TESE Patricia Cruz 2021
TESE Patricia Cruz 2021
TESE Patricia Cruz 2021
Florianópolis
2021
Patrícia Postali Cruz
Florianópolis
2021
Patrícia Postali Cruz
Entre lavouras, abelhas e humanos: uma etnografia sobre práticas e
ritmos na agricultura na região de Pelotas, Rio Grande do Sul
________________________________________
Coordenação do Programa de Pós-Graduação
____________________________
Prof. Rafael Victorino Devos, Dr.
Orientador
Florianópolis, 2021
Este trabalho é dedicado ao meu filho, Noah, e ao meu
companheiro de vida, Fernando. Obrigada por
compartilharem as experiências da vida comigo.
Figura 1: Detalhe para a capina do fumo com a planta ainda em fase de crescimento.
.................................................................................................................................. 65
Figura 2: Detalhe para a capina do fumo e dos objetos técnicos utilizados .............. 66
Figura 3: Aplicação do fertilizante químico na lavoura de fumo. ............................... 67
Figura 4: Cavalo, máquina e agricultor trabalhando na lavoura de fumo para revirada
da terra e inserção do fertilizante no solo .................................................................. 68
Figura 5: Sesmarias na região da atual cidade de Pelotas/RS. ................................ 81
Figura 6: Localização das datas de matos, arroio Quilombo, charqueadas, Passo dos
Negros, cidade, tablada, logradouro público. ............................................................ 83
Figura 7: Altimetria dos municípios de Canguçu, Pelotas e São Lourenço do Sul.
Detalhe para o Escudo Cristalino Sul-Rio-Grandense onde está localizada a Serra dos
Tapes ........................................................................................................................ 85
Figura 8: Detalhe para a lona preta que cobre as bancas da feira ecológica na cidade
de Pelotas. .............................................................................................................. 104
Figura 9: Reportagem no jornal local sobre a criação do primeiro entreposto de
produtos ecológicos na cidade de Pelotas. ............................................................. 106
Figura 10: Plantação de cana-de-açúcar do agricultor Onécio................................ 108
Figura 11: Colheita da cana-de-açúcar produzida por Onécio para comercialização
nas feiras livres na cidade de Pelotas. .................................................................... 108
Figura 12: Visita guiada por Nilo em sua propriedade. Momento em que é evidenciada
a diferença nas propostas de cultivo pelas diferenças na paisagem com a propriedade
limítrofe.................................................................................................................... 111
Figura 13: Detalhe para a paisagem composta por diferentes espécies em função do
sistema de policultivo que consorcia espécies de interesse alimentício e espécies
espontâneas. ........................................................................................................... 111
Figura 14: Tela capturada de trecho de vídeo gravado com a câmera de ação fixada
na plantadeira manual de bico utilizada para plantio do feijão. ............................... 133
Figura 15: Detalhe para a plantadeira utilizada pela agricultora Evani. Câmera
utilizada: Canon EOS REBEL T5. 1/640 s f/8 55 mm. .................. 134
Figura 16: Exposição fotográfica OrganiCidade. Detalhe para a disposição da mostra
no Mercado Central de Pelotas. .............................................................................. 150
Figura 17: Detalhe para os cartões-postais nas mãos do casal de agricultores Onécio
e Evani .................................................................................................................... 151
Figura 18: Imagem que compôs a mostra fotográfica. Detalhe para o trabalho
cooperado entre agricultor e cavalo. ....................................................................... 153
Figura 19: Verso do cartão-postal da Mostra Fotográfica OrganiCidade. Design
gráfico: Hamilton Bittecourt ..................................................................................... 156
Figura 20: Fotograma do vídeo etnográfico EntreSERes ........................................ 160
Figura 21: Plantadeira manual de bico utilizada para plantio de semente de feijão.
................................................................................................................................ 169
Figura 22: Diagrama dos processos técnicos na lavoura de feijão ......................... 172
Figura 23: Máquina produzida pelo agricultor para formação dos canteiros na lavoura
de feijão ................................................................................................................... 179
Figura 24: Trabalho realizado na lavoura de feijão com auxílio do cavalo e máquina
produzida pelo próprio agricultor ............................................................................. 180
Figura 25: Condução do trabalho no preparo da lavoura de feijão.......................... 182
Figura 26: Detalhe para a marcação no solo e para as barreiras no entorno da lavoura
com vegetação espontânea. ................................................................................... 182
Figura 27: Gestos no plantio do feijão. Detalhe para a companheira de lavoura, a
cadela Madona ........................................................................................................ 183
Figura 28: Gestos no plantio do feijão com plantadeira manual .............................. 184
Figura 29: Detalhe para a linha de plantas espontâneas entre a lavoura de feijão e as
demais culturas da propriedade. ............................................................................. 186
Figura 30: Capina (revirada do solo) em lavoura de fumo. ..................................... 187
Figura 31: Osso da vaca Grampoula, hoje utilizado como artefato-memória
espalhados pela casa. ............................................................................................. 191
Figura 32: Cachorros acompanhando o trabalho de Onécio e Evani na lavoura .... 193
Figura 33: Evani e seu companheiro-cão Tupã no caminho para a lavoura. .......... 193
Figura 34: Touro no pasto sendo amarrado por Onécio. ......................................... 195
Figura 35: Diagrama que apresenta as temporalidades observadas no terreiro ..... 196
Figura 36: Porcos sendo alimentados com farinha e água no chiqueiro ................. 197
Figura 37: Vacas sendo alimentadas no campo com resto da cana-de-açúcar ...... 198
Figura 38: Automatização do moedor improvisada pelo agricultor Onécio ............. 199
Figura 39: Limpeza da cebola para ser comercializada na feira. ............................ 201
Figura 40: Colheita da beterraba para comercialização na feira. ............................ 202
Figura 41: Sucos de uva, nas caixas de plástico, sendo preparados para serem
carregados para a feira. .......................................................................................... 202
Figura 42: Apis mellifera - abelha europeia africanizada ......................................... 211
Figura 43: Detalhe para o caminho da traça da cera num caixilho velho ................ 213
Figura 44: Caixilho velho de caixa abandonada pela colmeia, traça da cera em estágio
avançado de habitação nos favos. .......................................................................... 214
Figura 45: Disposição do apiário em meio a vegetação nativa levando em
consideração os períodos de sombreamento e incidência solar. Foto demonstra o
sombreamento da área no período da tarde. .......................................................... 225
Figura 46: Sombreamento apiário feita pela mata nativa circundante no período da
tarde. ....................................................................................................................... 226
Figura 47: Dança do requebrado. À direita (acima) é mostrado o ângulo formado entre
a colmeia, o sol e a fonte de alimento. À direita (acima) está um quadro no qual é
mostrado a direção da dança executada pela dançarina no favo, na posição vertical.
Abaixo são mostrados os tipos de dança: 1- Dança em círculo; 2 – Dança da foice e 3
– Dança do Requebrado. ........................................................................................ 230
Figura 48: Detalhe para a polinização sendo feita pela abelha em flor de laranjeira.
................................................................................................................................ 232
Figura 49: Voo da abelha após polinização em flor de laranjeira ............................ 233
Figura 50: Ervilhaca em meio a plantas espontâneas ............................................. 243
Figura 51: Diagrama dos processos técnicos observados na produção do mel. .... 249
Figura 52: Mistura de própolis e álcool de cerais utilizada por Onécio na limpeza das
caixas de abelhas.................................................................................................... 251
Figura 53: Quadros e caixas do ninho em processo de manutenção pelo
agricultor/apicultor Onécio. ...................................................................................... 252
Figura 54: Caixa de abelha em desuso vista pela parte interna. Detalhe para a marcas
de cera nas bordas.................................................................................................. 253
Figura 55: Local em que Onécio estava realizando a manutenção nas caixas do ninho.
Material estava em frente à casa. ........................................................................... 254
Figura 56: Transporte das caixas de abelhas para realizar trabalho com a cera das
abelhas. ................................................................................................................... 255
Figura 57: Detalhe para a ferramenta produzida por Onécio com materiais que
estavam disponíveis no seu entorno durante o processo de inserção de lâmina de cera
no quadro. ............................................................................................................... 256
Figura 58: Detalhe para a disposição da lâmina de cera nos quadros da caixa do ninho.
................................................................................................................................ 257
Figura 59: Favo novo e com larvas, pupas e abelha adulta operária. ..................... 259
Figura 60: Favo velho e com alvéolos e pupas de zangões .................................... 259
Figura 61: Mosaico de um favo. O corte transversal de um favo apresenta a
configuração de um mosaico formado pela repetição de hexágonos regulares. ..... 260
Figura 62: Colmeia Langstroth completa: fundo, ninho, melgueira e tampa ........... 262
Figura 63: Detalhe para a disposição interna dos quadros na caixa de maneira
perpendicular a entrada da caixa. ........................................................................... 262
Figura 64 Detalhe para a disposição dos quadros na caixa Schenk paralelo a entrada
da caixa. .................................................................................................................. 263
Figura 65: Caixa-isca sendo colocada no campo para captura de novos enxames em
época de enxameação. ........................................................................................... 265
Figura 66: Enxame alojando-se em caixa isca ........................................................ 266
Figura 67: Fumigador tradicional ............................................................................. 268
Figura 68: Fumigador tradicional, detalhe para local onde se produzir fumaça. ..... 269
Figura 69: Retirada da cera dos alvéolos, com auxílio do garfo desoperculador, para
posterior extração do mel. ....................................................................................... 274
Figura 70: Centrífuga manual em funcionamento. .................................................. 275
Figura 71: mel centrifugado sendo despejado em bacia de plástico. ...................... 276
Figura 72: Processo de peneirada do mel. Detalhe para os restos de cera proveniente
da centrifugação. ..................................................................................................... 277
Figura 73: Mel embalado em potes plástico com pedaço de favo. .......................... 278
LISTA DE QUADROS
1 INTRODUÇÃO ......................................................................................... 15
1.1 Colher: práticas compartilhadas no cultivo da ervilha............................... 17
1.2 Como esta pesquisa ganha vida (ou uma trajetória de aprendizados sobre
vias de experenciar a agricultura) ............................................................................. 21
2.2 Do charque às terras de mato: fluxos de habitação da serra dos tapes ... 76
6.3 A dança das abelhas: uma comunicação por redundância .................... 228
1 INTRODUÇÃO
5
Foto 4: Vagens de ervilhas colhidas ainda em campo.
de moscas das frutas nas lavouras de pêssego. A intenção do projeto era monitorar o
desenvolvimento da “praga” nas culturas produzidas sem insumos químicos.
Surpreendentemente, a quantidade de espécimes, nos parâmetros do projeto
científico, era bem baixa. De fato, a presença de moscas das frutas na lavoura não
poderia ser considerada um problema a ser enfrentado. Um dos agricultores falava
regularmente aos pesquisadores que ali tinha comida para todo mundo, se todos
estivessem bem alimentados, todos tinham o seu lugar nas lavouras.
Eram mundos diferentes, de posições diferentes, tentando explicar situações
compartilhadas; nem sempre as traduções são simultâneas. Como aluna de Biologia,
eu tinha de voltar aos laboratórios e cumprir um protocolo de atividades; com
metodologias estabelecidas, prazos e vias de ação já programadas minha
responsabilidade na pesquisa estava direcionada aos indivíduos não-humanos,
isolados. Entretanto, o universo em que a agricultura está inserida é demasiadamente
heterogêneo, entremeada com a tecnologia, a sociedade, a Ciência, não cabendo em
modelos explicativos generalizantes. Mesmo com entradas tão específicas quanto o
estudo de patógenos em culturas de pêssego, eu sempre tive uma preocupação em
saber o que os agricultores pensavam sobre nossas perguntas de pesquisa. Com o
tempo fui percebendo que, por mais que houvesse um esforço para padronizar os
entendimentos sobre as dinâmicas ambientais e comportamentos dos não humanos,
nas lavouras sempre havia pontos discrepantes, seja na compreensão dos
agricultores, seja nas dinâmicas que se reinventavam constantemente. Aqueles
eventos e diálogos com os agricultores sempre me marcavam muito.
Além de motivações de pesquisas, eu era atraída cada vez mais aos espaços
da agricultura ecológica em função do meu desconforto com os descompassos
causados por um desenvolvimento tecnológico deslocado da realidade dos
agricultores familiares e, mais do que isso, por um modelo de conhecimento em que
o “outro” pouco tinha a dizer sobre a realidade em que vivia. Deste modo fui buscando
outros aportes teóricos, para além das ciências biológicas, a fim de refletir sobre as
dinâmicas heterogêneas das lavouras de alimentos e sobre o que os agricultores
tinham a dizer sobre isso tudo. Nesse percurso, encontro-me com a disciplina
antropológica, mais especificamente com a área da Antropologia Rural. Fui
percebendo, instigada pelos constructos teóricos da disciplina, que havia diferentes
formas de se compreender e de se praticar a agricultura. A percepção das paisagens
24
que “eu queria saber?” “o que eu estava fazendo ali?” - questionamentos que muito
ouvia em campo, no meio das nossas conversas.
Assim, como se dá a integração do conhecimento na experiência diária de
agricultores e pesquisadores? Como eu compreendo e descrevo isso tudo? Isto não
quer dizer que se trate de pensar somente a racionalização dos processos, mas,
também, de pensar como as memórias incorporadas nos fluxos das matérias acionam
mecanismos de ação e resposta em certas circunstâncias nos diferentes tempos em
que vivemos.
Assim, importa-me pensar e descrever como o empreendimento de fazer
etnografia, conjuntamente com a história da disciplina e com o decorrer da pesquisa
de campo, deixa muitas vezes, em segundo plano, descrições em torno das formas
de integração do conhecimento, mais precisamente na relação entre sincrônico e
diacrônico. Seja no âmbito teórico da disciplina, seja em análises mais plurais que
procurem dar conta da complexidade em que vivem os sujeitos, compreendo que a
relação entre o passado e as práticas exercidas no presente são conexões
fundamentais para o preenchimento de certas lacunas que surgem ao longo do
trabalho de campo. Nas linhas seguintes procuro apresentar brevemente noções de
teorias clássicas da Antropologia que auxiliaram na composição das linhas reflexivas
e argumentativas desta pesquisa antropológica.
Apesar de haver sempre alguma arbitrariedade na escolha de um ponto de
partida de uma discussão histórica, por mais que seja breve como aqui será feita, eu
decidi tratar de alguns pontos importantes do percurso da disciplina em torno do fazer
antropológico, a partir de autores como Franz Boas (2004), Malinowski (1978) e
Clifford Geertz (2013). Primeiro, foram esses autores que, de certa forma, quando eu
ingressei na Antropologia e, principalmente, quando comecei a ministrar disciplinas
nos cursos de graduação em Antropologia e Ciências Sociais na Universidade Federal
de Pelotas, delimitaram percursos teóricos e ideias referentes ao método que foram
essenciais para a minha compressão do empreendimento de fazer etnografia.
Segundo, porque entendo que temos discrepâncias interessantes entre as propostas
desses autores que podem estruturar o que este capítulo se propõe a fazer: pensar
as dissidências e os encontros entre sincronia e diacronia no fazer antropológico, a
fim de iluminar discussões de pesquisa para o universo rural.
27
Importante também observar que essa discussão que segue não provém de
um ponto de vista externo hipotético, mas a partir da perspectiva da autora dessa tese
conjuntamente com as reflexões desenvolvidas ao longo da experiência docente e das
reflexões em campo com os próprios agricultores. Mais do que isso, a graduação em
Antropologia, na Universidade Federal de Pelotas, e a conseguinte atuação docente
nos cursos de graduação da mesma instituição – a qual tem uma agenda de pesquisa
importante sobre a diversidade do mundo rural da região – me incentivaram a pensar
os desdobramentos das pesquisas antropológicas a partir dos próprios sujeitos do
campo. Nesse sentido, o esforço que faço aqui em situar as teorias clássicas da
antropologia conjuntamente com o estudo das transformações do rural provém deste
processo de formação. Uma formação em que o Outro, no caso, agricultores e
ambientes, compõe o conhecimento apreendido ao longo das discussões teóricas do
curso. Os tão ditos ‘lugares de fala’ talvez apareçam aqui como um ponto crucial na
compreensão desse caminho teórico-metodológico.
Mas, afinal, o que me leva a querer discutir teoria antropológica na introdução
de uma tese sobre técnica e agricultura? Qual a importância de se pensar a história
no presente etnográfico? Compreender as escolhas técnicas de cada grupo familiar
se refere a um arsenal de vivências individuais e coletivas, tomadas no tempo
presente em constante diálogo com saberes e conhecimentos apreendidos. Assim, as
reflexões de escrita desta tese não poderiam partir apenas da temporalidade da
pesquisa de campo do doutorado, ela permearia os diversos aprendizados e as
vivências construídas com os agricultores desde as pesquisas de iniciação científica.
É nesse sentido que as temporalidades se intercruzam ao longo desta escrita. Em um
constante vai e vem, minhas experiências e as experiências dos colaboradores da
pesquisa são convocadas para situar ao leitor entendimentos e reflexões sobre
fazeres.
Vejamos em Franz Boas, por exemplo, suas pré-etnografias já nos alertavam
sobre a importância de os estudos antropológicos atentarem para a história dos
grupos estudados. Parecia supérfluo esse chamado, mas esse era o ponto crucial do
chamado particularismo-histórico proposto pelo autor, o qual permite ao antropólogo
perceber as trajetórias históricas de cada povo não somente como efeitos, mas,
principalmente, como causa. Boas (2004, p.87) defendia que “classificar não é
explicar” e que se deve compreender os “fenômenos chamados etnológicos e
28
4 Influenciada por Herbert Spencer, a teoria evolucionista clássica postulava sobre o desenvolvimento
da sociedade em estágios contínuos dentro de um percurso unilinear […] os evolucionistas percebiam
as sociedades não europeias como grupos inferiores na escala social, grupos que chegariam à
evolução tal quais os europeus com o passar do tempo. O que as diferentes culturas representavam
para a teoria evolucionista era um espelho de seu passado, ou seja, grupos distintos estavam em uma
escala evolutiva em vias de se tornarem como a sociedade europeia, que, por se autodeterminar a
sociedade mais evoluída, já havia passado por todos os estágios culturais anteriores. (SOILO, 2014,
p.253).
5 CRUZ, Patrícia Postali. Mapeando a rede ecológica na região de Pelotas: um estudo etnográfico
sobre a organização e a construção de sentidos da rede local. 2015. 165 f. Dissertação (Mestrado em
Antropologia) - Instituto de Ciências Humanas, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2015.
29
Na antropologia do fim dos anos 50, o kit do bricoleur teórico consistia em três
paradigmas principais: o funcionalismo estrutural britânico (herança de A. R. Radcliffe-
Brown e Bronislaw Malinowski); a antropologia cultural e psicocultural norte-americana
(herança de Margaret Mead, Ruth Benedict et al.); e a antropologia evolucionista
31
possibilidade para uma antropologia do século XXI. Com propostas que privilegiam a
relação etnográfica, Wagner aponta que, mais do que delimitar parâmetros para o
estudo da cultura, o trabalho do antropólogo/a está pautado numa objetividade relativa
na qual sua própria cultura permite compreender a outra. A noção de invenção aponta
aqui para um processo que ocorre de forma objetiva, por meio da observação e do
aprendizado da realidade do outro.
É nesse sentido que a pesquisa da qual trata esta tese não busca estudar
uma cultura camponesa, nos moldes dos estudos dos antropólogos culturalistas, mas
busca experienciar e relatar algo que é singular ao mesmo tempo em que é
compartilhável. Singular, pois se refere ao que as pessoas fazem em uma dada
temporalidade, numa dada paisagem a partir da materialidade e da vida que os
rodeiam. Compartilhável, pois diz respeito àquilo que pode ser trocado, que pode ser
ensinado e, mais do que isso, que será guardado na memória ativa dos coletivos e
resgatada sempre que necessário. Seja via uma prática de como fazer mel, seja via
uma narrativa da luta geracional em habitar as terras de mato, realizar pesquisa com
agricultores é se embretar em uma história que desafia os conceitos lineares de
apreensão do mundo moderno. Esta pesquisa é uma antropologia em construção.
Assim, para Wagner, o/a antropólogo/a experiencia a realidade dos
interlocutores de sua pesquisa. Essa experiência constitui, então, o elo entre as
culturas, a do antropólogo e a dos interlocutores, em função da vivência em ambos.
Nesse sentido, invenção se daria no tocante à relação e ao conhecimento gerado a
partir da experiência. A percepção dos processos sociológicos e simbólicos bem como
sua significação só fazem sentido enquanto processos dialéticos. Diferentemente de
Geertz, não se faz necessário aqui conceituar a cultura, mais importante é uma ciência
que seja capaz de compreender “nós” e “eles” como Humanos e não apenas como
cultura. Dessa forma, há um distanciamento das classificações unificadas de mundo
e da utilização dessas classificações para o entendimento de outros mundos.
34
7 Quanto ao conceito de moderno segue definição de Latour (2004, p.380): “não designa um período,
mas uma forma de passagem do tempo; modo para interpretar um jogo de situações, tentando dele
extrair a distinção entre fatos e valores, estados do mundo e representações, racional e irracional,
Ciência e sociedade, qualidades primeiras e qualidades segundas, de maneira a traçar entre o passado
e o futuro uma diferença radical que permita exteriorizar definitivamente o que não se levou em conta”.
37
entre pessoas, bichos, plantas e fatores ambientais – como clima, estações do ano,
fases da lua, vento etc. – e, compreender as escolhas técnicas e materiais
desenvolvidas a partir de conhecimentos especializados e acumulados ao longo de
experiências cotidianas, imersas em um processo histórico específico. A agricultura,
nesta perspectiva, não fala somente sobre cultivares, mas sobre a relação entre
pessoas, meio e técnicas empregadas.
Levando em consideração que o desdobramento da pesquisa se dá em torno
de arsenais técnicos em ambientes com policultivo, faz-se necessário evidenciar a
abordagem que se faz nessa pesquisa acerca da técnica. A noção de tecnologia,
analisada a partir de uma visão sistêmica, coloca a relação entre homem e matéria
como um ato de produção, que é definida pela atividade humana, a qual leva a
compreender a materialização das técnicas como sendo “Cultura Material”. Como
aponta Mura (2011, p. 96), a produção de um objeto enquanto “cultura material”,
representa assim, a passagem do “natural” para o “artificial” – ou o cultural, se preferir.
Além disso, acrescenta o autor, essa contraposição não é entendida entre elementos,
pois Homem e Natureza expressam aqui uma ideia abstrata de totalidades.
Por influência de um pensamento cartesiano, a noção contemporânea de
tecnologia é formulada muito em função de uma racionalização e mecanização do
processo de produção. Como aponta Ingold (2000), compreender a produção
enquanto uma ação sobre a Natureza é um passo essencialmente moderno. Descola
(2012) define que um posicionamento marxista sobre a temática da produção é um
indicativo de uma tendência moderna geral de pensamento que coloca a produção
como um elemento determinante das condições materiais da vida social e a principal
forma na qual os humanos transformam a Natureza e, fazendo isso, transformam-se
a si mesmos.
The idea of production as the imposition of form upon inert matter is simply an
attenuated expression of the schema of action that rests upon two
interdependent premises: the preponderance of an individualized intentional
agent as the cause of the coming-to-be of beings and things, and the radical
difference between the ontological status of the creator and that of whatever
he produces.8 (DESCOLA, 2012, p. 459)
8 Tradução livre: “A ideia de produção como a imposição de forma sobre a matéria inerte é
simplesmente uma expressão atenuada do esquema de ação que se apoia em duas premissas
interdependentes: a preponderância de um agente intencional individualizado como a causa do vir-a-
ser de seres e coisas, e a diferença radical entre o status ontológico do criador e de tudo o que ele
produz”.
39
que compõem o repertório de possibilidades (ver MURA, 2011, p. 111) que constituem
um cenário técnico.
Production is a process of growing, not making. The farmer, and for that matter
the raiser of livestock, submits to a productive dynamic that is immanent in the
natural world itself, rather than converting nature into an instrument to his own
purpose […] those who toil on the land – in clearing fields, turning the soil,
sowing, weeding, reaping, pasturing their flocks and herds, or feeding animals
in their stalls – are assisting in the reproduction of nature, and derivatively of
their own kind.9 (INGOLD, 2000, p.81).
Naify, 2015.
41
de técnica a partir da noção de “ato tradicional eficaz”. Como aponta Di Deus (2017,
p. 25):
outro fazer”12, já que ambas as partes são agentes, sejam elas humanas ou não.
Assim, todos os eventos incluem ações, mas nem todos são necessariamente
intencionais. É a partir da famosa tipologia das formas elementares de ação em Leroi-
Gourhan (1972 [1945], p. 47-52), ideia inspiradora de Carole Ferret, que podemos
pensar em possíveis tipos de ações em determinada atividade executada pelo sujeito.
Brevemente, uma ação pode ser descrita como ativa, passiva ou intervencionista. A
distinção central é entre ações ativas – doing or making – e passivas – not doing or
making. A ação intervencionista é um pouco mais um subconjunto do primeiro; ela é
caracterizada pelo fato de o sujeito empregar uma grande quantidade de atividades
com o objetivo de transformar radicalmente o objeto. Em qualquer caso, a
classificação de uma ação é sempre relativa a outras ações possíveis, outras
variações técnicas (Lemonnier, 1980).
O objetivo de apresentar esse arcabouço teórico não é uma busca por
classificação dos diferentes tipos de ação; o importante, analiticamente, é buscar
compreender, ao longo da pesquisa etnográfica, qual ação as pessoas escolhem do
leque de ações disponíveis. Esse ponto é fundamental para voltar à hipótese inicial e
apontar que os membros de sociedades particulares estão inclinados, ou não, a
determinados tipos de ação em seu comportamento, em relação à natureza e em
relação ao outro.
Nessa perspectiva, os apontamentos de Carole Ferret (2014) são abordados
como uma maneira possível de pensar as ações que estão sendo feitas em
determinado processo histórico. Assim, as ações seguem mais para uma questão de
inclinação, a qual se aproxima da noção de “escolhas técnicas” de Lemonnier (1993),
numa relação entre dinâmica social e técnicas empregadas. Esta perspectiva aponta
um olhar dinâmico para as técnicas desenvolvidas, o qual será importante para a
descrição das diversas atividades desenvolvidas pelos agricultores no cuidado com
plantas e bichos. Além disso, trata-se de compreender as práticas de agricultores
ecologistas no Sul do Brasil enquanto um processo inventivo e criativo, apto a
transformações constantes.
Ademais, para os objetivos deste trabalho, a noção de “eficácia” é um termo
fundamental para refletir sobre as escolhas técnicas e seus desdobramentos. Esse
12 Tradução livre de “making the other do”, de acordo com o exposto por Carole Ferret no artigo
“Towards an anthropology of action: From pastoral techniques to modes of action” (2014).
43
termo auxilia a dar conta das diferentes concepções do que é uma prática relevante
para as pessoas que fazem. Além disso, ressalto aqui que eficaz não é
necessariamente chegar em determinado objetivo, mas pode ser, também, uma
aprendizagem, a aquisição de habilidades, a melhoria de determinada técnica
empregada. Eficácia não é um dado bruto, ela é diferente a partir do objetivo da ação.
Como aponta Ferret (2016), a eficácia é um complexo de capacidades de ação em
termos que implicam efetivamente sobre o que as pessoas dizem e por que querem
fazer daquela maneira. Assim, a eficácia tem a ver com o poder que uma determinada
ação tem em produzir determinado efeito.
É importante considerar também que, por mais que o desenvolvimento de
uma atividade busque determinado efeito a partir da aplicação de um arsenal técnico,
a noção de “linhagem técnica”, a partir das ideias de Simondon (1989 [1958]), traz um
aporte importante para pensar as transformações ocorridas em uma escala temporal.
Assim, num fluxo que não é constante, o estudo do desenvolvimento de uma prática
revela controvérsias e discrepâncias, em que a perda, o erro e o inesperado também
desenvolvem efeitos em um “sistema técnico”13. Essas ações inesperadas podem,
muitas vezes, levar a transformações nas práticas desenvolvidas, configurando,
assim, numa aprendizagem quanto às possibilidades técnicas em uma atividade. Esta
questão nos leva a outro ponto fundamental no aporte teórico desta tese: ambiente e
técnica são fenômenos indissociáveis.
As ações no desenrolar das atividades produtivas, como é o caso da
agricultura, são tratadas aqui enquanto prática mediadora das relações entre humano,
não humanos e materialidades. Nessa perspectiva, aponto ao leitor, desde já, que não
faria o menor sentido pensar que todos os seres podem agir da mesma maneira nas
mesmas situações. Há limites nas possibilidades de ação de cada ser envolvido em
uma determinada tarefa. Assim, perspectivas teóricas e analíticas serão abordadas,
nesta introdução, a fim de alargar as possibilidades de reflexão em torno do fazer
13 “ […] todas as técnicas são, em grau diverso, dependentes umas das outras, e é necessário que
haja entre elas uma certa coerência: este conjunto de coerências nos diferentes níveis de todas as
estruturas de todos os conjuntos e de todas as fieiras compõe o que se pode chamar de um sistema
técnico. E as ligações internas, que garantem a vida desses sistemas técnicos são cada vez mais
numerosas na medida em que se avança no tempo, na medida em que as técnicas se tornam cada vez
mais complexas” (GILLE, 1978, p.19).
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Tsing (2012) aborda pontos que são importantes para o desenrolar desta pesquisa.
Destaco aqui duas questões centrais: a) a noção de perturbação é chave para pensar
as relações, nos diferentes níveis em que elas podem se dar, enquanto potência
transformadora; b) os humanos não são a chave para tudo, sendo as ações humanas
apenas uma maneira de rastrear os feitos de outros seres.
Assim, a dinâmica de pesquisa desta tese se desenrola em torno dos fazeres
de agricultores ecologistas, no extremo sul gaúcho, e das relações particulares
desenvolvidas, a partir daí, com ambientes, materialidades, arsenais técnicos e com
os demais participantes com os trabalhos nas lavouras. Fazer agricultura é
compreendido aqui enquanto um processo de invenção e transformação,
desencadeados por ritmos e níveis distintos de ação de humanos e não humanos.
Além disso, busco compreender estes fazeres a partir de processos históricos de
habitar a paisagem da Serra dos Tapes14.
No contexto da pesquisa a paisagem é parte do efeito da eficácia que se
busca: seguir habitando essa paisagem como parte dela, como produtor de alimentos
e manejador das terras de mato. Nas conversas e histórias narradas a paisagem
aparece como um arquivo das relações técnicas e multiespécie circunscritas no
ambiente. Não há dúvidas que se você tiver a graça de visitar algumas destas famílias
de agricultores ecologistas a conversa se dará em meio a uma caminhada na
propriedade, com vistas ao entorno e uma descrição dos tempos climáticos que a terra
e seus congregados de plantas passam a cada ano. A paisagem é parte do social.
14 “A Serra dos Tapes compreende a região serrana dos municípios de Canguçu, Pelotas e São
Lourenço do Sul.” (SALAMONI; WASKIEVICZ, 2013, p.75).
15 Tradução livre do trecho: “Ecological restoration programs around the world use human action to
rearrange natural landscapes. What distinguishes satoyama revitalization,for me, is the idea that human
activities should be part of theforest in the same way as nonhuman activities. Humans, pines,
matsutake,and other species should all make the landscapetogether, in thisproject”.
47
que elas moravam. Ficamos apavorados, sem saber o que fazer. Um vizinho nos falou
que o melhor a se fazer era entrar em contato com o Leopoldo que provavelmente
estaria próximo dali. Ligamos, muito rapidamente, ele veio. Leopoldo muito calmo,
colocou a caixa logo abaixo do enxame, borrifou um líquido que ele chamou de
chamarisco, olhou para nós e prontamente disse que, a partir dali nada poderíamos
fazer. Se elas quisessem, iriam embora, se elas quisessem, voltariam para a caixa;
ao amanhecer as abelhas foram embora.
Ao contrário de Leopoldo, estávamos muito nervosos e tristes por ter perdido
um enxame. Em meio ao meu desconhecimento, eu não tinha compreensão dessa
liberdade de que os coletivos poderiam ir embora. Na ilusão capitalista e citadina, lá
no fundo, eu pensava, ora, eu tinha comprado aquelas caixas, aquelas abelhas eram
agora “minhas”, como assim iriam embora? Elas foram. Era uma caixa a menos no
meu cálculo quantitativo. Um pretenso exercício de controle sobre estes seres estava
enraizado no meu imaginário com as abelhas16.
Esse foi um daqueles episódios dos ensinamentos que o trabalho de campo
escancara em nossa frente e, de fato, precisamos de um tempo para assimilar.
Inicialmente, eu havia proposto observar e participar, nesta pesquisa de doutorado,
das relações entre agricultores e coletivos de plantas. Observar os fazeres de
agricultores tinha como objetivo central uma atenção à relação entre interesses dos
agricultores e o que é possível ser feito a partir das características de cada coletivo 17
de plantas. Não havia atentado, de antemão, para os fazeres, intencionais ou não,
dos coletivos de animais que participam do habitar destes agricultores. Se as relações
sociais são as formas pelas quais os modos de vida são organizados, podemos nem
sempre estar no comando das socialidades. Como aponta Tsing (2013), podemos
16 Faço alusão aqui ao conceito de domesticação conforme descrito por DETURCHE (2020, p. 66):
“Domesticação pode ser definida como um meio de ação sobre a natureza, o exercício do controle e
transformação dela na direção escolhida pelos humanos. Esta perspectiva, apesar de sistematicamente
criticada, permanece enraizada no imaginário ocidental e pauta as discussões contemporâneas sobre
domesticação, sugerindo a persistência e necessidade de contrapor-se a essa visão hegemônica.”
17 A noção de coletivo de plantas exposta aqui faz referência a uma conversa que tive com um
interlocutor de minha pesquisa de mestrado na qual ele afirma que não há como pensar em exemplares
sozinhos de plantas. É diferente do gado, dizia ele. “O gado tu pode ter uma cabeça ou mil cabeças,
eles vão viver bem, na lavoura não. Não dá pra ter um pé de couve, o que tu faz com um pé de couve.
Nunca vi uma planta sozinha crescer bem. A força delas (contra as pragas, ele se referia) tá nelas
juntas.” Assim, a noção de coletivo que trago aqui acrescenta também a ideia de um ambiente interativo
que permite a manutenção, crescimento e sobrevivência de certos coletivos de espécies.
51
19 A agroecologia é uma ciência que surge na década de 1970 como forma de estabelecer uma base
teórica para diferentes movimentos de agricultura alternativa que então ganhavam força com os sinais
de esgotamento da agricultura moderna. No entanto, apesar de ser um termo que surgiu junto às
diferentes correntes da agricultura alternativa, não deve ser entendida como uma prática agrícola. É
uma ciência que busca o entendimento do funcionamento de agroecossistemas complexos, bem como
das diferentes interações presentes nestes, tendo como princípio a conservação e a ampliação da
biodiversidade dos sistemas agrícolas como base para produzir autorregulação e consequentemente
sustentabilidade.” (ASSIS e ROMEIRO, 2002, p.72).
20 “[…] iremos considerar Agricultura Orgânica e Agricultura Ecológica como sinônimos. Entretanto,
salientamos que vem crescendo a percepção que adjetiva como ‘orgânica’ aquela agricultura que visa
a produção de alimentos limpos para um mercado diferenciado e de ‘ecológica’ a forma de se trabalhar
na agricultura que busca um redimensionamento da relação do ser humano com a natureza e com o
outro, em bases mais harmônicas e solidárias, e que tem no mercado diferenciado uma consequência
e não um fim em sim mesmo.” (MEIRELLES, 2003)
58
21Essa noção/distinção do termo com veneno é amplamente utilizada pelos agricultores. Eles a utilizam
para diferenciar o trabalho que desenvolvem atualmente dos demais agricultores das regiões onde
moram. Mais do que uma prática, plantar com veneno diz respeito a uma ética, ou falta dela, no trato
com a terra. Além disso, deixa evidente que a forma com que produzem alimentos é diferente dos
demais. É uma categoria de valorização dos seus modos de fazer agricultura.
59
A venda dos produtos ocorria por meio de um atravessador, retornando pouca renda
para os agricultores.
Conjuntamente, criam vacas leiteiras para a produção de leite e derivados
como nata e queijo. Evani conta que os fazeres despendiam bastante mão de obra
humana e o retorno financeiro era pouco. Com o tempo, a utilização de insumos
químicos (veneno) nos pomares de pêssego preocupava os agricultores. A filha mais
nova do casal era pequena na época; eles relatam que era um problema deixar as
crianças soltas na propriedade, pois tinham medo de que fossem para o pomar de
pêssego.
Conversando com Evani sobre o assunto ela evoca um caso recente.
Pergunta-me, por sinal, se eu não havia passado por um cortejo fúnebre na minha ida
à casa dela, pois uma criança recém-nascida havia falecido e estava sendo velada na
vila da Coxilha dos Campos – localidade onde residem. Narrou a história da mãe, uma
mulher de 42 anos que trabalhou durante toda a gestação nas plantações de fumo e
de pêssego, as duas com veneno. Disse que o marido a sobrecarregava demais, que,
mesmo grávida, ela aplicava veneno nas plantações e participou de toda a colheita do
fumo22. Contou, também, sobre o caso de uma vizinha que foi na lavoura de pêssego
depois que o marido tinha aplicado veneno na lavoura e havia esquecido de avisar a
família; a mulher foi para o hospital e, em seguida, faleceu. Ela acrescenta que nunca
soube de nenhum caso em que os médicos indicassem, de fato, que a pessoa faleceu
por veneno, mas a gente sabe que foi por causa disso.
A utilização de veneno na lavoura que era cultivada para venda e a consequente
dependência da compra dos insumos químicos fez o casal de agricultores repensarem
as práticas agrícolas que estavam implementando no local. Em quesito de sustento
da família, a organização do trabalho era muito arriscado. Estava baseada em,
majoritariamente, dois alimentos: frutas in natura e leite. Qualquer elemento que
22O fumo é uma das plantas de maior incidência de cultivo entre os pequenos agricultores da região.
Pelos agricultores ecologistas o cultivo do fumo não é bem-visto. Não somente por se tratar de um
plantio com veneno, mas, principalmente, pela demanda laboral que esse coletivo de plantas exige da
mão de obra humana. Interessante contrapor aqui com a percepção dos próprios produtores de fumo
estudados por Seraphim (2019, p.32) que apontam que os venenos “trabalham ou fazem serviço”
diminuindo então a demanda do “tempo de enxada” dos humanos.
60
Monocultivo é coisa pra gente grande, pequeno não dá pra ficar plantando desse jeito,
se perder, perde tudo.
Em nossas conversas em meio aos fazeres da lavoura eu perguntava para o
casal de agricultores por qual razão, então, eles ficaram tanto tempo trabalhando com
agrotóxicos e baseando os cultivos da venda em monoculturas. De prontidão eles
descrevem que só plantar não adianta, tem que ter onde vender; naquela época não
era que nem hoje, não tinha as feiras, não tinha como competir com eles.
Interessante ressaltar aqui que, mesmo com a implementação de lavouras para
comercialização com técnicas propostas pela modernização agrícola, os agricultores
mantiveram a lógica da propriedade de pequeno tamanho: a policultura. Intercalar os
tempos de plantio e colheita nas diferentes lavouras é um cálculo fundamental para
estes agricultores. É uma forma eficaz de diminuir os riscos das perdas, as quais são
inevitáveis.
Assim, plantar com veneno é um risco que Onécio e Evani decidiram não correr
mais. A transição para outra agricultura que fosse possível na realidade deles foi um
trajeto longo e demorado. Aos poucos, eles foram trabalhando apenas com as vacas
leiteiras, mas o ganho acabava sendo pouco, o que levou eles a pensarem em
alternativas produtivas. Nesse percurso de transformações, um espaço de articulação
importante para os agricultores foi as instituições religiosas. As Igrejas Católica e
Luterana podem ser citadas, no contexto da região, enquanto um dos principais
agentes neste processo que auxiliou na formação de coletivos de agricultores
ecologistas. Na narrativa dos agricultores, organizar-se em grupos foi o que efetivou
a operacionalização de fazer agricultura sem veneno em função dos mecanismos
criados para o escoamento da produção individual.
A proposta de produzir um alimento ecológico – ou do jeito que se fazia antes
de entrar essa indústria toda aí no campo – articularia tanto possibilidades de
manutenção de técnicas acumuladas no conhecimento das famílias quanto a relação
e organização em grupos de agricultores; facilitando, assim, a comercialização dos
alimentos cultivados. Num processo técnico em que se trabalha com a natureza, fazer
agricultura é lidar com riscos e incertezas. Onécio explica que o policultivo, formato
de cultivo que desenvolvem na propriedade, dá uma margem maior para as perdas –
ponto inerente ao fazer agricultura em ambientes abertos e pouco controlados. A
62
gente tem bastante coisa plantada aqui, se a natureza impedir que uma variedade
cultivada venha bem, outra certamente virá.
Assim, nas trajetórias de permanência com o trabalho na lavoura e na busca
por modelos produtivos que fossem mais eficazes à realidade dos agricultores, Onécio
aponta que a efetivação dos projetos individuais de cada família só era possível se
eles se organizassem em coletivos de agricultores. A agricultura eficaz, aos olhos de
quem habitava ambientes dinâmicos e diversos, deveria estar organizada em torno de
coletivos. Coletivos de humanos – capazes de facilitar/organizar a via do consumo e
travar lutas políticas enquanto grupo representativo. Coletivos de não humanos –
capazes de superar perturbações de forma mais eficaz que os cultivares solitários.
Mais ainda, os coletivos são singulares. Sejam os grupos de humanos, sejam as
lavouras diversas, as relações que dão forma a estes coletivos são singulares.
Isso nos leva a um ponto importante para o argumento desta pesquisa
antropológica: a agricultura desenvolvida por estes agricultores ultrapassa a noção de
um modelo técnico em específico. Por mais que os agricultores tenham discernimento
das fronteiras entre os diferentes modos de fazer crescer vidas transformadas em
alimentos, uma técnica agrícola eficaz não vai ser deixada de lado por ser
compreendida como fazendo parte de um universo ou de outro. A exemplo, gostaria
de relatar uma experiência que vivenciei com o casal de agricultores Iracema e Alvino.
O casal foi criado pra fora23. Com uma experiência de vida na lavoura, eles
contam que os pais produziam o sustento da família com o que vinha da terra. Iracema
e Alvino se casaram bem no período em que plantar sem veneno deveria se tornar
obsoleto. Numa constante contradição entre o que fora aprendido com suas famílias
e com as demandas de mercado atuais, a lavoura do casal é um misto. Numa gleba
à direita de quem sobe o morro da propriedade temos uma pequena lavoura de fumo
ainda em germinação, à esquerda temos cenoura, estufas de morangos e pequenas
linhas de quebra vento feitas de bambu. Numa gleba incorpora-se o uso de
fertilizantes químicos – em pouco quantidade – em outra gleba o cultivo dos alimentos
é feito através da composição orgânica e o trabalho conjunto com não humanos.
Aos olhos dos defensores de um determinado modelo agrícola, a prática do
casal é muito mal vista. Nas feiras, os rumores que corre solto, é que o morango deles
é muito bonito, se usam veneno no fumo quem diz que não usam na comida também.
Voltando a ideia do alimento não como um resultado, mas enquanto uma síntese do
que foi realizado num dado período, um morango bonito vindo de uma propriedade
que desenvolve práticas mistas é passível de desconfiança.
O fumo, assim como a soja e o arroz na região, são esses cultivares
canonizados como a exemplificação do que são as práticas agressivas ao ambiente
e, ao mesmo tempo, formatos de cultivos que deveriam ser abolidos – num plano de
um discurso político ambientalista e social. Foi Iracema quem me ensinou que na
prática as coisas não são bem assim. O fumo, enquanto planta, é um cultivar assim
como os seus vizinhos morangos e cenouras. Ela me dizia que quem planta com tanto
veneno é quem não sabe como a planta vive. Me levou, nesse dia, até o ninho de uma
ave pequena, bastante comum na região, normalmente chamada como carroxinha,
carruíra ou corruíra24. Ela costuma fazer ninhos em locais baixos, quase rasteiros e
as folhas grandes do fumo se torna um abrigo importante para esta espécie. Evani
então me questiona: se tivesse tanto veneno e a planta fosse tão ruim assim tu acha
que uma mãe ia escolher as folhas do fumo como abrigo pro seu filho?
O processo histórico de formação do fazer agricultura ecológica na região não
parte de uma ruptura ou da ideia da produção de um conceito totalmente novo sobre
os aparatos técnicos para a produção de alimentos. Ele é a escolha por uma
transformação que articula temporalidades diversas e preconiza “novas relações, de
caráter amistoso”, conforme proposto por Haudricourt (2013, p. 6). Além disso, a
agricultura está intimamente ligada com os padrões de energia ambientais, assim, a
partir das ideias expostas por Geertz (1963), podemos propor que os agricultores
organizam um engenhoso dispositivo para a exploração de um habitat para o
redirecionamento da energia entre diversos sistemas vivos em alimentos para
consumo humano e para a alimentação da vida ali presente. Mais do que um
espécime, mais do que um modelo, o fazer agrícola se desenvolve em processos, em
uma coexistência entre seres vivos e padrões energéticos emaranhados em
temporalidades longas.
Surpreendentemente, foi o fumo, imerso em uma paisagem destoante dos
modelos da agricultura conservadora, que me abriu uma janela para perceber os
processos agrícolas singulares em cada ambiente. Seja pelo lugar inesperado em que
Figura 1: Detalhe para a capina do fumo com a planta ainda em fase de crescimento.
Além disso, era aplicado fertilizante químico de forma manual também em toda
lavoura. Como me relatou Iracema, as pessoas fazem uma imagem muito má do fumo
e ele não é tudo isso […] hoje a pessoas podem escolher o que vão querer do pacotão
que a empresa vende; antes a gente era obrigado a comprar tudo, hoje não. O casal,
então, escolhe por usar apenas o fertilizante químico. A agricultora e a vizinha – a qual
trabalha ali nos dias que tem atividades mais intensas – iam passando de linha em
linha do plantio despejando os flocos de fertilizante, que elas carregavam dentro de
um balde de vinte quilos, ao lado das plantas de fumo, no solo.
67
Na lavoura de baixo Alvino estava usando a trilhadeira, feita por ele, presa no
cavalo. Lembro que no dia estava bem quente. O cavalo já era um animal bem velho,
os acompanhavam nas atividades da propriedade desde o casamento deles. Naquele
dia, o animal estava bem cansado. Suava muito, parava no meio do trabalho, as vezes
se negava a prosseguir. Alvino largava a trilhadeira e ia buscar água para dar a ele.
O cavalo, a máquina e o agricultor iam e voltavam em cada espaçamento das linhas
plantadas com fumo para revirar a terra e inserir o fertilizante no solo. A atividade dele
era desenvolvida posteriormente à atividade de Iracema na lavoura de fumo. As
práticas empregadas nas atividades com o cavalo, eram muito semelhantes com as
que eu havia observado na lavoura de feijão ecológico de Onécio e Evani quando
estavam preparando a terra para receber as sementes do feijão.
68
Figura 4: Cavalo, máquina e agricultor trabalhando na lavoura de fumo para revirada da terra e
inserção do fertilizante no solo
25Tradução livre de: Situating miracle rice in a tangle ofrelationships that are made and unmade through
recursive difference moves us awayfrom considerations of human agency as the exclusive mover and
shaker of historical change, and human mastery as its exclusive goal.
26 Tradução livre de: When we speak of ecological analysis we are concerned not with "explaining the
territorial arrangements that social activities assume [...] the regularities which appear in man's
adaptation to space," but with determining the relationships which obtain between the processes of
external physiology in which man is, in the nature of things, inextricably embedded, and the social and
cultural processes in which he is, with equal inextricability, also embedded.
70
27Trecho retirado de livreto da Pastoral Rural que tive acesso a partir dos agricultores.
71
28Ibid.
29 Para Graziano Neto (1985, p. 27) [...] a chamada modernização da agricultura não é outra coisa,
para ser mais correto, que o processo de transformação capitalista da agricultura, que ocorre vinculado
às transformações gerais da economia brasileira recente.
72
No início do trabalho de base das eclesiais, havia uma pauta comum entre as
entidades: auxiliar na organização dos agricultores familiares em coletivos, a partir de
demandas organizadas entre os próprios agricultores. Em pesquisa de campo
anterior30, pude observar que a articulação entre as duas entidades religiosas
desempenhou papel fundamental no processo de organização dos agricultores da
região. Numa espécie de reconhecimento com a causa camponesa, as entidades
religiosas acabaram reforçando questões ligadas a um “saber ecológico tradicional”31.
Há, em certa medida, uma manutenção de hábitos ligados ao fazer agricultura em
meio à procura dos agricultores por alternativas de manter-se na propriedade agrícola.
Assim, o trabalho das eclesiais – a partir de assistências técnicas, visitas a
experiências com agricultura ecológica e cursos de formação – dá suporte, aos
agricultores locais, às possibilidades de manutenção e permanência do/no trabalho
na terra.
Nesse contexto, a modernização conservadora (ou Revolução Verde) toma
força no meio rural a partir da década de setenta como prerrogativa de
desenvolvimento do setor primário. Altieri (2004, p. 8) a define enquanto:
30 CRUZ, Patrícia Postali. Mapeando a rede ecológica na região de Pelotas, Rio Grande do Sul: um
estudo etnográfico sobre a organização e a construção de sentidos na rede local. Disponível em:
<http://repositorio.ufpel.edu.br:8080/handle/ri/2775>. Acessado em: 02 jul.2016.
31 Este conceito é utilizado em acordo ao explicitado por Cunha (2009, p.306): “Costuma-se chamar
de saber ecológico tradicional ao conhecimento que populações locais têm de cada detalhe do seu
entorno, do ciclo anual, das espécies animais e vegetais, dos solos etc.”
73
[...] então a gente conseguiu fazer todo esse resgate né, de uma cultura lá do
começo da história da humanidade né. Porque lá no COMEÇO DA HISTÓRIA
DA HUMANIDADE30, não existia semente híbrida, adubo, calcário, veneno
de espécie alguma né, então as COISAS ERAM TUDO BEM NATURAL,
então a gente começou a fazer esse trabalho, utilizando bastante a bíblia né,
utilizando como exemplo ela né, o livro de Gênesis da construção e assim por
diante [...] (ROSA, agricultora ecologista).
[…] os cursos e as visitas lá do início deram ideias boas pra fazer na lavoura
daqui de casa. A Igreja liberava os ônibus daí a gente ia na casa de outros
agricultores que já tavam há mais tempo que nós e a gente foi vendo que
dava certo, e depois vinha pra cá e sempre ia aprimorando né […] (ONÉCIO,
agricultor ecologista).
32 Vide exemplos: “Pelotas, uma cidade com muita história pra contar”. Disponível em:
/http://viajantemaduro.com.br/pelotas-uma-cidade-com-muita-historia-pra-contar/ Acessado em: 17 de
março de 2020; “História e fotos”. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/rs/pelotas/historico
Acessado em: 17 de março de 2020.
77
Fragata, Moreira e Canal de São Gonçalo; mas a grande maioria dos cerca de 40
saladeiros que chegaram a funcionar na região, simultaneamente, durante o século
XIX, localizou-se às margens do arroio Pelotas (LONER, 2016, p. 15).
Na outra divisa, o território do município apresenta altas altitudes com
ocorrência de matas-galerias, vegetação arbustiva e campos herbáceos. A região que
compreende as altitudes elevadas, coxilhas, como os moradores costumam chamar,
é definida pelos geógrafos como Serra dos Tapes.
34Tradução livre do trecho original: “The forms of individual trees, the age and size structure of forests,
the physical structures of terraces and buildings, are evidence of longue durée encounters between
humans, plants, animals, fungi,bacteria, and soils. This is a story of the relations between capitalism,
state formation, and plant colonization; of the lively capacity of nonhumans to escape human
imaginations; and of the ways that diferen forms of human politics have emerged rom encounters
between particular humans and particular nonhumans” (MATHEWS, 2017, p.146).
35 Importante ressaltar que o processo de habitação da paisagem é anterior à chegada da corte
portuguesa na região de Pelotas, sendo o território vastamente ocupado por diferentes populações
indígenas. Como aponta Milheira (2014, p.38) “A “Serra dos Tapes”, conhecida também como Serra do
Sudeste, tem esse nome devido à presença os índios “Tapes”, os quais, segundo Gutierrez (2001, p.
32), foram descritos em função das guerras travadas em defesa de suas terras ainda no século XVIII.”
Além disso, o bioma pampa era habitado por indígenas Pampeanos (Charruas e Minuanos) e a região
litorânea por indígenas da etnia Guarani. Assim, gostaria de deixar claro ao leitor que, para fins de
estudo mais detalhado das formas contemporâneas de habitação, não será tratado sobre as diferentes
ocupações indígenas. Entretanto, ainda vale ressaltar, que não descarto a importância das práticas
agrícolas das populações indígenas para os fazeres das agriculturas ecológicas da
contemporaneidade. A presença do conhecimento indígena é evidente em práticas e alimentação
atuais no rural estudado nessa tese, as quais pretendo evidenciar ao longo da descrição etnográfica.
80
36 As terras de mato são caracterizadas, principalmente, pela mudança de altitude das paisagens.
Enquanto os campos sulinos possuem baixa altitude e um relevo nivelado levemente ondulado, as
terras de mato é a região montanhosa da metade sul do Rio Grande do Sul, localizada abaixo do Rio
Camaquã. As terras de mato têm topografia serrana com ondulações de até 430 metros de altitude.
Por ser uma área de transição entre relevos, as terras de mato apresentam tanto áreas com vegetação
rasteira e herbácea, característica do bioma pampa, e áreas compostas por vegetação floresta
estacional semidecidual, característica do bioma Mata Atlântica. Assim, as terras de mato se definem
entre as atividades produtivas e o bioma que proporciona tal atividade. Enquanto o Bioma Pampa
possibilita a produção em larga escala das atividades pastoris, a terra íngreme e de coxilhas da Serra
dos Tapes possibilitou a divisão das terras em pequenas propriedades e, em função da fertilidade do
solo, uma agricultura diversa.
81
o Logradouro Público. Conhecido pelo nome de Tablada, esse local passou a abrigar
uma série de comércios. Do gado que vinha das estâncias e seguia para as indústrias
de salga e toda uma série de produtos alimentícios que eram comercializados no local,
a região da Tablada caracterizou um dos primeiros centros urbanos e comerciais na
região de Pelotas. O núcleo saladeiril pelotense gerou a cidade; as charqueadas se
instalaram e se desenvolveram nas chamadas “sobras” da sesmaria do Monte Bonito.
(GUTIERREZ, 2001, p. 107).
A sesmaria do Monte Bonito resultou num dos locais de maior densidade de
escravos do estado do Rio Grande do Sul. Com um complexo econômico bastante
denso, o qual era apoiado por toda uma via de comunicação terrestre, lacustre, fluvial
e marítima, possibilitava a expansão do núcleo saladeiril pelotense. No século XIX, a
mão de obra escrava aumenta consideravelmente na região. Apesar de haver uma
entrada significativa de escravos, no século XVIII, a expansão das charqueadas após
a divisão das sesmarias possibilitou o incremento de escravos em número cada vez
maior.
Figura 6: Localização das datas de matos, arroio Quilombo, charqueadas, Passo dos Negros,
cidade, tablada, logradouro público.
alfaiate, entre outros. Ou seja, pouco da alimentação consumida nas charqueadas era
produzida na região.
Helen Osório, em seu importante trabalho intitulado O Império Português no Sul
da América: estancieiros, lavradores e comerciantes (2007), aponta que havia
produção agrícola de alimentos básicos na maioria das charqueadas, o que ela acaba
por definir como uma unidade produtiva mista combinando pecuária e agricultura. Os
inventários analisados pela autora referenciam o plantio de trigo, mandioca, feijão,
milho e até algodão. Apesar dos charqueadores permitirem o plantio e a composição
de roçados na maioria das estâncias locais, parte do alimento consumido era
produzido nas colônias de São Leopoldo, compreendida pelo governo local como uma
colônia modelo de imigrantes europeus. Havia tanto a compra de alimentos quanto a
troca dos excedentes das charqueadas, principalmente o trigo.
Na metade do século XIX, ocorre um declínio da produção de charque em
função da perda de mercado para saladeiros platinos. Somado a isso, o aumento
populacional crescente nos centros urbanos, a dificuldade de acesso a uma
diversidade de alimentos e o interesse da administração municipal de Pelotas em
introduzir a agricultura na economia do Município acabam proporcionando um cenário
propício para especuladores e empresários locais realizarem o projeto de colonização,
nos moldes europeus modernos, da Serra dos Tapes.
Figura 7: Altimetria dos municípios de Canguçu, Pelotas e São Lourenço do Sul. Detalhe para o
Escudo Cristalino Sul-Rio-Grandense onde está localizada a Serra dos Tapes
Podemos observar, de acordo com a figura 3, que a Serra dos Tapes, contida
no Escudo Cristalino Sul-Rio-Grandense, em função de sua altimetria elevada, não
proporcionava a utilização das terras para a produção de reses. Assim, a partir da
década de 50 do século XIX, empresários começam a contratar famílias de imigrantes
para se alocarem na região.
A primeira colônia com intentos agrícolas data de 1849. Um ano antes, o
Governo Provincial autorizou a criação de uma colônia agrícola denominada São
Francisco de Paula, entretanto, a colônia não saiu do papel por ser julgada inoportuna
pelo Presidente da província. Isso não impediu que a colonização não se
desenvolvesse. Em 1849, cria-se a Colônia Dom Pedro II em terras de Antônio Rafael
dos Angos. Como aponta Grando (1984), a colônia compunha-se de 48 lotes que
foram entregues a aproximadamente 300 colonos irlandeses chegados de Liverpool.
Os colonos irlandeses foram progressivamente ocupados com o trabalho na lavoura
e no fabrico de manteiga.
86
37 São Lourenço do Sul é uma cidade que, atualmente, faz divisa com Pelotas. No século XIX o
território da cidade fazia parte da sesmaria de Pelotas. Apenas em 1884 a freguesia do Boqueirão,
nome dado à cidade, se emancipou de Pelotas.
38 Segundo Kliemann (1986, p.21) a lei de Terras de 1850 e o Regulamento de 1854 estabelecem
que a aquisição de terras devolutas, a partir de então, seria feita através da compra, em hasta
pública, reservando-se a 10 léguas de fronteira, bem como as terras para colonização indígena,
fundação de povoados, abertura de estradas, construção naval e de estabelecimentos públicos.
Consideravam-se terras devolutas as não cultivadas em poder do Estado ou as posses não
legitimadas. Isso fez com que o governo imperial tivesse que se preocupar em legitimar as antigas
posses e medições.
87
o limite de fronteiras definido pela Lei vigente da época. Além disso, os valores
praticados na venda das terras eram mais altos que os permitidos pelo proposto na
Lei de Terras.
Assim, com o patrimônio territorial drasticamente diminuído em função dos
embates com o judiciário, o Estado é forçado a deixar os proveitos da colonização à
iniciativa privada. Os órgãos fiscalizadores da colonização são retirados
definitivamente e inicia-se um processo de superfaturamento das terras devolutas.
Além disso, com a concentração de terras em poucos proprietários surgem diferentes
problemas fundiários. Em documentos da Diretoria de Terras e Colonização,
analisados por Kliemann (1986), fica evidente que, a partir de 1880, houve conflitos
entre a empresa e os colonos. Entre as reivindicações dos colonos estavam questões
como a medição de terras, a ausência de garantia de propriedade dos colonos e o
preço alto dos lotes vendidos pelos empresários. Importante salientar que os dois
primeiros pontos levantados ocorrem devido ao fato de que, mesmo após a venda de
lotes para colonos, ocorriam invasões às propriedades compradas por eles ou era
solicitada, em inquérito judicial, a posse das terras39 por empresários locais.
Grando (1984) aponta que os primeiros lotes vendidos em 1859, pela empresa
Rheingantz, custavam 300$000 réis; em 1877, o valor subiu para 600$000 réis; em
1886, o colono tinha que pagar, no mínimo, 1.200$000 réis por um lote que tinha em
média de 20 a 30ha.
39 Para maiores detalhes sobre ilegalidades recorrentes na colonização da Serra dos Tapes ver
Kliemann (1986, cap.1).
88
uma distinção, através do domínio empresarial sobre a terra, entre, por um lado, um
campo escravista, de grandes extensões de terras e sob domínio de pessoas
influentes da região, e, por outro lado, uma floresta ocupada por unidades familiares,
de poucos hectares, e uma pobreza inerente ao histórico de colonização da floresta,
na Serra dos Tapes.
Diferentemente de outras colônias de imigrantes europeus do estado do Rio
Grande do Sul, como, por exemplo, a região Serrana, no nordeste do Estado –
composta por alemães, austríacos e italianos –, e a região de São Leopoldo –
majoritariamente composta por imigrantes alemães –, as quais foram incentivadas e
organizadas pelas políticas de colonização da Província do Estado, as colônias do Sul
estavam intimamente ligadas com um processo de exploração e concentração de
riquezas da elite local.
Nesse sentido, entendo que, para os objetivos dessa tese, é importante
compreender que o processo de ocupação das terras de mato, enquanto um
empreendimento empresarial, organiza um rural baseado na desigualdade. Por mais
que a Lei de Terras possuísse regras específicas para uma pretensa reforma agrária,
a efetivação da política pública de fato nunca ocorreu na região. As ações dos
empresários locais, além de muitas configurarem atos ilegais, aumentavam cada vez
mais o processo de concentração de riqueza em torno das posses de terras.
Assim, atualmente, a área rural da Serra dos Tapes, na região de Pelotas, se
organiza em pequenas propriedades, organizado majoritariamente em torno da
agricultura familiar produtora de gêneros alimentícios e de fumo. Importa ressaltar,
também que a dicotomia entre campo/floresta se mantém. Enquanto o campo detém
grandes extensões de terras e organiza a produção em torno de cultivos de
exportação, a organização social na floresta mantém certas características centrais
da colonização histórica do território. Podemos observar, enquanto consequência
deste formato de ocupação, uma intensa marginalização e pobreza das famílias de
agricultores da região. O processo se agrava com a Revolução Verde, que causa uma
imanente dificuldade de permanência na terra em função das mudanças das técnicas
agrícolas impostas pelo modelo produtivo.
No processo de formação da paisagem da Serra dos Tapes, a agricultura se
insere em processos de perturbação que modificam a diversidade da paisagem local.
Proponho, então, pensar a história da agricultura na região enquanto um processo de
89
40 Oriza sativa
41 Glycine max
42 A definição de propriedade familiar que consta na legislação brasileira está disposto no inciso II do
artigo 4º do Estatuto da Terra, estabelecido pela Lei nº 4.504 de 30 de novembro de 1964, com a
seguinte redação: “propriedade familiar: o imóvel que, direta e pessoalmente explorado pelo agricultor
e sua família, lhes absorva toda a força de trabalho, garantindo-lhes a subsistência e o progresso
social e econômico, com área máxima fixada para cada região e tipo de exploração, e eventualmente
trabalhado com a ajuda de terceiros”
90
43 Nicotiana tabacum
44 Prunus persica L. Batsh
91
Neste contexto, compreendo que os fluxos dos alimentos ecológicos podem ser
um caminho interessante para refletirmos sobre a forma como essas temporalidades
se relacionam no contemporâneo. De planta a alimento, da colônia à feira o fluxo das
mercadorias ecológicas, inscrita em redes curtas de comercialização, nos possibilita
pensar, também, sobre os arranjos da paisagem atual enquanto uma estrutura
herdada dos processos coloniais/imperiais desta região, ao mesmo tempo em que as
feiras ecológicas, e os fluxos possibilitados por elas, apontam possibilidades de
ruptura de parte desses arranjos.
As plantas que alimentam a cidade ainda partem das terras de mato. Num
percurso longo, por estradas sinuosas com subidas e descidas, o destino dos
agricultores nas madrugadas de sábado, são as terras baixas, próximas aos antigos
saladeiros. As bancas de alimentos montadas em vias públicas ainda são a principal
ferramenta de acesso aos compradores, moradores da cidade. A grande procura
pelas feiras livres na cidade é parte do cenário estruturado pela colonização. “As feiras
livres são hoje a expressão cristalina destas relações, que, no decorrer dos anos,
assumem um traço decisivo na matriz cultural da cidade de Pelotas, como uma
espécie de ponte entre a urbe e as suas colônias” (GODOY, 2005, p. 93).
De acordo com Hallal do Anjos (2000), a proximidade das colônias agrícolas
alocadas nas Serra dos Tapes de dois grandes centros consumidores e, também,
exportadores foi um dos fatores decisivos na ocupação destes ambientes, além da
boa fertilidade do solo e da disponibilidade de vias de escoamento dos produtos.
do século XIX. Como aponta Godoy (2005), há uma intensificação nos trânsitos entre
o interior e a província de Pelotas em função do comércio de alimentos e lenha
produzidas nas terras de mato.
45 Em trabalho de campo anterior (CRUZ, 2015) observei que as principais instituições religiosas
que participaram ativamente do processo de formação dos grupos de agricultores ecológicos na
região foram Igreja Católica através da Pastoral Rural e Igreja Luterana através do Centro de Apoio
ao Pequeno Agricultor (CAPA). Em relação às instituições científicas grupos de professores e alunos
da Universidade Federal de Pelotas realizaram trabalho, conjuntamente com agricultores e Igrejas, na
formação de consumidores locais.
46 “A Lei nº 11.947/2009 determina a utilização de, no mínimo, 30% dos recursos repassados
pelo FNDE para alimentação escolar, na compra de produtos da agricultura familiar e do
empreendedor familiar rural ou de suas organizações, priorizando os assentamentos de reforma
agrária, as comunidades tradicionais indígenas e comunidades quilombolas (de acordo com o Artigo
14). A aquisição de gêneros alimentícios será realizada, sempre que possível, no mesmo município
das escolas. As escolas poderão complementar a demanda entre agricultores do território rural,
estado e país, nesta ordem de prioridade. A Lei é regulamentada pela Resolução nº 26, do Conselho
Deliberativo do FNDE, que descreve os procedimentos operacionais que devem ser observados para
venda dos produtos oriundos da agricultura familiar às Entidades Executoras.” Disponível em:
<http://portal.mda.gov.br/portal/saf/programas/alimentacaoescolar> Acessado em: 04 jun. 2014.
47 “O Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) é um instrumento de estruturação do
desenvolvimento da agricultura familiar, acionado após a etapa final do processo produtivo, no
momento da comercialização, quando o esforço do pequeno produtor precisa ser recompensado com
recursos que remunerem o investimento e a mão-de-obra e lhe permita reinvestir e custear as
despesas de sobrevivência de sua família. Considerado como uma das principais ações estruturantes
do Programa Fome Zero, o PAA constitui-se em mecanismo complementar ao Programa Nacional de
Agricultura Familiar (Pronaf). Instituído pelo art. 19 da Lei nº10.696, de 02 de julho de 2003, e
94
Além disso, entre os anos 2001 e 2002, a cooperativa passa a contar com um espaço
físico no centro da cidade de Pelotas. Além de sediar as reuniões da cooperativa e do
próprio CAPA, o local abriga um novo ponto de comercialização de produtos
ecológicos e de venda direta ao consumidor. Uma espécie de uma pequena feira de
alimentos in natura e de venda de produtos processados em indústrias da região,
principalmente de iniciativas do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra.
Nesse quadro, o Estado Brasileiro, na esfera federal, passa, a partir dos anos
2000, a intervir na normatização48 dos modos de fazer agricultura orgânica, visto que
se intensifica o fluxo de alimentos ofertados e a procura de consumo cada vez maior.
Esse conjunto de normativas busca produzir um arsenal de legislações que
enquadrem os sistemas de produção orgânica dentro das práticas e dos processos
previstos pela ciência agroecológica. De certa forma, os agricultores, neste percurso,
tendem a se adaptar às normativas impostas pela legislação específica da Agricultura
Orgânica. Desde o Sistema Participativo de Garantia49 (certificação participativa) à
venda de alimentos por programas de aquisição pelo governo federal, os agricultores
vão sendo solicitados a inserir novas práticas de comercialização (indireta) e a cultivar
novas plantas alimentícias.
Apesar deste breve adendo sobre a rede em que os agricultores e as
agricultoras estão inseridos voltarei a atenção à feira de alimentos na cidade Pelotas.
Primeiro, pelo fato de que a maior parte do que é produzido é comercializado neste
espaço público. Segundo, por ser na relação entre agricultor e consumidor que as
definições do que produzir e do que comer são atualizadas – mas não,
Hoje pela manhã me dirigi à feira ecológica na Avenida Dom Joaquim na cidade de
Pelotas. Há tempos não ia para a feira tão cedo. Minha primeira impressão foi de
espanto quanto ao aumento significativo de consumidores no local. Talvez fosse o
tempo, uma mescla de frio e calor com um sol encoberto por nuvens, mas que já
trazia um respiro bom depois de tantos dias de chuva. As barracas dos feirantes
chegaram cedo da madrugada, quando cheguei, às 6 horas e 30 minutos, as bancas
e os alimentos já estavam expostos e muitos consumidores já estavam no local. A
procura maior era pelos morangos e bananas maduras, produtos normalmente
escassos na feira. Me posicionei primeiramente próxima dos consumidores, ouvindo
seus diálogos e pechinchas quanto ao preço e perguntas sobre a procedência dos
produtos. Reparei também os diversos “tipos” de clientes ali presentes, alguns
clientes regulares que fazem as suas encomendas de um dia de feira para a outra.
Estes clientes selecionam a compra dos melhores produtos, daqueles produtos
escassos que dificilmente serão encontrados expostos nas bancas, como: o
morango, a banana madura, a carne (de frango ou de porco), o leite de vaca, entre
outros – a depender da época do ano. Outros clientes pouco frequentam ou estão
ali a conhecer pela primeira vez. As perguntas destes consumidores muitas vezes
têm a ver com a procedência do produto seguido de explicações dos produtores do
que é um alimento ecológico, como eles costumam chamar, nos quais são evocados
temas como a saúde da terra e do solo, da qualidade do produto, do bem que este
96
alimento faz à saúde humana quando comparado com a falta de nutrientes que um
alimento convencional teria. Conversei com alguns consumidores conhecidos meus,
a maioria era colegas da faculdade ou colegas da Embrapa. O sentimento que tenho
é a vontade que essas pessoas têm da rede crescer. Lembro da fala do Irajá,
pesquisador da Embrapa, e da Rosimeri, doutoranda da agronomia e extensionista
rural da EMATER, eles recém tinham chegado de um evento em Frederico
Westphalen sobre sementes crioulas. Se mostraram muito entusiasmados com o
grupo de mais de quinhentas pessoas que participaram do evento. Demonstraram
espanto pela quantidade de pessoas que tinha no evento, ainda mais por ter sido
realizado numa cidade com uma produção forte no agronegócio sendo uma das
instituições mais fortes lá de extensão e assistência rural a Federação dos
Trabalhadores na Agricultura no Rio Grande do Sul (FETAG). A conversa entre os
extensionistas e os agricultores da feira girava em torno da ideia de que a
Agroecologia era uma possibilidade real de “combate” ao agronegócio. Irajá
ressaltou diversas vezes que era a Agroecologia aquela ali da feira, a Agroecologia
dos pequenos, da agricultura familiar, das pequenas propriedades agrícolas, das
revoluções diárias nas propriedades agrícolas que faria a diferença na luta contra
as injustiças do agronegócio. A conversa se estendeu para os trabalhos
desenvolvidos por cada um. Rosimeri e Irajá realizam pesquisas e trabalham com
guardiões de sementes em comunidades quilombolas no litoral norte do Estado.
Falaram aos agricultores do seu projeto de iniciar gravações para a produção de um
documentário destas mulheres, me falaram para participar caso eu tivesse
interesse. Em seguida, então, falei da minha ideia produzir um audiovisual simples
a partir das práticas dos agricultores na lavoura. Começamos a conversar então
sobre a importância deste tipo de trabalho nas comunidades e afirmaram que se eu
precisasse eles seriam parceiros nessa “empreitada”. Após esse tempo de imersão
no lado de lá da banca eu passei, então, a ajudar os agricultores na venda dos
produtos. O primeiro lugar que fiquei, e aí não sei o motivo dessa escolha, foi na
banca do Alvino e da Iracema, agricultores protestantes e associados da ARPASul
e da Sul Ecológica. De produtos o que eles tinham na banca era morango, feijão,
flores, cenoura, milho, tempero verde, couve folha e alface. Alvino é um cara
bastante brincalhão, é bem difícil ter uma conversa séria com ele. Ele passa
brincando com as pessoas da feira, sejam clientes, sejam outros feirantes. Se tem
97
um assunto que ele sempre fala é o futebol do final de semana da comunidade que
ele mora. O filho dele também joga lá. Depois do jogo sempre tem churrasco e até
baile. É o momento de descontração, como ele mesmo diz. Ele, também, sempre
convida para ir trabalhar lá nas terras dele que tem bastante serviço. Num dado
momento ele saiu para comprar alguma coisa para comer num posto ali perto, aí eu
fiquei sozinha com Iracema. Ficamos ali tendo papo de mulher, como ela diz. Me
falou de quando se casou com o Alvino. Muitas mulheres “sobravam” na
comunidade e como ela era magrinha sempre achavam que eu passava fome.
Conheceu Alvino numa festa de comunidade que digamos assim, não era de
ninguém, era festa de brasileiro com caboclo (que eu entendi que para ela eram
negros). Aí perguntei como assim “não era de ninguém”? Me retorna ela dizendo
que na comunidade não tinha nem italianos nem alemães, quem era os caras
trabalhadores né, só tinha brasileiro e caboclo ali, aí a comunidade foi se formando
bem devagar. Alvino voltou, com um pastel e uma Coca-Cola. Enquanto os dois
comiam fiquei ali vendendo os produtos na banca para eles. Vendi bastante feijão,
morango e cenoura. A procura dos consumidores não era só pelos alimentos, mas
era também pelos produtores. Sempre me perguntavam onde estava o Alvino que
queriam “prosear” um pouco com ele. Quando os dois voltaram para a banca alguns
consumidores que haviam lhes procurado retornaram para conversar e fazer
encomendas para a próxima semana. Um deles tinha pedido mudas e sementes de
algumas ervas, ao perguntar quanto ele cobraria por aquilo ele retornou que não
precisava pagar nada, que a ideia era que aquilo ali se multiplicasse. Depois fiquei
um tempo na banca do Nilo. Estavam como ele o seu filho mais velho e sua nora.
Na banca do Nilo a maior procura eram pelos vinhos e sucos de uva. Na banca dele
já tinha uma variedade maior de produtos. Tinha couve-flor, brócolis, flores,
mandioca, laranja, geleias, compotas de frutas, bolachas, pães e cucas. Muitos
consumidores queriam ser atendidos pelo próprio Nilo, esperavam ele se liberar
para conversar com ele, trocar ideias sobre épocas de plantio, eventos que ele fosse
participar, mudas de espécies nativas e, claro, encomendas de alimentos para a
semana seguinte. Como tinha bastante gente na banca ajudando-o, acabei
trabalhando pouco. Ajudei mais em dar o troco e vendi pouca coisa. Em seguida já
iniciou a reunião semanal da associação e a reunião de organização do aniversário
98
que eles ainda não confiam muito em mim não. Sempre levantam a dúvida de “será
que tu consegue fazer isso?” Voltando para a reunião. Ela ocorreu em roda, num
canto da feira, sentados em cima das caixas de plástico. Estava presente, também,
um biólogo idealizador do projeto “pedal rural” que é um grupo de pessoas da cidade
que saem de bicicletas a conhecer propriedades rurais e o entorno das
propriedades. O projeto é uma parceria com a EMBRAPA. No dia do almoço de
comemoração da festa vai ter a opção de ir para a casa do Nilo de bicicleta com o
grupo. Nilo falou que as estradas estão bem ruins para ir para a casa dele. Com a
chuvarada toda que deu ele falou que tem trechos que está bem difícil de passar de
carro. Ele falou que se começar a chover essa semana é melhor adiar o evento.
Propuseram enquanto data secundária entre os dias 21 e 22 de novembro. Essa
semana fiquei de ir à casa do Nilo para ajudar alguns pontos que ele precisa
confirmar e para voltar à propriedade dele que faz um bom tempo que não apareço
por lá. A reunião finalizou por volta das 11:30hs em função de que alguns
agricultores tinham outros compromissos. Nilo, por exemplo, iria receber um grupo
da Universidade às 14hs que visitaria a sua propriedade. Já no fim da feira conversei
um pouco com Onécio. Ele é um agricultor que desenvolve um trabalho bem
interessante com as abelhas. Me falou da inteligência delas, de que as abelhas
nativas que fazem colmeia em árvores ou tocos elas colocam filhotes e mel no
mesmo lugar. É que quando as abelhas africanas, que normalmente moram nas
caixas que eles colocam para elas, elas fazem uma parte da caixa de baixo só com
favo de filhotes e alguns favos com mel, mas que a produção mesmo se dá na parte
de cima da caixa – a melgueira. E é só essa parte de cima que o agricultor tirará na
época da colheita do mel. Em seguida, ele falou que tinha um novo negócio em vista
e perguntou se eu não queria ser parceira dele. Ele comprou uma máquina para
fazer suco de cana e queria que eu o ajudasse a vender na feira. Falei para ele que
a partir de dezembro eu poderia ajudar sim. Na feira eu comprei flores, rúcula,
tempero verde, morango, batata, cebola e ganhei do Alvino cenoura, espinafre e
feijão. Certamente eu estava com saudades daquela bagunça toda que a feira
proporciona e dos papos que por ali rolam. Nesta semana voltarei à casa do Nilo
que faz tempo que eu não vou também.
Fonte: Cruz, 2016.
100
Figura 8: Detalhe para a lona preta que cobre as bancas da feira ecológica na cidade de Pelotas.
50 Rede, segundo a perspectiva lautoriana (LATOUR, 2012), faz referência a um conjunto de ações
entre actantes de forma contínua e que transforma um e outro. Assim, o conceito de rede balizaria as
ações perturbadoras que proporcionam uma estabilidade aos agregados sociais, ainda que de maneira
provisória e de forma performática, feitos pelos vários modos que lhes dão existência. Nesta
perspectiva associativa o que tem de ser explicado é a estabilidade provisória na formação de grupos.
106
Figura 11: Colheita da cana-de-açúcar produzida por Onécio para comercialização nas feiras
livres na cidade de Pelotas.
51É evidente que a categoria de consumidor é mais fluida que a de agricultor ecologista. Mas, a
proposta aqui, é frisar os momentos relacionais dessa díade. É na relação entre consumidor e agricultor
que há uma afirmação positiva da rede de alimentos ecológicos.
111
Figura 12: Visita guiada por Nilo em sua propriedade. Momento em que é evidenciada a
diferença nas propostas de cultivo pelas diferenças na paisagem com a propriedade limítrofe.
Figura 13: Detalhe para a paisagem composta por diferentes espécies em função do sistema de
policultivo que consorcia espécies de interesse alimentício e espécies espontâneas.
112
Nesse sentido, é nas visitas dos consumidores às áreas de cultivo dos alimentos
ecológicos que há um reforço positivo do fazer alimento ecológico. Se nos corredores
da feira, nas vias públicas da cidade, há rumores e dúvidas sobre a procedência de
cada alimento, são nas paisagens das terras de mato que os modos de fazer
agricultura ecológica ficam evidentes aos olhos. É na paisagem bagunçada das áreas
de lavoura de diferentes cultivos e do mato circundante que o agricultor reforça a
importância do seu trabalho com a terra.
113
Como todo trabalho tem um começo, um corte e uma linha de ação, devo
dizer, então, que essa tese parte de velhas inquietações que, ao longo dos encontros
com os agricultores, se renovaram constantemente. Assim, este capítulo tem como
objetivo central apresentar ao leitor um paralelo entre os modos de conhecer que se
intercruzam ao longo do trabalho de campo. Por um lado, tem-se o tempo do fazer
etnográfico, em que prazos, termos e regras ditavam, em certa medida, as
possibilidades de acessos e tempos da pesquisa. Por outro lado, ritmos diversos de
humanos e não humanos modificavam a paisagem e inventavam novas formas de
relações constantemente.
Se eu teria de apresentar um ou mais produtos para as instituições, algumas
dificuldades se colocavam constantemente para dar prosseguimento ao projeto de
pesquisa. Em contrapartida, os processos longos e intensos do fazer agricultura, no
qual se cruzavam diferentes tempos de vida e de morte, abria brechas e possibilidades
infinitas de acesso aos mecanismos de invenção e descobertas entre agricultores,
agricultoras e outros seres que faziam a agricultura acontecer. É nessa constante
mediação entre tempos distintos e formas de conhecer que a pesquisa de campo e,
consequentemente, essa tese vai se desenrolando. Conhecer, aqui, aponta um
processo de múltiplas interações, em que agricultor, agricultora e outros seres
produzem possibilidades de crescimentos de vidas.
Gostaria, assim, de apresentar neste capítulo algumas dificuldades e as
belezas do trabalho de campo a partir de minha experiência em meio a um
entremeado de ritmos e tempos da vida multiespécie, os quais acompanhei de forma
sistemática. Proponho apresentar aqui a trajetória da pesquisa – dificuldades
relacionais, acessos permitidos e acessos negados – construída com os agricultores,
a qual me possibilitou acessar relações multiespécie, que são construídas com o
ambiente e os seres ao seu redor.
114
incluía cursos, palestras, seminários, eventos de extensão nas casas das famílias de
agricultores, entre outras atividades –, os agricultores discordavam em muitos pontos.
Nas discussões das etapas em grupo, era recorrente a discussão de qual a
melhor forma de implementar um sistema agroflorestal. Quais as espécies se adaptam
melhor a esse tipo de manejo? De que forma será organizado o espaçamento do
sistema? Ou seria melhor desenvolver um sistema com plantio de sementes a lanço?
Quais espécies são companheiras e quais espécies inibem o crescimento da outra?
Essas e tantas outras questões eram mediadas pelos pesquisadores que
demonstravam interesse em saber qual a opinião dos agricultores. A divergência era
um fato: por um lado, os pesquisadores já tinham uma linha de ação definida pelo
projeto de pesquisa, fruto de intensas discussões com outros pesquisadores
especialistas no tema; por outro lado, os agricultores faziam um exercício constante
de que maneira adaptar aquelas propostas no ambiente manejado por eles.
Assim, gostaria de apontar, inspirada nas ideias de Donna Haraway (1995), que
a produção do conhecimento que permeou as ações dos projetos de TT não eram, de
maneira alguma, composta por posições desinteressadas. Tanto agricultores como
cientistas tinham interesses e conhecimentos distintos, mas muito bem posicionados
nos ambientes de articulação e ação do projeto de pesquisa.
Entretanto, levando em consideração que o conhecimento é necessariamente
um saber-fazer, observa-se que o modelo de ação dos projetos de pesquisa da
maioria das ciências intenta ser aplicado sem distorções. Como aponta Tsing (2019,
p. 197):
54 A noção de regime ou rede sociotécnico é utilizado aqui a partir do conceito trabalho por Marques
(2009) em sua tese de doutorado. A autora descreve a noção de regime sociotécnico enquanto “um
conjunto coerente de regras, pactuados por um segmento social, que orienta todo um complexo do
conhecimento científico, instituições, infraestruturas e organização social envolvido em práticas
tecnológicas” (MARQUES, 2009, p. 24)
117
propriedade era, também, um projeto de colheita para seus filhos, pois os consórcios55
de plantas permitiam diferentes ciclos de vida em uma mesma agrofloresta e um
período de manejo mais espaçado, mais longo.
Por ter um conhecimento sistêmico em torno dos processos de transição
agroflorestal e a compreensão de que o tempo de cada planta permitiria a colheita em
diferentes épocas – anuais e semestrais – Nilo vislumbrava além dos aspectos a curto
prazo para o sistema agroflorestal. Com uma intenção clara de seu desejo pela
permanência de seus filhos no trabalho com a terra, o agricultor projetava que a
agrofloresta seria esse espaço físico, descrito como uma espécie de tesouro, plantado
por ele e direcionado aos seus filhos.
No que concerne ao plantio e à implementação da agrofloresta cultivada por ele,
como o carro-chefe da venda de produtos na feira ecológica são as frutas, o agricultor
priorizou o plantio de cítricas comumente plantadas na região como, por exemplo,
laranja de suco, bergamota e limão. A técnica que ele utilizou para adubar é muito
parecida com a que ele emprega na própria produção de hortaliças, em que ele faz
um plantio de adubação verde no solo, deixa esse solo descansar até finalizar o ciclo
da planta que ele utilizou para adubação, coleta as sementes das plantas e a
biomassa da planta é deixada no solo como fonte de adubo. Na agrofloresta foi feito
consórcio, em um primeiro momento, entre a acácia-negra, árvores cítricas, ananás e
milho.
Assim, implementar uma agrofloresta, em parceria com uma instituição como a
Embrapa, era um caminho importante para dar reconhecimento às práticas que ele já
vinha desenvolvendo em sua propriedade. Quando Nilo inicia o processo de plantio
de árvores, ou mato, como descrevia sua esposa, havia uma discordância entre os
familiares sobre a eficácia desse tipo de sistema. A agricultora Márcia, esposa de Nilo,
certa vez, me perguntou o que eu achava daquilo que o marido estava inventando.
Ela tinha muita desconfiança quantos aos possíveis erros, se implementar aquele tipo
de plantio não era arriscado demais visto que seria a primeira vez em que eles
trabalhariam com o consórcio de árvores. O fato de pesquisadores da Embrapa
estarem ali propondo a implementação de um sistema muito parecido com o que Nilo
55 Consórcio pode ser descrito como um conjunto de diferentes espécies de plantas que apresentam
semelhantes estilos de vida formando um ciclo de vida no sistema agroflorestal. O sistema pode conter
diversos ciclos de vida, dependendo do tipo de manejo e consórcios empregados.
118
havia iniciado não parecia ter dado uma confiança maior para os familiares sobre a
eficácia desse tipo de plantio.
Entretanto, a presença dos pesquisadores na propriedade da família e a
implementação do experimento a céu aberto tinha um significado político importante
para a família perante a comunidade local. Ao seu redor, a família Schiavon era
solitária em seus modos de fazer. Os vizinhos plantavam com veneno e concentravam
a renda da família principalmente em um cultivo. Nilo era mal visto; tido como relaxado,
pela paisagem do seu entorno estar cheia de mato, os vizinhos demoraram um longo
período para compreender como ele produzia alimentos naquela bagunça. Levar
pesquisadores, alunos e moradores da cidade para os eventos na sua propriedade
era uma maneira de positivar seus modos de fazer agricultura.
Assim, a implementação do sistema pelos pesquisadores da Embrapa ocorreu
num local diferente de onde Nilo tinha iniciado o sistema agroflorestal. A família cedeu
um espaço de mata nativa para que o grupo de pesquisadores fizesse a
implementação do sistema agroflorestal a partir das premissas do projeto56, que seria,
então, a parcela de demonstração. A proposta dos pesquisadores era fazer uma poda
seletiva no local e implementar a agrofloresta por semeadura direta a lanço57. A
semeada foi feita com um coquetel de diferentes espécies arbóreas e com espécies
56 Projeto de pesquisa citado faz referência à agenda de pesquisa da Embrapa Clima Temperado
coordenado pelo pesquisador Joel Henrique Cardoso intitulado “Construção participativa de sistemas
agroflorestais sucessionais no território Sul, RS (Encosta da Serra do Sudeste)”. O projeto tinha como
objetivo central um conjunto de ações que visavam i) introduzir o tema sistemas agroflorestais
sucessionais como estratégia de recuperação e conservação ambiental, geração de renda e trabalho
com segurança alimentar para a agricultura familiar; ii) recuperar, valorizar e construir saberes e
habilidades que subsidiem o desenho, implantação e manejo dos plantios agroflorestais sucessionais;
iii) desenvolver estratégias metodológicas centradas na participação que possibilitem o planejamento,
avaliação, monitoramento, sistematização, socialização e intercâmbio de práticas, conhecimentos e
experiências referentes a sistemas agroflorestais sucessionais. Os sistemas agroflorestais biodiversos
e complexos serão destinados a recuperação de áreas degradadas, especialmente aquelas localizadas
em APPs e Rls.
57 Como apontado pela Embrapa em diversas publicações (ver Alves, 2013) a operação a lanço
permite que a área toda seja alcançada no plantio, que pode ser manual, mecanizado ou ambos.
Podem ser semeadas apenas espécies pioneiras, em alta diversidade, ou junto com espécies
secundárias, dependendo da resiliência da área. Locais distantes de fontes de sementes devem
receber maior diversidade de espécies. Método particularmente importante para os estratos herbáceo
e arbustivo, que também podem ser contemplados. O plantio também pode ser realizado em linhas
previamente preparadas, cujo espaçamento entre linhas pode variar de 50 cm a alguns metros. Como
a perda de sementes pode ser maior que o considerado na produção de mudas, o custo deve ser
considerado com os preços locais de coleta de sementes ou mesmo da sua comercialização quando
disponível. Podem ser semeadas apenas espécies pioneiras, em talhões facilitadores e alta
diversidade, dependendo da resiliência da área. Áreas distantes de fontes de sementes devem receber
maior diversidade de espécies. Trecho retirado de https://www.embrapa.br/codigo-florestal/semeadura-
direta
119
de adubação verde, o qual era misturado com húmus de minhoca e semeado de forma
dispersa na gleba58. Dessa forma, não foi realizado um plantio com espaçamento igual
entre as árvores da mesma forma como o agricultor havia realizado no sistema
agroflorestal que ele implementou. Assim, o sistema implementado pelo grupo de
pesquisadores teria um crescimento disperso necessitando de um cuidado maior no
período de crescimento das plantas. Consequentemente, acarretaria mais poda, em
mais trabalho para a família.
De antemão, era possível observar ideias e técnicas distintas que eram
desenvolvidas pelos pesquisadores e pelo agricultor. A ideia dos pesquisadores era
replicar um sistema que fosse o mais próximo possível das florestas nativas, as quais
possuem uma densidade grande de espécies em pequenas áreas. Nilo, em
contrapartida, estava buscando um cálculo equilibrado entre densidade de plantas,
alta produção e facilidade de manejo do sistema agroflorestal. Diminuir a intensidade
de trabalho na terra era um dos elementos centrais que levou o agricultor a trabalhar
com sistemas agroflorestais, constituindo-se como uma alternativa para o trabalho
pesado da lavoura. Além disso, podemos inferir que o agricultor possuía um
conhecimento localizado de seres e elementos físicos que poderiam perturbar a
dinâmica ambiental dos sistemas agroflorestais implementados.
Nesse contexto, o processo de implementação dos sistemas agroflorestais se
apresenta, ao longo da relação entre pesquisadores e agricultores, enquanto um
espaço transformador. Por mais que as práticas acadêmicas e científicas levassem
os pesquisadores do projeto a desenvolver um trabalho de transferência de uma
tecnologia definida a partir dos arcabouços do projeto, a posição interessada e agente
dos agricultores foi modificando tanto a proposta de implementação quanto as
hipóteses de resultado do projeto de pesquisa.
Em um dos eventos realizados via projeto de TT da Embrapa, o qual foi
realizado na casa do agricultor Nilo, foi proposta uma atividade prática de
implementação de um sistema agroflorestal. No evento, participaram pesquisadores
da instituição, tanto da região quanto de outras sedes do Brasil, alunos e alunas de
graduação e pós-graduação, agricultores e professores e professoras universitários.
O agricultor disponibilizou as áreas que não havia cultivo para que os pesquisadores
59 Conforme aponta Rodrigues (2015, p.30) “A proposta dos conhecimentos situados permite conceber
de outra forma a noção de objetividade, indo para lá de posições empiristas ou construtivistas, bem
como de posições universalistas totalizadoras e posições relativistas, ou entre dicotomias entre sujeito
e objeto. Tal acontece devido ao deslocamento, proposto por Haraway, do conceito de objetividade, no
sentido de se reconhecer o caráter sempre situado, parcial e localizado do conhecimento”
122
60 Gostaria de ressaltar, apenas, que outros agricultores também relatam casos muito parecidos sobre
a percepção da comunidade quanto ao trabalho que eles desenvolvem na agricultura. Por ser um tipo
de trabalho que não possui uma organização do espaço de forma tão controlada como a monocultura,
a percepção dos vizinhos muitas vezes é de descuido por parte dos camponeses que desenvolvem um
trabalho na agricultura ecológica.
123
são mensuradas e calculadas como parte dos resultados. Assim, quando eu percorro
essa linha de bióloga/antropóloga, de um projeto da Embrapa focado na transferência
de tecnologia (TT) para um projeto específico na área de antropologia/etnografia, esse
cálculo é refeito pelos agricultores e leva um tempo para ser mensurado por ambas
as partes.
No que se refere ao projeto de TT, os agricultores já tinham produzido uma
compreensão de possíveis efeitos dos projetos na organização social e política da
rede sociotécnica que eles estavam inseridos. Em contrapartida, os projetos com
pesquisa etnográfica ainda eram um campo desconhecido por estes agricultores no
que se refere à construção do conhecimento e a possíveis efeitos tangíveis no
cotidiano das famílias. Em certa medida, o projeto etnográfico, proposto ao longo de
minha pesquisa de doutorado, trabalhava a partir de vias de ação que eram distintas
ao que os agricultores estavam acostumados a participar. Até a própria metodologia
era distinta: em vez de enxadas, mudas, sementes e facões minhas ferramentas de
trabalho eram as câmeras fotográficas, as câmeras de ação, os cadernos de campo
e as conversas infindáveis.
Além disso, é importante ressaltar que a rede sociotécnica em questão é
composta por uma gama diversa de escalas, nas quais circulam atores e
agenciamentos que compõe os diversos níveis e narrativas que vão produzindo
diferentes significados para a rede. Conforme já descrevi, as pesquisas de TT nas
propriedades familiares de agricultores denotam parte dessa cadeia. Elas fazem parte,
mas, ao mesmo tempo, suspendem todo outro arsenal de ação da rede. Os
agricultores estavam acostumados com isso. Para eles, falar de agricultura ecológica
era falar, em certa medida, de técnicas agrícolas. Ora, se eu queria saber de
agricultura ecológica, por qual razão eu ficava toda hora perguntando sobre o que eles
gostavam de comer e o que eles não gostavam de comer? Era um universo de
pesquisa sutil, distinto das experiências de pesquisa com agrônomos.
Com práticas mais diretas, as pesquisas em TT apresentavam um universo
de ação em que efeitos políticos, sociais e tecnológicos se cruzavam. Os mecanismos
utilizados por estas instituições técnicas demonstram, em certa medida, como as
fronteiras “legais” destes territórios devem ser demarcadas, o que deve ser incluído e
o que deve ser deixado de lado. Os agricultores sabem que estão lidando com
aparatos jurídicos e normativos que cerceiam as possibilidades do fazer nos
124
61 Como aponta Haraway (1995, p.16) “a ciência sempre teve a ver com a busca de tradução,
convertibilidade, mobilidade de significados e universalidade – o que chamo de reducionismo quando
uma linguagem (adivinhe de quem) é imposta como o parâmetro para todas as traduções e conversões”
62 Faço referência ao projeto coordenado pela Professora Doutora da Universidade Federal de Pelotas
Renata Menasche intitulado “Cultura, patrimônio e segurança alimentar entre famílias rurais:
etnografias de casos significativos” (CNPq 559565/2010-0); do qual participei no período de 2011 a
2014.
126
sejam nas feiras ecológicas da cidade – e por uma reflexão constante sobre as
experiências vivenciadas com os agricultores e agricultoras, esta pesquisa de
doutorado se desenvolve em coautoria com a família de agricultores em que participei,
durante um período mais longo e exaustivo, dos processos de fazer agricultura, a
saber: a família Strelow Leal. Entretanto, questões levantadas pelas demais famílias
com que me envolvi ao longo do trabalho de campo, habitantes paisagens agrícolas
singulares, serão trazidas para iluminar a variedade de práticas que permeiam o
conhecimento situado do fazer agricultura ecológica.
Assim, uma série de idas a campo, entre abril de 2016 e setembro de 2017,
compõe os ensaios compilados ao longo da escrita desta tese. Diferentemente da
pesquisa de transferência de tecnologia e do trabalho etnográfico sobre as
percepções alimentares desenvolvida na IC em Antropologia, o trabalho do doutorado
buscou trajetos distintos para a construção da pesquisa e das reflexões que dela
partem. Por mais que eu tivesse uma proposta a priori de pesquisa, busquei não ficar
restrita às ideias iniciais do projeto.
Durante a observação em campo, esforcei-me para conseguir compreender e
descrever os agenciamentos recíprocos que ocorrem cotidianamente no fazer
agricultura ecológica. Afinal, se eu queria compreender o mecanismo acionado para
determinar as escolhas produtivas nas lavouras, eu teria, necessariamente, que
participar dos processos ordinários do fazer agricultura. Assim, diferentemente de
outras pesquisas em que me envolvi, desta vez eu não teria de prestar atenção
unicamente no que os humanos faziam ou diziam sobre as práticas e técnicas
agrícolas. Eu precisava me conectar e me afetar com os fazeres dos diferentes seres
daquele local. Precisava participar e observar os fazeres simbióticos envolvidos no
habitar.
Nos encontros de pesquisa e nos encontros informais, os meus colegas
agricultores me apontavam muito mais sobre os agenciamentos múltiplos e sobre
inter-relações que possibilitavam que os mecanismos e as feituras da agricultura
ocorressem em cada etapa. Nessa caminhada de quase dez anos participando dos
espaços de ação da agricultura ecológica na região, eu demorei para entender que
agricultura não se faz a duas mãos e tampouco solitariamente. As práticas evocam
coletivos. Um coletivo que ultrapassa os conceitos e limites espaciais definidos
arbitrariamente por uma parcela de humanos. Assim, gostaria de deixar explícito,
127
desde então, que as práticas agrícolas não podem ser pensadas aqui como feituras
envolvendo apenas um agente, seja ele humano ou não humano. As práticas
envolvem agenciamentos múltiplos, sem precisão de escalas. Logo, a pesquisa tem
um suporte de saída, mas não possui, em si, um fim delimitado.
Assim, estas experiências foram compondo os diversos despertares para a
percepção do fazer agricultura em sistemas complexos. A exemplo, foi após um
encontro informal, nas feiras ecológicas semanais na zona Norte da cidade de Pelotas,
que comecei a perceber a centralidade da percepção singular de cada família de
agricultores nas escolhas produtivas e técnicas feitas por eles. Constantemente eu
acompanhava conversas entre técnicos e agricultores nos espaços da feira. Era
evidente que tanto técnicos quanto agricultores tentavam moldar a linguagem com
que se expressavam para produzir linhas de entendimento entre eles. Entretanto,
certo dia, um dos técnicos vai à feira para entregar o calendário da assessoria técnica
da região.
Neste calendário continha as luas e as épocas do ano apropriadas para o
plantio de cada cultivo. Falei, então, para Dona Rosa – agricultora da associação –
que o calendário, aparentemente, deveria auxiliar na organização das decisões de
cultivo da lavoura, já que possuía informações detalhadas de cada cultivo. Num
primeiro momento a agricultora não compreendeu minha fala. Ficamos em silêncio por
um tempo. Intrigada, ela me questiona sobre o que havia acabado de falar; perguntou-
me por qual razão eu achava que aquele calendário ajudaria em alguma coisa na
lavoura. Pensei, mas não cheguei a falar, que, por ser uma espécie de manual,
poderia ajudar em alguma coisa. Ela disse que discordava das informações que
estavam ali, não é bem desse jeito não. Eu pensava como um burocrata do
conhecimento, Rosa compreendia a partir de um sistema sofisticado de experiências
e aprendizados acumulados.
Nos cursos de biodinâmica63 que eu havia participado durante a graduação
em Biologia, as fases da lua, o posicionamento dos astros e os tipos de cultivos eram
63 Concebida na segunda década do século XX pelo estudioso Rudolf Steiner e aperfeiçoada pela
experiência empírica dos agricultores europeus nos anos subsequentes, a agricultura biodinâmica é
uma forma de se fazer agricultura fundamentada nos ensinamentos antroposóficos, isso é, que
contempla o ser humano em sua forma integral (STEINER, 2017; MIKLÓS, 2001; KLETT, 2001). Isso
significa que as dimensões físicas, culturais, sociais, econômicas e espirituais são tomadas como
indissociáveis e que o ser humano possui uma íntima relação com a natureza e o cosmo (LANZ, 1997;
128
suficientes para definir quando que se plantava o quê. Mas para o conhecimento
situado de Rosa, aquele modelo era uma previsão, um pode vir a ser, mas que, ao
mesmo tempo, deixa de lado uma imensidão de outros fazeres possíveis. Assim,
outros elementos estavam em diálogo com a lua e com a planta cultivada. Meu
pensamento estava submisso a escalas de precisão aninhadas64, o qual parecia não
fazer muito sentido no universo das práticas dos agricultores.
Resolvi, então, perguntar para outros agricultores se eles utilizavam aquele
calendário como um guia possível para a organização do plantio na morada deles.
Alguns demoraram a me responder; outros respondiam com certa desconfiança a
pergunta que havia feito a eles. Mas, de fato, o interessante é que naquele momento
ficou nítido que para plantar não havia uma receita única. Cada um tinha uma
compreensão diferente de como se plantava cada cultivo e em qual lua seu plantio
era mais adequado. Cada um habitava paisagens singulares com características
diferentes. As percepções eram relacionais, vividas na experiência, num engajamento
com as atividades que eram desenvolvidas.
Este episódio abre, então, um novo cenário na minha compreensão do fazer
e consumir agricultura ecológica. Se me engajo inicialmente pela via da pesquisa nas
ciências biológicas e, em seguida, direciono meu olhar para o universo das
humanidades, é, em meio a diálogos informais com os agricultores que as relações,
daquilo que o conhecimento científico tratou de dividir, acontecem. Como aponta
Stépanoff (2012, p. 287), “a maioria das atividades humanas envolvem múltiplos
participantes que cuidam e agem conjuntamente”, e, sem dúvida, é no engajamento
com os agricultores que esse universo de agenciamentos múltiplos vai se tornando
cada vez mais evidente para mim. Além disso, o múltiplo não está somente nos
agenciamentos, mas nas práticas agrícolas desempenhadas pelos humanos e os
trabalhadores parceiros. Segundo Ferret (2012) esse tipo de proposta de pesquisa se
constrói a partir de contrastes, a qual parte do pressuposto de que tudo que está sendo
feito de uma maneira poderia ser feito de outra. No âmbito do fazer não há uma única
prática a ser desenvolvida, não há uma única fórmula de cultivo para os cultivares.
STEINER, 2017). Nesse sentido, a compreensão dos processos naturais é a chave para o
desenvolvimento da agricultura biodinâmica (BOSETI; NETO; LANGE, 2020, p. 124).
64Conforme Tsing (2019).
129
65 Refiro-me aqui à proposta exposta por Ingold (2016) o qual aponta a necessidade de uma
antropologia observando as coisas a partir de dentro. Com isso, o autor reforça a proposta da
observação participante, mais do que do trabalho de campo etnográfico. “Observar significa ver que o
acontece no entorno e, é claro, também ouvir e sentir. Participar significa fazê-lo a partir de dentro da
corrente de atividades através da qual a vida transcorre, concomitante e conjuntamente com as
pessoas e coisas que capturam a atenção que se dispensa a elas. Assim como o encontro, a
observação participante antropológica só difere em grau daquilo que as pessoas fazem o tempo todo,
especialmente as crianças.” (INGOLD, 2016, p. 407).
130
66 Trago a noção de afetamento a partir das ideias de Jeanne Fravet-Saada expostas em Siqueira
(2005). A autora descreve a noção de “ser afetado” como um posicionamento do etnógrafo que se
coloca a experimentar as sensações e percepções do outro. “Aceitar ser afetado supõe, todavia, que
se assuma o risco de ver seu projeto de conhecimento se desfazer. Pois se o projeto de conhecimento
for onipresente, não acontece nada. Mas se acontece alguma coisa e se o projeto de conhecimento
não se perde em meio a uma aventura, então uma etnografia é possível.” (SIQUEIRA, 2005, p. 160)
131
67“Pegar junto” foi um dos tratos feitos com os agricultores para que minha estada na casa deles
ocorresse. Ao conversar sobre o que eu pretendia fazer ao estar na casa deles, Onécio aceitou, mas
na mesma hora falou que eu teria que trabalhar em todos as atividades, não adiantava ficar lá só
olhando. Eu aceitei “pegar junto”. Esse “pegar junto” era ao pé da letra mesmo, o agricultor não podia
me ver parada que já me colocava em alguma tarefa da casa ou da lavoura.
132
não conseguia ficar mais distante. Onécio estava sempre atento às minhas ações.
Como o agricultor dizia, aqui a gente não fica parado sempre tem alguma coisa pra ir
fazendo, se tu acabou me chama que já te passo outra coisa pra ir fazendo. Parar
uma atividade, tirar uma fotografia ou preparar a câmera de ação em algum
instrumento de trabalho que eles estivessem utilizando era algo que, no início,
claramente incomodava Onécio.
Pegar junto, trabalhar ativamente em uma atividade mais braçal, é algo
importante para os agricultores. O trabalho manual, intenso e contínuo é valorizado
por eles. Sentar-se, observar, ficar em silêncio em meio a uma tarefa causava
estranhamento aos olhos do casal. Repetidas vezes, quando eu me sentava para
escrever em meu caderno de campo ou mesmo arrumar as câmeras fotográficas,
Onécio fazia questão de “me lembrar” que eu não estava de férias ali. Aparentemente,
a pesquisa antropológica era uma estranha naquele ambiente.
Nas primeiras semanas, vivemos uma espécie de negociação constante.
Onécio, muito incisivo, tinha a prática de direcionar, constantemente, os afazeres do
dia. Evani se mostrava incomodada com o jeito do marido. Ela dizia, em meio aos
afazeres na lavoura, deixa ela, daqui a pouco ela vai embora e não volta mais, deixa
ela fazer o trabalho dela também. Nessa situação, eu tentei negociar com Onécio. À
noite, quando a gente olhava as fotografias, eu brincava que se ele não me deixasse
trabalhar eu não ia fazer foto boa para ele colocar na banca durante a feira. Da mesma
forma que os agricultores tinham o costume de negociar mudas, fertilizantes,
sementes, com os pesquisadores agrônomos, Onécio estava trilhando caminhos para
negociar comigo (ou entender) o que de fato poderíamos compartilhar a partir da
nossa experiência junto. O agricultor estava me passando o que para ele havia de
mais precioso: o conhecimento acumulado em torno dos seus fazeres agrícolas.
A utilização da câmera de ação fixada aos instrumentos de trabalho ou nos
trabalhadores da lavoura levou nosso diálogo e nossa compreensão da pesquisa para
um ambiente muito mais sinérgico. Com as imagens que podíamos produzir a partir
da câmera de ação, Onécio passou a materializar um retorno importante do trabalho
que estávamos desenvolvendo ali. Passei a ter mais espaço, a ter maior mobilidade
no dia a dia. Era perceptível a abertura que fui ganhando. Já era possível transitar
sozinha pela propriedade e, em certa medida, me desprender dos horários de fazer
133
Figura 14: Tela capturada de trecho de vídeo gravado com a câmera de ação fixada na
plantadeira manual de bico utilizada para plantio do feijão.
Figura 15: Detalhe para a plantadeira utilizada pela agricultora Evani. Câmera utilizada: Canon
EOS REBEL T5. 1/640 s f/8 55 mm.
disponibilizados ao público visitante. Informo, ainda, que são estas as imagens que
compuseram a mostra fotográfica em formato de pôster. Será, também, apresentado
o cartaz de apresentação e a ficha técnica da mostra fotográfica.
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Estarei interessado em abordar aqui, por assim dizer, não tanto a relação
entre antropologia e imagem, mas entre etnografia e filmagem. Considero o
uso dos dispositivos de imagem mais como modo da relação etnográfica, do
que como meio para a apresentação de seus resultados. Se abordo as
imagens aqui mais como processo do que como produto é porque, desde o
início da pesquisa, o registro em vídeo ressaltou como um meio potente para
o engajamento etnográfico e a compreensão do significado das relações
estabelecidas entres seres e coisas […] (SAUTCHUCK, 2013, p. 8).
69 O projeto a que faço referência foi intitulado Organicidade e contou com o financiamento parcial do
edital de apoio a eventos culturais do primeiro semestre de 2017 através da Secretaria de Cultura da
Prefeitura de Pelotas via Programa Economia da Cultura e Diversidade.
148
70 Ponto que reforça ainda mais a ideia de que a fotografia compõe este trabalho etnográfico muito
mais como uma narrativa visual – conjuntamente com a narrativa textual, com a narrativa oral, com a
narrativa sensorial, entre outras – do que um produto final da composição textual deste trabalho.
149
Figura 16: Exposição fotográfica OrganiCidade. Detalhe para a disposição da mostra no Mercado
Central de Pelotas.
Assim, a escolha das imagens que seriam expostas nos quinze dias da mostra
fotoetnográfica buscou dialogar com o universo da exposição. Longe de querer ser
somente mais uma exposição de fotografias, buscamos desenvolver um cenário
interativo, com pouca narrativa textual e diferentes narrativas sensoriais. Cada dia
mudávamos as ervas da exposição, as quais haviam sido colhidas na casa dos
agricultores. A proposta era trazer uma memória olfativa do ambiente habitado pelos
agricultores para o público da exposição. Além disso, deixamos à disposição do
público cartões-postais com as fotografias da exposição, o qual serviu como uma
espécie de lembrança da mostra.
Figura 17: Detalhe para os cartões-postais nas mãos do casal de agricultores Onécio e Evani
Figura 18: Imagem que compôs a mostra fotográfica. Detalhe para o trabalho cooperado entre
agricultor e cavalo.
Figura 19: Verso do cartão-postal da Mostra Fotográfica OrganiCidade. Design gráfico: Hamilton
Bittecourt
este vídeo buscar comunicar ao leitor a importância dos diferentes níveis de feitura
nas práticas de fazer alimento pelas vias da agricultura ecológica.
Ademais, o vídeo teve como inspiração, especialmente, os recentes trabalhos
de Devos, Vedana e Barbosa (2017) e Castaing-Taylor e Paravel (2012). Enquanto
experiências fílmicas que ultrapassam a interação frisada nos sentidos da audição e
da visão, os documentários, em questão, exploram mecanismos de “ampliação da
experiência sensorial do espectador” (DEVOS; VEDANA; BARBOSA, 2016).
Tomemos como exemplo o documentário “Leviathan” de Véréna Paravel e Lucien
Castaing-Taylor (2012), produzido em navios de pesca industrial, ora a posição da
câmera nos leva à cabine do comandante da embarcação, ora insere-nos no chão
ensanguentado do navio em meio aos restos de peixes, crustáceos e outros produtos
provenientes da pesca industrial.
Além disso, incrementar outras ferramentas, como a câmera de ação, por
exemplo, expande as possibilidades de acesso a outros pontos de vista, a outros
“estar no mundo”. “Colocar nossas câmeras na canoa, na rede de pesca, na areia ou
no mar foi uma opção para que as imagens apresentassem a prática da pesca para
além dos pontos de vista e representações dos pescadores” (DEVOS, VEDANA e
BARBOSA, 2016, p. 53).
Assim, pretendo, com esta experimentação fílmica, expandir os universos de
percepção e os acessos dos leitores/espectadores aos terreiros e aos fazeres das
famílias Strelow Leal e Storch. Em produção conjunta com os interlocutores desta
experimentação, o filme apresenta-se enquanto uma potência narrativa e perceptual.
Apresentaremos, a partir do que há entre o plantar e o colher, as técnicas e as ações
que permitem a proliferação da vida e a habitação da paisagem por assembleias de
seres. Buscamos, dessa forma, priorizar a perspectiva da abelha ao enxamear e
proliferar a colmeia nas caixas de madeira disponibilizadas por Onécio; aproximar ao
trabalho cansativo do cavalo Jô ao revirar a terra em mais de dois hectares de fumo;
e, descer ao solo, ao longo do trabalho manual, de Onécio e Evani, enquanto semeiam
os feijões pretos. É, de fato, uma aprendizagem na busca de levar os outros, diferentes
de nós, a sério!
160
FICHA CINEMATOGRÁFICA
Título: EntreSERes
Link: https://youtu.be/OcR_eqH8nPY
Duração: 16”52’
Ano: 2020
Elenco: Evani Strelow Leal, Onécio Leal, Iracema Storch e Alvino Storch.
74 Phaseolus vulgaris
164
depois de plantar as sementes. Já as abelhas, quando tem flor, todo dia tem uma que
outra lá.
Assim, plantar feijão não é uma prática eminentemente humana. Desconhecer
as costuras em que as espécies estão enredadas é levar, possivelmente, a cultura de
interesse alimentício ao fracasso. No início Onécio me deu o recado de que ser
agricultor não era só saber plantar aquilo que tu comer, tem que entender como que
as coisas funcionam, aí tu diminui o teu trabalho e as plantas vêm melhor.
A primazia da visão sobre a audição não pode ser usada para responder pela
objetificação do mundo. Antes, o contrário: é através de sua cooptação a
serviço de um projeto moderno de objetificação que a visão tem sido reduzida
à faculdade de reflexão pura e desinteressada, cujo papel é meramente o de
entregar “coisas” a uma consciência transcendente (INGOLD, 2008, p. 11).
75 A câmera de ação é uma vertente das câmeras digitais. São modelos pequenos, práticos e com
funcionalidades bastante dinâmicas. Como são câmeras compactas é possível colocá-las em locais
que outras câmeras não capturariam as imagens. No caso desta pesquisa, na intenção de retirar o
169
plantadeira manual de bico que estava sendo usada para semear o feijão no solo.
Nesse ensaio de fotografias, vídeos e áudios tivemos a oportunidade de observar a
ação de plantar de diferentes ângulos. Eram duas câmeras de filmagem, uma câmera
de fotografia e um gravador de som que estava sendo usado naquele momento.
Figura 21: Plantadeira manual de bico utilizada para plantio de semente de feijão.
Eles até zombaram do fato de que sem a tecnologia a gente nem ia ouvir aquilo ali.
Depois dessa primeira impressão, mais atentos, Onécio dizia que Evani sempre
plantou melhor que ele mesmo. Eu não havia compreendido sua colocação e
questionei o motivo dele falar aquilo ali. Ele disse que era por causa do som. O som
que saia da máquina que ela utilizava para plantar tinha mais ritmo que o dele.
Completava, ainda, que Evani sempre foi boa na agricultura, ela sempre levou jeito.
Até aquele momento eu não tinha notado a diferença do som produzido pela
máquina de Onécio e pela máquina de Evani. Era muito interessante perceber que
aquele encontro etnográfico estava produzindo diferentes (re)aproximações com as
práticas e os significados da agricultura em ação. Nesse episódio, por mais que
tivéssemos intenções distintas daquele nosso encontro, ficava nítido a importância de
pensar o campo e fazer a pesquisa com os agricultores e com as agricultoras. Além
disso, levou a pesquisa de campo para uma compreensão que as técnicas
empregadas ou utilização de uma ferramenta no percurso de uma atividade não são
meramente uma sucessão de ações que levam a um resultado. Elas possuem uma
ordem processional, onde o desencadeamento de uma atividade que leva à outra é
mais importante do que o efeito final produzido por este processo. Ingold (2015)
aborda este tema a partir da ideia de sequência operacional, uma chaîne opératoire –
conceito proposto por Leroi-Gourhan e atualizado por Ingold –, o qual seria uma série
de passos, os quais juntos comporiam a montagem de um objeto completo, onde a
relação estaria o tempo todo sendo ajustada. Assim, os ajustes rítmicos da cadeia são
chaves para compreender as habilidades técnicas que estão envolvidas no processo.
Os imponderáveis do cotidiano na agricultura apresentavam a todo momento
os riscos de trabalhar com outros seres. Como aponta Ingold (2015, p.105) “a
qualidade do resultado depende a todo momento, do cuidado e do juízo que a tarefa
prossegue”. Nesse processo, cheio de riscos, já que as partes envolvidas são agentes,
sejam elas humanas ou não humanas, as manipulações não são ações estritamente
humanas, mas ações direcionadas a outros seres vivos que fazem o outro fazer76
alguma coisa.
Certa vez, ao acompanhar o casal de agricultores na plantação de feijão, eles
ponderaram que o ano de 2017 seria de muita seca, indicavam sinais no ambiente
76 Sobre a ideia de “fazer o outro fazer” a inspiração vem dos trabalhos de Carole Ferret (2014), onde as ações
direcionadas a outros seres vivos fazem o outro fazer alguma coisa, pois ambos são agentes.
171
desta previsão. Pergunto então a eles, sabendo deste risco, por qual razão não
pensavam em um mecanismo de irrigação para as lavouras. A agricultora me relata
que eles não poderiam ter controle de tudo, eles sabiam dos riscos, mas eles plantam
e de resto ficaria nas mãos de Deus, ele sabe o que faz e se ele não nos dava uma
lavoura ele seria justo e nos daria outra coisa. Passei meses sem entender. Se sabiam
dos riscos, por qual razão não tentar diminuí-los. A agricultura se apresentou como
um combinado de “trabalho de risco” e “trabalho de certezas”. O “risco” era o da chuva
não vir, ora, ninguém controla a chuva não é mesmo? A mediação, ou da “certeza”
humana, era a alternância dos ciclos produtivos na lavoura, o que possibilitava
diferentes épocas de colheita, logo, diferentes temporalidades no jogo do incerto.
Como eles me disseram diversas vezes: não, na natureza a gente só pode trabalhar
com aquilo que ela nos dá!
Nessas constantes descobertas em meio ao trabalho etnográfico, compreendi
que meu olhar deveria se abrir. Minhas concepções de socialidade possíveis de serem
construídas dos seres no mundo eram fechadas demais, restritas ao olhar do humano
sobre o ambiente que habitam. Mais uma vez, gostaria de frisar a importância da
fotografia e da captação dos sons durante a pesquisa de campo. Como já relatado
anteriormente, foi a fotografia que me possibilitou vias de um fazer etnografia e olhares
conjuntos com os agricultores. Mas, além disso, foram essas outras ferramentas, com
outros vieses de percepção – visual, auditivo etc. - que possibilitaram a abertura para
a percepção de outras socialidades, onde a comunicação com não humanos, para
além da linguagem verbal, é ato fundamental.
Assim, nesse emaranhado de seres e agentes potenciais percebo que as
práticas dos agricultores em seus ambientes seriam substancialmente distintas.
Alguns mecanismos de fazer são compartilhados, mas os interstícios das dinâmicas
e comunicação com outros participantes trabalhadores das lavouras podem ser
diferentes. Nesse sentido, falar em práticas agrícolas seria falar de relações.
Nos termos de Wagner (2012), observo os processos de refinamento
progressivo77 de uma (agro)cultura que denotam uma observação e uma atenção
77 Wagner (2012) descreve a etimologia do conceito cultura como originado da agricultura como cultivo
e, ainda, associado à apicultura. “Nossa palavra “cultura” [culture] deriva de uma maneira muito tortuosa
do particípio passado do verbo colere, “cultivar”, e extrai alguns de seus significados dessa associação
com o cultivo do solo [...] Em tempos posteriores" cultura" adquiriu um sentido mais específico,
172
constante aos processos de manejo e cuidado exigido pelas plantas, animais, solo,
chuva, vento, seca, entre outros. Nesse contexto, a descrição etnográfica que segue
faz referência aos processos de plantar e colher feijão, e o que há no meio destes dois
eventos centrais. Pretendo apresentar as diferentes temporalidades e operações
técnicas que permitem o feijão crescer e tornar-se planta- alimento-adubo. O diagrama
abaixo apresenta práticas envolvidas no cultivo do feijão. Da escolha da semente
(planta) ao beneficiamento do grão (alimento), diferentes atividades operacionalizam
a produção, em diferentes níveis. Pretendo, a partir deste esquema, apresentar os
momentos em que as ações se tornam operatórias na cadeia do feijão, sem perder de
vista a relação entre elas.
Escolher semente
P
P
Preparar/Plantar
L
A
Capinar/Esperar
N
T
Colher A
A
LI
Comer/vender M
E
Adubar - de
volta à
N
terra
T
O
ADUBO
78 Esta proposta foi desenvolvida no trabalho de Woortmann e Woortmann (1997). Os autores apontam que
as escolhas dos produtos a serem consorciados obedece ao princípio da alternância, ao qual se refere aos
distintos tempos de cada planta e uma outra dimensão temporal que envolve a combinação, no mesmo
espaço de cultivo, de produtos de longa duração com produtos de curta duração.
175
nitrogênio mineral nestas plantas, principalmente “no período de maior absorção, que
ocorre dos 35 aos 50 dias após a emergência da planta” (Rosolem & Marubayashi,
1994). Sobre os ciclos do nitrogênio Elaine Gan (2016, p.23) aponta que:
Até o início do século 20, parecia que apenas bactérias, raios, atividade
vulcânica e fogo poderiam estimular a fixação de nitrogênio, estabelecendo,
assim, uma importante condição limitante para a vida. Hoje, os seres
humanos produzem mais da metade do suprimento mundial de nitrogênio
utilizável. (tradução minha)79
79 Texto original: Until the early 20th century, it seemed that only bacteria, lightning, volcanic activity, and fire
could spark nitrogen fixation, thus setting an important limiting condition for life. Today, humans produce over
half of the world's supply of useable nitrogen. (GAN, 2016, p. 23).
176
naquela região do terreiro. Com o trator todo inclinado, Onécio subia e descia
subsolando a terra. Levou o dia todo virando a terra. As partes que ficam mais grossas
na superfície Onécio virava com uma enxada. Eram cerca de meio hectare de área
que seria plantada. Depois Onécio veio com os sacos cheios de calcário despejando
sobre a superfície da terra. Não tinha muita precisão. Ele ia passando com o saco e o
que ia despejando dali ia ficando por cima da terra revirada. Onécio volta a passar o
trator, agora mais rápido do que antes.
A terra precisava descansar. Na lua crescente, não se tinha mais muita coisa
pra fazer na terra. Precisava aguardar a chuva pra ele (o calcário) entrar bem pra
dentro da terra. Durante aproximadamente duas semanas, outros seres precisavam
trabalhar no preparo da terra. Eles aguardavam o trabalho daqueles seres que vivem
dentro do solo. Alguns deles nem se chega a ver a olho nu, mas são fundamentais na
preparação do solo. Depois da terra ter ficado descansando era possível retornar ao
trabalho nas lavouras de feijão.
Na região do sul do Rio Grande do Sul, o plantio ocorre no início da primavera.
Acompanhei o plantio no terreiro de Onécio e Evani durante a última semana de
setembro de 2016. A lua que nos acompanhava era minguante, estava entrando a lua
nova. Segundo Evani, a gente tem que plantar logo tá numa lua boa pra vir o feijão. É
na lua minguante para a nova que se tem a melhor época para plantio de coisas que
crescem para cima. Na lua crescente se vira a terra, se limpa o campo, faz alguma
coisa com o que já tá aí, mas nunca se planta, viu!
Era final de setembro, me acordei tarde, eram oito horas da manhã. No dia
anterior havíamos ido dormir perto da meia-noite. Estava cansada, nem ouvi o
despertador tocar. Quando acordei todas as pessoas já estavam de pé, inclusive
Ediléia estava em casa, recém tinha chegado do seu trabalho no hospital de Morro
Redondo. A mesa estava colocada e acabei tomando o café da manhã sozinha.
Onécio novamente já estava na rua cuidando dos bichos, atando-os de lá pra cá. Evani
estava arrumando a cozinha e preparando o feijão que levaria para o plantio na
lavoura. Depois de tomar o café da manhã rapidamente, sai a procurar meus
instrumentos de trabalho – caderno, lápis, câmera fotográfica, câmera de ação e
gravador de som – e fui para lavoura procurar eles. O casal já tinha saído da casa e
já estavam na lavoura, eu estava atrasada. Onécio estava fazendo os canteiros com
a ajuda do cavalo e de uma máquina que ele mesmo criou. A máquina tinha três rodas,
179
muita madeira e tudo estava sendo segurado por fios de aço. Foi construída a partir
da reciclagem de material que estava sobrando.
Figura 23: Máquina produzida pelo agricultor para formação dos canteiros na lavoura de feijão
Figura 24: Trabalho realizado na lavoura de feijão com auxílio do cavalo e máquina produzida
pelo próprio agricultor
da região. O rapaz batia no olho do animal com um relho82, o que causava muita dor,
deixava seu olho inchado e o animal ficava bem cansado. Vendo isso, Evani implorou
para que Onécio retirasse o animal das mãos do domador e que ele mesmo domasse
o bicho para o que ele realmente precisava, que era ajudar na lavoura. Onécio buscou
o animal ainda redomão83 e ele mesmo ensinou o cavalo a trabalhar na lavoura. Evani
conta que ele é um rico dum cavalo, manso e respeitador, ele trabalha muito bem. O
cavalo foi ensinado a trabalhar na lavoura ou, a partir de Carole Ferret (2014),
podemos pensar as ações do cavalo enquanto manipulações. Ações direcionadas a
outros seres vivos não são apenas sobre “fazer”, mas muito comumente sobre fazer
o outro fazer, já que ambas as partes são agentes – sejam elas humanas ou não –, é
nesse sentido que proponho aqui a ideia de manipulação.
Na lavoura ao lado, Onécio trabalhava em silêncio. Uma tríade com a máquina
e seu cavalo davam o ritmo ao trabalho. O marcador vai deixando um espaçamento
parelho na lavoura, onde ficam montes de terra mais altos e no vão entre esses
montes são plantados os feijões. Onécio dá a direção, mas quem arrasta a terra e a
faz a força do serviço, nesse caso, é o cavalo.
82 Relho ou rebenque é um artefato feito de tiras de couro trançadas, ou uma tira torcida, destinado a
infligir estímulo doloroso a um animal.
83 Animal que ainda não foi bem amansado.
182
Figura 26: Detalhe para a marcação no solo e para as barreiras no entorno da lavoura com
vegetação espontânea.
183
Figura 27: Gestos no plantio do feijão. Detalhe para a companheira de lavoura, a cadela Madona
ajuda de outras pessoas. A capina é o que dá mais trabalho, pois tem que vir
manualmente caminho por caminho dos feijoeiros com auxílio de uma enxada.
84 Consultar: Rivero Herrada (2017); Paulus et. al. (2017); Rocha et. al. (2020).
186
Figura 29: Detalhe para a linha de plantas espontâneas entre a lavoura de feijão e as demais
culturas da propriedade.
85Quebra vento é uma barreira vegetal utilizada para proteger plantas contra ação de ventos fortes,
permitindo o bom crescimento e produtividade da lavoura.
188
que são protegidas por quebra ventos não são queimadas pelo frio, visto que na época
do ano em que se inicia o plantio as quedas bruscas de temperatura ainda são muito
frequentes. Assim, plantas espontâneas são amplamente utilizadas como quebra-
vento, o que os agricultores denominam como um corredor entre as lavouras. Mas
quando se trata de plantar espécies para esta finalidade, era o que Onécio pretendia
fazer para o ano seguinte, os agricultores, normalmente, utilizam bananeiras86,
bambu87 e margaridão88.
Nestes momentos as parcerias instituídas com os órgãos de extensão rural e
entidades governamentais de pesquisa são de suma importância. Adquirir mudas
destas plantas na região é muito difícil, pois normalmente não há disponibilidade no
mercado. São as redes de apoio técnico que permitem auxiliar os agricultores com
exemplares destas espécimes.
Assim, os tempos de espera entre um cultivo e outro são tempos de
observação. Observar o crescimento das plantas, a ação dos ventos, a corrida por
alimento das formigas, os trilhos das águas da chuva é tarefa entremeado ao cultivar
alimento. É tempo de estar atento. Este momento, que à primeira vista pode ser
observada como um tempo de não-ação, é, como aponta Ingold (2010), uma atividade
social mundana, um tipo de trabalho preparatório para diferentes atividades futuras.
86 Musa sp.
87 Bambusoideae
88 Sphagneticola trilobata
189
89Diversos autores na disciplina antropológica tratam da questão do parentesco, por exemplo: Morgan
(1968 [1868]) compreendia os sistemas de parentesco como via legítima de acesso às instituições
sociais e às condutas individuais nos diferentes estágios da humanidade; Radcliffe-Brown (1941)
compreendia que o parentesco era um reflexo fiel das relações jurídicas e se configurava como um
meio para o reconhecimento destas relações; Levi-Strauss (1967) os sistemas de parentesco são
estruturas universais e lógicas, por isso a importância do seu estudo na compreensão da sociedade.
190
90Não quero trazer aqui uma concepção errôneo de busca por simetria, harmonização e modos de
encaixar gente e animal nos mesmos níveis. Busco, através da noção de parentesco engajado às
espécies companheiras, aproximar as relações possíveis entre uma mulher e uma vaca em específico,
por exemplo.
191
Figura 31: Osso da vaca Grampoula, hoje utilizado como artefato-memória espalhado pela casa.
Tuco, é outro companheiro de Evani, um galo que vive no terreiro. Ele foi
rejeitado pela mãe por ter uma cor diferente dos irmãos. Se a agricultora não o tivesse
alimentado e levado para dentro de casa, ele teria morrido. Evani ficou com pena dele
e cuidou dele desde pequeno. Ela conta que, desde que ele era um pintinho, a
acompanhava na lavoura assim como fazem os cachorros. Tuco é alimentado com
comida especial, canjica e arroz, na varanda da casa.
Mas nem todas as galinhas e galos são assim. Certo dia, quando uma amiga
de Tuco estava na varanda com ele, ela subiu no local onde Evani deixa plantas
ornamentais e começou a ciscar a terra dos baldes. Evani correu atrás dela até
conseguir pegar a galinha, prendeu-a numa caixa e a mataria depois, pois ela não
deveria estar ali dentro, na varanda da casa, muito menos em cima das plantas. Neste
cenário, compreendo que há três níveis de relação entre gente e bichos no terreiro de
Evani e Onécio: a) da casa – aqueles animais que circulam por todas as áreas do
terreiro, inclusive dentro da casa e na varanda; b) intermediário – aqueles seres que
têm uma proximidade com as pessoas e uma liberdade de circulação na rua do
192
terreiro, mas não podem circular na varanda e na casa e; c) “os que são só cachorros”
– os animais que exercem algum tipo de força-trabalho e, por diferentes razões, as
pessoas buscam certa distância afetiva entre eles. Essas categorias e classificações
não são rígidas. Elas mudam de acordo com a relação entre os seres e são situadas
na paisagem e no tempo. O que descreverei, abaixo, são relações possíveis que
vivenciei durante os tempos da pesquisa. Ressalto que os seres circulam entre os
níveis e podem produzir novas relações ao longo do tempo. Tratam-se, então, de
relações singulares entre esta gente e estes animais.
Durante o tempo desta pesquisa, os animais da casa eram: Madona (cadela),
Tuco (galo), a rã Peco e a gata Sissa. Estes companheiros de Evani circulam
livremente pela casa e são alimentados na varanda. Há uma relação próxima e
afetuosa entre eles. Tuco tem ciúmes da relação da Evani com a rã Peco. Ele a
mandou embora da parte de cima do terreiro, onde fica a entrada da casa. Evani conta
que, depois que eles discutiram, a rã só fica na parte de trás do terreiro. Peco vem
para a casa apenas quando Evani a chama, pelo nome. Já a gata Sissa dorme no
quarto com eles e come em cima da geladeira. Ela tem medo de Ediléia e só aceita
ser alimentada por Evani. Madona dorme no quarto do casal à noite, durante o dia ela
passa deitada no sofá onde foi colocada uma coberta para ela. Quando Madona
faleceu, ela foi enterrada ao lado da casa; Evani regularmente limpa o terreno e coloca
flores para a cadela.
Os seres intermediários eram gatos, cavalo, cachorros (Shakira, Piloto e
Tupã). Eles podem circular pela varanda e por todo terreiro, podem ter entrada restrita
na casa, em alguns períodos do dia, ou ter permissão para acessá-la. São quatro
gatos, por exemplo, além da gata Sissa. Eles podem entrar na casa em certos horários
do dia, têm sua permanência ali restringida por Evani. Comem na varanda e todos têm
nomes. Já os cachorros que ficam soltos não podem entrar na casa, apenas circular
pelo terreiro. Eles são companheiros fiéis na lida das lavouras, acompanham os
afazeres de Onécio e Evani do início ao fim.
193
Os seres que “são só cachorros” são aqueles que desenvolvem algum tipo de
trabalho, seja ele trabalho-alimento ou trabalho-caça. Compreendem-se, aqui,
galinhas, porcos, vacas e alguns cachorros que vivem amarrados no terreiro. A
expressão do “são só cachorros” foi descrita por Onécio quando perguntei a ele a
razão de terem quatro cachorros que nunca são soltos. Ele conta que um vai na faixa
e pode morrer, outros dois, os que ficam amarrados ali no galpão pequeno, eles caçam
comigo, a pequena amarela novinha não é minha, trouxeram ela aqui para eu ensinar
ela a caçar, quando tiver boa eu vou devolver.
Com o tempo, compreendi que Evani se apegava facilmente aos animais.
Carnear os bichos, matar para comer era algo que a afetava. Aproximar-se demais
dos animais que desenvolviam tarefas de produção de alimentos era complicado, pois
a gente precisa comer, né, e pra comer a gente tem que matar. Depois da Grampoula,
eu disse que não queria mais bicho, mas Onécio foi trazendo de mansinho e agora
tamo com esse monte de bicho aí. Eu gosto muito das vaca, são bicho amigo da gente.
Matar é uma relação ontológica; todos os parceiros são feitos e desfeitos nas
intra-ações de matar. Sujeitos e objetos são constituídos no ato de matar,
assim como no ato de nascer e nutrir. Matar forma quem está no mundo em
mais de uma maneira. Gerar, criar e matar animais trabalhadores que
produzem comida e fibras forma um mundo imenso de encrenca, no qual
estou tentando entender se “matar sem tornar matável” pode fazer sentido
(HARAWAY, 2011, p.397).
Assim, criar porcos, vacas e galinhas para comer aponta para uma efetividade
ontológica, nos termos de Porcher (2010), em que sofrimento e práticas de trabalhos
são contagiantes e relacionais. Há diferentes tipos de distâncias e aproximações entre
porcos, vacas, galinhas e gente, a partir do trabalho-alimento. Seria longo demais para
este tópico adensar estas relações. O que gostaria, de fato, é apontar que a criação
de animais “envolve uma relação positiva e animada com animais. Esta se baseia no
desejo de viver com animais, de compartilhar sua existência em sua beleza e sua
tragédia” (PORCHER, 2010, p. 5). Além disso, ela varia de acordo com processos
historicamente situados e ações não inocentes, dos animais e de sua gente.
195
Tino para a caça é uma habilidade que os cachorros e cadelas desenvolvem a partir de elementos
91
Diário
Longo
Sem
temporalida Semanal
de definida
92Tradução minha de: “First, socio-historical critiques of temporality expose how different societies and
epochs foster different experiences of time. Looking at temporality from the perspective of everyday
experience shows that time is not an abstract category, nor just an atmosphere, but a lived, embodied,
historically and socially situated experience (Adam, 1998, 2004) [...] Temporality is not just imposed by
an epoch or a dominant paradigm, but rather made through socio-technical arrangements and everyday
practices.”
198
A carne de rês é toda consumida pela família do casal. Uma pequena parte
da linguiça é vendida para alguns consumidores mais próximos. Onécio tem
maquinário específico para fazer os cortes das partes maiores dos bichos, como as
chuletas e peças de churrasco. E no moedor, para fazer carne moída, patê e linguiça,
foi improvisado um mecanismo de automatização feito pelo próprio agricultor.
Figura 41: Sucos de uva, nas caixas de plástico, sendo preparados para serem carregados para
a feira.
93 Como aponta Tsing (2019, p. 247-248) “Minhas paisagens são reuniões em que muitos seres vivos
– e também coisas não vitais, como rochas e água – tomam parte. Eles se encontram para negociar
sobrevivência colaborativa, o “quem vive e quem morre” e o “quem fica e quem sai”, performações da
paisagem. Eles podem não se conhecer diretamente [...] Paisagens, então, são reuniões de modos
de ser em formação. Como os ecologistas argumentam, são unidades de heterogeneidade: uma
paisagem pode existir em qualquer escala desde que abranja padrões de heterogeneidade. Há
paisagens em uma folha e em um continente.”
204
94 Acanthoscelides obtectus
205
planta são ensacados e levados para o terreiro diretamente para os pés das frutíferas.
Na lavoura, o que restou da planta do feijão é capinado e deixado no solo, em pousio,
como uma espécie de adubação para a lavoura seguinte, na qual, normalmente, a
cultura de verão plantada é o milho.
Após passar pelos processos de separação e limpeza o feijão é dividido entre
o que será consumido, o que será guardado para o plantio do ano seguinte e o que
será vendido nas feiras. O que será consumido e guardado para plantio é guardado
em garrafas PET, a fim de evitar a proliferação do caruncho e manter o grão em
melhores condições de uso por um período mais longo. Segundo Evani, o feijão na
garrafa PET dura uns dois anos ainda ali; já os feijões destinados à venda foram
ensacados em quantidades de 500 gramas e 1 quilo, sendo comercializados
rapidamente.
95 Conforme aponta Tsing (2019, p. 94) coordenação é uma lente para observar os organismos
interagirem uns com os outros.
207
outros seres e forças que também agem na paisagem, ações que não são controladas
por humanos, mas respondidas.
96 Neste trabalho trato da relação dos apicultores com as abelhas da espécie Apis mellifera Linnaeus.
211
97 Galleria mellonella
213
Figura 43: Detalhe para o caminho da traça da cera num caixilho velho
Figura 44: Caixilho velho de caixa abandonada pela colmeia, traça da cera em estágio avançado
de habitação nos favos.
diferenças entre caçadores e pastores. Se, por um lado, temos uma relação baseada
na confiança, em uma peculiar combinação entre autonomia e dependência, por outro
lado, o destino dos animais tem sido “entregue” para os humanos, já que ele é ao
mesmo tempo protetor, guardião e executor.
Assim, as classificações de selvagem e doméstico parecem ser inconsistentes
para descrever o que seriam abelhas nos universos das propriedades rurais. Situadas
entre o ambiente de mato (desconhecido) e os espaços da casa (controlado), as
abelhas são coletivos que embaralham as classificações dualistas que a Antropologia
clássica convencionou descrever. Abelhas parecem combinar um misto de autonomia
e dependência, hostilidade e amizade, previsão e descontrole. As fronteiras ente o
mato e a casa permanecem fluidas. A fronteira entre as cercas das propriedades é
esvaída de seu sentido em conter os animais alheios. A relação abelha-apicultor é
uma combinação frágil e inquietante, presume atenção constante.
Por um lado, os humanos possibilitam facilidades nas condições de
desenvolvimento das abelhas, como as caixas, por exemplo, que, sendo mais
fechadas, evitam a entrada de invasores como formigas, o que poderia, numa visão
dualista de mundo, denotar um controle sobre elas. Por outro, há total autonomia das
abelhas entre permanência e abandono das caixas. O que os apicultores tentam, de
diferentes formas, é proporcionar um ambiente propício para o desenvolvimento das
colmeias em suas propriedades. O apicultor tem o dever de tratar todas como rainhas,
conforme retrata Leopoldo.
Além disso, o que são abelhas parece estar relacionado com um engajamento
entre os seres. Gibson (1986), ao desenvolver a proposta sobre affordance, aponta
que seres vivo e ambiente cultivam um (eco)sistema integrado e recíproco. Os
affordances seriam como oportunidades disponibilizadas aos seres vivos, que eles
podem utilizar ou não. Assim, percebo as descrições de curiosidade que os apicultores
têm com as abelhas enquanto uma abertura a engajamentos diversos nos ritmos dos
tratos com as abelhas. Nessa relação, ambos são limitantes e complementares.
Nesse sentido, compreendo que apicultores não se relacionam com abelhas
enquanto espécie e/ou animais sujeitos a ações do homem. Abelha aparece aqui
muito mais enquanto uma força, uma potência com quem o agricultor/apicultor
participa na relação com o ambiente. É nesse engajamento prático, descrito enquanto
219
sobre a minha roupa, saí andando pelo campo, cerca de 1 quilômetro, e elas não me
abandonaram. Lembro-me de não sentir medo, mas um incômodo grande de ter tanta
abelha pousada em mim. Elas tentavam entrar pelas frestas das roupas, entre a
manga e a luva e na calça com a bota. Apesar de não se ter o contato diretamente
com as abelhas, se tem a sensação de estarem pousadas sobre a roupa, o que só
ocorre quando é um grupo grande de abelhas.
Se não é possível sentir a presença da abelha diretamente no corpo, é possível
ouvir o zunido constante e intenso em função da presença do apicultor no local. A
intensidade do som deixa explícitos os movimentos dos coletivos de abelhas: quanto
mais agitadas, em função da presença de humanos na volta das caixas, mais intenso
é o som. Se, em algum momento, se sente medo, o som talvez seja o agente mais
incisivo neste momento turbulento. É pelo som, também, que o apicultor já percebe
se elas estão em maioria próximas da caixa ou em campo. No dia em que elas
estavam agitadas, Leopoldo parou uns 50 metros das caixas e fez sinal para se ouvir
o som; ele disse que elas estavam “em casa”, pois o som era alto e intenso.
Este conjunto de percepções e conhecimento sobre o desenvolvimento e
comportamento das abelhas é o que possibilita ao apicultor dirigir a atenção para
épocas do ano em que práticas são mais fortuitas de serem realizadas do que outras.
Os períodos de dia e noite são um fator essencial na organização das abelhas. Ao
raiar do sol, parte das abelhas intensifica o trabalho em campo em busca do pólen e
água; quanto mais calor, mais intenso é o trabalho delas. Próximo da tardinha as
abelhas começam a ficar mais calmas e normalmente é o horário do dia em que o
apicultor realiza alguma prática em torno das caixas de abelhas.
Leopoldo me contou que a lua nova era uma época mais complicada de realizar
atividades próximo às abelhas. No dia em que acompanhei uma melada com ele,
Leopoldo me disse que as abelhas estavam muito tranquilas, pediu para reparar que
era lua cheia. Outro dia, quando acompanhei a limpeza na volta das caixas era lua
nova; em certo momento, tivemos que abandonar o trabalho, pois realmente estavam
bastante agressivas. Nesse sentido, tratar abelhas requer um investimento de
atenção, a fim de formular ocasiões de previsão. Segundo o apicultor, nos primeiros
anos de trabalho, ele não entendia os motivos pelos quais em certas ocasiões, era tão
complicado trabalhar com elas, por estarem tão agressivas a ponto de ter que
abandonar o trabalho. Com o tempo, ele resolveu prestar atenção em elementos
221
98 Mimosa bimucronata
222
temperatura e na sensação térmica, locais muito úmidos não são espaços adequados
para a implementação de caixas de abelhas. Como a umidade do ar está relacionada
com a amplitude térmica e a variação da temperatura não é algo desejado na
produção de mel, locais úmidos ou de encostas baixas de coxilhas não são indicados
pelos apicultores para a criação de um apiário.
A temperatura, neste contexto, tem influência direta no desenvolvimento das
colmeias e na produção de mel. Áreas com muita variação de temperatura culminam,
normalmente, no abandono das colmeias pelos enxames. Os coletivos de abelhas
possuem um sistema de termorregulação a fim de conter a variação de temperatura
dentro das colmeias. No inverno, elas costumam controlar a temperatura através de
variações na produção de calor por agrupamentos de abelhas, com o aquecimento
dos músculos do tórax das abelhas. No verão, uma parcela do coletivo se instala nas
paredes das caixas e, ao bater as asas constantemente, se inicia um mecanismo de
ventilação que culmina na diminuição da temperatura interna. A variação de
temperatura dentro da colônia se mantém no intervalo entre 33-36°C, segundo Jones
e Oldroyd (2007).
Figura 46: Sombreamento apiário feito pela mata nativa circundante no período da tarde.
a transição das caixas. Propus, então, que trocássemos para uma área mais plana e
mais baixa, perto de uma região de banhado. Prontamente, Leopoldo afirmou que não
seria viável fazer a transferência das caixas para o local, pois a região era muita baixa
e úmida, o que seria um problema para o desenvolvimento das colmeias,
principalmente no inverno. Leopoldo foi andando conosco pela propriedade e foi
mostrando lugares para os quais seria possível transferir as caixas, eram lugares mais
altos e com pouca possibilidade de pegar geada no inverno diretamente nas caixas.
Assim, segundo Leopoldo, áreas muito baixas não são adequadas para colocar as
caixas em função das baixas temperaturas e dos elevados índices de umidade.
Certo dia, quando Onécio fez uma visita em nossa propriedade resolvi
perguntar a ele o que achava do local para transferir as caixas de abelhas. Lembro
que ficamos andando por uma área bem mais extensa do que aquela onde tinha a
pretensão de colocar as caixas. Onécio dizia que era importante saber o que tinha na
volta; se tivesse água, ali na volta, era ruim colocar pois seria muito úmido para as
caixas. Esse lago aqui é muito bom para elas, ter água assim é importante, mas deixar
aqui embaixo as caixas, muito perto da água, não vai ser bom, aqui vai ficar muito frio
e a geada vai castigar as colmeias. Ele dizia que onde elas estavam era um bom lugar,
pois a abertura das caixas estavam a leste, com sombreamento adequado e num local
um pouco mais alto. Falei sobre a questão de estarem muito próximas da casa e achar
perigoso quando fossemos morar ali. Ele falou que isso não era um problema. Com a
abertura para leste, a gente direciona que elas saiam em direção ao sol, não vai ter
problema elas ficarem aqui não.
Nesse sentido, a relação entre abelhas e humanos, em meio ao fazer mel, é
intensamente mediada pelo ambiente. Fazer trilhas, sobrevoar os apiários vizinhos,
mensurar a disponibilidade de água e alimentos na região é um diálogo que os
apicultores estabelecem cotidianamente com as abelhas. Se a comunicação direta
com as abelhas é cheia de ruídos e imersas em intenções, analisar o ambiente é uma
forma tácita e material de aprimorar os níveis da comunicação. Por levarem as abelhas
a sério, os apicultores vivem num processo de constante atenção aos sinais do
ambiente e do desenvolvimento das colmeias. Trata-se, então, como aponta Donna
Haraway (2011), do cultivo da capacidade de sentir e pensar ‘com’ outros seres
mortais, não apenas ‘sobre’ eles.
228
106Tradução livre do trecho: Species interdependence is the name of the worlding game on the earth,
and that game must be one of response and respect. That is the play of companion species learning to
pay atention. Not much excluded form the needed play, not technologies, commerce, organisms,
landscapes, peoples, practices. I am not a posthumanists; I am who I become with companion species
[…] (DONNA HARAWAY, 2008, p. 19).
107 Tradução livre do trecho “The truth or honesty of nonliguistic embodied communication depends on
looking back and greeting significant others, again and again” (DONNA HARAWAY, 2018, p. 27). O
termo “significant others” faz referência aos Outros que são relevantes no jogo das diferenças, aos
seres que são relevantes nas relações diversas.
229
A dança das abelhas, descrita inicialmente na década de 1940 pelo cientista alemão
Karl von Frisch, é um exemplo da complexidade da comunicação não-verbal.
Se a comunicação abelha-humano é ruidosa e intermediada pelo ambiente, a
comunicação entre as abelhas é minuciosa, complexa e utiliza diferentes facetas do
campo sensorial para informar algo com precisão. Especificamente, a dança das
operárias comunica sobre o perímetro em que está disponível alimento e água no
campo. A dança é uma linguagem multicomponente que atrai as abelhas circundantes
para que recebam outros tipos de informação.
Leopoldo descreve a dança como uma conversa de um pequeno grupo de
abelhas operárias, sendo que não são todas que recebem as informações
repassadas. Como ele descreve, é tipo um clã, sabe, dentro da própria colônia, que
se comunicam entre elas, não daria para todas irem para o mesmo lugar ao mesmo
tempo né? Perguntei como ele sabia e se dava para ver que as abelhas dançavam.
Ele me responde: olha, eu não tenho certeza se o que eu vejo é a dança sabe?! eu
sei que elas dançam, todos os antigos falam sobre isso, mas assim, elas ficam
pairando no ar, tipo um beija-flor sabe?! ficam bastante tempo fazendo isso e
normalmente tu vai ver isso perto de uma floração nova, então eu acho que eu já vi a
dança sim.
Figura 47: Dança do requebrado. À esquerda (acima) é mostrado o ângulo formado entre a
colmeia, o sol e a fonte de alimento. À direita (acima) está um quadro no qual é mostrada a
direção da dança executada pela dançarina no favo, na posição vertical. Abaixo são mostrados
os tipos de dança: 1- Dança em círculo; 2 – Dança da foice e 3 – Dança do Requebrado.
108 Tradução livre do trecho: The waggle dance is a multicomponent signal in that it (i) attracts
surrounding bees so that they can receive other types of information; (ii) informs bees of the presence
of good food sources; (iii) activates private navigational information (if present) in followers; (iv) facilitates
the acquisition of information about food odours; and (v) indicates the location of the food source. To
understand how the waggle dance affects collective foraging patterns and, therefore, what its ultimate
function might be, the behavioural response to the different components of this multicomponent signal
should be considered (GRÜTER; FARINA, 2008, p, 244).
109 Tradução livre do trecho: a signal comprising more than one informational component. The
components can be redundant (i.e., lead to the same or an enhanced response) or nonredundant (i.e.
provide multiple messages that lead to particular responses each)
232
Figura 48: Detalhe para a polinização sendo feita pela abelha em flor de laranjeira.
Difícil é a descrição que me proponho a fazer aqui; talvez ela abra brecha para
críticas indesejadas, mas ela vem de um instigante questionamento que tive em
campo (e que ainda não está resolvido): como falar com seres que não falam
conosco? Ou melhor, como Onécio e Leopoldo aprendiam a tratar abelhas com as
abelhas? A história da dança surgiu numa dessas caminhadas com Leopoldo que
falava incessantemente sobre o forrageio. Ele estava intrigado porque as caixas que
ele havia colocado no mato em frente às caixas da minha propriedade produziam
cerca de trinta a quarenta por cento a menos. A dança, para ele, seria como um
componente eficaz em levar a informação da fonte de alimento mais rápido.
Já Onécio explica que o olfato das abelhas é sete, oito vezes mais aguçado
que o olfato dos cachorros, elas sentem o aroma das flores a quilômetros de distância.
Onécio diz que a dança acontece, mas, sem a informação do cheiro, as abelhas
dificilmente conseguiriam localizar com precisão a fonte de alimento. A dança é como
alguém nos direcionando para onde ir, mas o cheiro das coisas é que é esse mapa
das abelhas, sabe? Quando alguma coisa que eu perguntava era muito vivida, Onécio
dizia que não sabia explicar muito bem em palavras de que forma as coisas
aconteciam, mas achei interessante quando, certo dia, ele me falou que por mais que
a gente não soubesse muito como as abelhas dançam, por que é difícil de ver, né?
Ele confiava nelas, sabia que elas davam o seu melhor e era isso que ele tentava
fazer na lavoura também. Confiar, dar o seu melhor transpassa a noção de
responsabilidade. Assim, mais do que compreender em detalhes o mecanismo de
comunicação entre elas, Onécio descrevia a necessidade de confiar no trabalho que
elas desenvolvem e no que ele poderia fazer para melhorar as condições de
desenvolvimento das colônias.
110 Tradução livre do trecho: Il est inutile de recenser ici les nombreuses références littéraires ou
historiques où les abeilles sont prises comme un modèle idéalisé de société, qu’il s’agisse de la
monarchie, de la république ou du travail ouvrier. Sans doute est-ce un mythe historiquement récent,
mais l’essentiel est que l’abeille est l’un des animaux qui vient le plus volontiers à l’esprit comme
emblème d’une organisation sociale intelligemment structurée. De même, le « langage des abeilles »
est une expression qui ne surprend plus personne. Évidemment, tout cela n’est pas sans rapport avec
les faits établis puisqu’une colonie est une unité sociale qui repose sur une division du travail et une
distribution naturelle des fonctions biologiques de chaque individu (reine, bourdon, butineuses,
nourrices, ventileuses, cirières, gardiennes, etc.). Bref, une abeille ne survit pas longtemps
indépendamment de son groupe. Or, pour caractériser ces insectes sociaux et spécifier le fait manifeste
d’une organisation collective qui dépasse les individualités, le bon sens recourt à la notion de « self-
domestication » (Zeuner 1963, cité par Marchenay 1993). Autrement dit, l’abeille est déjà domestique
d’elle-même (Tétart, 2001, p.8).
236
Apesar das operárias não fazerem a postura das crias, elas também podem
reproduzir machos, por partenogênese – fecundação assexuada de um óvulo não
fecundado. Leopoldo conta que esse é um dos problemas de deixar a casa das
abelhas muito tempo sem manutenção ou suja, como ele descreve. Os alvéolos da
cera, por estarem duros demais, dificultam a abertura pelos filhotes fêmeas, que são
de menor tamanho, levando a rainha a não fecundar a maioria dos óvulos. Assim, não
é de interesse da colônia ter muita quantidade de zangões, pois eles não exercem
atividades dentro da colônia além da reprodução.
111 Toutefois, en jouant sur des distinctions au sein d’une même famille, la taxinomie savante introduit
une échelle de valeurs en fonction d’une représentation idéale de l’animalité. Par exemple, et pour
reprendre les catégories descriptives de l’entomologie, celle-ci distingue dans une colonie d’abeilles
deux classes d’individus biologiques : les insectes parfaits (désignant les reines dont l’activité exclusive
consiste à pondre deux à trois mille oeufs par jour) ; les insectes imparfaits (terme rapporté aux abeilles
ouvrières, stériles à l’exception du fait qu’elles peuvent reproduire des mâles par parthénogenèse).
Schématiquement, on retrouve dans cet exemple une hiérarchisation des degrés de perfection qui
préjuge d’une prééminence de l’animal sexué sur l’animal dont la sexualité apparente fait défaut
(TÉTART, 2001, p. 14).
240
113Vicia cracca
114Avena sativa
243
adubação verde, a gente não faz muito coisa, a gente deixa os bichos e as planta lá,
trabalhando sozinho. Além disso, Onécio diz que está alimentando o solo, para ele
depois alimentar o feijão, aí de quebra alimentamos as abelhas também, né. Elas
sempre tão junto, de um jeito ou de outro.
A ervilhaca produz uma flor roxa de cor intensa que preenche a paisagem
local e confere beleza aos campos agrícolas. Diferentemente da paisagem de uma
lavoura, o plantio da ervilhaca é feito a lanço, conferindo um crescimento irregular na
disposição dos espécimes ao longo do terreno.
Colheita do Extração do
mel mel
Enxamação
Cuidado
com as
caixas
Uma das atividades que acompanhei neste dia foi a limpeza das caixas de
abelhas com um preparado de álcool de cereais com própolis. Segundo Onécio, todas
as caixas que a gente perdeu para a vespa da cera tem que limpar com essa mistura
para que elas não venham mais naquelas caixas. As vespas não gostam do cheiro e
dificilmente procuram aquela caixa novamente.
Figura 52: Mistura de própolis e álcool de cerais utilizada por Onécio na limpeza das caixas de
abelhas.
a infestação destes insetos. Assim, para Onécio, a mistura de álcool e própolis era um
mecanismo de evitar a infestação decorrente da traça da cera.
Além disso, essa mistura serve também para retirar o cheiro da madeira do
eucalipto que ele usou para fazer tampas novas para as caixas dos ninhos das
abelhas. Segundo Onécio, a preferência das abelhas é fazer ninho em caixas de
madeira de lei, como a canela116 e a timbaúva117, por exemplo. Então, como o corte
destas madeiras não é mais legalmente permitido, o jeito é tirar o cheiro da madeira
para que elas possam vir e aninhar essas caixas. Nesse caso, a mistura de álcool com
própolis é uma maneira de modificar a percepção das abelhas quanto ao odor da
matéria das caixas.
Na manutenção realizada por Onécio, neste dia, além da melhoria das caixas
do ninho que estavam em desuso na propriedade, foram realizadas melhorias nos
Figura 54: Caixa de abelha em desuso vista pela parte interna. Detalhe para as marcas de cera
nas bordas
Figura 55: Local em que Onécio estava realizando a manutenção nas caixas do ninho. Material
estava em frente à casa.
Figura 56: Transporte das caixas de abelhas para realizar trabalho com a cera das abelhas.
Figura 57: Detalhe para a ferramenta produzida por Onécio com materiais que estavam
disponíveis no seu entorno durante o processo de inserção de lâmina de cera no quadro.
Figura 58: Detalhe para a disposição da lâmina de cera nos quadros da caixa do ninho.
cada quadro que era retirado da caixa do ninho, com auxílio de um facão, era
analisado a qualidade dos favos, as posturas que estavam sendo colocadas – zangão
ou cria de abelhas (princesas ou operárias) –, se havia proliferação de traça da cera
e se o formato dos alvéolos estava similar. Esses elementos, combinados entre si,
informam ao apicultor a necessidade ou não de troca dos favos das caixas do ninho.
Então, de uma mesma caixa, não são trocados os favos de todos os quadros
na mesma vez. Nas caixas que estavam com grande quantidade de cria ou muito
depósito de mel e pólen Leopoldo preferiu não mexer. Além disso, essa atividade
serve, além da limpeza do ninho, para dar um panorama geral da saúde do apiário.
Através do formato dos alvéolos e da disposição deles no favo, o apicultor tem
conhecimento, por meio deste padrão, sobre se a colmeia está saudável ou não. As
operárias têm uma intenção no tamanho construído das células do favo, a partir de
sua finalidade: para criar zangão, para criar operárias e para guardar mel.
mais do que um terço dos depósitos de mel consumidos por uma colônia
durante o inverno em um clima frio (Seeley, 1985).
Figura 59: Favo novo e com larvas, pupas e abelha adulta operária.
Figura 63: Detalhe para a disposição interna dos quadros na caixa de maneira perpendicular à
entrada da caixa.
Figura 64 Detalhe para a disposição dos quadros na caixa Schenk paralelo à entrada da caixa.
6.6.2 Enxameação
rotas de passagem de enxames que são fixas, com tráfego de enxames nos
dois sentidos, e a maioria dos enxames que se encontram nesses locais são
de excelente qualidade. Os Apicultores utilizam desse conhecimento
colocando iscas para capturá-los com a finalidade de repovoar e povoar
apiários. (PEGORARO et.al., 2017, p. 174).
Em torno de dois dias antes das novas rainhas emergirem, a antiga rainha
parte levando consigo cerca de metade da população de operárias com
idades diferentes. O enxame voa por pouco tempo, instalando-se logo em
algum lugar e se aglomerando em forma de cacho. As abelhas escoteiras
começam a procurar um lugar para a construção de favos e instalação
definitiva do enxame. Ao encontrar um local ideal, as abelhas voltam ao cacho
e realizam uma dança, informando a localização escolhida. Periodicamente,
a operária volta ao local e o marca com feromônio da glândula de Nasonov
(situada no abdome das operárias). Outras operárias vão visitar o Iocal, fazer
uma vistoria e, se aprovarem, irão realizar a mesma dança de sua
companheira. Quando a maioria das operárias estiver realizando essa dança,
o enxame se muda para o local escolhido. (WOLFF et. al., 2006, p.11)
Figura 65: Caixa-isca sendo colocada no campo para captura de novos enxames em época de
enxameação.
118Segundo Wolff (2006) caixa-isca é a denominação que recebe a colmeia preparada e instalada
adequadamente para atrair enxames em deslocamento.
266
a caixa, a rainha colocar postura e o enxame ter pouca quantidade de mel, o que o
torna menos agressivo.
A transferência para o apiário foi feita à noite. Segundo os apicultores, o senso
de direção para a volta para a casa das abelhas ocorre ao primeiro raiar do sol. Trocar
as caixas de abelhas durante o dia fará perder as campeiras que estão em forrageio.
Assim, mexer nas caixas à noite é algo relativamente tranquilo, não se faz uso de
fumaça e há pouca abelha operária que sai de caixa. Mas é importante ressaltar que
a caixa não foi aberta, apenas foi transferida de um local para outro. Normalmente,
pega-se a caixa pela parte oposta da abertura de entrada da colmeia, a fim de diminuir
os riscos de um possível ataque. O transporte das caixas foi feito por Onécio, somente
ele com o auxílio do seu trator. A família achou muito perigoso eu ir junto, visto que o
apiário fica passando uma sanga e uma área de mato.
Era verão, março de 2017. Muito calor. Colocamos blusa de manga comprida,
calça, botas. Por cima, um macacão. A sensação de calor era muito intensa.
Encontramos Leopoldo para melar as caixas das abelhas que ficam no nosso sítio e,
em seguida, melaríamos as caixas das abelhas da terra que faz divisa com a nossa.
Era período da tarde. Quando chegamos ao local combinado ele já estava ali, com um
macacão de apicultura e botas por dentro da roupa. Tinha consigo um fumigador,
baldes de 25 litros, um facão, uma caixa de fósforos, tampas de caixas reserva e uma
folha de papelão dura – do mesmo tamanho das tampas.
268
Figura 68: Fumigador tradicional, detalhe para local onde se produzir fumaça.
Normalmente, todas as caixas estão completas de mel nas sobrecaixas (ou meleiras),
o que acaba gerando mais trabalho para o apicultor além de aumentar a possibilidade
de pilhagem entre as colmeias.
Segundo Leopoldo, há poucas coisas que o apicultor pode fazer para diminuir
a pilhagem entre as colmeias no apiário, sendo que uma delas é aumentar o
espaçamento entre as caixas. Quanto mais distante uma colmeia da outra, menor é o
contato entre as colmeias e, consequentemente, a incidência de pilhagem entre elas.
Outro ponto que diminui a incidência de pilhagem é a agilidade do apicultor, no
momento da colheita do mel, em abrir, retirar os favos das meleiras e fechar a caixa
novamente. Quanto mais tempo a caixa ficar aberta, maiores são as chances de uma
colmeia tentar invadir a colmeia vizinha para roubar mel.
Nesse sentido, as ações de Leopoldo, ao iniciarmos a colheita do mel, eram
sutis, porém ágeis. Com o tempo, percebi que o ato de colher mel era uma espécie
de uma dança, um conjunto organizado de movimentos ritmados do corpo, uma
sincronia entre ações, artefatos e matérias. Atos ordenados, com uma série de ações
que se repetiam em cada caixa, em cada colheita. Para Leopoldo, é pela repetição
que o apicultor desenvolve as habilidades e aprofunda o conhecimento sobre o tratar
abelhas.
Assim, para colher mel, o apicultor primeiramente inseriu fumaça na entrada
da caixa-ninho para inibir uma ação mais agressiva das abelhas. A fumaça é
compreendida pelas abelhas como um alerta de um possível fogo nas redondezas, o
que provoca uma resposta natural a uma necessidade de abandono que possa vir a
acontecer. As abelhas, então, iniciam um processo de alimentação ou estocagem do
mel da caixa-ninho pelas operárias. Além disso, a fumaça inibe o cheiro de feromônio
das abelhas que fazem a guarda da colmeia.
271
Mas é importante salientar que este procedimento não paralisa as ações das
abelhas que desenvolvem atividades extranidais. A fumaça apenas diminui a
quantidade de abelhas que saem para proteger o ninho. Ao abrir uma caixa, no apiário,
as abelhas dos outros enxames da volta também acionam um processo de proteção
da sua colmeia. Então, no início das atividades no apiário, é como se tivesse um
ambiente propício ao trabalho humano. Da metade ao fim da colheita, já tem tanta
abelha na volta que se torna um incômodo permanecer trabalhando ali.
Na prática, mesmo com essas ações de mitigação dos ataques, estávamos
entre um amontoado de abelhas zumbindo em nossa volta. Eram tentativas
incessantes de encontrar nossa pele por de baixo das roupas e macacões. É nesse
contexto que as ações ordenadas e ágeis são fundamentais para as atividades
durante a colheita serem mantidas e finalizadas.
Normalmente Leopoldo colhe o mel, das mais de cem caixas que cuida,
sozinho. Ele diz já estar acostumado a trabalhar desta forma, mas que, por ser um
trabalho pesado e que precisa ser rápido, é melhor trabalhar em dois, no máximo três
pessoas, sabe? Durante a colheita Leopoldo permanecia em silêncio, direcionava-nos
o que fazer com gestos e poucas palavras. Segundo o apicultor abelhas não gostam
de muito barulho. Quando tinha algo mais prolongado a falar ele se retirava do apiário,
explicava-nos algo quando estávamos carregando um balde ou uma caixa.
Após fumegar a caixa-ninho, Leopoldo, com a ajuda de um facão, soltava a
tampa das meleiras para abrir as caixas. As tampas ficam coladas nas caixas por ação
das abelhas, através da inserção de cera em toda a sua volta. Elas fecham com cera
os locais da caixa em que há frestas a fim de evitar a entrada de possíveis predadores.
Então, depois que Leopoldo consegue abrir a caixa, colocamos novamente
fumaça para que as abelhas que estavam alocadas na tampa desçam em direção à
caixa-ninho. Nesta etapa, não se pode colocar muita fumaça, fumegamos no máximo
duas a três vezes, pois o excesso de fumaça danifica a qualidade do mel, ficando com
um gosto amargo e bem ruim. Há, também, a questão do que é utilizado para fazer
fumaça; não é qualquer árvore ou qualquer material que pode ser utilizado para esta
finalidade, pois também podem interferir no gosto do mel colhido. Leopoldo utiliza
muito restos de capim, como as folhas do capim elefante119 e do capim-dos-
quadros novamente nas melgueiras do apiário. Esse procedimento não pode levar
muito tempo, pois uma colmeia forte pode produzir favos na melgueira mesmo sem
os quadros e isso dificultaria a extração posteriormente. Cerca de uma semana
depois, ele volta ao apiário para colocar os quadros nas melgueiras, deixando-as
prontas para a produção do período de verão.
6.6.4 Melar
Esta etapa se refere ao momento em que é extraído o mel dos favos. Com o
auxílio de um garfo desoperculador, é retirada a cera dos alvéolos dos favos (figura
69) que obstrui a saída do mel. Se os favos não forem totalmente desoperculados,
eles se romperão facilmente durante o processo de centrifugação, e, normalmente,
não é extraído completamente o mel dos favos rompidos.
274
Figura 69: Retirada da cera dos alvéolos, com auxílio do garfo desoperculador, para posterior
extração do mel.
Após ser retirada a cera dos alvéolos, os quadros de madeira são colocados
em uma centrífuga, que pode ser manual ou elétrica. Segundo Leopoldo, as
centrífugas elétricas não são muito adequadas, pois quebram com facilidade os favos,
isso porque a rotação da centrífuga elétrica acaba sendo muito alta para a extração
do mel.
Olha, a extração tem que ser bem devagar. Não adianta querer agilizar essa
etapa que só vai perder mel. Se vocês forem usar uma centrífuga manual tem
que ir aumentando a velocidade aos poucos, gradativamente, e depois ir
baixando aos poucos também. Os antigos sempre dizem que o melhor jeito
para extrair o mel é no pano, né. Sabe aquele jeito que deixa escorrendo da
noite por dia? Era o jeito que eles faziam né. Mas a centrífuga manual vai
bem também. Já a elétrica eu não gosto muito, perde muito mel.
(LEOPOLDO, 2017).
Figura 72: Processo de peneirada do mel. Detalhe para os restos de cera provenientes da
centrifugação.
Considerações finais
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