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DOI:10.11606/issn.2238-3867.

v18i1p313-327
sala preta
Mundo

Corpos sublimes: o teatro-festa de Pippo


Delbono Il vangelo della teatralità
Sublime bodies: Pippo Delbono’s theatre-party
Il vangelo della teatralità

Martha Ribeiro

Martha Ribeiro
Professora Associada do Departamento de
Arte da Universidade Federal Fluminense (UFF)
Martha Ribeiro

Resumo
Pippo Delbono, em suas narrativas de viagem, nos revela um estado de
real e profunda experiência com o mundo que o toca. Seus olhos real-
mente se viram para o mundo, mas não para conformar esse mundo, visto
e olhado, em informação – não são absolutamente narrativas de informa-
ção. Sua narrativa nos transporta para seu mundo íntimo, sem pudores. A
vida que Pippo parece buscar é aquela do silêncio, do tempo dilatado, da
espera, da escuridão, para depois converter todo esse silêncio em gritos:
gritos mudos, gritos libertários, gritos de dor, gritos de alegria, gritos desu-
manos, para enfim encontrar o que há de mais sublime.
Palavras-chave: Teatro-festa, Corpos sublimes, Teatro íntimo, Pippo
Delbono, Emoção.

Abstract
Within the narratives of his journeys, Pippo Delbono reveals to us a state
of real and profound experience with the world around him. His eyes turn
indeed towards the world, not to conform this seen and observed world
in information – these are not narratives of information. His narrative
transports us to his intimate world, without bashfulness. The life that
Pippo seems to search for is one of silence, of dilated time, of waiting,
of darkness, to then convert all this silence in screams: mute, libertarian,
painful, joyful, inhuman screams, at last finding that which is most sublime.
Keywords: Theatre-party, Sublime bodies, Theatre-intimate, Pippo
Delbono, Emotion.

“O interessante é o rito, não é entender, é se deixar afetar”


Pippo Delbono

Há em Pippo um estado de forte ligação com o mundo, mas não no


aspecto agudo do mundo, ao contrário, seu interesse de troca se volta para
o que há de mais anódino no mundo, para as coisas muito pequenas, para
aquilo que normalmente não prestamos atenção, por estarmos demasiada-
mente inebriados com o sentimento imponente do belo ou com a sensação
do poder que emana das coisas grandes, ou do que é conveniente, ou do que
é higiênico. É desse lugar em “abandono” que uma explosão de vaga-lumes
incendeia o imaginário de Pippo, que como um bambino, persegue os rastros

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luminosos, traçando uma constelação de sonhos e de coisas impalpáveis, e


por isso tão reais, decantadas em seu teatro. O detalhe irrisório, as ruínas de
cada cidade que visita, de cada encontro inusitado, ocorrido por acaso, são
pontes que Pippo traça para alcançar o outro, encontrando-se. São os fios
de um tecido construído em derrisão, que nos ajuda a descobrir, junto com
ele, naquele outro, fora de nós, alguém que nos é completamente íntimo. Se
nunca encontrei Pippo Delbono, ou os integrantes de sua companhia, fora dos
palcos, descubro, ou melhor, desvelo, em cada encontro virtual, nos livros,
palestras, espetáculos, vídeos, fotos, uma intimidade completamente descon-
certante. Acredito ser essa a maior particularidade da arte teatral, única arte
do encontro vivo, isto é, revelar no outro, totalmente desconhecido, alguém
que nos é completamente íntimo.
A viagem de Pippo à sua Ítaca, rica de aventuras, experiências, encon-
tros e (des) encontros, é uma viagem convite a todos nós. Uma viagem íntima,
solitária, dolorosa, mas ao mesmo tempo, repleta de pontes, embriaguez e
multidão. Pippo tem o dom de olhar para o mundo e para o que há de mais
profundo em si mesmo com olhos furtivos. Esse olhar clandestino, fugidio, ao
mesmo tempo que furta as coisas do mundo, tomando-as como suas, tam-
bém provoca uma desapropriação de si. Conforme já analisado por Jacques
Derrida no livro A escritura e a diferença, quando busca entender a expressão
“anatomia furtiva”, cunhada por Antonin Artaud1, o furtivo seria o “modo do
ladrão” (1971, p. 119), o roubo original. Mas não é só isso, pois a palavra furtivo
também se inscreve como fugidio, fugaz, aquilo que não se pode apreender,
que escapa à toda compreensão, que faz desaparecer todo sentido. Como
salientado por Évelyne Grossman, “furtivo não diz apenas o roubo, mas o
voo, a perda do sentido […] o furtivo não pode se fixar numa forma” (2003,
p. 16). O olhar furtivo de Pippo, lançado ao mundo, nos instiga a seguir por
essa aventura que é o seu teatro, sem temer a fúria de Netuno, em busca de
cada vez mais e mais Ítacas, último refúgio (e talvez o único) para o completo
esvaziamento operado pelo excesso de informação e de interdições em nosso
tempo contemporâneo. Seu teatro, assim como seus filmes-teatro, é povoado

1 A expressão “Anatomia furtiva” aparece em um dos últimos escritos de Artaud, Aliéner


l’acteur, de 1947, evocando um “novo corpo humano” que o Teatro da Crueldade deveria
fazer nascer.

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pelo material volátil de viagens, experiências, poesias, depoimentos e con-


fidências, suas e de outros, alegrias e dores, mas principalmente, é feito de
humanidade em carne viva. É a sua carne que Pippo expõe em cada movi-
mento que executa, em cada espetáculo, somando à sua voz, ao seu grito,
outros gritos, compondo um mosaico, uma constelação de vozes, gritos-mo-
saico que ele absorve para si, por pertencimento, tornando-os material de sua
própria intimidade.

quase sempre quando viajo acabo em situações ou em lugares que é


como se pertencessem a um antigo passado mu. Se encontro na via-
gem algo que me comove profundamente, então levo comigo, coloco
dentro do meu trabalho. Mas não se trata de um entusiasmo antropoló-
gico, não me interessa pegar uma máscara ou inspirar-me nas danças
ou nos rituais de uma cultura que não é a minha e depois os colocar em
meus espetáculos, não. É outra coisa, alguma coisa de mais profundo.
De alguma maneira eu roubo a alma. Ou talvez encontre ali uma alma.
(DELBONO apud GHIGLIONE, 1999, p. 13, tradução nossa)2

O movimento de Pippo para o outro não se volta para o exterior, para


as formas, como ele mesmo sugere ao dizer que “rouba” ou que “encontra”
para si, no outro, uma alma. Essa experiência revelada nos instiga a pensar
que o artista, em sua relação com a alteridade, ao invés de observar diferen-
ças, demarcando sua identidade, procede por embaralhamento de todos os
códigos, culturais e ou artísticos, potencializando sua própria existência por
acúmulo, colando sua face com a do outro, num movimento de coincidência
com ele mesmo, que provoca o apagamento de todo território, por desliza-
mento. Suas deambulações pelo mundo não são o registro de um antropólogo,
como ele mesmo diz, preocupado em marcar e isolar códigos distintos, mas
seguem o movimento contrário, isto é, o da experimentação, em direção a
um teatro íntimo. Experimentar é o avesso da informação que apenas passa
por nós, ter uma experiência é um acontecer que nos afeta e que, por isso,
nos transforma, como nos lembra Jorge Larrosa (2014). Ter uma experiência

2 No original: “viaggiando spesso finisco dentro a situazioni o luoghi che è come si mi appar-
tenessero da un antico passato. Qualcosa che incontro nel viaggio mi commuove profon-
damente e allora me lo porto via, lo metto nel mio lavoro. Ma non si tratta di una attenzione
antropologica, non mi interessa prendere una maschera o ispirarmi alle danze o ai rituali di
una cultura che non mi appartiene e poi metterli nei miei spettacoli, no. È qualcosa d’altro,
qualcosa di più profondo: in qualche modo io rubo l’anima. O forse ritrovo lì una anima”.

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é um encontro de intensidades. Esse gesto em direção ao mundo se rea-


liza numa cena teatral que destoa da organização representativa e de seus
códigos de submissão a uma tripla regulagem do ver, do fazer e do saber
(RANCIÈRE, 2012). Sua linguagem cênica se alimenta de uma fluidez extraor-
dinária entre diversos códigos de teatralidade e de performatividade, o que,
em nosso entendimento, aproxima sua experiencia artística do corpo sem
órgãos de Antonin Artaud, produzindo no palco uma extrema diferenciação, o
delírio de um teatro-festa, barroco, que escapa da lógica representacional e
que se investe contra o terreno baldio de um excesso de real, desse êxtase
do real que tanto banaliza a vida contemporânea. Sobre o excesso de real,
responsável pela simulação do próprio real e, consequentemente, por seu
desaparecimento, denuncia Baudrillard:

A simulação é o êxtase do real: basta assistir à televisão. Todos os fatos


reais se sucedem numa relação perfeitamente extática, isto é, em traços
vertiginosos e estereotipados […]. O antiteatro é a forma extática do tea-
tro: nada de palco, nada de conteúdo, o teatro na rua, sem atores, teatro
de todos para todos, que chegaria a se confundir com o exato desenrolar
de nossas vidas sem ilusão – onde está o poder da ilusão, se ela se
extasia em retraçar nossa vida cotidiana? (BAUDRILLARD, 1996, p. 9)

Para o filósofo, o desaparecimento do real não se dá no jogo da ilu-


são, mas no hiper-real, naquilo que se diz mais verdadeiro que o verdadeiro,
isto é, na simulação: simular alguma coisa que se pareça mais real do que
aquilo que ela simula, substituindo o real pelos sinais do real, confundindo o
simulacro com o real. Esse êxtase do real culmina em seu aparente oposto,
o espetáculo, mas se trata de um espetáculo de formas vazias, sem imagi-
nação, sem jogo de cena. O teatro festa de Delbono, em movimento oposto
ao antiteatro, alimenta a cena da ilusão, do imaginário, por sua extravagância
na realização de uma montagem que se quer eficaz. A montagem eficaz é
também a forma radical do artifício do mundo, ela não partilha com qualquer
regulamentação da arte, de gosto ou de obediência a um modelo, ela seduz
por ser desregrada. Tal é a condição da montagem eficaz: apresentar, a partir
de combinações inusitadas, o que se pode conceber, mas que nenhuma ima-
gem é capaz de sozinha representar. Sua condição de existência é a rebeldia
ao gosto, ao comum, a montagem eficaz namora o extraordinário. Povoado

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por corpos marcados por contrastes, corpos inadequados, irreconciliáveis com


o sistema de regulagem, o teatro de Pippo exalta o movimento, a variedade,
reunindo teatro, dança, música, canto, vídeo etc., que deliberadamente estão
lá para afetar o espectador, propondo uma ideia de sonho em contraste com
uma realidade nada satisfatória. Mas, Pippo também se utiliza de uma narra-
tiva aparentemente documental, ou jornalística, como querem seus mais fer-
renhos críticos, dispostos a ver em seu teatro uma espécie de telejornalismo
sensacionalista, de agenciamento dos corpos e das vozes de alguns atores
singulares de sua companhia. Tal crítica acusa seu teatro de engendrar um
freak show.

Figura 1 – Vangelo. Ator Nelson Lariccia. Foto: Luca de Pia, 2016.

No entanto, essa narrativa, na maioria das vezes escrita em um papel e


lida em cena pelo próprio Pippo, numa espécie de atuação selvagem, perma-
nece sendo o que é: uma encenação, uma estratégia das aparências e não a
simulação de um real. Se a montagem engendrada pelo encenador alimenta
a cena da ilusão, lugar do engodo, onde a realidade dos corpos singulares
e o sonho de uma realidade outra, para além da objetivação dos corpos,
se atravessam, ela mantém a honestidade de se confessar teatro. Esse é o
motor de criação de Pippo e de seus atores ditos inábeis: se o mundo real é
um deserto para eles, o teatro será o lugar onde todos podem se repovoar,

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ou criar para si um novo corpo, deixar de ser invisível antes de desaparecer.


Além do que, essa narrativa não se quer real justamente por se tratar de um
relato íntimo. Para Jean-Pierre Sarrazac “O íntimo difere do secreto no sentido
de que ele não se destina a ser ocultado, mas, ao contrário, destina-se a ser
voltado para o exterior, extravasado, oferecido ao olhar” (2013, p. 21). Quer
dizer, o íntimo possui uma dupla dimensão, ao mesmo tempo que é espetá-
culo, oferecendo-se ao outro, também mantem uma relação com o que há de
mais profundo em nós. E continua: “o íntimo não é, na verdade, nada mais
que uma profundidade fingida, um sutil efeito de superfície” (Ibid. p. 22). É vital
acentuar a enorme diferença entre um teatro intimista e um teatro íntimo (no
qual inserimos Delbono): enquanto o primeiro liga-se à esfera da vida privada,
dos interiores, no teatro íntimo o espaço de dentro deseja o espaço de fora,
“uma arte da indiscrição”. Se Sarrazac nos aponta Strindberg como o drama-
turgo mais “indiscreto” que já existiu, para nós, Delbono figura como exemplo
de encenador mais indiscreto de todos os tempos. O teatro de Pippo, um tea-
tro fundamentalmente íntimo, por sua própria especificidade, não abandona o
jogo de cena e muito menos o espaço da encenação, da montagem. No jogo
visceral do encenador e performer, observa-se uma construção cuidadosa da
cena, em cada detalhe, o que não é por ele negada:

Como diretor […] meus elementos são a música, as palavras, as pes-


soas, os seus rostos, os seus movimentos. Fazer um espetáculo é como
compor algo similar a uma partitura musical. […] Para mim a música é
tudo. Tudo é como se fosse uma música, e eu estou sempre muito atento
a cada mínima variação das notas, a cada pausa, mudança de intensi-
dade, suspensão, assim como a cada movimento no espaço, mudança
de direção, ritmo dos gestos, sinto que dirijo uma orquestra feita não
apenas de músicos e de instrumentos musicais, mas também de corpos,
palavras, imagens, movimentos, gestos. (DELBONO apud GHIGLIONE,
1999, p. 22-23, tradução nossa)3

3 No original: “Come regista […] i miei elementi sono la musica, le parole, le persone, i loro
visi, i loro movimenti. Fare uno spettacolo è come comporre qualcosa simile a uno spartito
musicale […] per me la musica negli spettacoli è tutto. Tutto è come se fosse una musica,
e io sono sempre molto attento a ogni minima variazione delle note, a ogni pausa, cambio
di accento, sospensione, così come a ogni movimento nello spazio, cambio di direzione,
ritmo dei gesti mi sento di essere uno che dirige un’orchestra fatta non solo di musicisti e
strumenti musicali, ma anche di corpi, parole, immagini, movimenti, gesti”.

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Em toda apresentação teatral há o momento da preparação, aquilo que


antecede ao espetáculo propriamente dito. Uma espécie de momento zero,
que pertence aos bastidores. Porém, em seus espetáculos, Pippo revela essa
preparação, que passa a funcionar como uma anunciação. Por mais simples
que seja o movimento zero empreendido no palco, sua revelação possui car-
gas de tensão e seriedade fortíssimas. A apresentação dos preparativos abre
no palco um espaço híbrido. Um lugar muito sutil entre a realidade do palco e
dos atores e a promessa de uma cena, um espetáculo, uma ficção. O teatro
de Pippo se abre com um estranho e familiar rito, um rito propriamente tea-
tral, que nos remete inexoravelmente ao teatro de Luigi Pirandello. É como
se Pippo e sua companhia perguntassem: vocês estão preparados? Vamos
começar nossa vertiginosa viagem, rumo ao mais íntimo de nós e tudo ficará
de cabeça para baixo. E de repente tudo se consuma. O espetáculo Vangelo4
não é diferente. Estamos em frente a um palco quase vazio, na boca de cena,
onze cadeiras vermelhas, ao fundo, uma parede cinza. O primeiro a entrar é
Pepe Robledo, ator histórico da companhia. Em seguida, cada um dos atores
(menos Pippo, Bobò e Gianluca Ballarè) sentam em seus lugares e olham
diretamente para o público, em silêncio (um silêncio grave, como o que sem-
pre antecede a uma confissão). Não há nenhuma quarta parede que nos
separa, estamos diante de um teatro íntimo, que não dá espaço para “vidas
privadas”. A promessa dessa frontalidade é de que tudo nos será revelado, não
haverá segredos, somente exposição. E no teatro de Pippo, a exposição é dos
corpos singulares que o habitam: Bobò, um ator microcéfalo e surdo-mudo,
resgatado do manicômio de Aversa, adotado pela companhia, depois de pas-
sar confinado por quarenta e cinco anos; Gianluca Ballarè, ex-pupilo da mãe
de Pippo, afetado pela síndrome de Down; o próprio Pippo, declaradamente
soro positivo; Nelson Lariccia, um homem extremamente magro e ex-morador
de rua.

4 Vangelo (2016, Teatro Comunale di Bologna), um espetáculo de Pippo Delbono. Com


Gianluca Ballarè, Bobò (Vincenzo Cannavacciuolo), Zrinka Cvitesic, Pippo Delbono, Ilaria
Distante, Simone Goggiano, Tatjana Hrvacic Gasparac, Mario Intruglio, Nelson Lariccia,
Gianni Parenti, Iva Mihalic, Alma Prica, Pepe Robledo, Vlasta Ramljak, Grazia Spinella,
Nina Violic, Safi Zakria, Mirta Zecevic, Danijela Zobundija. Com a participação no filme
dos refugiados do centro de acolhimento PIAM de Asti.  O espetáculo estreou em 11 de
dezembro de 2015 no Teatro Nacional Croata de Zagreb.

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Figura 2 – Vangelo. Foto: Maciej Zakrzewski, 2016.

Corpos singulares que facilmente poderiam ser menosprezados como


freaks, aceitos na medida de exibição de seus corpos excessivos. Mas existe
muito mais nesses corpos expostos, que mais do que habitar, constituem
o teatro de Delbono, que não se encerra em um show de variedades, algo
em sua comunicação que desmorona toda classificação de ordem médica,
psiquiátrica ou mesmo de um teatro autoproclamado social. Para José Gil
(2006, p. 63), “o monstro descentra a representação”, o que significa dizer que
esses corpos singulares, extraordinários, negam a tripla regulagem, ou seja,
recusam-se ao controle da representação. Como analisado por Gil, a imagem
desses corpos “inadequados” atrai o olhar e a imaginação, pois “mostraria
como potencialmente a humanidade do homem, configurada no corpo nor-
mal, contém o germe da sua inumanidade” (Ibid., p. 125). O termo monstro,
de origem latina, significa tanto “mostrar” [monstra] como “aquele que revela”
[monstrum]. A imagem desses corpos anômalos causa fascínio, na exata
medida do terror que proporciona. Uma experiência de prazer e desprazer
que desafia a representação no real, pois excede no real sua própria repre-
sentação. Oferecendo ao olhar o íntimo de seu corpo, uma espécie de espe-
táculo da carne, ele desterritorializa a representação, expondo, escancarando,

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afirmando sua singularidade contra o mesmo. O corpo anômalo, que como


muito bem esclarecem Deleuze e Guattari (1997), não se trata do anormal,
mas do desigual, um outsider, que desafia as regras da representação, pois
mostra, revela o irreal verdadeiro; como analisa Gil: “A sua presença restitui
a verdade essencial da representação e é como que a sua negação no real
– um real que se trata precisamente de controlar, de ‘devolver’ conforme sua
veracidade” (GIL, 2006, p. 63).

Figura 3 – Vangelo. Atores Bobò e Pippo Delbono. Foto: Luca de Pia, 2016.

Escapando ao controle do sistema de representação, esses “corpos sem


mentira” se mostram e desafiam, com a indiscrição de sua carne, avessa a
toda interioridade, nossa imaginação, desvelando diante de nós seu íntimo. No
espetáculo Vangelo, após os atores se colocarem de frente a nós e em silên-
cio, expondo-se de forma resignada a todos os olhares, como se dependes-
sem disso para tomar forma, ouvimos a voz de Pippo, que narra sua própria
intimidade em carne viva. O artista é emblemático para o entendimento do “eu
errante” de Sarrazac (2013, p. 43), “que produz o íntimo e o dá em espetáculo”.
Na peça, ele nos conta que sua mãe, já no leito de morte, continuava a lhe
falar de Deus, da caridade, da Santa Maria, e que lhe havia pedido para fazer
um espetáculo sobre o Evangelho. Pippo nos diz que ela jamais aceitou o fato
de que ele, por tantos anos, não havia entrado em uma igreja, não suportando

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o fato de que ele era budista, e que até o último momento tentou convertê-lo.
Ele a olhava e não dizia nada, respeitando a sua idade e a sua velhice, sua
aproximação da morte. Mas em seu íntimo, Pippo pensava em toda a sua
raiva acumulada da igreja, do cheiro de velas, dos padres que o acariciavam
quando criança, do medo que o fizeram sentir de Deus, do sexo, do amor, do
medo de se transformar em uma pessoa livre!
Vangelo é um teatro íntimo, no qual Pippo age expondo o dilaceramento
do seu corpo diante de uma ordem moral, tirânica, que lhe fez buscar o amor
em parques, em lugares escondidos, para enfim transformar seu amor numa
ferida e ele em um pecador: “um pecador do que? De que coisa?” – grita
Pippo no espetáculo. Para o artista, o teatro é o lugar da revolução, onde
ele se expõe como maschere nude: “Eu não acredito em Deus”, “Eu não
acredito em Deus”! Num claro apelo para “se acabar com o juízo de Deus”,
esse deus ladrão de que fala Artaud, que desde seu nascimento lhe roubou
seu corpo, separando-o dele mesmo, que o fez duplo em todas as maneiras.
O Evangelho apócrifo de Pippo não habita uma igreja, o território do seu
Evangelho é o teatro, lugar de exposição de uma intimidade em carne viva,
carne nua, lugar onde ele e seus atores extraordinários refazem sem cessar
seus corpos. O espetáculo termina com a imagem-cena de Buda criança,
dentro de um berço, realizada pelo ator Gianluca Ballarè, sob a música de
Jesus Christ Superstar. Corpos sem órgãos, feitos por uma “anatomia fur-
tiva”, como quis Artaud, incapaz de se fixar numa forma. Pela hipótese de
Grossman (2003, p. 16, grifo da autora), “uma anatomia furtiva seria aquela
de um corpo (como também de um corpo textual) que não seria nem um
signo e nem um cadáver. Um corpo eternamente vivo”. Como anuncia Pippo,
seu teatro é

para aqueles sempre humildes, sempre fracos, sempre tímidos, sempre


ínfimos, sempre culpados, sempre supliciados, sempre pequenos, que
não querem mais saber, que tem olhos somente para implorarem, para
aqueles que vivem como assassinos, como bandidos, como loucos, para
aqueles que se adaptam a um mundo debaixo do mundo, para aque-
les que cantam, para aqueles que dançam. (fragmentos de Vangelo, de
Pippo Delbono)5

5 Um trecho em vídeo do espetáculo pode ser visto em: <https://vimeo.com/165168431>.

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Figura 4 – Vangelo. Ator Gianluca Ballarè. Foto: Luca de Pia, 2016.

Diante do teatro de Pippo Delbono, diferentes emoções me atravessam,


que me conduzem, ou que são conduzidas por mim, até o pranto. Tão raro
o choro profundo sem pudores diante de um espetáculo, até mesmo diante
da vida. Conforme já observado por Roland Barthes (2007, p. 25), “desde a
Antiguidade, já não se sabe chorar, já não se ousa chorar”. O estudioso compara
como essa nossa economia do choro se difere do espírito do teatro antigo, onde
se chorava copiosamente. Com um exemplo poderoso, Barthes aponta que
a curiosidade ocupou hoje o lugar da dor, comparando a reação da multidão
diante da notícia da morte de Ésquilo, em Atenas, com a notícia da morte de
Jouvet, em Paris, em que os olhares curiosos diante dos artistas que anuncia-
vam o luto substituíam a emoção. No lugar do choro, pedidos de autógrafo. O
que não faltam são exemplos de substituição da dor pela curiosidade, tornando
a desgraça que se abate sobre o outro mais um espetáculo de imagens, no
qual se escolhe entre a contenção seca ou o úmido superficial nos olhos. Não é
difícil aceitar o argumento crítico de Barthes, o próprio Antonin Artaud já via com
espanto a falta de emoção entre nós, modernos. Ele, sempre tão acometido por
emoções e dores tão profundas ao ponto de se declarar ao mundo como um
“desesperado”, um “supliciado” da sociedade, procurou pensar um teatro cruel,
ressonante, que despertasse no homem tempestades físicas, emocionais. A
crítica de Artaud ao anestesiamento e ao entorpecimento de nossa sociedade
comparece em Teatro e seu duplo, quando diz:

No ponto de desgaste a que chegou nossa sensibilidade, certamente


precisamos antes de mais nada de um teatro que nos desperte: nervos

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e coração. Os danos do teatro psicológico oriundo de Racine nos desa-


costumaram da ação violenta e imediata que o teatro deve ter. […] sen-
timos a necessidade urgente de um teatro, […] cuja ressonância em nós
seja profunda, […]. O longo hábito dos espetáculos de distração nos
fez esquecer a ideia de um teatro grave que, abalando todas as nossas
representações, insufle-nos o magnetismo ardente das imagens e acabe
por agir sobre nós a exemplo de uma terapia da alma cuja passagem não
se deixará mais esquecer. (ARTAUD, 1999, p. 95-96)

Para Barthes, as lágrimas do mundo antigo em nada se assemelham


às nossas, que comedidas, controladas ou superficiais, umedecem lenços à
proporção de nossa individualidade. Mas, se guardamos nossas lágrimas ou
se apenas as liberamos quando alguma emoção privada nos afeta, econo-
mizando nosso pranto público por pudor, polidez ou mesmo por desencanto,
visto que acreditamos que nem tudo estaria à altura de nosso pranto, ainda
seria possível ao teatro, hoje, convocar ou provocar nossas lágrimas públi-
cas? Para Barthes (2007, p. 27), a comoção moderna seria sempre de natu-
reza introspectiva: “o público só chora sobre uma ordem de dramas inclusos
em seu próprio horizonte conjugal ou familiar; o teatro só tem como encargo
fornecer-lhe um reflexo apagado de seus infortúnios possíveis”. Para Barthes,
o teatro moderno, do drama psicológico, seria antitrágico por natureza, já
que seria incapaz de nos causar essa ressonância emocional, profunda e
em estado puro que tanto conclamou Artaud em seu teatro da crueldade.
Interessante ressaltar a ideia de Barthes sobre uma espécie de “transmutação
física”, ou de “purificação trágica”, que a tragédia seria capaz de suscitar. Um
poder de gerar prantos coletivos em resposta ao infortúnio de reis, heróis e
deuses, que estão além da história individual do homem comum. Nas palavras
de Barthes (2007, p. 27), sobre o teatro de Ésquilo e de Sófocles: “Trata-se
de uma verdadeira transmutação física, obtida mediante argumentos total-
mente gerais, sem nenhuma complacência para as analogias individuais que
cada espectador pode encontrar no motivo trágico”. Essa emoção de ordem
moral, trágica, será substituída pela emoção de ordem passional, dramática.
O pranto coletivo desaparece no mundo moderno, abandonamos a crueldade
de um teatro trágico, onde sentíamos no próprio corpo a dor do homem dila-
cerado por questões de ordem moral, religiosa ou política tirânicas, para imi-
tarmos dramas pessoais seguindo o modelo das paixões individuais lançado

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por Eurípedes. E mais uma vez Artaud (1999, p. 136-137): “O teatro deve
igualar-se à vida, não à vida individual, ao aspecto individual da vida em que
triunfam as PERSONALIDADES, mas uma espécie de vida liberada, que varre
a individualidade humana e em que o homem nada mais é que um reflexo”.
A análise de Barthes me interroga sobre a emoção que me investe ao
assistir ao teatro de Delbono, e neste caso, Vangelo. Buscando compreender
o gesto da emoção do choro que me toma profundamente, recorro a Didi-
Huberman (2016) em suas considerações no livro Que emoção! Que emo-
ção?: se me espanto pela experiência do pranto que me toma sem aviso e
pela intensidade do choro, exclamo “que emoção!”, e logo em seguida, para
entender o gesto, pergunto “que emoção?”. Ao me perguntar “que emoção?”,
me vejo num impasse, pois algo que age sobre mim, que me move para fora
de mim, não somente abala a análise de Barthes sobre a economia do choro
no contemporâneo, como também abre uma passagem para um teatro onde
as paixões individuais são excluídas. Para dizer de outra maneira, diante de
um teatro povoado por corpos extraordinários que abalam nossas represen-
tações, por situar-se à margem das regras do verossímil, intensifico minha
experiencia da emoção enquanto, vai dizer Didi-Huberman (Ibid., p. 28), um
“‘movimento para fora de si’: ao mesmo tempo ‘em mim’ (mas sendo algo
tão profundo que foge à razão) e ‘fora de mim’ (sendo algo que me atra-
vessa completamente, para, depois, se perder de novo)”. A emoção que age
sobre mim talvez seja esta ação, este gesto, de que falava Artaud (1999, p.
96), que visa a uma verdadeira transformação orgânica e fisica dos corpos
humanos, pois “tudo o que age é uma crueldade”. Voltando a Didi-Huberman
(2016, p. 38, grifo do autor), “as emoções, uma vez que são moções, movi-
mentos, comoções, são também trnasformações daqueles e daquelas que
se emocionam”.

Referências bibliográficas
ARTAUD, A. O teatro e seu duplo. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
BARTHES, R. Escritos sobre teatro. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
BAUDRILLARD, J. As estratégias fatais. Rio de Janeiro: Rocco, 1996.
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol. 4. Rio de
Janeiro: Editora 34, 1997.

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Corpos sublimes

DERRIDA, J. A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 2002.


DIDI-HUBERMAN, G. Que emoção! Que emoção? São Paulo: Editora 34, 2016.
GHIGLIONE, A. R. (Org.). Barboni, il teatro di Pippo Delbono. Milano: Ubulibri,
1999.
GIL, J. Monstros. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2006.
GROSSMAN, É. Artaud, “L’aliéné authentique”. Paris: Farrago, 2003.
LARROSA, J. Tremores: escritos sobre experiência. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.
RANCIÈRE, J. O destino das imagens. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.
SARRAZAC, J. P. Sobre a fábula e o desvio. Rio de Janeiro: 7 letras, 2013.

Recebido em 26/08/2017
Aprovado em 21/05/2018
Publicado em 29/06/2018

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