Tese Sobre o Silmarillion
Tese Sobre o Silmarillion
Tese Sobre o Silmarillion
Instituto de Letras
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
Dissertação apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em
Literatura do Departamento de
Teoria Literária e Literaturas da
Universidade de Brasília como
parte dos requisitos para a obtenção
do título de mestre em Teoria
Literária.
Aprovado em ___/____/____
BANCA EXAMINADORA
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À J.R.R. Tolkien, que por meio de sua sub-criação mostrou-me um mundo fantástico,
imprescindível na formação de quem eu sou; por sua maestria, sua poética, seu encanto.
Obrigado!
Ao Doutor Angélico, por sua sabedoria e sua filosofia; por me fazer consciente da dupla
obscuridade na qual nasci e ensinar-me a pedir à Deus que afaste-as de mim. Obrigado!
Aos meus amigos (antigos e novos) que foram de grande importância na minha
caminhada - acadêmica e de vida. Agradeço especialmente aqueles que conheci através
da Escola de Evangelização Santo André, que, na medida de cada um, entenderam,
apoiaram, auxiliaram, escutaram meus lamentos e fizeram, com sua presença, mais fácil
carregar este mestrado adiante. Obrigado!
Por fim, agradeço a todas as pessoas que, com sua companhia e oração, me
acompanharam durante esse projeto e que, mais confiantes em mim do que eu mesmo,
acreditaram. Muito obrigado!
Resumo
1. INTRODUÇÃO 01
2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA: O SIMBOLISMO, O GÊNERO LITERÁRIO
E AS VIRTUDES NA TEOLOGIA CATÓLICA 09
INTRODUÇÃO
isso ocorre de maneira espontânea, por causa da afiliação do autor com o pensamento
ideológico da Igreja - como é o caso das obras de J.R.R. Tolkien.
É sabido que um meio frequente utilizado pelos autores para significar conceitos em
seus escritos são os símbolos. O símbolo é um meio do qual vários autores utilizam para
expressar diversos significados através de um único elemento literário. Sem prender-se na
análise simplesmente simbólica, a presente pesquisa pretende entender de maneira crítica
como as convicções e crenças pessoais do autor, sua vivência, suas tragédias pessoais e sua
relação de fé com a Fé Romana influenciaram suas obras literárias. A partir de uma
consideração relacionada tanto à vida pessoal do autor quanto à importância da Tradição e
Moral cristãs em seu meio social e sua vida particular, buscaremos então discutir o papel do
símbolo para a literatura de J. R. R. Tolkien. Portanto, a presente pesquisa busca, então,
balancear a análise nestas duas frentes: não se trata de uma análise puramente bibliográfica e
nem simplesmente simbólica, mas apoiada nestas duas pretende compreender de que maneira
as convicções pessoais de Tolkien manifestam-se em suas obras através da simbologia.
De acordo com Carl Gustav Jung (1964) “o homem utiliza a palavra escrita ou falada
para expressar o que deseja transmitir. Sua linguagem é cheia de símbolos, mas ele também,
muitas vezes, faz uso de sinais ou imagens não estritamente descritivos” (p. 16). O próprio
autor reconhece, em uma de suas cartas a um leitor, a influência dos valores cristãos e
católicos em sua obra, fato este que gerou, e ainda gera, toda uma fortuna crítica a partir de
tal revelação de Tolkien. Apesar de haver negado várias vezes que sua obra tratava de temas
religiosos e morais, Tolkien responde que ao revisá-la observou que em verdade sua obra era
uma obra católica. Tal declaração foi feita a um de seus leitores, o padre jesuíta Robert
Murray, que havia escrito indagando-o sobre relações e símbolos religiosos encontrados por
este enquanto lia O Senhor dos Anéis. O autor também afirma, na mesma carta, que a
religiosidade da obra é absorvida pela história em si e por seus símbolos. Na mesma carta,
Tolkien afirma que sua obra tornara-se católica não por intenção própria, mas de maneira
inconsciente de início, porém consciente durante as várias revisões que este fazia antes de
considerar que seu texto estava bom o suficiente.
Desta maneira, podemos afirmar que sua escrita era, em alguma instância,
inconsciente. Este se caracteriza como um processo psíquico em contínuo desenvolvimento,
3
Além de C. G. Jung, outro autor muito importante dentro dos estudos sobre o papel do
símbolo dentro da literatura é o romeno Mircea Eliade. Além de teórico liteŕario, Eliade
também é um dos mais importantes teóricos sobre a relação dos símbolos e religião da
atualidade e afirma que “o símbolo revela certos aspectos da realidade — os mais profundos
— que desafiam qualquer outro meio de conhecimento” (ELIADE, 1979, p. 13), revelando o
símbolo e sua capacidade de representação intrínseca que muitas vezes ultrapassa a própria
consciência do autor na criação de suas obras literárias. Com isto podemos afirmar que,
muitas vezes, o símbolo pode ter sua origem no inconsciente do autor, surgindo como uma
ferramenta de significação maior para este do que inicialmente pretendido. O símbolo, aliado
ao inconsciente do autor, possuem uma capacidade de agrupamento de significados enorme,
possuindo várias maneiras de se apresentar dentro da literatura.
compilados relatos fantásticos do fim dos tempos de acordo com o Cristianismo, com sua
narrativa povoada por anjos, demônios, bestas, feras, dragões, e coisas do tipo. Existem ainda
outros exemplos do uso da literatura pela Santa Igreja, como os relatos dos sonhos proféticos
e visões de santos e santas, como São João Bosco e Santa Faustina, para citar apenas dois.
Ainda, durante a Idade Média, era amplamente difundido o Teatro Moralizador, que buscaba
catequizar e expandir os valores cristãos à população, em sua maioria plebéia e analfabeta.
Entretanto, as influências literárias não se confinam na Idade Média, mas podem ser
encontradas em obras importantes da atualidade, como os escritos de C.S. Lewis, um dos
melhores amigos de Tolkien e também, claro, nos deste autor. Lewis, que foi por muito
tempo um agnóstico convicto e que enxergava na história de Cristo somente mais um mito,
como qualquer outro de qualquer outra religião, foi profundamente influenciado pela
convicção religiosa de Tolkien. Após sua conversão ao cristianismo, a contragosto de
Tolkien, já que este era católico e Lewis tornara-se protestante, Lewis escreveu diversas
narrativas de cunho religioso - dos quais destaca-se sua obra de maior sucesso: As Crônicas
de Nárnia, as quais Tolkien desgostava profundamente, por serem amplamente alegóricas.
Um dos aspectos da religião católica que se fazem presentes tanto na narrativa bíblica
quanto nas obras literárias de Tolkien é a virtude. De acordo com a ótica da Teologia
Católica, virtudes são todos os atos ordenados e devidos da razão, que implicam um certo
grau de bondade e que dispõe-se segundo a natureza. A causa da virtude é, portanto, tanto
uma infusão de valores quanto um costume. A virtude tem seu fim nos hábitos, porém,
encontra sua fonte na alma humana, que, segundo São Tomás de Aquino possui duas
naturezas distintas, porém inseparáveis. Ao que diz respeito à dupla natureza da alma, esta é
5
dividida em natureza racional e natureza sensitiva, onde esta última é contrária a primeira,
que possui como bem estar de acordo com a razão. A virtude encontra então, dentro deste
espectro o seu campo de atuação, ordenando segundo a alma racional a natureza sensitiva do
homem.
A importância de uma vida cristã exemplar, norteada pelas virtudes e pela busca do
Bem é uma preocupação patente e recorrente na Tradição Católica. Segundo Rocha (2010) “a
moral no pensamento de Tomás de Aquino é uma ciência do ato humano, ou seja, prática.”
(p. 2), portanto, ciência que espelha-se e encontra-se nas atitudes e criações do ser humano,
como reflexo externo do que tem-se como verdade interna. Tolkien, como A virtude, como
visto acima, tem seu princípio na alma racional do homem que, direcionada sempre ao bem
deste, busca através do hábito da virtude ordenar a natureza sensitiva em sua busca constante
pela simples satisfação dos prazeres sensíveis. O Catecismo da Igreja Católica define ainda as
virtudes como “atitudes firmes, disposições estáveis, perfeições habituais da inteligência e da
vontade que regulam nossos atos, ordenando nossas paixões e guiando-nos segundo a razão e
a fé.” (Catecismo da Igreja Católica, §1804). A virtude possui ainda duas naturezas, que
relacionam-se com o sua finalidade, com a execução do hábito operativo do bem; são
divididas em virtudes intelectuais e morais. As virtudes intelectuais são aquelas que agem em
si mesmas, buscando reger e direcionar o intelecto; estas têm seu princípio e seu fim no
intelecto, operando neste. As virtudes morais, por sua vez, agem através de um intermediário
nas em suas realidades: especulativas ou operativas.
As virtudes cardeais são as principais dentre as de natureza moral e são tidas como as
virtudes próprias da alma humana. São enumeradas no livro da Sabedoria: “ensina a
temperança e a prudência e a justiça e a fortaleza, que é o mais útil que há na vida para os
homens.” (Sb, 8, 7), colocando-as acima de todas as outras virtudes. As virtudes cardeais são
quatro, assim como quatro são os pontos cardeais, as estações do ano, os lados da Cruz.
Dentro da moral e ética cristã, as “quatro virtudes têm um papel de “dobradiça” (que, em
latim, se diz “cardo, cardinis”). Por esta razão são chamadas “cardeais”: todas as outras se
agrupam em torno delas.” (Catecismo da Igreja Católica, §1805) sendo estas as virtudes
centrais, fundamentais e que orientam a vida cristã. A prudência, temperança, fortaleza e
justiça são encontradas nas obras de Tolkien de várias maneiras, seja nas respostas e ações
dadas pelas personagens ao enfrentarem algum dilema ou ponto de decisão na narrativa; na
6
narração geral da obra e assim como na disposição da história - suas relações éticas e morais;
ou seja na criação de personagens cuja personalidade marcante é representativa de uma ou
mais destas virtudes.
John Ronald Reuel Tolkien nasceu em janeiro de 1892 no condado de Orange, atual
África do Sul, e foi um importante filólogo, escritor e professor universitário britânico.
Profundamente influenciado pela fé católica de sua mãe, o autor, após a morte desta, torna-se
um fiel ainda mais fervoroso da fé de Roma. Embora tenha sido um exímio professor
universitário e filólogo, Tolkien tornou-se famoso com a publicação de O Hobbit em 1937, e,
impulsionado pelo sucesso deste, escreve por cerca de quinze anos e publica em três volumes
O Senhor dos Anéis e ntre 1954 e 1955. Entretanto, a obra a qual Tolkien mais se dedicou foi
sua coletânea mito-poética O Silmarillion, que ocupa-se dos mitos e histórias da criação da
Terra-Média; dos principais relatos das Três Primeiras Eras do Mundo; mundo ficcional este
onde os acontecimentos narrados em suas outras duas obras acontecem. Tolkien passou sua
vida escrevendo, editando e reeditando sua obra, pois julgava não estar pronta, não
conseguindo publicá-la em vida. Foi por fim editada e publicada postumamente por seu filho
em 1977. Tolkien é considerado por muitos o pai da literatura fantástica e da alta-fantasia,
pois suas obras influenciaram, e ainda influenciam, escritores por todo o mundo, desde
contemporâneos seus como C. S. Lewis, autor das Crônicas de Nárnia a autores atuais, como
George R. R. Martin, autor das Crônicas de Gelo e Fogo e J. K. Rowling, autora da série
Harry Potter. No Brasil também influenciou escritores como Cristina Pezel, autora de O
Mundo de Quatuorian e Rosana Rios,autora da série O Mundo das Pedras.
Como dito acima, Tolkien é considerado o pai da literatura fantástica moderna, e sua
obra mitológica O Silmarillion se encaixa nesta definição. Entretanto, o autor não se baseia
7
somente na estética literária fantástica, que ele chama de contos de fadas, e imprime em suas
obras a sua Fé. Segundo o próprio autor, “O Senhor dos Anéis obviamente é uma obra
fundamentalmente religiosa e católica; inconscientemente no início, mas conscientemente na
revisão.” (TOLKIEN, 2006, p. 288). Seguindo tal declaração, mostra-se justificada a
interpretação a partir de uma matriz espiritual e religiosa das obras do autor. Pensamento este
que pode ser reforçado novamente por Tolkien quando declara em uma de suas cartas que “a
história possuía para o leitor mais inteligente um grande número de implicações filosóficas e
místicas que a aprimoram sem depreciar a ‘aventura’ superficial” (TOLKIEN, 2006, p. 55).
As questões morais apresentadas nas criações literárias de Tolkien não se dão de maneira
explícita, mas é através da utilização de símbolos que são impressos na obra os valores
morais, as virtudes cristãs.
O Silmarillion é uma obra fantástica de J. R. R.Tolkien e que serve como uma espécie
de coletânea mitológica de seu universo, chamado Eä (o mundo que é). Foi publicado apenas
postumamente, entretanto, é tido como o projeto preferido do escritor inglês, o qual o dividiu
em cinco partes: a primeira, chamada de Anuilindalë relata a criação do mundo por Eru, o
Único, com a participação dos Valar - Os Poderes do Mundo. A segunda, Valaquenta,
descreve os Valar e os Maiar, o povo dos Valar. A terceira, denominada Quenta Silmarillion
compõe grande parte do livro e relata os acontecimentos da Primeira Era de Eä, desde o início
dos Tempos e das disputas entre os Valar e Melkor, o Inimigo. A quarta parte, Akallabêth,
relata a história da ascensão e queda do Império Numenoriano, durante a Segunda Era.
Finalmente, sua última parte chama-se Dos anéis de poder e da Terceira Era, relatando assim
de forma breve os acontecimentos imediatamente anteriores e posteriores à narrativa de O
Senhor dos Anéis, assim como da criação dos Anéis de Poder por Sauron, em sua tentativa de
subjugar o mundo a sua vontade.
luta entre as forças do Bem e do Mal; da vitória do bem através do sacrifício pessoal -, a
presença de tal virtude mostra-se como algo bastante esperado. A virtude da Justiça aparece
com frequência menor do que as duas anteriores, estando mais presente nos assuntos que
possuem a intervenção direta dos Poderes do Mundo, ou daqueles próximos a eles em ideal e
conduta. Das quatro virtudes cardeais, a que teve um local maior de atuação, estando presente
durante todo o fluxo narrativo, foi a virtude da temperança, ligada à correta ordenação dos
sentidos e das necessidades do corpo, responsável pelo cometimento e também pela virtude
da humildade.
Por fim, cabe mencionar aqui a fortuna crítica na qual a presente pesquisa de mestrado
baseou-se para a leitura e análise comparativa; fortuna crítica essa composta de textos de
diversas fontes, dada a natureza da proposta de pesquisa. No arcabouço teórico que compõe a
fundamentação desta pesquisa, no que se direciona a discussão sobre o inconsciente do autor
e da escrita, destacam-se os textos de JUNG (1964, 2002, 2008 & 2014); ELIADE (1979);
FRYE (2014); ARANTES (2016) e CIECELSKI (2017). Já sobre os gêneros literários, foram
importantes os trabalhos de CAWELTI (1976); NOGUEIRA FILHO (2013); assim como os
trabalhos do próprio TOLKIEN (2014). Na fundamentação sobre a virtude sob a ótica da
Teologia Católica, foi imprescindível o trabalho de São Tomás de Aquino (2016) em sua
Suma Teológica. No que concerne o trabalho na análise da narrativa, contribuíram as leituras
dos textos de CASEY (2004); MORRIS (2012); e WHITE (2016); assim como o Catecismo
da Igreja Católica, dentre outros. Porém, sem dúvidas, o texto de maior é importância é o
próprio Silmarillion, de J. R. R. Tolkien (2011).
9
O inconsciente coletivo, por sua vez, é formado pela parte mais profunda do
inconsciente da pessoa e é formado pelas experiências e aquisições coletivas, manifestadas
através dos arquétipos. De acordo com Ciecelski (2017) “esse inconsciente coletivo seria
como o ar: ele está em todos os lugares e é respirado por todos, porém não pertence a
ninguém.” (p. 7) A expressão do inconsciente coletivo - os arquétipos - são encontrados
principalmente em mitos, lendas e contos de fadas.
Arquétipo deriva de duas palavras gregas: archein ( arcaico, velho, original) e typos
(tipo, modelo, padrão). Seguindo, portanto, a etimologia da palavra, arquétipo se configura
como o padrão original de algo. Dentro da área da psicanálise analítica, arquétipos são tipos
psicológicos presentes no inconsciente coletivo, apresentando características similares, ou até
mesmo idênticas, mesmo estando presentes em épocas, lugares e culturas distintas servindo
de fonte para mitos e lendas e que também podem se manifestar em determinados indivíduos,
através de suas características psicológicas, valores morais e personalidade. “O arquétipo
representa essencialmente um conteúdo inconsciente, o qual se modifica através de sua
conscientização percepção, assumindo matizes que variam de acordo com a consciência
individual na qual se manifesta.” (JUNG, 2002, p. 17). Para Ciecelski (2017):
Como visto acima, o símbolo é um meio do qual vários autores utilizam para
expressar diversos significados através de um único elemento literário. Um dos conceitos
mais difundidos da teoria de Carl Gustav Jung é o do simbolismo, ferramenta pela qual o
homem se expressa, de maneira não descritiva, imagética e simbólica. Outro autor muito
importante no campo da análise simbólica é o cientista das religiões, filósofo, romancista e
professor romeno Mircea Eliade, para quem o símbolo é responsável por trazer à luz os
1
JUNG, 2008. p. 18
12
Segundo Carl Gustav Jung (1964) “o homem utiliza a palavra escrita ou falada para
expressar o que deseja transmitir.” (p. 20). Entretanto, não apenas por meio de expressões
literais é possível transmitir o que se quer dizer. Por muitas vezes o autor “faz uso de sinais
ou imagens não estritamente descritivos.” (JUNG, 1964, p. 20) É por meio de imagens e
símbolos que o autor expressa o que realmente deseja, de uma maneira indireta, ou então,
expressa o que não conseguiria remeter ao leitor com a mesma dimensão se escolhesse uma
maneira não-descritiva, já que “o símbolo revela certos aspectos da realidade - os mais
profundos - que desafiam qualquer outro meio de conhecimento.” (ELIADE, 1979, p. 13).
Eliade (1979) afirma ainda que:
O simbolismo encontra dentro da literatura uma vasta área de atuação, servindo como
um instrumento a disposição do autor para a re-significação de imagens conhecidas através de
máscaras, as quais são usadas, muitas vezes, para ampliar o entendimento dos leitores em
relação àquilo que é pretendido pelo narrador. Os símbolos são capazes de trazer para a
atualidade significados que de outra maneira o leitor não seria capaz de compreender, ou que
até mesmo não são considerados ou contemplados com frequência, já que “os símbolos nunca
desaparecem da atualidade psíquica: podem mudar de aspeto mas a sua função continua a ser
a mesma: basta retirar-lhes as suas novas máscaras.” (ELIADE, 1979, p. 17). Possuindo esta
13
de uma leitura religiosa, pois “o estudo racional das religiões trará à luz um fato
insuficientemente notado até agora: é que existe uma lógica do símbolo, que certos grupos de
símbolos, pelo menos, se mostram coerentes, logicamente encadeados entre si; que se pode,
numa palavra, formulá-los sistematicamente, traduzi-los em termos racionais.” (ELIADE,
1979, p. 36).
narrativa fantástica é composta por uma série de fenômenos mágicos e sobrenaturais que
possuem um papel expressivo dentro do desenvolvimento da história. Ou seja, os lugares,
seres, eventos e motivos da narrativa não poderiam existir em um mundo racional e regido
pelas mesmas leis naturais que o nosso. Trata-se de um um novo, regido por suas próprias
leis, mas que trás em comum a luta do bem e do mal. Para Nogueira Filho (2013), "temos,
dessa forma, uma literatura realista e uma não realista. Na literatura realista o mundo é
exatamente como o conhecemos, uma cópia da realidade, e o que lemos nesse tipo de
literatura poderia ter sido de fato real. A literatura não realista precisa romper com a nossa
visão de realidade e, dessa forma, nesse tipo de literatura a magia e a existência de criaturas
míticas são tão naturais como usar o celular é para nós.” (p. 14-15)
Desta maneira, podemos ver com que importância os fenômenos não-racionais, ou
seja, a existência de criaturas, locais, situações mágicas possuem dentro da narrativa
fantástica. Como gênero literário, o fantástico possui alguns sub-gêneros, dentro os mais
conhecidos estão os mitos, as lendas, as fábulas e os contos de fadas, já que nestes exemplos
de literatura a presença de seres maravilhosos, mágicos e inexplicáveis por nossas leis
naturais é comum. Com relação a este gênero literário, outra classificação comum do gênero
fantástico é sua divisão entre alta fantasia e baixa fantasia. Se tomarmos o termo ‘literatura
fantástica’ como o termo geral para descrever uma literatura de estranhamento com a
realidade racional, os termos alta e baixa fantasia não se referem a qualidade literária do
texto, mas se referem ao local de narrativa.
Se uma narrativa se passa completamente em um mundo próprio, com as próprias leis
naturais, este texto é considerado alta fantasia. Se outra narrativa, por sua vez, se passa no
limiar entre nossa realidade e uma realidade própria, ou seja, se a história possui narrativas
ambientadas em nosso mundo real e um mundo imaginário que existe concomitantemente
com o nosso, este texto é considerado baixa fantasia. As séries literárias Percy Jackson, do
autor norte-americano Rick Riordan, e Harry Potter, da autora britânica J. K. Rowling são
exemplos de baixa fantasia. Por outro lado, as narrativas fantásticas de J. R. R. Tolkien são
exemplos de alta fantasia, por serem ambientadas em seu próprio mundo - A Terra-Média - e
serem habitados por hobbits, elfos, anões, orcs, magos e outras criaturas co-habitando com
humanos naturalmente.
O próprio Tolkien escreveu também sobre o gênero fantástico. Em seu ensaio Sobre
Histórias de Fadas ( 2014), o autor discursa sobre a existência do que chama de Reino
17
Encantado, fonte e origem das histórias de fadas, histórias estas que, apesar do nome, não
tratam somente destas, já que “no uso normal em língua inglesa os contos de fadas não são
histórias sobre fadas ou elfos, mas histórias sobre o Reino Encantado, Faërie.” (TOLKIEN,
2014. p. 9) Este Reino Encantado, entretanto, não é somente um reino mágico, maravilhoso e
absolutamente alheio ao nosso; “o Reino Encantado contém muitas coisas além de elfos e
das fadas, e além de anões, bruxas, trolls, gigantes ou dragões; contém os oceanos, o sol, a
lua, o firmamento e a terra, e todas as coisas que há nela: árvore e pássaros, água e pedra,
vinho e pão.” (TOLKIEN, 2014. p. 9-10) Estas duas últimas imagens, o vinho e o pão, nos
remetem já a dois símbolos comuns dentro do catolicismo: a Eucaristia, denotando assim a
presença de algo além do que simples magia dentro do que Tolkien via como literatura
fantástica.
Tolkien via o conto de fadas não como uma história puramente fantasiosa, ‘estranha’,
mas sim o relato de algo crível, não estando sujeito simplesmente ao relato de histórias de
fadas ou criaturas mágicas, mas sim da própria natureza destes, e na qual eles se inserem.
Para Tolkien (2014) “a definição de conto de fadas - o que é, ou o que deveria ser - não
depende, portanto, de nenhuma definição ou relato histórico sobre elfos ou fadas, mas sim da
natureza do Reino Encantado, o próprio Reino Perigoso.” (TOLKIEN, 2014. p. 10) Com
relação a veracidade destes contos de fada, Tolkien fala ainda que :
Como dito acima, Tolkien via nos contos de fadas muito mais do que simplesmente
histórias sobre fadas, nas quais essas aparecem com destaque. Contos de fadas para o autor
são todos aqueles que fazem uso do que o mesmo chama de Faërie - o Reino Encantado -,
seja de forma parcial, seja completamente. De acordo com Tolkien (2014) “um ‘conto de
fadas’ é aquele que toca ou usa o Reino Encantado, qualquer que seja seu propósito principal,
sátira, aventura, moralidade, fantasia.” (p. 10)
18
Tolkien enxergava o conto de fadas também como o resultado normal do qual sofrem
os mitos, as humanizações das histórias e lendas fantásticas. No princípio, com as
personificações das forças elementais em figuras divinas humanizadas, ou então em figuras
que, apesar de humanas, apresentavam características quase divinas, os mitos eram
localizados em lugares reais, para assim trazê-los à realidade. Em um processo quase natural,
“essas lendas se reduziram, transformando-se em contos populares, märchen, contos de fadas
- histórias infantis.” (TOLKIEN, 2014. p. 23) Muitos, porém, conservaram algo de divino em
seus relatos, através deste processo de transformação de mito em conto de fadas. Tolkien
(2014) afirmava que “ocasionalmente vislumbra-se na mitologia algo realmente ‘mais
elevado’: a Divindade, o direito ao poder (diverso da sua posse), o devido culto; na verdade,
‘religião’.” (p. 25)
Para Tolkien (2014) existe uma palavra que pode ser usada para significar tanto a
capacidade de sub-criar quanto a capacidade de causar um estranhamento e um
maravilhamento dentro de um conto de fadas: fantasia. Tolkien (2014) afirma que
Tolkien reconhecia que existia, e ainda existe, um certo problema com a aceitação dos
contos de fadas - da literatura fantástica. Para o professor, a qualidade dos contos de fada de
trazer uma ‘estranheza cativante’ é ao mesmo tempo uma vantagem e uma desvantagem. Para
Tolkien (2014) a desvantagem era que “muitas pessoas não gostam de ser ‘cativadas’ Não
gostam de nenhuma interferência com o Mundo Primário, ou com os pequenos vislumbres
dele que lhes são familiares.” (p. 46) Para essas pessoas a literatura fantástica não passa de
mero devaneio, confundindo a Fantasia com o Sonho, pois neste não existe arte, somente uma
total falta de controle. Porém, para Tolkien a Fantasia, e a apreciação desta, é parte
constituinte da natureza humana, já que “a Fantasia é uma atividade humana natural.
Certamente ela não destrói a Razão, muito menos insulta; e não abranda o apetite pela
verdade científica nem obscurece a percepção dela.” (TOLKIEN, 2014. p. 53)
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Entretanto, não só nas lendas seculares e contos de fadas que podemos encontrar
exemplos de literatura fantástica. Desde os primórdios da expressão escrita da Espiritualidade
Judaico-cristã podemos identificar sua proximidade com a literatura, especialmente a
literatura fantástica, utilizando-se deste para narrar profecias e transmitir conhecimentos.
Sempre esteve presente, ao longo da história da Igreja o Fantástico Cristão. Durante a Idade
Média era comum o uso do Teatro Moralizador, ferramenta pela qual a Igreja apresentava
conhecimentos e valores morais através de peças teatrais, com o intuito de expandir os
conhecimentos sobre valores morais e catequizar a população amplamente analfabeta. Outro
exemplo pode ser encontrado na Hagiografia, nos relatos de santos como São Jorge2, São Pio
de Pietrelcina3 e São José de Cupertino4. Podemos encontrar exemplos também na narrativa
bíblica, em especial o gênero apocalíptico, que se analisado como narrativa literária poderia
ser classificado como baixa fantasia, já que sua narrativa é povoada por anjos, demônios,
bestas, feras, dragões presentes em nosso mundo, agindo livremente na nossa realidade
racional. Temos ainda outro exemplo da presença da literatura fantástica dentro da narrativa
bíblica e na história literária da Igreja, que são os livros e sonhos proféticos.
2
Segundo a Tradição, o santo foi um soldado romano que combateu sob o Imperador Diocleciano. Sua história
é controversa dentro da história da Igreja, tendo até mesmo sido retirada do Breviário Romano pelo papa
Gelásio. A Igreja afirma a existência histórica de São Jorge, porém dá pouca credibilidade as suas histórias mais
fantásticas- dentre as quais se destaca sua luta contra um dragão.
3
A vida deste santo é rodeada de acontecimentos fantásticos. São registradas suas inúmeras visões de anjos
de demônios. Era tido também que São Pio conseguia saber dos pecados que aqueles que confessavam com
ele tentavam esconder. É registrado ainda que o santo teria o dom da bilocação - estar em dois lugares ao
mesmo tempo.
4
O santo italiano apresentava vários dons fantásticos: registra-se na Tradição que possuía o dom da levitação,
fato que ocorria constantemente quando rezava - como um estado de êxtase; e também na maioria das vezes
que celebrava a Santa Missa. Além deste, diz-se que o santo sabia o que se passava com as pessoas a sua volta,
sem que elas lhe contassem, e as aconselhava de acordo.
20
está intimamente relacionado com as condições de sua linguagem.”5 (p. 3, tradução nossa)6
Tanto os textos do Antigo Testamento quanto aqueles presentes no Novo possuem esta
ligação poética do uso da linguagem, estabelecendo assim a relação entre língua-literatura e o
sagrado.
O processo de construção literária e estabelecimento dos livros que compõem a Bíblia
se deu através de aproximadamente nove séculos - até a definição da septuaginta no século II
a.C. - e por mais quatro séculos - até a tradução da Vulgata por São Jerônimo no século V d.
C.. Durante este processo de construção e desenvolvimento literário, os textos sagrados
sofreram uma espécie de transição; passaram de um relato histórico original para verdade
revelada, profundamente entremeada com seu caráter religioso:
5
“A sacred book is normally written with at least the concentration of poetry, so that, like poetry is closely
involved with the conditions of its language.”
6
Todas as citações seguintes da obra de Northrop Frye, 1982 The Great Code - The Bible and Literature serão
de tradução nossa.
21
perfeitamente acreditar que tenha podido moldar as mentes e vidas de homens e mulheres
inteligentes por mais de dois milênios." (KERMODE in. ALTER; KERMODE, 1997. p. 12)
Entretanto, como se deu esta evolução de um relato histórico misturado em um viés
religioso e moralista para uma obra literária? Para Frye (1982) este processo evolutivo se deu
de maneira progressiva, surgindo nos mitos dos quais os judeus - e em alguma extensão, os
povos do Oriente Próximo - possuíam. Northrop Frye afirma que “o descendente direto da
mitologia é a literatura.”7 (p. 34) Esta evolução, todavia, não está restrita ao processo de
escritura da Bíblia hebraica. Mitos estão presentes em todas as culturas e exercem um papel
fundamental na formação e desenvolvimento destas sociedades em vários aspectos: culturais,
religiosos e literários. Como visto acima, a literatura, por vezes, apresenta-se como uma
evolução do mito, e neste processo as “estruturas míticas continuam a moldar as metáforas e
a retórica de tipos estruturais posteriores.”8 (FRYE, 1982. p. 34)
Tolkien (2014) afirmava que os mitos possuem em si ‘sementes do sagrado’, e servem
para contar histórias fantásticas que pretendem elevar o nosso espírito. Dentre as melhores
histórias existem aquelas que nos levarão até a verdadeira felicidade: o conhecimento de
Deus e da maior história de todas - o Evangelho de Jesus Cristo. A mitologia, e aqui cabe
tomar a Bíblia como uma obra literária com um caráter por vezes mitológico, possui então em
si esta ‘semente do sagrado’ e a faz de maneira perene, pois “mitologia, por causa de sua
natureza sacrossanta, tende a persistir em uma sociedade de maneiras inorgânicas.”9 (FRYE,
1982. p. 38) A partir disto, podemos perceber que "os textos religiosos se preocupam com a
relação entre o mundo físico do aqui-e-agora e a experiência metafísica, quase onírica, do
Outro, e devem necessariamente incorporar recursos literários pelos quais ambos possam ser
distinguidos" (LEACH in. ALTER; KERMODE, 1997. p. 621)
A Bíblia, como obra literária, possui uma característica interessante: sua extensa
multiformidade de gêneros, estilo e autores. Esta possui uma variedade de formas e estruturas
em sua narrativa. Encontramos narrativas carregadas de um valor moral; outras estão voltadas
ao estabelecimento de ritos; outras ainda são listas de nomes e famílias. O caráter literário e
religioso das Escrituras se confundem de tal maneira que “o veículo literário é, a tal ponto, o
meio necessário pelo qual os escritores hebreus conceberam seus significados, que podemos
7
"The direct descendant of mythology is literature."
8
"Mythical structures continue to give shape to the metaphors and rhetoric of later types of structures."
9
"Mythology, because of its sacrosanct nature, is likely to persist in a society in inorganic ways"
22
10
"The priority is given to the mythical structure or outline of the story, not to the historical context."
11
"The historical books of the Old Testament are not history, so the Gospels are not biography."
23
12
"It is the function of literature, however, not to sway from the actual, but to see the dimension of the
possible in the actual."
24
Entretanto, tal desejo em preservar a literatura hebraica não são oriundas de fatos e relatos
simplesmente imprevistos, mas revelam que
13
Tomismo é o campo da Teologia Escolástica que busca conciliar o pensamento aristotélico com princípios
filosóficos cristãos. Como o próprio nome sugere, o Tomismo foi iniciado por São Tomás de Aquino.
25
em três grandes partes14, sendo a primeira voltada para as questões ligadas à Deus e sua
natureza; a criação; o homem; e o governo das coisas. Sua segunda parte divide-se em duas
seções; a primeira trata sobre o homem em geral, suas ações, sua alma; da lei eterna, natural e
humana; e da graça divina. A segunda seção trata do homem em específico; e suas virtudes.
Sua terceira parte trata de Jesus Cristo e dos Sacramentos que este instituiu. Tratando da
natureza Divina da Santíssima Trindade, da dupla natureza de Jesus Cristo, dos Sacramentos
Católicos e de diversas questões filosóficas, intelectuais e morais, a Suma Teológica de São
Tomás de Aquino constitui importante base dogmática para a Fé Romana. Sua segunda parte,
e mais significativamente a segunda seção desta segunda parte, formam essencialmente o
corpo deste estudo.
Antes de prosseguirmos para o entendimento das virtudes cardeais, é necessário que
entendamos primeiro o que são as virtudes por si próprias; sua natureza; seu lugar e ação na
vida do homem. Para São Tomás de Aquino (2016) todo ato ordenado e devido, que implica
em uma certa bondade e que dispõe-se segundo a natureza é chamado de virtude, “pois, a
virtude é um hábito perfeito pelo qual não podemos obrar senão o bem.” (AQUINO, 2016. Ia
IIae p. 333) Esta, por sua vez, opõe-se ao conceito de vício, que caracteriza-se como todo ato
desordenado e indevido, que implica a malícia e dispõe-se contrário à natureza. O Doutor
Universal propõe ainda que o pecado e o vício são o dito, feito e desejado contra a Lei de
Deus, que é maior que a natureza. Por sua vez, a virtude possui duas causas principais: 1.
infusão15, e 2. costume, que de certa maneira se contrariam à dupla natureza da alma humana
16
.
Em seu Tratado das Virtudes em Geral, no primeiro artigo de sua questão 55, ao
discutir se a virtude humana é um hábito, o Doutor Angélico propõem que “a virtude é o bom
uso do livre arbítrio” (AQUINO, 2016. Ia IIae p. 323) e que por este motivo, ordena-se este
14
Santo Tomás de Aquino não concluiu sua Suma Teológica. Existe um suplemento a terceira parte, anexado
por seu assistente, Reginaldo de Piperno.
15
Por “infusão” entende-se uma inclinação natural ao bem, infundida pela graça divina no homem, pois como
afirma o Aquinate (2016): “o homem, como qualquer outro ser, deseja naturalmente o bem. E só pela
corrupção ou desordem em algum de seus princípios pode o seu apetite inclinar-se para o mal.” (Ia IIae, p.
481)
16
Segundo São Tomás de Aquino, a alma humana divide-se em duas naturezas distintas: a alma racional do
homem e a natureza sensitiva deste. A alma racional institui que o bem do homem é estar de acordo com sua
razão, porquanto que o mal do homem é estar contra sua razão. A natureza sensitiva do homem possui uma
inclinação natural de ir contra a alma racional do homem, sendo por este motivo a causa dos pecados e dos
vícios. Tal inclinação natural de praticar o que é mal diante da razão pode ser entendido como a
concupiscência, resultado do pecado original (Romanos 7). Por este motivo, pode-se inferir que as virtudes
sejam atos da alma racional do homem, que busca por meio destas ordenar a inclinação da natureza sensitiva.
26
ao bem do homem, pois sua prática consiste no uso correto da razão, já que “a virtude
designa uma certa perfeição da potência.” (AQUINO, 2016. Ia IIae p. 323) Por meio da
prática das virtudes, em sua natureza benigna, é que merecemos as graças divinas, já que
“merecemos, não pelos hábitos, mas pelos atos; do contrário mereceríamos continuamente,
mesmo dormindo. Ora, merecemos pelas virtudes.” (AQUINO, 2016. Ia IIae p. 323)
As virtudes são, portanto, hábitos bons pelos quais somos capazes de ordenar nossa
vontade segundo a inclinação natural da razão humana de buscar o bem. Hábitos estes que
não possuem um direcionamento somente intelectual, mas operativo, já que “é da essência da
virtude humana ser um hábito operativo.” (AQUINO, 2016. Ia IIae p. 325) Ou ainda: “a
virtude chama-se uma ordem ou ordenação do amor, como aquilo ao que ela é relativa; pois,
pela virtude o amor é ordenado em nós.” (AQUINO, 2016. Ia IIae p. 324) Entretanto, para
um correto ordenamento das ações é necessário também uma contrapartida racional, na qual
esta se sobressaia a natureza sensitiva, por conta da dupla natureza da alma humana, para que
então alguém possa apresentar-se como sujeitos da virtude. Todavia, a natureza sensitiva e
racional da alma humana não se contrapõem, mas, antes, se complementam.
Retomando a relação entre vício e virtude, o Doutor Universal discute se é possível a
presença de virtudes naquelas pessoas que não buscam vivê-las com afinco. Em relação a
existência da virtude no irascível e no concupiscível17, Tomás afirma:
17
O irascível é aquele que, por conta de seu temperamento, deixa-se enraivecer com facilidade. É a qualidade
daquelas pessoas que não dominam seu humor, alternando-o facilmente. O concupiscível, por sua vez, é
aquele que deixa-se guiar pela busca de prazeres sensuais, que firma sua felicidade nos prazeres sexuais,
buscando-os persistentemente. Ambas as características são presentes naqueles que não buscam as virtudes,
deleitando-se nos vícios.
27
existem, portanto, diversas classes e divisões de virtudes, motivadas pelas noções a que estas
se ordenam. Para melhor entender as diferentes noções as quais as virtudes realizam na alma,
se discutirá em seguida o entendimento da virtude como potência da alma, sua diferente
classificação entre as virtudes morais e as intelectuais para então discutirmos e apresentarmos
as virtudes cardeais.
pois, se a virtude configura-se como um ato humano, e não somente um ato com fim em si
mesmo, mas um ato operante de perfeição da alma humana, a virtude tem portanto como fim
o de aperfeiçoar as potências, que são a inteligência e a vontade. Desta maneira, a potência
aperfeiçoada pela prática constante da virtude é que determina que um ato deve também, por
conseguinte, tenha uma natureza perfeita.
A partir do entendimento de que a potência tem como único destino o ato,
subentende-se que todos os atos têm seu início na potência da alma. Entende-se também que
não existe uma só potência racional no homem, já que “as potências racionais, próprias do
homem, não são determinadas a uma só operação, mas, são indeterminadas e relativas a
18
Dentro da teoria metafísica de Aristóteles, ao qual Santo Tomás de Aquino baseia-se e é amplamente
influenciado, existem dois conceitos importantes: o ato e a potência. O ato configura-se como o princípio ativo
e determinante da ação; e a potência, por sua vez, é a capacidade de realização deste ato. Para Aristóteles, ato
é a existência em si mesma, porquanto potência é tudo o que pode ser.
28
muitas.” (AQUINO, 2016. Ia IIae p. 323) Pois, para cada ato humano, determina-se uma
potência racional que motiva tal ato. Seja tal ato vício ou virtude, pois o que pode determinar
o ato de virtude é sua perfeita disposição da potência, pois “um ato de virtude não é mais que
o bom uso do livre arbítrio.” (AQUINO, 2016. Ia IIae p. 324) Santo Tomás de Aquino (2016)
ainda diz que “a virtude, conforme a significação da mesma palavra, implica uma certa
perfeição da potência, como já se disse. Ora, como há dupla potência - uma relativa ao ser e
outra, ao agir - a perfeição de uma e outra se chama virtude.” (Ia IIae p. 324) Portanto,
Podemos entender portanto que as virtudes morais são aquelas que, possuindo uma
inclinação natural na alma humana, leva através da realização da potência no ato, o sujeito da
virtude à prática do bem obrar, e de buscar fazê-lo sempre de maneira mais perfeita. Por
razão das virtudes cardeais serem aquelas que versam sobre a ordenação do costume, cabe
então sua classificação dentre as virtudes morais. Dentre todas as virtudes, nem todas são
morais, como afirma acima São Tomás, porém, o mesmo também declara que:
19
“Pois, a parte apetitiva obedece à razão, não porém, absolutamente, ao seu nuto, mas com o poder de se lhe
opor.” (Aquino, 2016. Ia IIae p. 343)
31
Deste modo, é possível concluir que as virtudes cardeais configuram-se como virtudes
morais pois “para agirmos retamente é necessário não só a razão estar bem disposta pelo
hábito da virtude intelectual, mas também a potência apetitiva o estar pelo hábito da virtude
moral.” (AQUINO, 2016. Ia IIae p. 344)
“E, se alguém ama a retidão, seus trabalhos são as virtudes; ela ensina a temperança e a
prudência, a justiça e a fortaleza: não há ninguém que seja mais útil aos homens na vida. ”
Livro da Sabedoria
Capítulo 8, versículo 7
O Doutor Angélico afirma que estas quatro virtudes principais não constituem partes
distintas e separadas mas que, antes disso, configuram-se como partes de um todo. Estas
quatro virtudes cardeais, embora distintas em suas naturezas próprias, estão interligadas e
formam como que um mosaico que completa-se de maneira perfeita na medida em que tais
virtudes são tomadas como hábitos operantes e formam parte imprescindível no exercício
correto da razão. Relacionado à isso, podemos afirmar junto com São Tomás que:
sabe, ao agir, de que modo e por que meios atingirá o meio termo racional.” (AQUINO,
2016. IIa IIae p. 320) Por fim, as virtudes da alma purificada são o resultado da prática das
virtudes cardeais, “e a tal fim é preestabelecido o homem em conformidade com a razão
natural; pois a razão natural dita a cada um que viva segundo a razão.” (AQUINO, 2016. IIa
IIae p. 320)
As virtudes cardeais, já estabelecidas como atos da razão especulativa que se tornam
operantes mediante a repetição de atos e exercícios das virtudes até que estas tornem-se
hábitos, possuem também cada uma uma determinada matéria. Como vimos, as virtudes da
temperança e prudência tem uma natureza mais especulativa, possuindo como matéria a
razão. A fortaleza possui uma natureza purgativa e que reflete-se mais claramente nas
atitudes do que na simples especulação racional. Por sua vez, a justiça é, por excelência, a
virtude cardeal direcionada para fora daquele que a pratica, dado que a justiça existe na nossa
relação com o outro. Entretanto, todas as virtudes possuem em sua essência a qualidade de
ser um hábito operativo, ou seja, a repetição constante de um ato bom e justo,forjado por esta
repetição, onde “o ato de virtude exige, primeiro, que o sujeito o pratique cientemente;
segundo, com eleição, e para um fim devido; terceiro, que seja imutável.” (AQUINO, 2016.
IIa IIae p. 372) São Tomás de Aquino (2016) determina assim que “para um ato, relativo a
uma determinada matéria, ser virtuoso; é necessário que seja voluntário, estável e firme.” (IIa
IIae p. 372) expondo assim a tríplice condição para a prática das virtudes cardeais.
2.4.2.1.1. A PRUDÊNCIA
Graças a esta virtude, aplicamos sem erro os princípios morais aos casos particulares e
ultrapassamos as dúvidas sobre o bem a fazer e o mal a evitar.”20
A prudência, identificada como toda virtude que faz o bem, levando em conta a
consideração da razão apresenta-se como a principal das virtudes, pois "a prudência é a razão
reta que nos dirige quando agimos.” (AQUINO, 2016. Ia IIae p. 338) O próprio São Tomás
(2016) afirma isto quando diz que “a prudência é a virtude soberanamente necessária a vida
humana. Pois, viver bem consiste em obrar bem. [...] devemos obrar segundo uma eleição
reta e não só pelo ímpeto ou pela paixão.” (Ia IIae p. 339) O aquinate afirma ainda que para
que nossas obras sejam identificadas como boas é necessário considerar não somente a ação
em si, o ato bom, mas também considerar o como e o porque desse ato, nossa intenção em
realizá-lo.
Desta maneira, podemos identificar na prudência o reto uso da razão que se aplica em
nosso agir. A razão humana, segundo São Tomás de Aquino (2016) possui três atos
dirigentes: 1. aconselhar; 2. julgar; e 3. mandar. O primeiro ato identifica-se com a qualidade
de indagar qual a ação correta para cada ato, prevenindo a razão de agir contra sua inclinação
natural ao bem21; o segundo ato, por sua vez, consiste em avaliar qual a melhor maneira de
agir diante de determinada ação, levando sempre em conta a consideração da razão, dirigida
ao bem do homem. Por fim, o último ato da razão, que é o de mandar, forma-se pela prática
desta virtude, que consiste na execução do ato bom, que foi previamente aconselhado e
julgado pelos dois atos anteriores da razão.
A prudência possui também a característica de não ser uma virtude unicamente
pessoal, mas que se estende de igual maneira à esfera social. Isto posto, podemos afirmar
junto ao Santo de Aquino (2016) que “a prudência se ocupa, não só com o bem particular de
cada um, mas também, com o comum, de todos.” (IIa IIae p. 322) Entretanto, apesar da
virtude cardeal da prudência possuir uma mesma matéria, i. e., a faculdade de ponderar,
julgar e agir de acordo com o bem, possui também partes potênciais distintas. Além da
prudência pessoal, ordenada ao bem de cada um, temos também a prudência econômica, que
direciona-se ao bem comum daqueles pertencentes a uma mesma casa ou família, e a
20
Catecismo da Igreja Católica, § 1.806
21
A alma racional institui que o bem do homem é estar de acordo com sua razão, porquanto que o mal do
homem é estar contra sua razão.
35
2.4.2.1.2. A JUSTIÇA
“A justiça é a virtude moral que consiste na constante e firme vontade de dar a Deus e ao
próximo o que lhes é devido. A justiça para com Deus chama-se «virtude da religião». Para
com os homens, a justiça leva a respeitar os direitos de cada qual e a estabelecer, nas
relações humanas, a harmonia que promove a equidade em relação às pessoas e ao bem
comum. O homem justo, tantas vezes evocado nos livros santos, distingue-se pela retidão
habitual dos seus pensamentos e da sua conduta para com o próximo. «Não cometerás
injustiças nos julgamentos. Não favorecerás o pobre, nem serás complacente para com os
poderosos. Julgarás o teu próximo com imparcialidade» (Lv 19, 15). «Senhores, dai aos
vossos escravos o que é justo e equitativo, considerando que também vós tendes um Senhor
no céu» (Cl 4, 1).” 22
22
Catecismo da Igreja Católica, § 1.807
37
são o princípios dos atos bons, cuja matéria deste ato é a prática - progressiva, constante e
perpétua - da virtude. Como já estabelecido, a matéria da virtude da justiça não é o sujeito em
si, mas os seus atos relativos a outrem. Assim, podemos afirmar que “a justiça é um hábito
pelo qual, com vontade constante e perpétua, atribuímos a cada um o que lhe pertence.”
(AQUINO, 2016. IIa IIae p. 372) Podemos perceber, também, que o caráter da justiça como
uma virtude que se estabelece na relação do sujeito com o outro, sendo incapaz de existir de
outra maneira, já que “o nome de justiça, implicando a igualdade, está em a natureza da
justiça ser relativa a outrem; pois, nada é igual a si mesmo, mas, a outrem.” (AQUINO, 2016.
IIa IIae p. 373) Ou seja, faz-se necessário para a prática da justiça, que busca retificar os atos
do homem, que aqueles sujeitos a justiça tenham suas atitudes diversas, pois não se julga a
igualdade em si mesma, mas em comparação a partes distintas.
Por fim, cabe ressaltar que a justiça não ordena somente as relações entre particulares,
entre o agente e o sujeito da justiça, a qual chamamos de justiça particular. Outro modo
possível à justiça de ordenar a relação do homem com o outro é a justiça geral - a que
chamamos de justiça legal, onde a comunidade deve servir a todos os indivíduos nela
contidos. Esta justiça, cujo ordenamento geral é direcionar a todos para o bem comum,
permite a todos os homens que dela obedecem ordenarem seus atos para este bem comum. A
justiça legal determina então, que deve-se ter um representante para que esta justiça sirva a
todos os indivíduos que dela fazem parte.
Neste sentido, a virtude cardeal da justiça apresenta em sua natureza subjetiva dois
modos distintos: a justiça comutativa e a justiça distributiva. A justiça comutativa versa
sobre a relação das pessoas particulares entre si e, por este motivo, é responsável por dar ao
particular do bem comum entre as partes envolvidas. A justiça distributiva, por sua vez, se
preocupa com a relação entre o todo e as partes envolvidas e dá algo a alguém por ser devido
a parte que pertence ao todo. Ambas atribuições de retribuição das justiças comutativa e
distributiva são proporcionais à importância social do indivíduo, ou indivíduos, envolvidos
no ato de justiça.
2.4.2.1.3. A FORTALEZA
39
A terceira virtude cardeal, a fortaleza, pode também ser referida como a coragem que
nos permite continuar no correto ordenamento da alma racional do homem que busca sempre
o bem e o caminho da virtude, apesar de todas as dificuldades encontradas, ou seja, “a
coragem é uma virtude, porque nos faz viver de acordo com a razão.” (AQUINO, 2016. IIa
IIae p. 717) São Tomás de Aquino (2016) estabelece uma dupla acepção da virtude da
fortaleza:
23
Catecismo da Igreja Católica, § 1.808
40
especialmente a alma humana. Aquino (2016) propõe ainda uma dimensão da fortaleza que se
preocupa especialmente em suportar os perigos de morte, se isto significar que suportando-os,
conseguiremos alcançar algum bem, afirmando que “é próprio da coragem dar-nos a fortaleza
de alma para arrostarmos os perigos da morte” (AQUINO, 2016. IIa IIae p. 721)
A virtude da coragem tem, além da prerrogativa de nos auxiliar na resistência contra o
perigo da morte, de nos assistir face a todos os perigos e dificuldade que encontrarmos, já que
“o ato principal da coragem é suportar, isto é, persistir inalterado nos perigos, mais do que
atacar” (AQUINO, 2016. IIa IIae p. 722) Quando afirma que a fortaleza nos permite mais
persistir do que atacar os perigos, o Doutor Angélico não exclui a característica desta virtude
de combater os perigos que nos assombram de forma ativa. Aquino (2016) afirma que “o
corajoso, tendo a intenção, a semelhança de seu hábito, tem também a de agir segundo a
exigência desse hábito” (IIa IIae p. 723)
Nos atos de coragem, ou seja, na prática da virtude cardeal da fortaleza, encontramos
duas considerações necessárias: a eleição do ato corajoso; e na manifestação do ato corajoso
como manifestação da virtude da fortaleza. Com relação a eleição de seus atos, a coragem
não se preocupa com os perigos repentinos, mas antes premedita os perigos que poderão
ocorrer para, assim, melhor lhes oferecer resistência e, quando estes perigos de fato o
assolarem, suportá-los. Como manifestação da virtude da fortaleza como hábito, o sujeito da
virtude a manifesta através da resposta imediata aos perigos repentinos, sendo nestes a
principal manifestação da coragem que tem por característica principal ser uma virtude
cardeal.
Desta maneira, podemos determinar na natureza da virtude da fortaleza suas partes
integrantes: atacar o perigo e resistir ao perigo. O ato virtuoso de atacar o perigo consiste
na preparação da alma para as dificuldades que possa enfrentar, em um estado de prontidão
que evolui então para a virtude da confiança, que na alma tem o resultado de mantê-la firme,
pois sabe que pode resistir ao mal. Consiste também em não somente estar preparado para
resistir as dificuldades, mas em de fato resisti-las, não desistindo frente a execução do ato da
virtude cardeal da fortaleza, a qual gera outra virtude: a da magnificência. Com relação à
resistir ao perigo, a virtude da fortaleza é responsável por garantir que o sujeito da virtude não
desanime perante o perigo, mas que possa sofrer voluntária e diuturnamente, desenvolvendo
assim a virtude da paciência. E, neste não desanimar, a fortaleza também fomenta a virtude
da perseverança, que nos faz permanecer firmes no que é bom, segundo a razão.
41
2.4.2.1.4. A TEMPERANÇA
24
Catecismo da Igreja Católica, § 1.809
42
medida em que o exigem as referidas necessidades.” (AQUINO, 2016. IIa IIae p. 796) Deste
modo, podemos buscar na prática da virtude da temperança o ordenamento das vontades, que
nem sempre buscam o bem real do homem, somente a satisfação imediata de algo que a
natureza sensitiva do homem deseja, pois o prazer existe para o cumprimento de um fim
natural.
Como partes integrantes da natureza da virtude da temperança, temos sua natureza
integrante; subjetiva e potencial. Sua natureza integrante é dividida em duas partes: a
honestidade, pela qual nós somos capazes de amar a beleza que vem do bem da razão; e a
vergonha, que nos impede de fazer o mal. Em relação à sua natureza subjetiva, a virtude
cardeal da temperança possui dois objetos, que visam o ordenamento dos prazeres: os
nutritivos, que se moderam a partir da prática da abstinência - que se realiza a partir da
moderação dos alimentos -, e da sobriedade - que se realiza a partir da moderação das
bebidas; e dos prazeres geradores, que se moderam a partir da castidade - que direciona os
prazeres advindos das relações sexuais -, e da pudicícia - que modera os prazeres vindos das
deleitações circunstanciais, como por exemplos, nas deleitações dos sentidos.
Sua parte potencial se dá de três modos: nos movimentos exteriores e atos do corpo;
nos movimentos exteriores da alma; e nas causas exteriores. Esta última se apresenta a partir
da moderação da busca pelo supérfluo, que é refreada pela virtude da auto-suficiência - o
supérfluo caracteriza-se aqui pela busca do que não é essencial, do que não nos aperfeiçoa e,
deste modo, a auto-suficiência se apresenta como a moderação da busca pelo que se encontra
fora do sujeito. Outra causa exterior é a busca pelo que é estranho à realidade do indivíduo,
que é refreada pela virtude da simplicidade, que procura contentar-se com o simples e
necessário, não buscando o que se encontra fora da realidade do indivíduo. Os movimentos
exteriores da alma se identificam pelas vontades impelidas pela paixão, que é refreada pela
virtude da continência, e pela esperança e pela audácia que não se saciam, que são refreadas
pela virtude da humildade. Os movimentos exteriores e atos do corpo são ordenados pela
virtude cardeal da temperança a partir de três outras virtudes: o discernimento, a conveniência
e a austeridade.
3. ANÁLISE DA NARRATIVA
43
25
A convicção a que se refere White é a de que Tolkien estava convencido, e assim permaneceu até o fim de
sua vida, de que a doença de sua mãe foi agravada pelo abandono financeiro e emocional de sua família,
causada pela rejeição ao catolicismo de Mabel Tolkien.
44
palavras que buscam transmitir uma mensagem. Para Tolkien existia uma relação intrínseca
entre língua e cultura, e o professor inglês dava muita importância a essa relação.
26
Carta a Michel Tolkien, 1 de novembro de 1963. p. 401
45
Amigo íntimo de outro famoso escritor inglês - que também se interessava pela
criação mitológica - Tolkien mantinha longas conversas com C. S. Lewis, sendo tido como
um dos responsáveis pela conversão deste ao cristianismo. Lewis, que após lutar na Primeira
Guerra Mundial, acreditava na existência de um deus, mais próxima aos paganismos
ocidentais do que do Deus judaico-cristão. Sua visão de Cristo estava ligada a sua visão de
mitologias, vendo toda a religiosidade cristã como mais uma cultura, com suas lendas e
mitos, que na realidade não passam de mentiras. Tolkien é tido como um dos responsáveis
pela mudança de opinião de Lewis. Para Tolkien, entretanto, nenhum mito deveria ser
considerado uma mentira, especialmente o que Lewis chamava de “mito de Cristo”, já que
para Tolkien este era construído em cima de eventos reais, regados com uma verdade
profunda e irrevogável. White (2016) afirma que para Tolkien “o mito que reside dentro do
cristianismo fornece um caminho a ser seguido em busca dos aspectos não materialistas de
cada ser humano, uma estrada para uma verdade espiritual mais profunda.” (p. 131)
Para Damien Casey (2004) “Tolkien pode não falar de Deus diretamente, mas ele
realmente o faz de maneira indireta, de acordo com uma apreciação da revelação baseada na
ideia da história da salvação, de acordo com a qual Deus é melhor revelado na e através da
27
história.” (p. 1, tradução nossa). Para o autor, sua visão teológica é melhor inserida de uma
maneira subconsciente, indireta e sutil, através das imagens e símbolos presentes em sua
narrativa. Narrativa esta que o próprio Tolkien não enxergava como um mundo puramente
imaginário, inexistente, mas ante um passado imaginário de nossa própria história, de nossa
própria “terra-média”. Podemos ver, então, como o discurso ideológico-religioso tem como
característica a de extrapolar o mundano, trazendo de volta um sentido fantástico para a
existência humana. Neste ponto, para Tolkien, é onde encontram-se a literatura e a religião.
27
“Tolkien may not talk about God directly, but he does do so indirectly, in a manner consistent with an
appreciation of revelation grounded in the idea of salvation history, according to which God is best revealed in
and through the story.”
28
Tolkien, com seu grande amor às línguas, criticou várias traduções de suas obras - principalmente para o
dinamarquês. O autor inclusive publicou um ensaio no qual indicava aos tradutores como traduzir suas obras.
47
projeto literário mais caro aos olhos do autor não era, entretanto, nenhuma dessas duas obras.
Durante toda a sua vida, Tolkien se dedicou a escrever, re-escrever e editar sua coletânea de
ste livro é dividido em cinco partes:
histórias mitológicas, chamado de O Silmarillion. E
Ainullindalë; Valaquenta; Quenta Silmarillion; Akallabêth; e Dos Anéis de Poder e da
Terceira Era. As três primeiras partes do livro tratam do início de Arda e de sua Primeira
Era. A segunda parte se dedica a contar sobre o surgimento e queda do Império
Numenoriano, fato marcante da Segunda Era do Mundo. A quinta e última parte relata os
principais acontecimentos da Terceira Era, acontecimentos esses anteriores e que influenciam
profundamente as suas duas narrativas fantásticas de maior sucesso: O Hobbit e O Senhor dos
Anéis; nesta terceira parte também é relatado o desfecho desta última, com a destruição do
Um Anel e a derrota de Sauron.
A primeira parte, chamada de Ainullindalë - A Música dos Ainur -, conta a história da
criação de Eä, O Mundo que É, por Eru Ilúvatar, o Único. Antes de tudo havia apenas a
escuridão até que Eru criou os Ainur, seres angelicais, divididos de acordo com o poder a eles
dado pelo seu criador. Eru então propõe uma Música, magnífica e a qual os Ainur começaram
a cantar prontamente, e com cada verso, cada melodia, cada nota musical se apresentava uma
história magnífica, uma visão maravilhosa que se descortinava de acordo com a Música que
progredia. Entretanto, Melkor, o maior e mais poderoso entre os Ainur começou a se
distanciar da Música, deixando de cantar os temas propostos por Ilúvatar e a cantar temas de
sua própria vontade, buscando perverte-los à sua dominação. A medida que a música de
Melkor colidia com a Música de Eru, alguns dentre os Ainur começaram a seguir a Melkor e
afinar seu canto ao deste, ao invés de se manterem fiéis à Música Original. Ao perceber a
dissonância em sua Música, Eru se levanta e propõe então um novo tema, ao qual de início
todos os Ainur seguem-na, mas, assim como na primeira vez, Melkor se distancia da Música,
cantando temas de sua própria autoria, e causando uma dissonância tão grande que perturbou
toda a harmonia proposta, criando grande confusão em todos os Ainur. Porém, mais uma vez
Eru se levanta do seu trono e propõe um terceiro tema, grandioso e que, apesar das investidas
de Melkor e daqueles que ele havia levado ao seu lado contra Ilúvatar, não era dominado
pelas dissonâncias e desarmonias, mas antes acolhia as mudanças trazidas por Melkor e
moldava-as novamente a vontade de Eru. Anuillindalë termina então com a criação efetiva de
Arda, com o banimento de Melkor, por ter se rebelado contra os desígnios de seu criador e
48
com a descida para Eä daqueles que, entre os Ainur, desejaram vir ao mundo e participar de
seu destino.
A segunda parte, Valaquenta - o relato dos Valar -, narra o início de Arda e a
concretização da Música dos Ainur. No início, antes da criação do tempo, foi permitido aos
Ainur que, se assim desejassem, poderiam descer a Eä para assim concretizar a visão que Eru
havia lhes mostrado em sua Música, ligando a sua existência à existência deste novo mundo.
Os maiores dentre estes eram quatorze e foram chamados de Valar, os Poderes do Mundo.
Melkor, o maior e mais poderoso dentre os Valar, entretanto, não era contado no número
destes, por ter caído em desgraça. Os Valar assumiram então formas físicas e ligaram-se ao
destino do Mundo e destes quatorze, sete identificavam-se com formas masculinas e outros
sete com formas femininas, de acordo com sua inclinação e temperamento.
Os Valar são estes: primeiro está Manwë, O Primeiro de todos os Reis, Senhor dos
Ares, das alturas às profundezas; Varda, Senhora das Estrelas e da Luz, habita ao lado de
Manwë e quando os dois estão juntos, enxergam e ouvem mais longe e com mais clareza
todos aqueles que clamam pela ajuda dos Valar. Abaixo de Manwë está Ulmo, Senhor de
todas as Águas. Aulë tem o poder sobre as substâncias que constituem o mundo de Arda e é
responsável, junto a Manwë e Ulmo, da criação de todas as coisas; Yavanna é sua esposa, a
Valier que domina sobre todas as coisas que crescem da terra, ofício de seu esposo -
Kementári é chamada: a Rainha da Terra. Námo e Irmo são chamados de Os Senhores dos
Espíritos; o primeiro mora em Mandos, guardião das Casas dos Mortos, Juiz e Oráculo dos
Valar e tem por esposa Vairë, a Tecelã, que enfeita as paredes de Mandos com tapeçarias que
contam a história do mundo. O segundo vive nos jardins de Lórien, e é Senhor das Visões e
dos Sonhos e ao seu lado está Estë, a Senhora do Repouso - nas fontes de Irmo e Estë todos
os que buscam o descanso ali o encontra. Nienna vive sozinha e é a Senhora da Compaixão e
que ensina a todos que a buscam em transformar sua dor em sabedoria. Tulkas é o maior em
força e em bravura e é chamado de Astaldo - o Valente; tem por esposa Nessa, a sempre
veloz. Por fim há Oromë, chamado Tauron, o Senhor das Florestas e da Caça e que tem por
esposa Vána, irmã mais nova de Yavanna, chamada de Sempre-jovem, a qual flores brotam
com sua passagem.
Dentre os Valar, oito destacam-se e são chamados de Aratar - Seres Superiores de
Arda -, e superam todos os outros em majestade, poder e reverência: Manwë e Varda, Ulmo,
Yavanna e Aulë, Mandos, Nienna e Oromë. De mesma ordem, mas de grau inferior, estão o
49
Maiar, o povo dos Valar. Dentro da narrativa alguns Maiar se destacam: Eönwë, arauto e
porta-estandarte de Manwë; Ossë, senhor do litoral da Terra-média e Uinem, sua esposa,
senhora das águas, ambos vassalos de Ulmo. Melian, a Maia que servia a Estë e Vána, e que
abandonou Aman e casou-se com o rei élfico Thingol, e ao seu lado habitou no Reino
Protegido de Doriath. Muitos dos Maiar, porém, atraídos por Melkor no início dos tempos, o
acompanharam em seu mergulho às trevas. Dentre estes destaca-se acima de todos Sauron, o
Cruel, que inicialmente pertencia ao povo de Aulë e os balrogs, que ficaram conhecidos como
os demônios de terror e os flagelos de fogo da Terra-média.
Quenta Silmarillion, ou A História das Silmarils, é a terceira e maior parte do livro e
centra-se nos acontecimentos mais importantes da Primeira Era: do início dos tempos e das
primeiras batalhas entre os Valar e Melkor; e da criação dos anões por Aulë e dos ents por
Yavanna; do despertar dos elfos e da Guerra da Ira, na qual os Valar, em defesa dos Filhos de
Ilúvatar, atacaram e prenderam Melkor, levando-o cativo a Valinor. Trata também dos elfos
em Valinor; e de Fëanor, o maior entre os artífices élficos e das Silmarils - pedras preciosas
que guardavam em si a luz das Duas Árvores de Valinor -, e como Melkor, agora em
liberdade, as roubou, causando assim a cisão entre os noldor e os Valar e seu retorno a
Terra-média - em perseguição a Melkor e as Silmarils roubadas. A partir deste momento, a
narrativa guia-se pelas guerras travadas em razão das Silmarils, do Juramento de Fëanor e da
Maldição dos Valar. Fala ainda da chegada dos homens, da ruína dos reinos élficos e da união
das Duas Famílias - os Primeiros e os Segundos Filhos de Ilúvatar - através de Beren e
Lúthien e de Eärendil e Elwing. Por fim, em seu último capítulo, Quenta Silmarillion relata a
viagem de Eärendil a Valinor, sua súplica pela ajuda dos Valar contra a opressão de Morgoth
e da Guerra da Ira, na qual os exércitos de Valinor marcharam em direção a Terra-média e,
derrotando Morgoth, o baniram para o Vazio fora do Mundo e devastaram o norte da
Terra-média em suas batalhas.
A quarta parte da narrativa chama-se Akallabêth - A Derrubada -, relata a ascensão e
queda do grande Império Numenoriano. Após a Guerra da Ira e da devastação de Beleriand,
grande parte dos elfos retornou às Terras Imortais de Valinor e aqueles homens que haviam
assistido Valar e elfos na sua luta contra o Inimigo foram guiados até a ilha de Andor e lá
fundaram Númenor, o reino do Ponente. Tornaram-se um povo sábio e poderoso,
conquistando territórios na Terra-média e lá estabelecendo colônias. Entretanto, na mesma
época levantava-se na Terra-média Sauron, lugar-tenente de Morgoth e que, após a derrota de
50
seu mestre, havia tomado o lugar como o novo Senhor do Escuro e Inimigo dos povos livres
de Arda. Reconhecendo o poder sombrio de Sauron, o Rei Numenoriano marchou sobre
Mordor, a Terra das Sombras e, enganado por Sauron, trouxe-o de volta a Andor como
prisioneiro. Devido à dádiva dos Valar, os homens de Númenor tiveram seus dias estendidos
para muito além da contagem normal dos homens, porém, o medo da morte nunca os
abandonou e, por causa dos conselhos perversos de Sauron, se rebelaram contra os Senhores
do Oeste e buscaram invadir as Terras Imortais e derrotar os Valar. Em sua ira, os Valar
clamaram a Eru, e este abriu o mar e engoliu a Ilha Abençoada, destruindo grande parte dos
orgulhosos numenorianos, tendo escapado apenas alguns, que permaneciam fiéis aos Valar, e
Sauron, que retornando a seus domínios, resumiu seu plano de conquista. Os númenorianos
que chegarem a Terra-média fundaram novos reinos e prontamente se opuseram a Sauron e
seu reinado de terror, derrotando-o - mas não completamente - em uma Última Aliança entre
elfos e homens.
A quinta e última parte chama-se Dos Anéis de Poder e da Terceira Era. Única parte
do livro no qual o título não é apresentado em élfico, já retratando a diminuição da presença e
influência desse povo na história da Terra-média. Apesar de seu título, seu relato inicia-se
ainda na Segunda Era, durante a ascensão do Império Numenoriano. Sauron, após a derrota
de seu mestre Morgoth, consegue escapar da ira dos Valar e planeja conseguir o que o Senhor
do Escuro não conseguiu: dominar todos os povos da Terra-média. Para tal, disfarça-se sob
uma aparência bela e sábia e, em escondendo sua real intenção, convence Celebrimbor -
descendente da Casa de Fëanor - a forjar os Anéis de Poder - artefatos mágicos que conferem
grandes poderes aqueles que os usam. Em segredo, Sauron forjou o Um Anel, colocando nele
todo seu poder e malícia, já que com ele seria capaz de dominar as vontades dos usuários dos
outros Anéis de Poder. Entregou então nove anéis para reis humanos, sete para senhores dos
anões; os três pertencentes aos elfos, entretanto, foram feitos em segredo e nunca foram
tocados por ele. Sauron havia ganhado imenso poder com seus anéis, e por este motivo havia
chamado atenção dos homens de Númenor; neste momento, a narrativa continua nos relatos
em Akallabêth. Após a Queda de Númenor e a derrota de Sauron pela Última Aliança entre
Elfos e Homens - que marca o fim da Segunda Era e o início da Terceira -, cerca de três mil
anos se passaram até o que o Um Anel fosse encontrado novamente; por acaso, por um
Hobbit do Condado que não fazia a mínima ideia da real natureza daquele anel mágico; deste
fato tem então início a um novo conflito, chamado de a Guerra do Anel, brevemente
51
mencionados na narrativa, já que possuem espaço próprio dentro das histórias de O Hobbit29 e
O Senhor dos Anéis30.
O Silmarillion apresenta, portanto, todo o plano de fundo para que as histórias nele
próprio contidas ocorra, assim como aquelas que são apresentadas nas duas outras obras
principais de Tolkien. Em sua narrativa encontramos um verdadeiro arcabouço mitológico e
fantástico, de poderes sobrenaturais que agem direta e indiretamente na vida das criaturas que
vivem na Terra-média, e das escolhas, atitudes e virtudes destes personagens fantásticos. Por
este motivo, a narrativa fantástica de Tolkien pode ser vista como uma narrativa de
acontecimentos épicos. Para Arantes (2016), “estamos diante de um texto cuja estrutura
mítica tece o gênese da própria obra de Tolkien, ainda que sua publicação tenha sido
póstuma.” (p. 32-33)
Conhecido, portanto, o caráter épico da narrativa tolkieniana, é preciso agora
entendermos de que maneira tal narrativa pode ser lida sob uma perspectiva religiosa -
especificamente o Cristianismo Católico Apostólico Romano. Com base no que foi proposto
em relação à ideologia religiosa e seu caráter propagativo, e como esta utiliza-se de variados
meios de transmissão para disseminar seus valores e ideais, é possível enxergar a obra de alta
fantasia O Silmarillion sob um olhar cristão. A preocupação do autor de formar uma
mitologia para suas histórias e a imensa importância que o catolicismo exerce em sua vida
pessoal nos auxiliam em afirmar a possível leitura do Silmarillion como um épico cristão.
Morris (2012) afirma que:
29
Em O Hobbit, é relatado o encontro casual do Um Anel por Bilbo Bolseiro, um hobbit do Condado, em uma
caverna no interor das Montanhas Nevoentas. Entretanto, não era do conhecimento, nem de Bilbo, nem de
Gandalf, de que o anel mágico encontrado era o Um.
30
Em O Senhor dos Anéis, Frodo recebe o Anel de herança de seu tio Bilbo, e, a partir da revelação que este é
em verdade o Um Anel de Sauron, começam as aventuras da Sociedade do Anel para destruí-lo e libertar a
Terra-média da sombra de Sauron.
52
31
“despite his conscious intentions, Tolkien’s own works did not seem to be able to escape the influence of his
religious upbringing. The Silmarillion, published posthumously in 1977, is arguably the most obviously religious
of Tolkien’s masterpieces. The Silmarillion was written as the creation epic of Middle Earth. [...] The story
features the act of creation by the god, Ilúvatar, and his heavenly court, the Valar as well as his struggles with
the evil rebel Melkor.”
32
“when we create our own worlds through fantasy, we necessarily mimic God’s own creation because our
abilities to create are derived from being made in the image of our creator.”
33
“the story consoles the reader by pointing out religious truth and leading him or her to joy. Tolkien felt that
only good stories contain such ability and meaning in that they guide the reader to the greatest story of all, the
Gospel of Jesus.”
53
Identificando então a virtude como a busca do bem do homem, entende-se que tal
busca se dá de maneira constante, tornando-se assim um hábito. Este hábito, por sua vez, tem
como finalidade a perfeição das potências da alma humana, determinando-a para o que é
capaz como criação divina, ou seja, a perfeição. Esta, a seu modo, depende da prática
constante do hábito virtuoso. Aquino (2016) afirma que “o de que uma virtude é ultimamente
capaz há de necessariamente ser o bem, pois todo mal implica um certo defeito. (...) Logo, a
virtude humana, que é um hábito imperativo, é um hábito bom e operativo do bem.” (Ia IIae
p. 325) As virtudes possuem ainda a característica de não serem isoladas em si mesmas, mas
de relacionarem-se entre si. É possível encontrarmos características próprias de mais de uma
virtude em uma mesma atitude, já que “pode uma realidade existir em duas ou várias outras,
não igualmente, mas numa certa ordem. E assim, a mesma virtude pode pertencer a várias
potências.” (AQUINO, 2016. Ia IIae p. 329).
É possível, portanto, identificar um caráter religioso muito forte na narrativa de O
Silmarillion, especialmente no relato da criação de Arda. A presença de um único criador,
Eru Ilúvatar - que significa Aquele que É Único -, que cria seres angelicais para colaborarem
com sua obra; sua onipotência em sua obra criadora; o livre-arbítrio; a dependência de todos
os seres neste deus, a luta constante entre forças do bem - ligadas a Eru - e forças do mal -
caracterizadas pela revolta de Melkor ao Poder ao Único - são elementos cristãos vistos
facilmente na narrativa. Entretanto, não somente estes estão presentes. As virtudes - hábitos
bons que aperfeiçoam os seres - também são apresentados na narrativa através das escolhas e
atitudes dos personagem; sejam Calar, sejam elfos, homens ou anões.
54
Por fim, encarando a criação mitológica de Tolkien como o gênese de seu universo
fantástico e também em relação à ocorrência das virtudes; n’O Silmarillion foram
identificadas sessenta e seis (66) menções emblemáticas, divididas de acordo com o quadro
apresentado abaixo. Das quatro virtudes cardeais, as duas virtudes que mais se apresentaram
durante a narrativa foram a virtude da Prudência (vinte e cinco vezes) e da Fortaleza (vinte e
cinco vezes), seguidas pela virtude da Justiça (onze vezes) e, por fim, a Temperança (seis
vezes).
A seguir, serão apresentadas e analisadas cada uma das virtudes cardeais
separadamente. Primeiramente serão apresentadas todas as ocorrências da virtude da
prudência; após, aquelas que são parte da virtude da justiça; as que participam da virtude da
fortaleza serão apresentadas a seguir e, por fim, as ocorrências da virtude da temperança
serão apresentadas. A ordem de apresentação das virtudes seguirá dupla ordem: a das
virtudes, mencionadas acima, separadas de acordo com a divisão das partes da história
segundo o próprio livro: primeiro aquelas encontradas em Ainulindallë; após, aquelas
presentes em Valaquenta; em seguidas os exemplos de virtude presentes no Quenta
Silmarillion; em Akallabêth; e, por fim, em Dos Anéis de Poder e da Terceira Era.
55
Aniulindalë 2
Valaquenta 2
Quenta Silmarillion 15
PRUDÊNCIA 25
Akallabêth 3
Aniulindalë 1
Valaquenta 1
Aniulindalë 1
Valaquenta 3
Aniulindalë 2
Valaquenta 1
Quenta Silmarillion 3
TEMPERANÇA 6
Akallabêth -
3.2.1. AINULINDALË
A menor das virtudes cardeais é a Temperança. É também a que menos vezes foi
encontrada durante a narrativa de maneira explícita e direta. Entretanto, a temperança é a
virtude que permeia todo o fluxo narrativo de O Silmarillion, estando presente de maneira
implícita durante a história. A virtude da temperança caracteriza-se pela moderação dos
desejos e do uso que se faz do que tem-se à disposição, tanto física quanto espiritualmente;
assim como a moderação dos movimentos da paixão. Esta virtude possui como partes
integrantes a honestidade, na qual reconhecemos a beleza da criação; e a vergonha, que nos
impede de fazer o mal. Em sua natureza potencial, a temperança existe para refrear três
causas exteriores da paixão na alma através da humildade, da continência e da mansidão. O
primeiro exemplo da virtude que temos na narrativa trata-se da virtude cardeal da
temperança. Como visto, a virtude da temperança possui como virtude adjacente a
humildade. No início da narrativa, a humildade transparece na reação de todos os Ainur
quando Ilúvatar, antes do início da criação de Arda propõe a todos um tema. Devido ao
imenso poder de Eru, os Ainur reconhecem a bondade na intenção deste e curvam-se, assim
como vemos relatado no livro de Judite, quando esta aconselha à virtude da temperança ao
povo judeu, frente a iminência de um ataque de Holofernes, general de Nabucodonosor, que
buscava subjugar os israelitas; Judite, portanto, dirigi-se ao povo dizendo: “humilhemo-nos
diante dele e prestemo-lhe nosso culto com espírito de humildade.” (Jt 8, 16)
“E aconteceu de Ilúvatar reunir todos Ainur e lhes indicar um tema poderoso, desdobrando diante de seus
olhos imagens ainda mais grandiosas e esplêndidas do que havia revelado até então; e a glória de seu início e
o esplendor de seu final tanto abismaram os Ainur, que eles se curvaram diante de Ilúvatar e emudeceram.”
(p. 3)34
34
Todas as referências ao texto literário apresentadas nesta análise se referem à J.R.R. Tolkien, O Silmarillion.
Organizado por Christopher Tolkien; tradução de Waldéa Barcellos. 5° Edição, São Paulo: WMF Martins
Fontes, 2011.
57
“Muitas vezes, Melkor, penetrara sozinho nos espaços vazios em busca da Chama Imperecível, pois ardia
nele o desejo de dar Existência a coisas por si mesmo.” (p. 4)
“Ergueu-se então Ilúvatar, e os Ainur perceberam que ele sorria. E ele levantou a mão esquerda, e um novo
tema surgiu em meio à tormenta, semelhante ao tema anterior e ao mesmo tempo diferente; e ganhava força e
apresentava uma nova beleza. Mas a dissonância de Melkor cresceu em tumulto e o enfrentou. Mais uma vez
houve uma guerra sonora, mais violenta do que antes, até que muitos dos Ainur ficaram consternados e não
58
cantaram mais, e Melkor pôde dominar, Ergue-se então novamente Ilúvatar, e os Ainur perceberam que sua
expressão era severa. Ele levantou a mão direita, e vejam! Um terceiro tema cresceu em meio à confusão,
diferente dos outros. Pois de início parecia terno e doce, um singelo murmúrio de sons suaves em melodias
delicadas; mas ele não podia ser subjugado e acumulava poder e profundidade. E afinal pareceu haver duas
músicas evoluindo ao mesmo tempo diante do trono de Ilúvatar, e elas eram totalmente díspares. Uma era
profunda, vasta e bela, mas lenta e mesclada a uma tristeza incomensurável, na qual sua beleza tivera
primeiramente origem. A outra havia agora alcançado uma unidade própria; mas era alta, fútil e
infindavelmente repetitiva; tinha pouca harmonia, antes um som uníssono e clamoroso como o de muitas
trombetas soando apenas algumas notas. E procurava abafar a outra música pela violência de sua voz, mas
suas notas mais triunfais pareciam ser adotadas pela outra e entremeadas em seu próprio arranjo.” (p. 5)
“Muitos dos que cantavam próximo [a Melkor] perderam o ânimo, seu pensamento foi perturbado e sua
música hesitou; mas alguns começaram a afinar sua música à de Melkor, em vez de manter a fidelidade ao
pensamento que haviam tido no início. Espalhou-se então cada vez mais a dissonância de Melkor, e as
melodias que haviam sido ouvidas antes soçobraram num mar de sons turbulentos. Ilúvatar, entretanto,
escutava sentado até lhe parecer que em volta de seu trono bramia uma tempestade violenta, como a de águas
escuras que guerreiam entre si numa fúria incessante que não queria ser aplacada.” (p. 5)
Música de Ilúvatar para seus próprios propósitos, causando portanto uma imensa desarmonia.
Eru, após propor um segundo tema e verificar que o mesmo se havia se repetido, propõe
portanto um terceiro tema, mais grandioso, o qual não pode ser pervertido a vontade de
Melkor, pois a cada investida deste, o tema absorvia-a e dava-lhe um novo significado.
Ilúvatar reconhece que nele existe o cuidado para prevenir o mal; cuidado este que revela-se
na adaptabilidade de sua Música e de sua cautela, baseada nos dois temas anteriores. Ester,
tomada de uma grande angústia por causa da ameaça que seu povo sofria por parte de
Assuero, rei da Babilônia e das conspirações de seus conselheiros, dirige-se a Deus
pedindo-lhe cautela. Desta maneira, a cautela de Eru justifica-se no livro de Ester, que diz:
“colocai em seus lábios palavras prudentes na presença do leão e fazei passar seu coração
para o ódio daquele que nos é hostil, a fim de que ele pereça, ele e todos os seus parceiros.”
(Est 14, 13).
“Então, falou Ilúvatar e disse: - Poderosos são os Ainur, e o mais poderoso dentre ele é Melkor; mas, para que
ele saiba, e saibam todos os Ainur, que eu sou Ilúvatar, essas melodias que vocês entoaram, irei mostrá-las
para que vejam o que fizeram. E tu, Melkor, verás que nenhum tema pode ser tocado sem ter em mim sua
fonte mais remota, nem ninguém pode alterar a música contra a minha vontade. E aquele que tentar, provará
não ser senão meu instrumento na invenção de coisas ainda mais fantásticas, que ele próprio nunca
imaginou.” (p. 6)
“E Manwë disse a Melkor: - Esse reino tu não tomarás como teu, pois muitos trabalharam aqui não menos do
que tu. - E houve luta entre Melkor e os outros Valar.” (p. 11)
3.2.2. VALAQUENTA
“[...] Manwë tem a maior estima de Ilúvatar e compreende com mais clareza seus objetivos.” (p. 16)
“Manwë e Varda raramente se separam, e permanecem em Valinor [...] Quando Manwë sobe ao seu trono e
olha em volta, se Varda estiver ao seu lado, ele vê mais longe do que todos os outros olhos, através da névoa,
através da escuridão e por sobre as léguas dos mares. E, se Manwë estiver com ela, Varda ouve com mais
clareza do que todos os outros seres o som de vozes que gritam de leste a oeste.” (p. 16-17)
constantes embates entre os dois, pois tudo o que Aulë criava, Melkor desfigurava; e tudo o
que este desordenava, Aulë reparava. A virtude da humildade de Aulë revela-se na diferença
com que este tratava suas criações, em oposição à Melkor. Enquanto o último deseja fazer
valer sua vontade sobre tudos e todos, Aulë submetia tudo à Eru, permanecendo fiel:
“Melkor sentia inveja de Aulë pois era Aul6e o que mais se assemelhava a ele em ideias e poderes; e houve
um longo conflito entre os dois, no qual Melkor sempre desfigurava ou desfazia as obras de Aulë; e Aulë se
exauria a reparar os tumultos e as desordens de Melkor. Os dois também desejavam criar coisas que fossem
suas, novas e ainda não imaginadas pelos outros, e gostavam de ter sua habilidade elogiada. Aulë, porém,
mantinha-se fiel a Eru e submetia tudo o que fazia à sua vontade [...] Ao passo que Melkor dissipava seu
espírito em inveja e ódio, até que afinal não fazia mais outra coisa a não ser ridicularizar o pensamento de
terceiros, e destruía toda as obras alheias se pudesse.” (p. 18)
Námo, ou Mandos, incorpora não uma, mas duas destas virtudes: a prudência, através
do conselho; e a justiça. Mandos é o Vala responsável por julgar e guardar as almas de todos
aqueles que foram assassinados; única maneira pela qual os Primeiros Filhos de Ilúvatar
perecem. Durante a narrativa Mandos também aparece como aquele que profere as sentenças
em nome dos Valar e do próprio Ilúvatar, pois este é capaz de exercer a virtude cardeal da
justiça, segundo o que se encontra no Evangelho de João, no qual Jesus afirma: “Não julgueis
pela aparência, mas julgai conforme a justiça.” (Jo 7, 24) Jesus afirma isso no momento em
que é questionado pelos fariseus com relação à curar no sábado, respondendo assim que a
virtude cardeal da justiça não confina-se apenas na aparência da lei, mas em sua prática.
Paulo afirma ainda, em uma de suas cartas, que a verdadeira justiça não consiste na aparência
da lei, mas em sua realização, quando diz aos romanos que “porque diante de Deus não são
justos os que ouvem a lei, mas serão tidos por justos os que praticam a lei.” (Rm 2, 13)
“Námo, o mais velho, mora em Mandos, que fica a oeste, em Valinor. Ele é o guardião das Casas dos Mortos,
e o que convoca os espíritos dos que foram assassinados. Nunca se esquece de nada; e conhece todas as
coisas que estão por vir, à exceção daquelas que ainda se encontram no arbítrio de Ilúvatar.” (p. 19)
que “o justo, entretanto, persiste no seu caminho, o homem de mãos puras redobra a
coragem.” (Jó 17, 9)
“Estë, a Suave, curadora dos ferimentos e da fadiga. [...] Nas fontes de Irmo e Estë, todos os que moram em
valinor revigoram suas forças; e com frequência os Valar vem eles próprios a Lórien para ali encontrar
repouso e alívio dos encargos de Arda.” (p. 19)
Outra Valier que é símbolo da virtude cardeal da fortaleza é Nienna. Irmã de Námo e
Irmo, Nienna é conhecida por ser a Senhora do Sofrimento, pois sofre com todas as dores do
mundo, causadas pela perversidade de Melkor. Entretanto, Nienna é aquela que ensina a
transformar sua dor em sabedoria, e não a sucumbir a esta dor. A Valier, portanto, mostra-se
como símbolo da perseverança, que é a virtude integrante da natureza da fortaleza, e
ajuda-nos a não ser reféns das dores - certezas desta vida -, mas aprender com elas para
resistir-lhes. E quem, além dos profetas e dos mártires, são capazes de nos ensinar a
perseverança frente aos sofrimentos deste mundo: São Tiago afirma em sua carta apostólica:
“tomai, irmãos, por modelo de paciência e de coragem os profetas, que falaram em nome do
Senhor.” (Tg 5, 10)
“Mais poderosa do que Estë é Nienna, irmã dos fëanuri, que vive sozinha. Ela conhece a dor da perda e
pranteia todos os ferimentos que Arda sofreu pelos estragos provocados por Melkor. [...] Não chora, porém,
por si mesma; e que escutar o que ela diz, aprende a compaixão e a persistência na esperança.” (p. 19)
Por fim, outro Vala que apresenta-se como símbolo da fortaleza é Tulkas, que é
chamado de Astaldo, o Valente. Em Valaquenta Tulkas é apresentado brevemente, sendo
re-apresentado no início de Quenta Silmarillion novamente. Já em sua primeira aparição na
narrativa, Tolkien o apresenta como símbolo da coragem e da força. Tulkas foi o último a
chegar a Arda e veio em auxílio dos valar em sua luta contra Melkor, motivado por sua
virtude que o impele a lutar contra o mal.
64
“O maior na força e nos atos de bravura é Tulkas, cujo sobrenome é Astaldo, o Valente. Chegou a Arda por
último, para auxiliar os Valar nas primeiras batalhas contra Melkor. Aprecia a luta corpo a corpo e as
competições de força.” (p. 20)
“Diz-se entre os sábios que a Primeira Guerra começou antes que Arda estivesse totalmente formada, e antes
mesmo que qualquer criatura crescesse ou caminhasse sobre a terra; e por muito tempo Melkor prevaleceu.
Entretanto, no meio da guerra, ao ouvir no distante firmamento que havia batalha no Pequeno Reino, um
espírito de enorme força e resistência veio em auxílio dos valar; e Arda se encheu com o som do seu riso.
Assim veio Tulkas, o Forte, cuja ira circula como um vento poderoso, afastando a nuvem e a escuridão à sua
frente. E Melkor fugiu de sua fúria e suas risadas, abandonando Arda, e a paz reinou por uma longa era. E
Tulkas permaneceu, tornando-se um dos Valar do Reino de Arda; mas Melkor remoía pensamentos nas trevas
distantes, e dirigiu seu ódio a Tulkas para todo o sempre.” (p. 27)
A terceira parte da narrativa apresenta também três exemplos das virtudes adjacentes
a temperança. A primeira delas trata da virtude da humildade, que relaciona-se com a
65
temperança pois esta é responsável por coibir o orgulho e a audácia, movimentos exteriores à
alma que direcionam-se a dominar a inclinação da alma sensitiva. Manwë, Rei de Arda e dos
Valar é apresentado com esta virtude. Paulo, em sua carta à comunidade cristã na cidade de
Filipos os aconselha a agirem de maneira humilde, não vangloriando-se por suas qualidades,
mas colocando-se à serviço do bem e do próximo. São Paulo diz aos filipenses que “nada
façais por espírito de partido ou vanglória, mas que a humildade vos ensine a considerar os
outros superiores a vós mesmos. Cada qual tenha em vista não os seus próprios interesses, e
sim os dos outros” (Fl 2,3)
“Manwë não dá atenção à própria honra, nem sente apego pelo poder, mas governa todos em paz.” (p. 33)
Além da virtude cardeal da justiça, é possível identificar também outra virtude cardeal
no Vala Aulë. A humildade apresenta-se novamente em Aulë. Este, seguindo o impulso de
criar que havia em seu coração e inspirado pela visão da Música e dos Filhos de Ilúvatar cria
em segredo a raça dos anões. Porém, nada permanece oculto de Ilúvatar por muito tempo e
este, quando Aulë termina sua criação, o confronta. Entretanto, diferentemente de Melkor,
este não rebela-se contra Eru, antes humildemente reconhece seu erro e oferece para
repará-lo, mesmo sendo isto demasiadamente custoso para si, pois reconheceu que apenas
criara os anões seguindo o impulso criador de seu coração. Abraão, ao chegar em Gerara,
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encontra-se com Abimelec, seu rei. Este, ao ver Sara, toma-a para si. Entretanto, o Senhor
aparece em sonho a Abimelec e alerta-o que esta mulher é casada; este por sua vez afirma que
não sabia que Sara era esposa de Abraão e desculpa-se com Deus lhe dizendo que “é na
simplicidade de meu coração e com as mão puras que fiz isso.” (Gn 20, 5b) Da mesma
maneira que Abimelec argumenta com Deus sobre sua atitude, assim Aulë também o faz com
relação aos anões, pois os criaram com ‘mãos puras e um coração simples’, que desejava
simplesmente criar criaturas as quais pudesse amar e ensinar.. Diante da humildade de Aulë,
Eru abençoa sua criação e dá-lhes vida, realizando assim o desejo de criar que havia no
coração de Aulë e o levou a criar os anões pois “o prêmio da humildade é o temor do Senhor,
a riqueza, a honra e a vida.” (Pr 22, 4)
“Ora, Ilúvatar soube o que estava sendo feito e, no exato momento em que o trabalho de Aulë se completava,
e Aulë estava satisfeito e começava a ensinar aos anões a língua que inventara para eles, Ilúvatar dirigiu-lhe a
palavra; e Aulë ouviu sua voz e emudeceu. E a voz de Ilúvatar lhe disse: - Por que fizeste isso? Por que
tentaste algo que sabes estar fora de teu poder e de tua autoridade? Pois tens de mim como dom apenas tua
própria existência e nada mais. E, portanto, as criaturas de tua mão e de tua mente poderão viver apenas
através dessa existência, movendo-se quando tu pensares em movê-las e ficando ociosas se teu pensamento
estiver voltado para outra coisa. É esse teu desejo?
_ Não desejei tamanha ascendência - respondeu Aulë. - Desejei seres diferentes de mim, que eu pudesse
amar e ensinar, para que também eles percebessem a beleza de Eä, que tu fizestes surgir. Pois me pareceu que
há muito espaço em Arda para vários seres que poderiam nele deleitar-se; e, no entanto, em sua maior parte
ela inda está vazia e muda. E, na minha impaciência, cometi essa loucura. Contudo, a vontade de fazer coisas
está em meu coração porque eu mesmo fui feito por ti. E a criança de pouco entendimento, que graceja com
os atos de seu pai, pode estar fazendo isso sem nenhuma intenção de zombaria, apenas por ser filho dele. E
agora, o que posso fazer para que não te zangues comigo para sempre? Como um filho ao pai, ofereço-te
essas criaturas, obras das mãos que criastes. Faze com elas o que quiseres. Mas não seria melhor eu mesmo
destruir o produto de minha presunção?
E Aulë apanhou um enorme martelo para esmagar os anões; e chorou. Mas Ilúvatar apiedou-se de Aulë e seu
desejo, em virtude da sua humildade.” Ilúvatar voltou a falar, entretanto, e disse: - Exatamente como dei
existência aos pensamentos dos Ainur no início do Mundo, agora adotei teu desejo e lhe atribui um lugar no
Mundo; mas de nenhum outro modo corrigirei tua obra; e, como tu a fizeste, assim ela será. Contudo, não
tolerarei o seguinte: que esses seres cheguem antes dos Primogênitos dos meus desígnios, nem que tua
impaciência seja premiada. Eles agora deverão dormir na escuridão debaixo da pedra, e não se apresentarão
enquanto os Primogênitos não tiverem surgido sobre a Terra; e até essa ocasião tu e eles esperareis, por longa
que seja a demora.” (p. 39-40)
o mal de Melkor para libertar os Primeiros Filhos de Eru da ameaça das trevas. Tal decisão
apresenta, portanto, a virtude da confiança, parte integrante da virtude da fortaleza e que é
responsável pelo estado de preparação da alma em atacar algum perigo e a magnificência, que
permite à alma tomar as atitudes necessárias para agir. Encontramos na Bíblia um exemplo
deste também, quando Davi, o Rei de Israel, os incentiva à virtude para lutarem contra os
amonitas, dizendo: “coragem! Lutemos com valor por nosso povo e pelas cidades de nosso
Deus.” (2Sm 10, 12a)
“Manwë refletiu muito em seu trono na Taniquetil e procurou o conselho de Ilúvatar. Descendo, então, a
Valmar, convocou os Valar ao Círculo da Lei, e até mesmo Ulmo, do Mar de Fora, compareceu.
Disse então Manwë aos Valar: - Este é o conselho de Ilúvatar em meu coração: que devemos reconquistar o
domínio de Arda, a qualquer custo, e liberar os quendi da ameaça de Melkor.” (p. 50)
“Porém, quando a Batalha terminou e das ruínas do Norte nuvens enormes se ergueram e esconderam as
estrelas, os Valar conduziram Melkor até Valinor, com pés e mãos atados e vendas nos olhos. E ele foi levado
ao Círculo da Lei. Ali prostrou-se aos pés de Manwë e implorou perdão; mas sua súplica foi negada, e ele foi
levado à prisão na fortaleza de Mandos, de onde ninguém consegue escapar, nem Vala, nem elfo, nem
homem mortal. [..] Lá Melkor foi condenado a permanecer três eras, antes que sua causa voltasse a ser
julgada e ele pudesse mais uma vez implorar perdão.” (p. 51)
68
“Finarfin era o mais belo e o de coração mais prudente. E, mais tarde, ele foi amigo dos filhos de Olwë,
senhor dos teleri, e se casou com Eärwen, a donzela-cisne de Aqualondë, filha de Olwë.” (p. 63)
O irmão mais velho de Finarfin, Finwë, entretanto não era nada prudente. Muito
habilidoso, e ainda mais orgulhoso, Finwë se distancia de seus irmãos no que diz respeito a
prática da virtude, especialmente a virtude da prudência. Fingolfin e Fëanor, ambos na
presença de seu pai, apresentam atitudes completamente opostas. Na Bíblia encontramos o
ensinamento que “é pela obra de suas mãos que o artista conquista a estima; e um príncipe do
povo, pela sabedoria de seus discursos; e os anciãos, pela prudência de suas palavras.” (Eclo
9, 24) Fëanor possuía a estima do povo por sua habilidade inigualável e pela força de seus
discursos, porquanto Fingolfin a tem pela sabedoria de seus discursos e pela prudência de
suas palavras. Enquanto Finwë aconselha em sua ira atitudes drásticas contra os Valar,
Fingolfin aconselha a seu pai o agir com prudência. Conselho semelhante é encontrado em
35
São os que desde o início seguiram os Valar e abandonaram a Terra-média sem olhar para trás; e foram
também os primeiros a chegar a Valinor. Ficaram apaixonados pela Luz das Duas Árvores e por esse motivo são
chamados de Elfos da Luz.
36
Dentre os elfos são os noldor os com maior habilidade; aproximaram-se desde o início de Aulë e por esse
motivo aprenderam como ele os ofícios da forja e da criação de belos objetos. São chamados de Elfos
Profundos, pois mesmo em Valinor o desejo pela Terra-média ainda encontrava-se em seu coração.
37
Os teleri são aqueles que chegaram por último a Valinor, pois seu amor pelo Mar era grande e não
desejavam fixar-se em terra firme, mas preferiam os barcos velozes que viajavam pelo litoral de Aman, pois
apesar destes viverem no Reino Abençoado, nunca se distanciaram do mar.
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uma das cartas de Paulo. Em sua mensagem dirigida à comunidade de Éfeso, Paulo os
aconselha à serem prudentes em suas atitudes, evitando que sejam seduzido pelos vãos
discursos daqueles que buscavam enganá-los. São Paulo pede aos efésios que “não sejais
imprudentes, mas procurai compreender qual seja a vontade de Deus.” (Ef 5, 17) Revela
assim que devemos buscar, por meio da prudência, agir de acordo com a Vontade Suprema,
não deixando-nos levar pelas palavras daqueles que buscam nos levar por um caminho
obscuro.
“_ Rei e pai, não queres reprimir o orgulho de nosso irmão, Curufinwëm que é chamado, com muito acerto,
de Espírito de Fogo? Com que direito ele fala por todo o nosso povo, como se fosse Rei? Foste tu que há
muito tempo falaste aos quendi, pedindo-lhes que aceitassem a convocação dos Valar para vir a Aman. Foste
tu que conduziste os noldor pela longa estrada, superando os perigos da Terra-média até a luz de Eldamar. Se
não te arrependes agora do que fizeste, têm pelo menos dois filhos que honram tuas palavras.
Mas, no momento exato em que Fingolfin falava, Fëanor entrou no salão, e estava totalmente armado: com o
elmo na cabeça e poderosa espada de lado. -Quer dizer que é mesmo como imaginei - disse ele - Meu
meio-irmão prefere estar antes de mim com meu pai neste assunto, como em qualquer outro. - Voltando-se
então contra Fingolfin, ele sacou a espada e gritou: - Vai embora, e ocupa teu devido lugar!
Fingolfin fez uma reverência a Finwë e, sem dizer palavra ou olhar na direção de Fëanor, saiu do salão.
Fëanor, entretanto, o acompanhou, detendo-o à porta da casa do rei; e tocou o peito de Fingolfin com a ponta
de sua espada brilhante.” (p. 77)
“E Fëanor foi convocado a se apresentar diante deles junto aos portões de Valmar, para responder por suas
palavras e seus atos. Foram também convocados todos os outros que haviam tido qualquer participação na
questão, ou qualquer conhecimento dela. E Fëanor, parado diante de Mandos no Círculo da Lei, recebeu
ordens de responder a tudo o que lhe fosse perguntado. Então, afinal, foi desnudada a raiz e revelada a
70
influência perniciosa de Melkor. E imediatamente Tulkas deixou o conselho para ir buscá-lo e trazê-lo mais
uma vez a julgamento. Fëanor, porém, não foi considerado livre de culpa, pois fora ele quem desrespeitara a
paz de Valinor, tendo puxado a espada contra alguém de sua própria família, e Mandos lhe disse: - Tu falas
de escravidão. Se for mesmo escravidão, não podes escapar a ela; pois Manwë é Rei de Arda, e não apenas de
Aman. E esse ato foi contrário às leis, seja em Aman, seja em outra parte. Portanto, a sentença está agora
decidida: por doze anos deixará Tirion, onde a ameaça foi feita. Durante esse período, reflete em teu íntimo e
lembra-te de quem és e do que és. Após esse prazo, essa questão estará resolvida e considerada reparada se os
outros te desobrigarem.” (p. 78)
Como visto acima, dos três filhos de Finwë, somente Fëanor não possuía o hábito das
virtudes - especialmente a prudência. Já vimos que Fingolfin é descrito pelo próprio Tolkien
como prudente; Finarfin também o é, quando este aconselha os noldor a parar e refletir antes
de tomar qualquer decisão, pois “os ingênuos têm por herança a loucura; os prudentes, a
ciência como coroa.” (Pr 14, 18) O coração prudente de Finarfin ainda revela-se quando
lemos que “no coração do prudente repousa a sabedoria. Entre os tolos ela se fará conhecer?”
(Pr 14, 33) O movimento da prudência na alma racional do homem leva-o, e a outros, a
ponderar suas atitudes:
“Finarfin, porém, falou com ponderação, como era seu costume, e procurou acalmar os noldor,
convencendo-os a parar e refletir antes de agir de modo irreparável; e Orodreth foi o único entre seus filhos a
se manifestar da mesma forma.” (p. 94)
Ainda uma terceira vez Mandos apresenta-se como símbolo da virtude cardeal da
justiça. Além de símbolo desta virtude, Námo apresenta-se também mais uma vez como
aquele entre os Valar que é responsável por proferir as sentenças daqueles que cometem
crimes contra a ordem e o bem da razão. Após o roubo das Silmarils por Melkor - agora
Morgoth -, Fëanor rebela-se de vez contra os Valar. Em sua busca por vingança, Fëanor e
todos aqueles que decidiram segui-lo de volta à Terra-média, assassinaram os teleri nos
portos de Aman e roubaram-lhe os barcos. Próximos de sua partida, o Vala, que julga a alma
daqueles assassinados, proferiu contra eles o julgamento por suas ações e amaldiçoou-os
como sentença de seus crimes e “as obras de suas mãos são verdade e justiça, imutáveis os
seus preceitos, irrevogáveis pelos séculos eternos, instituídos com justiça e equidade.”
(Sl 110, 7-8) A virtude da justiça, apresentada também em Jesus, quando este afirma que “de
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mim mesmo não posso fazer coisa alguma. Julgo como ouço; e o meu julgamento é justo,
porque não busco a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou.” (Jo 5, 30) Ele
isso o diz quando discursando sobre a comunhão encontrada entre o Pai e o Filho, pois um
procede do outro. De maneira semelhante, mas não idêntica, podemos afirmar que os Valar,
procedendo de Eru, dele obtém e partilham de suas virtudes
“- Vocês verterão lágrimas sem conta; e os Valar cercarão Valinor para impedi-los de entrar. Ficarão de tal
modo isolados que nem mesmo o eco de suas lamentações atravessará as montanhas. Sobre a Casa de Fëanor,
a ira dos Valar se abate, desde o oeste até o extremo leste, e sobre todos aqueles que se dispuserem a
acompanhá-los. O Juramento que fizeram os motivará, e ao mesmo tempo os trairá, arrancando de suas mãos
os próprios tesouros que juraram procurar. Um final funesto terão todas as coisas que eles iniciarem com
êxito; e isso se dará pela traição de irmão por irmão, e pelo medo da traição. Para sempre serão eles Os
Espoliados.
- Vocês derramaram o sangue de seus irmãos injustamente e macularam a terra de Aman. Pelo sangue, irão
entregar sangue; e fora de Aman permanecerão na sombra da Morte. Pois, embora Eru tenha determinado que
vocês não morressem em Eä, e que nenhuma enfermidade os atacasse, mesmo assim vocês podem ser
assassinados, e serão: por armas, tormentos e tristeza.” (p. 100)
Apesar da imprudência de Fëanor, seus filhos não herdaram isso. Maedhros, o filho
mais velho, demonstra esta virtude quando, em meio a batalha na qual morreu seu pai contra
as forças das trevas de Morgoth38, não se deixa enganar pela falsa promessa de trégua,
aconselha seus irmãos a comparecer com mais forças do que haviam prometido, sendo
prudentes frente à um inimigo perverso. Jesus, após a escolha dos Doze Apóstolos, os envia;
antes, porém, aconselha-os à prudência em relação ao mal dizendo que “Eu vos envio como
ovelhas no meio de lobos. Sede, pois, prudentes como as serpentes , mas simples como as
pombas.” (Mt 10, 16) A prudência da serpente revela-se em seu agir, pois esta ataca quando
percebe que pode subjugar sua presa, não dispondo-se a enfrentar um inimigo maior do que
suas forças.
“Porém, bem na hora em que Fëanor morria, chegou a seus filhos uma embaixada de Morgoth, reconhecendo
a derrota e oferecendo termos de rendição, até mesmo a entrega de uma Silmaril. Então Maedhros, o Alto, o
primogênito, convenceu seus irmãos a simular um tratado com Morgoth e ir encontrar seus emissários no
38
Melkor, após roubar as Silmarils, é rebatizado por Fëanor de Morgoth, que significa o ‘Grande Inimigo do
Mundo’. A partir deste momento, ele é chamado apenas por este nome.
72
lugar marcado; mas os noldor tinham tão pouca fé quanto ele. Portanto, cada delegação compareceu com
mais força do que o combinado; mas Morgoth mandou mais, e vieram também balrogs.” (p. 130)
“Mas Fingolfin, por ter um temperamento diferente do de Fëanor, e ter muita cautela com os ardis de
Morgoth, recuou de Dor Daedeloth e voltou na direção de Mithrim, pois ouvira notícias de que ali encontraria
os filhos de Fëanor, e por desejar também,ter o escudo das Montanhas Sombrias para que seu povo pudesse
descansar e se fortalecer. Pois vira a força de Angband e não achava que ela fosse cair apenas com toques de
clarim. Portanto, chegando afinal a Hithlum, armou seu primeiro acampamento e morada junto às margens
norte do lado de Mithrim.” (p. 131)
“Ora, o Rei Thingol não acolheu de coração aberto a chegada de tantos príncipes cheios de poder, vindos do
oeste, ansiosos por novos territórios; e não se dispôs a abrir seu reino, nem a remover seu cinturão encantado,
pois, prudente com a sabedoria de Melian, não confiava que a repressão a Morgoth perdurasse.” (p. 134)
73
“Angrod, filho de Finarfin, foi o primeiro dos Exilados a vir a Menegroth, como mensageiro de seu irmão
Finrod, e muito tempo conversou com o Rei, relatando os feitos dos noldor no norte, falando de seus números
e da organização de suas forças; mas, sendo sincero, ponderado e considerando todos os males então
perdoados, não disse palavra sobre o fratricídio nem sobre a forma do exílio dos noldor ou sobre o Juramento
De Fëanor.” (p. 134)
“No entanto, Caranthir, que não gostava dos filhos de Finarfin, e era dos irmãos o mais agressivo e de
temperamento mais irritável, protestou em voz alta.
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- E mais! Que os filhos de Finarfin não fiquem correndo de um lado para o outro contando suas histórias para
esse elfo-escuro lá nas grutas dele! Quem os nomeou nosso porta-voz para lidar com ele? E, embora tenham
vindo de fato para Beleriand, que não se esqueçam assim tão depressa de que seu pai é um senhor dos noldor,
embora sua mãe seja de outra linhagem.
Com isso, irou-se Angrod e abandonou a assembleia. Maedhros chegou a censurar Caranthir; mas a maioria
dos noldor, dos dois séquitos, ao ouvir suas palavras, sentiu o coração perturbado, temendo o espírito cruel
dos filhos de Fëanor que parecia sempre explodir em violência ou em palavras impensadas. Maedhros,
entretanto, conteve seus irmão e eles deixaram a assembleia.” (p. 135)
“Ulmo, porém, subindo o rio, lançou sobre eles um sono profundo e sonhos pesados. E a perturbação dos
sonhos não os abandonou depois de acordarem. [...] Pois a cada um lhe parecia que deveria se preparar para
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um dia nefasto e construir um abrigo, para a eventualidade de Morgoth sair de Angband em ataque e derrotar
os exércitos do norte.” (p. 137)
Círdan, outro senhor dos elfos que também havia decidido permanecer na
Terra-média e não empreender a longa viagem à Aman, também possuía o hábito da virtude
cardeal da prudência. Morgoth, ao ver o grande números de elfos que haviam chegado a
Terra-média e seu poder militar, tentava instigar a desconfiança no coração daqueles que
estiveram na Terra-média durante os longos anos entre a partida dos elfos e a volta do noldor.
Fazia isso por meio de boatos que contavam atrocidades cometidas pelos noldor em seu
caminho destes as Terras Abençoadas até sua chegada na Terra-média, retratando-os como
assassinos sanguinários e usurpadores. A astúcia de Morgoth era tamanha que a discórdia que
instalava nos corações aparentava ter surgido entre os próprios noldor, instalada pelo rancor
entre as Casas dos herdeiros de Finwë. Círdan também demonstra prudência ao enviar a
Thingol, seu aliado, notícias sobre o que escutava em seus salões. Tal atitude é recomendada
na Sagrada Escritura, no livro do Eclesiástico que afirma que devemos ter uma postura
prudente frente a desconhecidos: “tanto quanto possível, desconfia de quem de ti se
aproxima, e aconselha-te com os sábios e os prudentes.” (Eclo 9, 21)
“E Círdan, ao ouvir essas histórias sinistras, ficou perturbado. Pois era prudente e percebeu logo que,
verdadeiras ou falsas, elas eram espalhadas àquela altura por rancor, que ele atribuía aos príncipes dos noldor,
em decorrência da inveja entre suas Casas. Enviou, portanto, mensageiros a Thingol para relatar tudo o que
ouvira.” (p. 158)
Outro personagem que apresenta mais de uma virtude em si é Turgon. Como vimos, o
príncipe élfico, de acordo com uma inclinação divina e sendo guiado por Ulmo, fundou a
cidade secreta de Gondolin e a ocultou dos olhos de todos. Ninguém de fora dos muros sabia
da existência da cidade e aqueles que moravam em seu interior não tinham permissão de sair.
Todavia Aredhel saiu, perdeu-se e foi encontrada por Eöl, o elfo-escuro e teve um filho,
Maeglin. Aredhel estava descontente com a maneira opressiva que seu esposo a tratava e por
este motivo decidiu fugir de volta à cidade de seu irmão, mas Eöl conseguiu rastreá-la e
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entrou escondido em Gondolin. Lá, devido a recusa de Aredhel e Maeglin de voltarem com
ele e das leis de Turgon que impediam qualquer um de deixar a cidade, Turgon exprime o seu
papel como líder de seu povo e, portanto, símbolo da justiça para todos aqueles que eram seus
súditos e indo de encontro com o que está escrito no livro do Deuteronômio, que exprime que
devemos dar “audiência aos vossos irmãos e julgai com equidade as questões de cada um
deles ou com o estrangeiro que mora com ele.” (Dt 1, 16b) Como dito, Turgon também
apresenta neste momento a virtude da prudência política, na qual o líder de um povo deve
decidir o melhor não só para si, mas para todos.
“Sentou-se então Turgon em trono elevado, segurando seu cetro de justiça, e falou em tom severo.
- Não discutirei com você, elfo-escuro. Seus bosques sombrios somente são defendidos pelas espadas dos
noldor. Sua liberdade de perambular por lá à vontade, você deve a minha gente. [...] E aqui eu sou Rei. Quer
você queira, que não, minha decisão é lei. Só lhe é dada a seguinte escolha ficar aqui ou morrer aqui.” (p.
170)
Eöl não gostou da justiça de Turgon e por esse motivo, tentou executá-lo. Aredhel, no
entanto, entrou na frente da adaga que Eöl havia atirado e foi atingida, morrendo horas depois
em consequência do veneno na lâmina da adaga. Turgon então julgou Eöl por seu crime, e
todo o povo de Gondolin concordou com sua sentença, encontrando nela a virtude da justiça.
O exemplo de virtude neste caso trata da justiça natural, a qual determina que todas as ações
devem ser respondidas na mesma proporção; no caso, uma vida por uma vida. E assim Eöl foi
condenado à morte, já que “todo aquele que não observar a Lei de Deus e a lei do rei será
castigado rigorosamente, seja com a morte, seja com o desterro, seja com uma multa, ou
mesmo com a prisão.” (Es 7, 26) Tal versículo é dado por Esdras, promotor do Judaísmo e
que, quando do retorno dos exilados, liberados por Ciro, lidera o povo de Israel e comanda a
reconstrução do tempo, tanto físico quanto religioso daquele povo, relembrando-os dos
preceitos que haviam esquecido em seus longos anos de escravidão.
“Foi determinado que Eöl fosse trazido no dia seguinte para ser julgado pelo Rei. E Aredhel e Idril
conseguiram convencer Turgon a ser misericordioso. Ao entardecer, porém, apesar de o ferimento parecer
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pequeno, Aredhel adoeceu, caiu na escuridão e durante a noite morreu. Pois a ponta da azagaia estava
envenenada,embora ninguém soubesse disso até que fosse tarde demais.
Logo, quando Eöl foi levado à presença de Turgon, não obteve misericórdia alguma. E o levaram até o
Caragdûr, um precipício de rocha negra no lado norte do monte de Gondolin para ali jogá-lo do alto das
muralhas escarpadas da cidade. [...] Lançaram então Eöl do alto do Caragdûr, e foi esse seu fim. Para todos
em Gondolin, isso pareceu justo.” (p. 170 -171)
Como vimos acima, Turgon teve por Ulmo instalada uma inquietação em seu coração
para que procurasse um local seguro, um abrigo para seu povo. Também pela intercessão de
Ulmo, Turgon encontrou este lugar e, na Colina Escondida, ergueu Gondolin, a cidade
secreta dos elfos. Turgon decretou também que ninguém que estava dentro da cidade deveria
sair, da mesma maneira que ninguém que viesse de fora poderia nela entrar. Entretanto,
Aredhel, irmã de Turgon, desejava andar livremente pela Terra-média e rever seus parentes
da Casa de Finrod. Após debater com seu irmão sobre isto, esta recebeu autorização para
partir; porém, no meio do caminho ela se perde e encontra Eöl, um elfo sombrio que vivia nas
florestas próximas a Doriath. Este casa-se com ela e a impede de retornar a Gondolin. Por
vários anos Aredhel permanece neste relacionamento como esposa-prisioneira de Eöl, até que
um dia decide fugir e retornar à cidade de seu irmão, junto de seu filho, Maeglin. Após uma
série de acontecimentos e a morte de Aredhel, Turgon adotou Maeglin como filho. Este é
descrito como possuidor de duas virtudes:a cautela e a coragem, ambas partes das virtudes
cardeais da prudência e da fortaleza. Estas virtudes andam juntas também nas Escrituras. No
tempo de Ezequias, rei de Judá, este enfrentava a ameaça da invasão por parte dos assírios.
Em um conselho dado por um dos emissários do rei da Assíria, este afirma aos enviados pelo
rei de Judá que “o que se precisa na guerra é de prudência e bravura.” (2Rs 18, 20b) As
Escrituras demonstram, desta forma, a relação de proximidade entre as virtudes cardeais.
Maeglin também apresenta a virtude da fortaleza, sendo corajoso e valente - características
marcantes desta virtude cardeal; (cf. Is 36, 5)
“Sábio em seus conselhos era Maeglin, além de cauteloso; e, no entanto, corajoso e valente se necessário. E
isso se comprovou em dias futuros.Pois, quando, no terrível ano das Nirnaeth Arnoediad, Turgon abriu seu
cerco e avançou para ajudar Fingon no norte, Maeglin não quis permanecer em Gondolin como regente do
Rei, mas foi para a guerra e lutou ao lado de Turgon, revelando-se cruel e destemido em combate.” (p. 171)
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“Maedhros realizou feitos de bravura extraordinária; e os orcs fugiram diante do seu rosto. Pois, desde a sua
tortura nas Thangorodrim, seu espírito ardia como um fogo branco em seu íntimo, e ele era como alguém que
volta dos mortos.” (p. 190)
Tendo os elfos em Beleriand se tornado numerosos e fortes, e após suas alianças com
os homens, Fingolfin, Rei Supremo dos noldor decidiu que era chegado o tempo de
enfrentarem mais uma vez os poderes de Morgoth e, por esse motivo juntou suas forças,
convocou seus aliados e marcharam em direção à Angband. Morgoth, entretanto, havia
preparado um ardil para seus inimigos e, no momento do cerco de Angband liberou de seus
terríveis calabouços enormes torrentes de fogo, que afugentaram e dispersam as forças
aliadas. Fingolfin, após reorganizar suas forças, apresenta-se diantes das portas das fortalezas
de Angband e convoca Morgoth para um duelo. Diante de tão grande afronta e de todos os
seus servos observando-o Morgoth não teve escolha senão aceitar o desafio do Rei e então
este subiu das profundezas de seu trono e apresentou-se diante de Fingolfin como uma
sombra terrível. Este, todavia, não recuou perante as trevas e o mal, da presença de Morgoth e
de sua imagem, mas permaneceu firme, como um símbolo da fortaleza, que de pé enfrenta as
forças as quais se opõem, resistindo ao mal.
“Por isso, Morgoth veio, subindo lentamente de seu trono subterrâneo, e o ruído de seus passos era como
trovões no seio da terra. E se apresentou trajando uma armadura negra. Parou diante do Rei como uma torre,
com sua coroa de ferro. E seu enorme escudo, negro sem brasão, lançava uma sombra como uma nuvem de
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tempestade. Fingolfin, entretanto, cintilava dentro da sombra como uma estrela; pois sua malha era recoberta
de prata, e seu escudo azul era engastado com cristais. E ele sacou sua espada Ringil, que refulgia como o
gelo.” (p. 192)
“Mas, por fim, o Rei se cansou, e Morgoth o empurrou para baixo com o escudo. Três vezes, Fingolfin foi
esmagado até se ajoelhar, e três vezes ele se levantou portando seu escudo quebrado e seu elmo amassado.”
(p. 192)
Como já visto, não só elfos e Valar possuem as virtudes. Em seguida temos mais um
exemplo da grande virtude dos homens; desta vez através da virtude cardeal da fortaleza.
Após a batalha na qual Fingolfin caiu sob o poder de Morgoth e as forças dos elfos e dos
homens sofreram grandes perdas, o norte de Beleriand foi dominado pelos poderes sombrios
que saiam de Angband. Dorthonion, território ocupado pelos homens da Casa de Bregor era o
único que desafiava a soberania de Morgoth naquelas terras e, por esse motivo, ele os
perseguia. Barahir, chefe desta casa e sua mulher Emeldir, apresentam-se como símbolos da
fortaleza dentre os homens daquele território, assim como os homens que permaneceram lá
para defendê-lo:
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Morgoth perdeu parte de seu poder com o passar dos anos pois este despejava parte de sua própria
essência maligna em suas criações e maquinações, para torná-las sobrenaturalmente fortes e também por
causa de seu ódio e rancor que guardava em si.
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“Agora o poder de Morgoth dominava as terras do norte; mas Barahir não se dispunha a fugir de Dorthonion
e disputava cada metro de território com seus inimigos. Morgoth, então, perseguiu sua gente até a morte, até
restarem poucos deles. [...] Afinal, de tal desespero era a situação de Barahir, que sua mulher Emeldir, a de
Coração Viril (cuja disposição era mais lutar ao lado do marido e do filho do que fugir), reuniu todas as
mulheres e crianças que restavam e deu armas àquelas que quisessem portá-las. Conduziu-as, então, para
dentro das montanhas que estavam a suas costas [...] Nenhuma, porém, jamais voltou a ver os homens que
haviam deixado. Pois eles foram exterminados um a um, até que no final restavam a Barahir apenas doze
homens.” (p. 193 - 194)
Além desta virtude, os homens das Três Casas dos edain possuíam também a fortaleza
contra o mal que habitava no norte, mesmo quando presos e torturados nos profundos
calabouços de Angband. Pois, por sua recusa a servirem a Morgoth, este os odiava e
torturava-os cruelmente. Paulo, Apóstolo de Cristo, em uma de suas cartas à comunidade de
Corinto, relata também os sofrimentos que enfrenta por permanecer fiel à Cristo e escreve
que “não queremos, irmãos, que ignoreis a tribulação que nos sobreveio na Ásia. Fomos
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maltratados ali desmedidamente, além das nossas forças, a ponto de termos perdido a
esperança de sair com vida.” (2Cor 1, 8) Entretanto, Paulo afirma também em outra carta aos
coríntios que, apesar das provações que enfrentamos em nome das virtudes devemos
permanecer firmes na confiança, pois “não vos sobreveio tentação alguma que ultrapasse as
forças humanas. Deus é fiel: não permitirá que sejais tentados além das vossas forças, mas
com a tentação. Ele vos dará os meios de suportá-la e sairdes dela.” (1Cor 10, 13)
“Para os homens, Morgoth simulava compaixão, se alguém se dispusesse a dar ouvidos a suas mensagens,
dizendo que suas aflições derivam somente de sua servidão aos noldor rebeldes; mas que, nas mãos do
legítimo Senhor da Terra-média, eles receberiam honrarias e uma justa recompensa pela bravura, se
abandonassem a rebelião. Contudo, poucos homens das Três Casas dos edain se dispuseram a lhe dar
ouvidos, nem mesmo quando levados aos tormentos de Angband. Por conseguinte, Morgoth os perseguia com
ódio.” (p. 196)
O povo de Haleth, uma das Três Casas dos edain, vivia mais ao sul e em princípio não
foi atingido pelas terríveis batalhas no norte. Mas, com o avanço de Morgoth, mesmo as
florestas do sul começaram a ser invadidas por orcs e, diante deste mal, os haladin
demonstraram também possuir a virtude da fortaleza, que nos leva a lutar contra o mal.
Mesmo não se envolvendo nas grandes batalhas norte, esse virtuoso povo possuía também a
virtude da coragem.
“O povo de Haleth de início não foi atingido pela guerra ao norte, pois vivia mais ao sul, na Floresta de
Brethil. Agora, porém, já havia combates entre eles e os orcs invasores, pois eram homens de disposição
valente e não abandonariam sem luta os bosques que amavam.” (p. 197)
“Contudo, Húrin e Huor desejavam retornar a seu próprio povo e participar das guerras e aflições que agora
os atormentavam.
- Senhor- disse então Húrin a Turgon -, não somos senão mortais e diferentes dos eldar. Eles podem suportar
a passagem de muitos anos enquanto aguardam o combate com seus inimigos em algum futuro distante; para
nós, porém, o tempo é curto; e nossa esperança e força logo definham.” (p. 198)
Passados muitos anos, Húrin, Huor e Turgon encontram-se novamente, desta vez em
batalha. Sendo os elfos de Gondolin sobrepujados pelas forças de Morgoth, os primos
aconselham com prudência que os elfos recuem e reagrupem-se, oferecendo sua proteção
neste caminho. Demonstravam assim mais uma vez a grande virtude da fortaleza que
habitava nos corações dos homens do norte. Outra virtude demonstrada neste ato é a da
justiça, já que um dos motivos que levaram à derrota das forças élficas foi a traição de Uldor -
um dos edain. Buscavam assim então justificar uma traição por uma defesa, um ataque
daqueles que deveriam ser fiéis por uma prova de lealdade dos homens de Dor-lómin:
“Turgon aceitou, então, os conselhos de Húrin e Huor. E, convocando todos os que restavam do exército de
Gondolin, bem como aqueles do povo de Fingon que puderam ser reunidos, recuou na direção do passo do
Sirion. E seus capitães, Ecthelion e Glorfindel, protegeram os flancos à direita e à esquerda, para que nenhum
inimigo passasse por eles. Já os homens de Dor-lómin defenderam a retaguarda, como Húrin e Huor
desejavam; pois em seu íntimo não queriam deixar as Terras do norte e, se não conseguissem reconquistar
seus lares, ali permaneceriam até o final. Desse modo foi reparada a traição de Uldor; e de todos os feitos da
guerra que os pais dos homens realizaram em benefício dos eldar, a resistência final dos homens de
Dor-lómin é o mais famoso.” (p. 244)
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“Os orcs haviam assassinado ou rechaçado todos os que ainda portavam armas, e estavam naquele instante
vasculhando os enormes salões e aposentos, a pilhar e destruir. No entanto, aquelas mulheres e moças que
não haviam sido mortas nem queimadas, eles haviam recolhido nos terraços diante das portas, como escravas
a serem levadas à servidão de Morgoth. Com essa ruína e aflição, Túrin deparou. E ninguém conseguia
resistir a ele, nem se dispunha a isso, pois ele derrubou todos os que se postaram à sua frente,passou pela
ponte abriu caminho com violência até as cativas.” (p. 271)
Glaurung, o pai de todos os dragões, um dos mais cruéis servos de Morgoth, foi o
principal responsável da ruína de Nargothrond. Entretanto, mesmo sendo ele um símbolo do
mal e responsável por levar a cabo a destruição pretendida por seu mestre, o dragão consegue
enxergar em um homem o brilho da virtude e reconhecê-lo publicamente. Este homem é
Túrin Turambar e sua virtude é a coragem:
“Pelo menos tu és destemido, mais do que todos que já conhecemos. E mentem os que dizem que nós, por
nosso lado, não honramos a bravura de nossos inimigos.” (p. 273)
Um dos líderes dos edain, Brandir, filho de Handir, era conhecido por sua prudência
derivada de uma deficiência. Por ser manco, não poderia combater contra o mal no campo de
batalha, como seus companheiros, portanto desenvolveu a virtude da cautela no seu agir e
acreditava mais em atividades secretas do que em demonstrações abertas de força na luta
contra Morgoth. Brandir confiava no agir segundo a prudência, evitando atos abertos de
guerra pois sabia que a força - algo que não tinha - não venceriam a guerra, enxergando assim
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que “os projetos triunfam pelo conselho; é com prudência que deve ser dirigida a guerra.” (Pr
20, 18)
“Ora, essas moradas ficavam numa paliçada num ponto alto da floresta, a Ephel Brandir sobre o Amon Obel;
pois o povo de Haleth agora estava reduzido pela guerra, e Brandir, filho de Handir, que os governava, era
um homem de espírito ameno; também manco de infância, e ele confiava mais em atividades secretas que em
feitos de guerra para salvá-los do poder do norte.” (p. 276)
Túrin, filho de Húrin40, é um dos personagens com a história mais trágica em todas as
narrativas de Tolkien. Amaldiçoado por Morgoth por causa de seu pai, vive uma vida de
perdas e tragédias pessoais, sendo parte delas por causa de seu próprio orgulho. Uma das
vezes em que seu orgulho foi o motivo de sua derrota foi quando este enfrentou Glaurung, pai
dos dragões, e foi enfeitiçado pelo monstro. Em sua segunda oportunidade de enfrentá-lo,
Túrin mostra-se prudente, escolhendo não enfrentar cara-a-cara Glaurung, demonstrando
assim que havia aprendido com seus erros e desenvolvido a virtude da prudência com o
tempo, pois “aquele que não tem experiência pouca coisa sabe, mas o que passou por muitas
dificuldades desenvolve a prudência.” (Eclo 34, 10)
“Ora, Turambar chegou a Nen Girith ao anoitecer e ali soube que Glaurung repousava junto às margens do
Teiglin; e era provável que se movimentasse com o cair da noite. Considerou essas notícias boas; pois o
dragão estava em Cabed-en-Aras, onde o rio corria numa ravina profunda e estreita que uma corça em fuga
poderia transpor com um salto; e Turambar pensou em não procurar mais, mas em tentar passar pela ravina.
Por isso, se propôs se esgueirar na penumbra, descer até o fundo da ravina à noite e atravessar a forte
correnteza; subir depois pelo penhasco do outro lado e chegar ao dragão sem que ele percebesse.” (p. 282)
O primeiro encontro de Glaurung com Túrin, todavia, foi desastroso para o último.
Enfeitiçado pelo dragão, permaneceu imóvel enquanto este destruía, pilhava e escapava de
Nargothrond. Quando recuperou-se, Túrin buscou então vingar-se do monstro e, encontrando
dois companheiros elfos, saiu a procura do enorme lagarto, encontrando-o na margem de um
40
A história de Túrin é uma narrativa à parte. Assim como a narrativa de Beren e Lúthien, em O Silmarillion esta
história é contada centrando apenas em seus acontecimentos mais importantes, entretanto Tolkien a expande
em outra narrativa intitulada Os Filhos de Húrin, publicada no Brasil em 2009 pela editora wm Martins Fontes.
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rio. Como visto na análise da virtude da prudência, Turambar havia aprendido com sua
experiência que não deveria enfrentar Glaurung de frente, mas buscar outros meios de
combater este mal. Decidiu então cruzar o rio Teiglin, caudaloso e veloz, e cercar o dragão
por trás. Contudo, ao chegarem na travessia, Dorlas, acovardou-se, enquanto Turin e Hunthor
demonstraram mais uma vez a virtude da fortaleza, que te impele a enfrentar seus medos e
seguir em frente, apesar dos obstáculos:
“Essa decisão ele tomou, mas faltou coragem a Dorlas quando eles chegaram às corredeiras do Teiglin no
escuro, e Dorlas não ousou tentar a travessia arriscada, mas recuou e se escondeu nos bosques, sob o peso da
vergonha. Turambar e Hunthor, entretanto, fizeram a travessia.” (p. 283)
Mais uma vez temos um exemplo da virtude da justiça em sua forma de justiça
natural. Húrin, preso por Morgoth, foi amaldiçoado por este a permanecer preso no topo das
Thangorodrim e presenciar todas as tragédias que cairiam sobre os membros de sua família.
Após anos de tormento preso em Angband, finalmente Húrin é liberado e sai em busca de sua
mulher e seus filhos. Seu caminho o leva até as ruínas de Nargothrond onde encontra Mîm, o
anão que havia traído Túrin uma vez, resolve ir Nargothrond e guardar para si os tesouros que
ainda estivessem por lá, após a passagem de Glaurung, o pai dos dragões. Desta maneira,
verifica-se o que se encontra no livro dos Provérbios, que afirma que “os pensamentos dos
justos são cheios de retidão; as tramas dos perversos são cheias de dolo.” (Pr 12, 5) Húrin,
movido tanto pelo senso de justiça natural quanto pelo desejo de vingança pessoal contra o
traidor de seu filho.
“- Quem é você - disse, porém, Húrin -, que pretende me impedir de entrar na casa de Finrod Felagund?
- Sou Mîm - respondeu então o anão -, e antes que os altivos chegassem do outro lado do Mar, os anões já
haviam escavado os salões de Nulukkuzdîn. Só voltei para tomar o que é meu pois sou o último de meu povo.
- Então não gozará mais de sua herança, pois sou Húrin, filho de Galdor, de retorno de Angband; e meu filho
era Túrin Turambar, de quem você não se esquece. E foi ele quem matou Glaurung, o Dragão, que devastou
estes salões onde você agora está sentado. E não ignoro por quem o elmo de dragão de Dor-lómin foi traído.
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Então Mîm, dominado por um medo terrível, implorou a Húrin que levasse o que quisesse, mas lhe poupasse
a vida. Húrin, no entanto, não deu atenção a suas súplicas e o matou diante das portas de Nargothrond.” (p.
293 - 294)
“Naquela época, os dias de Gondolin ainda eram cheios de alegria e paz; e ninguém sabia que a região em
que se localizava o Reino Oculto havia sido finalmente revelada a Morgoth pelos gritos de Húrin [...] Idril
Celebrindal, porém, era sábia e previdente; seu coração a perturbava com suspeitas, e pressentimentos iam
encobrindo seu espírito como uma nuvem. Por esse motivo, nessa época, mandou preparar um caminho
secreto, que deveria partir da cidade e, passando por baixo da planície, sair bem distante do outro lado das
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muralhas, ao norte do Amon Gwareth. E conseguiu que a obra fosse do conhecimento de poucos, sem que
nenhum rumor dela chegasse aos ouvidos de Maeglin.” (p. 308)
“Então Tuor e Idril conduziram os remanescentes do povo de Gondolin que puderam arrebanhar na confusão
do incêndio pelo caminho secreto que Idril havia construído. E dessa passagem os capitães de Angband nada
sabiam, nem cogitavam que algum fugitivo que algum fugitivo seguisse por um caminho para o norte, na
direção das regiões mais altas das montanhas e mais próximas de Angband.” (p. 309)
O próximo exemplo da virtude cardeal da fortaleza não centra-se nas atitudes de uma
só personagem, mas em todo um povo. Gondolin, o Reino Escondido de Turgon não
permaneceria assim eternamente. Morgoth, que através de Húrin havia descoberto a região
em que Gondolin localizava-se, buscava encontrar a localização exata da cidade. Maeglin,
sobrinho do rei, gostava de explorar as minas em busca de metais preciosos para sua forja;
em uma de suas excursões deparou-se com uma comitiva de orcs e foi preso e levado até o
Senhor do Escuro, que prometendo-lhe entregar Idril - filha de Turgon à qual Maeglin nutria
sentimentos amorosos não correspondidos - conseguiu a localização tão desejada. Ao voltar à
Gondolin, entretanto, Maeglin não contou a ninguém que a cidade corria perigo; desta
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maneira todos - a exceção de Idril, como já visto acima - foram pegos de surpresa pelo
ataque das forças de Morgoth. Mesmo nesta situação, em que encontravam-se perdidos, o
povo de Gondolin não desfaleceu e mostraram-se valentes até o fim, lutando contra as forças
mais numerosas de Angband:. Assim como o povo de Gondolin, o povo de Israel também
deparou-se com uma situação que deveria lutar para defender tudo o que dava valor: sua
cidade, seu Deus e seu templo. Guiados por Judas, ergueram-se em armas e lutaram contra os
seus invasores, como está narrado no Segundo Livro dos Macabeus:
“Finalmente, no ano em que Eärendil completou sete anos, Morgoth considerou-se pronto e soltou sobre
Gondolin seus balrogs, seus orcs e seus lobos. E com eles vieram dragões da linhagem de Glaurung, que
agora eram muitos e terríveis. [...] Dos atos de bravura desesperada ali realizados pelos comandantes das
Casas nobres e seus guerreiros, não sendo os de Tuor os menos importantes, muito está relatado em A Queda
de Gondolin. ” (p. 309)
“Diz-se entre os elfos que, depois que Eärendil se fora, em busca de sua mulher, Elwing, mandos falou a
respeito de seu destino.
- Para isso foi ele trazido ao mundo - disse, porém, Ulmo. - Diga-me então se ele é Eärendil, filho de Tuor da
linhagem de Hador, ou se é filho de Idril, filha de Turgon, da Casa élfica de Finwë.
- É indiferente - respondeu Mandos. - Os noldor, que exilaram por vontade própria, não poderão voltar para
cá.
- Nessa questão, o poder de decidir pertence a mim. O risco ao qual ele se expôs por amor às Duas Famílias
não se abaterá sobre Eärendil, nem sobre Elwing, sua esposa, que correu o risco por amor a ele. Contudo, eles
não voltarão a caminhar entre elfos ou homens nas Terras de Fora. E esta é minha sentença sobre eles:
Eärendil e Elwing, bem como seus filhos, terão permissão cada um de escolher livremente a que família seus
destinos serão vinculados, e de acordo com que família serão julgados.” (p. 317)
Morgoth, após derrotar todos os grandes príncipes dos Noldor, destruir os Reinos
Ocultos de Nargothrond e Gondolin, e de dominar praticamente toda Beleriand, tornara-se
confiante e orgulhoso em sua própria força e não esperava que ninguém ousasse desafiá-lo
abertamente. Entretanto, este não esperava que a retaliação viesse do Oeste, pois nada sabia
da viagem de Eärendil e de seu apelo aos Valar. Mas estes vieram, e com eles as hostes dos
elfos que não deixaram Valinor com Fëanor e sua gente. Os elfos da luz demonstraram então
a virtude da fortaleza, pois não deixaram de ir em auxílio daqueles que necessitavam,
respondendo prontamente à convocação dos Valar a guerra. Esta é uma das característica das
virtudes da fortaleza, que garante-nos as forças para lutar contra o mal. Os Valar, então,
90
fizeram como Ezequias, quando este preparava-se para lutar contra Senaquerib, rei da Assíria
e “colocou à frente do exército chefes militares; reuniu-os perto de si na praça da porta da
cidade e exortou-os à coragem.” (2Cr 32, 6)
“Diz-se, porém, que Morgoth não esperava o ataque que se abateu sobre ele, vindo do oeste; pois tamanho se
tornara seu orgulho, que ele achava que ninguém jamais iniciaria uma guerra aberta contra ele. Além disso,
acreditava que havia para sempre separado os noldor dos Senhores do Oeste; e que, satisfeitos com seu reino
bem-aventurado, os Valar não mais dariam atenção ao domínio de Morgoth sobre o mundo lá fora. [...] No
entanto, as hostes dos Valar se preparavam para o combate; e sob seus estandartes brancos marchavam os
vanyar, o povo de Ingwë, e aqueles dos noldor que nunca tinham saído de Valinor, cujo líder era Finarfin,
filho de Finwë.” (p. 319)
“E aqueles poucos que restavam das três Casas de amigos dos elfos, Ancestrais dos homens, lutaram do lado
dos Valar.” (p. 320)
A última ocorrência da virtude cardeal da justiça na narrativa tem lugar após a Guerra
da Ira, na qual os Valar e seus exércitos saíram de Valinor e marcharam sobre Beleriand,
pelejando com Morgoth auxiliados pelos elfos e homens que estavam sob sua opressão. Após
a vitória dos Exércitos do Oeste e da recuperação das Silmarils Eönwë, arauto e mensageiro
de Manwë, encontra-se com os filhos de Fëanor que ainda estão vivos: Maedhros e Maglor.
Os Valar haviam julgado tudo que ocorrera desde o roubo das Silmarils e, então chegaram a
um juízo. Eönwë apresenta-se então como símbolo da justiça, representando a decisão dos
Valar sobre o destino do Juramento e daqueles ainda sujeitos à ele. À princípio, Maglor
tendia a aceitar o julgamento dos Valar pois pensava em fazer “o que é bom e reto diante dos
seus olhos, para que sejas feliz e possuas a terra que o Senhor jurou a teus pais dar-te.” (Dt 6,
91
18) Assim como o conselho dado por Moisés à Israel, em seu papel de mediador entre o povo
e Deus. Entretanto Maedhros, seu irmão, aconselha-o e convence-o do contrário e juntos
tomaram as Silmarils do acampamento de Eönwë e fugiram ambos com uma das Pedras. Seus
destinos, porém, foram sombrios, pois os Valar retiraram seu direito de possuir as Silmarils e
estes foram atormentados e sofreram grande dor até que Maedhros jogou-se em um abismo
de fogo com sua Silmaril e Maglor jogou a sua Pedra no mar, passando o resto de sua vida
perambulando pelas praias da Terra-média, cantando seu remorso.
“Eönwë respondeu, porém, que o direito à obra de seu pai, que os filhos de Fëanor anteriormente possuíam,
estava agora extinto, por causa de seus inúmeros feitos impiedosos, decorrentes da cegueira provocada pelo
Juramento; e, acima de tudo, pelo assassinato de Dior e pelo ataque aos Portos. A luz das Silmarils deveria
agora ir para o oeste, de onde no princípio viera. E a Valinor Maedhros e Maglor deveriam retornar, para lá
aguardar o julgamento dos Valar, pois, somente por ordem expressa dos Valar, Eönwë entregaria as pedras
que estavam sob sua responsabilidade. Nesse momento, Maglor com efeito desejou ceder, pois seu coração
estava pesaroso.” (p. 322)
3.2.4. AKALLABÊTH
“_ De fato, o pensamento de Ilúvatar com relação a vocês não é do conhecimento dos Valar; e ele não revelou
tudo o que está por acontecer - disseram então os Mensageiros. - Consideramos, porém, ser verdade que sua
terra não é aqui, nem na Terra de Aman, nem em nenhum lugar dentro dos Círculos do Mundo. E o Destino
dos Homens, de que deveriam partir, foi de início uma dádiva de Ilúvatar. Tornou-se um pesar para eles
somente porque, tendo caído sob a sombra de Morgoth, pareceu-lhes que estavam cercados por uma enorme
escuridão, da qual sentiam medo. E alguns se tornaram voluntariosos e orgulhosos, decididos a não ceder, até
a vida lhes ser arrancada. Nós, que suportamos a carga sempre crescente dos anos, não entendemos isso com
clareza, porém, se essa mágoa voltou a atormentá-los, como vocês dizem, então tememos que a Sobra surja
mais uma vez e volte a crescer em seus corações; Portanto, embora vocês sejam os dúnedain, os mais belos
dos homens, que escaparam da Sombra de outrora e lutaram bravamente contra ela, nós lhes dizemos:
Cuidado! A vontade de Eru não pode ser contrariada. E os Valar recomendam com veemência que vocês não
neguem a confiança que lhes é invocada, para que ela não volte a se tornar um vínculo ao qual se acharão
presos. É melhor esperar que no final pelo menos os menores de seus desejos deem frutos. O amor por Arda
foi posto em seus corações por Ilúvatar, e ele não planta sem propósito. Mesmo assim, muitas gerações de
homens ainda não nascidos poderão passar antes que esse propósito seja conhecido. E a vocês ele será
revelado, não aos Valar.” (p. 337-338)
Aqui temos um exemplo diferente de todos os outros apresentados até este ponto. Não
se trata da prática da virtude, como temos visto, mas sim da falsificação e fingimento de tais
hábitos. Sauron, o maior e mais terrível servo de Morgoth, por meio de sua astúcia, conseguiu
escapar do destino de seu mestre. Fundou o centro de seu poder no reino de Mordor e lá
construiu Barad-dûr, sua fortaleza sombria. O Númenorianos, grandes em seu poder e
maiores ainda em sua soberba, decidiram pôr um fim à ameaça de Sauron à suas colônias na
Terra-média e marcharam contra o Maia. Ele, vendo que a majestade e poder destes era maior
do que supunha, finge se render e, em sua malícia, se passa por prudente e justo frente ao
homens do Império do Poente, buscando assim submetê-los à sua vontade perversa por outros
meios. Todavia, este não conseguiu convencer a todos os numenorianos com suabela
aparência e falsos conselhos, pois “o hábito de praticar o mal não é sabedoria; o modo de agir
dos pecadores não é prudência.” (Eclo 19, 19) Jesus, durante o seu ministério público acusou
em vários a hipocrisia dos fariseus, escribas e mestres da lei, que apresentavam uma
aparência virtuosa, mas não agiam de acordo com as virtudes de fato. Em um de seus
discursos contra o farisaísmo, Jesus os alerta dizendo: “ai de vós, escribas e fariseus
hipócritas! Sois semelhantes aos sepulcros caiados: por fora parecem formosos, mas por
dentro estão cheios de ossos, de cadáveres e de toda espécie de podridão. Assim também vós:
por fora pareceis justos aos olhos dos homens, mas por dentro estais cheios de hipocrisia e
iniquidade.” (Mt 23, 27-28) Sauron, da mesma maneira dos fariseus da época de Jesus,
93
apresenta-se como algo belo, mas que esconde dentro de si perversão, morte e ruína. Aqueles
que não se deixaram enganar por Sauron foram chamados de Fiéis, por permaneciam sujeitos
à sabedoria dos Valar e ao culto à Eru Ilúvatar.
“E Sauron veio. Mesmo de sua poderosa torre de Barad-dûr veio ele, sem fazer nenhuma menção de combate.
Pois percebia que o poder e a majestade dos Reis do Mar superavam tudo o que deles se dizia, de modo que
não poderia confiar que mesmo os melhores de seus servos a eles resistissem. E viu que ainda não chegara a
hora de fazer valer sua vontade com os dúnedain. E Sauron era astucioso, bem treinado para conquistar o que
quisesse pela sutileza quando a força pudesse não lhe ser mais útil. Humilhou-se, portanto, diante de
Ar-Pharazôn e controlou sua língua ferina. E os homens ficaram admirados, pois tudo o que ele disse parecia
justo e prudente.” (p. 344-345)
Sauron conseguiu, em grande parte, voltar os corações dos homens de Númenor para
a Sombra e criar uma inimizade entre estes e os elfos e Poderes do Oeste. Contudo, uma parte
destes não se deixou seduzir pela falsa prudência e justiça na fala de Sauron. Amandil,
temendo que as ações de Ar-Pharazôn contra Valinor tivessem consequências drásticas,
instrui seu filho Elendil para que, em segredo, levasse as forças e posses para a Terra-média.
Enquanto sua gente e aqueles Fiéis aos Valar escapavam para a Terra-média, o próprio
Amandil tinha outros planos: navegaria em segredo para as Terras Imortais e implorar a
clemência dos Valar em face aos pecados cometidos os Poderes do Oeste. Desta maneira,
Amandil revela-se prudente, pois reconhecendo o bem da razão, aconselha seu filho a
salvar-se, no caso de sua jornada revelar-se infrutífera. Elendil, seu filho, observa o conselho
de seu pai e mostra-se também prudente. Sobre Elendil é seguro direcionar o mesmo louvor
que recebe Salomão no Segundo Livro das Crônicas, quando recebe de Hiram, rei de Tiro
uma carta na qual diz: “Bendito seja o Senhor, Deus de Israel, que fez os céus e a terra, que
deu ao rei Davi um filho sábio, inteligente e prudente, que vai construir um templo ao
Senhor, assim como um palácio real.” (2Cr 2, 11c) Elendil é este filho sábio, inteligente e
prudente que tem como missão construir na Terra-média um reino que traga para as Terras de
Cá algo da bem-aventurança resultante da relação daqueles nobres homens de Númenor com
os Poderes do Oeste.
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“_ Ele não pode se tornar conhecido - respondeu Amandil. - Prepararei minha viagem em segredo, e
navegarei para o leste, para onde diariamente partem embarcações de nossos portos. Depois, como o vento e a
oportunidade permitam, darei a volta, pelo sul ou pelo norte, para o oeste, em busca do que puder encontrar.
Mas a você, meu filho, e à sua gente, aconselho que preparem outras naus e que nelas ponham todas aquelas
coisas das quais seu coração não conseguir se afastar. E, quando as naus estiverem prontas, fiquem no porto
de Rómenna e façam circular entre os homens a notícia de que pretendem, quando chegar a hora, me
acompanhar para o leste. Amandil já não é tão caro a nosso parente no trono, a ponto de deixá-lo muito triste
se procurarmos ir embora por um tempo ou para sempre. Porém, não deixe que se perceba que você pretende
levar muitos homens, ou ele ficará perturbado, por causa da guerra que agora trama, para a qual necessitará
de todas as forças que possa reunir. Procure os Fiéis que ainda são reconhecidamente leais e faça com que se
juntem a você em segredo, se estiverem dispostos a ir com você, e a partilhar seu intento.” (p. 351)
A última parte do livro nos apresenta três exemplos da virtude cardeal da prudência.
O primeiro deles vem dos elfos. Gil-galad, sucessor de Círdan, permaneceu na Terra-média
mesmo após a queda de Morgoth e a destruição de Beleriand e com ele permaneceu Elrond, o
meio-elfo, filho de Beren e Lúthien. Como visto acima, após a Guerra da Ira, Morgoth foi
expulso de Arda para o Vazio, mas seu lugar-tenente Sauron conseguiu escapar. Tomando
então para si uma aparência bela e sábia, Sauron se transformou em Annatar, o Senhor dos
Presentes, e desta maneira tentava influenciar e dominar todos os outros seres da
Terra-média; desejava acima de tudo dominar os elfos, pois estes eram o que possuíam maior
poder. Todavia, Gil-galad, senhor de Lindon, e Elrond desconfiavam de sua aparência e,
mesmo sem saber quem era na realidade, adotaram uma postura prudente frente a este
forasteiro poderoso que buscava aconselhá-los pois, sendo prudente, desconfiavam de sua
aproximação, sua aparência e suas promessas (cf. Eclo 9, 21)
“Sauron descobriu que os homens eram os mais fáceis de influenciar dentre todos os povos da Terra; mas por
muito tempo procurou convencer os elfos a lhe prestarem serviços, pois sabia que os Primogênitos tinham
maior poder. E andava livremente em meio a eles, e sua aparência ainda era de alguém belo e sábio. Somente
a Lindon não ia, pois Gil-galad e Elrond duvidavam dele e de sua bela aparência; e, embora não soubessem
quem ele era na realidade, não admitiam sua entrada naquele território.” (p. 365)
Entretanto, outros elfos o recebiam e de fato aprenderam muito com ele, pois no início
antes do tempo Sauron era um dos Maia de Aulë e conservou muito de seu conhecimento nas
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artes da forja e do trabalho com minerais e pedras. Sauron ensinou aos elfos de Eriador a
fazer Anéis de Poder e Celebrimbor, filho de Curufin, filho de Fëanor, era o maior ferreiro
dentre estes. Após forjarem juntos os Sete Anéis dos Anões e os Novo dos Homens,
Celebrimbor, suspeitando das intenções de Sauron, forjou três Anéis sem o conhecimento de
Sauron pois “o homem prudente oculta sua sabedoria; o coração dos insensatos proclama sua
própria loucura.” (Pr 12, 23). Quando este forjou o Um e colocou-o em seu dedo, logo os
elfos perceberam suas reais intenções e, por Sauron não ter havido maculado os Anéis
Élficos, este nunca os pode dominar. Em Celebrimbor cumpre-se o que é lido no livro dos
Provérbios, que afirma que “todo homem prudente age com discernimento.” (Pr 13, 16a)
“Os elfos, entretanto, não se deixariam apanhar com tanta facilidade. Assim que Sauron pôs o Um Anel no
dedo, eles se deram conta dele, reconheceram-no e perceberam que ele queria ser senhor deles e de tudo o
que eles criavam. Então, enfurecidos e cheios de medo, recolheram seus anéis. Sauron, porém,
descobrindo-se traído e vendo que não conseguira enganar os elfos, enfureceu-se. [...] No entanto, Sauron não
conseguiu descobri-los, pois eles haviam sido entregues nas mãos dos Sábios, que os ocultaram e nunca mais
os usaram abertamente enquanto Sauron manteve o Anel Governante. Portanto, os três permaneceram
imaculados, pois foram forjados somente por Celebrimbor, e a mão de Sauron nunca os tocou.” (p. 367)
“Os anões, de fato se provaram resistentes e duros de domar. É que eles não suportam o domínio de outros; e
é difícil descobrir o que se passa em seus corações; além disso, não podem ser transformados em sombras.”
(p. 368)
“Ora, Elendil e Gil-galad examinaram juntos a questão, pois perceberam que Sauron se fortalecia demais e
derrotaria todos os inimigos, um a um, se eles não se unissem para enfrentá-lo. Criaram portanto aquela liga
que é chamada de Última Aliança, e marcharam para o leste, para o interior da Terra-média, reunindo um
imenso exército de elfos e homens.” (p. 374)
outras duas obras de Tolkien: O Hobbit e O Senhor dos Anéis. Em sua menção em O
Silmarillion, Gandalf é descrito possuindo duas virtudes cardeais: a prudência e a fortaleza.
No que concerne sua virtude da fortaleza41, essa revela-se em sua bravura e sua vigilância.
“Ora, todos esses feitos foram realizados em grande parte graças aos conselhos e à vigilância de Mithrandir; e
nos dias finais revelou-se que ele era um senhor digno de enorme reverência; e, trajado de branco, entrou em
combate.” (p. 388)
41
Gandalf recebeu Narya, o Anel de Fogo, de Círdan assim que chegou aos portos cinzentos, pois este percebeu
que o Istari tinha uma grande missão pela frente. Este era um dos Anéis de Poder dos elfos e possuía o poder
de renovar as forças nos corações. Nenya,o Anel da Água pertencia à Galadriel; e Vilya, o Anel do Ar pertencia
à Gil-galad, passando à Elrond após a morte deste.
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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tal influência também não é mera especulação, já que o próprio autor reconhece, em
uma de suas cartas à um leitor, a influência dos valores cristãos e católicos em sua obra,
religiosidade esta que é absorvida pela história em si mesma e em seus símbolos. Outra
afirmação que acompanhou a análise desta pesquisa é a de que sua obra tornara-se católica
não por intenção, mas por força de seu inconsciente. A partir da fortuna crítica na qual
embasou-se essa pesquisa, podemos afirmar que o simbolismo tem por vezes sua origem no
99
inconsciente do autor, de onde surge como uma força de significação maior do que
inicialmente imaginado. Os símbolos, junto ao inconsciente do autor, caracterizam-se por sua
enorme capacidade de agrupar significados, apresentando-se dentro da literatura de diversas
maneiras.
O Fantástico Cristão, comum meio de expressão literária utilizada pela Igreja como
meio de disseminação de sua ideologia, possuiu durante toda a história manifestações
diferentes. A hagiografia; o gênero profético; o gênero apocalíptico; o teatro moralizador e os
relatos de sonhos fantásticos são apenas alguns exemplos desse gênero. A partir dos
resultados da pesquisa, todavia, podemos ver que as influências religiosas na literatura não
ficaram confinadas na Idade Média, mas fazem-se presentes em nossa contemporaneidade.
Prudência. Justiça. Fortaleza. Temperança. As quatro virtudes básicas para se ter uma
vida direcionada ao bem da razão poderam ser encontradas n’O Silmarillion em diversas
situações. Estivessem elas aparecendo em momentos de grande tensão, onde uma decisão
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deve ser tomada ou um grande mal resistido; seja na constituição própria das personagens,
que tem em si as virtudes de modo admirável; seja ainda em situações corriqueiras, nas quais
o caminho da virtude se revela mais como um hábito do que uma escolha momentânea.
A justiça mostra-se como a virtude que nos seus atos observa o bem, relativo ao
devido e ao reto entre os iguais. Dentro do texto literário de Tolkien esta virtude também se
fez presente, seja simbolizada em vários personagens - principalmente no Vala Mandos,
símbolo desta virtude, seja das várias atitudes das personagens, que precisavam tomar alguma
decisão e para tal usaram o bem da razão como juiz, assim como visto na Bíblia. Esta, por sua
vez, apresenta a virtude da Justiça como um dos hábitos mais louváveis e como um dos
principais responsáveis pela felicidade, pois através de uma vida justa o homem aproxima -se
de seu criador, que é chamado de Justo Juiz (cf 2Tm 4, 8).
A fortaleza é a virtude que nos dá a firmeza de ânimo contra quaisquer paixões, para
que não recuemos naquilo que mostra-se racional, e portanto, bom. Dentro da narrativa, esta
virtude, ao lado da virtude cardeal da prudência, também destaca-se, pois trata daquela força
que nós é necessária e nos faz resistir ao mal; força esta presente através dos Textos Sagrados
e da vida cristã como um todo. Assim como na vida cristã, a virtude da fortaleza na narrativa
de Tolkien é responsável por animar Valar, Elfos e Homens igualmente em sua luta contra o
Mal, real e que age livre e abertamente na realidade.
Por fim, a temperança, por sua vez, configura-se como a virtude responsável por
coibir as paixões sensíveis que nos impelem à algo contrário à razão, as reprimindo. Dentro
do texto de Tolkien, essa virtude foi a que mais se fez presente de maneira indireta, sendo a
humildade - virtude aplaudida dentro da narrativa bíblica a virtude que permeia todo o fluxo
narrativo. Os exemplos desta virtude que foram encontrados no texto centram-se
101
principalmente nos Ainur, criaturas angelicais criadas por Eru Ilúvatar, o Único, para o
auxiliar em sua criação: Eä, o Mundo que É.
Desta maneira, podemos então afirmar o caráter religioso das obras de Tolkien,
especialmente sua narrativa fantástica O Silmarillion. Esta obra, constituída como o Gênesis
de seu Universo Fantástico, mostra-se também como o gênesis da virtude em seus
personagens - já que sua narrativa não se finda nos relatos deste livro, mas continuam em
suas outras obras, onde da mesma maneira podemos enxergar a religiosidade velada
característica da literatura de Tolkien. Esta narrativa apresenta também extenso campo de
análise comparativa com outro texto de imensa importância na vida do autor: a Bíblia. Como
católico, Tolkien possuía uma ligação clara com a Sagrada Escritura, assim com os valores da
Tradição Católica, tão avidamente seguidos por este. Dentro de suas obras, e aqui fala-se
especificamente do Silmarillion, Tolkien exprimiu toda a sua religiosidade, a qual adquiriu de
sua mãe, de seu tutor e de sua própria relação pessoal com a Palavra, com os Sacramentos e
com a Santa Igreja Romana, através das personagens e das situações enfrentadas por estas.
102
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BÍBLIA, Português. 2012. Bíblia Católica do Jovem. São Paulo: Ave-Maria.
TOLKIEN, John Ronald Reuel. 2011. Silmarillion. São Paulo: wmf martins fontes.
Fundamentação Teórica
ALMEIDA, Eliana. 2000. Discurso religioso: um espaço simbólico entre o céu e a terra.
Campinas: Universidade Estadual de Campinas. Dissertação de Mestrado.
ALTER, Robert; KERMODE, Frank. 1997. Guia Literário da Bíblia. São Paulo: Editora
Unesp.
AQUINO, Santo Tomás de. 2016. Suma Teológica Ia IIae & IIa IIae. São Paulo: Editora
Ecclesiae.
ARANTES, Judith Tonioli. 2016. Fantasy e Mito em O Silmarillion de J.R.R. Tolkien. São
Paulo: Universidade Presbiteriana Mackenzie. Tese de Doutorado.
BRANDÃO, H. H. N. 2004. Introdução a Análise do Discurso. 2. ed. Campinas, SP: Editora
da Unicamp, 2004.
CAMBOIM, Aurora & RIQUE, Julio. 2010. Religiosidade e Espiritualidade de Adolescentes
e Jovens Adultos. Revista Brasileira de História das Religiões. ANPUH, Ano III, n. 7, Mai.
2010 - ISSN 1983-2850
CASEY, Damien. 2004. The Gift of Ilùvater: Tolkien’s Theological Vision. Sydney: The
Australian eJournal of Theology (AEJT).
CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. Disponível em: https://goo.gl/kzbJNz.
CAWELTI, John G. 1976. Adventure, Mystery, and Romance: Formula Stories as Art and
Popular Culture. Chicago: Chicago UP.
CIECELSKI, Luana Daniela. 2017. Uma leitura dos arquétipos nas personagens da
narrativa literária Harry Potter de J. K. Rowling. I ntercom – Sociedade Brasileira de
Estudos Interdisciplinares da Comunicação; XVIII Congresso de Ciências da Comunicação
na Região Sul – Caxias do Sul - RS
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