Em 1963 ganhou o prêmio Internacional da
Danza com “Antologia Dramática del Flamenco”. Em 1964 participou da Feira Mundial em
Nova York, sendo a artista mais conhecida da época. Foi chamada para bailar em muitos
cenários dos Estados Unidos e participou de muitos programas televisivos. Em 1969 recebeu
o Prêmio Nacional de Baile de la Cátedra de Flamencología de Jerez de Frontera e em 1970 e
1971, o Prêmio Nacional de Teatro. (ibid., p. 18-19)
Ainda no elenco dos bailaores atuais, Israel Galván de los Reyes (1973) (Figura 48),
filho de bailaores iniciou sua carreira em tablaos ainda criança. Esteve na Cia de Mario Maya.
Teve o primeiro prêmio en La Unión, Córdoba e na Bienal de Sevilha e Prêmio Nacional de
Danza. Seus espetáculos representam a máxima vanguarda do cenário flamenco (ibid., p. 19).
Eva Yerbabuena (1970) (Figura 49) é uma das intérpretes mais importantes da atualidade.
“Impecable y casi dolorosa en las secuencias a cámara lenta. Demorándo se,
65
parando el tiempo. Porque solo quiénes capaz de hacer cinco gestos por segundo, como ella, es
capaz de pararse de esa manera. En ella vemos nuestro sentimiento íntimo que traduce con
total honestidad, con la inconsciência de quién no necesita pasar por la cabeza el corazón...
(ibid., 2014, p. 20). E assim fechamos esse ciclo de grandes nomes do flamenco com o
fenômeno atual, Rocio Molina (1984) (Figura 50), bailaora e coreógrafa que, em 2010,
juntamente com os Anjos Margarit, ganhou o Prêmio Nacional de Dança concedido pelo
Ministério da Cultura da Espanha na modalidade de interpretação entre tantos outros prêmios.
Por fim, falar hoje do flamenco é nomear alguns importantes teóricos contemporâneos, que vêm
contribuindo de forma sistemática à pesquisa e entendimento dessa arte no contexto social e
cultural. Félix Grande (Figura 51) e José Caballero Bonald (Figura 52) escreveram muito na
época do governo de Franco. Eram autores, assumidamente de esquerda, que gostavam de
escrever sobre o flamenco marginalizado, como metáfora política. Depois da morte de Franco,
pararam de escrever.
Neste momento, as notícias sobre as novas danças flamencas surgiram sob o olhar
dos pesquisadores José Luis Ortiz Nuevo (Figura 53) e Faustino Nuñez (Figura 54). “Los
primeros datos que encontramos en la prensa de la época referidos a las nuevas danzas
flamencas se lo debemos a los investigadores José Luis Ortiz Nuevo y Faustino Núñez” (ibid.,
2014, p. 5). Aqui, referiam-se mais propriamente ao tango e à soléa. O tango aparece
primeiramente como “tango de negros” ou “tango americano”. Assim, podemos dizer que é
uma dança e cante de origem negra e habanero, que chega à Espanha no final do século
XVIII e que se tornará o que passamos a conhecer por flamenco na metade do século
seguinte. O famoso cantor de jerez Curro Durse, em 1867, foi o primeiro a cantar e bailar a
forma flamenca no teatro Principal da sua cidade natal. Faustino Nuñez, assim como Juan
Vergillos (Figura 55), têm um blog no qual atualizam as notícias do flamenco. Dois outros
grandes pesquisadores são José Luiz Ortiz Nuevo e José Manoel Gamboa (Figura 56) com o
seu emblemático livro sobre a história do flamenco. Neste livro, podemos também encontrar,
ali disseminada, a visão de Juan Vergillos. Esses autores trabalham com artigos da imprensa,
hoje bastante acessíveis.
História, a história oral e outros procedimentos similares, passaram a ser legitimados também
como formas de acesso à memória ainda viva (BURKE (org.), 1991). Valendo-nos desse
paradigma, hoje largamente aceito na historiografia, recolhemos depoimentos e relatos de
bailaores(as) que, ao que tudo indica, podem enriquecer a nossa visão sobre como poderia ser
feita uma história viva do flamenco. No que se segue, apresentamos apenas alguns
sinalizadores acerca da maneira como tal construção poderia se dar. Ao mesmo tempo, é
preciso dizer que conduzimos tendenciosamente nossa questão para receber dos entrevistados
pistas sobre a maneira como incorporam e sentem o duende. Afinal, do flamenco, o que nos
interessa aqui é o duende em ato. Os relatos são internacionais e nacionais. Os internacionais
foram colhidos em um autor que se antecipou a nós (MORA, 2008). Quanto aos nacionais,
dada a proximidade, foram realizados por meio de entrevistas e relatos, em especial com o
grupo da Ofs (Oficina Flamenkera) do qual sou parte integrante, sob a direção de Cylla
Alonso e Gabriel Soto. Os relatos se tornaram imprescindíveis à pesquisa por dois motivos.
Primeiro porque deslocaram a pesquisadora de uma visão apenas subjetiva e, segundo, porque
tornaram o impalpável, o irrepresentável, o inefável do duende algo passível de ser abordado,
e, acima de tudo, sobre o qual é possível até mesmo escrever uma tese.
A pergunta feita aos intérpretes nacionais versou sobre o que os aproximava e os
afastava de uma sensação prazerosa em cena e o que entendiam ou sentiam como uma
qualidade própria do duende. Foi uma tentativa de capturar o duende no discurso daqueles que
muito provavelmente passam por essa experiência. Após os relatos, seguiremos para a
transcrição de uma entrevista, realizada ao final de 2015, com a maestra Cylla Alonso,
idealizadora e fundadora do Método Coreológico Flamenco, sob o qual, como bailaora, esta
pesquisadora veio se aperfeiçoando há dois anos. Ora, falar, estudar e trabalhar diariamente
através do método é, de alguma maneira, poder a-vistar o duende, numa metáfora que vai se
conciliando à vida, uma vez que as ferramentas dispostas por esse método tendem a
disponibilizar a entrada do intérprete em cena. Para começar, seguem depoimentos de
bailaores(as) sobre o enigma do duende tal como fala no corpo, e que, nesta tese, se está em
busca de decifrar.
Yo soy más seguro que Manuel Torre, aunque no tengo aqui aquel pellizco. Con
él se tiraba el señorito por la ventana. Hice vários discos com el Niño Ricardo y me dijo que
en seguridad no había comparación. Puede tener noches malas. A veces le gustan mucho a la
gente. Yo no me gusto y al público le encanta. Eso será porque tu no te hás oído. Es muy
difícil de entender. Um mistério. Tú no te gustas y el publico goza: eso es el duende. (EL
CHOCOLATE, 2008, p. 96)
67
Pero eso hay que elegir siempre el camino de la libertad. No hay que tener miedo
al flamenco. Hay que arriesgar. (SARA BARAS, 2008, p. 213)
Hoy es todo má difícil y subirte al escenario te asusta más: hay que ofrecer
mucho más que antes a la gente, dar algo que tenga interes...El duende sin un buen sonido no
viene. Hay que poner las condiciones para que salga. Si estás calentito en el teatro, cantas
mejor. El duende no sale a bajo cero. (CARMEN LINARES, 2008, p. 111)
Calor, frio, ao mesmo tempo, sobem pela espinha. As vísceras, muito vivas,
remexem, se comunicam diretamente com a garganta. Um nó. Por vezes um aperto, quase um
vazio... na primeira entrada do meu solo, quentura e adrenalina. Um turbilhão caótico vai
ganhando sentido quando começa a salida de cante. Parece que os ancestrais vêm num
cortejo, comigo, enquanto subo no tablado, e isso invade o corpo, preenchendo-o de muitas
vozes e dizeres, pra além do meu, pra além de mim. O trabalho, o canto, a criação, os ritos,
Estamira, cavalo marinho, maracatu rural, muitos universos entram comigo naquele lugar e
parecem dar sentido pra sequência de movimentos que vou executando, sem saber
exatamente quando, porque preciso acompanhar o cante, que não sei como vai seguir... uma
piscina imensa, um corpo à deriva, que não afunda. Dança. Muitos universos, muitos
contextos, um corpo a costurá-los à sua maneira. Na segunda entrada do solo, sou a última a
bailar. Instantes antes de entrar, um vazio, aterrador. Começa a salida, algo invade, vem o
choro, os ancestrais retornam, os universos, os dizeres, os trabalhadores, os ritos... de novo
me jogo nesse mar, sem saber exatamente como nadar, mas, algo em mim sabe. Algo em mim
conhece o caminho. Preenchida, alimentada e fisicamente exausta, durmo. (CAROLINA
MOYA, 2016, integrante da Ofs, Azougue-Laboratório de Experimentação Cênica e Núcleo
Manjarra)
A cena dependerá muito dos pares que estarão comigo e o palo (ritmo) que
bailarei. A história que quero contar. Uma sensação de plenitude, do aqui e agora e não
haverá outro momento na minha vida que eu desfrute tanto, quando estou dançando.
Enquanto danço estou totalmente ali e era exatamente isso que queria estar fazendo. Ainda
não sei o que é mais prazeroso, se quando estou me apresentando ou aprendendo. Gosto de
fazer aula em grupo. Na aula particular o improviso é mais custoso, ao passo que, na cena,
me vem mais natural. O movimento me conecta muito comigo, me joga mais em mim, e isso é
muito prazeroso. Em cena estou muito concentrada. (CAMILA MONTE, 2016, integrante da
Ofs)
Eu posso estar plena em cena desde que eu me aceite, não os outros, eu para mim
mesma, me aceitando naquele momento. Eu entro com uma linha atrás do buraquinho da
agulha. Eu preciso passar a linha neste buraquinho. Para isso, preciso de um foco, uma
atenção delicada. Se eu sei o que é o duende, eu diria que é o momento depois desse.
Momento em que tudo e todos estão juntos, alinhavados com um mesmo propósito. Você não
sente que a música é uma coisa, o cante é outra e você e os seus passos outras. E qualquer
coisa que você faça, por mais simples, quando se está junto, vai ser muito bom. Eu sou levada
por todos e todos são levados por mim. É um corpo perfeito para o momento, que vai bailar
ali a guitarra, o compás, o cante, a união. E aí você diz, isso aqui foi muito especial.
No entanto, se eu perder esse foco, nada mais vai acontecer, nem o passo
ensaiado vai sair. E não tem pensamento nessa hora. Não tem uma coisa prévia. É uma coisa
que acontece e você age, e isso não tem nada a ver com o controle.
Eu não desisto da cena e sempre retorno para poder existir em outro lugar. Eu
vou visitar outra pessoa que sou eu mesma, mas uma visita necessária para que aquela da
vigília consiga sobreviver. Eu venho com a ideia da conexão, mas deixo ela solta, se eu
pensar nela, não haverá nada na cena, porque isso vem do ineditismo. Você chega e acontece
ou não. Se eu trabalhar o foco da linha que eu imagino na hora é um baile suficiente. Sem a
69
conexão com todos, não há flamenco e nem a possibilidade duende. Sem uma das pessoas ali,
não acontece. Se o pensamento atravessar esse momento, nada de interessante acontecerá.
Precisa ter muita coragem. Porque na realidade se trata de uma experimentação. Para ir
buscando esse momento você vai experimentando. Você vai se jogando. Você vai fazer coisas
que não sairão legal. Tem momentos que você acha que vai e não vai. Eu fui sozinha e
ninguém foi comigo e, aí sim, é a sensação de queda no precipício. E isso vai muito da
generosidade, se cada um estiver pensando no seu, não acontece. Nessa união se faz olhar de
acolhimento. E cada vez é uma vez. Mas, se você vai para dar aquilo tudo o que tem, vira
show de aprovação, onde você só vai mostrando aquilo que sabe fazer. E as pessoas vão sair
com a sensação de que foi bonito. Assim, podemos pensar em camadas.
A primeira camada é a da beleza, da ilusão, do quadro. E na medida em que
vamos nos aprofundando, entramos numa camada mais profunda/instintiva. De poder estar
ali em cena para resolver uma questão sua que faça um eco e toque a outra pessoa. Tocar o
público é fazê-lo se ver ali, é a representação dos sentimentos dele, é da vida, do ser humano
que colocamos ali. Você consegue comunicar sem querer comunicar. Se você quiser
comunicar, já acabou. Se a pessoa entrar em cena querendo comunicar, não irá, pois ela já
partirá do pressuposto racional. Entrar sem estar é entrar com o que você acredita que as
pessoas estão esperando de você. Não é você. É você com outros ideais. Quando você entra
no preciso fazer, você não entra, porque te falta coragem de ser. Vamos criando uma bolha,
que começa pequena e vai aumentando. E quando estou no meio da cena e sei que não fisguei
todo mundo, também se abrem possibilidades. A sensação do já perdi tudo. Correr em
direção ao precipício ou correr no sentido contrário. Poder entrar em contato ou evitá-lo. É
uma escolha de estar sujeito na cena. Ter coragem de ser você com todas as suas mazelas. Se
perder, como na vida. Você pode montar a sua casa preconcebida com manual sem ter nada
de você nela. Isso não me satisfaz. Eu prefiro ver algo que não foi bem feito, estava feio, mas
eu estava lá, inteira, isso me traz completude, mas sempre na busca de melhorar
tecnicamente. (MONITA RUEDAS, 2016, Família Ruedas, de São Paulo)
Quando o artista em cena está com a sensibilidade tão aguçada, que pode até
ouvir a respiração do bailarino e perceber o instante exato em que aquele movimento de
corpo irá acontecer, podendo antever o seguinte movimento e acompanhá-lo com a melodia
precisa dentro de uma história rítmica que ganha todo o sentido a partir dessa união, tão
amarrada que corpo, movimento, harmonia, melodia e ritmo se convertem em um só, juntos
ou simplesmente se complementando. Quando o conhecimento e a técnica se diluem em um
fluir constante a serviço da arte, e o tempo deixa de existir. Ele simplesmente é, e acontece
em passado, presente e futuro, ganhando o sentido único de SER e ESTAR. Não existe fim,
nem objetivo, apenas o meio de se chegar a um estado que, quando se alcança, você desejaria
apenas não ter alcançado, pois não quer que acabe, nem que o aplauso chegue. Quando o
risco do erro te impele ao acerto, pois não há alternativa, a não ser a de converter aquele
sapateado, aquela linha percorrida pela voz do cantaor, pelos braços do bailarino em algo
audível, em combinações sonoras que se complementam e contam uma história. Quando o
imprevisível te leva a lugares nunca antes imaginados, e a emoção do momento te leva a
regiões nunca antes exploradas. Quando nada mais importa, a não ser aquele momento único
e irrepetível, ao mesmo tempo tão contraditoriamente condenado à efemeridade de sua
70
natureza quanto à eternidade de seu efeito. Quando a criação se torna uma constante
imparável e condição sine qua non para o sentimento de realização plena em cena, livre de
travas de qualquer tipo. Quando você simplesmente deixa de existir, e a única coisa que
existe é o momento. Isso é o duende.
Já o duende não acontece quando não há entrega, quando não há diálogo,
quando a técnica se sobrepõe à arte em vez de estar a serviço dela, tornando-se tão fria como
o metal. Quando o ego do artista se sobrepõe aos demais, quando a ausência de domínio ou
de conhecimento provoca o desconforto do não saber como fazer, quando o suor não vem do
esforço, mas, sim do nervosismo, quando não há controle das ferramentas, quando não há o
que dizer em cena, mas apenas a execução de uma letra, de uma melodia, percussão ou
movimento. Então não há duende. (GABRIEL SOTO, 2016, guitarrista e diretor musical da
Ofs)
Llevo desde niño practicando todos los días una media de 14 horas y a eso, en mi
tierra, le llaman duende. (PACO DE LUCIA)
71
estava ali estudando outra coisa, observava que isso, que estava notando, já tinha
sido notado em outro momento. Nas minhas aulas, fui sentindo necessidade de
organizar o meu pensamento para poder ensinar. Para que, no momento em que
quisesse introduzir uma outra visão sobre aquele passo, pudesse fazer isso. Assim,
não se poderia jogar tudo ao mesmo tempo, portanto, fui caminhando por
prioridades. E, na realidade, cada aluno vai ensinando, de alguma forma, a passar
essa mesma informação de outra maneira. Até que você consegue um método
científico em si, a partir do ensaio e erro. Você passa a informação de uma
maneira, vê que isso não gerou resultado, então tem que arrumar uma solução,
mudar a fórmula, e aí vai chegando a certas respostas que podem ser mutáveis e
sempre melhoradas.
didática de ensino. “Então, chegou um momento em que, de fato, comecei a desenvolver uma
linha de raciocínio que me parecia interessante. Nunca foi com qualquer intenção que não
fosse aquela de conseguir enxergar como pensava, o que conseguia ver e ir agregando
informações”. De fato, o flamenco contém muita informação corporal o tempo inteiro.
A partir de então, Cylla começou a criar um sistema gráfico, uma coreologia
flamenca que não tem nada a ver com outros sistemas coreológicos, embora o princípio seja o
mesmo. Foi uma maneira de colocar no papel aquilo que “você faz para enxergar a quantidade
de possibilidades feitas com o corpo, fora a questão da partitura. E o flamenco sempre teve
um empecilho que é, ao mesmo tempo, o grande barato, a questão da percussão”. Então, diz
Cylla, “eu teria que ser um músico e um bailarino, senão como iria colocar tudo no papel”.
Qual o caminho para criar o sistema gráfico? Os sistemas de movimento partiram do
pensamento e análise de cada movimento, “como faço isso, como faço aquilo, em uma busca
interna e muito paciente das reações do corpo”.
Foi, então, estudar os métodos didáticos que existem para o ensino da música,
pois, querendo ou não, são as referências que se tem no campo da percussão. Nisso se apoiou
inicialmente, mas, ainda assim, não fazia sentido. Fazia sentido no musical, mas ela não
conseguia enxergar como aquilo poderia ajudar na representação gráfica. Aí foi para o papel
com base nas definições musicais, contudo, muito mais para a parte filosófica da música do
que qualquer outra coisa. Assim, buscou uma maneira de pensar o flamenco dentro dessa
teoria, embora não fosse possível pensá-lo da mesma maneira que um músico e um bailarino,
até porque, “trabalhamos com música ao vivo, com regras. Bom, e aí fui desenvolvendo o que
se transformaria em um método”.
A partir de uma planta (metatarso apoiado no chão) foi surgindo a necessidade de
saber como o corpo funciona, do que o machucava ou não, o que ficava mais fácil e mais
difícil, enfim, uma sequência de testes. Por conta disso, foi buscar livros de anatomia, para
investigar por que a perna sai de tal lugar, porque o equilíbrio é melhor naquele ponto. Tudo
isso numa pesquisa inicial com o seu próprio corpo. Ela não foi estudar a anatomia humana,
mas a anatomia daquele processo específico de funcionamento no corpo.
A questão da percussão seguiu por igual caminho. Deveria haver critério nesse
aspecto. Se era possível a comunicação com as pessoas, o que promoveria isso? Foi, assim,
buscar os métodos que existiam de música, na partitura. Alguns fatores que funcionavam para
o corpo, não funcionavam para a percussão dos pés, outras, por sua vez, funcionavam para a
percussão e não funcionavam para o corpo. Então, foi dissociando. Uma vez que o bailarino
tem que ter consciência musical, consciência de ciclo, saber onde está a pulsação do ritmo,
73
então, foi buscar esses aspectos naquilo que já estava escrito. Outros autores já haviam
formalizado a vida desses elementos. Leu vários livros. Suas primeiras formulações, entre
2002-2004, foram anotadas e constam de um material de cem páginas escritas à mão. O início
da sistematização, que segue abaixo de maneira sintetizada, permite compreendermos o
esboço da criação do método:
1. Revisão Postural
2. Isolamento mecânico das mãos
3. Estudo da linha dos braços
4. Conjunção dos braços e das mãos
5. Projeção corporal na marcação
6. Linhas de projeção corporal
7. Palmas: estudo preliminar
8. Teoria rítmica
9. Aplicação da teoria rítmica no sapateado
10. Precisão mecânica do sapateado: divisão do tempo no processo mecânico
11. Introdução das palmas de base na mecânica com divisão rítmica
12. Estudo do compasso simples
13. Simetria
14. Estudo do compasso composto
15. Divisões e palmas no compasso composto
16. Introdução às escobillas
17. Estudo do deslocamento espacial e corporal
18. Pulsações rítmicas no movimento
19. Associação mecânica do braço com o sapateado
20. Dimensões do movimento nos passeos e escobillas
21. Braço e sapateado
22. Fragmentação corporal
23. Diferenciação dos palos (ritmos) com relação à divisão rítmica
24. Relação entre o acento da mecânica e o acento da divisão na criação do
acento do pulso
O material é enorme e, para cada item acima, existem subdivisões nas quais não
entraremos, pois elas nos levariam longe demais do escopo deste tópico que aqui comparece
74
como indicador do papel desempenhado pelo agenciamento desse método que muito
contribuiu para a experiência da cena vivida pela pesquisadora na qualidade de bailaora. O
que vale a pena colocar em relevo é que o método seguiu para a definição do tempo e seu
papel nesse tipo específico de bailado. “Aí, vi que não sabia o que era o tempo. Trabalho com
ele e não sei dele”. Estudou, então, sua definição, mas quando o levou para o papel, já não era
aquele tempo do músico, do percussionista. “Precisava responder as minhas perguntas
flamencas e não as perguntas do universo da dança em geral”. Dentro do significado do que é
tempo, começou a enxergar o que a nota fazia dentro dele. Provavelmente, de uma maneira
completamente diferente daquela de um músico que toca um instrumento harmônico ou que
toca um instrumento melódico ou um instrumento percussivo que tem duração. Quer dizer,
são diferentes definições de tempo, por que? “Se estou fazendo o meu tempo, ele não dura e a
consciência passa a ser outra”.
Por isso, passou a fazer a grafia com barras e bolinhas. Achou que com bolinhas
ficasse mais fácil de enxergar. Isso permitiu não somente ao seu corpo comunicar e entender
musicalmente, percussivamente o que se dá em qualquer universo, inclusive fora do flamenco,
o que lhe possibilitou falar de música com pessoas que não fazem flamenco, mas sim, música.
A troca ficaria mais fácil. E daí o sistema gráfico foi nascendo. Era necessário anotar os
timbres que se dão como consequência do sapateado. Uma planta não poderia ser igual a um
taco (parte do salto no chão), pois dificultaria a leitura por não se saber qual a mecânica que
estaria sendo usada. Assim, criou notações, desenvolvendo ciclos, aprendendo na medida
mesma em que se vai lendo a grafia. Com isso, percebeu que havia padrões cuja realização,
muitas vezes, não é percebida pelo ouvido atento à execução e que o papel tornava mais
perceptível.
O método tem a vantagem de ser para todos, visto que, para cada aluno fica mais
fácil ou mais difícil entender cada coisa de uma maneira diferente. Agregam-se várias
informações sobre a mesma coisa para que todos possam entender e aumentar suas memórias.
A memória tem camadas, no método, estipulam-se seis. Assim, na medida em que são
repetidas, todos aprendem. Quem aprende melhor pelo som, vai aprender cantando, quem
aprender melhor pela contagem, aprende graficamente.
Na Ofs, seu trabalho se estrutura em um tripé: professora, coreógrafa e diretora,
todas essas funções executadas com base no método desenvolvido ao longo dos anos. Para
ela, as qualidades de um bailaor(a) revelam a maneira como ele (a) se comunica em cena com
naturalidade para não resvalar em uma caricatura. Não ser o que o outro quer ver, senão ser
ele(a) próprio(a). Obviamente, ritmo, técnica e todos os outros quesitos fazem parte da
75
vou pensar num sentido para isso”. Mas não existe um processo pré-determinado, ele
dependerá do dia, do momento.
Ainda para ela, falar de flamenco puro, tema polêmico no meio, seria o mesmo
que permitir uma ausência de reação ao ambiente. O flamenco nasce de uma reação. Mas, se
estamos no Brasil, o nosso corpo reagirá de maneira diferente, o tipo de movimento que
estamos acostumados a produzir é diferente, a vida que levamos é diferente, então, o corpo
não dançará da mesma forma. Mesmo assim, porque não pode ser flamenco ou por que não se
pode reler o flamenco em outras fontes? Em que sentido isso não é puro? “Ora, se flamenco é
uma linguagem, enquanto não buscarmos o movimento em nós, até a cópia será malfeita. A
questão é não ter medo de se colocar dentro do flamenco. Não ter medo do olhar do outro”.
Ao dançar flamenco no Brasil, automaticamente, nos colocam numa outra
cidadania. Na Espanha, para que o flamenco chegue nas pessoas ou não, dependerá da
linguagem. Primeiro você se expressa e depois as pessoas vão decidir se você fala flamenco
ou não, não importando da onde você venha. Ninguém pergunta primeiro de onde você veio.
As pessoas primeiro veem você. Aqui, tem-se um certo temor ao olhar do outro. Nos grupos
flamencos da Espanha, existe sim um caráter mais plástico. Trabalhando sete anos em Madri,
Cylla se tornou a auxiliar do Javier Latorre. Quem consome rápido e executa rápido é uma
pessoa apta a trabalhar como intérprete. Grandes talentos conseguem copiar, então trazer para
si, transportar o movimento do outro para o seu corpo sem cópia, dando uma personalidade
diferente àquele movimento. Normalmente são os solistas. Mas não estamos aqui falando
somente do mundo profissional que é minoria frente à maioria esmagadora do mundo amador.
O diretor é capaz de ver o todo, capaz de ir trabalhando o que é mais cênico, dirigindo pessoas
ou grupos, ele não precisa ser um coreógrafo e, tampouco, um bom bailarino, mas pode ser
um bom diretor.
Assim, o diferencial do trabalho da Cylla Alonso está na construção. Construir a
linguagem. Quando a linguagem está construída e a pessoa começa a conseguir se expressar
através dela, não decorando uma frase, senão expressando o que ela realmente quer, formando
sentenças de alguma maneira, então se chega ao que ela é, e, aí sim, se começa a trabalhar
com interpretação. Cylla e Gabriel desenvolvem um trabalho de grupo. Cylla precisava de
uma guitarra. Ele já havia tocado em algumas aulas antes. Foi ver o trabalho de grupo, gostou
e há anos estão juntos. Não somente em espetáculo, mas na parte didática também. Coisas que
foram construindo juntos, ao buscar uma maneira funcional para que Gabriel fosse o segundo
professor dentro da sala de aula, e não um instrumento musical que ficasse repetindo sem
parar. É necessário que as pessoas percam o medo da música ao vivo e aprendam a conversar
77
com o guitarrista. A insegurança com a música ao vivo se dá porque nunca estamos com ela.
Diz ela, “tinha acesso a guitarristas e cantaores quando comecei, de 2 a 3 guitarras. De
repente, o CD passou a ser barato e o músico foi retirado do cenário”. Entretanto, se ele está
ali apenas durante o espetáculo, o diálogo não acontece. Afinal, no CD a música não é
gravada para se ter um diálogo, mas gravada para ser música, para se escutar.
Na visão de Cylla, um dos problemas do flamenco no Brasil está relacionado à
rítmica e à linguagem. Não é um problema apenas no flamenco, mas ressalta mais no
flamenco, porque aqui o (a) bailaor(a) é um(a) percussionista exercendo duas funções. “Mas
julgo esse um problema do quadro da dança no sentido geral. Aprendemos que bailarino é
intérprete. O bailarino bom é aquele que vai e tem uma predisposição corporal, copia e
executa rápido”. Então, se o aluno tem qualquer tipo de dificuldade, isso não é observado,
visto que o caminho seguirá sendo o de copiar e ir adiante. “Não considero o quadro de ensino
hábil o suficiente para que se possa aprender a suprir os problemas, aprender a desenvolver
caminhos para que o(a) aprendiz possa seguir e, principalmente, para que aprenda sobre
aquilo que está dançando, sobre o seu corpo, e não simplesmente passos, a emenda de um
passo no outro num tempo x. “Porque se mudar esse passo de lugar no tempo, já não será o
mesmo passo”. Então, esse contexto não é trabalhado didaticamente. A didática está baseada
na execução. O professor tem que saber achar caminhos, a sua função é fazer com que
qualquer pessoa seja capaz de dançar melhor.
Em suas aulas na Espanha, Cylla percebeu que a necessidade lá é completamente
diferente da nossa aqui. O ouvido é diferente porque a cultura é diferente. O que se ouve, o
que se consome enquanto estímulo é diferente. Mas não existe uma pré-disposição maior. O
que existe é um ambiente flamenco, coisa que aqui não existe, pois não há locais onde se
possa ir para ouvir flamenco. Lá, as famílias, querendo ou não, podem não cantar
profissionalmente, mas cantarolam coisas, ou seja, o feedback da música espanhola está
inserido no universo do flamenco. Para eles é, portanto, mais visceral. E para nós? É algo
como uma anomalia no sistema? Ora, o flamenco não é um corpo estranho, ele é rebuscado,
mas não está fora do sistema. Ele pode ser comparado a qualquer estilo de música e dança,
porque tem regras como qualquer outra. Assim, nada impede que, em um processo de
transposição, ou melhor, tradução cultural, se possa encontrar uma verdade do flamenco em
terras brasileiras, à la brasileira.
78
Figura 17 Figura 18
Figura 19
Figura 23 Figura 24
80
Figura 28 Figura 29
Sem o calor do grupo. A estrada é só. É sem ti, na literalidade da palavra. É sem
o outro como sombra. Só. Na solidão, o corpo -- nu. Despojado, desnudado, pode falar por
si. Não sei se tem o que falar. Mas pode falar. Ele tem que dizer, ali, onde posso estar sem o
outro, mas com o outro. O outro como composição, não como fusão. E aí, esse calor se
resfria. Dou-me conta de que o trajeto é meu. Com todas as consequências e riscos que ele
tenha. No momento, não consigo pensá-lo como algo bom. Apenas como uma travessia, --
que travessia! Quando lia sobre a travessia na teoria psicanalítica, parecia algo distante da
minha realidade. A verdadeira travessia é visceral. Deixa marcas, desfaz e refaz. Basta saber
de que lugar vamos partir. O corpo precisa dessa marca. Lugar em que se trilha um caminho
que se perfaz só. Na solidão, a narrativa se constrói. Da solidão, uma possibilidade, mas
também o medo. Tão vulneravelmente inquieta. Radicada no outro, pelo outro. Caminho que
me parece mais contundente. Ali onde o corpo busca, tento entregar-me. Aqui na escrita, me
recomponho, leitor. Mas, em cena, tento tirar cada peça da roupa, tendo que admitir o olhar
do outro, como o que ainda me determina. Há que se des-dizer nesse olhar.
Se danço não escrevo. Num momento em que escolho dançar a dança, a escrita
emperra. Se me proponho a fazer um dos dois..., em algum lugar, a falta se apresentará.
Nesse momento, com toda a frustração que isso me causa, abandono a escrita. Recupero-a,
cansada, quando sento e, aqui, em frente ao computador me disciplino a ficar horas..., e a
dança se recolhe. Quero dançar a dança, repito. Mas há que se falar sobre ela. Justamente
quando pensei que o doutorado fosse me trazer a distância necessária para desabrochar a
escrita, meu corpo grita e meu pensamento para. Leio, sem nunca abandonar os romances,
que me abastecem no caminho e suavizam a ansiedade corporal. A escrita pede disciplina,
junto com o corpo que só dança na disciplina do imperativo do corpo dançado. Nem antes,
nem depois. O momento. Para ser uma bailaora, há que bailar, praticar..., romper. Para
escrever, há que se sentar em frente ao computador e, sem subterfúgios, disciplinar. Duas
disciplinas que me pedem tanto, e de tanto pedirem, tão pouco dou. E assim vou me
esforçando a fazer..., sem que uma ou outra me dissipe no processo. Há sim que se tomar
uma
certa distância para deixar-se reagir. Colados não produzimos. Ficamos novamente presos
no desejo do inacessível desejo do outro.
Nesse momento, só danço a dança do temor, com medo, mas sem deixar margem
às resistências. É no medo que me aventuro. Que bato e volto. Que bato e vou. Que bato e
choro, mas vou. Não um duende edulcorado, na traição a Lorca, mas um duende que te
arranca as vísceras.
Sinto-me tão solitariamente misturada que não sei a quem posso dar entrega. No
calor e inquietude do outro, me recolho. O outro que me fez crer olhar por mim, quando, na
realidade, quem olhava por mim era o seu desejo que me prendia às suas escolhas. Que
ingrata escolha. Me faz escolher o que, da escolha, nada sei dizer. Isso é agônico.
CAPÍTULO 3
EL DUENDE: O FIO CONDUTOR
Así podemos concluir que el término de duende tiene un origen jergal como muchas
otras palavras, y es de uso cotidiano en el campo del arte flamenco, pero lo que
cabe destacar es lo que representa, pues por un lado condensa la manera que tiene
una cultura de entender un hecho vivenciado y por outro lado describe un estado de
creácion extraordinário que podemos encontrar en diversas expresiones artísticas
en el mundo. En sus orígenes encontramos principalmente três relaciones
semânticas, la primera la del artista o ejecutante, que es el que dirige la acción, que
es un mediador, es un iniciado, un maestro, es un puente comunicativo. La segunda,
la de un espíritu, mistério, una fuerza exterior, un ente extraordinário y vinculado a
la naturaleza. Ya la tercera la de lo originário, lo arcaico, la herencia, la sangre, la
tradición. (MONTAÑO, ibid., p. 24)
88
Ainda segundo o autor (ibid., p. 36, 53), pode-se observar uma estreita relação do
duende com a morte, já que a morte é um sentimento nutrido por uma experiência extrema. A
verdadeira vulnerabilidade encontra-se aí, na borda do abismo onde o rasgo faz vislumbrar o
real, justo no sentido de radicalidade que a psicanálise dá a esse termo, conforme será
devidamente explicitado nos capítulos à frente. Se o artista não experimenta uma situação
limite, não pode chegar ao fundo, de onde emerge a vulnerabilidade necessária para que o
duende apareça, ali, onde a verdade da morte se escancara, sumindo no estado mais profundo
do ser, e, poeticamente falando, desnudando-se.
Detrás del Lorca simbolista, surrealista o ne o popular hay algo más, están la
genialidad y la singularidad de un creador difícil de etiquetar con el rótulo de turno
para disipar el vértigo y el asombro que su voz nos sigue produciendo. Hay en él
una nueva concepción del arte y de la creación artística, tan importante como
ignorada, que no se encuentra desarollada sistematicamente en forma de tratado o
ensayo, sino condensada y resumida, como un pensamiento destilado, en la más
extraordinária de sus conferencias, la que lleva por título “Juego y teoria del
duende”. (ibid., 2011, p. 1)
Este texto, para Lorca, é “una sencilla lección sobre el espíritu oculto de la
dolorida España”, e foi pronunciado pela primeira vez no dia 20 de outubro de 1933 na
Sociedade de Amigos da Arte de Buenos Aires. Nascido em 5 de junho de 1898, no vilarejo
de Fuente Vaqueros, Província de Granada, Andaluzia, Lorca foi músico, dramaturgo e
desenhista. Segundo Hernández (ibid., p. 2), essa conferência carrega uma das mais profundas
reflexões sobre a criação artística, ao pretender manifestar uma peculiar contribuição do
espírito espanhol à cultura universal. “El escrito de García Lorca no es una meditación al uso
sobre el arte, sino que, como su título indica, es teoría y juego al mismo tiempo, síntesis del
concepto de metáfora, de precisión e imaginación, y está lleno de intuición es aún
no
90
superadas sobre la esencia del arte español y sobre el origen de su emoción estética más
profunda”.
De fato, Lorca realiza aí um exercício prodigioso de metamorfoses, a partir da
linguagem popular, flamenco e taurino, a palavra “duende” se vê transformada em uma nova
categoria estética, em uma nova visão da gênese da arte. “La gran virtud de esa conferencia
está no solo en querer desentrañar e iluminar lo esencial de un arte tan español como el
Flamenco, sino, sobre todo, en partir de la raiz del Flamenco para establecer desde ahí la
sustância última de todo arte”. (ibid.)
“Juego y teoria del duende” é um escrito revolucionário em muitos sentidos.
Lorca denuncia sem alardes, com uma naturalidade incrível, o classicismo e o menosprezo
que se ocultam por trás da velha distinção entre a arte culta e a arte popular. Recorre, ao falar
das pessoas, e não das grandes teorias estéticas, à invenção de uma nova concepção do
artístico.
“Juego y teoria del duende” é também uma prodigiosa indagação poética sobre a
gênese da emoção na arte. Lorca situa no interior do artista a origem dessa emoção. Ele
compara duas velhas metáforas de inspiração artística, a do anjo e a da musa, com uma nova
metáfora, a do duende. O anjo, segundo Lorca, causa deslumbramento, voa sobre a cabeça do
homem, derrama sua graça, e o homem, sem nenhum esforço, realiza a sua obra. A musa dita,
e em algumas ocasiões, surpreende. Ambos, anjo e musa vêm de fora, os anjos trazem as
luzes e, a musa, as formas.
Estilo vivo, criação em ato, o duende não se repete nunca. Todas as artes, como
afirma Lorca, são capazes de duende, mas onde ele encontra mais campo é na música, na
91
dança e a na poesia falada, já que essas, de alguma maneira, clamam por um corpo vivo que
as interprete. São formas que nascem e morrem de modo perpétuo e elevam os seus contornos
sobre um exato presente. Lorca concebe a criação artística como “un trânsito del alma, un
alumbramiento interior en el que su protagonista solo oye três fuertes voces que afluyen
dentro de sí: la voz del arte, la voz del amor y la voz de la muerte”. (ibid., p. 3-4)
Através da teoria do duende, para completar, Lorca mostra uma nova relação entre
a arte e a verdade, entre a ética e a estética e um novo e surpreendente conceito da arte. Nesta
revelação, sugere-se uma filosofia trágica, uma ética da paixão, da autenticidade, da expressão
pura, da catarse, em que as expressões das emoções são um meio para o autoconhecimento,
uma concepção ritual da arte, “en la que este no tiene ya simplemente una función social, sino
una misión comunitária, pues se convierte em creador de comunidad”. Ao final de sua genial
conferência, como salienta Hernández, Lorca nos apresenta sua última e definitiva revelação:
a íntima relação que existe entre a arte e a morte. “El duende no llega si no vê posibilidad de
muerte, si no sabe que há de rodar su casa, si no tiene seguridad de que há de meceres as
ramas que todos llevamos y que no tienen, que no tendrán Consuelo”. (ibid., p. 4)
Para Lorca, a arte só pode ser entendida a partir de um sentimento mágico da
realidade e, se queremos compreender o que significa aquilo que Lorca nomeou por “espíritu
de la tierra”, temos que abandonar a concepção racionalista do mundo, que acaba por
secularizá-lo e desencantá-lo privando-o de alma e espírito, contrapondo o espírito à natureza
como se fossem ideias contrárias. Há que recuperar sua concepção mágica, a única capaz de
sentir e testemunhar a presença da anima mundi, mundo da alma ou do espírito. Estamos
acostumados a uma visão racional e dual, a pensar o espírito somente como um poder divino
que vem do céu e, desde a terra, como uma graça angelical que os deuses derramam sobre os
homens. “Hemos olvidado otro sentimiento de lo sagrado y del espírito que lo experimenta en
la naturaleza y en la tierra, que lo siente como un temblor interior, un ímpetu furioso que nos
conmociona e ilumina nuestra raíces”. (ibid., p. 5)
Para compreender melhor esse tema, Hernández segue para a música. Nela há
vozes, como por exemplo, no canto gregoriano que, por seu modo de sentir e de dizer, nos
eleva e nos transporta mais além desse mundo, invocando e despertando nossa natureza
celestial, já que somos educados para desenvolver uma técnica sublimatória das emoções.
Mas há também outras vozes, como a do flamenco, que, por ser de condição muito distinta,
mais espontânea, natural e primitiva, nos faz sentir nossa natureza terrestre, humana, “y nos
arraigan al suelo que pisamos expresando una emoción elemental y desnuda”. Ou seja,
92
Esa voz ya no es, hablando con propriedad, música; es sonido natural que se situa
en el origen sonoro, en el umbral de toda música. Es grito pánico, gemido, aullido,
bramido, estertor, refleja el terror, la angustia, el espanto de vivir en el caos y en la
negrura de la vida, pero grita desde esse caos, desde esa noche oscura del alma,
con el deseo desesperado de ser oído en alguna parte, con la acongojada esperanza
de que no sea delito el mero hecho de haber venido a este mundo. (ibid., p. 7)
Isso ocorre porque é justamente a morte que nos faz humanos, terrestres,
balançando toda a nossa segurança, obrigando-nos a cantar, pensar ou rezar a partir desse
lugar estremecido. O duende não encontra morada no conforto firme e seguro de nossa força,
tampouco nos visita quando nos sentimos amparados ou acomodados no mundo, “sustraídos
al espanto y al vértigo de la existência, sino cuando la tierra se abre de súbito bajo nuestros
pies”.
93
Tudo isso insinua uma ligação muito próxima do duende com os ritos de
passagem, conforme veremos abaixo.
Segundo Turner (1974. p. 117-132), Van Gennep (1960) já havia definido os ritos
de passagem como “ritos que acompanham toda mudança de lugar, estado, posição social de
idade”. Ele já havia indicado também que todos os ritos de passagem ou de “transição” se
caracterizam por três fases, são elas: separação, margem ou Limen que no latim significa
“limiar” ou agregação. A terceira fase é dada pela consumação da passagem.
Na primeira fase, a separação caracteriza-se por levar ao comportamento
simbólico de afastamento do indivíduo ou grupo. Durante o período limiar (intermédio), as
características do indivíduo e do ritual são ambíguas, isso porque se passa através de um
domínio cultural que tem poucos, ou quase nenhum dos atributos do passado ou do futuro. Os
atributos de liminaridade, como dito acima, são necessariamente ambíguos, porque as pessoas
escapam à rede de classificações que geralmente determinam a localização de estados e
94
posições num espaço cultural. Essas entidades não estão nem cá e nem lá, estão entre, no meio
de posições atribuídas e ordenadas pela lei, pelos costumes, convenções e cerimonial.
A liminaridade pode ser também associada à morte, do estar no útero, na
invisibilidade, na escuridão. Essas entidades liminares podem ser representadas como se nada
possuíssem, ou seja, como seres liminares não possuem status. Em tais ritos, observa-se “um
momento situado dentro e fora do tempo”, dentro e fora da estrutura social profana, que
revela, embora efemeramente, certo reconhecimento. Ora, a liminaridade implica que “o alto
não poderia ser alto sem que o baixo existisse, e quem está no alto deve experimentar o que
significa embaixo”. (ibid., p. 119)
Segundo Silva (2004, p. 2), Turner, entre outros autores, fala de rituais de
passagem como um ritual de distanciamento do indivíduo da sua estrutura social e, depois, um
retorno, com novo status. A liminaridade, ou fase liminar, pode ser tida como a fase
intermediária entre o distanciamento e a reaproximação em que as características do indivíduo
que está “transitando” são ambíguas, misturando, por exemplo, sagrado e profano.
Por isso, a liminaridade é frequentemente comparada à morte, invisibilidade e
outros “estados” que demonstram que, como seres liminares, os indivíduos não possuem
status. Poderíamos pensar o conceito de liminaridade como passagem que envolve algo como
um renascimento. Não é à toa que Turner nos dirá que o tema da liminaridade deve ser
tomado como uma tabula rasa, uma lousa em branco na qual se inscreve o conhecimento e a
sabedoria do grupo. O conceito de liminaridade também nos leva ao encontro da presença ou
à produção da presença e seus efeitos no liminal. Não faltam autores que trabalham
diretamente com essa temática e suas consequências para o universo da arte. O caminho
percorrido por Gumbrecht (2010), por exemplo, apresenta-se em seu livro Produção de
Presença: o que o sentido não consegue transmitir. O autor parte de um diálogo crítico com
diversas áreas das ciências humanas: a teoria literária, a historiografia e a filosofia, buscando
alternativas epistemológicas ao que denuncia como “o predomínio praticamente absoluto e
injustificado da autocompreensão das humanidades” como saberes cuja tarefa exclusiva é
extrair ou atribuir sentido aos fenômenos que analisa. (ibid., p.8).
A presença é pensada, em primeiro lugar, nas coisas que, estando à nossa frente,
ocupam espaço, são tangíveis aos nossos corpos e não são apreensíveis, estritamente por uma
relação de sentido. Para compreender a presença, partimos daquilo que podemos
experimentar, primordialmente, fora da linguagem. Ora, mas numa cultura eminentemente do
sentido, como lidar com essas experiências de modo não interpretativo ou não hermenêutico?
Essa é justamente a questão do autor.
95
Para ele (ibid., p. 13, 32), a palavra presença não se refere a uma relação temporal.
Antes, refere-se a uma relação espacial com o mundo e seus objetos. No sentido etimológico
(do latim producere), refere-se ao ato de “trazer para diante” um objeto no espaço. Assim,
produção de presença aponta para todos os tipos de eventos e processos nos quais se inicia ou
se intensifica o impacto dos objetos presentes sobre corpos humanos. “Todos os objetos
disponíveis em presença serão chamados aqui – as coisas do mundo”.
A questão central que se impôs para Gumbrecht, assim como para outros autores,
era a de saber como os diferentes meios e as “diferentes materialidades de comunicação
afetariam o sentido que transportavam”. Pensamos na palavra presença a partir de uma
referência espacial. O que é presente para nós, comumente é o que está à nossa frente, ao
alcance e tangível aos nossos corpos. Então, pensar “na produção de presença com as
materialidades de comunicação é também um efeito em movimento permanente”. Falar dessa
produção implica que o efeito de tangibilidade (espacial) está sujeito a movimentos de maior
ou menor proximidade e de maior ou menor intensidade. (ibid., p.39). O autor nos lembra que
o prazer da presença é a fórmula mística por excelência, e uma presença que escapa à
dimensão do sentido tem de estar em tensão com o princípio da representação. “A presença
não vem sem apagar a presença que a representação gostaria de designar”.
A autorreferência predominante num mundo de sentido é o pensamento, ao passo
que a autorreferência predominante, numa cultura de presença, é o corpo. Numa cultura desse
tipo, além de serem materiais, as coisas do mundo já têm por elas mesmas um sentido que
lhes é inerente, não apenas um sentido interpretativo, e os seres humanos consideram seus
corpos como parte integrante da sua existência.
Numa cultura do sentido, ao contrário, a legitimidade se dá se tiver sido produzida
por um sujeito no ato de interpretar o mundo, campo da hermenêutica. Para uma cultura da
presença, por sua vez, o conhecimento é legítimo se for conhecimento tipicamente revelado.
Conhecimento revelado pelos deuses ou por outras variedades daquilo que se poderá
“descrever como eventos de autorrevelação do mundo”. (ibid., p.106-107). O que mais se
aproxima de um conceito de “ação” (motivação) numa cultura do sentido é, numa cultura da
presença, o conceito de magia, ou seja, a prática de tornar presentes coisas que estão ausentes
e ausentes coisas que estão presentes.
O autor (ibid., p. 134- 139), diz que a presença e o sentido sempre aparecem
juntos e em tensão. Os fenômenos de presença surgem sempre como efeitos de presença
porque “estão necessariamente rodeados de, embrulhados em, e talvez até mediados por
nuvens e almofadas de sentido”. Sob esse ponto de vista, a experiência estética traz o
96
confronto com a tensão e a oscilação, entre a presença e o sentido. Buscando ampliar ainda
mais essa reflexão, sob o título de epifania, Gumbrecht (ibid., p. 140, 142) comenta três
características que moldam a maneira como se apresenta diante de nós a tensão entre presença
e sentido; nunca sabemos se ou quando ocorrerá uma epifania; não sabemos qual será a sua
intensidade e a epifania na experiência estética é um evento, pois se desfaz como surge. Ora,
podemos compreender o desejo de presença como reação ao todo dia que se tornou âncora de
sentidos, sentido pelo sentido, mais sentido, ou se preferirem, universo predominantemente
cartesiano ao longo dos últimos séculos.
A experiência estética vem como uma âncora na recuperação da dimensão
espacial e corpórea da nossa existência, tão policiada pelo imperativo dos sentidos. Ora,
“experienciar as coisas do mundo na sua coisidade pré-conceitual reativará uma sensação pela
dimensão corpórea e pela dimensão espacial da nossa existência”. (ibid., 2010, p. 145-147).
Não se trata aqui de fazer uma apologia romântica ao mundo anti-cartesiano, ao mundo da
presença cujo comando está marcado pelo universo das sensações. É que dar sentido ao
sentido é perder de vista o que a arte, de modo geral tem a nos oferecer.
O tema da presença tornou-se muito atual, recorrente nas artes da cena que são,
por excelência, artes da presença. Navas (2013, p.1) analisa questões vinculadas à
permanência e efemeridade dos espetáculos, “a dança que resta em nós”, buscando uma
descrição a partir de conteúdos que circulam entre artistas da cena e o público. “A dança
como fenômeno de comunicação humana, pode ser vislumbrada através de espécies de
molduras – os espetáculos -, onde presenciamos a vontade revelada de expressão de um
artista-coreógrafo concretizadas em corpos de artistas-bailarinos”.
A partir disso, podemos pensar as “coisas do mundo”, a partir de Gumbrecht, na
condição de efemeridade que é própria das artes da cena? Para Navas, a efemeridade se
constrói-reconstrói, a todo momento, entre obra e público. Se esse refazer não se instaurasse,
em última instância, “de cada coreografia nada restaria”. A autora continua: “Neste sentido, o
efêmero não está na criação em si, portadora de suas estruturas de base, guardadas e
recolocadas no mundo mediante o sistema de memória – enquanto lembrança e esquecimento
– que se estrutura a partir de sua origem basal, na qual se enraízam os traços de sua existência
e operação” (ibid. p. 5-6).
A rigor, a autorreferencialidade da cultura da presença intensifica-se nas artes da
cena, pois o artista dança por nós, a cada dia em que se coloca em cena. Algumas vezes nos
dança, no sentido de mostrar/expressar/comunicar nossos pensamentos através desta mídia na
qual a questão do corpo assume uma centralidade basal. (NAVAS, ibid., p. 7). É por isso que
a
97
efemeridade está na presentificação da obra ali, naquele instante. É esta característica que
aponta “para uma de suas bases de origem, enquanto arte do tempo/espaço, que se perfaz em
tempo específico, restando como memória corporal nos artistas que a interpretam”. É nessa
medida que “O corpo-território de cada bailarino lança-se no espaço – território da dança, este
sim transitório frente a cada unidade de público, construído no aqui-e-agora a partir de traços
– rastros anteriores” (ibid., p. 3). Dessa forma, imaginar uma cultura de presença implica,
necessariamente, o desafio de imaginar um conceito de eventidade. “Não existe emergência
de sentido que não alivie o peso da presença”. Isto porque:
nada mais fizeram do que revelar não somente a existência como o modo operacional do
inconsciente.
O Outro do desastre é aquele que não posso alcançar e que escapa. Estrangeiro esse
eu-outro que me escapa e me convoca “fora de mim”, me roça a pele, causa rumor
em seu silêncio estrangeiro, fala uma língua que não entendo e que, no entanto, é
próxima. Rumor estrangeiro que encontra pouso em cada tecido do corpo
inquietando-o com a estranheza da língua – uma língua “jamais escrita, mas sempre
a prescrever”. Como se ao pé da orelha esse “sem rosto”- o mesmo que produz a
mão que escreve – nos soprasse palavras sem sentido, mas que, ao fazerem do corpo
eco, o colocassem a balançar, a fazer da carne caminho/desacaminho. (LIMA, 2012,
p. 35)
Como aponta Martins (2009), com O estranho Freud acena para o retorno do
recalcado, ao explicitar a Coisa com uma lente de aumento, ou seja, a de ser familiar e, sobre
determinadamente, estranha. O familiar e o estranho num mesmo objeto. Esse fenômeno
reforça a existência de algo fora da representação. Lugar possível das artes, quando aponta ao
recalcado pulsional, propiciando ao eu reaver suas coordenadas de satisfação. O horror, a
paralisia e o temor se apresentam na medida em que as coordenadas, que se repetem como
unidade para o eu, perdem as suas referências e signos de orientação. Nessa experiência de
desconstrução do eu, uma demanda recobra as representações familiares para não sucumbir.
Rivera (2005), afirma que o estranho suscita a angústia justamente porque o recalque está em
operação. A problemática do estranho vincula-se à questão do olhar em suas possíveis
relações com a castração, visto por Freud a partir do conto fantástico, “O homem de areia” do
escritor romântico alemão, entre outras coisas, E.T.A. Hoffmann.
A história gira em torno da personagem Nathanael. Quando criança, escutava
histórias da babá, aquelas que transitam entre o terror e o fascínio, que elas costumam contar
para que a criança durma. Ela dizia que o homem de areia jogava areia nos olhos das crianças
que não queriam dormir e, depois os arrancava para dá-los de comida a seus filhos que teriam
bicos pontudos como corujas. Seu pai e um amigo chamado Coppelius costumavam passar
noites a fazer alquimias secretas. Coppelius, para Nathanael, vinha como o verdadeiro
103
Assim, a criação do duplo, nada mais é, nesse primeiro momento, do que uma
função de defesa narcísica contra a morte, ou seja, negá-la para se assegurar de que o ego não
será destruído. Como salienta Becker (2010, p. 14), em 1923, Freud afirma que a falta de
pênis é entendida como uma castração, ou seja, “há um reconhecimento da falta”, um conflito
que se fará trajeto no percorrer da história da vida psíquica. O duplo está na base do
Unheimlich, pois se trata de algo que uma vez foi Heimilich, ou seja, familiar. O prefixo “un”
não seria sinal da repressão? “Pode ser verdade que o estranho (Unheimlich) seja algo que é
secretamente familiar (Heimlich-Heimisch), que foi submetido à repressão e depois voltou, e
que tudo aquilo que é estranho satisfaz essa condição”. (FREUD, ibid., p. 262)
neste ponto de dobradiça), no sentido radical daquele que não passou pelas redes do
reconhecimento, é o fenômeno da angústia. (RINALDI, 2013, p. 1)
No texto “A negativa”, para (Freud [1925] 1996, p. 265- 269), o conteúdo de uma
imagem ou ideia reprimida pode caminhar até a consciência, na condição de que seja negada.
Na realidade, a negativa é uma maneira de tomar conhecimento do que foi em algum
momento reprimido. “Com o auxílio do símbolo da negativa, o pensar se liberta das restrições
da repressão e se enriquece com material indispensável ao seu funcionamento correto”. O
reconhecimento do inconsciente numa análise por parte do ego se revela numa formula
negativa. Ora, a negação, enquanto o retorno do recalcado, possibilitará que certos
significantes, “liberados” do recalque, entrem e se coloquem à disposição do desfiladeiro na
cadeia discursiva. Podemos pensar, a partir de outro texto de Freud ([1925] 1996, p. 266), que
estamos às voltas com um mecanismo primitivo em que as experiências desprazerosas são
expulsas para o exterior do eu. A negação nada mais é do que um modo de aceitar a parte do
material que fora recalcado, entendendo que a parte intelectual se desligou do afeto
correspondente. Negar algo em julgamento é, no fundo, dizer: “Isto é algo que eu preferia
reprimir”.
O inconsciente é o fio condutor que perpassa toda a obra freudiana. “O Estranho e
a Negativa” denunciam algumas das formas do funcionamento do inconsciente. Pensar nesses
dois funcionamentos é começar a tatear que lugar o duende ocupa no corpo discursivo das
artes. “O prazer estético sempre implicaria a vivência do das Unheimlich, trazendo à tona
fantasmas infantis recalcados, o que implica fascínio e repulsa. O Unheimlich é aquela
variedade do terrorífico que remonta ao já sabido há muito tempo, ao familiar”.
(CHNAIDERMAN, 1997, p. 220)
O estranhamento, ainda no dizer de Freud, é uma espécie de divisão de si mesmo
em duas pessoas, uma que é capaz de se espantar e a outra de se surpreender, percepção
vacilante como uma espécie de alucinação. Rivera (2005, p. 53-54), nos lembra que o
“fundamental para o estranho parece ser um certo funcionamento ou modo de apresentação –
o que faz com que tal efeito seja muito mais frequente na literatura do que na vida”. Nada
mais familiar do que a antiga casa da criança, “o ventre materno”, que, ao cair nas mãos do
recalcamento, se vê tão estranho. Às voltas com o processo de criação artística, Freud o
comparou ao mecanismo de formação dos sonhos e sintomas, sugerindo uma similaridade
entre o artista e o neurótico, visto que a criação artística se alimenta de afetos e percepções
inconscientes. Se partirmos desse princípio, a consequência será que a obra de arte, e mais, as
artes em geral são passíveis de serem “interpretadas”, “analisadas” a partir de seus sentidos e
106
motivações inconscientes. Embora não seja este o propósito desta pesquisa, ou seja, o de
transportar a arte para um setting analítico, o que seria um prejuízo tanto para uma quanto
para o outro, há algo de inconsciente, especialmente em presença com o duende, que precisa
ser desvendado até onde seja possível. Será que não podemos entender o estranho que vem na
(des)forma da angústia por conta da falha do recalcamento? O recalcado que retorna como
estranho. É este afeto que testemunha esse instante Unheimliche.
Assim, a indizível angústia imprime aquilo que escapa à Gestalt imaginária e torna-
se efeito-sinal, clinicamente perceptível, daquilo que é passível de irromper: o real.
Neste sentido há um perigo de que falte o valor da impressão da perda subjetiva,
valor de mediação fundamental para a ligação do movimento-desejo com o aparelho
de imagens.
A angústia é o som proveniente deste domínio estranho, música sem letra que
anuncia o investimento da percepção ameaçadora e do desejo imperioso em busca de
realização. (FRANÇA, 1997, p. 15, 25)
Para entrarmos mais a fundo no tema do estranho, que parece relevante ao nosso
problema, faz-se necessário abordarmos o estado do desamparo, cujo sentido específico, na
teoria freudiana, se dá a partir da relação mãe-bebê. Desamparo nos remete a um estado
inicial do bebê o qual depende, crucialmente, de um outro capaz de satisfazer suas
necessidades básicas. Mas esse outro, aqui representado pela figura do(a) cuidador(a), nunca
será suficientemente capaz de realizar uma ação específica para pôr fim a uma tensão
acumulada. Este desamparo é o retrato do trauma, ou se preferirem, da experiência do horror.
“Do ponto de vista econômico, há uma intensidade que o trabalho psíquico não pode
dominar”. É desse lugar de desamparo que a constituição do psiquismo se constrói em uma
relação de alteridade, dada na vivência de satisfação e sua reprodução alucinada. “Na raiz
disso tudo nos remetemos à situação traumática, pois o apelo já pressupõe uma
incompletude”. Afinal, é somente a partir do campo do Outro que o sujeito fala e deseja.
(ibid., p. 17)
Assim, a angústia nos vem como uma resposta imprecisa frente a um perigo, aqui,
o da separação entre o bebê e sua mãe. Esta angústia remete ao que há de mais familiar, ou
seja, “a representação do desejo inconsciente do Outro que nos lança no abismo da falta de
“ser”. A angústia é um afeto “assignificado” e, justamente por isso, um “afeto por
excelência”. (ibid., p. 25)
A angústia nesse lugar de “puro” afeto e, por isso, indizível, revela a falta de
um simbólico, de um “dizer apaziguante diante da incompletude”. Sendo assim, ela pode ser
tida como um motor mesmo para o recalque, numa busca de significação. “A angústia é
testemunha do real traumático que o constitui” (ibid., p. 27). A experiência da estranheza nos
107
empurra para algo da nossa constituição, de uma linguagem arcaica, ou linguagem pulsional,
que se direciona ao Outro do simbólico, mas que se aproxima de um vazio não preenchível.
Estamos no mais familiar dos lugares, ancorados nessa indizível angústia, o corpo materno.
Esse corpo materno que nos leva a uma ardilosa proximidade da realização de um desejo,
sempre imperioso, proibido e incestuoso, por isso, estranho. (ibid., p. 67)
O familiar, portanto, não é a angústia em estado bruto, se é que podemos nomeá-
la assim, digamos, o afeto, mas sim “o angustiante” que aponta ao intenso perigo frente à
possibilidade de uma realização impossível. A angústia sinaliza a surpresa, aquilo que não se
faz anúncio, colocando a “presença do indefensável e que marcamos através do insólito efeito
de estranheza inquietante” (ibid., p. 69), ou seja,
farejar marcas. Despertar as mais remotas regiões, uma memória de algo que se foi e que o
corpo visitará como uma ausência viva”. E nessa estranheza, o eu não se reconhece em sua
vertente especular. O estranho baila, habita no eu e sua vestimenta cai. Esse lapso pode ser
tido como uma “falha na miragem, efeito do inconsciente, tropeço no real, que movimenta o
sujeito através do seu som angustiante e o recoloca enquanto desejante na busca incessante de
significação...”. Na realidade, sair da prisão às fixações imaginárias traz ao cerne da questão,
uma aposta de produção de efeitos de liberdade subjetiva. (FRANÇA, 1997, p. 84-85)
Nesse lapso de imagem, como caracteriza a autora (ibid., p. 87), seu efeito se faz a
posteriori, momento de abertura que aponta à opacidade do jogo especular entre o real e
virtual, “no plano do símbolo do olhar do outro”. Há um despertar do sujeito para o inevitável
e angustiante abismo de ser, o fantasma faz caminho, não há como não sentir o efeito de
ruptura no aflorar do real que se faz cena, ruptura constitutiva do duende. Uma vivência sem
forma, quase como um exílio momentâneo, em que o eu se antepara com o estranho dele
mesmo, como se fosse algo externo, mas é, na realidade, a coisa mais familiar do seu ser.
Fixar-se imaginariamente implica a parada do desejo, este que se faz no movimento. “Este
vazio angustiante impede, com sua radicalidade ruidosa e impactante, a paralisação do desejo
diante das fixações imaginárias. O desaprisionamento dos objetos imaginários só é possível
nos cortes significativos, golpes fatais na promessa de completude imaginária”. (ibid., p. 101)
Agora já nos aproximamos o suficiente para dizer que o Unheimliche é a irrupção
do não especularizável, para ele não há espelho. O simbólico não é capaz de recobrir o real.
Nesta falha da imagem, o estranho se revela e indica o real impossível, cuja falha imaginária
traz a angústia como anteparo de um afeto indeterminado, trazendo à tona o desamparo do
sujeito diante da ameaça de destruição do ser. A estranheza inquietante é uma das formas de
demonstrar a marca registrada do recalque, como “um certificado de origem”. O estranho que
se faz revelação aponta ao desconhecido desejo, algo que toca o imprevisível. Esse
Unheimliche descentra do eu, submetendo-o à singularidade do desejo. “O vir a ser representa
o desconhecimento do eu daquilo que o estrutura e que falha” (ibid., p. 145, 147). A angústia
do real que descentra o Eu produz desilusão, pois remete o sujeito a uma perda sofrida pelo
Eu de seu suporte no Outro. O Unheimliche é o estranho anunciador do “eterno retorno dos
mortos” justo porque apresenta a divisão constituinte do eu”. (ibid., p. 168)
conceitual freudiana, pois é o que se impõe como o reencontro perdido com a nossa
estrutura falha. (ibid., p. 185, 187)
Ao cair o véu encobridor do objeto feito de falta, surge a nudez do especular que é
vazio de ser, lugar da horrível exclusão. Esta dor da pura perda, enquanto
significante de um limite, escapa no para-além da imagem e deixa entre-ver o
horrível estranho que ameaça. Esta cortante visada do Belo em sua relação com o
desejo. (ibid., p. 198)
Há que se dizer que o imaginário não dá conta de tudo, e, justamente por isso, não
barra aquilo que não se pode ver. Ao falhar, o contexto da estranheza nos vem como um
míssil. A surpresa de nosso não-saber, a surpresa do que não estávamos procurando, mas
achamos,... assim,... à deriva para ser enlaçado, não nos vem como uma romance, mas como
um terror. E aí sim o habitar da cena tem que se pôr no estranho que só se fará conhecido no
próximo passo, no passo da dança.
Nesse “outro tempo” que não respeita a cronologia, nesse tempo do só depois, há
movimento – que retranscreve, que articula novos nexos, rearticula as inscrições do
vivido – construindo sonhos no dormir, fantasias e pensamentos na vigília. Há
movimento das dimensões pulsionais e desejantes que, misturando os tempos,
produz novos sentidos. O tempo não passa no sentido do tempo sequencial, numa
direção irreversível, mas, na mistura dos tempos, as marcas mnêmicas nas mãos do
“processo primário” condensam-se, deslocam-se e criam novos sentidos. A
diferenciação dos funcionamentos temporais no psiquismo está presente ao longo da
obra de Freud, sendo um dos fios importantes da metapsicologia freudiana. As
concepções de memória e causalidade psíquica subvertem a psicologia da
consciência e são parâmetros básicos que fundamentam a clínica psicanalítica.
(ALONSO, 2006, p. 52-55)
Para Le Poulichet (1996, p. 9, 15), o tempo analítico pode ser pensado como
análogo a esse tempo que se perde em duração na cena, para a cena, tempo que será
trabalhado no próximo capítulo, junto à analogia que faremos posteriormente entre a travessia
de um final de análise e a do artista entregue em cena. Indo de encontro a um tempo linear, “a
análise provoca tempos de atualização e anacronismos que subvertem a trama do tempo,
dando lugar aos acontecimentos psíquicos. Ora, esse tempo, como também aponta
Csikszentmihalyi (1992, ver capítulo 1), não está sujeito ao relógio e não se compreende em
um tempo sequencial. “É precisamente na transferência que esses acontecimentos encontram
seu lugar e seu tempo próprios. A transferência é um tempo de realização dos acontecimentos
psíquicos. Ela lhes dá presença em todas as suas ressonâncias temporais”. O que se tem aí é
um “momento de abolição do tempo que é também, por isso mesmo, um momento
112
Assim, a pergunta “O que faz o tempo?” se transforma nesta outra pergunta: o que
fazem os tempos da transferência? Fazem ouvir e realizam o que estava à espera no
tempo. Escrevem as partituras anacrônicas nas quais ressoa o desejo e assim voltam
a questionar a representação tirânica da flecha linear do tempo. Esse é o tempo
aberto e multiplicado nos tempos do silêncio, da fala ou do sonho que realizam
transferências, que transpõem os acontecimentos para seus tempos psíquicos: no
ponto em que eles soam, entre linguagem e pulsão, em combinações inesperadas.
(ibid., p. 9)
Será que poderíamos pensar o lugar da cena assim como num setting, ou seja, que
esse encontro palco-público/analista-analisando(a), nos seus próprios tempos, funcionam
como mobilizadores de passagens daquilo que não cessa? Um pela via da palavra, o outro
pela via do corpo, que não deixa de se fazer palavra, robusta, encorpada, mas palavra. A
transferência é aqui pensada para além de uma reatualização do passado no presente, mas
como o encontro de um tempo que passa e de um tempo que não passa. Um rápido adendo
para lembrar que a transferência aqui é tida, como nos mostra Freud na “Interpretação dos
Sonhos” [1900], como lugar de passagem da energia psíquica de um representante para outro.
E desse encontro emerge a presença do desejo, marcado como o momento em que dois
objetos e duas palavras mutuamente se identificam. Aqui podemos nos transportar para a
cena, não no formato de recorte e cola, mas justamente a cena que reatualiza os tempos,
atravessada pelo corpo o qual, no movimento, deixa escapar aquilo que não cessa, corpo na
ação de uma palavra que, ao tentar omitir, desvela o desejo num corpo que se move-palavra.
Desse encontro a palavra ainda dissimulada se veste, ao passo que, por mais que o corpo se
faça omissão, há algo no movimento que o denuncia. Pela reação do corpo ao que se
desenrola na cena, dá-se a mistura dos tempos e, este que não cessa, não encontra muitas
vezes outra saída, a não ser cessar.
Mas o que quer dizer esse tempo que não passa? Podemos falar num primeiro
aspecto que seria o “sexual infantil inconsciente”, o recalcamento propriamente dito, visto que
a operação do recalque exige um isolamento e uma entrada das representações intoleráveis
num tempo que não passa. “Para esse recalcado, o sonho, o sintoma, e o tratamento analítico
oferecem lugares diferentes de transferência”. O sintoma traz à cena encontros que não
cessam junto ao que ocorre no aqui e agora. Será que não damos corpo a essas representações
intoleráveis e a esse excesso pulsional que não cessa num corpo que se faz inscrição? Ainda
nessa linha de raciocínio talvez pudéssemos pensar o corpo que reage pelo movimento como
um possibilitador de um furo no virtual, proporcionando uma abertura por onde um tempo,
que não passa, escoa sem barreiras. Aquilo que não cessava porque não tinha lugar, ganha a
roupagem corporal como caminho. (LE POULICHET, ibid., p. 38-41)
115
O tempo do sonho representa, sem dúvida, um dos únicos lugares em que um sujeito
se encontra completamente identificado com o seu próprio olhar – esse estranho
objeto destacável e evanescente – a ponto de ser confundido com ele. No campo do
sonho, as coisas não são para si mesmas nem para alguém, mas elas organizam
passagens; e o próprio objeto da figuração não é uma coisa, mas o laço de uma coisa
com uma outra. O sonho não é em nada uma cópia louca ou fantasística do real
deformado pelo desejo; ele dá, antes, olhar ao que não se pode ver: ele dá figura aos
laços. (ibid., p. 44, 45)
É muito poético pensar, como aponta a autora (ibid., p. 45-46) que o trabalho do
tempo no sonho funciona como uma atuação do tempo nas imagens, que realizam passagens.
É esse tempo não linear, por justamente desconhecer a distinção de passado-presente e futuro,
que se coloca em figuras. Nessas figuras vislumbra-se um tempo fora de toda representação
do tempo, “que produz superfícies em devir instável, nem internas nem externas, mas
desenhando laços entre as duas”. Isso nos remete a Lorca quando diz:
... que La Niña de los Peines teve que corromper sua voz porque sabia que estava
sendo escutada por pessoas especiais que não pediam formas, mas sim medula de
formas, música pura com o corpo sucinto para poder manter-se no ar. Teve que
empobrecer em faculdades e seguranças; quer dizer, teve que afastar a musa e ficar
desamparada, até que o duende viesse e se dignasse a lutar com ele, braço a braço. E
como cantou! Sua voz já não brincava, sua voz era um jorro de sangue dignificado
pela dor e pela sinceridade, e se abria com uma mão de dez dedos pelos pés
cravados, mas cheios de borrasca, de um Cristo de Juan de Juni. (LORCA, 1933, p.
1)
Ora, não é disso que se trata? Há que se alcançar um alto nível de intensidade, e
aqui, intensidade referente à metapsicologia freudiana, no ato performático. Estamos às voltas
com outro estado de consciência do intérprete e não necessariamente às voltas com uma
entidade extra corporal, ou seja, algo de fora que nos toma, mas sim algo de uma excitação
interna que pede vazão. Há uma alteração de registro numa repetição sempre outra, cujas
recomposições inesperadas nos carregam ao achado e à surpresa. Num ato premeditado, assim
como o de um analisando frente a um discurso pronto, ou de um artista ensaiado cujo
esquema não pode mudar, forja-se essa instância cuja surpresa cessa numa construção que
deveria se fazer no próprio ato de se deixar contar. Há outra referência de Lorca com relação
aos “sons escuros” e aos “sons negros” que nos convocam necessariamente à pulsão invocante
que será explicada mais à frente. O estar sozinho do artista, o desnudar na pausa da solidão, a
princípio piegas quando posto em escritas descontextualizadas, nos remete sim à primeira
cena cuja imagem se faz de fora, pelo Outro materno, que faz da nossa imagem sentido
enquanto incompleto.
116
... há alguns sonhos que são realizações indisfarçadas de desejos. Mas, nos casos em
que a realização de desejo é irreconhecível, em que é disfarçada, deve ter havido
alguma inclinação para se erguer uma defesa contra o desejo; e, graças a essa defesa,
o desejo é incapaz de expressar, a não ser de forma distorcida. (ibid., p. 176)
No trabalho do sonho, está em ação uma força psíquica que, por um lado, despoja os
elementos com alto valor psíquico de sua intensidade e, por outro, por meio da
sobredeterminação, cria, a partir de elementos de baixo valor psíquico, novos
valores, que depois penetram no conteúdo do sonho. Assim sendo, ocorre uma
transferência e deslocamento de intensidades psíquicas no processo de formação do
sonho, e é como resultado destes que se verifica a diferença entre o texto do
conteúdo do sono e dos pensamentos do sonho. (ibid., p. 333)
em algum lugar de maneira fixa e ele segue um desejo que corre de vestígio, em
vestígio, sem saber para onde isso leva. (LE POULICHET, 1996, p. 51-52)
São os acidentes do instante que fazem existir esse sujeito evanescente, mais além
dos hábitos e das certezas. Não procurando mais reter uma imagem fixa, mas apenas
pintar a passagem do instante para o instante, Montaigne toma conhecimento da
descontinuidade e faz do instante uma ocasião. Não se pode “pintar a passagem”
quando os instantes não são mais do que golpes desferidos contra um eu
desarticulado. (LE POULICHET, 1996, p. 80, 81)
De onde respondo ao desejo do outro, não sigo. Só sigo do lugar onde algo me
causa, onde o desejo se desprende e vaga freneticamente. E nesse vagar, me encontro, quase
capturada por uma ânsia de não parar, querência de corpo exausto, corpo que contorna, no
canto da dor. E nesse ir e vir, e nesse pedir e renunciar, o corpo vai ditando as regras,
ironicamente se impondo à cena. Sem pedir permissão, se coloca. O corpo real sem
travessuras do campo imaginário. Corpo que assola. Corpo que se debruça. Corpo que
despedaça. Apelo ao simbólico. Lentamente, o simbólico vai rastreando um espaço para que
o Real não faça carne, fale dessa carne. O simbólico se encontra enamorado desse tal
imaginário para que o Real não ganhe de forma escancarada essa guerra. Mais devagar. É
muito corpo. Quero menos corpo. Mais palavra. Me rechaço nessa escrita que não se diz
toda. E ao não se dizer toda, me entristeço.
A palavra aqui enxuga os excessos, sinaliza seus limites. Mas o corpo que dança
me pede no excesso a sua forma, enquanto tento fazer da escrita uma aproximação cada vez
menos inibida do polo pulsional, de maneira que a forma visceral se faça corpo-texto. Na via
do polo representacional, mantinha-me tranquila, serena, anestesiada. Tanto a arte como a
psicanálise buscam vestígios, do contorno do indizível ao objeto sempre perdido. Olhar como
se fosse a primeira vez.
CAPÍTULO 4
RUMO AO REAL
teórica de Freud, Lacan e seus comentadores, mas, sem subterfúgios, num caminho que nos
parece o mais adequado para refletir sobre o duende.
Vamos aproveitar o gancho acima para trabalhar, com base em Roza (ibid., p. 20),
a relação entre percepção e memória, a partir dos sonhos e, portanto, do inconsciente. Aqui,
talvez, um Freud mais neurologista. Se pensarmos nos sonhos, a que ele afinal aspira?
Podemos pensar que a grande audácia dos sonhos seria poder passar da imagem à palavra,
mas, tenhamos claro que não se trata de desvendar uma ou outra palavra, “mas entendermos
que aquilo para o qual ela aponta é a palavra, sua busca é a busca do simbólico. Não se trata
aqui da profundidade da consciência, mas de um outro lugar psíquico, distinto da consciência
e regido por leis próprias”.
A palavra e, aqui, estendendo também ao corpo como carne-significante, torna-se
responsável por formatar representativamente a multiplicidade sensorial. A palavra é a real
alteridade do inconsciente no interior da representação. Representar é poder presentificar a
ausência, não efetivamente aquilo que está ausente, mas uma outra coisa que lhe toma o lugar
e pode acabar atuando como se fosse a própria coisa.
Por que os sonhos? Porque, para falar da descoberta do inconsciente, devemos
compreender como Freud foi construindo o seu pensamento a partir dos sonhos, do seu
próprio sonho. Quer dizer, o sonho se constitui em via régia para o inconsciente. Roza nos diz
que podemos pensar os sonhos sob três vertentes. A primeira é a de que os sonhos possuem
um sentido, o segundo, os desejos que se realizam no sonho são de ordem inconsciente e,
126
terceiro, que os desejos inconscientes são de natureza sexual. Na Carta 52 Freud diz que o
aparelho psíquico é fundamentalmente um aparelho de memória. “A memória desse aparelho
é memória de linguagem, de uma escritura”. (ibid., p. 29). Esse aparelho não vem pronto, ele
vai lentamente se formando na relação com outro aparelho de linguagem. Esse outro não diz
respeito ao mundo, mas é invariavelmente outro aparelho de linguagem. Nesse aparelho, as
palavras ou representações-palavra ganham significado na relação que a imagem acústica
(complexo representação-palavra) mantém com a imagem visual (complexo formado pela
associação de objetos). A representação-objeto não está aí pronta, aguardando a
representação-palavra, para daí significar. A percepção não fornece objetos com os quais a
palavra irá se articular afim ao seu significado. A percepção por si só não é capaz de fornecer
objetos. Do mundo, ela recebe imagens elementares, visuais, táteis, acústicas e outras, que vão
construindo o complexo das associações de objeto.
As associações-objeto sozinhas não formam um objeto. Somente na relação com a
representação-palavra é que essa unidade surgirá. O significado nascerá da relação das
representações. É a palavra que constrói o objeto como objeto, e ele, por sua vez, fornece
significado à palavra. O significado do objeto se dá não pelo externo, mas sim, pela
articulação das associações de objeto com palavra. Essa ideia de que a relação entre as
associações de objeto e a coisa é uma relação sígnica, enquanto que a relação entre as
associações de objeto e a representação-palavra é uma relação significante (ou simbólica,
como a denominava Freud), por si só justificaria o ensaio sobre as afasias. (ibid., p. 31-32).
Como afirma Volich (2000, p. 67-68,), esse modelo espacial do aparelho psíquico
determina, a partir das dinâmicas internas, “as condições de acessibilidade de experiências,
recordações, representações ao conhecimento do sujeito”. O acesso à consciência é
determinado pela quantidade de afeto, excitação investida, ligada a uma determinada
representação, e é pelo conflito entre essa representação investida e a censura que marca o seu
lugar nas passagens de uma instância a outra. É através da ligação da representação e o afeto
que a ideia, a sensação e a experiência se apresentam como objetos da consciência. O recalque
seria o responsável por essa quebra de ligação. “Ao separar afeto e representação, o recalque
pressiona a representação desinvestida em direção ao inconsciente, ao mesmo tempo em que
essa representação é atraída pelas representações inconscientes”.
As representações de coisas são construídas a partir das vivências de ordem
sensório-perceptivas e de comportamento experienciado pelo bebê. De ordem inconsciente,
elas podem ou não estar ligadas a afetos, porém, não conseguem sozinhas as associações de
ideias. “As representações de palavras surgem da ligação das representações de coisas com a
127
Estamos acostumados a pensar o Projeto como um texto que nos fala de neurônios e
quantidades, texto que nos oferece um modelo de aparato neuronal segundo uma
concepção quantitativa, o que em parte é verdade, mas que não é toda a verdade.
Sem dúvida Freud nos fala de neurônios, mas nos fala também de representações
(Vorstellungen), assim como também é verdade que nos propõe uma concepção
quantitativa, embora seja discutível se está falando de quantidades ou de
intensidades. O fato, porém, é que através de noções como as de investimento
colateral, ligação, barreiras de contato, trilhamento (Bahnung), signo de realidade ou
signo de qualidade, Freud nos oferece um fantástico (nos dois sentidos do termo)
modelo da subjetividade humana. (ROZA, 1993, p. 35)
2
A teoria das barreiras de contacto apresenta duas classes de neurônios, que são eles; os que deixam passar
quantidade intercelular (Qn´) como se não houvesse ali barreira de contacto, permanecendo iguais a cada
passagem de excitação e, aqueles cujas barreiras dão sinal, de modo que só permitem a passagem da quantidade
com dificuldade ou parcialmente. A classe dos neurônios que dificulta a passagem da quantidade, após cada
excitação, fica num estado diferente do anterior, “fornecendo assim uma possibilidade de representar a
memória”. Podemos daqui nomear duas classes de neurônios, os permeáveis (o), os que não oferecem resistência
e nada retêm, destinados à percepção e, os impermeáveis (símbolo da psico), resistentes e retentivos de
quantidade de intercelular, portadores da memória. O sistema de neurônios impermeáveis como vimos acima,
fica alterado a cada passagem de excitação. Se pensarmos na barreira de contacto deles, elas ficarão
permanentemente alteradas. Para Freud ([1895], 1996, p. 352), o conhecimento psico(lógico) re-aprende com
base na memória, o que torna as barreiras de contato menos impermeáveis, portanto, mais similares às do
sistema dos neurônios permeáveis. Assim, Freud descreve esse estado de barreiras de contato como graus de
facilitação (Bauhnung). Portanto, “a memória será representada pelas facilitações existentes entre os neurônios
(psico)”. (ROZA, 1993, p. 35-36)
128
Roza (ibid., p. 35) mostra que a noção de trilhamento “responde pelo percurso de
uma excitação pela trama dos neurônios”. Nesse percurso, aparece uma trama de trajetos
neuronais, facilitadores em certas direções e, em outras, dificultadores, traçando uma “cadeia
de percursos diferenciados para a excitação”. O trilhamento é associado à noção de barreiras
de contato ou sinapses neuronais, tendo em vista que as sinapses podem ou não oferecer
resistência à passagem de excitação numa determinada direção, dando lugar, assim, à
“repetição de percursos facilitados”. O que podemos concluir a partir daqui é que a “memória
é constituída pelas diferenças nas facilitações”.
Portanto, a memória é um “processo que implica um diferencial de valor entre
caminhos possíveis”. Freud nos lembra que é preciso, para cada neurônio, diversas vias de
conexão com outros neurônios, isto é, de várias barreiras de contato. Disso dependerá a
possibilidade de escolha ditada pela facilitação. Assim, a memória se desdobra em vários
tempos ou períodos, sofrendo rearranjos dos traços que a compõem. O objeto mítico original
se perdeu, assim, a permanência se encarrega pelos traços, trilhamentos, caminhos que irão
inscrever-se no aparelho psíquico, criando a memória e o próprio inconsciente.
A memória não é estática, os traços em tempos e tempos vão sendo submetidos a
re-transcrições. Nem todo traço, que é percebido, é gravado pelo aparelho psíquico. Gravamos
[traços] das impressões que vamos recebendo. A impressão em si mesma não constitui a
memória. Os traços, que serão registrados e depois organizados numa rede, nos permitem
observar a construção do eu a partir da experiência primária de satisfação. O eu constitui a
totalidade dos investimentos do binômio prazer-desprazer.
A não coincidência entre a percepção e o acúmulo de excitações endógenas do
bebê traria como efeito a alucinação do objeto perdido. A existência constante de um corpo de
neurônios catexizados, constituirá a base fisiológica do eu. A impressão pode ser vista como
um momento primário da elaboração mnêmica. “A impressão (posteriormente) traumática tem
que ser mediatizada por algo que a represente, uma lembrança que a ela se ligue e que a
presentifique não mais como impressão, mas como símbolo mnêmico”. Esse símbolo
representa a produção da memória, articulando a impressão infantil e o acontecimento que,
num segundo momento, a reatualizará. (ibid., p. 53-54)
Atentemos ao fato de que a impressão em si mesma é exterior à linguagem e ao
sentido. Ela só forma uma série significante na medida em que se liga a outras impressões. As
impressões são impiedosas ao fazerem exigências ao psíquico, à memória, por assim dizer.
129
Essa exigência surge como exigência de trabalho ao aparato mnêmico, assim como no
trabalho do sonho, “que é a de elaborar, sob a forma de um sistema de traços”.
Na origem, a memória não é um documento em forma de texto imutável, mas sim
de diferenças não identificáveis. “Seria extremamente difícil conciliar os sistemas de traços
que constituem o inconsciente – traços que são inscritos, transcritos e retranscritos – com a
ideia de uma permanência imutável sob a forma do original”. (ibid., p. 59, 85). O que
aterrorizava Freud não era a irracionalidade do inconsciente, mas paradoxalmente a sua
racionalidade. Frente ao irracional e ao instintivo nada temos a fazer senão, na medida do
possível, conter seus efeitos indesejáveis. Frente a um inconsciente estruturado, desejante e
dotado de uma racionalidade própria, aquilo com o que temos de nos defrontar não é senão a
carga desse desejo. (ibid., p. 79)
Complementando o que já foi introduzido no capítulo anterior, Freud chegou ao
conceito de inconsciente pela consideração de certas experiências em que a dinâmica mental
desempenha um papel, ou seja, o estado em que as ideias existiam antes de se tornarem
conscientes é chamado de repressão. Dessa forma, se o conceito de inconsciente parte da
repressão, o reprimido pode ser considerado o protótipo do inconsciente. Freud alerta para
dois tipos de inconscientes: o latente, capaz de tornar-se consciente, e outro que é reprimido,
mas que não é, em si próprio e sem mais trabalho, capaz de tornar-se consciente. O latente é o
inconsciente apenas descritivamente, não no sentido dinâmico, chamado de pré-consciente. O
termo inconsciente destaca-se do reprimido dinamicamente inconsciente.
O indivíduo possui, assim, uma organização coerente de processos mentais a que
chamamos de ego. É a esse ego que a consciência se liga. O ego é responsável pela descarga
das excitações para o mundo externo. Ele é a instância mental responsável pela supervisão de
todos os seus processos constituintes e que vai à noite, exercendo a censura sobre os sonhos.
Desse ego também procedem as ditas repressões, por meio das quais se tenta excluir certas
tendências da mente, não simplesmente da consciência, mas também de outras formas de
capacidade à atividade. O inconsciente não coincide com o reprimido. É verdade que tudo o
que é reprimido é inconsciente, mas nem tudo que é inconsciente, é reprimido. Nestes termos,
uma parte do ego também pode ser inconsciente.
De acordo com a primeira tópica freudiana, a consciência é a superfície perceptiva
do aparelho mental. Ela é o primeiro sistema a ser atingido pelo mundo externo, mas essas
percepções sensórias advindas do externo e as internas (sensações) e sentimentos são
conscientes desde o início. O pensamento inconsciente ou ideia é construído em algum
material que permanece desconhecido, ao passo que a ideia pré-consciente é colocada em
130
circulação com representações verbais que lhe são correspondentes. Assim, essas
representações mentais, tidas também como resíduos de lembranças, foram antes percepções
e, como todos os resíduos mnêmicos, podem tornar-se conscientes de novo somente quando já
fora outrora uma percepção consciente.
Os resíduos verbais ocorrem primariamente das percepções auditivas de maneira
que o sistema pré-consciente possui, por assim dizer, uma fonte sensória especial. Em
essência, uma palavra é, em última instância, o resíduo mnêmico de uma palavra que foi
ouvida. As percepções internas produzem sensações de processo que surgem nos diversos e
profundos estratos do nosso aparelho mental. As sensações e sentimentos só se tornam
conscientes quando atingem o sistema pré-consciente. Se o caminho para frente é barrado,
elas não conseguem existir como sensações, ainda que o curso das excitações seja como se
elas chegassem a existir.
Por meio das interposições das representações verbais, os processos internos de
pensamento são transformados em percepções. O próprio corpo como superfície constitui um
lugar de onde podem se originar sensações tanto externas quanto internas. Ele pode ser visto
como qualquer outro objeto, mas, ao tato, produz duas espécies de sensações, uma das quais
pode ser equivalente a uma percepção interna. Dessa forma, o ego não é uma entidade de
superfície, mas é a própria projeção de uma superfície, ou seja, ele não só pode ser encarado
como uma projeção mental da superfície do corpo como também representar as superfícies do
aparelho mental.
Tais articulações dão fundamento ao trabalho do sonho. Temos dois registros
distintos do sonho, um consciente e, assim, o sonho como dele temos conhecimento e, um
outro, completamente inacessível, que corresponde ao desejo inconsciente. Estes dois
registros, Freud nomeou como, “conteúdo manifesto do sonho e pensamentos latentes do
sonho”. Àquilo que temos acesso é da ordem manifesta, já o latente é aquilo de que não temos
consciência a não ser pelo seu substituto distorcido que vem à cena. Mas o que seriam esses
conteúdos? Como se dá a sua formação?
O que é próprio do sonho é a linguagem. Podemos, como aponta Roza (1993,
p.81, 86) pensar o sonho como “uma escritura psíquica”, na qual imagens são consideradas a
partir de seu valor significante e não apenas tomadas como imagens. Isso porque a imagem
não dá conta de ser ela mesma portadora de seu significado. A imagem nos remete às palavras
e não às imagens, ou seja, “as imagens remetem às imagens, numa composição pictórica em
que a articulação dos elementos ocupa o lugar das palavras”. (ibid., p. 81, 86)
131
... esse pensamento se forma a partir de uma rede de oposições significantes. (...) no
interior do sistema total do discurso, do universo de uma linguagem determinada,
que comporta, por uma série de complementaridades, um certo numero de
significados; o que tem que significar, a saber, as coisas, é preciso acomodá-las,
dando-lhes um lugar.
133
Lacan (1978, p. 226) afirma que o sujeito se faz servo da linguagem, “ele o é mais
ainda de um discurso cujo movimento universal” marca sua inscrição, o seu lugar desde o
nascimento, ainda que seja somente e ainda mais sob a forma de seu nome próprio. Freud
descobriu, por meio da simples observação cotidiana, o jogo primordial do Fort-Da, encenado
pelas crianças, jogo em que se anuncia o processo abstrativo da presença-ausência que se
encontra nos fundamentos da linguagem. Esse jogo será discutido a seguir, dadas as
implicações que dele podem ser extraídas na sua relação com as repetições das quais
emergem diferenças criadoras no corpo flamenco. Esta articulação será devidamente
trabalhada quando chegar sua hora, com alguns apontamentos já no final deste capítulo e seu
detalhamento nos próximos capítulos. Por enquanto, acompanhemos Freud na acuidade com
que refletiu sobre as brincadeiras de seu neto.
134
Nas observações do neto de um ano e meio, após sua estadia por algumas semanas
em sua casa, Freud ([1920], 1996, p. 23-28) percebeu que a criança nunca chorava quando sua
mãe o deixava por algumas horas. “Esse bom menininho, contudo, tinha o hábito ocasional e
perturbador de apanhar quaisquer objetos que pudesse agarrar e atirá-los longe para um canto,
sob a cama, de maneira que procurar seus brinquedos e apanhá-los, quase sempre dava bom
trabalho”. Ao brincar, digamos assim, seu neto emitia um longo e arrastado “o-o-ó”,
acompanhado por certa satisfação. Sua filha e o próprio Freud, concordaram em achar que
isso não era uma simples interjeição, mas representava a palavra alemã “fort” (ir embora).
Freud percebeu que, nesse jogo, o único uso que seu neto fazia dos brinquedos,
era justamente de brincar de ir embora com eles. Certo dia, Freud fez uma observação que
acabou confirmando o que vinha formulando. Com um carretel de madeira com um pedaço de
cordão amarrado em volta dele, seu neto nunca brincou de puxá-lo pelo chão atrás de si,
simulando um carro, como alguns meninos costumam fazer. Ao contrário disso, o que ele
fazia era segurar o carretel pelo cordão e com muita “perícia arremessá-lo por sobre a borda
da sua caminha encortinada, de maneira que aquele desaparecia por entre as cortinas, ao
mesmo tempo em que o menino proferia seu expressivo o-o-ó”. Ao puxar então o carretel
para fora da cama novamente, por meio do cordão, “saudava o seu reaparecimento com um
alegre “da” (ali)”.
Aí podemos visualizar a brincadeira completa de um desaparecimento e retorno
do objeto. Como salienta Freud, o primeiro ato, incansavelmente repetido como um jogo em
si mesmo, não deixa dúvida de que o prazer maior reina, sobremaneira, no segundo ato, o do
retorno. Isso nos dá uma explicação plausível com relação a uma certa renúncia à satisfação
instintual vivida pela criança, quando da partida da mãe, sem choros e escândalos na porta,
como comumente assistimos às crianças dessa idade. Após constatar o movimento do seu
neto, Freud levantou a seguinte questão, fundamental, por assim dizer. “Como, então, a
repetição dessa experiência aflitiva, enquanto jogo, harmonizava-se com o princípio do
prazer”? Freud diz que a saída da mãe deveria ser encenada como preliminar necessária a seu
alegre retorno, e que no retorno residia o verdadeiro propósito do jogo. (FREUD, 1996, p. 25-
26)
Outra característica do jogo que aí se encena pode ser detectada quando a criança,
de início, se achava numa situação passiva, dominada pela experiência, mas repetindo-a, por
mais desagradável que fosse, assumiria papel ativo. Pode-se entender o Fort-Da também
135
aliado a uma teoria da visão e outra da encenação. Ora, nesse vai e vem, o prazer da criança
podia ser medido pelo procedimento repetitivo característico do jogo de desaparecer-aparecer.
Noronha (2007, p. 67) afirma que o jogo aqui entra como possibilidade de simbolização dos
modos de presença-ausência da figura materna que, “além dos cuidados físicos implicava
também o estado entre o cuidado e o olhar que se depositava da mãe em direção ao filho e do
filho na procura da mãe”. Não precisamos ir muito além para inferir que era a mãe que ia e
vinha nesse jogo simbólico promovido pelo neto.
Segundo Lacan (2008, p. 76), o que a criança solicita à mãe destina-se a estruturar
para ela a relação presença-ausência vista na brincadeira de Fort-Da, como primeiro exercício
de dominação. “Há sempre um certo vazio a preservar, que nada tem a ver com o conteúdo,
nem positivo nem negativo, da demanda”. Com isso, já podemos estender o Fort-Da a um
possível universo do corpo-arte, num jogo de aparecer-desaparecer. Neste ponto, não se pode
esquecer que a representação se serve como elemento central no processo de criação.
Representar, como vimos na cena de Fort-Da, designa um ato de pôr em cena. Assim
também, o que vamos ver em cena é a forma como o sujeito desejante se coloca no mundo,
constituindo a realidade a partir das ausências de objeto do desejo. “A criança, ao jogar,
elabora o trauma da perda e encontra para ela uma saída positivada – criadora (no jogo). E
não é disso que se trata ou se trava em cena? Em sua origem, o objeto escapa, a cena vem
como co-adjuvante no movimento de elaboração da perda e o jogo comparece como seu
protagonista. É neste momento que a questão do corpo se impõe para que se possa, então,
retomar o Fort-Da e o corpo en-cena, ao final deste capítulo.
Segundo Braga (2010 apud Cukiert, 2000, p. 5-7), Freud era um jovem
neurologista inquieto com as questões que iam para além da estrutura do corpo subordinado
às leis da distribuição anatômica dos órgãos e sistemas funcionais. Afastando-se da noção de
136
capítulo 5, hipótese que irá nortear nossa leitura do duende e sua instauração no corpo no
capítulo 6.
Para isso, valemo-nos, neste momento, de Anzieu (1989) em paralelo com Freud e
Lacan. Uma questão que parece importante aponta para o lugar da pele como “invólucro
psíquico e físico”. O eu pode ser compreendido como uma estrutura cronologicamente
intermediária do aparelho psíquico entre a mãe e o seu infans em que a pele desempenha o
papel de locus de tramitação entre o interno-externo. Lugar de passagem que pode vir a re-
cobrir ou não fissuras comunicativas dadas na relação entre a mãe e o infans. A linguagem na
transmissão de uma noção ainda pré-consciente de que a pele da mãe é, antes e acima de tudo,
a pele primeira.
O dispositivo Eu-pele pode ser lido como um envelope narcísico capaz de
assegurar ao aparelho psíquico a certeza da constância de seu bem-estar. Não estaríamos às
voltas com uma representação na qual se apoia o eu da criança, durante as fases iniciais de seu
desenvolvimento, para representar a si mesma como eu dotado de conteúdos psíquicos a partir
de sua experiência com a superfície do corpo? Momento de diferenciação entre o Eu psíquico
e o Eu corporal? Toda atividade psíquica se estabelece sobre sua função biológica. O Eu-pele
encontra seu apoio sobre as diversas funções da pele.
Assim, a pele como nossa primeira função, pode ser tida como uma bolsa que
contém e retém em seu interior o bom e o pleno armazenados com o aleitamento, os cuidados,
o banho das palavras e o toque da mãe nessa superfície. A pele é a interface que marca o
limite com o de fora, mantendo-o no exterior. É também a barreira que protege o ser da
penetração pela cobiça e pelas agressões vindas dos outros, seres ou objetos. A pele é uma
superfície de inscrição de traços deixados das relações. É nessa origem epidérmica e
proprioceptiva que o Eu herda a dupla possibilidade de estabelecer barreiras (defesas
psíquicas) e filtro de trocas com o Id, superego e o mundo exterior (conforme estes conceitos
da segunda tópica freudiana serão vistos mais à frente). Tanto no embrião ou no recém-
nascido, a sensibilidade tátil é a primeira que aparece junto ao desenvolvimento do ectoderma,
origem neurológica da pele e do cérebro.
No momento do nascimento, vivencia-se uma experiência de massagem por todo
o contorno do corpo e de fricção generalizada da pele durante as contrações maternas e
durante a expulsão para fora do envelope vaginal dilatado para as dimensões do bebê. Esses
contatos táteis naturais estimulam o desencadeamento das funções respiratórias e digestivas.
O desenvolvimento das atividades e das comunicações sensoriais pelos cinco sentidos,
audição, visão, olfato, paladar e o tato serão favorecidos pela maneira como as pessoas do
138
círculo da maternagem carregarão a criança, acalmando-a ao apertar seu corpo contra o delas
e amparando sua cabeça ou sua coluna vertebral. A pele possui uma prioridade estrutural
sobre todos os outros sentidos por algumas razões, é o único sentido que recobre todo o nosso
corpo na sensação de calor, dor, frio, contato, pressão entre outras. É nessa aproximação física
que a contiguidade psíquica vai sendo promovida.
O toque é o único dos cinco sentidos que serve também como uma estrutura
reflexiva para a criança. Ora, a criança não experimenta com o seu dedo a dupla sensação de
ser um pedaço de pele que toca ao mesmo tempo em que é um pedaço de pele que é tocado?
Essa experiência tátil tem como consequência a construção de outras reflexividades sensoriais
no universo da criança. Elas são marcadas pelo escutar, emitir sons, aspirar seu próprio odor,
olhar-se no espelho e, posteriormente, o desenvolvimento da capacidade reflexiva. O círculo
materno circunda o bebê com um envelope externo feito de mensagens a que ele se ajusta
com certa flexibilidade, deixando espaços disponíveis ao envelope interno, à superfície do
corpo, lugar e instrumento de emissão de mensagens. Ser um Eu é sentir a capacidade de
emitir sinais ouvidos pelos outros.
Não se pode esquecer a necessidade de irrupção do segundo momento marcado
pelo desaparecimento dessa pele comum junto ao reconhecimento que cada um tem de sua
própria pele, marcando a impossibilidade de uma interface simbiótica dada na relação dual e
inseparável, num primeiro momento, entre a mãe e o infans. O envelope psíquico origina-se
por apoio e consequência do envelope corporal. Portanto, o Eu em seu estado originário,
corresponderia, na obra de Freud, ao que Anzieu caracterizou por Eu-pele.
Em 1974 (p.111-115), em seu primeiro artigo sobre Eu-pele, esse autor assinalou
“três funções do Eu-pele”. Uma função de envelope unificador do Self, uma função de
barreira protetora do psiquismo, uma função de filtro das trocas e de inscrição dos primeiros
traços, função possibilitadora da representação. Assim como a pele funciona como
sustentação do esqueleto e dos músculos, o Eu-pele mantém o psiquismo. O Eu-pele como
representação psíquica emerge do jogo entre o corpo da mãe e o corpo da criança junto às
supostas nomeações da mãe frente às sensações e emoções do bebê ali presente.
O envelope sonoro irá redobrar o envelope tátil. Assim como a pele envolve todo
o corpo, o Eu-pele envolve todo o aparelho psíquico, pretensão que parece abusiva, mas
necessária no princípio. O Eu-pele pode ser representado como uma casca e o Id pulsional
como núcleo e, cada um dos dois tendo necessidade um do outro. O Eu-pele só é continente se
houver pulsões para serem contidas e localizadas em fontes corporais, diferenciadas mais
tarde. A pulsão (conceito já mencionado no capítulo anterior, a ser detalhadamente
139
contemplado no capítulo 5) só é sentida como tensão geradora, como força motriz, se ela
encontra limites e pontos específicos de inserção no espaço mental. Ela se mostra e sua
origem deve ser projetada em regiões do corpo dotadas de uma excitabilidade particular. Esta
complementaridade da casca e do núcleo fundamenta o sentido da continuidade do Self.
O interdito primário do tocar transpõe, no plano psíquico, o que o nascimento
biológico promoveu. Há proibição do retorno ao seio materno, retorno este que só poderá vir
sob a forma de fantasia, diferentemente do autista que não cessa de continuar vivendo
psiquicamente no seio materno. Já a interdição apresenta-se de maneira implícita pela mãe
que, paulatinamente vai se distanciando fisicamente de seu bebê dando passagem para dois
corpos, duas peles e o nascimento de um indivíduo. A palavra do outro, quando oportuna,
viva e verdadeira, permite à criança reconstruir seu envelope psíquico continente, e ela o faz
na medida em que as palavras ouvidas criam uma pele simbólica que seja um equivalente, no
plano semântico, dos ecotactilismos originários entre o bebê e seu meio materno e familiar.
(ibid., p. 270)
O corpo é um organismo vivo, reprodutor e perecível. O corpo é uma força que se
dirige para os seres e as coisas que proporcionam seu desenvolvimento, mas é também uma
força se opondo aos seres e às coisas que travam seu desenvolvimento. O corpo são as pulsões
de vida que nos ligam ao mundo, bem como as pulsões de morte que nos separam de tudo que
ameaça nossa integridade; os dois grupos de pulsões, de vida e de morte, trabalham a serviço
da vida. É o corpo pulsional que denominamos corpo real ou corpo sentido. Para Nasio (2009,
p. 122), o corpo é forma, silhueta, o protótipo universal de todos os objetos criados pelo
homem. Nós o denominamos corpo imaginário ou corpo visto. Já o rosto “é o símbolo do
inconsciente, sua vitrine. Nós o denominamos corpo simbólico ou corpo significante”. Como
“organismo, força, forma ou símbolo, o corpo continua sendo o indispensável substrato de
todo sentimento de si”. Na busca do reconhecimento, oferecemos o corpo ao olhar do outro.
Da mesma forma, somos solicitados pelo corpo do outro a reconhecê-lo com nosso olhar. O
corpo é o nosso primeiro universo.
... nas crianças de tenra idade (e nas crianças em crescimento) o que primeiro
notamos foi que elas derivavam seus objetos sexuais de suas experiências de
satisfação. As primeiras satisfações sexuais autoeróticas são experimentadas em
relação com funções vitais que servem à finalidade de autopreservação. Os instintos
sexuais estão, de início, ligados à satisfação dos instintos do ego; somente depois é
que eles se tornam independentes destes, e mesmo então encontramos uma indicação
dessa vinculação original no fato de que os primeiros objetos sexuais de uma criança
são as pessoas que se preocupam com sua alimentação, cuidados e proteção: isto é,
no primeiro caso, sua mãe ou quem quer que a substitua. (FREUD, 1996, p. 94)
140
reconhecimento da mãe nesta função. Mas toda criança é fruto da relação de um casal. A
posição materna está diretamente vinculada com a parceria, condição de nascimento de uma
criança, feita com o pai, quer esta parceria seja desejada ou não. Esse trabalho psíquico
consiste no investimento pulsional do pai em relação ao bebê para conter a loucura materna.
Este trabalho ou função paterna sustenta uma distância entre a mãe e o bebê, necessária ao
surgimento do sujeito psíquico.
O que importa enfatizar neste ponto é que o ego é, antes e acima de tudo, um ego
corporal. O ego se constitui, se constrói. A noção de autoerotismo, por sua vez, designa um
estado original do psiquismo, anterior ao ego e às relações com o objeto, caracterizado pela
consciência de qualquer organização do conjunto pulsional. É imprescindível que algo seja
acrescentado ao autoerotismo para que o narcisismo se dê, ou seja, o investimento libidinal
dos pais no corpo da criança. A consequência desse investimento materno, no corpo do bebê,
o leva da fragmentação à construção de um corpo unificado, narcísico. As pulsões
autoeróticas são primordiais, estão lá desde o início; portanto, algo tem que se acrescentar ao
autoerotismo, uma nova ação psíquica, para que o narcisismo se constitua. O que se
acrescenta ao autoerotismo, para dar forma ao narcisismo, é o eu (Ich).
Entretanto, o eu encontra-se indissoluvelmente entrelaçado ao supereu e ao Id. Os
precursores do supereu podem ser averiguados desde o início da obra de Freud, mas sua
formalização se deu pela primeira vez em O Ego e o Id [1923], a partir da segunda tópica, que
divide o aparelho psíquico em isso (Id), eu (ego) e supereu (superego). Foi a descoberta da
pulsão de morte, no texto Além do Princípio do Prazer [1920], que levou Freud a abandonar a
primeira tópica (consciente, subconsciente, inconsciente) uma vez que esta não daria conta da
complexidade que o aparelho psíquico exige quando se apresenta um mais além do princípio
de prazer. Este traz consigo a pulsão de morte no aparelho psíquico, tema que será explorado
no próximo capítulo, já que este capítulo está dedicado à questão precedente da imagem
corporal na sua constituição do eu e do registro do imaginário, na formulação lacaniana.
Segundo Freud (ibid., p. 36-39, 52), o superego, herdeiro daquilo que mais tarde
se fará Lei em lugar do corpo materno, não é apenas resíduos das escolhas primitivas objetais
do Id, ele também se faz formação reativa energética contra essas escolhas. O que se passa, na
realidade, é que o ideal do ego tem por função reprimir o Complexo de Édipo. Se assim for, o
ideal do ego, herdeiro do complexo de Édipo, constitui paralelamente a “expressão dos mais
poderosos impulsos e das mais importantes vicissitudes libidinais do Id”. Assim, enquanto o
ego é o representante do mundo externo, o superego coloca-se a serviço do Id, o mundo
interno. “O ego é formado, em grande parte, a partir das identificações que tomam o lugar de
142
catexias abandonadas pelo Id”. As percepções internas são responsáveis pela produção de
sensações de processos que se originam no mais profundo estrato do aparelho mental.
Não há como separar a formação do ego e do psiquismo de sua vinculação ao
corpo. Um corpo narcísico que, por ser o alvo investido de libido e erotizado, se constrói a
partir da relação intersubjetiva entre o bebê e sua mãe (ou figuras substitutas). Nasio (2009, p.
19-21) nos diz que a imagem inconsciente do corpo é caracterizada pelo conjunto das
primeiras impressões gravadas no psiquismo infantil através das sensações corporais de um
bebê. Essas sensações foram sentidas pela criança antes mesmo de sua aquisição da palavra e
antes da sua imagem cartografada no espelho.
Uma excelente sistematização da ideia relacional mãe-bebê, constitutiva da
formação do eu, encontra-se na comunicação de Lacan no Congresso Internacional em
Marienbad, no ano de 1936, cujo título leva o nome de Estádio do Espelho, reescritura
lacaniana do narcisismo em Freud e do qual Lacan extraiu o registro do Imaginário.
O que marca a reflexão lacaniana é o fato do infans ser capaz de ver a imagem
unificada de seu próprio corpo e, “por uma identificação a essa imagem, formar um primeiro
esboço do eu (moi)”. Nessa experiência especular, o infans se vê numa totalidade organizada.
“O que importa para Lacan e para a psicanálise não é o fato de uma criança entre os seis e os
dezoito meses de idade ser capaz de perceber uma Gestalt, mas sim que ela faça dessa Gestalt
percebida o correlato identificatório do seu próprio eu” (ROZA, 1990, p. 110).
Assim, a primeira descoberta do infans acontece muito cedo. Entre 6 e 18
meses, o bebê surpreso, alegra-se ao ver seus contornos refletidos no espelho. Fascinado pela
imagem dupla, ou melhor, por seu duplo ali no espelho, a criança sente-se em estado de
júbilo. Ainda que seu sistema nervoso e motor estejam em desenvolvimento, a criança tem a
ilusão de triunfo e domínio sobre o próprio corpo ainda imaturo. Foi esse reconhecimento
lúdico da imagem especular do corpo, ou até mesmo da imagem global percebida pela criança
que Lacan conceitualizou jutamente como Estádio do Espelho, fonte para o entendimento do
que chamou de registro do Imaginário.
A imagem de seu próprio corpo, refletida no espelho, surpreende o lactente, pois
se vê esculpido em uma Gestalt que nada mais é do que uma imagem antecipatória da
coordenação e integridade que não possui naquele momento. “O fato de que sua imagem
143
especular seja assumida, jubilosamente, pelo ser ainda mergulhado na impotência motora e na
dependência da lactância”, em que se encontra aquele pequeno ser, “nesse estágio infans,
parecer-nos-á, portanto, que manifesta, em sua situação exemplar, a matriz simbólica na qual
o Eu (je) se precipita, em uma forma primordial, antes de se objetivar na dialética da
identificação com o outro e antes que a linguagem lhe restitua, no universal, sua função de
sujeito" (LACAN, 1949, p. 87). Isso ocorre porque “a forma total do corpo, graças à qual o
sujeito se adianta, em um espelhismo, à maturação de seu poder, não lhe é dada senão como
Gestalt”. Isto quer dizer que lhe é dada em “uma exterioridade onde, sem dúvida, esta forma é
mais constituinte do que constituída, mas onde, principalmente, tudo lhe aparece em um
relevo de estatura que a coagula e sob uma simetria que a inverte, em oposição à turbulência
de movimentos com que se experimenta a si mesmo, animando-a” (ibid., p. 87-88)
À luz de Lacan, portanto, a constituição do eu, também inseparável do corpo, se
dá na imagem especular. Para ele, “o Outro é aquele que me vê”. Ora, o que temos aí para nos
tornar presentes uns para os outros é o nosso corpo. “Se nos esforçarmos por assumir o
conteúdo da experiência da criança e por reconstituir o sentido desse momento”, diremos que
esse sentido se dá através do movimento de virada da cabeça, quando a criança ali se volta
para o adulto, invocando seu assentimento, e que, ao retornar à imagem, ela parece pedir a
quem a carrega, “e que representa aqui o grande Outro, que ratifique o valor dessa imagem”.
(LACAN, 2005, p. 32, 41, 100)
Essa lógica do olhar, segundo Lacan, tem início quando se dá a maturação da
visão do bebê. O Eu poderá se organizar frente ao olhar do Outro numa imagem totalizante na
fase de maturação visual da criança. O olhar do Outro faz marcas antes desse momento de
captura especular. “Antes de a criança estar apta a capturar, com a visão, qualquer estímulo
visual, ela é capturada por tais estímulos ou pelo olhar do Outro” (ibid.). Essa impressão
primitiva de captura pelo Outro segue na vida adulta e é de fundamental relevância, conforme
será visto oportunamente, para se pensar a questão do corpo em cena, pois não nos faltam aí
situações para marcar essas sensações primitivas, de um continuum de captura pelo Outro.
O protagonista do “Estádio do Espelho” não é o bebê, nem tampouco seu olhar,
mas sim a sua ilustre imagem especular cravada no espelho. Ao brincar com o espelho, a
criança sente-se orgulhosa de existir e dominar uma imagem que ela faz mexer como e no
momento em que quer. Ela deleita-se com a ilusão da onipotência e de domínio da sua
imagem e de seu corpo ali no espelho. Ao brincar com sua silhueta frente ao espelho, o infans,
embora feliz, vive também uma experiência desconcertante. Como podemos afirmar isso?
Quando vemos a criança desviando-se do espelho em busca imediata do olhar acolhedor e
144
cúmplice do adulto que a leva nos braços. Esse gesto de virar a cabeça revela-nos uma relação
triangular e não dual da criança com o espelho. O Outro, marcado pela presença do adulto que
a carrega nos braços, confirma com um sorriso ou outro gesto acolhedor que as duas imagens
refletidas no espelho são de fato as suas. O adulto não é somente cúmplice da alegria da
criança, mas também e, acima de tudo, crucial testemunha da cena.
O que ocorre, contudo, quando se perde de vista o olhar materno? Podemos
pensar a partir de Assoun (1999 apud QUEIROZ, 2007, p. 69-70) que há uma dor nomeada
como “trauma escópico de origem”. Ocorre uma espécie de “terremoto corporal no qual o
infans realiza a vivência da ausência do Outro”. Ele se dá conta da ausência da mãe pelo seu
campo visual, ao mesmo tempo em que falta o seu olhar sobre ele. “Cada um porta no seu
íntimo a marca do Outro Primordial”. Essa é a “marca indelével que institui, na unidade mãe-
bebê, a alteridade. Sob uma dupla ocorrência, a mãe ocupa, para a criança, o lugar do Outro
como tesouro dos significantes, instigadora do gozo”. (QUEIROZ, ibid., p. 75)
Como salienta Lasnik (2013, p. 162, 166), o que ocorre no registro do olhar,
também acontece no registro acústico. Quando a mãe fala com o seu bebê, ele responde com
um som qualquer. Assim, é da mesma ordem do som o olhar que antecipa aquilo que o bebê
ainda não é, ou seja, a unidade que se constitui através do olhar do Outro fundador e, assim
sendo, o que o bebê enxergará mais à frente será “o orgânico aureolado por este investimento
libidinal de que é objeto”. A resposta sonora do bebê é investida falicamente pela mãe, ela
escuta para além de um burburinho.
Como consequência, a vivência especular é, ao mesmo tempo, jubilatória, por
trazer a ilusão de completude, domínio e unidade que a imagem proporciona à criança, ao
mesmo tempo em que é dolorosa, por perceber a não correspondência de tal imagem com a
verdade da criança, visto que continua na dependência desse Outro. Ela se depara aqui com o
drama de confrontar-se com o desejo do Outro em contraposição ao seu próprio desejo. Nessa
“alienação essencial”, assim nomeada por Lacan, o sujeito tem a sua forma num campo fora
de si, mas cuja imagem é aquilo de que consiste o ego. É através do Outro que os limites da
forma vão fazendo corpo, mas se esse Outro se ausenta, no embate entre o sujeito e o espelho,
a imagem não se faz contorno pelas marcas que o olhar do Outro vai tecendo em presença
(QUEIROZ, 2007, p. 68-69). Essa “alienação essencial” de que fala Lacan é de fundamental
relevância para nós, pois, na maior parte das vezes, é essa alienação que a maior parte dos
discursos sobre o corpo deixam de perceber, embrulhados que costumam estar no júbilo
embevecido da ilusão de completude. É justamente esse embrulho que precisamos abrir para
chegar ao real do corpo que o duende nos pede.
145
De todo modo, o modelo constitutivo da criança parte de seu próprio reflexo. Ela
é o seu próprio modelo. Diante dessa imagem-modelo rudimentar de si, surge o Eu imaginário
e o Eu simbólico. Atravessada por esta imagem, a criança sente que ela é nos outros e que os
outros, por sua vez, são nela. Por isso, Nasio afirma que somos alienados em relação à nossa
imagem e ao nosso semelhante. Nossa imagem confunde-se com a do nosso semelhante.
Porém a grande questão é que, para sermos nós mesmos, somos obrigados a desvincular nossa
imagem da imagem do nosso semelhante. É desta trama que somos constituídos. Sem isso não
podemos dizer eu. É somente diante do semelhante que nos tranquilizamos, ao nos ver
humanos como ele, mas, ao mesmo tempo, a distância dele constitui o eu. Então, é sempre
dele que depende a nossa constituição? É condição sine qua non, a presença e, a posteriori, a
distância do Outro na constituição do que entendemos como eu?
A resposta pode ser encontrada se considerarmos o estádio do espelho como um
jogo entre o ver e ser visto. “Há o olhar do Outro que atesta a visão da criança e há o olhar
como objeto. A criança se volta para encontrar no olhar da mãe a confirmação do que ele
viu”. Se ficássemos na confirmação do olhar materno da imagem da criança frente ao espelho,
a coisa seria mais fácil, pois bastaria um olhar gratificado para dizer da criança a sua imagem.
Ocorre que, quando a criança olha para a mãe, pedindo a confirmação do seu reconhecimento
frente à sua imagem que se desenha no espelho, ela busca paralelamente se ver através do
ponto de vista do Outro, ou seja, ela interroga no olhar do Outro, o que esse Outro quer ver.
“O que eu vejo no espelho é o que tu desejas contemplar?” (QUEIROZ, 2007, p. 68-69).
Sim, pois o eu existe em nós e fora de nós, antes de tudo no espelho e no nosso
semelhante, pulsando dentro e fora. Essa concepção de um eu-extensão para além do
indivíduo é o outro lado da noção de eu-pele discutido por Anzieu, limitada ao indivíduo. O
eu-dentro direciona-se à imagem de nossas sensações internas, e o eu externo volta-se à
imagem especular refletida numa superfície ou sugerida pelos contornos de um outro. Por isso
mesmo, o eu não está somente em nós, mas também internalizado naqueles que amamos ou
odiamos. “É possível admitir que o substrato de nosso eu seja feito de uma profusão de
imagens corporais internas e externas, impressas ao longo de toda a nossa existência,
justapostas, superpostas e tão bem imbricadas que não saberemos dizer onde começa uma e
onde termina a outra”. (NASIO, 2009, p. 107)
Como arremate, resta neste ponto considerar que Lacan desenvolveu os conceitos
de Imaginário, Simbólico e Real. Esses três conceitos devem ser tidos como inseparáveis,
formando uma estrutura. Assim, o corpo pode ser estudado através de três pontos de vista
complementares, sendo eles: o Imaginário, como a imagem do corpo próprio a partir do outro
146
que marca a constituição subjetiva e, assim, a imagem assumida pelo sujeito; o Simbólico
como o corpo que é marcado pelo significante, levando a articulação entre a fala, a
linguagem, o corpo; o Real como energia psíquica da qual o corpo orgânico seria como uma
caixa de ressonância (CUKIERT, 2000, p. 110).
tempo, que o lugar dessa criança está inscrita numa genealogia. “Através do discurso sem
palavras, encenado pelo olhar, a criança acessa a palavra” (QUEIROZ, 2007, p. 69).
Assim, o Outro é vivido numa alternância de Outro onipotente e de Outro faltante.
A criança passa a viver dessa dupla na relação maternal junto à falta em relação ao Outro, ou
seja, a vivência infantil da falta (na) mãe e a falta (da) mãe. A separação do corpo da mãe
estabelece um vácuo entre a mãe, como corpo, continente, como afirmou Anzieu (1989), e a
mãe como Outro, produzindo com isso uma demanda de reencontrar, incessantemente aquele
continente que fora perdido pela/na separação materna. “Se ao nascer, ele perde a intimidade
do corpo materno, em contrapartida, ganha o olhar – olhar do Outro Primordial”. (ibid., p. 76,
77)
Ora, em algum momento, há que se interromper esse engodo materno. Segundo
Lasnik (2011, p. 103), para Lacan, a criança buscará apreender o desejo da mãe o que em
certa medida, pressupõe que essa mãe “esteja em busca de um desejo que ela possa significar
à criança como se desenhasse um lugar fálico primitivo”. O problema para a criança, que
busca perceber o desejo da mãe, reside justamente no fato de ser ou não desejada, isto é,
“poder vir ocupar o lugar do falo no desejo da mãe”. Mas, para essa questão se colocar, é
preciso também, pelo menos nas representações da mãe, “que a função do pai seja
reconhecida de modo que ele possa privá-la de seu filho. Essa privação constitui um primeiro
pedaço retirado no Outro materno”. No segundo tempo do Édipo, a função paterna se
apresenta como proibidor. “É com a fala uma vez que é ela que suporta a lei com que a
criança está às voltas”. No terceiro tempo da função, é necessário que haja, efetivamente, um
pai potente. O que se quer dizer com pai potente? Aquele capaz de satisfazer a mãe, visto que
é, por essa instância paterna, que a criança vai se identificar enquanto ideal do eu, àquele para
além da imagem no espelho.
Por isso, a rigor, o desejo não tem objeto. O desejo é marcado por uma busca
constante por algo a mais. O desejo deseja continuar desejando. Ele tem uma causa e não um
objeto. O que causa o desejo (objeto a) na criança é o desejo do Outro. “O objeto a é o resto
desse processo de constituição de um objeto, os restos que escapam ao domínio da
simbolização. Ele é o resto da perdida hipotética unidade mãe-criança”. (FINK, 1998, p. 120)
O desejo indecifrável no desejo do Outro funcionará como causa do desejo da
criança. Ora, a criança almeja ser o único e irrestrito objeto de afeto da mãe, mas o desejo
materno está além da criança. “Há algo sobre o desejo da mãe que escapa à criança, que está
além do controle desta”. A independência do desejo da mãe em relação ao desejo da criança
cria um corte entre elas, “uma lacuna, na qual o desejo da mãe, incompreensível para a
148
criança, funciona de uma maneira singular” (ibid.). O corte que se faz entre o desejo da mãe e
da criança leva ao surgimento do objeto a. “O objeto a pode ser compreendido como o resto
produzido quando a “unidade hipotética se rompe”, como último resquício da unidade, último
resto dessa união”. E quanto mais o sujeito se apega a esse resto na ilusão de uma totalidade,
mais ignora a sua divisão, ou seja, o corte que deve se operar. Esse apego é o que podemos
chamar de fantasia. O modo como vamos desejar está vinculado justamente a esse resto, ao
objeto a, mais precisamente à forma como gostaríamos de estar “posicionados com relação ao
desejo do outro” (ibid., p. 82-83).
Segundo Rivera (2005, p. 41-42), a Coisa, que está irremediavelmente perdida e a
busca em reencontrá-la, não cessa de se repetir, encontra-se encarnada no primeiro outro, a
mãe. “A nostalgia deste “objeto absoluto” guiará toda a atividade desejante do sujeito”, em
torno de frágeis simulacros desse objeto, que é ele próprio sem representação. Dessa maneira,
o que está em ação nessa empreitada, é reencontrar a Coisa, mesmo “cientes” da
impossibilidade radical desse re-encontro.
Na realidade, os objetos só se desligam e se separam do corpo ao preço da ação da
fala, ao preço do simbólico. Demandar do Outro equivale a dizer que a demanda erra o seu
objeto, possibilitando transformar o objeto real (seio) numa abstração mental (imagem
alucinada). Assim, o seio demandado, por intermédio da fala, converte-se em seio alucinado
do desejo. E o que nos mobiliza é a miragem dessa imagem que nos faz crer que, em algum
lugar, esse objeto será reencontrado no conforto do colo materno. A fala rasga o seio orgânico
rumo à viagem ao seio psíquico. “O seio que se separa do corpo da mãe e da boca do lactante
é transformado num seio psíquico, é o seio que aparece como imagem na alucinação de uma
criança satisfeita, no tocante a sua fome, mas insatisfeita no tocante a sua demanda”. O objeto
a assume a forma do seio alucinado, “reconhecemos seu estatuto de objeto do desejo, mas,
estritamente falando, em termos profundos, o objeto a não é o seio alucinado”. (NASIO, 1993
p. 104-105)
Portanto, é a linguagem que se responsabiliza por proteger a criança de uma
relação dual bastante perigosa, ao substituir o desejo materno por um nome (Nome-do Pai),
ou seja, o desejo da mãe é pelo pai. Nomeia-se o Outro do desejo materno o que tira a criança
da possibilidade de ser devorada por essa mãe. A língua materna, essa falada pela mãe, é a
língua da pele, de tudo o que é relativo ao corpo: numa palavra, do gozo. Lacan pontuará
alíngua, para firmar o quanto o inconsciente se manifesta numa língua. Alíngua é parte que se
mama, é a parte materna e gozosa da língua. Intimamente ligada ao corpo, Alíngua é cheia de
sentido (ibid., p. 54-55).
149
Somos falados, marcados por um Outro que sempre tem algo a dizer de nós, seja
por meio de seus desejos, frustrações, seja por seus anseios pessoais. “Esclareço a propósito
que, quando escreve o Outro com A maiúsculo (de Autre), como notou Lacan, convém
entender ao mesmo tempo a presença interiorizada de todos aqueles que foram, são ou serão
meus eleitos, bem como, mais globalmente, a influência social, econômica e cultural do
mundo em que vivo” (ibid., p. 61).
O ritornello3 do corpo especular e do eu pode ir nos conduzindo para a conclusão
deste capítulo, o eu que pode ser considerado como composto por duas imagens de naturezas
distintas, mas indissociáveis em sua constituição, sendo, portanto, a imagem mental de nossas
sensações corporais e a imagem especular da aparência refletida no espelho de nosso corpo.
Quando afirmamos que o eu é subjetivo, isto se dá porque obtém seu fundamento se e
somente se vivido de nossas imagens corporais. Ele é um conjunto de imagens de nós, quase
sempre contraditórias e mutáveis. Nunca falamos de um eu puro, mas sim como resultado de
uma interpretação pessoal e afetiva do que sentimos e do que vemos do nosso corpo. Essas
imagens sejam elas as das nossas sensações ou da nossa aparência serão sempre alimentadas
pelo amor e pelo ódio que sentimos de nós mesmos. Por isso, muitas vezes temos imagens
distorcidas de nosso eu afetivo e volúvel.
Na verdade, nunca sabemos e jamais saberemos sentir ou ver nosso corpo tal qual
ele é, mas sempre escravos de como pretendemos ou tememos que ele seja. A percepção que
temos de nós e do mundo é sempre modificada porque é fortemente influenciada pelos nossos
sentimentos primários, digamos assim de amor e ódio conscientes ou inconscientes. Essa
percepção deforma-se na medida em que as emoções infantis vão ressurgindo junto à presença
do Outro. “Concluímos, então, que muita gente vive, ama, sofre e morre sem saber que um
véu sempre deformou a realidade dos seus laços afetivos” (NASIO, 2007, p. 9-10). As nossas
fantasias existem graças aos nossos desejos que nos agitam. A fantasia pode ser vista como
“teatro mental catártico que encena a satisfação do desejo e descarrega sua tensão”. Ela
sempre encenará a satisfação de um desejo imperioso, e assim, incestuoso, que não pode ser
saciado na realidade. A fantasia nos serve no sentido de substituir uma satisfação real
3
Ritornello se refere ao verso ou versos que se repetem no fim de cada estrofe de uma composição. Significa
também prelúdio musical que se repete no decurso de uma composição. Seu sentido figurado é o de algo que se
repete muito. Essa palavra ritornello era bastante cara a Gilles Deleuze dada a grande atenção que esse filósofo
dava ao fenômeno da repetição e da diferença. É justamente essa dupla da repetição e da diferença que
enfrentamos quando se trata da transmissão do sabe psicanalítico cujos conceitos formam uma rede tramada, sem
que uma ordem linear possa ser estabelecida. Daí os retornos dos conceitos sob uma nova entonação e em uma
distinta articulação. Além disso, o caminho pulsional, que pretendemos percorrer no capítulo 5, tem tudo a ver
com o ritornello, assim como tem a ver com as repetições, sem as quais o flamenco não se faz.
150
impossível, por outra possível, no cenário psíquico. O que organiza a estrutura fantasística?
Poderíamos dizer que é a identificação do sujeito transformado em objeto. Ora, e mais,
“somos, na fantasia, aquilo que perdemos” (ibid., p. 37-38). Se aqui estamos delineando o
percurso daquilo que perdemos, vamos então, como resposta a isso, construindo a fantasia,
um anteparo, um véu, um corpo. A fantasia é resultante das operações psíquicas até aqui
exploradas. A fantasia entra em cena fixando o sujeito em certos fragmentos sobreinvestidos
do corpo.
Aí está o limiar, a condição mínima para que uma fantasia se instaure: que o sujeito
tome este ou aquele significante vindo do Outro com se lhe fosse destinado, isto é,
como signo. No nosso caso, o sujeito assume uma imagem significante para o signo.
Investir uma imagem significa supor-lhe uma destinação sem perceber que somos
corporalmente concernidos pelos efeitos que ela produz no real do nosso corpo. É
esse poder de provocar efeitos no real que outorga valor significante à imagem. Há
fantasia quando a imagem significa alguma coisa para o sujeito; nesse caso a
imagem é um signo; e, quando a imagem leva o sujeito à ação, a imagem é
significante. (ibid., p. 82)
Para se constituir, o humano deve servir-se como objeto do olhar do Outro capaz
de desenvolver um lugar no campo deste Outro. O reconhecimento deste Outro, a partir do
olhar que captura e nomeia, permite o acesso ao universo simbólico. Atravessados pelo Outro,
aprendemos a nos reconhecer. Então, o desejo assim como o corpo, ambos não são
inicialmente vividos como nossos, mas projetados e alienados no Outro. A criança é
inicialmente o desejo da mãe. O que vemos nessa relação é um desejo alienado no desejo do
outro. A saída da alienação se dá pela entrada do Simbólico, ou seja, a possibilidade de um
sujeito do próprio desejo, ali onde antes habitava apenas o desejo materno.
Ora, admitimos que a dinâmica alienação-separação percorre nossos caminhos no
decorrer da vida. É através dessa dinâmica que vamos aprendendo a lidar, manejar, guiar a
entrada de um e saída de outro e vice-versa. Na alienação, o Outro toma o lugar de sujeito, na
separação, “o objeto a enquanto desejo do Outro toma a frente e tem precedência sobre o
sujeito ou assujeita”. Na travessia da fantasia, abre-se a possibilidade de o sujeito ser capaz de
subjetivar a causa de sua existência, numa entrega ao que tange o desejo sem um objeto.
(FINK, 1998, p. 93)
A ausência não se veste de pura ausência, mas de um momento de contínua
sucessão de presenças-ausências, libertando o sujeito de um discurso que insiste em mantê-lo
refém de uma história que se tornará sua. O brincar é possibilitador de criação de litorais,
como lembra Anzieu (1989), como constituintes do sujeito. Criar (do latim creare) diz sobre
produzir uma coisa, que até então não existia, e que aqui tomamos como o nosso litoral. Ora,
151
pelo brincar, a condição de se tornar autor(a) dos atos criativos desdobra-se num saber-fazer-
se, o que implica retomar o Fort-Da nessa nova perspectiva.
Quando transpomos o saber-fazer-se para a encenação, há que se salientar algo
fundamental: o lugar do olhar. Nesse jogo de esconde-esconde, algo não se deixa alcançar
pelo olhar. Se pensarmos numa elaboração do simbólico, pode-se compreender que o carretel
é objeto visual no momento em que desaparece e se constitui visualmente na mente. “Seu
desaparecimento físico instala a imagem dentro de nós. O nosso próprio ato de ver não nos é
dado a ver, nem o modo como somos vistos por outros. Ou seja, não podemos ver como
somos olhados”, nos diz Noronha (2007, p. 72). O que vemos não é exatamente o que nos
olha. Ora, desde a nossa tenra idade somos olhados, constituídos subjetivamente por uma
exterioridade que nos olha, liga e afeta através do olhar do outro. Ao nos colocarmos em cena,
num ato de representação, estamos frente a um jogo que nos ensina a nossa condenação a
sermos objeto do olhar do outro. Nossa imagem é marcada por um olhar, que vai
cartografando uma forma ideal. Nosso eterno sonho do domínio. Porém, “essa imortalidade
sonhada e ligada a uma forma, o eu ideal, tenta sustentar uma unidade que não há”
(FRANÇA, 1997, p. 133).
Afinal, conforme foi afirmado por Noronha (ibid., p. 73), “somos constituídos
enquanto corpo e enquanto forma através do olhar e da imagem, do olhar do outro (do que nos
olha) e da imagem espelhada (quando nos olhamos no espelho e, inicialmente, nos
imaginamos um outro dentro do espelho”. É justamente nessa imagem que traçamos a
idealização que nos acompanhará e por meio da qual “resistimos ao corpo real, acessível
através da alucinação, da dor, do sofrimento, do êxtase físico”. Por isso, “somos um outro, um
outro no espelho e um outro aos olhos dos outros. E, nessa fixação emblemática, buscamos
uma eternização na imagem. Buscamos o emblema que sempre revigorará o objeto perdido
que somos e que apenas encontramos na esquina imaginária”.
Em função disso é que, para França (ibid.), a angústia produzida tanto na criação
artística, como no desfiladeiro dos significantes, este que tenta seu sentido no processo
analítico, se dá pela não garantia a partir de seus efeitos, mas pela produção de novos outros.
O seu efeito é causado pelos tropeços no real, numa origem desconhecida.
Será que aqui já não se poderia pensar acerca da fantasia como a mediadora
responsável nas trombadas do sujeito com o Real? Afinal, ela funciona como uma defesa
contra o Real. A fantasia como uma tela capaz de dissimular esse temido encontro, momento
intolerável que precisa ser mascarado. Mascarar o que? A castração, a falta primordial,
constitutiva. E aqui nos vem uma questão. Por que a falta é tão desagregadora na vida
cotidiana e faz tanto sentido no universo teórico? Ora, ainda que a castração nos venha
representada como um corte, sendo justamente próprio ao objeto de satisfação faltar, é que a
criança pode vir a se tornar um sujeito desejante. Se a mãe estivesse sempre lá, não haveria o
movimento inaugural da demanda. A fantasia funciona como uma matriz simbólica-
imaginária que permite ao sujeito fazer frente ao Real do gozo, tema que nos encaminha
necessariamente para a pulsão de morte a ser discutida no próximo capítulo.
A preocupação deste capítulo foi a de acionar os grandes eixos conceituais
concernentes à natureza inalienavelmente corporal do eu tanto em Freud quanto na imagem
especular de Lacan, imagem capturada no espelho do olhar do Outro e no desejo como falta
constitutiva. A incursão justifica-se porque estamos buscando fazer juz à radicalidade do texto
de Lorca, uma radicalidade que não pode ser minimizada em visões meramente imaginárias
do corpo, aliás, importante, mas nunca suficientes especialmente quando o corpo se vê apenas
traduzido em uma coleção de metáforas encobridoras. O que buscamos é aquilo que se
instaura no real do corpo. Entretanto, o que foi aqui apresentado são conceitos indispensáveis,
mas apenas introdutórios para a pretendida aproximação do real. Este ainda implica mais um
avanço a ser realizado no próximo capítulo.
IV
Em cena, a completude ensaia se instalar. Nesta escrita, diário que se faz público,
as confissões me levam a dizer e des-dizer a todo instante aquilo que, há instantes, me
nomeava. Cansada de me remontar frente ao espelho, não mais me reconheço nesse corpo e,
por isso, resisto. Quero sim conforto, um pouco de berço na armadilha narcísica. Com
calma, a analista vai impondo o real na costura imaginária. Breca esse estado idílico, na
completude de pequenas doses, pouco a pouco, no recurso do véu. Na análise, a coisa se
passa quando a fala tem o poder de atar o significante ao significado. A voz como resto dessa
operação. Libertado o dizer de suas amarras, novos enlaçamentos transformam a inércia do
gozo em plasticidade do desejo --- timidez metonímica. O complicado, de fato, é dar sentido
ao corpo para além da mecânica, um corpo que se desdenha na permissão. Um corpo que se
des-Ata em nós na demanda do duende: a carne se faz Real em cena.
Pela composição da escrita, o corpo se altera, sem manuscritos. Pensei que seria
um tempo mais extenso, mas, no embate do corpo e a sua retórica, o esboço das palavras
tenta deslocar-se. Como finalizar essa fábula sem me colocar naquilo que me propus a fazer -
- corpo? Retornei. Nesse repetitivo corpo arredio. Insiste, imperiosamente na gratidão em
não se fazer. Trapaceia. Como um grato inimigo na voz de um soldado impiedoso. Na forma
de um grande acting out, uma acrobacia sem salto, arrastada na escrita pela cena. Fatigando
na reserva da dor, a luta se faz impotente. Violando os seus direitos, o corpo se des- diz
novamente. Cansada, deito-me no olhar do outro que desvia e grita calado no seu dizer. Aí
está. Sem pretensões no comando, aquele que sabe sobre o seu corpo, oferta-se.
Repito-me para não perder as palavras que me vêm ao encontro. Encontro entre
este corpo escritura e o corpo em movimento que se narra-ação. Escritura do corpo numa
forçada lição de trazer o que do intransponível morre no ato de se tentar dizer. Insisto nesse
lugar onde o espaço se solidifica abismo.
Outro que me faz crer na reserva da completude. Que me alia à cena, contesta e,
nesse movimento, me faz cair --me levanta. Nessa ciranda infantil, algo de muito peculiar se
mostra. Um sujeito desafiado a assumir um lugar sem se colocar à prova de objeto do outro.
Quero me fazer sujeito. A-brigo-me objeto.
Ora, mas não sejamos injustos. Esse Outro me ajuda a mapear aquilo que do meu
corpo escapa. É nesse olhar que o meu corpo é capaz de se re-desenhar. Nas dores, na
tensão, ... o olhar dita o seu dissolver. E nesse dissolver vou me fazendo o outro. Um outro
que dispensa a capa das identificações que me ditam, e eu, entre a falta de graça e a
vergonha, descanso no receio, aceito e depois me arrependo do momento perdido. Por que
não se arriscar em um não lugar outro? Momento que vai se finalizando em um misto de
alívio e dor. Esse meu outro parte e me deixa um vazio. Momento de instalação. Sem rodeios,
me faço circular.
CAPÍTULO 5
FRENTE A FRENTE COM O REAL
imaginário do corpo, ou seja, a tida e repetida “inspiração do artista “como a única saída
encontrada para a sempre encoberta fuga pulsional. Como se a criação artística fosse sede do
instinto ao qual a linguagem não chega, como se fôssemos apenas animais, só corpos
desprovidos de fala e, portanto, alheios à falta de que somos constituídos. Em Freud (1996, p.
124), ao contrário, a relação da pulsão Trieb com o instinto (Instinkt) é descrita pelo termo
apoio. A pulsão se apoia no instinto não para confundir-se com ele, mas para desviar-se dele.
Aliás, a pulsão pode ser tida como a perversão do instinto, ao desnaturalizá-lo, na medida em
que ela se desvia de seu objetivo natural que é o da autoconservação. A pulsão só se faz
presente através de seus representantes psíquicos: a ideia e o afeto. Mas “a pulsão jamais atua
como uma força que imprime um impacto momentâneo, ao contrário, sempre como um
impacto constante. Além disso, visto que o impacto incide não a partir de fora, mas de dentro
do organismo, não há como fugir dele”.
Segundo Roza (1990, p. 13-15), o conceito de pulsão pode ser compreendido nas
relações entre o corpo e os objetos do mundo, pois a fonte da pulsão é o corpo. Referida à
linguagem, a pulsão ocupa uma região de silêncio. Está além. “Refere-se ao corpo, mas não é
corpo em si, sendo ainda corpo; ao mesmo tempo em que está além da linguagem, mas a
pressupõe. Conceito-limite, a pulsão nos ameaça com o silêncio teórico”. (ibid., 1986, p. 9)
algo distinto do natural biológico? “Se abandonamos a referência à linguagem, não há como
distinguir a pulsão (Trieb) do instinto (Instinkt)”. Mesmo sendo efeito de uma in-habitação da
linguagem, a pulsão seria a região do silêncio (num além), ela escapa à trama da linguagem e
da representação, marcando assim o limite do discurso conceitual. “É por metáforas que
falamos da pulsão”.
De fato, só podemos falar da pulsão devido ao corpo simbólico, ou seja, do “efeito
dessa in-habitação da linguagem que transforma o organismo vivo em corpo. Não foi este o
objeto das primeiras preocupações de Freud? O corpo da histérica? Que corpo é este? Esse
corpo, nomeado por Freud de corpo erógeno ou corpo imaginário, diferente de corpo
pulsional. “O corpo imaginário é o efeito de superfície resultante da articulação do real com o
simbólico”. Se admitíssemos o corpo pulsional como o corpo do simbólico, seríamos
erroneamente levados a colocar a pulsão no “espaço da representação, e não no espaço do
real”. Evidentemente há rastros da pulsão no psiquismo, mas há que se diferenciar: uma coisa
é o representante da pulsão no psiquismo, outra coisa é a pulsão ela mesma. Se estamos aqui
falando do representante e da pulsão ela mesma, há que se admitir “um outro registro do
corpo, para além do corpo simbólico”, este, por sua vez, cravejado pela marca da linguagem.
(ibid., p. 59, 60)
Temos que admitir, de saída, como foi explicitado no capítulo 4, que o corpo,
“enquanto corpo natural, é marcado pela falta”. Impossibilitado em sua autossuficiência, o
infans necessitará de algo externo a ele: “um outro corpo, para se manter vivo”. O corpo
natural é faltante. A essa falta, “as chamadas ciências da vida deram o nome de necessidade
(natural)” cuja narrativa diz que, uma vez instaurada, “a necessidade impõe uma ação cujo
objetivo será a supressão da necessidade e, assim, o preenchimento da falta. Essa falta será
preenchida pelo objeto (também natural)”. Isso pressupõe uma adequação natural entre as
necessidades do corpo e determinados objetos do mundo. Adequação natural pode ser
chamada de “adaptação ou harmonia estabelecida”. Essa “harmonia pré-estabelecida impõe
que a ação se faça segundo caminhos pré-formados”, a que chamamos “instinto”. Todavia, ao
conceber o mundo dessa maneira, somos inclinados a compreender “que as faltas naturais são
preenchidas com objetos naturais, e que, portanto, o natural não necessita de nada externo a
ele”. Para sua manutenção, basta um mundo estritamente natural visto como sem falta, fendas
e furos, ou seja, se o bebê tem fome, ele suga (ibid.).
A história teria um final “feliz”, e em seu sentido casual, o da completude, se,
neste mundo natural e sem fendas, a palavra não surgisse como uma emergência. Se a palavra
se faz emergência, ela necessariamente passa a significar os corpos naturais. Atravessados
161
Não podemos, portanto, falar da pulsão senão por referência ao simbólico, apesar
dela própria não ser da ordem do simbólico. No entanto, é o simbólico que em
última instância distingue a pulsão do instinto, pois é em função do simbólico que a
relação entre o corpo e os objetos do mundo sofre uma metamorfose, de tal modo
que, uma vez articulados como signos, os objetos produzem como efeito o sujeito.
Se “anatomia é o destino”, quem comanda esse destino é a palavra. Sem ela sequer
nos daríamos conta de nossa própria morte. É pela palavra que nos tornamos
mortais. (ROZA, 1986, p. 114)
A esse ser no qual a palavra fez sua emergência – e que foi por ela constituído --
podemos chamar humano. A rigor, a palavra não fez sua emergência no humano, mas o
humano, isto sim, constitui-se como um efeito dessa emergência. É a palavra que
“ressignificou ou simplesmente significou o próprio corpo com suas faltas, assim como os
objetos do mundo. O efeito imediato foi uma desnaturalização do corpo, das suas
necessidades e dos objetos do mundo, assim como o surgimento de uma nova ordem: a ordem
simbólica”. Como consequência dessa emergência, “o objeto absoluto foi perdido, e em seu
lugar entrou a falta, não natural”. Aquela harmonia pré-estabelecida se rompeu, os meios pré-
formados foram perdidos “e a adaptação tornou-se inviável”. A estória não se encerra por
aqui, a linguagem não exterminou com as faltas, elas permaneceram no corpo. O corpo
permaneceu com a sua não autossuficiência. “Só que agora, a ação desencadeada por essas
faltas ficou sem direção pré-determinada” (ROZA, 1990, p. 16). À deriva, o ser humano não
dispunha mais dos sinais inequívocos do objeto anteriormente natural e adequado. Sem esse
sinal, marcado por um objeto determinado e pleno, a satisfação tornou-se impossível. Isso não
é devido “a uma sinalização deficiente e ambígua, ou ainda a uma carência natural do objeto,
mas ao fato de que a ordem natural foi perdida e que, em decorrência, não há mais objeto
específico. Daí por diante, apenas uma satisfação parcial a ser possível”. (ibid., p. 17)
É por isso que, a partir da linguagem ou em consequência dela, a suposta ordem
natural, que o corpo teria em si mesmo, fora perdida e reduzida a uma ordem mítica. Se a
linguagem intercepta esse corpo biológico, naturalizado, e é disso que se trata na psicanálise,
há uma recusa, de saída, da ordem natural como princípio explicativo. Se a psicanálise afirma
ter seu ponto de partida na linguagem, há que encarar o corpo segundo referenciais que serão
os dela e não os da biologia (naturalista). “Isso significa que ela não pode considerar como um
dado, e, mais ainda, não pode considerar o corpo biológico como um dado essencial, sob pena
162
de se constituir como uma biologia de segunda mão” (ibid.). Isso não quer dizer que ela
recuse ao recém-nascido ser possuidor de um sistema nervoso, tronco, membros etc., mas que
estes elementos “não formam inicialmente um conjunto organizado da mesma forma que o
são para a biologia”, aqui ele nada mais é do que matéria sem forma, sem totalidade, de-
formada de partes, de limites indefinidos, sem organização própria e princípio de
funcionamento.
De fato, Lacan (2005, p. 78) nos lembra que não se trata de rejeitarmos as
referências biológicas, “mas desde que percebamos que, de fato, a diferença estrutural muito
primitiva introduz rupturas nelas, cortes, introduz de imediato a dialética significante”. O
significante, salienta o autor, não vem a ser outra coisa do que “aquilo em que se vê
aprisionado um animal à procura de seu objeto”.
O pequenino humano mama o amor e aspira para um além do leite, objeto de sua
necessidade, assim como aspira incorporar um seio invisível, uma inútil teta do
amor. O amor é o suplemento de alma cuja carência mata seguramente tanto quanto
a carência de alimento. Podemos supor que originalmente se esteja na presença de
uma pulsão, de uma única força cujas primeiras diferenças são as variáveis de
intensidade com que investem campos e objetos. Muito rapidamente, em função do
conflito psíquico, tais forças vão se dissociar em duas vias pulsionais que, a partir de
Freud, podemos chamar Pulsões de Vida e Pulsão de Morte. (ZYGOURIS, 1999,
p.9-10)
Roza (1990, p. 18-19) afirma que “essa matéria sem forma pode ser concebida,
como pura potência indeterminada, pluralidade de intensidades anárquicas”, a ver, pulsões.
Estas instalam uma nova realidade corporal, “irredutível ao natural, ao instintivo”, não
somente como desvio ao natural, como visto acima, mas “diferença pura”. As pulsões podem
ser vistas como puro estado de dispersão, “estado disjuntivo por excelência”. Assim, o corpo
resultante como diferença pura, será um corpo atravessado pela ordem simbólica, ou seja, pela
linguagem. Quando falamos de um corpo atravessado pela ordem simbólica, estamos
reafirmando, como visto no capítulo anterior, que o corpo biológico se refere às leis da
distribuição anatômica dos órgãos e dos sistemas funcionais, enquanto o corpo psicanalítico
obedecerá às leis do desejo inconsciente, àquele que é entrevisto nos sonhos e que se
engancha na história individual de cada um. Desse modo, como lembra Birman (1991),
passamos da lógica anatômica para a lógica da representação, portanto, para um corpo
atravessado pela linguagem e acossado pelas pulsões. É deste corpo que estamos tratando
nesta tese, o que implica um desconfortante arrebentamento das costumeiras e ilusórias,
embora necessárias, costuras do imaginário. Por conta disso, a “verdadeira dualidade em
163
Relançará ao acaso. Becker (2010, p. 127), dirá que, “a improvisação libera o indivíduo, de
certo modo, a ordenar o mundo e lhe oferece uma possibilidade de ordenamento menos
visível”. O acaso não seria, assim, o encontro com pedaços do Real? O risco inicial marcado
pela relação mãe-bebê pelo olhar/voz fundantes deixa vazios no próprio movimento da
pulsão, que, na dança, pode ser pensado como escritas corporais convocatórias do acaso.
Assim, o improviso liga-se a um certo relaxamento, a uma organização antecipatória, na
recusa ao caos como completa desorganização.
Falar do acaso ainda nos remete àquilo que Becker (2010, p. 127-128) diz, a partir
de Caillois (1969), sobre o conceito de vertigem, tido como “um fascínio que produz um
chamado sem possibilidades de recusa. Seria uma sedução mortífera, impossível de resistir,
experiência de um ser vivo que se lança para sua morte, numa contradição à pulsão de
autoconservação. Como se tivesse tomado por uma atração irrecusável...”. Assim “o que atrai
é o preenchimento inevitável deste vazio, tornando contínuo o que estaria descontínuo”. Lorca
(1933, p. 5), já nos dizia que “o duende ama a borda, a ferida, e se aproxima dos lugares onde
as formas se fundem num anelo superior a suas expressões visíveis”.
Tudo isso se torna mais compreensível quando se leva em consideração que as
pulsões não estão às voltas com o corpo organizado, mas sim com o corpo naquilo que ele
mantém de anárquico. “A pulsão não é uma força natural, mas não deixa de ser uma potência
corporal” (ROZA, 1990, p. 55). Disso Zygouris (1999, p. 15) conclui que a pulsão, “em sua
origem não é, portanto, nem boa nem má, ela só procura satisfação: é apenas devido à
inadequação do objeto e impotência do sujeito em encontrar o objeto adequado que ela se
torna destruidora do objeto tanto quanto do sujeito tentando manter um estado de menor
tensão”.
A fim de delimitar e diferenciar entre a ordem do instinto e a da pulsão, Freud
detalhou as características da pulsão cuja natureza parte do sexual: pressão (Drang), alvo
(Ziel), objeto (Objekt) e a sua fonte (Quelle). Segundo Fabrinni (1996, p. 47), a pressão diz
respeito diretamente ao papel ativo exercido pelo trabalho pulsional; o alvo direciona-se à
satisfação, que, como vimos discutindo a partir do Projeto freudiano, consiste numa remoção
da excitação interna desde sua fonte; o objeto através do qual a pulsão alcança seu alvo, que
não é de maneira alguma fixo, desloca-se quando mais próximo à satisfação e, finalmente, a
sua fonte, “que corresponde aos processos somáticos localizados, desde os quais as excitações
internas seriam representadas na vida psíquica”.
Contudo, já no seu início, a pulsão sexual é inibida quanto ao seu objetivo,
desviada de seus fins explicitamente sexuais e dirigida para objetos que não apresentam
165
nenhuma relação aparente com o sexual. Mesmo quando permanece alguma marca de sua
origem sexual, podemos afirmar que houve um desvio de objetivo e uma substituição de
objeto. Essa inibição quanto ao objeto Freud nomeou como sublimação. É enquanto
impossibilitada de sua realização, mas como ideia, que a pulsão se faz presente no psiquismo,
sendo que a sua satisfação se faz de forma fantasmática. O objeto é o que há de mais variável
na pulsão dada a impossibilidade da satisfação ser atingida. Portanto, a cultura não é um
resíduo inútil da pulsão, mas a multiplicação de suas possibilidades de satisfação (ibid., p.
16).
A suposição freudiana é a de que a pulsão procura uma satisfação que já foi obtida
um dia, na nossa “pré-história individual”, antes do interdito que nos tornou humanos.
“Portadora do gozo e da morte se viu forçada a fazer-se representar pelos seus representantes
para poder ter acesso ao mundo da subjetividade” (ibid., p. 17). Se, como já vimos, a pulsão é
tida como desvio do instinto, ela é, assim, um desvio da ordem. Toda pulsão é pulsão de
morte, já que ela não tem por objetivo a autoconservação a repetição do mesmo, mas é,
sobretudo, expansão, produção de diferenças, puro lugar de dispersão: “o instinto seria
reativo, ao passo que a pulsão seria atividade pura”. (ibid., p. 18).
pés e dedinhos na boca de sua mãe, e ela, por sua vez, lhe responde fingindo comê-los de
maneira extravagantemente prazerosa.
Este trajeto fecha-se em seu ponto de partida. “A partir daí, para a pulsão, não se trata mais de
ir na direção de um objeto da necessidade e de satisfazer-se, mas sim de encontrar um objeto
que a cause, isto é, que permita a ela percorrer todos os tempos necessários para o seu remate
e isto, inúmeras vezes”.
É importante frisar que, quando o terceiro tempo ocorre, há uma garantia de que,
no polo alucinatório de satisfação do desejo, haverá traços mnêmicos desse Outro materno,
assegurador. “Mas, mais precisamente, traços mnêmicos de seu gozo, deste momento em que
a mãe sorri de prazer para esse bebê que se faz olhar ou que oferece seu pé para ser comido”.
Como consequência, quando o bebê estiver ali sozinho, chupando o seu dedo ou chupeta
haverá reinvestimento dos traços mnêmicos desse Outro materno que Freud caracteriza como
representações do desejo. (ibid., p. 80)
Para Zygouris (1999, p. 10), a pulsão de morte pode tomar dois caminhos. O
primeiro leva a pulsão ao destino da homeostase, que tende ao mínimo de tensão, o outro, por
sua vez, destrutivo, tende a atacar ambos os objetos, internos (“incorporados”), e externos
(“inadequados a acarretar prazer”).
A morte como limite é o muro de Sartre, o que não pode ser experimentado porque
assinala o fim da própria experiência – pelo menos da experiência humana.
Poderíamos argumentar que, se a experiência da nossa própria morte é impossível,
podemos pelo menos ter a experiência da morte do outro. No entanto, tal experiência
é também impossível; quando muito podemos ter a experiência dos últimos
momentos da vida do outro, mas não podemos ter a experiência do seu próprio
morrer. Portanto, entre a morte, enquanto possibilidade última da existência de cada
um de nós, e a pulsão de morte, enquanto hipótese metapsicológica, há uma
considerável diferença. No entanto, ambas são recobertas pelo silêncio. Assim como
não podemos falar nada da morte em si mesma, também a pulsão de morte
permanece silenciosa. Isto não quer dizer, porém, que ambas não se façam presentes
na vida; em torno delas construímos nossos fantasmas, nossos mitos, nossas
religiões. Em torno da morte construímos, sobretudo, nossas ilusões. (ibid., p. 72)
Essa repetição jamais é desnuda, ela não aponta para um primeiro termo, mas
está irremediavelmente constituída pelo jogo interminável das máscaras. Não
possuímos uma sexualidade que é mascarada; a sexualidade é constituída
pelas próprias máscaras. A sexualidade humana é, essencialmente, disfarce.
Isto quer dizer que a repetição não é representação, a máscara não representa
um objeto, ela significa algo.
Ora, isto significa, então, que antes da pulsão constituir seus representantes
psíquicos pelo recalcamento primário, ela não é pulsão sexual, pois é
precisamente o diferencial prazer-desprazer que vai caracterizar o sexual,
segundo Freud. Neste caso, não é absurdo afirmar que é o recalcamento
originário que constitui a própria pulsão. (ibid., p. 51)
Será que não podemos, a partir disso, pensar que o recalcamento é o responsável
pelo jogo de máscaras no qual a participação da pulsão se dá pelos seus representantes? Ora, a
repetição é um ato pelo qual a pulsão se des-vela em seus representantes. Será que o Real não
estaria imbricado nesse ato de velar a pulsão na repetição? Mas como teríamos acesso ao
Real? Se aqui estamos às voltas com o seu disfarce? Ora, através das máscaras. Mas, não nos
enganemos ao pensar que o Real se revela nas máscaras. Ele está além delas. Além do
princípio do prazer. “O real está além da repetição, não porque seja contrário a ela, mas
porque a funda”. A pulsão é corpo na medida em que busca uma maneira singular do corpo se
articular com a linguagem e os objetos. É na rede significante que a sexualidade se constitui e
em relação à qual podemos dizer sobre o desejo.
171
núcleo de nada, esse núcleo de ter sido o desejo do Outro que nos dá sustentação, buscando o
reconhecimento nos olhares dos outros (semelhantes). Todavia, no lugar da falta, surge a
angústia não como sinal de uma falta, senão algo que nos aparece duplicado, ou seja, a falta
de apoio dada pela falta. (ibid., p. 64)
O que provoca a angústia é tudo aquilo que nos anuncia, que nos permite entrever
que voltaremos ao colo. Não é, ao contrário do que se diz, o ritmo nem a alternância
da presença-ausência da mãe... o que há de mais angustiante para a criança é,
justamente, quando a relação com base na qual essa possibilidade se institui, pela
falta que a transforma em desejo, é perturbada, e ela fica perturbada ao máximo
quando não há possibilidade de falta, quando a mãe está o tempo todo nas costas
dela, especialmente a lhe limpar a bunda, modelo da demanda, da demanda que não
pode falhar. (ibid.)
Na teimosa repetição do que fomos um dia para o desejo do outro, é que vem o
gozo, tema que será tratado com cuidado à frente. A demanda é sempre demanda de algo que
possa eliminar a falta-a-ser, sim, falta-a-ser desse lugar que demandamos e ao qual nunca
chegamos. Na origem da falta-a-ser está a castração, o corte da unidade mãe-filho. Daí
condiciona-se o desejo que mobiliza a demanda. Esta vem sempre de um lugar imaginário. O
que sou para o outro? E sair da demanda imaginária do que o Outro quer de mim exige uma
transferência de saber, da ordem simbólica. O desejo do sujeito não encontra outra saída a não
ser fazer-se palavra endereçada ao outro. E o desejo não tem uma relação com os seus objetos
concretos, mas sim com o fantasma e as fantasias que vão se construindo.
Nesta dinâmica da alienação e castração (corte) fatores que se implicam
reciprocamente, a castração cumpre a função de impulsionar o sujeito a ir ao encontro do
Outro. O objeto falta, a saída para o sujeito é formular a fantasia. A fantasia para o objeto
faltoso é a representação imaginária do objeto perdido. Esse objeto, suporte da fantasia não é
nada mais do que a representação imaginária do objeto perdido, aquele que causa o
movimento do desejo. Sem desejo não há deslocamento, não há procura, não há busca desse
objeto, sempre faltoso. Toda a realidade do sujeito será atravessada pelo desejo que enquadra
e emoldura a realidade. Ela é a roupagem da pulsão. O eu é como a voz do Outro e seu
intérprete interno.
Ora, o eu aprendeu, desde a tenra idade, que a satisfação vinha sempre do outro. O
eu confundiu a procura da satisfação pulsional com a procura de amor. Ao concluir que a
satisfação vinha do outro e que era preciso respeitá-lo, o eu vai barrar, impedir toda moção de
desejo que precisamente comprometa o respeito e o amor do Outro. O eu entra numa
emboscada, preso na armadilha, na ilusão de que ele não pode obter satisfação senão através
173
Falamos da histeria como vetor para o entendimento dos conceitos que nasceram no corpo
biológico rumo a um corpo simbólico. Mas esse corpo real? Do que se trata?
Na relação natural entre corpo-objeto, estamos às voltas com a sonhada plenitude,
ao passo que, na relação humana entre corpo-objeto, mediada pela linguagem, se marca a
impossibilidade de completude. Esse objeto absoluto é a Coisa (das Ding). Sendo assim,
qualquer objeto pode ser objeto da pulsão, visto que não se trata de um objeto específico. E
para ser objeto da pulsão é necessário ter relação com o desejo. Entre a pulsão e o desejo, há a
fantasia. “Desta forma, um objeto só se constitui como objeto da pulsão se ele se fizer objeto
para o desejo. Como é pela fantasia que o objeto se articula com o desejo, ela é mediação
necessária entre a pulsão e o objeto”. (ROZA, 1990, p. 65)
Nessa medida, “a pulsão é a relação que o sujeito mantém com o objeto pela
fantasia. E aqui, retornando à fantasia, conceito já brevemente enunciado no capítulo anterior,
ela é responsável pela articulação entre a pulsão e o objeto, ao mesmo tempo em que oferece
ao desejo seus objetos”. Ela se faz tela entre o sujeito e a pulsão. “O objeto a é, ao mesmo
tempo, resíduo e índice da Coisa”. Ele pode ser tido como efeito da perda do objeto absoluto.
No lugar dessa perda há um furo, uma falta central na qual se organizamos significantes.
“Esse furo, Lacan afirma, é da ordem do real”. Seria a responsável em domar o gozo para que
o prazer faça a sua entrada. (ibid., p. 66)
Segundo Volich (2000, p. 133-134), pelo prazer da lembrança da primeira
satisfação e da possibilidade do bebê em reproduzi-lo, estrutura-se a experiência autoerótica,
e, assim, a vida da fantasia. Isso fica mais claro se nos lembrarmos do segundo tempo
pulsional, pontuado por Lasnik (2013), sobre o qual já discorremos mais acima. Por conta
dessa experiência primordial de satisfação, a atividade da fantasia vai se estruturando. A
fantasia exerce uma “função de ligação da excitação do organismo, sendo também uma
condição essencial para a estruturação das instâncias psíquicas e para a constituição do
princípio de realidade”. É através dela que, diante da “reemergência” de um estado de
excitação, “a inscrição da experiência de satisfação [pode] ser psiquicamente reinvestida e
evocada como uma primeira tentativa de evitar” o prazer atravessado pela lembrança da
experiência da satisfação e o desprazer marcado pela tensão.
Como salienta Lacan (2008, p. 71, 75), o mundo da percepção que nos foi
revelado por Freud, parece depender da alucinação fundamental sem a qual não poderia haver
qualquer atenção disponível. Na realidade, o que é buscado é o objeto sobre o qual o princípio
do prazer funciona. Funcionamento este que, no tecido da trama, torna-se suporte ao qual se
vincula toda a experiência prática. A perda do objeto absoluto é a perda de algo que nunca
175
existiu, visto que estamos, desde o começo, inseridos na e atravessados pela linguagem. Lacan
(ibid.) acrescenta que a coisa só se apresenta a nós na medida em que é capaz de acertar a
palavra, “como se diz acertar na mosca”. Por isso, no texto freudiano, a maneira pela qual o
estranho se apresenta, na primeira experiência da realidade, é através do grito. “A busca
encontra assim, pelo caminho, uma série de satisfações vinculadas à relação com o objeto,
polarizadas por ela, e que, a cada instante, modelam, temperam, embasam seus procedimentos
segundo a lei própria ao princípio do prazer”.
A pulsão e a perda desse objeto são resultantes da incidência da palavra sobre o
corpo, sem contar com um antes, estado anterior relativo a essa incidência. Na pulsão, o
desejo e seus objetos nada mais são do que efeitos da linguagem. “O homem é pensado a
partir dessa falta do absoluto, e, no entanto, é para esse absoluto que ele se dirige enquanto
desejo. Se o desejo é falta, ele aspira à plenitude”. Mas se esse objeto falta, algo fica em seu
lugar assinalando a falta. E o que fica é justamente o objeto a. O objeto a nada mais é do que
um furo por onde os significantes flanam. “Ele não é o seio, não é corpo da mãe, não se
identifica com a Coisa: ele é aquilo que, no espaço de representação ou na rede de
significantes, aparece como falta central”. Todos os objetos vão se apresentando como
pretendentes ao seu lugar. A falta marca o real, e não este ou aquele objeto.
No movimento rumo ao objeto, “a pulsão o contorna e retorna à fonte”. Se o
contorna, não o faz efetivamente, pois cria uma distância permanente entre o objeto faltoso e
o objeto para o qual ela se dirige. Essa distância é tida como índice da falta, que acaba
fazendo com que ela retorne em direção à fonte, reiniciando o seu movimento em direção ao
objeto. Não havendo a satisfação plena, visto que nenhum objeto é plenamente adequado, a
insatisfação sempre será pano de fundo à pulsão que não se esgotará no objeto “nunca
absoluto”. Por conta disso é que se denuncia um movimento de idas e vindas, esse retorno em
circuito, que nada mais é do que a repetição (ibid., p.68), uma repetição que encontra na
sublimação um tipo de vicissitude cuja consideração é importante no campo da criação
humana, no caso, na dança da qual estamos aqui tratando, já que promete o encontro com a
satisfação, mesmo que à custa do desvio que promove quanto ao seu alvo sexual.
Ora, mas as fantasias nos causam sentimento de repulsa, visto que são oriundas
daquilo que é recalcado. Freud conjectura que, caso o artista nos relatasse suas fantasias, isso
nos causaria, de imediato, vergonha, exatamente como aquela que vivemos numa sala fechada
com o analista. Esse relato desprazeroso nos leva a sentir repulsa, ou, então, quando é contado
por um terceiro, nos deixa indiferente ao conhecimento de suas fantasias. A grande questão
em voga é que, ao contrário, quando um escritor criativo nos apresenta suas façanhas, ou nos
relata o que julgamos ser seus próprios devaneios, sentimos um grande prazer. Lacan (2008,
p. 166) afirma que, “os artistas utilizam a descoberta das propriedades das linhas para fazer
ressurgir alguma coisa: que eu esteja justamente lá onde não se sabe mais para onde se virar –
ou seja, exatamente, um lugar nenhum”. Isto porque:
As nossas relações com os objetos são sempre mediadas pela fantasia, levando-
nos ao estatuto da coisa (Das Ding). “Esse objeto estará aí quando todas as condições forem
preenchidas, no final das contas, é claro que o que se trata de encontrar não pode ser
reencontrado. É por sua natureza que o objeto é perdido como tal. Jamais ele será
reencontrado. Alguma coisa está aí esperando algo melhor, ou esperando algo pior, mas
esperando”. (LACAN, 2008, p. 68)
Os objetos capturados pelo sentido humano da visão são caracterizados por Kant
como “fenômenos ou entes do sentido: objetos da percepção que possuem uma materialidade
empírica” (QUINET, 2002, p. 33, 37). De maneira bem resumida, a experiência para Kant é
uma síntese das percepções, na qual a percepção visual ganha um papel de destaque. Ora,
“nos fenômenos, os objetos e mesmo as qualidades que lhes atribuímos são sempre vistos
como algo de realmente dado”. A partir disso, podemos dizer que a experiência nos dá os
objetos como fenômenos, mas nunca as coisas em si. A coisa em si (das Ding), diferente do
objeto da experiência fenomenológica, não tem como ser conhecida, por não ser apreendida
pela percepção visual ou qualquer outra e, tampouco, pela representação. “A coisa em si é a
coisa considerada como independente de nossos sentidos e de um conhecimento empírico”. O
que nos resta então é apenas [pensar] na coisa em si, uma vez que “conhecer e pensar se
divorciam, seus objetos divergem”.
Lacan retoma o caminho aberto por Kant com o conceito de coisa em si para
formalizar o seu conceito de objeto ao qual nossas primeiras visitações se deram no capítulo
4. Associar a coisa em si e objeto a é falar da sua irrepresentabilidade, aproximando-a do
conceito freudiano de das Ding. “O para além do mundo fenomenal é o para além do
imaginário e do simbólico que o sustenta”. O que isso quer dizer? O registro do Real é aquele
que escapa ao espelho e à representação, no lugar do nada, do “nenhum ser”, restando apenas
seu semblante. O objeto a é assim tomado como véu de ser para o sujeito. O ser é o furo. É a
falta-a-ser. O ser é nada. Esse falso ser, apoiado no simulacro do objeto a, encontrará
suportes, “encarnações determinadas pela pulsão do sujeito, ou seja, as quatro modalidades do
objeto a: oral, anal, olhar e voz”. Vamos nos ater às duas últimas.
180
Pensamos no objeto a como perda quando ele se reveste das imagens semânticas
relativas aos lugares erógenos do corpo: o seio, o olhar, a voz etc. Todas essas
imagens são, na verdade, capas de a, máscaras carregadas de uma significação
corporal, maquilagens que Lacan categoriza com o termo “semblante de ser”; mas,
insisto, o próprio objeto a é, em si, um real opaco, um gozo local, impossível de
simbolizar. (NASIO, 1993, p. 108)
da lei). A lei que ocupa o lugar da Coisa se apresenta a nós como a lei moral, lei do Supereu
no Édipo. O universal da lei moral, uma lei para todos é, paradoxalmente, o que toma o lugar
do mais particular do sujeito, a Coisa. A forma como o ser humano articula o desejo, que
nasceu dessa Lei, é que nos faz trilhar caminhos distintos e subjetivos retificados pelo objeto
a.
A articulação assim se ata: o objeto a aponta ao retorno no real do gozo esvaziado
da Coisa pela Lei simbólica, resto da operação simbólica promovida pela Lei. Essa Lei vem
para cortar o estado de completude impossível ao gozo do desejo materno, efetivado pela
transgressão ao incesto. A Lei esvazia esse lugar mítico e impossível. Um lugar que só
aparece como traços alucinatórios para fazer com que o desejo não pare. O objeto a não deixa
de ser experiência, não na ordem fenomenológica. Mas experimentamos o objeto a na medida
em que causa o nosso desejo ao final da entrada da Lei.
É neste ponto que se cobrem de relevância as origens de um das Ding neuronal,
termo que foi utilizado por Freud no Projeto ([1895], 1996, p. 377-380), ao discutir suas
hipóteses sobre o aparato psíquico humano, com as quais demos início ao capítulo 4. O ego,
em sistemas de neurônios permeáveis quando se encontram em “estado de desejo”, acaba por
catexizar novamente a lembrança de um objeto, colocando o processo de descarga em
atividade. Ocorre que, ao re-catexizar o objeto, a satisfação não se impõe, visto que o objeto
não é real, “mas está presente apenas como ideia imaginária”. Isso porque o sistema de
neurônios permeáveis é incapaz de estabelecer essa distinção, já que só pode “funcionar como
base da sequência de estados análogos entre neurônios”.
Ao lado da catexia do desejo, há uma percepção que corresponde a essa catexia
apenas em parte. As catexias perceptivas são sempre catexias de complexos e não de
neurônios isolados. A suposição de Freud é a de que a catexia do desejo se relaciona com o
neurônio a + neurônio b, e as catexias perceptivas, com o neurônio a + neurônio c. “Também
aqui a experiência biológica ensina que não é seguro iniciar a descarga se as indicações da
realidade não confirmarem a totalidade do complexo, mas só uma parte dele”. Podemos dizer
que o neurônio a se mantêm em constância, e que o neurônio b é, habitualmente variável. “A
linguagem aplicará mais tarde o termo juízo a essa análise e descobrirá a semelhança que de
fato existe [por um lado] entre o núcleo do ego e o componente perceptual constante e [por
outro] entre as catexias cambiantes e o componente inconstante.” A linguagem nomeará o
“neurônio a de a coisa, e o neurônio b, de sua atividade ou atributo – em suma, de seu
predicado”. O neurônio a (a coisa) se apresenta constante, no meio externo e, no mundo
interno, liga-se a uma identidade perceptiva, que não se representa sem a presença do
182
neurônio b, que seria os seus predicados. “A materialidade real que não pode mais ser
alcançada, não sendo assimilável ao pensamento, deixa um lugar vazio, criando uma
diferença, que será apreendida e nomeada através do juízo”. (FABRINNI, 1999, p. 76).
Freud (ibid., p. 380-384), afirma que julgar é um processo dos sistemas de
neurônios impermeáveis graças à inibição pelo ego “e que é evocado pela dessemelhança
entre a catexia do desejo de uma lembrança e a catexia perceptual que lhe seja semelhante”. A
coincidência entre as catexias se converte num sinal biológico que coloca fim à atividade do
pensamento, permitindo uma descarga. Quando as catexias não conversam, a atividade do
pensamento retoma curso, que voltará a ser interrompida pela coincidência entre ambas. Se o
neurônio a coincide nas duas catexias, mas o neurônio c, por exemplo, é percebido no lugar
do neurônio b, a atividade do ego trilhará as conexões de c, e mediante uma corrente de
atividade intercelular, fará surgir novas catexias até que se encontre acesso para o neurônio b
desaparecido. O projeto será voltar ao neurônio b desaparecido, liberando a sensação de
identidade, isto é “o momento em que só é catexizado o neurônio b e em que a catexia
migratória desemboca no neurônio b”. Ele será alcançado quando um deslocamento de
quantidade de ordem intercelular se faça ao longo de cada via possível. O juízo se caracteriza
como uma atividade intelectual, que substitui o recalque, possibilitando o reconhecimento de
algo que:
tendo sido percebido originalmente como pura exterioridade, deixa em seu rastro um
nada, um vazio, uma impossibilidade ou um “não”. Este “não” é o que dá –
paradoxalmente, a possibilidade para eu decidir se uma ‘descarga” (ou um
investimento objetal) pode ser efetuada tendo como alvo um objeto que se encontra
no mundo, na realidade, para além da representação. É claro que a regulação desta
descarga pelo processo de juízo ou julgamento só se tornará possível se houver
coincidência entre o investimento ligado a uma lembrança e o investimento
perceptivo em algo que guarde com a mesmas relações de semelhança. (FABRINNI,
ibid., p. 76-77)
Isso nos leva a crer que a identidade da coisa, como perdida, será substituída, do
ponto de vista do funcionamento neuronal, por algo que lhe seja equivalente, jamais igual. Por
isso, iremos insistir no fato de que a separação da mãe ou do seio que a representa
originalmente para a criança, “é uma espécie de imago da coisa freudiana, das Ding”.
Estamos em torno de uma identidade inicial perdida, um “fora-do-significado” (ibid., 1999, p.
80).
Roza (1990, p. 83) enfatiza que das Ding, como já apontado acima, é o objeto
perdido, ainda que nunca o tenhamos tido e que deve ser representado. O que é mais
importante ao entendimento dessa questão reside no fato de que, ao procurarmos essa coisa, a
183
Freud confere à sua Vorstellung um sentido próprio. Para ele, a Vorstellung diz
respeito ao elemento imaginário do objeto, a uma composição imaginária que forma
o que Lacan chamou de “substância da aparência”, entendendo-se “substância”
como a decepção fundamental com que é marcada toda aparição. A Vorstellung é o
que se constitui ao redor da coisa (Ding) como fantasma. (ibid., p, 86)
Como discutido no Estádio do Espelho, mas agora avançando para a relação com
Das Ding, a mãe ocupa o lugar de das Ding para o infans. Ela não é o das Ding, mas ocupa
esse lugar, na medida em que das Ding é o centro por onde circulam as representações-coisa.
Isso fica muito mais compreensível quando se percebe que “das “em alemão pertence ao
gênero neutro o que lhe permite ocupar a posição imantadora das representações-coisa.
“Desejar a mãe é, portanto, desejar das Ding”. Essa mãe é interditada pela cultura, e graças a
isso nos constituímos como humanos, ou seja, a interdição do incesto funda o humano. Ora, o
que possibilita a demanda, fundadora do inconsciente, é a impossibilidade de satisfazer o das
Ding. Possuir o das Ding é análogo à infração do incesto ao registro do natural. Ora, satisfazer
o desejo pela mãe nos levaria ao fim, ao término, “à abolição do mundo inteiro da demanda,
que é o que estrutura mais profundamente o inconsciente do homem” (LACAN, 2008, p. 85).
Interessante pensar, com Lacan através de Freud, essa ideia de que não existe um Bem
Supremo e que esse Bem Supremo, que é das Ding, que pode ser caracterizado pela mãe, o
objeto do incesto, é um bem proibido, não havendo, de fato, outro bem.
Algo no nível das representações ou significantes aponta para a coisa. “Esse algo
não é uma coisa, nem tampouco a própria coisa disfarçada, travestida de objeto, mas um vazio
que não pode ser preenchido adequadamente por objeto algum”. Isso é o que Lacan nomeia
por “objeto a”. Para que não façamos confusão, o objeto a não é o das Ding sobre que vimos
falando, mas a testemunha do “das Ding como objeto perdido”. Testemunha porque não se
trata de um objeto específico, mas de um furo, um vazio. Esse objeto, por ser um furo, é
ausente, para sempre. O objeto a é objeto causa do desejo e não o objeto do desejo. Se
pudéssemos nomear o objeto do desejo, falaríamos de fantasia. A satisfação só será possível,
impreterivelmente quando mediada pela representação. Já vimos que a pulsão não tem objeto
próprio (natural), seu objeto será oferendado pela fantasia, obrigando à pulsão a articulação da
cadeia significante.
A função do objeto a, por mais estranho que possa parecer, é ser “produtor da
falta, e sua relação com a pulsão é a de ser contornado por ela”. “Aquilo que aponta para das
Ding, mas que ao mesmo tempo a contorna, é a pulsão” (ibid., p.88-90). Interessante notar,
ainda com Roza (ibid., p. 97), que, em Freud, a característica fundamental do aparelho
psíquico é que ele está voltado não para a satisfação da necessidade, mas sim para aluciná-la.
Ora, o princípio de realidade não se dá à aparição para corrigir o mundo interno em relação ao
externo, mas sim o “mundo interno em relação a ele próprio”. Na verdade, o objeto procurado
não é aquele que encontramos. O que encontramos é um efeito ilusório de nossa procura. A
função do objeto encontrado é preencher o vazio do objeto procurado, sem jamais consegui-
lo. Enquanto presença ilusória, ele não possibilita a satisfação plena. Esse é o objeto do
desejo. Das Ding é o objeto da pulsão. (ibid., p. 105)
É no caminho de incessante busca para atingir das Ding que se cria o lugar do que
é perdido. “O objeto a é o furo brilhante do olhar que porta a imagem do gozo, imagem
inapreensível, sempre a escapar”. Esse furo nos leva às aberturas, orifícios, buracos ou bordas
erógenas geradas sempre pela tensão e movimento. O objeto a não tem imagem especular, ele
185
devolve o seu vazio, aquela parte onde a forma não se faz imagem. A esse objeto inacessível
ao espelho é que a imagem especular vem dar uma vestimenta, assumindo uma infinidade de
formas (FRANÇA, 1997, p. 89). O objeto a é faltoso por excelência e, na medida em que o
desejo, para se colocar em circulação, mantém uma relação íntima com a falta, o objeto a
assumirá o lugar de objeto causa do desejo. Sem falta não há desejo, porque o desejo precisa
se prestar da falta para se movimentar. Por isso, o objeto a nos serve para assumir o lugar de
falta-causa. Jorge (2000, p. 52, 54-55), de forma clara diz:
Assim, se Lacan destaca quatro objetos a primordiais, cujo traço comum é o de não
possuírem imagem especular – quais sejam, o seio, as fezes, o olhar e a voz -, é justo
porque eles são unidos pelo mesmo denominador comum, o nada. O seio é o objeto
a somente na medida em que “especificado na função do desmame, que prefigura a
castração”, e o excremento, na medida em que é o objeto que o sujeito “perde por
natuteza”. O olhar e a voz, do mesmo modo, presentificam tal perda, uma vez que
representam “suportes que [o sujeito] encontra para o desejo do Outro”.
A demanda da criança mira o corpo nutridor e erra o alvo, ao passo que o desejo
visa ao incesto impossível e se depara com o seio erótico. Por isso, insistimos na ideia de uma
demanda insatisfeita na medida em que nunca será encontrado o objeto real que se almeja de
que decorre o desejo também insatisfeito, porque nunca alcançará, na mesma medida, a meta
impossível, o incesto. A relação se construirá da seguinte maneira: a demanda não é satisfeita
pelo objeto concreto que lhe falta e o desejo ficará insatisfeito por não poder atingir o incesto
impossível. À demanda sempre lhe faltará o objeto que é, portanto, irrealizável, ao passo que,
ao desejo, falta o incesto, mas ele se “ergue” no sentido de se deslocar, na medida em que
encontra pelo caminho um substituto, o objeto alucinado, objeto este que se apresenta sob a
capa da fantasia.
Evidentemente o desejo é intolerável, mas ainda capacitado para nos proteger de
um gozo infinitamente mais intolerável. E vamos aqui compreendendo as tais satisfações
parciais do desejo, ganhas pelo caminho da busca de uma satisfação total jamais atingida.
“Todos esses objetos de natureza diferente sustentam e mantêm o desejo aquém da suposta
satisfação absoluta que seria a posse incestuosa do corpo total da mãe”. Repetimos: “a criança
jamais possuirá o corpo inteiro da mãe, mas apenas uma parte”. E essa parte só existirá na
cabeça dela pela alucinação e por uma outra produção psíquica, a fantasia, que são
equivalentes no que tange à “posse” psíquica do objeto parcial do desejo”. (NASIO, 1993, p.
110-111)
Queiroz (2007, p. 55), dirá que, para Lacan, a construção freudiana de objeto
perdido é um tanto quanto nostálgica. Lacan prefere conceber que há uma falta inicial sem
186
apoio de objetos próximos à satisfação da necessidade. “É enquanto faltante que tal objeto
nomeado como ‘objeto a’ põe em movimento o sujeito e não o sujeito que, por iniciativa
própria, lança-se em sua procura”. Lacan parte do simbólico no qual todo objeto assume valor
de troca. Trata-se sempre de uma dinâmica em que o sujeito, na relação com objeto, demanda
ou recusa, proposto ou imposto, ou se trata de um objeto que lhe exige, signo de amor ou
ódio. “O objeto a, enquanto real, corresponde ao objeto pulsional”. Mas resta ainda perceber
que esse objeto de pulsão, o objeto a, é uma espécie de quociente constante, uma forma de
designar com a letra “a” uma desconhecida, a constante da perda através das perdas
sucessivas. Diferentes elementos virão alternadamente ocupar o lugar vago do furo, para
depois abandoná-lo. (NASIO, 2007, p. 71)
Dessa forma, vemos na boca e no ânus os dois orifícios do corpo por onde passam
as primeiras marcas das trocas primordiais entre o sujeito e o Outro e que receberão “a
significação segundo o seu valor de dom recebido ou recusado. Dar ou tomar são verbos
ativos pelos quais o sujeito interroga o lugar que ele ocupa na relação com o Outro”. E é
justamente isso que está em causa na pulsão escópica, “qual é o desejo do Outro para além do
que ele mostra e do que o bebê é capaz de captar?” (ibid.). Ora, não é o objeto enquanto tal
que é desejável, porque se assim o fosse, estaríamos às voltas com algo mais apreensível,
mais linear e menos retórico, por assim dizer, mas o que está de fato em jogo, é esse tal
desejável objeto, enquanto objeto do desejo do Outro. Aí sim, a pergunta trama-xamã desse
grande imbróglio psíquico se faz história.
Assim como ver se trata da função do olho e o olhar da pulsão escópica, o ouvir é
função do ouvido e a voz é objeto da pulsão invocante. Dessa forma, o olhar como objeto a,
“longe de assegurar a possibilidade da visão, é o que não deixa ver o objeto porque o
atravessa”. Sempre estaremos atrelados a um outro que nos olha e nos captura. O olhar vem
primeiro de outrem e, por tal razão, a pulsão guarda um lugar especial na formação do Eu
dada na relação primitiva com o Outro (ibid., p. 56-57). No dizer de Queiroz (2007, p. 61):
“sem o olhar do outro, não existimos, mas a maneira como somos olhados define um destino”.
Na sua relação com o conceito psicanalítico do gozo correlato ao sintoma,
segundo Nasio (2014, p. 84), o objeto a é o nome que o real assume quando o localizamos no
cerne de um acontecimento que se repete. “O objeto pequeno a é o nome do gozo que o
sujeito experimenta inconscientemente na cena fantasística e que experimenta
conscientemente no sintoma” (ibid., p. 84).
O gozo é o que vem para substituir, mais precisamente, a perda da unidade mãe-
criança. “Podemos imaginar um tipo de gozo antes da letra”, antes da entrada do simbólico,
dada na relação unificada e sem mediadores entre a dupla, uma ligação “real entre
187
elas, que cede ante o significante”, anulada devidamente à função paterna. Uma parte dessa
ligação real é encontrada na fantasia, “na relação do sujeito com o resíduo ou o subproduto da
simbolização”. (FINK, 1998, p. 83)
Tendo isso em vista, a questão, que aqui se precipita no que diz respeito ao corpo
em cena, assim se enuncia: se pensarmos na fantasia como um estado no qual a divisão
subjetiva, essa que é operada por um corte significante, não vacila, deixando o sujeito fixado
em certos fragmentos sobreinvestidos do corpo, não estaríamos falando de um sujeito cuja
travessia não se fez e acaba congelando significantes em cena, em vez de “metonimizá-los”
como caminho, atalhos em construção? Com medo de apagar-se nessa cadeia capaz de trilhar,
própria do sujeito da linguagem, a fantasia se faz forma ao desejo que não cessa. “A realidade
psíquica é uma fantasia forjada no movimento de contornar e tratar o furo do real; a essa
definição, acrescentamos agora: o modo segundo o qual o sujeito trata o real é um modo
corporal, é com o corpo que a fantasia se sustenta e faz barreira ao gozo”. Corpo este que se
tenta unificante à imagem que sempre falta. Nas encruzilhadas, é o corpo que responde como
substância corporal de um suporte imaginário na construção da sua “defesa”, a fantasia. (ibid.,
p. 77-78)
Aí está o limiar, a condição mínima para que uma fantasia se instaure: que o sujeito
tome este ou aquele significante vindo do Outro com se lhe fosse destinado, isto é,
como signo. No nosso caso, o sujeito assume uma imagem significante para o signo.
Investir uma imagem significa supor-lhe uma destinação sem perceber que somos
corporalmente concernidos pelos efeitos que ela produz no real do nosso corpo. É
esse poder de provocar efeitos no real que outorga valor significante à imagem.
Há fantasia quando a imagem significa alguma coisa para o sujeito; nesse caso a
imagem é um signo; e, quando a imagem leva o sujeito à ação, a imagem é
significante. (NASIO, 2007, p. 82)
O sintoma pode ser tido como uma das “imagens através das quais a experiência
se apresenta”. Se transportarmos isso à análise, porque, afinal, é daí que toda essa rede de
188
O inconsciente é uma trama tecida pelo trabalho da repetição significante, ou, mais
exatamente, o inconsciente é uma cadeia virtual de acontecimentos ou “dizeres” que
sabe atualizar-se num “dito” oportuno, que o sujeito diz sem saber o que está
dizendo.
O inconsciente é uma linguagem que liga os parceiros da análise: a linguagem liga,
enquanto o corpo separa; o inconsciente ata, ao passo que o gozo afasta. (ibid., p.
23)
Se, para o eu, o sintoma vem à superfície como vestal da dor, para o inconsciente,
por sua vez, significa desfrutar de uma certa satisfação. É essa morada apaziguadora
191
inconsciente do sintoma que podemos tomar como uma das imagens principais do gozo. O
gozo seria uma satisfação inconsciente? Sim, mas isso seria simplório. Para não ficarmos na
superfície, é preciso caminhar com Nasio (1993) e Dunker (2002) a fim de entendermos a
teoria do gozo proposta por Lacan, teoria complexa que irá distinguir três modos de gozar que
serão imperiosos para as articulações a serem desenvolvidas no capítulo 6.
Lembramos que Freud já dizia que o ser humano é “perpassado pela aspiração”
latente e nunca realizável de atingir um objetivo impossível, que é aquele da felicidade
absoluta. Essa felicidade se reveste de diferentes roupagens, dentre elas a de um “hipotético
prazer sexual absoluto”, vivenciado no incesto. Essa aspiração a que chamamos desejo, esse
ímpeto nascido pelas zonas erógenas corporais, gera uma tensão psíquica, “uma tensão tão
mais exacerbada quanto mais o ímpeto do desejo é refreado pelo dique do recalcamento”.
Quanto mais austero o recalcamento, mais o aumento de tensão se faz. Frente a esse
implacável muro chamado recalcamento, o desejo se articula de maneira simultânea para duas
vias opostas. A via da descarga (energia que se dissipa) e a via da retenção (energia que se
conserva e se acumula como uma energia residual).
Sendo assim, uma parte da energia atravessará o muro do recalcamento,
descarregando-se ao exterior, “sob a forma do dispêndio energético que acompanha cada uma
das manifestações do inconsciente (sonho, lapso ou sintoma)”. É essa descarga, incompleta
que nos proporciona certo alívio; a outra, confina-se no interior do sistema psíquico,
superexcitando as zonas erógenas, superativando assim o nível da tensão interna. E uma
terceira possibilidade, tão hipotética quanto real, a saber, a descarga total de energia, ou seja,
o prazer sexual absoluto, aquele da ordem do impossível para que o desejo se faça possível.
(NASIO, 1993, p. 26). Pensando com esse autor (ibid., p. 29), os três destinos apontados pelos
caminhos da energia psíquica corresponderiam ao que Lacan designou pelo termo de gozo,
em seus três estados de gozar. Teríamos na correspondência:
1. O gozo fálico como a energia que se dissipa durante a descarga
parcial, tendo como efeito um alívio relativo, sempre incompleto na leitura
192
inconsciente. Gozo fálico porque o limite que abre e fecha o acesso à descarga
energética é determinada pelo falo, se preferirem uma leitura freudiana, o
recalcamento. O falo (barreira/muro) regulará a parcela do gozo que vazará e a que
permanecerá dentro do sistema inconsciente. É nesse vazar que os acontecimentos
inesperados, palavras, fantasias e o sintoma darão as suas caras.
2. O mais-gozar é a energia (gozo) que permanecerá retido no
interior do sistema psíquico, cuja saída, de maneira um pouco grosseira, é
impedida pelo muro freudiano ou pelo falo lacaniano. O advérbio “mais” indica
essa energia não descarregada e, seu excedente o responsável pela constante tensão
da intensidade interna.
3. O gozo do Outro, estado tão almejado na mesma medida em que
se faz hipotético, corresponderia à situação perfeita, em que a tensão fosse
totalmente descarregada, sem o entrave do muro-falo, ou seja, sem limite algum.
Esse é gozo complicador, na medida em que o sujeito supõe no Outro, sendo o
próprio Outro, igualmente, um ser suposto.
Um parêntese relativo a esse último tópico se faz necessário, visto que, de alguma
maneira, o gozo do Outro acaba nos remetendo à questão da constituição subjetiva, cujo
olhar/toque/voz se fazem protagonistas da cena. Lembramos que, como afirmou Queiroz
(2007), qualquer que seja a resposta lançada do Outro à criança será sempre um desmentido
da realidade do desejo do Outro.
Dunker (2002, p. 38) diz que, através do conceito de falo, a teoria do valor,
explicitada acima, assumiu uma importância mais clara. “Se o falo não é o pênis é porque o
falo é o valor atribuído ao pênis”. O falo é capaz de introduzir o sujeito no problema da
diferença sexual, pois ele vai coordenando as trocas necessárias ao desejo junto ao valor de
gozo, efeito dessas trocas. Gradativamente, Lacan foi aprimorando o conceito de gozo, que
não apresenta mais tantas saídas através de operadores puramente linguísticos, e o falo, por
sua vez, foi se limitando. O que quer dizer esse limite? Que o falo passará a ser pensado como
uma função, a função fálica, por assim dizer. Se o falo toma o lugar de função, o gozo ganha
força e forma para ser inscrito. E dessa combinação teremos o gozo fálico. Construção
importante para delimitarmos, mesmo que ainda de maneira crua a relação do corpo dançante
em cena a um gozo fálico que ali se faz gesto.
Assim, na teoria lacaniana, o falo não vem como uma nomeação do órgão genital
masculino. Nasio (1993, p. 31) afirma que “é o nome de um significante muito particular,
193
diferente de todos os outros significantes, que tem por função significar tudo o que depende,
de perto ou de longe, da dimensão do sexual”. Ainda que o gozo não tenha significantes que o
representem, o falo se responsabiliza em delimitar o trajeto do gozo. O falo marca e significa
cada uma das etapas que o gozo percorre. “Ele marca a origem do gozo, materializa pelos
orifícios erógenos, marca o obstáculo com que se depara o gozo (recalcamento), marca ainda
as exteriorizações do gozo, sob a forma do sintoma...”.
Para Dunker (ibid., p. 42), Lacan mostrará que “o gozo é algo que se imagina e se
antecipa como realizado no Outro”. Para além de uma satisfação vivida na experiência sexual,
a pergunta de como tal experiência foi para o outro é sempre crucial. Crucial porque nessa
satisfação, como já vimos desde o infans, acaba-se por calcular a inclusão ou a exclusão da
satisfação do outro nesse container. E nesse movimento, a noção de gozo se faz por um
“ultrapassamento, um acréscimo, na realização da pulsão”. Haja vista, como vimos frisando,
que aquilo que retorna do Outro, o materno primordial da linguagem, sempre portará a marca
da insatisfação ou da parcialidade.
Não podemos pensar o gozo como não inscrito no cálculo do prazer. Ai está ele
sim, mas como anomalia no sistema. O gozo investe na suposição de uma completude
atribuída ao Outro. A administração feita pelo gozo ou o cálculo do gozo, segundo Dunker
(ibid.), trará consigo sempre a imagem da completude e, se estamos presos na imaginarização
da totalidade, retomamos a dinâmica com o Outro cravado na alienação, no fazer-se objeto do
gozo do Outro (terceiro momento do circuito pulsional, marcado por Lasnik (2013), discutido
mais acima). O gozo aqui implicará de certa forma, a submissão, o assujeitamento do outro ou
a mestria de um corpo dócil, pensando na cena, neste momento. Mas o gozo aqui não nos
remeteria à pulsão de morte, assim, a uma certa destrutividade? Entendemos que falamos de
algo que extrapola o prazer, e, assim seríamos levados ao sadismo em Freud.
Dunker (ibid., p. 80-81), aponta algo importantíssimo com relação à posição do
corpo no gozo. Se voltarmos para Freud, a finalidade da pulsão é sempre o prazer. “O prazer
dependerá de uma região no corpo que recolhe o circuito pulsional, as zonas erógenas”. Os
objetos visarão à sua utilidade no circuito pulsional. Existe assim o valor que algo assume
quando pode ser reduzido, incorporado ou utilizado na esfera do corpo. Não estamos aqui
194
falando do corpo biológico, mas sim do corpo fantasmático. “É para este regime corporal que
o prazer assume valor como realização imaginária”. As fantasias, para Freud, sustentam o
sintoma, segundo Dunker. Já Lacan nomeou de fantasma o articulador central dessas fantasias
inconscientes. É, portanto, ao fantasma que as formações parciais de gozo são remetidas,
apresentando-se em sintomas específicos.
Assim sendo, o elemento, que organiza a sexualidade humana, não é propriamente
o órgão genital masculino, mas a construção da sua representação com base nessa parte
anatômica masculina. O falo vai, de alguma maneira, orquestrando a evolução da vida sexual
infantil e adulta conforme esse pênis imaginário, esse que se refere à ordem da representação
psíquica. Lacan, como já foi mencionado, sistematizou a dialética do jogo presença/ausência
em torno do falo através dos conceitos de falta e significante (NASIO, 1997 p. 33). Por isso,
as satisfações serão sempre parciais e, no campo da insatisfação, toca a vida do gozo
incestuoso. O significante fálico se apresenta como o limite que separa o mundo da
sexualidade, de saída, insatisfeita, do mundo “imaginário” e, portanto, suposto de um gozo
absoluto, esse marcado pela hipotética completude. A castração, conceito que se tornou uma
fala corriqueira do senso comum, não se define somente pela formulação freudiana da ameaça
provocadora da angústia no menino, nem tampouco, pela constatação de uma falta na origem
da inveja do pênis na menina. Ela concerne, fundamentalmente, a separação entre a mãe e a
criança.
A mãe coloca o filho no lugar de falo imaginário e, ele, receptivamente,
identifica-se com esse lugar, colocando-se à disposição no preenchimento desse desejo
materno. A criança se encaixa na parte faltosa do desejo insatisfeito do Outro materno,
consolidando, imaginariamente, a mãe como possuidora do falo e o filho como quem acredita
sê-lo. Nesse engodo do ter e ser, o pai, agente responsável pelo corte, se é que podemos
nomeá-lo assim, é o representante oficial da lei, e, portanto, da proibição daquele gozo
absoluto que desembocaria no incesto. Só que há que se pensar que esse ato não é
necessariamente “produto de uma pessoa física”, mas a operação simbólica da fala paterna.
“O agente da castração é a efetuação, em todas as suas variações, dessa lei impessoal,
estruturada como uma linguagem e completamente inconsciente” (ibid., p. 37). A castração é
simbólica na medida mesma em que assujeita cada um à ordem simbólica na assunção de um
limite ao gozo. Ainda que a castração seja simbólica, o objeto é imaginário. “Ela é a lei que
rompe a ilusão de cada ser humano de se acreditar possuidor ou identificado com uma
onipotência imaginária”. (ibid., p. 38)
195
Lacan não toma o gozo por uma entidade energética, na medida em que ele
corresponde à definição física da energia como uma constante numérica: a energia
não é uma substância, lembra Lacan, “é uma constante numérica que cabe ao físico
descobrir em seus cálculos”; e, mais adiante: “qualquer físico sabe, claramente...,
que a energia não é nada além da cifra de uma constância”. Exatamente por essa
razão, o gozo”... não constitui energia, não pode inscrever-se como tal”. Como
vemos, para Lacan, não sendo o gozo matematizável por uma combinação de
cálculos, ele não pode ser energia. Não obstante, apesar do extremo rigor da posição
lacaniana, fiz questão de apresentar e definir o gozo servindo-me da metáfora
energética – tantas vezes empregada por Freud-, porque ela me parece a mais
apropriada para dar conta do aspecto dinâmico e clínico do gozo. (ibid., p. 32)
Parece bastante ilustrativa e válida essa correlação realizada pelo autor, uma vez
que podemos pensar que o trabalho inconsciente implica o gozo e o gozo, por sua vez, uma
energia que se desprende (gozo fálico) no trabalho do inconsciente. Ainda que gozo do Outro
seja a possibilidade de um gozo supremo, aquele que mata o desejo, tenhamos em mente que,
mesmo assim, essas imagens excessivas e absolutas não deixam de ser “imagens fictícias,
miragens enfeitiçadoras e enganosas que seguem alimentando o desejo”. Não é o “engodo que
fascina e ilude os olhos da criança edipiana, levando-a a crer que o gozo absoluto existe e que
seria experimentado numa relação sexual incestuosa igualmente possível”? Por conta disso, o
gozo, seja qual for a sua forma, será sempre um gozo sexual. Mas, vejamos que não se trata
de um gozo da ordem do genital, mas que tem no seu destino a marca da imagem mítica.
(ibid., p. 28)
O gozo do Outro, que corresponderia à posse psíquica do corpo total da mãe, é
substituído pelo mais-gozar (objeto a) que corresponde ao corpo parcial. “O objeto a para
Lacan não é, propriamente falando, o seio alucinado, objeto do desejo. Em termos escritos, ele
é o furo, o gozo enigmático e inominável que Lacan chama de mais-gozar”. O “mais” remete
exatamente ao advérbio de intensidade como um excesso ou um a-mais de energia residual,
inassimilável para o sujeito. “Esse excesso de gozo inominável e enigmático, chamado a,
pode assumir todas as imagens corporais, visuais, auditivas, olfativas ou táteis que participam
do encontro desejante (incestuosamente insatisfeito)”, entre a dupla mãe-bebê ou, como
viemos nomeando, entre o sujeito e o Outro. (ibid., p. 117). “Numa palavra, o gozo é, no
inconsciente e na teoria, um lugar vazio de significantes”. Dunker (2002, p. 128), nos lembra
que “o gozo é quantidade fora de lugar, é quantidade indecifrável”.
É a partir disso que Lacan formulou sua controvertida frase: “Não existe relação
sexual”. Ele não quer dizer que não exista o encontro, a união genital entre o homem e a
mulher, mas que não existe relação simbólica entre um suposto significante gozo masculino e
um suposto feminino. Isso porque, para o inconsciente, não há significantes capazes de
196
significar o gozo de um e de outro. O que isso quer dizer? Que o gozo é um lugar sem
significante e sem marca que o singularize. Por isso, para Nasio, “Não existe relação sexual
absoluta, isto é, não conhecemos o gozo absoluto, não existem significante que o signifiquem
e, por conseguinte, não pode haver relação entre dois significantes ausentes”. ( ibid., p. 31)
Assim, o encontro do homem e da mulher, do ponto de vista do gozo, é um
encontro que diz respeito a lugares parciais do corpo. “É um encontro entre o meu corpo e
uma parte do corpo de minha parceira, entre diferentes focos de gozos locais”. Não há, como
dito acima, significantes que signifiquem a natureza de um gozo, seja ele absoluto (ilimitado)
ou relativo (limitado). Ainda assim, o gozo pode, sem que haja um significante que o
represente, se aproximar, delimitar e circunscrever as zonas locais em que o corpo goza. “A
psicanálise conhece apenas as fronteiras significantes que delimitam as regiões do corpo que
são focos de gozo” (ibid., p. 30). “Confrontado com os efeitos maléficos de um vazio
constituinte” aquele que cria “não pode senão bordejar, criar algo que acalme o furo em seu
aspecto voraz. Há, desta forma, uma substituição. Cria-se um objeto no lugar da Coisa. O
objeto reencontrado pela criação permite que a coisa seja perdida. (CRUXÊN, 2004, p. 42)
Se admitimos que o inconsciente é uma cadeia de significantes em ação e que o
gozo não tem um significante que o represente, não faltaria, nessa cadeia, um elemento?
Suponhamos que a resposta seja sim. O que deveria ter representado o gozo como
representante significante apresenta-se apenas como lugar. O do furo. Gozo como furo sem
representante. Sem seu representante, ele não ficará ileso nessa trama, ele se contentará, como
que sem saída, com os véus da fantasia e do sintoma. O gozo como a comunhão entre o furo e
o véu. Aqui se encontraria o duende, nessa jornada de lusco-fusco de um corpo a criar,
operador que causa o desejo e o faz circular pelas trilhas dos passos? Duende que percussiona
e ressoa nos ecos em consonância com o olhar e a voz que se fazem desenho entre o furo e o
véu?
Ora, lembremos que o gozo é aquilo que se tenta omitir nas brechas que escapam
pelo véu. A esse gozo desmedido (gozo do Outro), o desejo vai se realizando com fantasias
através do sintoma. Qual seria a nossa defesa frente a um tirano desenfreado na busca de uma
satisfação total, portanto, impossível -- o desejo? “Para não alcançar o gozo do Outro, apesar
de sonhado, o melhor é não pararmos de desejar e nos contentarmos com substitutos e telas,
sintomas e fantasias”. (ibid., p.36)
nada sabemos dela a não ser em sua formatação digitada num sintoma consciente. A fantasia
se reserva num lugar mais profundo, ao passo que o sintoma vem à superfície.
Se o sintoma vem numa tentativa de nos dizer pelo sofrimento, há que se fazer
uma pergunta elementar e, por aí, ir entrando um pouco mais fundo nos conceitos que nos
foram cruciais nesta pesquisa. Ora, o que em nós repete? De saída, já podemos afirmar que o
que se repete em nós é algo que, evidentemente, já aconteceu no passado, mas que volta para
o presente sem cessar. Assim, o presente nos chega, como afirma Nasio (ibid., p. 40), como
uma “lente deformada do passado”. Por isso, a recordação é o resultado da reinterpretação
subjetiva de uma realidade passada e, nunca, em sua fiel versão. O ponto crucial é saber que
repetimos uma maneira de amar, mas também uma maneira de nos separar ou fazer o luto de
alguém que amamos. A repetição está ligada a atos de amor e a atos de separação.
A partir daí, podemos entender uma certa dinâmica que nos é posta quando em
cena. Será que ali não reatualizamos a cena dionísica de completude com o Outro, momento
em que nos empoderamos e re-construímos a cena de um tão sonhado reencontro? Como no
ritornello, há que ir e voltar. É também disso que se trata: poder fusionar e separar. Ir para
poder voltar. Quase como num estado psicotizante na possibilidade de separação. Mobilidade
de labuta e trabalho. Ao fim e ao cabo, aí reside o verdadeiro trabalho artístico da vida,
transitar entre as duas dinâmicas, o amor e a separação, responsáveis por tecer os fios da
nossa história subjetiva.
pulsional, poderíamos visualizar uma flecha que se projeta para frente, retrocede, mergulha
naquele passado traumático, enlaça o gozo e retoma sua progressão para frente.
Ora, tudo aquilo que nos toca afetivamente na vida nunca é real, mas fantasiado,
como vimos repetidamente afirmando. Então, podemos dizer que toda fantasia é, de alguma
maneira, precedida por outra fantasia, marcando assim, a nossa história por uma
“estratificação de fantasias significativas”. Por trás de um sintoma que se repete, há uma
fantasia que se revela e, por trás dela, há o real. “O real é o enigma do começo, mas é também
o enigma do fim..., o real é o desconhecido que emoldura a repetição na ordem do tempo..., é
também o cordão que liga as diversas miçangas da série repetitiva”. Assim sendo, o que
insiste em se repetir é o gozo foracluído, aquele recalcado numa cena fantasiada. Cada
reaparição do gozo, sob o disfarce de um sintoma, será um significante, ao passo que sua série
de reaparições será a cadeia dos significantes. A repetição se coloca como função no efeito da
produção do sujeito do inconsciente. (ibid., p. 82, 87).
Uma travessura fez-se corpo. Mas foi um movimento tão rápido que o motivo se
enlaça para lá das palavras. Escorregam, sim, como num brinquedo, elas me vão e não
retornam, na imagem de uma criança que se acomoda em sua descoberta. Uma sonoridade
esgarçada na falta de vínculos. A sensação do inesperado em cena. Veio e se foi tão
rapidamente que o único registro que se tenta aqui é aquele de um suspiro. Um corpo que se
cansa na habilidade do fracasso. Sim. Adaptado aos erros. No susto, um acerto que dialoga
de outra casa, a vizinhança se aproxima. Não é algo tão estranho assim enquanto cena.
Depois, o respiro. Vacilo. Esperar o inesperado para se dar. Correr nesse espaço. Na pausa,
me redesenho. Preencher como se pode num corpo que se contorce. Pela rota, me falo gesto.
Sempre impreciso, mas ali um esboço se traduz. É nele que preciso me ater. E nessa
querência de sensações, me prezo, escaldada sensação. Não quero aqui me debruçar sobre o
voltar da cena, mas do ir, refutar e voltar. É nesse lugar que vou me focar, se o corpo deixar.
É nesse ir e habitar. É nesse ir e me fazer desejar. Tentativa severa de não ocultar o desejo
que se quer. Desejo de desejar. É nessa carência que me desejo nesse querer. Querer de ir.
Querer de apropriar. Querer de memorar. Querer de não se afugentar nas esguias manobras
daquilo que me repete. E na repetição não tenho um caminhar que se faça verdade. É na
repetição que me sobreponho frente a um desejo que me oferece ir. De tão covarde, a pausa
se oferece um ir e não voltar. E como me atrever a ante-ver algo que de mim não foi?
Atrevida manobra. Nessa audácia me recolho sujeito. Objeto que se diz no espelho do olhar
do Outro. Pelo Outro que me elege? Enquanto presa na suposição de um olhar que me diz
sempre num desdizer, o corpo regressa. Nesse olhar me conto. Não. Me esquivo. Enquanto
trapaça, me esqueço corpo.
Num novo pulsar, a música me afasta. Bailar o inaudível? Nos insípidos retornos,
uma marca capaz de causar -- baile. Uma luta que se estende entre notas musicais e corpo
que se de-forma. Um antagonismo que me impede de bailar. Há que se fazer pela música. É
atravessado por ela que o corpo prepara sua ficção. Num desfiladeiro de notas, o corpo se
apresenta nas marcas do Outro, e, nesse Outro, se conta verbo. Outro que me denuncia numa
escondida voz. Voz que me traz de volta à música. Deixar-se embalar por notas que me fazem
movimento. Alguns instantes audíveis, outros, na paralisia do corpo sem fala. Sem música
não me faço baile. No barulho aprendi a me compor. E como sair de uma voz para entrar em
outra? Nesse trânsito, a circulação torna-se o obstáculo. Não há outro barulho que não seja
o meu. Que outro corpo pode falar co-migo? Mas é nessa manobra que o corpo toca o
duende. Sem a possibilidade de livre acesso à musicalidade que o baile nos propõe, como
dialogar? Como criar pontes de suspensão onde a percussão me trai no corpo?
E o tão sonhado solo. Solo como emblema de fora-borda. Com solo no diálogo, a
solidão é apenas substanciada sem tornar-se verbo. Desse verbo fujo corpo. Como se a
âncora viesse de cá, de lá..., enquanto o hesitar de compor uma música, do falar grupo, o
solo musical se contará pendência. E desse lugar onde a suspensão paralisa o acesso à
criação, o corpo vai soterrando. A angústia vem como aviso de apagamento. Sujeito sem
apostas, não vê o deslizar do desejo. Fixamente em antigos laços, identidades que me re-
tornam, sempre, ao mesmo lugar. É daí que não quero me fazer discurso. Sair daí propõe
uma rítmica de se colocar ali, na cena, na relação com o outro. E na medida em que meu
corpo-escrita se aproxima desse final, mais me afasto daquilo que me propus fazer.
Vou escrevendo essa experiência pelas palavras que me fazem alívio e do corpo
que só de palavra não se diz. A poesia também faz movimento. Entregar-se à sensação, sem
calar o corpo em maremotos de trapaças, lembranças que não te deixam escutar o pulsar. E
como não impor imaginário quando o outro me olha e me diz? A costura simbólica se rende à
renovada teia imaginária. E quando o corpo não quer se dizer, e quando o espaço de
contorno da cena converte-se num grande e profundo abismo? Como brincar? Como deixar-
se ir e levar, na ruptura do abismo, algo que faça o corpo pulsar e desejar, ali mesmo, na
cena? Um Fort dá que fracassou? Na presença, a ausência faz ação. Se o momento não é
entendido como único, expandido e fora do cronológico, como falar da cena como lugar de
entrega? E quanto mais me faço entrega, mais buracos me lançam ao vazio. A ausência como
rito do brincar. Plástica em construção. Corpo que se apoia num lugarzinho onde a casa me
desabriga num amargo abrigo. Lugar capaz de cobrir o desamparo para que o corpo se faça
desconstruir, não demolir.
No setting, no par, algo vai sendo restaurado. As minhas tantas histórias vão se
canalizando em uma estória, uma intérprete. A solidez da ausência vai lentamente
evaporando numa inscrição de lugar. Um lugar se insinua. Me arranha. Tão solitária quanto
sustentadora. Sem saber dessa intimidade, meu corpo sabe o vazio. Não escuta a música. E
não sabe soar o próprio som. No lugar da música: o grito. Puro apelo, no lugar do estilo.
Nada me resta, a não ser saber que sempre se falta -- esse resto. Aí sim a própria ficção se
diz início. Lugar onde o Outro não dita, re-edita. Nas palavras, o Outro se diz, sem me dizer
em sua totalidade. Um pouco de mim na alteridade do Outro. Levitando nessa gama de
fixações. Meu corpo congela. Peço, não imploro. Quero sentir essa carne que me habita e me
faz borda nas linhas tão saturadas de pontilhados.
Mas, de súbito, o corpo vem me fazer textura. Sem vazar. Traz-me a sensação
compacta. Sob o olhar de uma direção que me chama para assumir um lugar. Uma tentativa
se faz sujeito, frente a esse objeto que insiste em se fazer cena. Na forma de objeto, não se faz
rastro. A costura se perde para a dimensão do ato do Outro. A separação não tarda. Há de
vir para que o estado de suspensão na tensão se narre-corpo. Quero falar, habitar nesse
estranho que me conta o corpo. Esse que me agita, inquieta. Des-habita. Num caloroso
desdizer do mal dito. Quero poder olhar esse estranho e dizer: no terror de sua estranheza,
me recorto, não recolho, me faço trama.
Permitir que a vida me abrigue. Eis o fardo! Da arte que me apodera da vida.
Uma única sensação me permite vigília. Sem refutar. Movimento de todos os instantes, o
tímido esboço de felicidade que me mascara. É nessa justa empreitada, o lugar onde o corpo
pode se recolher e se levantar pelas peripécias da vida. Um esforço voraz para que o tempo
não me esbarre. Na necessidade de não se deixar levar pelas contingências que os momentos
nos oferecem, e aí sim a brincadeira se acerca, gasto tudo na imperdoável tentativa de forjar,
com toda a força, os tais instantes de embriaguez. Esses que não conseguirão se desfrutar
num desejo impiedoso de não se deixar levar, na cena, na vida e na análise. Como desfrutar
de algo que se arrasta sem a iminência da queda? Preocupada em cobrir tantas outras
possibilidades, me perco em construir as minhas próprias ciladas. Nem na calmaria e nem no
furor. Não me entrego a elas.
Quando a luz se permite no embaraço. Trégua ao pulso. Deixa-se ir. Tocar como
se fosse a primeira vez. O corpo começa a dizer. Tímido. Inseguro. Mas diz ainda sem pudor:
siga. Mesmo que o preço seja residir na luta do que tento me dizer e no gesto que se faz
escritura. Uma escritura-corpo.
Sei que preciso terminar esta escritura. O término me situa num tempo que me
leva à perda na ação. Não quero finalizar. Medo de perder as palavras que se construíram
texto. Medo de esquecer. Mas não há outra maneira para aquilo que do corpo me escapa.
Abandonar o lugar da escrita para me dar corpo em cena. E é nesse borrão que as tintas
biográficas atravessaram esse percurso. Caro leitor, não houve uma maneira mais
acadêmica de oferecer a vocês essa trilha, que se tentou escritura sem véus que protegessem
esta pele, do último ano para cá. Foi preciso decantar, desencantar, por assim dizer. É no
bordejar da carne que se tentou corpo. Vestimenta no refúgio. Um refugiado no seu próprio
exílio. A pesquisadora na sua forma mais sóbria. E sei, com lamento, que se faz tempo de
suportar o vazio como um espaço de início e fim. Porque na finitude de um vazio que se
encena, o desejo cava a sua cova.
208
CAPÍTULO 6
O CORPO FLAMENCO NA VOZ E OLHAR DA PSICANÁLISE
Só temos acesso às significações dos sonhos uma vez que são relatados, ou seja,
quando a experiência solitária noturna do espectador-sonhador é partilhada com um
interlocutor por meio das palavras escolhidas para relatá-lo. É na passagem do sonho
para as palavras que nasce a psicanálise, quando Freud aponta que o intérprete do
sonho é o próprio sonhador. (QUINET,2012, p. 1)
Lalíngua é aquilo da língua materna que o sujeito recebe como chuva, tormenta de
significantes próprios àquela língua idiomática que se depositam para ele como
material sonoro, ambíguo, equívoco, cheio de mal-entendidos, cheio de sentido e, ao
mesmo tempo, sem sentido. (ibid., p. 8)
Por isso, caímos na lalíngua, resultado para o sujeito daquilo que lhe veio da
língua materna, esbarrando na pulsão invocante, como foi visto em Lasnik (2013). Esse banho
significante vocal que a criança pode ir experimentando pela prosódia materna. Nesse ritmo
musical, as notas e o silêncio vão se organizando num espaço e num tempo. Ora, a lalíngua
existe antes mesmo do advento da fala propriamente dita. E, assim, um ritmo regular é o que
encontramos no chamado jogo do Fort-Da. “O real não faz sentido, mas ressoa. Ele se
manifesta na ressonância de lalíngua, na sua musicalidade – por onde se expressa o real do
inconsciente. Lá onde o sentido se esvai, desvela-se um novo cogito para o ser falante que é,
em suma, um corpo cantante: Eu sôo, logo existo”. (ibid., p. 12)
Nessa experiência, que aqui atravessamos, entre o desafio da escrita e o corpo em
cena, ocorreu que, neste, o ritmo falou mais forte e foi se impondo, as notas foram
parafraseando a dupla prazer-desprazer que se fez escritura de um corpo. Os silêncios
fundaram abismos para que o desejo se re-instaurasse.
210
Lembremos que a ideia inicial, vista no capítulo 1, era trabalhar os três registros
(RIS) de Lacan a partir do método de Lobo, que veio sofrer um cruzamento com o método da
ação psicofísica. Isso, na verdade, atropelava o duende, ao mesmo tempo em que nos
convidava a resvalar para o conforto teórico da sublimação como método de interpretação do
ato criador. Quando se trata da investigação da intersecção da literatura, das artes e da dança
com a psicanálise, o caminho sempre mais óbvio é o da sublimação como uma saída
satisfatória para a pulsão, com a promessa de prazer que ela traz e que é ainda acrescida pela
tarefa do artista ser plenamente reconhecida socialmente. Como já foi visto, mas para
recordar, nas vicissitudes da pulsão, a sublimação traz prazer, ao preço de desviá-lo de seu
alvo sexual. Portanto, prazer conquistado, porém desviado.
Ora, no nosso caso, não se tratava apenas de escrever, mas de levar a escrita ao
acompanhamento de um corpo que, no ato da cena, sente, vive, é afetado, parcial ou na
promessa do pleno, pela instauração do duende – que esse enigma se instale! Por isso, falar
mais uma vez numa tese sobre a sublimação, calcada nas fantasias de um artista, não nos
deixaria avançar, nem pelas bordas, para além de um corpo cansado de se fazer suporte sempre
atravessado pelo Outro, e, tampouco, poderia nos estimular para o desafio de uma escritura
que não se soltasse, mas ficasse rente ao corpo.
Ora, falar do corpo é ser falado por uma desprogramação instintual. Nossos
interesses se movem conforme as marcas registradas do binômio prazer-desprazer, moduladas
a partir de trocas desejantes com os outros. É nesse momento que o corpo psicanalítico é da
ordem do corpo pulsional. Corpo erógeno que se afasta da biologia uma vez que sofre ruptura
pela linguagem. Assim, uma perda de gozo existe porque, ao nos afastarmos do instinto, a
pulsão, em sua composição e, por definição, se escreve por desvios e perdas.
Pensar como alguns autores que a sublimação funcionaria como um processo, que
busca de alguma maneira a adaptação social, ou uma aceitação cultural da obra do artista,
significa ficarmos presos a uma “espécie de felicidade comportamental, adaptada ao
socialmente desejável e elogiável”. (HARARI, 1997, p. 142 apud TOREZAN & BRITO,
2012, p. 252)
contavam histórias, belas estórias subjetivas, enquanto o corpo ia, de alguma maneira,
desbravando o vazio.
O que viemos conceituando e, agora num momento final de articulação,
insistimos, é que há uma luta constante de domar o corpo. Quando ele se faz presente, numa
espécie de vingança, encarna o estranho. Entre o corpo e o eu, o encontro é devidamente
coxo, levando-o, como que obrigado, a uma instabilidade. Quando falamos no estranho,
imediatamente somos levados a pensar esse lugar tão familiar e tão estranho que nos convoca
-- e o que disso respondemos pelo corpo.
é oferecida ao olhar do Outro, numa constante busca pela construção de identificações, “por
onde o traço unário possa se sustentar. É a voz e o olhar do Outro que inscreve o sujeito”.
A partir disso, vamos tentar traçar um caminho de reflexão permeado por Lorca e
sua construção acerca do duende, buscando o diálogo com o objeto a teorizado por Lacan.
Como afirma Becker (2010, p. 26), o objeto a como “pedaço que resta fora da imagem”. Essa
relação de um com o outro nasceu de uma pergunta, aparentemente inocente que foi feita à
pesquisadora, mas que já estava ali articulada na fala ao final de um seminário do psicanalista
Oscar Cesarotto (2015), quando perguntou: “O que é o duende para a psicanálise? ”Entre
interrogante e certeiro, ele disse num tom de voz baixo e calmo: objeto a. E riu.
Acompanhada desse riso, a nossa busca frustra do corpo inteiro na cena nunca se completava,
e, como uma saída possível, deu-se o nascimento das primeiras partes de um diário de bordo.
Em princípio, o diário foi tentado como costura de uma angústia que, como num tropeço,
ventilou espaços ao desejo de reconstrução de uma trilha outra para, num segundo momento,
vir como uma tentativa de tornar aquele riso de fato um chiste e não um constrangimento
frente ao não saber, este que nos apura despercebido em cena.
Contudo, esse trabalho só se faz Real por meio daquele que, ocupando o lugar do
Outro, intervenha, isto é, que interprete simbolicamente e que auxilie na inscrição do gesto em
uma cadeia significante. O(A) coreógrafo(a)é aquele(a) que se ocupa desse lugar, crucial no
processo e cujo método, no caso desta tese, foi explicitado no capítulo 2. Ele(a) é capaz de
ajudar a fazer amarras, quando o corpo perde seu fio. Evidentemente, ele(a) não será capaz de
tornar esse corpo, sempre estrangeiro, um lugar tão familiar a ponto de apagar os efeitos de
estranheza. Afinal, estar na cena não nos impõe sairmos da posição de objeto tornando-nos
sujeitos? O corpo que baila convoca, a todo o momento, a nossa constituição, ou melhor, o
que desse corpo, que nos fala, controlamos e não controlamos. A criança, nos braços do(a)
cuidador(a) corre o risco bascular de desaparecer como sujeito, tornando-se objeto do gozo do
Outro. É a mostra da vivência de indeterminação com o Outro. Eis a questão a se pensar: estar
em cena/na cena é retomar como se deu a saída de cada sujeito do Estádio do Espelho?
Como salienta Becker (ibid., p. 8-12), “a unidade corporal resultante do espelho,
sempre inacabada, moverá o corpo na busca constante desse acabamento. Assim, surgirão os
gestos no espaço e no tempo, coreografando as tentativas de confirmar a forma corporal”.
214
Ora, assim, a nossa única certeza em cena é a de que a instabilidade é a nossa verdadeira
vocação, e que, nesse lusco-fusco com o Outro, o corpo se coloca à prova, para o Outro e para
nós, que ali lapidamos, a cada espetáculo, um corpo que nos dá a confirmação de um
interminável jogo de escape. “Este aparente acabamento que nós não possuímos, faz-nos
idealizar seus movimentos. Os humanos, na intenção de transmitir algo a outrem, tropeçam
em sentidos imprevistos, que se atravessam no caminho da comunicação”.
Dessa discussão, que vai nos dando moldes da finitude insistente nos contornos,
tentaremos articular os conceitos, de maneira a não somente importá-los, mas implicá-los. Só
uma psicanálise, capaz de trazer conceitos que dialogam com a prática, pode nos levar,
cuidadosamente, à tentativa de cartografar os impasses de uma escritura cênica.
Como vimos no decorrer desse trabalho e, em especial na carta de 52 de Freud, o
humano é formado e forma parte da linguagem, por habitar o universo simbólico, que o
determinará como tal. Por isso, está incluído na cultura e não no reino animal. Através do
diálogo entre mãe e filho o que está em jogo pertence à ordem do desejo. Dessa relação se vão
expandindo caminhos bordeados por meio de decodificações das ações e, do corpo do outro,
numa conversa que aponta para o desejo responsável pelas representações e metaforizações. É
por meio disso que a experiência corporal vai se falando como metáfora, delineando
condições para o corpo humano ser discursivo e simbólico. Repetimos, então, a pergunta:
como transformar um movimento sem significação em um gesto significante? Talvez
possamos pensar que a sua existência se dá àquele que ocupa o lugar do Outro, daquele que
intervenha, que interprete simbolicamente, inscrevendo o gesto numa cadeia significante.
Pensamos, assim, que o lugar do(a) cuidador(a) da infância se reedita no lugar do(a)
coreógrafo(a), a cada convite do corpo à significação, quando se perde em significantes sem
encadeamento.
Ora, dado o insuficiente reconhecimento do olhar da mãe ao seu filho no Estádio
do Espelho, enquanto constituinte na formação do eu, passamos a vida a “reencontrar esta
confirmação de unidade corporal no olhar dos semelhantes” (Becker, ibid., p. 44). É assim
também que o flamenco vai pontuando o trajeto de idas e vindas significantes, em
intermináveis turnos na procura do objeto para todo o sempre em outro lugar. “O que há em
das Ding é o verdadeiro segredo” (Lacan, 2008, p. 60). Esta fenda já foi inscrita com a perda
do corpo materno e a interdição do incesto. Falta estrutural vista pelo traço unário que se
rende à incompletude irremediável de tudo aquilo que se tenta criação. Há que bordejar para
não calar. Uma abertura sem sutura. O bisturi do corte. O corpo projeta costuras, irreparáveis
frente à procura que se instala. A língua por si só, incapaz de abrigar a Coisa. O corpo,
compacto, mas tampouco capaz de conter a Coisa, apenas a contorna.
215
Sendo assim, pensar o corpo é pensar num código que o organiza. Também é em
relação a este código, que se organizam as relações entre os indivíduos. Surpreende-
nos que, diferentemente da linguagem humana, os animais parecem possuir um
entendimento imediato quando se relacionam entre si. Não precisam explicar-se, já
que o seu código tem um sentido único; daí a impressão comum de que os animais
possuem uma aura de saber e equilíbrio. Não há divisão na identidade, pois entre o
corpo e o código não há separação. (BECKER, 2010, p. 12)
Estamos sempre às voltas, nas voltas a mais, em torno da Coisa. Buraco incapaz
de ser tamponado. Mesmo na luta, no mais fervoroso destino de fechar o percurso, o que nos
resta é a própria trilha de se fazer percurso. Esse tal inominável, de que viemos falando em
várias páginas, faz-se presente como presença de um centro em torno do qual todos os
movimentos simbólicos transitam. “O objeto que se encontra sempre coincide, apenas
parcialmente, com aquele que gerou satisfação”. E, nos gestos, os giros desejantes nos fazem
sujeitos itinerantes desse im-próprio corpo. (Becker, 2010, p. 54)
No trabalho dos ensaios, quando o corpo abre margem às palavras, muitas vezes
sem fundamento, é necessário fazer com que o significante da palavra se desloque para o
corpo. É preciso colocar o significante corporal em circulação. O silêncio deve permitir que o
corpo comunique através do movimento em cena. As palavras são uma via fácil de acesso à
comunicação e demanda. O corpo precisa trabalhar, limitar-se, respeitar-se, antes de
demandar e concluir. As cenas infantis estão lá em pregnância no inconsciente.
... a mãe entona sua voz ao bebê, causando nele estupefação e alegria. Esta prosódia-
que apresenta características específicas de gramática, pontuação e escansão –
permite ao bebê identificar-se como o objeto causa de um gozo deste Outro
primordial. O bebê procurará, então, o rosto e o olhar desta voz particular,
procurando fazer-se objeto deste olhar e desta voz. No seio da voz materna, estão
harmonia e melodia. (Becker, 2010, p. 47)
No Real da cena, o que nos faz possibilidade de encontro é o tropeço, como num
acidente, que desconcerta o esperado. É tão mais simples se repetir atravessados por uma série
de identificações alienantes, essas que vão recobrindo imaginariamente o Real. Ultrajante
buraco que não se fecha, mas orbita e vacila. “A dança do corpo está entre a carne viva
carregada de memória e a memória invisível, sempre pronta a se encarnar” (ibid., p. 182).
Mas há que suportar, como diz Goldenberg (2014, p. 135), o psicanalisante, aqui estendido ao
intérprete, que vê “estilhaçar-se o seu próprio ego”.
É interessante notar que quanto mais domínio se “tem” do corpo, maior parece ser
a criatividade em brincar, jogar, se lançar no espaço-corpo. Jogar nos remete quase que de
imediato ao Fort-Da. É através desse jogo simbólico com o carretel que a função de
separação e individuação se faz corpo próprio. A criança, no jogo de ir e vir do carretel,
216
trabalha numa busca que lhe permite sair da passividade, reconhecendo a ausência no
distanciamento do objeto, elaborando a “falta pela significação internalizada imaginariamente
do real”. Dessa forma, “não é a palavra que a criança balbucia que importa e sim o que
simboliza o espaço da falta”. (PIZUTTI, 2012, p. 15)
Ora, os limites do corpo são colocados à prova em cena, corpo que se busca na
insinuação da dupla presença e ausência. Então, como pensar as presenças cujas ausências se
fizeram imperativas? Como seria possível pensar o artista construindo essa falta estrutural,
não no sentido de clivagem do sujeito, mas do holding materno sem nunca ter tido essa
inscrição? O corpo parece muitas vezes resistir à chegada desse processo, visto que, para se
aproximar desse lugar, é necessário o trabalho mental de controle e equilíbrio na execução,
aprimoramento nas repetições, ouvido para a rítmica, prazer no encontro com o outro e
consigo mesmo, respeito ao tempo que cada um leva para encontrar o espaço que cabe ao
corpo e à mente.
Quando líamos sobre tais questões em livros de dança e psicologia, vinha o
julgamento de que se tratava mais de romance do que de prática, mas quando o corpo se põe a
dançar, essas questões gritam, apavoram, desmancham-se e refazem-se incessantemente. Um
corpo que se organiza no espaço é também um corpo que sabe, no momento adequado, dar
lugar e tempo às palavras. Interditar o corpo num espaço sem limites é abrir as portas à
confusão, à desestruturação, à impossibilidade de se fazer parte, de se fazer grupo.
A separação da ordem simbólica é sempre frágil, o tempo inteiro, lugar que
sempre precisa se re-fazer. Estamos aí falando do retorno ao terceiro tempo pulsional?
Estamos falando em se dar ao olhar do outro como sujeito? O corpo dançante, esse corpo em
cena revela, sem pestanejar, como nos colocamos no lugar do desejo do outro. O corpo na
dança põe-se de mãos dadas com o modo como a criança se colocou no lugar do desejo do
outro. Sem a separação, o corpo não poderia encadear-se em gestos significantes pelos
tropeços, porque, ao barrá-los, interrompe-se a movimentação significante. Lugar, portanto,
de não despregar o corpo próprio da forma do desejo do Outro, daquilo que lhe falta.
Revisitamos esse lugar na dança?
E a música? Seria a voz do Outro (materno) que embala o bebê? É a voz materna
que vai fazendo o corpo do infans dançar, deslocar-se. Uma voz rítmica que vai dando um
217
A voz ganha significante quando se perde de vista o objeto. É dentro desta mesma
lógica que acontece o brinquedo do fort-da. É na elaboração da perda do objeto que
a criança vocaliza sua ausência e presença. A voz recorta o vazio deixado pela
ausência do objeto, impedindo que esta ausência se transforme em puro real e que,
com isso, o sujeito corra o perigo de perder-se. (BECKER, 2010, p. 60)
Num ir e vir similar, dançando também gozamos até nos fundirmos com o Outro,
em estado de completude. A fusão, como em um movimento psicotizante, nos desloca para
aquele lugar sem furos, para logo encontrar uma barreira que incita o retorno. É porque o
retorno se dá que somos capazes de recontar essa história. Por ser fugaz, a ilusão do pleno
escorrega e cai. Irremediavelmente encontra a barreira do real que compele o retorno ao
estado da incompletude constituinte. É um ir e vir.
Com os gestos, o corpo ensaiará sua unificação e, a cada encontro com o Outro, os
processos de alienação e separação estarão presentes novamente.
Os gestos ensaiarão, imaginariamente, tentativas de acabamento, no espaço e no
tempo, sendo que as vicissitudes do real do corpo exigirão uma contínua retomada
destas coreografias na busca constante de uma imagem que confirme a sua forma.
(BECKER, 2010, p. 64)
Montaño (ibid., p. 36, 53) nos alertou sobre a estreita relação do duende com a
morte, já que a morte é um sentimento de que se nutre uma experiência extrema. A verdadeira
vulnerabilidade encontra-se aí, na borda do abismo, onde o rasgo é o real. Se o artista não
experimenta uma situação limite, não pode chegar ao fundo, um fundo que roça a
vulnerabilidade necessária para que o duende apareça, ali, onde a verdade da morte se
219
Becker (2010, p. 34) nos lembra que “a pulsão de morte foi descrita por Freud
como a pulsão sem representação. Isso abre o campo para se pensar o irrepresentável: há algo
que escapa à representação do corpo, que transborda e se presentifica como pulsão de morte”.
É com esse excesso pulsional que estaríamos em cena, excesso que, ao escapar, transbordar,
se faz também tentativa de borda, no passo a passo, como estruturação e estilização,
inscrevendo a pulsão no Real da simbolização. O baile possibilita a borda, a beira, o ensaio do
limite e, desse ponto conseguir retornar de maneira mais organizada. É como se esse lugar
fosse propício ao ultrapassamento dos limites, eliminando as bordas, onde se dá a experiência
da vertigem e o encontro iminente da morte que o duende propõe. Essa dinâmica é possível
uma vez que o Fort-Da se fez enlace no jogo do ir, e saber vir, do ir e voltar, do ir, suspender
e voltar. Para isso, vimos em vários relatos no capítulo 2, a possibilidade de ir porque existem
os pares, a equipe que complementa, que traz, na sensação de união, a fusão necessária para
sermos fisgados de volta no caso do abismo simular a devoração do não retorno. Ao fim e ao
cabo, tratar-se-á da busca dessa primeira satisfação, sempre perdida, cujos vestígios o(a)
artista busca, dando contorno ao indizível do objeto sempre ali, em outro lugar que é,
portanto, já perdido. Não se teria aqui um estar em/para a cena como se fosse a primeira vez,
num compromisso com o nada, na quebra de um corpo viciado? Às voltas, circulando,
circunscrevendo o objeto perdido, o intérprete vai (re)-construindo um lugar outro, distinto
daqueles prescritos pelas convenções.
Isso se torna possível porque a cultura não é somente um resíduo inútil da pulsão,
mas a multiplicação de suas possibilidades de satisfação. Freud já dizia que a pulsão procura
uma satisfação que já fora obtida um dia, naquela nossa pré-história individual, antes do
interdito que nos fez equívoco-linguagem, portanto, humanos. “O corpo é guardião de
memórias, lembranças, reminiscências, como afirmava Freud sobre suas histéricas. É
submetido à cultura, à linguagem, a uma inscrição na história”. (ibid., p. 37)
Testemunhar em movimento o que um dia fomos para o desejo do Outro
primordial nos remete a um núcleo, o núcleo do nada, repetimos. O nada porque imaginamos
220
ter sido o desejo do Outro, e, com isso, ficcionamos uma sustentação, tão inviável quanto um
corpo sempre familiar. Essa busca de reconhecer-se nos outros olhares molda um corpo.
Entretanto, como re-criar um corpo no estranho que nos habita? Via de regra, o familiar se
rende ao imaginário encantador. Contudo, por ser tão encantador nos captura e nos fixa em
lugares carregados de muitos outros que nos falam.
Se fossemos animais, os dos grupos dos instintos e necessidades, uma felicidade
habitaria esse lar a cada meta cumprida do ciclo biológico de fome e sexo. Mas aqui, nessa
estória humana, a linguagem veio como lança. Vem para nos fazer in-conformes, uma vez que
demandamos sempre de um outro lugar, de uma coisa outra. Essa outra coisa pode ser
chamada de um pedido de reconhecimento, não no mesmo lugar da necessidade, mas lá onde
o mal-estar escancara o corpo.
O corpo-linguagem demanda. A demanda é sempre demanda de algo que possa
eliminar o mal-estar. Mal-estar daquele nada, porque nunca fomos, a não ser na nossa
confeitaria imaginária, o desejo do Outro. Mal-estar que fala dessa falta-a-ser e que, na sua
origem, está ali: a castração como o corte capaz de separar o desejo que fala no desejo do
Outro. Um pedido de simbólico para que a porta da criação se faça presente. Fazer-se corpo
criativo em cena como uma palavra endereçada ao Outro. Desejo de/como saída?
É na fantasia, nessa morada que, como tela, se dissimula o tão esperado momento
da cena: o Real? O corte que castra nos faz função. Impulsiona a trilha do desejo. Esse Outro
rememorado, da infância retida no suposto bem-estar, bem-dizer, nos coloca na ilusão de que
a satisfação não poderá vir se não atravessada pelo Outro, lugar de legitimação e
reconhecimento. A domesticação da pulsão pela via do amor. Sujeito preso aos ideais do
Outro. E como conjugar essas exigências e as da pulsão? Pela sublimação. Fazer a rota do
próprio estilo sem importá-lo, em seu duplo sentido, do Outro.
Neste ponto, retomamos a pergunta formulada ao final do capítulo 5, lá deixada
sem resposta. Não estaríamos falando de um sujeito cuja travessia não se fez e, quando entra
em cena, acaba congelando significantes, em vez de “metonimizá-los” como caminhos,
atalhos em construção? Com medo de se apagar nessa cadeia que é capaz de trilhar, cadeia
que é própria do sujeito da linguagem, a fantasia se faz forma ao desejo que não cessa. No
movimento de contornar e tratar o furo do real, forja-se a fantasia. É de um modo
inalienavelmente corporal que o sujeito trata o real, pois é com o corpo que a fantasia se basta
e faz barreira ao gozo. O corpo busca sua unificação na imagem, mas esta sempre falta. Nas
encruzilhadas, é o corpo que responde como substância corporal de um suporte imaginário na
construção da sua “defesa”, a fantasia. (NASIO, 2007, p. 77, 78)
221
O corpo dançante é aquele que possui dupla dimensão: uma visível e manifesta,
outra secreta latente. Entre esses dois corpos está o abismo a viver e ultrapassar. A
dança do corpo está entre a carne viva carregada de memória e a memória invisível,
sempre pronta a encarnar. (BECKER, 2010, p. 182)
Não há corpo sem as amarras simbólicas e sem os orifícios nos quais o objeto a se
localiza. Portanto, trajeto do corpo imaginário ao lugar do corpo representado por
significantes. Os orifícios vão dando consistência ao corpo, este tecido por significantes e
imagens. Para Tfouni& Laureano (2001, p. 1-4), os três registros -- o real, o simbólico e o
imaginário -- são responsáveis pela composição e funcionamento da cadeia significante (RSI).
Um nó feito de três círculos, nos quais se entrelaçam e coexistem, em dependência direta, um
não pode existir sem o outro.
Mas a nossa fome, para além dos fonemas, é a do reencontro com a satisfação
absoluta através do das Ding. Algo não assimilável na organização psíquica. Só queremos
reencontrá-la. Só que tendemos a recuar frente a esse objeto mortífero. O gozo absoluto é
morada da abolição do sujeito. Que sujeito? Esse, sem causa e sem desejo. Por isso, o corte
dito pela castração é a lei que impede o gozo absoluto no lugar do possível. Mas negar a
satisfação, que se fez rota no aparelho psíquico em moldes de traços mnêmicos, é desdenhar
esse tão sonhado re-encontro. No ponto marcado certeiro da satisfação. A cada exigência, a
memória da primeira satisfação é evocada e invoca-nos. À procura de tal Coisa, das Ding, a
rede de representações psíquicas vai se fazendo pelo caminho da memória, como apontou
Freud no Projeto de 1895. Contudo, o objeto a vem como Real, uma vez que não se amarrou à
representação. E aí surge a hipótese de que, na medida em que o Real se alardeia numa não
representação em cena, o simbólico faz voz percussiva como rede representacional.
enquanto desistência de ser falo imaginário da mãe, do objeto ali do gozo da mãe, que se faz
gozo-renúncia.
Sem enfrentar a travessia, estamos às voltas com o sujeito do gozo,
completamente alienado na sua relação com o objeto a. Quem dá o comando na cena é o
objeto. O sujeito se perde no bordado imaginário, sem a possibilidade de o Real fazer
encontro como borda. Se pensarmos no desejo como movimento que nos leva a uma falta de
sentido, ou melhor, a uma procura, e se pensarmos o gozo, como o nada de fora, numa relação
direta com o sentido, como construir um espaço possível do corpo em cena? Becker (2010, p.
67), afirma que o movimento se dá no intervalo entre a voz materna e a palavra desejante.
Nesta busca de preencher o vazio tido na separação do corpo da mãe e o da criança, o
movimento ocorrerá.
Estamos às voltas com um olhar internalizado. A ilusão de que o de fora rege é
apenas uma maneira ingênua de tocar na coisa. O mapeamento, que o corpo fornece ao
externo, está imbricado no mapeamento que lhe foi dirigido outrora. O ritmo da voz materna
faz com que a criança pulse em um ritmo interno que vai se refletir na maneira como é tocada
pelo mundo exterior. Quando pensamos num estilo, seja o da escrita ou do baile, estamos
abordando algo de absolutamente singular, porque o estilo nada mais é do que a marca
deixada por esse olhar, pela voz inaugural da mãe que marcou a sua criança.
Não nos esqueçamos de que a proibição do incesto regula a distância necessária
entre o sujeito e a Coisa. Mas será que abriríamos mão tão facilmente dessa lei feroz que nos
tira de um projeto de satisfação total? Claro que não, pagamos com algo ao abrir mão do
desejo incestuoso, esse algo é nomeado por gozo. A labuta aqui do artista, neste caso, do
(a)bailaor(a), cujo corpo se faz seu imperativo, é que o domínio do corpo se dá em tempo
integral, no entanto, na medida em que o dominamos, ele nos escapa. E a estranheza vem à
baile, com um tal susto que grita no estranho corpo que nos habita. Isso nos remete à metáfora
de Clarice Lispector no conto “Amor” do livro Laços de Família (1998).
Incapaz de se mover para apanhar suas compras, Ana se aprumava pálida. Uma
expressão de rosto, há muito não usada, ressurgia-lhe com dificuldade, ainda incerta,
incompreensível. O moleque dos jornais ria entregando-lhe o volume. Mas os ovos
se haviam quebrado no embrulho de jornal. Gemas amarelas e viscosas pingavam
entre os fios da rede.
Só então percebeu que há muito passara do seu ponto de descida. Na fraqueza em
que estava, tudo a atingia com um susto; desceu do bonde com pernas débeis, olhou
em torno de si, segurando a rede suja de ovo. Por um momento não conseguia
orientar-se. Parecia ter saltado no meio da noite.
Era uma rua comprida, com muros altos, amarelos. Seu coração batia de medo, ela
procurava inutilmente reconhecer os arredores, enquanto a vida que descobrira
224
A ritmada voz materna não é invocante pelo seu enunciado, mas pelo tom do seu
afeto. Comemora-se, atravessada pelo ritmo, a leveza de um corpo que acolhe o retorno do
embriagado instante dionísico. Imagina-se aqui a criança quando experimenta o prazer
girando o seu corpo até perder o equilíbrio. O simbólico dessa dança se encarrega em domar
as invasões do Real, furando o narcisismo primário.
Como diz Becker (2010, p. 132), a voz que nomeia não é a mesma que embala.
“A voz do pai é aquela que impede que o sentimento oceânico, provocado pela voz da sereia,
se instale”. A separação desse corpo materno que embala é necessária para que o sujeito não
dissolva o seu desejar frente ao enigma do desejo do Outro.
suportar a angústia que coloca em xeque nossa relação com o saber sobre o corpo a partir do
momento em que se enovela a um não-saber que se precipita e se institui como horizonte” da
experiência. (LIMA, 2012, p. 100).
Ora, como salienta Dumoulié (2011, p. 1), “o corpo, para o homem, é o lugar de
um investimento imaginário e simbólico infinito. É trabalhado por incessantes metamorfoses,
como se, de corpo em corpo, a humanidade tentasse provar que é capaz de inventar O corpo”.
Atravessado pelo Outro, constrói-se um novo corpo. A ousadia de sentir-se estranho em sua
própria morada, decidido em ir a a, eis que aqui nos damos conta da falta e do desamparo, e
com essa ferramenta, que aparentemente nos faz ver como mancos, nos conduz à criação.
Pela castração, o Real do gozo nos coloca num ponto indizível e o saber fazer vem
à tona. Saber-fazer como parceiro da impossibilidade de se evitar o vazio da Coisa. É dela
mesma que tiramos proveito. Ora, o improviso não seria uma maneira de lidar com esse Real,
que, em alguns momentos, em cena nos parece furioso, enquanto vamos percebendo que se
deixar reagir ao seu toque, nos leva para um além do objeto, para o indizível. Experiência de
enfrentamento do imprevisível. Os limites do corpo são colocados à prova, como no Fort-Da,
no jogo/ brincar que se insinua na dupla presença e ausência de um corpo que se tenta próprio.
É sim na falha/falta que o corpo se investe cena. Nesse lugar, vamos construindo uma borda
para o invasivo Real do corpo, deixando o desejo decantando, não como descanso, mas como
transformação, no lugar da busca sobre a verdade, essa sempre tão enganosa acerca do Real
que é responsável por trazer um certo fascínio a quem vê e a quem se deixa ser visto.
o coreógrafo, o grupo, os músicos para fazer enlace significante. Não há como fugir da
estrutura. Ora, a falta é estrutural. E por conta dessa marca fundante, nunca estaremos seguros
da relação com o nosso próprio corpo. Esse corpo, sempre estrangeiro para nós.
Diferentemente do animal que é o seu corpo, nós, falantes/falados, temos o nosso corpo, não
somos o nosso corpo. Dentro e fora da cena, buscamos sempre alguma amarra com ele, e, a
cada busca, nos deparamos com um estranho, esse lugar de desconhecimento. E ai está: sem o
significante para fazer laço, nos chega o abismo.
Nada é mais impróprio que o nosso pretenso “corpo próprio”. Lacan dá uma
explicação para isso em seu texto sobre o “estágio do espelho”, onde ele mostra que
construímos nosso corpo em função de uma imagem, tal como é vista no espelho,
uma imagem invertida, à qual nos alienamos. Porém, essa alienação imaginária é
também simbólica, pois, num canto da imagem, intervém o olhar ou o sinal de um
Outro, que constitui o que Lacan denomina “traço unário” de identificação. E é
através de traços simbólicos e de modelos imaginários que recompomos
incessantemente nosso corpo. (DUMOULIÉ, 2011, p. 1)
Jorge, tem várias conotações. Aquilo que não se amarrou na representação sempre estará
presente. Dominar esse corpo que não cessa de nos escapar, especialmente da linguagem que
queremos fazer dele. Não sabemos se iremos conseguir, mas a possibilidade de fazer dele essa
linguagem ao entrar em cena, nos faz gozar, nos leva à aposta, numa ingênua esperança de
totalizar o que nunca será totalizado. Como lembra Lima (2012, p. 130), “se não investimos
imaginariamente a ideia de um “super corpo” – um corpo heróico e bem treinado –
exatamente para dar conta do corpo que nos escapa”. A presença em cena do corpo falante
traz a substância gozosa, gozo este fálico de poder dominar o corpo e lhe impor uma
linguagem.
O corpo é uma cadeia temporal de linguagem inconsciente por onde circula o gozo.
O corpo vivo é corpo gozante que se movimenta. A pulsão invocante dá o ritmo, o
andamento; e as partituras gestuais do corpo fazem ecoar ali a melopéia de uma
lalíngua outrora ouvida; a pulsão escópica o coloca na cena do mundo desenhando
seu deslocamento espacial. O corpo é o palco das manifestações do inconsciente
real: partes esquecidas, movimentos falhos, lesões involuntárias – são inúmeros os
lapsos do corpo.
O corpo em transformação permanente se vincula às cadeias associativas do
inconsciente que o corpo é estruturado como uma linguagem – a linguagem da
pulsão. (QUINET, 2010, p. 23-24).
Lima (ibid., p. 154), acrescenta a essa discussão algo bem importante pontuada
por Quinet referente à lalíngua. Para nós, a lalíngua sempre nos empurra para um ponto de
encontro com o não saber, “mas que se presentifica nos vazios da carne”. Por isso, a nossa
condição de estrangeirismo à língua, porque seu dizer, de saída, nunca diz o bastante. O que
conseguimos capturar da língua materna vai nos trazer um estilo próprio, calcado numa
maneira muito particular de estar com esse corpo posto no mundo. “O ponto como cada um de
nós enovela o fluxo pulsional”. Lançar o corpo em cena é, de alguma maneira, suportar um
esvaziamento dos significantes que nos repetem em história. Isso nos leva sempre ao vazio de
sentido, mantendo aquilo que Lacan nos disse acima, o que há em das Ding é o lugar do
enigma.
Com ideia, com som ou com gesto, o duende gosta das bordas do poço em franca
luta com o criador. Anjo e musa escapam com violino ou compasso, e o duende fere,
e na cura dessa ferida, que não se fecha nunca, está o insólito, o inventado da obra
de um homem. (LORCA, 1933, p.1)
Esse hiato que se faz no ato criativo, nos chama ao desamparo. Imaginemos a
cena análoga ao processo analítico, aquele frágil momento em que o silêncio provoca
aberturas de um sentido suspenso e, por isso, esse vão, sem a garantia de um sentido que se
231
faça chão. Becker (ibid., p. 75) diz que a “arte e a psicanálise têm, em comum, a sustentação
do trabalho significante”.
A imagem, que outrora se construiu, é uma construção que se tenta totalizante
quando cedida às querências imaginárias, visto que essa imagem nunca terá uma consistência,
mas insiste na apropriação de si, “oferecendo-se constantemente ao olhar do Outro”. (ibid., p.
84). Nessa aventura singular de se dar ao olhar do Outro, ser vista em um lugar de
legitimidade, vamos nos reconhecendo com o movimento do corpo, deslocamentos
significantes nos desdobramentos de significações. A dança cujos significantes se agitam,
movimenta algo do Real do corpo, articulando imaginário e simbólico. Os limites que se
conferem em cena, desinflamo imaginário, trazendo o simbólico na inscrição da carne. Da
expressão pulsional à inscrição do desejo, nessa busca pelo ideal do corpo perfeito, esse que
só existe pela morte, pois é só na querência de perfeição que o corpo busca. O treino se coloca
a serviço do desejo. A música que pode servir de guia em lugar do abismo.
Na imagem desejável de um ideal de transgressão do desejo, e, portanto, da lei, o
Real se apresenta sob feições de morte, num gozo absoluto, este inibidor de qualquer causa
que desloque o desejo.
Não há como negar -- ainda que o Real esteja tão amedrontadoramente perto da
experiência oceânica com que validamos em cena -- que a realização pulsional traz o corpo
das fantasias, operando torções pulsionais em seu curso como alimento ao desejo. Enquanto
os palcos alheios, daqueles que nos ditam, forem tomados como nossos, o solo próprio i-
nexiste. Tanto na posição de intérprete, como na de analisanda, há um trabalho, como no
bordado de re-conquistar cotidianamente um corpo que se sustenta.
completude da imagem, ao mesmo tempo em que a falta trama sua cena ali no despedaçado,
desestruturado.
A tão sonhada certeza se funda na suspensão e, somente daí, poderemos falar de
significação. Desbravando vazios, vamos construindo escritas de presença e ausência, como
no jogo de carretel que nos faz adultos. O corpo da experiência é um corpo que pede
desmanche. Ora, não são aos movimentos fixos onde queremos chegar. Não há aquele objeto
prévio da pulsão nos assinalando o caminho da verdade. O que temos é a possibilidade de
criar novos mapas, deixando os ideais de objetos para trás, não somente no sentido de
rememorar e elaborar, mas no sentido de não mais se fixar no imaginário, pois os limites do
corpo são colocados à prova em cena, como no jogo do Fort-Da, no qual um corpo se busca
na insinuação da dupla presença e ausência.
Siempre que me preguntan qué hay que hacer para bailar bien, digo lo
mismo: hay que estar toda la vida intentando aprender a colocarte para a la
hora de la verdad descolocarte del todo. No sé explicar por qué, pero bailar
bien consiste em eso, em descolocarte.
Cuesta mucho encontrar-se con una misma, sentarse y decir “a ver quién
eres”, mirarte al espejo pero mirarte com honradez. (EVA LA
YERBABUENA, 2008, p. 154)
simplesmente lucrativo, o que confirma que, “o amor por si mesmo só conhece uma barreira:
o amor pelos outros, o amor por objetos” (ibid., p. 113). Sabemos que a identificação remonta
à história primitiva do complexo de Édipo.
nunca lhe pertenceu de fato. Criamos para substituir a falta do Outro, que como fundante, não
voltará a lugar algum. A realidade, diferente do Real é construída de imaginário, determinada
pelo simbólico de um Real foracluído. “A realidade é um esgar do Real, formatado pelo
imaginário e determinado pelo simbólico” (ibid., p. 12, 42). E aí vamos construindo diferentes
molduras para essa janela que se impõe no vazio fundante do Real.
Ora, lembramos que “a determinação do sujeito pelo significante constitui a
alienação do sujeito ao Outro”, portanto a sua condição de objeto do desejo do Outro. A
fantasia vem para encobrir o furo num lugar, de saída, onde o furo não é aceito. Então,
pensamos aqui que a grande travessia, seja em análise ou em cena, é a possibilidade do sujeito
em discernir na fantasia seu status de objeto, este que nos coloca em apuros frente ao desejo
do Outro (ibid., p. 67). Contornar o objeto pulsional. No contorno de uma satisfação pulsional
fazer-se re-fazendo produções. Que o sintoma fique aquém dessas produções. A pulsão circula
esses objetos, situados do lado do Outro. Se estivermos do lado do Outro, esses objetos
ocupam o lugar da falta. O objeto a surgirá da satisfação pulsional. Esse objeto a é produzido
cada vez que se dá o remate da pulsão.
Velar o nada ou apropriar-se do nada como um lugar que nos funda? Eis a
questão. Na cena, a arte nos empurra para o nada, sem véus de a sem fantasias que nos
conduzam a um lugar de objeto do gozo do Outro. Des-velar nos impõe novas construções
subjetivas. Suportar a música quando as notas devem ser omitidas, mas retidas internamente,
esses tempos que nos permitem percursionar corpo, tempos musicais em suspensão, quase na
mesma órbita do “entre” dois significantes do setting analítico. Suportar esse lugar sem que a
angústia protagonize. É um deixar-se levar nas palavras que se fazem corpo ou no corpo cujos
significantes produzem gestos.
Há um lugar de fissura, que alguns chamam de concentração, outro plano da
consciência e tantas outras caracterizações. Logos que revisitamos quando perdemos o olhar
do Outro como nossa própria imagem. Lugar que se tenta governar e, na medida em que se
governa, o des-governo torna-se seu emblema. O corpo pode sim naufragar no silêncio das
pulsões sem se fazer causa possível para o ciframento simbólico, esse que nos ampara quando
o significante se descola da cadeia. Ora, como nos lembra Bassols (2012, p. 23), “um corpo
não fala por si mesmo, é preciso que esteja habitado, de alguma forma, pelo que escutamos
como o desejo do Outro”.
Discutimos, no capítulo anterior, que o gozo é o produto do encontro do corpo
com o significante. Gozo que mortifica o corpo num corte que recorta a carne. E, quando esse
corte entra como fissura e não encontro, o que pode ser revelado é um Real agitando a
236
harmonia das normas do simbólico e do imaginário. Mas a castração, essa inserida no nosso
corpo-linguagem pela interdição paterna, é o que traz unidade corporal num furo que se faz
falta necessária à ciranda do desejo como denúncia do brincar. Sim, esse brincar fundado-
fundante do Fort-Da, aquele que é significante da presença na ausência. Se voltarmos o nosso
olhar ao registro pulsional, a fundamental estrutura de borda, dada à zona erógena, só poderá
ser assegurada pelo contorno que a pulsão realizará em torno do objeto a, este visto por
Quinet (2002) como marca de uma presença pelo furo que pode ser ocupado por qualquer
objeto. Mas se o circuito pulsional se fizer encurtado, refém da satisfação imediata dos
corpos, em que lugar ou não lugar se ancorará o trabalho artístico? Esse trabalho de contorno,
de satisfação pulsional? Depois de cumprido o trajeto para o remate pulsional de uma borda
completa que se faz costura do objeto a?
Aliado a essa discussão, Mozzi (2012, p. 69-70) lembra que “o ser fica tomado
nessa estreita linha evitando o impossível sem dar ao presente a espessura necessária para o
ato”. Poderíamos pensar num trabalho com o corpo numa direção de “descongelar o que ficou
coagulado no dizer”. Ao fim, vamos descobrindo, ainda longe da liberdade de se dizer sem
um Outro parasita, e, por isso, com um certo gosto de pessimismo, que todo corpo está
sozinho no encontro com o traumático. A palavra materna encosta no corpo, promovendo um
encontro-acontecimento de marcas investidas ou des-investidas libidinalmente. Tanto na
análise como na cena há que se desmontar e articular essa palavra de um modo inédito. Há
que se de-sencostar para que o corpo nos seja próprio. Próprio não no sentido de apropriação,
porque desse lugar grita a ilusão, mas de um lugar onde o encontro se torne mote percussor de
uma rede de fios de entregas.
A arte do baile não seria uma resposta inevitável do distanciar-se do corpo
materno em busca do seu próprio corpo? Arte como borda de um gozo sem limites, esse
fundado na satisfação total em ser objeto do gozo do desejo materno. A arte como
possibilidade de nos resgatar no corpo próprio. Como afirma Birman (1999, p. 101), “uma
circulação pulsional que cauteriza o abcesso incontido na carne”. E, na medida em que o
assombro entra no lugar da surpresa, delineia-se um caminho da burocratização do desejo
como modo de se evitar o imprevisto como rota. Na pressa do corpo no baile, especificamente
do baile flamenco, o acelerar do movimento impede esse corpo de se fazer superfície de
inscrição significante, essa que introduz um fora/dentro, indisponibilizando, assim, a ordem
espacial e temporal do sujeito em cena. Escutamos, lemos e vamos traçando a nossa própria
epopeia na medida em que a castração entra como corte/buraco necessário para nos dizer no
237
lugar do nunca dito. Afinal, a grande travessia, aquela que nos anuncia o final de uma análise
e de um gesto significante em cena não se dá pelo encontro com a castração?
Já sabemos que não há corpo sem que a função do corte se opere. Operação
responsável pela separação e, dessa operação, sobra um resto, o objeto a. Corte que é função
entre o corpo próprio e o corpo simbólico do Outro como resultado das operações entre
alienação e separação. Na alienação a identificação, e a separação como perda. É um encontro
no desencontro. O achar-se na perda. Da perda, bordejar. Borda como possibilitadora do
remate pulsional de que advém a sua satisfação. Pela borda aliar-se ao corpo no limite entre a
identificação e a perda. Um diálogo. Interminável conversa que temos que costurar quando a
vida retalha. A pele, como afirmou Anzieu (1989) é o véu que envolve a carne. Lugar que não
deve ficar exposto, visto que é por ela que a borda entre o dentro e fora se faz.
CONCLUSÃO
PARA CONCLUIR: DE ALGUM LUGAR, SEMPRE INCONCLUSO
Essa tese foi tecida na luta entre a escrita e o corpo, numa insistente escritura em
cena. Sem que a pesquisadora tivesse percebido, no sentido de ter traçado um caminho linear,
vestígios de voltas pulsionais foram se fazendo remates no percurso. Quando o imaginário do
corpo se fazia mais atuação do que escrita, uma tentativa de domínio do Real, do outro lado, a
elaboração de situações, que a psicanálise chama de traumáticas, esforçava-se em re-fazer
acontecimentos munidos pelo simbólico. O apoio no diário de bordo foi uma maneira de não
se perder pela cena e, na cena, de não perder as palavras. A repetição se fez recorrente como
uma maneira de registrar as sensações que o corpo, ao esvaziar-se na cena, fosse capaz de re-
construir no traçado da escrita. “Os escritores sabem disso, alguns bailarinos e atores também.
E não importa o quanto entendamos os caminhos da emoção, o quanto cartografemos o corpo,
não importa o quanto tentemos escanear a vida para impedi-la de agir em nós. É inútil”.
(LIMA, 2012, p. 255)
Assim que demos início ao trabalho, já mencionamos algumas vezes, tínhamos
em mente a leitura do método de Lobo, sistematizado por Navas (2003, 2008), discutido no
capítulo 1, que seria redefinido para o ensino da dança, no caso flamenca, à luz dos três
registros conceituados por Lacan como Imaginário, Simbólico e Real. Esse método, sob a
ótica da psicanálise, poderia nos levar a uma possível solução para a pergunta, deixada ao
final do mestrado no ano de 2010, ou seja, porque alguns(as) aprendizes eram capazes de
incorporar o gesto criador e, outro(as) não, ainda que tivessem passado pelas mesmas
técnicas?
Sem que a pesquisadora tivesse experienciado o método nem tampouco o(a)s
bailaores(as) que lhe pareciam geniais, algum tempo de reflexão e ensaio com as hipóteses
que surgiam levou à constatação de que se estaria fazendo, na realidade, apenas um trabalho
de colagem, ou seja, encontrar na tríade do método de Lobo a equivalência dos três registros
conceituados por Lacan. Por isso, incursionamos para outras rotas, mas sempre com o mesmo
núcleo inquiridor, quer dizer, de onde provém a genialidade de alguns artistas e intérpretes, no
nosso caso, do (a)s bailaores(as) flamenco(a)s?A leitura do famoso texto de Lorca sobre o
duende nos conduziu à hipótese de que o duende deveria ser o caminho a ser tomado para se
compreender o talento arrebatador que alguns(as) bailaores(as) presentificam na cena. Sem
negar que o saber psicanalítico, pelo qual já havia sido fisgada desde a Iniciação Científica,
239
estivesse sempre de tocaia, vários roteiros de trajeto foram tentados para terminarem todos
eles, de alguma maneira, em pontos mortos. “De alguma maneira” porque, certamente, a
pesquisa foi se fortalecendo na medida em que os caminhos iam sendo percorridos e
descartados, até o momento em que esse fortalecimento acabou por desaguar na aposta mais
segura na psicanálise como fundamento conceitual e método para a jornada de
desvendamento do enigma do duende.
A questão do duende e do mistério da genialidade por ele preconizado, a serem
vistos por um olhar psicanalítico, sedimentaram-se com a leitura do livro sobre o trabalho de
Pina Bausch, de Fernandes (2007), no qual a visão da dança pela psicanálise se realiza de
maneira inspiradora. Os famosos três registros de Lacan operacionalizados nos corpos do(a)s
bailarino(a)s de Bauch convidavam ao exercício conceitual de transposição para o universo
flamenco. Mas falar de um corpo flamenco de um lugar externo, a nosso ver, produziria um
entendimento manco, ou seja, manco da vivência, especialmente porque a pesquisadora, neste
caso, ocupa simultaneamente a posição daquela que pesquisa e escreve e aquela que, desde
alguns anos, exerce os papeis tanto de professora de flamenco quanto de bailaora. Era
necessário, portanto, tirar as consequências desse cruzamento. Era necessário inserir, no
território investigativo, a experiência vivida do próprio corpo da bailaora em cena. Daí para
frente, duende e inconsciente passaram a ocupar essa mesma cena.
Aí teve início a grande jornada. Grande não somente por se tratar de uma pesquisa
de doutorado, mas grande no sentido de que o corpo vivido na cena e inscrito no verbo, para
se aproximar do duende, teve, já de cara, que se haver com o estranho. O corpo ia para a cena
numa voracidade tamanha que a escrita precisava ser a sua tradutora, de um lugar não mais
antagonista, mas entrelaçado. Um entrelaçamento por vezes idílico, por vezes agônico.
A experiência do Unheimlich, discutida no capítulo 3, como vivência da dupla
belo-assombroso, naquilo que o corpo conta do que não consegue reconhecer de si mesmo, o
que se tem aí? Um voo onírico? Um estado alterado da mente que se faz na cena e nos
sonhos? Que lugar é esse? Sonho e duende se irmanam? E quanto mais se tentava
conceitualizar o duende, mais a demanda da teoria psicanalítica se fazia necessária. O que era
de fato o duende? Uma intuição, uma inspiração, um insight? Saindo da magia e do
costumeiro lugar mítico, fomos compreendendo que o duende encontrava sua morada na
primazia do Real psicanalítico, fazendo correspondência como objeto a formulado por Lacan
e enunciado, logo de saída, por Oscar Cesarotto.
Duende e objeto a, no coração do Real. Aparentemente uma estranha aliança, a
princípio entrevista nas entrelinhas do sonho. Mas que Real é esse? A inquietação levada ao
240
O corpo brecava, buscava escape. Corpo que se des-dizia, numa entrada marcada
pelo imperativo da negação. Corpo que precisava falar no conluio com sua tradutora, a escrita.
Como afirma Becker (2006, p. 138), “se há corpo falante ou escrevente é porque nele há
buracos através dos quais a relação com o outro acontece (...)”. Uma outra cena se a-cenava,
como que dando provas, de alguma maneira, da nossa inabilidade perceptiva para lidar com o
externo, numa tentativa marcada pela repressão em retirar da ideia afetos perturbadores à
consciência. Foi por aí que o corpo começava a se fazer marca. Num pedido de negação pela
repressão. E porque essa cena se montava dessa forma? A repressão marcava o lugar da
impossibilidade de um fazer-se em cena, e a cena aqui tomada em todas as suas vertentes,
desde a sala de aula, ensaios solitários e/ou em grupo, aula particular, tablao e espetáculos. O
deslocamento -- como redirecionamento de um impulso atravessado pelo movimento para um
alvo substituto -- paralisava.
Paralisar para dizer que, no percurso da vida, há turbulências. O ego se constrói a
partir de uma história preexistente, afinal, somos falados antes mesmo de falarmos por uma
história identificatória, como visto no capítulo 4. Nessa história, o olhar tem função
241
estruturante, proporcionando constância e coesão egoica. Por isso, Nathanael temia a perdada
visão, que apontava para uma deficiência que se estendia à incapacidade de ter insight, na
medida em que não podia contar com a constância materna, aquela frente a qual se pode
elaborar um caminho próprio de construção subjetiva.
A criança tem necessidade do outro como continente para seus conteúdos de que não
consegue dar conta inicialmente. Se pode projetá-los em alguém capaz de
discriminação, que não se deixará contaminar por seu pânico, mas ao invés, poderá
auxiliá-la a nomeá-los de forma que possa recebê-los de volta mais desintoxicados,
vai aos poucos procedendo à elaboração de seus próprios processos.
Transformadas pela mãe nessa relação, os dados (sensoriais) se convertem em
material para pensamento onírico, o que estabelecerá a capacidade para acordar e
dormir, estar consciente ou inconsciente.
Se por outro lado, a mãe não aceita ou não aguenta as projeções, estas são sentidas
pela criança como desprovidas de sentido, e ela as reintrojetará então como um
pavor inominável. E sua reação será no sentido de usar cada vez mais identificação
projetiva, com maior força e freqüência. Ela própria se identifica projetivamente
com a mãe rejeitadora e não-compreensiva, ficando igualmente privada da
capacidade de compreensão. (SIMÕES, 2013, p. 19)
Ora, a questão que se fazia necessária era a de cavar ainda mais esse lugar mítico,
de onde e para onde esse corpo estava sendo lançado? Que falta era essa que se fazia presença
em vários momentos da cena, da análise e da escrita? Fundante e ao mesmo tempo
assustadora? Como o lugar da falta que funda pode, ao mesmo tempo, ser um lugar de recusa
e sofrimento? Para não pensarmos nisso, a teoria se estabilizava na justa medida em que o
corpo ia para a cena para que essa falta tida nas leituras se diluísse. Foi um movimento de
colocar à prova o corpo nesse lugar. Como uma tentativa de aliviar a tensão entre o corpo e a
palavra num duelo de costura significante. Do setting analítico para os ensaios, dos ensaios
para o setting. Que circulação se operava por ali?
Inocência da pesquisadora quando julgou que esse corpo lançado iria lhe dar
algum retorno do lugar da compreensão. Na medida em que o corpo, cansado de se aventurar
em um constante não-lugar, cujo furo ia apontando para a estranha casa do enigmático
duende, as coisas iam perdendo seus eixos. Lugares nunca antes avistados, assim tão de perto,
arranhando o corpo. De que lugar se poderia descrever o abismo existente entre o corpo, o
duende e a escrita? Lugares de aparição, reserva e esquecimento. Por que dizer não à
sublimação? Por que, quando se fala de arte, em especial da dança, o refúgio é sempre aquele
da sublimação? Seria esse o único caminho possível? Não no nosso caso, pois significaria
perder, em um palavreado retórico e egoico, a radicalidade do flamenco, tal como sentido e
concebido desde Lorca. Dessa recusa, entre muitas leituras e investigações, o corpo foi
pedindo cena.
Mais ou menos na época do aprofundamento da questão-duende na voz da
psicanálise -- aliás, vale enfatizar, muitas vozes que fomos buscar naqueles que
admiravelmente percorreram e ainda percorrem esse caminho psicanalítico, prenhe de vozes
ressonantes -- bordejando essas veredas, a experiência do diário de bordo foi se
intensificando. O corpo da pesquisadora expandia-se para um lugar também de pesquisa. Há
exatamente um ano, época da qualificação, Rodrigues (2015) em sua fala marcou uma trilha
possível para a investigação. Uma fala que não fez efeito imediato, mas que, após um curto
espaço de tempo, veio como um míssil. Ela pontuou que havia cortes no ainda tímido esboço
do diário de bordo, e me perguntou: “O que te aproxima e o que te distancia do duende?”.
Essa voz emanou, trazendo a vivência para o concreto, se é que podemos falar em concretude
quando estamos tateando o irrepresentável. O corpo na prática e na investigação teórica foi se
delineando numa composição de desnudamento.
243
Nas ranhuras, nas centenas de ranhuras, feitas primeiramente sobre as folhas, não se
escreve nada. Nenhuma libido deixa qualquer traço aí. Quando o sujeito toma na
mão uma caneta e massacra a folha até fazer buracos, o fort da não funciona. O
sujeito não tem, pois, a possibilidade de escrever em algum lugar, que sua mãe
partiu. Não há acomodação dos restos da partida da mãe. Com o fort da e o carretel,
quando a mãe se vai, a criança se recupera. No jogo, ela simboliza a ausência e a
presença e encontra-se munida de um carretel a mais. Em seguida, o carretel
transformar-se-á num urso de pelúcia. O que é um urso de pelúcia? É um carretel ao
qual a criança recorre quando ela deve enfrentar uma separação. “É uma reserva de
libido”, diz Lacan. Com esta pequena reserva, fora do corpo, o Outro pode partir.
Ainda que o Outro a deixe desolada por sua partida, resta-lhe isso com essa reserva
de libido, ela pode mobilizar a angústia em que foi deixada pela partida da Coisa, a
mãe real enquanto que ela é o lugar que humaniza a criança. Ela é o centro do
mundo da criança e quando ela se vai, deixa-a numa ausência, onde não há mais
significantes, onde não há mais traços. Ela parte com todos os significantes da
criança. Se isso se passa de uma maneira ruim, a criança pode não ter mais um
significante para si mesma – todos partiram. Para poder falar, para poder escrever
sem se esvaziar, é necessário, pois, que restem alguns, em reserva, no carretel, no
urso de pelúcia. Com isso, a criança tem uma chance se suportar a angústia do nada
de traço da presença da ausência. (LAURENT, apud GUIMARÃES, 2007, p. 4)
Quantas reservas de significante existem na arte? Ora, como afirma Becker (2006,
p. 139), “a ficção oferecida pela arte não remeteria a um Real que pode estar descrito na
forma de relato, da mesma forma que através de uma coreografia composta das imagens
corporais?”.
O vai e vem do caminho pulsional-- e, por isso, a parada --, partiu da suposição
freudiana de que a pulsão busca uma satisfação que já fora obtida um dia, naquela nossa pré-
história, nos conduzindo a um passo a mais rumo à coisa analítica de Freud, o das Ding em
Lacan e a Coisa em si kantiana. Coisa que, na realidade é, em si, vazia, não obstante seja em
torno dela que pulsa toda a atividade do sujeito. Toda a formulação freudiana do Projeto
encontrou sua relevância no que tange ao nascimento da Coisa no neurônio a, aquele que se
apresenta constante e cuja identidade, perdida, será substituída por um equivalente, e nunca
igual, isso visto já de um ponto de vista neuronal. Uma hipótese que hoje, com o
desenvolvimento da neurociência, soa como metáfora. Mesmo assim uma boa metáfora
quando encontra seu encaixe entre os fios de uma teia.
Lacan dirá que a sublimação mostra o trajeto da pulsão em direção a um objeto
inalcansável. A satisfação não se dispõe a apanhar o objeto, mas sim, circulá-lo, não
importando qual objeto. Valeria, portanto, retomarmos a inquietante estranheza, como lembra
Guimarães (1993, p. 45, 47), para irmos nos deparar com o encontro desconfortante dentro da
nossa própria casa. Encontro relacionado a essa coisa que remete ao vazio, apreensível apenas
se caminhamos pelas teias do pensamento teórico. Assim, a sublimação, agora numa
revisitação distinta da convencionalmente aceita, não é algo que possa ser confundida com
uma mera domesticação pulsional. “Em seus paradoxos, aponta para um objeto que é nada e
também para das Ding, a Coisa inacessível, velada e misteriosa, fascinante e pavorosa com
todo caráter sinistro que isso provoca”.
REFERÊNCIAS
ALONSO, Silvia Leonor. O tempo que passa e o tempo que não passa. Revista Cult,
(pág. 52-55), ano 9, n. 101, abr.2006.
BOURCIER, Paul. História da dança no Ocidente. Trad. Marina Appenzeller. 2ª Ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2001.
CASTRO, Julio Eduardo de. A psicanálise e o tempo. Psicanálise & Barroco em Revista v.6,
nº3: 60-74, jul.2008.
DÓRIA, Gisela. A poética de sem lugar: por uma teatralidade na dança. São Paulo:
Perspectiva, 2013.
DUNKER, Christian Ingo Lenz. O cálculo neurótico do gozo. São Paulo: Escuta, 2002.
FERREIRA, Diego Diz, JUSTINO DA SILVA, Rafael & CARRIJO, Christiane. O estilo em
Psicanálise: o discurso do analista como arte do bem dizer. Psicol. USP, 71-76,
vol.25, nº.1. SãoPaulo: jan./abr. 2014. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/pusp/v25n1/08.pdf. Acesso em: 01 jun. 2016.
FINK, Bruce. O sujeito lacaniano; entre a linguagem e o gozo. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
FRANÇA, Maria Inês. Psicanálise, estética e ética do desejo. São Paulo, Perspectiva, 1997.
FREUD, Sigmund. Obras psicológicas completas. Edição Standard Brasileira. Rio de
Janeiro: Imago, 1996.
GAMBOA, José Manuel. Una historia del flamenco. Espanha: Espasa, 2011.
249
GARAUDY, Roger. Dançar a vida. Prefácio de Maurice Bèjard. Trad. Antônio Guimarães
Filho e Glória Mariani. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
GOLDENBERG, Ricardo. Psicologia das massas e análise do eu: multidão e solidão. Rio de
janeiro: Civilização Brasileira, 2014.
GUIMARÃES, Dinara Gouveia. Vazio iluminado: o olhar dos olhares. Rio de Janeiro:
Notrya, 1993.
GUIMARÃES, Maria Rita de Oliveira. Os três tempos do objeto Fort Da. Almanaque
online. Revista eletrônica de IPSM-MG. Ano 1, nº 1, julho/dez, 2007. Disponível em:
http://www.institutopsicanalise-
mg.com.br/psicanalise/almanaque/textos/Texto%20M%201%20.%20Rita.revis.%20-
%205%20laudas%20-.pdf. Acesso em: 02 jun. 2016.
JERUSALINKY, Julieta. A criação da criança: brincar, gozo e fala entre a mãe e o bebê.
Salvador, BA: Ágalma, 2014.
JORGE, Marco Antonio Coutinho. Fundamentos da Psicanálise de Freud e Lacan, v. 1: as
bases conceituais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
KRUEL, Sandra Seara. Final de análise. Reverso, vol. 29, nº54, Belo Horizonte, 2007.
250
LASNIK, Marie-Christine. Rumo à fala: três crianças autistas em psicanálise. Rio de Janeiro:
Companhia de Freud, 2011.
LEVIN, E. (1990). O gesto e o outro: o visível e o invisível. Escritos da Criança, ano III, n°
3.
LIMA, Carla Andréia Silva. Corpo, pulsão e vazio: uma poética da corporeidade. Tese de
Doutorado. Belo Horizonte: Escola de Belas Artes da UFMG, 2012. (269 páginas)
LOBO, Lenora. Teatro do Movimento: um método para um intérprete criador/ Lenora Lobo
e Cássia Navas – Brasília: LGE Editora, 2003.
LOBO. Lenora e NAVAS, Cássia. Arte da Composição: Teatro do movimento – Brasília:
LGE Editora, 2008.
LORCA, F Garcia. Juego y teoría del duende. Obras completas. Barcelona: Galaxia
Gutenberg/Círculo de Lectores, 1997.
MARTINS, Laércio dos Santos. O fazer artístico para a psicanálise. Tese de Mestrado
apresentada ao Curso de Mestrado Profissional em Psicanálise, Saúde e Sociedade da
Universidade Veiga de Almeida. Rio de Janeiro, 2009. 121 páginas.
MILLER, Gerárd. Um encontro com Lacan. Documentário Rendez Vous Chez Lacan, de
2011, dirigido por Gérard Mille. Disponível em: https://youtu.be/pn8x8uQbRRQ. Acesso em:
29 maio.2016.
MORA, Miguel. La voz de los flamencos: Retratos y autorretratos. Madri: El Ojo del
Tiempo Ediciones Siruela, 2011.
MORAES, Juliana Martins Rodrigues de. Dança, frente e verso. São Paulo: STJ, 2013.
NANCY, Jean-Luc. O título da letra: uma leitura de Lacan. São Paulo: Escuta, 1991.
. A dor física: uma teoria psicanalítica da dor corporal. Rio de Janeiro: Zahar,
2008.
252
NORONHA, Marcio Pizarro. Do Fort-Da da arte ao corpo obra. [É possível uma estética
da clínica? Haverá um corpo-obra?]. Conexão-Comunicação e Cultura, UCS, Caxias do Sul,
v. 6 nº11, Jan/Jun.2007 (pág.55-80)
OIDA, Yoshi. Um ator errante. Prefácio Peter Brook. Trad. Marcelo Gomes. São Paulo:
Beca Produções Culturais, 1999.
. O ator invisível. Prefácio Peter Brook. Trad. Marcelo Gomes. São Paulo: Via
Lettera, 2007.
QUEIROZ, Edilene Freire de. A trama do olhar. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007.
QUINET, Antonio. Um olhar a mais: ver e ser visto na psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar,
2002.
. Corpoema: o homem, ser para-arte e seu corpo. Revista Stylus. Rio de Janeiro,
nº21, p. 19-27, dez. 2010. Acesso em 11abril.2016.
STERNICK, Mara Viana de Castro. A imagem do corpo em Lacan. Reverso vol.32 no.
59. Belo Horizonte: jun. 2010
TFOUNI, Leda Verdiani & LAUREANO, Marcella Marjory Massolini. As marcas do Real
e o equívoco da língua. Conferência de Genebra sobre o sintoma. Vol. 2001. (pag. 1-4),
1975. Disponível em:
http://anaisdosead.com.br/3SEAD/Comunicacoes/LedaVerdianiTfouni.pdf. Acesso em: 03
jun.2016
VALAS, Patrick. As dimensões do gozo: do mito da pulsão à deriva do gozo. Rio de Janeiro:
Zahar, 2001.
VI ENAPOL. Falar com o corpo: a crise das normas e a agitação do Real. 2012.
Disponível em: http://www.enapol.com/pt/Textos.pdf. Acesso em: 21 maio.2016
254
WAJNTAL, Mira. Uma clínica da construção do corpo. São Paulo: Via Lattera Editora e
Livraria, 2004.
LISTA DE SITES
http://www.flamenco.ru/en-articles/flamenco-history3/
https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=22325975
http://www.flamencopolis.com/archives/3467
http://www.wikiart.org/en/theodore-chasseriau/la-petra-camara-1854
http://cdizflamencoflamencosdecdiz.blogspot.com.br/2012/10/1-luis-alonso-un-bolero-muy-
flamenco.html
https://www.google.com.br/search?q=novela+la+gitanilla&biw=1280&bih=685&source=lnm
s&tbm=isch&sa=X&ved=0ahUKEwjhovOP_KrMAhXMCD4KHV58D0wQ_AUIBygC#img
rc=uaMnHH2puqZYsM%3A
http://sardosycserokyric.tumblr.com/bookshelf
http://www.mimolibros.com/ficha.php?referencia=33046
http://www.flamencopolis.com/archives/3467http://en.wikipedia.org/wiki/Silverio_Franconett
i
http://www.datuopinion.com/antonio-chacon
http://www.heliotricity.com/antoniomairenaporseguiriyas.html
https://revistadepoesia.wordpress.com/2013/06/10/federico-garcia-lorca-espana1898-1936/
http://i.ytimg.com/vi/qob0oy0Ejqo/hqdefault.jpg
https://www.flamenco-world.com/artists/nina_de_los_peines/epeine.htm
https://www.youtube.com/watch?v=3LuCKO3Siw0
http://www.planocritico.com/literatura-meu-ultimo-suspiro/
http://www.deflamenco.com/revista/especiales/obituario-historico-carmen-amaya-revista-
destino-1.html-
http://www.papelesflamencos.com/2013_11_01_archive.html
http://unapizcadecmha.blogspot.com.br/2012_11_02_archive.html
http://www.triplov.com/letras/nicolau_saiao/2009/Evocacoes-espanholas/Juanito-
Valderrama.htm
http://www.vintagemusic.es/biografias/781/nino-ricardo/
http://cultura.elpais.com/cultura/2015/08/21/actualidad/1440154234_749215.html
http://villaelmartinete.com/history.html
http://www.papelesflamencos.com/2015/02/pilar-lopez-gades-y-el-guito-en-londres.html
http://www.flamencopolis.com/archives/3467
http://jazzdagama.com/masthead/paco-de-lucia-the-duende-of-timelessness-2/
http://abcblogs.abc.es/laboratorio-de-estilo/2014/02/26/paco-de-lucia-la-elegancia/
http://flamenco-sitio.com/gallery/2012/03/008.html
256
http://www.ateneodecordoba.com/index.php/Antonio_Esteve_R%C3%B3denas_%22Antonio
_Gades%22
http://www.midiorama.com.br/wp-content/gallery/carmen-da-cia-antonio-gades-
2011/foto_carmen_06.jpg
http://www.ejecentral.com.mx/hoy-recordamos-a-enrique-morente/
http://www.abc.es/cultura/musica/20131129/abci-estrella-morente-amor-brujo-
201311281901.html
http://blogs.elcorreoweb.es/lagazapera/2011/04/16/la-flamenca-que-enamoro-a-edison/
http://www.elartedevivirelflamenco.com/cantaores149.html
http://www.todocoleccion.net/documentos-antiguos/la-argentina-triunfo-amor-brujo-paris-
anos-20~x48307647
http://www.valladolidweb.es/valladolid/vallisolet/biograf/escuderovicente.htm
http://www.ciudaddeladanza.com/bibliodanza/espanol-y-flamenco/biografias-de-la-
argentina.html
http://www.danza.es/multimedia/revista/en-la-memoria-manuela-vargas
http://www.dancemagazine.com/reviews/September-2011/Israel-Galvn
http://www.elmundo.es/elmundo/2009/10/21/andalucia_sevilla/1256125046.html
http://dancetabs.com/2013/03/rocio-molina-danzaora-london/
http://es.wikipedia.org/wiki/Roc%C3%ADo_Molina
http://www.abc.es/20110510/cultura-libros/abcm-felix-grande-ultimo-repaso-
201105101603.html
http://www.bibliofiloenmascarado.com/2012/11/30/jose-manuel-caballero-bonald-premio-
cervantes-2012/
http://www.deflamenco.com/revista/entrevistas/entrevista-a-jose-luis-ortiz-nuevo-director-
artistico-festival- carmen-amaya-de-barcelona-1.html
http://tallerdemusics.com/escuela-de-musica/formacion-continuada/cursos-especiales-y-
clases-magistrales-escuela/comprende-el-flamenco/
http://elafinadordenoticias.blogspot.com.br/
http://flamencobrasil.com.br/2015/08/palestra-gratuita-com-o-consagrado-flamencologo-juan-
vergillos-e-show-com- villa-flamenca-as-4-emocoes-do-flamenco/ //
http://vaivenesflamencos.com/
http://www.revistalaflamenca.com/entrevista-jose-manuel-gamboa/
http://elpais.com/diario/2005/04/28/espectaculos/1114639203_850215.html
https://pt.wikipedia.org/wiki/Palo