137389-Texto Do Artigo-298508-1-10-20180629
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sala preta
Mundo
Martha Ribeiro
Martha Ribeiro
Professora Associada do Departamento de
Arte da Universidade Federal Fluminense (UFF)
Martha Ribeiro
Resumo
Pippo Delbono, em suas narrativas de viagem, nos revela um estado de
real e profunda experiência com o mundo que o toca. Seus olhos real-
mente se viram para o mundo, mas não para conformar esse mundo, visto
e olhado, em informação – não são absolutamente narrativas de informa-
ção. Sua narrativa nos transporta para seu mundo íntimo, sem pudores. A
vida que Pippo parece buscar é aquela do silêncio, do tempo dilatado, da
espera, da escuridão, para depois converter todo esse silêncio em gritos:
gritos mudos, gritos libertários, gritos de dor, gritos de alegria, gritos desu-
manos, para enfim encontrar o que há de mais sublime.
Palavras-chave: Teatro-festa, Corpos sublimes, Teatro íntimo, Pippo
Delbono, Emoção.
Abstract
Within the narratives of his journeys, Pippo Delbono reveals to us a state
of real and profound experience with the world around him. His eyes turn
indeed towards the world, not to conform this seen and observed world
in information – these are not narratives of information. His narrative
transports us to his intimate world, without bashfulness. The life that
Pippo seems to search for is one of silence, of dilated time, of waiting,
of darkness, to then convert all this silence in screams: mute, libertarian,
painful, joyful, inhuman screams, at last finding that which is most sublime.
Keywords: Theatre-party, Sublime bodies, Theatre-intimate, Pippo
Delbono, Emotion.
2 No original: “viaggiando spesso finisco dentro a situazioni o luoghi che è come si mi appar-
tenessero da un antico passato. Qualcosa che incontro nel viaggio mi commuove profon-
damente e allora me lo porto via, lo metto nel mio lavoro. Ma non si tratta di una attenzione
antropologica, non mi interessa prendere una maschera o ispirarmi alle danze o ai rituali di
una cultura che non mi appartiene e poi metterli nei miei spettacoli, no. È qualcosa d’altro,
qualcosa di più profondo: in qualche modo io rubo l’anima. O forse ritrovo lì una anima”.
3 No original: “Come regista […] i miei elementi sono la musica, le parole, le persone, i loro
visi, i loro movimenti. Fare uno spettacolo è come comporre qualcosa simile a uno spartito
musicale […] per me la musica negli spettacoli è tutto. Tutto è come se fosse una musica,
e io sono sempre molto attento a ogni minima variazione delle note, a ogni pausa, cambio
di accento, sospensione, così come a ogni movimento nello spazio, cambio di direzione,
ritmo dei gesti mi sento di essere uno che dirige un’orchestra fatta non solo di musicisti e
strumenti musicali, ma anche di corpi, parole, immagini, movimenti, gesti”.
Figura 3 – Vangelo. Atores Bobò e Pippo Delbono. Foto: Luca de Pia, 2016.
o fato de que ele era budista, e que até o último momento tentou convertê-lo.
Ele a olhava e não dizia nada, respeitando a sua idade e a sua velhice, sua
aproximação da morte. Mas em seu íntimo, Pippo pensava em toda a sua
raiva acumulada da igreja, do cheiro de velas, dos padres que o acariciavam
quando criança, do medo que o fizeram sentir de Deus, do sexo, do amor, do
medo de se transformar em uma pessoa livre!
Vangelo é um teatro íntimo, no qual Pippo age expondo o dilaceramento
do seu corpo diante de uma ordem moral, tirânica, que lhe fez buscar o amor
em parques, em lugares escondidos, para enfim transformar seu amor numa
ferida e ele em um pecador: “um pecador do que? De que coisa?” – grita
Pippo no espetáculo. Para o artista, o teatro é o lugar da revolução, onde
ele se expõe como maschere nude: “Eu não acredito em Deus”, “Eu não
acredito em Deus”! Num claro apelo para “se acabar com o juízo de Deus”,
esse deus ladrão de que fala Artaud, que desde seu nascimento lhe roubou
seu corpo, separando-o dele mesmo, que o fez duplo em todas as maneiras.
O Evangelho apócrifo de Pippo não habita uma igreja, o território do seu
Evangelho é o teatro, lugar de exposição de uma intimidade em carne viva,
carne nua, lugar onde ele e seus atores extraordinários refazem sem cessar
seus corpos. O espetáculo termina com a imagem-cena de Buda criança,
dentro de um berço, realizada pelo ator Gianluca Ballarè, sob a música de
Jesus Christ Superstar. Corpos sem órgãos, feitos por uma “anatomia fur-
tiva”, como quis Artaud, incapaz de se fixar numa forma. Pela hipótese de
Grossman (2003, p. 16, grifo da autora), “uma anatomia furtiva seria aquela
de um corpo (como também de um corpo textual) que não seria nem um
signo e nem um cadáver. Um corpo eternamente vivo”. Como anuncia Pippo,
seu teatro é
por Eurípedes. E mais uma vez Artaud (1999, p. 136-137): “O teatro deve
igualar-se à vida, não à vida individual, ao aspecto individual da vida em que
triunfam as PERSONALIDADES, mas uma espécie de vida liberada, que varre
a individualidade humana e em que o homem nada mais é que um reflexo”.
A análise de Barthes me interroga sobre a emoção que me investe ao
assistir ao teatro de Delbono, e neste caso, Vangelo. Buscando compreender
o gesto da emoção do choro que me toma profundamente, recorro a Didi-
Huberman (2016) em suas considerações no livro Que emoção! Que emo-
ção?: se me espanto pela experiência do pranto que me toma sem aviso e
pela intensidade do choro, exclamo “que emoção!”, e logo em seguida, para
entender o gesto, pergunto “que emoção?”. Ao me perguntar “que emoção?”,
me vejo num impasse, pois algo que age sobre mim, que me move para fora
de mim, não somente abala a análise de Barthes sobre a economia do choro
no contemporâneo, como também abre uma passagem para um teatro onde
as paixões individuais são excluídas. Para dizer de outra maneira, diante de
um teatro povoado por corpos extraordinários que abalam nossas represen-
tações, por situar-se à margem das regras do verossímil, intensifico minha
experiencia da emoção enquanto, vai dizer Didi-Huberman (Ibid., p. 28), um
“‘movimento para fora de si’: ao mesmo tempo ‘em mim’ (mas sendo algo
tão profundo que foge à razão) e ‘fora de mim’ (sendo algo que me atra-
vessa completamente, para, depois, se perder de novo)”. A emoção que age
sobre mim talvez seja esta ação, este gesto, de que falava Artaud (1999, p.
96), que visa a uma verdadeira transformação orgânica e fisica dos corpos
humanos, pois “tudo o que age é uma crueldade”. Voltando a Didi-Huberman
(2016, p. 38, grifo do autor), “as emoções, uma vez que são moções, movi-
mentos, comoções, são também trnasformações daqueles e daquelas que
se emocionam”.
Referências bibliográficas
ARTAUD, A. O teatro e seu duplo. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
BARTHES, R. Escritos sobre teatro. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
BAUDRILLARD, J. As estratégias fatais. Rio de Janeiro: Rocco, 1996.
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol. 4. Rio de
Janeiro: Editora 34, 1997.
Recebido em 26/08/2017
Aprovado em 21/05/2018
Publicado em 29/06/2018