A ARTE DE CAMINHAR. Ilha de Maré
A ARTE DE CAMINHAR. Ilha de Maré
A ARTE DE CAMINHAR. Ilha de Maré
Ilha de Maré
CONSELHO EDITORIAL
Karla Brunet
(Organizadora)
Proext/UFBA
2018
cc 2018 Karla Brunet
Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-
NãoComercial-CompartilhaIgual 4.0 Internacional.
ISBN - 978-1-387-87476-7
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AGRADECIMENTOS
O ATO DE CAMINHAR 9
A Arte de Caminhar. Uma prática artística na Ilha de Maré
Karla Brunet 11
O CAMINHAR E A ESCRITA 23
As histórias e o lugar: notas sobre conhecimento e espaço a
partir de uma caminhada experimental
Natália Lima Figueiroa 25
O Caminhar e a cura para os problemas da sociedade
Rodrigo Araújo C. de Oliveira 33
Como Caminhadas Solitárias Constroem uma Narrativa de Si
Daniel Maurício de Aragão 55
Narrativas da arte de caminhar escutando a fé em Ilha de Maré
Nete Amorim 57
Presentes de uma caminhada
Walter Lemos Alves Junior 61
O CAMINHAR E AS VISUALIDADES 63
eu o mar a ilha
Susan Rodrigues e Victor Chaves 65
Atravessar
Monique Feitosa 69
O Entretempo
Raphael Dutra 71
O Paraíso do Fim do Mundo
Iara Crepaldi 77
Pedaços de Maré
Marcela D’almeida 83
Emaranhados
Andressa Melo 91
String Art
Ilmara Souza 95
É bom colecionar coisas
Wilian Carmo 97
Marcas do Solo
Giulia Pita 101
O que é que a Ilha tem?
Caruma Obi 103
Percursos
Eduarda Bango 107
O Caminhar
Alessandra Mariano 110
BIOGRAFIAS 115
1URL: http://brasil.elpais.com/brasil/2017/12/05/tecnologia/1512483985_32011
5.html
12 | Karla Brunet
para a natureza. Esse projeto A Arte de Caminhar propõe colocar em prática
esse escape. Sair da cidade e caminhar em locais que não tenham acesso ao
serviço de celular, locais onde o caminhar não é no asfalto. Reaprendermos
a conectar com a natureza por nosso movimento corporal. É uma forma de
desconectarmos do mundo acelerado em que vivemos. Estarmos abertos a
parar, conversar com as pessoas, escutar histórias, conhecer mais
sobre a biodiversidade.
O caminhar e a escrita
Selma_a_Montgomery
4 Mais informações na Wikipédia: https://pt.wikipedia.org/wiki/Marcha_do_Sal
5 URL: http://www.richardlong.org/Sculptures/2011sculptures/linewalking.html
A Arte de Caminhar |15
forma de objetificar a obra de arte. Em outras obras posteriores como
Dusty Boots Line Sahara (1988)6 e Nomad Circle (1996)7, Long também usa
formas simples como linha e círculo para representar suas caminhadas na
natureza. Richard Long afirmou: “Gosto da arte simples, prática, emocional,
tranqüila, vigorosa, gosto da simplicidade de caminhar.”(Lailach, 2007, p.70).
A caminhada pode ser identificada em toda obra de Long, tanto nas mais
literais, que foram baseadas em uma caminhada, como nas que a caminhada
foi somente um ponto inicial para se realizar algo.
Em 1988, Marina Abramovic e Ulay realizaram a obra The Lovers
- The Great Wall: Lovers at the Brink (Os Amantes – A Grande Muralha:
amantes à beira)8. Depois de muitos anos de negociação com o governo
chinês, os dois partiram para uma performance/caminhada na Grande Mu-
ralha da China. Marina Abramovic caminhou em direção a oeste, partindo
do Mar Amarelo, enquanto Ulay caminhou em direção a leste, partindo da
fronteira com o deserto de Gobi. Depois de reduzirem de um ano para 6
meses o percurso da caminhada. E, finalmente, caminharam por 3 meses
para se encontrarem no meio do caminho, em Shenmu, na província de
Shaanxi e disseram adeus. Foi o fim da relação deles como dupla artística,
como casal. (O’ROURKE, 2016). A performance é conhecida como um dos
clássicos da arte e caminhada. Aqui, o tempo, as reflexões durante o percur-
so e os sentimentos foram representados nessa ação artística e
documentados em fotografia e vídeo.
Uma mescla de ativismo e arte é o trabalho de Francis Alys, The
Green Line (Jerusalém 2004)9 onde o artista caminhou derramando uma
tinta verde pelos arredores de Jerusalém, tentando desenhar a linha verde
existente no mapa. Alys diz que “às vezes, fazer algo poético pode se tornar
político e, às vezes, fazer algo político pode se tornar poético”10. O rastro da
caminhada – feito com 58 litros de tinta e documentado em vídeo – trouxe à
tona discussões sobre território, lugar e fronteiras.
6 URL: http://www.richardlong.org/Sculptures/2011sculpupgrades/dusty.html
7URL: http://www.richardlong.org/Sculptures/2011sculpupgrades/nomad.html
8 Mais informações no: https://publicdelivery.org/marina-abramovic-the-lovers-
the-great-wall-walk/
9 URL: http://francisalys.com/the-green-line-albert-agazarian/
10 Tradução do original: “Sometimes doing something poetic can become political
11
Url: http://bagagem-caminhada.blogspot.com/
A Arte de Caminhar |17
“Caminhada como Método para Arte e Educação"12 na Casa Tombada.
Caminhada é parte de sua ação artística.
Esses projetos artísticos descritos acima são somente uma peque-
na mostra da variedade de obras que usam o caminhar como ação artística,
são performances, vídeos, fotografias, telas, land art, música, ativismo, entre
outros.
12
URL: http://acasatombada.com.br/arte-e-educacao-caminhada-como-metodo2osemestre
-2018/
18 | Karla Brunet
nosso território. Na medida que os estudantes locais estiveram em contato
com os estudantes da UFBA e foram eles os protagonistas, os que conheci-
am o local, percebi que demonstraram esse cuidado com seu lugar.
Para Tuan (2001: 66), “o espaço se torna lugar à medida que o
conhecemos melhor e damos valor a ele”13. O espaço deixa de ser abstrato e
a medida que o experimentamos em diversas extensões (pessoal, social,
cultural e física) se torna um lugar. A coleta de narrativas e a experiência na
natureza proporcionou um imaginário comum de pertencimento do lugar.
A ACCS (Atividade Curricular em Comunidade e Sociedade) pro-
põe um pensamento crítico sobre a ação de caminhar como um ato artístico,
social e político. A arte, aqui, é o modo de atingir esse objetivo. Através
dessas caminhadas na comunidade da Ilha de Maré, os estudantes da UFBA
ficaram mais perto da natureza e em interação com a população da ilha. A
troca de experiências desses alunos e dos moradores da ilha, tanto com os
estudantes locais que caminharam com o grupo quanto dos habitantes que
encontramos pelo caminho foram de grande importância para a formação
acadêmica e social dos alunos. Nosso objetivo era incentivar o ato de cami-
nhar, construir uma maior conexão com a natureza e com os espaços pouco
habitados do município de Salvador e produzir uma experiência de
estética ambiental.
Mesmo morando em uma Ilha sem transporte público terrestre, os
moradores da Ilha de Maré estão cada vez mais caminhando menos. Essa
ACCS buscou resgatar esse ato de caminhar nos jovens moradores da Ilha
de Maré e nos jovens estudantes da UFBA. Ao caminhar, esperava-se:
• aumentar o respeito pela natureza;
• incentivar o contato com as comunidades vizinhas;
• entender melhor seu meio ambiente;
• descobrir nova forma de locomoção;
• incentivar o respeito pelo outro;
• aumentar a concentração;
• estimular nos habitantes locais a uma topofilia pelo lugar
onde vivem;
• melhorar a saúde e o condicionamento físico;
• reduzir o estresse.
13Traduzido de: “space becomes place as we get to know it better and endow it
with value.”
A Arte de Caminhar |19
Referências bibliográficas:
15
Os nomes de alunos citados no texto são fictícios a fim de manter a pri-
vacidade dos estudantes.
26 | Natália Lima Figueiroa
em diante ela me guiou por todo o percurso: “cuidado,
não pise ali não que é urtiga”, “pise mais pra lá”, “por aqui
tem um atalho”. (Diário de Campo, 18/05/2018)
A experiência de caminhar é sempre um “descobrir-caminho”, al-
go que está sob o signo do inesperado, por mais que já tenhamos trilhado
várias vezes a mesma rota. O fundamento imprevisível do caminhar não está
necessariamente contido nas maravilhas da paisagem ou no exótico do lugar.
De vez em quando a comoção da novidade é provocada pelo próprio ato de
caminhar (um pé depois do outro), como também pelos caminhos que se
atravessam. O ato em si torna-se um desafio. O “simples” gesto de colocar
um pé na frente do outro, esse movimento tão fundamental que chegamos a
julgá-lo como natural, se torna uma aventura e, em última instância, um
aprendizado prático. Traçar caminhos desconhecidos nos permite desnatu-
ralizar ações que tomaríamos como inatas. Situações e circunstâncias que
nos exigem novas habilidades nos mostram, na prática, que as técnicas do
corpo são um aprendizado contínuo. Não temos opção senão concordar
com Mauss quando ele afirma que, “em suma, talvez não exista ‘maneira
natural’ no adulto” (MAUSS, 2015, p. 405). É esta condição sempre precária
do movimento que excerto do diário do início do texto revela, a partir do
meu andar incerto amparado pelos saberes dos alunos da Escola Municipal
de Ilha de Maré num terreno desconhecido para mim. Explorar o vínculo
entre conhecimento, espaço e narrativas é justamente o que este breve
ensaio pretende.
A cena que escolhi para dar início a este texto é um relato de cam-
po que se refere à uma das atividades promovidas pela Ação Curricular em
Comunidade e em Sociedade “A Arte de Caminhar”, idealizada e conduzida
pela professora Karla Brunet da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Dentre as várias atividades desenvolvidas pela disciplina, esta em específico,
buscava promover uma troca de experiências mediada pela caminhada en-
volvendo alunos da UFBA e da Escola Municipal Ilha de Maré. Em “A Arte
de Caminhar”, e sobretudo nesta vivência pedagógica em Ilha de Maré, inte-
ressei-me, como pesquisadora, em compor um quadro de experiências
diverso daquele que estou habituada a explorar na pesquisa de doutorado
que venho levando a cabo nos últimos dois anos.
A caminhada, esta atividade essencial, pode ser atuada e aparecer
na vida humana de diversas formas, em inúmeros contextos e com as mais
diversas orientações. A pesquisa que desenvolvo no doutorado é voltada
As histórias e o lugar | 27
para a análise da caminhada enquanto atividade física direcionada para a
transformação corporal e/ou para o aprimoramento do quadro de saúde do
caminhante; sendo assim, ela costuma explorar um campo de atuação da
caminhada que é fundamentalmente urbano e que muitas vezes envolve o
controle de metas e performance. Trata-se de um caminhar rotineiro, que
geralmente atravessa espaços da cidade que, seja por políticas públicas ou
pela prática dos habitantes, são previamente demarcados e mapeados para
aquele determinado uso. Um caminhar que se distancia do desafio de per-
correr a costa, lamaçais e mangues da Ilha de Maré.
É importante tentar, na medida do possível, descrever esse espaço;
não na intenção de cristalizá-lo numa imagem estática e estéril, mas sim para
entender suas características e especificidades. A Ilha de Maré é um territó-
rio do município de Salvador localizado na Baía de todos os Santos, sem
ligação direta com o continente e cujo acesso se dá por meio marítimo. Por-
tanto, para encontrar Ilha de Maré é preciso fazer uso de lanchas ou barcos,
o que, num dia ensolarado como o da minha visita, torna-se um agradável
sacrifício com duração de aproximados trinta minutos. Embora se localize
numa das capitais mais turísticas do país, Ilha de Maré preserva um certo
espírito outsider, com uma temporalidade própria. Ao passo que nos aproxi-
mamos da borda da Ilha o silêncio das águas do mar permanece como pano
de fundo para que os andarilhos transpassem as casas simples e o terreno
desnivelado de terra da maioria das ruas. Com a atenção voltada para o
chão, típica de quem percorre um lugar pela primeira vez e teme cair, obser-
vei na caminhada-trajeto do porto até a Escola Municipal de Ilha de Maré,
amontoados de conchas do mar, cascalhos, carcaças de caranguejo, restos de
vegetação, raízes de árvores, seixos, pedaços de cimento, garrafas pet e saco-
las plásticas. Num exercício arqueológico rudimentar é possível intuir que
esta coleção de restos é reveladora não somente dos hábitos dos nativos da
Ilha, mas como pude observar pela quantidade de lixo costeando nosso
roteiro inicial pelo litoral, da condição da região de destinatária dos detritos
da circunvizinhanças. Na atmosfera do lugar pairava uma sensação de paraí-
so perdido, impressão que se constrói não somente pelo impacto imagético
das desconcertantes paisagens naturais que encontramos, mas também pela
abertura e cordialidade instantânea dos nativos para com os forasteiros. As
ruas estreitas de terra, sem espaço para a passagem de veículos e, portanto,
privilegiando a prática pedestre, pareciam convidar o olhar para dentro das
casas, trazendo uma intimidade voluntária entre os passantes e os habitantes.
28 | Natália Lima Figueiroa
Esta breve caminhada pela Rua da Caieira nos levou à Escola Mu-
nicipal de Ilha de Maré. Lá, conhecemos os alunos que iriam nos
acompanhar no processo e conversamos sobre os possíveis itinerários para
chegar ao destino previamente combinado. Assim, se formaram dois grupos
que traçaram rotas de caminhadas distintas (no intuito de comparar experi-
ências diferentes) mas perseguindo um mesmo destino: chegar a Botelho, na
costa leste da Ilha.
Ao seguir pelo mangue posso ressaltar que a caminhada estreitou
os laços de sociabilidade e afeto entre as pessoas. Caminhar em grupo, ao
invés do caminhar solitário urbano, torna a prática definitivamente distinta.
Além da subversão que se segue à desconstrução da caminhada com mero
meio de transporte de um ponto a outro, é digno de nota que o caminhar
em grupo ganha um outro sentido político na medida em que instaura um
senso colaborativo entre seus participantes, unidos pelo desafio de transpor
o caminho em conjunto, extinguindo a competitividade e respeitando os
tempos individuais. Um andar que conecta os sujeitos é o exato oposto da
tendência observada por Solnit: “Muitas pessoas hoje em dia vivem numa
série de ambientes internos - o lar, o carro, a academia, o escritório, lojas - e
divorciados uns dos outros.” (SOLNIT,2016,p.28).
Esta outra forma de andar, a despeito da dimensão instrumental e
pragmática do caminhar nas metrópoles, instaura também o espaço profícuo
para a abertura comunicativa. O ter que trilhar um caminho em comum
propõe também a troca de narrativas e experiências. Me aproximei, desta
forma, dos alunos, que aparentavam ter entre onze e quinze anos, fazendo
perguntas sobre a escola e sobre a experiência de viver em Ilha de Maré.
Caminhar não parecia, naquele momento, distante de conversar. Havia uma
exigência de comunicação que era ampliada pelo fato dos alunos terem aca-
bado se tornando nossos guias. Essa comunicação não era, porém,
meramente informativa ou cartográfica. Ela surgia à medida que passávamos
pelos lugares, como condição essencial para a evocação de saberes e narrati-
vas sobre o espaço. Por exemplo, a certo ponto, um aluno que aparentava
ter doze anos apontou para uma pegada no chão e disse que ela pertencia ao
chamado “cachorro da noite”, um animal que aparece para “pegar” as pes-
soas assim que escurece. Dali em diante eu já não estava apenas no mangue,
mas eu fazia parte de um cenário que ganhava uma nova identidade através
daquelas narrativas. Sem que se tenha planejado, eu estava conhecendo o
lugar com os pés descalços, a partir de histórias, piadas, observações e ane-
dotas e, de outro lado, os alunos estavam demonstrando familiaridade com a
As histórias e o lugar | 29
região e nos ensinando sobre os perigos do mangue, sobre a melhor rota a
ser seguida, sobre a topografia, a fauna e flora.
Uma análise superficial poderia dar a impressão que essas narra-
ções de contos fantásticos têm pouca ou nenhuma relação com os temas
que estou desenvolvendo aqui. O que o cachorro da noite, com seus hábitos
noturnos que parecem ter saído do mais assustador pesadelo infantil, pode-
ria informar sobre o gesto da caminhada, sobre o espaço e conhecimento?
O que uma história que pertence ao distante domínio do mundo ficcional
teria a oferecer para o exame de uma atividade tão mundana, “real” e pre-
tensamente objetiva quanto o simples ato de apoiar os pés no material do
mundo? Diante dessas inquietações que parecem carregar uma resposta
óbvia, gostaria de argumentar pelo controverso ao afirmar que essas histó-
rias além de não pertencerem a um domínio irrelevante em relação àquele
que vivemos, também são fundamentais para compreender e dar sentido ao
espaço. Trata-se de uma ideia que pode ser resumida no argumento de In-
gold de que “os lugares não tem posições e sim histórias” (INGOLD, 2005,
p.77), o que significa dizer que “descobrir-caminho [...] assemelha-se mais a
contar histórias do que utilizar um mapa” (INGOLD, 2005, p.77).
Poderia se argumentar, talvez com alguma razão, que essas histó-
rias que participam ativamente da composição dos lugares não podem ser do
tipo ficcional. As histórias que fariam parte da manufatura do tecido do
espaço que se dá nesse descobrir-caminho seriam, então, da ordem dos rela-
tos das experiências dos caminhantes daquela região, tocando no “campo de
relações estabelecido através da imersão do ator-perceptor num dado con-
texto ambiental” (INGOLD, 2005, p.78). Se nos alinharmos com essa
perspectiva, estaríamos diante de um tipo de narrativa que envolve tradição,
o conhecimento vivenciado por gerações anteriores, memória e algo próxi-
mo de uma documentação histórica. Sendo assim, a separação entre mundo
“real” e mundo ficcional, fundamento indispensável para a racionalidade e
cientificidade moderna, estaria preservada. Assumir essa postura, porém, é
diminuir a vida e suas possibilidades. Essa divisão, que parece incontestável
para nós, herdeiros desse modelo investigativo, se ancora na crença de uma
ciência cartesiana que se estabelece como um véu que separa o mundo das
coisas-em-si, o mundo da ciência; e os mais variados mundos das culturas e
das elaborações sociais. No entanto, no domínio da vida vivida, da experiên-
cia de ser e estar no mundo, essa distinção não se faz tão fácil e
precisamente; “o real” está contaminado por percepções e, portanto, imagi-
nações, não existindo, um real objetivo, desencarnado e a-histórico.
30 | Natália Lima Figueiroa
Não se trata, portanto, de dizer que o “cachorro da noite” não e-
xiste e que, por isso, devemos abrir mão de examinar a narrativa de sua
história sob a pena de não realizarmos um empreendimento notadamente
científico. Pelo contrário, mesmo assumindo que o cachorro da noite é um
sujeito do mundo ficcional, precisamos reconhecer que seu campo de atua-
ção não está separado da vida vivida, precisamos vê-lo “não como um
elemento do mundo natural, mas como um fenômeno da experiência”
(INGOLD, 2012, p. 19). Ele é a manifestação fantástica dos medos e peri-
gos de atravessar aquele trajeto no escuro da noite e, nesse sentido, a
narrativa sobre esse ser fantástico é também uma forma de configurar o
conhecimento sobre aquela região e, em última instância, de tornar mais
concreta a transmissão desse conhecimento.
À medida em que íamos transpondo o terreno, os alunos se senti-
am mais desinibidos com a nossa presença, tornando-se mais confiantes
para demonstrar seus conhecimentos sobre a região e assumindo um certo
protagonismo na condução do trajeto. Já no terço final da nossa caminhada
atravessamos uma extensa porção de terra cuidando para não pisar no mar
de siris que se escondiam na areia a cada um dos nossos passos. Um aluno
ao avistar o animal numa poça fez questão de mostrar um siri caxangá, tipi-
camente utilizado na culinária local. Segundo ele a passagem do estado da
sua casca dura, e, portanto, protetora de seus órgãos internos, para a casca
mole atestaria que a alma do bicho também o abandonara.
Em certo sentido é possível dizer que esta forma reencantada de
ver o mundo - uma que dá alma aos animais e aos lugares- subverte a lógica
e o tempo hegemônico do urbano contemporâneo. Desafiando as fronteiras
do real e do imaginário, as narrativas dos alunos não encarnam um modo de
experienciar o espaço mediado pelo utilitarismo e produtivismo classificató-
rios, que poderia se expressar num grupo de alunos treinado para entoar
narrativas oficiais ou saberes enciclopédicos sobre o local. Antes os alunos
demonstram, através das histórias comuns, uma sintonia própria com o teci-
do social e natural da região, em outras palavras, uma familiaridade
com o ambiente.
Basta dizer que estas histórias só surgiram num contexto de ade-
são da Escola Municipal Ilha de Maré à proposta da ACCS A Arte de
Caminhar, e da própria compreensão, às vezes não óbvia, do valor pedagó-
gico da caminhada. Como demonstrado por Elizabeth Curtis(2008),a
experiência de utilizar a caminhada como forma de produção de conheci-
As histórias e o lugar | 31
mento através da construção de apurados roteiros guiados na cidade Aber-
deen permitiram, na sua experiência local, que os alunos, desde as séries
primárias, construam uma atitude positiva com o entorno da cidade e suas
construções históricas, permitindo um desenvolvimento pedagógico basea-
do não em informações mas em percepções que o olhar, sentir, brincar e
pensar proporcionam.
Em Ilha de Maré, entretanto, de forma ainda mais contundente,
não haviam roteiros pré estabelecidos e milimetricamente construídos. Sem
manuais que ordenassem pausas, direções, atalhos, ou referências foi através
da posição de protagonismo assumido por alunos como Maria, que sabiam
exatamente onde pisar, que a experiência tornou-se ainda mais rica.
Referências Bibliográficas
Nesse dia, uma equipe diminuta do grupo foi selecionada para rea-
lizar uma visita técnica, reconhecer o trajeto e os procedimentos que seriam
adotados no dia da viagem.
Nos encontramos no campus da UFBA, em Ondina, e não nos
demoramos muito: dividimos os lanches e entramos num carro. Não con-
versei muito com as colegas pois não as conhecia, enquanto elas
conversavam entre si sobre assuntos que considerei um tanto formais. Logo
peguei meu celular pensando num texto que deveria ler para a aula que teria
na noite daquele dia.
Ao longo do percurso a paisagem foi mudando. Quanto mais nos
afastávamos do centro, mais a sensação de desordem e falta de organização
aumentava. Os prédios organizados e a paisagem harmoniosa iam sendo
substituídas por favelas, pistas menos uniformizadas, vegetação e barrancos
ao redor. Já havia observado isso em Salvador como um vestígio da desi-
gualdade que existe. Então fiz a viagem dessa maneira: ignorando as colegas
dentro do carro, a paisagem do lado de fora e preocupado com o texto que
estava lendo no celular.
Assim que chegamos na Base Naval de Aratu, a mudança do am-
biente era sensível. Apesar de não ter sido suficiente para me fazer
estupefato, a nova paisagem havia me trazido para mais próximo do
aqui e do agora.
Ter contato com a areia, com a brisa suave vinda daquele céu tão
azul que trazia o cheiro da maresia e com a água ainda não havia sido sufici-
ente para me arrancar das preocupações que tenho comumente.
Com alguns procedimentos estabelecidos para o dia da primeira
visita oficial, tomamos um barco e nos direcionamos para Praia Grande em
Ilha de Maré. Comecei a lembrar das discussões que tivemos em sala. Uma
boa metáfora para essa experimentação é pensar naquela travessia como um
36 | Rodrigo Araújo C. de Oliveira
processo de sensibilização, que aumentava proporcionalmente ao
avanço do barco.
Se ao entrar no barco eu já estava mais conectado com a paisagem
ao meu redor, nos poucos minutos que se passaram após isso, meu nível de
absorção de mundo e de receptividade de experiências sensoriais já estavam
elevadíssimos. Eu me sentia mais leve e feliz, sem preocupações nem estres-
ses. O grupo, timidamente, já começava a conversar sobre trivialidades e até
mesmo ria.
Eu sentia o deslizar do barco sobre a água que criava um balanço
bastante agradável, quase como um ato de ninar, e ondinhas durante sua
passagem. Isso criava um efeito visual admirável com as ondulações rece-
bendo os raios de sol, fazendo a superfície do mar brilhar. O ar estava
úmido e salobro que, ao tocar a pele, lembrava uma espécie de afago que
envolvia todo o corpo, como um abraço caloroso. Olhando para o horizon-
te, encontrei o céu, que estava repleto de nuvens gigantescas e tão baixas
que faziam parecer que ele estava caindo.
O conjunto de todas essas coisas traziam uma sensação de imen-
sidão e completude, além de uma paz interior muito intensa, como se tudo
no mundo estivesse no lugar certo, do jeito que tem que ser. Ao olhar para
trás, percebi que Salvador se apequenava e que para frente, o engrandeci-
mento de Ilha de Maré era mais constante, me senti feliz. Ainda observando
a aproximação da ilha percebi que eu estava no meio de um processo de
transformação. Estava caminhando para o presente e para dentro
de mim mesmo.
Logo, aquela primeira travessia teve uma aura mística para mim,
com uma carga apelativa muito forte, especialmente por ser uma experiência
não tão desgastada. As sensações eram pouco exploradas e o aumento da
sensibilização me fez sentir a paisagem, que tinha uma magnificência e uma
beleza tão grande, que me remeteu diretamente ao meu interior, me fazendo
questionar sobre minha própria vida. Questões como “o que eu quero para
minha vida; estou vivendo ou sobrevivendo; sou feliz diariamente?” me
invadiram a mente. Via ao longe as casas dos moradores, pequenininhas,
coloridas e organizadas de seu modo peculiar. Pensei no quanto aqueles
moradores teriam sorte de viver ali.
Repentinamente me dei conta de que eu havia esquecido comple-
tamente de meu celular. Isso me fez lembrar de como as pessoas estão tão
O Caminhar e a cura para os problemas da sociedade | 37
acostumadas com esse tipo de aparelho, dificultando até mesmo a sociabili-
dade. Está cada vez mais difícil o relacionamento interpessoal, e ele é um
dos fatores. Esse esquecimento, acredito agora, me fez estar mais próximo
das pessoas que compunham o grupo, de modo que facilitou
nossa comunicação.
Enquanto atracávamos, uma nuvenzinha de chuva veio fazer nos-
sa recepção. Inicialmente achei ruim, mas logo percebi o quanto para aquele
trabalho de experimentação de sensações isso poderia ser bom. O tocar da
água da chuva na pele, sem convite. Havia esquecido como era a sensação
de aceitar tomar um banho de chuva. Fomos andando através do cais, e fui
observando o pontilhar da chuva caindo no mar enquanto sentia a água em
meu corpo, resistente a ela. Mais para frente ao sentir o cheiro de terra mo-
lhada, eu já estava encharcado e finalmente comecei a aceitar o toque
daqueles minialfinetes e a lama sob os pés. Eu definitivamente já não era
mais a mesma pessoa do início daquela manhã.
Fizemos uma curta caminhada até uma das escolas municipais da
ilha. A chuva logo parou. Durante o percurso, fui me atendo aos cheiros e
detalhes da ilha. O chão era quadriculado, sem asfalto; o barro e a lama
competiam para decidir quem seria maioria sobre a grama; caranguejos,
gatos, cachorros, galinhas, pássaros e cavalos passeavam tranquilamente ao
nosso redor e em todos os locais, acostumados com a presença humana.
Havia barcos parados, estáticos na areia da praia ou ancorados no
mar, flutuando com o ir e vir da maré e dos ventos. As árvores dançavam,
balançando suas copas e exibiam suas cores. Tudo estava tão desordenada-
mente ordenado, que tive a sensação de que se alguém tentasse arrumar
aquele lugar, a identidade se perderia.
Ao entrarmos na escola, as surpresas não cessaram, a começar pe-
lo próprio ambiente da escola: uma área ampla com poucas construções,
nitidamente pensado para poupar espaço. Ele era aproveitado de tal maneira
que permitia aos alunos se exercitarem naquela vasta grama bem cuidada. As
salas também não eram retangulares nem quadriculares, se organizavam em
colmeias. Os muros eram baixos e não gradeados, mesmo sem a aparente
ausência de uma fiscalização da ordem pública. A ideia de funcionamento e
respeito às convenções parecia dominar o lugar.
Nos reunimos com a direção da escola e professores para ajustar
elementos e expor as ideias quanto ao motivo de levar aqueles alunos para
38 | Rodrigo Araújo C. de Oliveira
caminhar conosco. O diálogo transcorreu de forma fluida devido à vontade
de contribuir de ambos os lados. Neste ínterim em que os parâmetros iam
sendo ajustados, o intervalo começou.
Decidi que queria me aproximar mais dos alunos, e então sai da
sala logo no começo do intervalo para poder observar seu modo de agir, em
busca de diferenças e similaridades. As crianças brincavam e interagiam
diretamente com o espaço, seus corpos em contato direto com a natureza ao
redor, correndo, jogando bola, conversando e divididas em grupinhos não
tão estáticos. A maioria parecia se falar e interagir com os diversos grupos.
Além disso, eram suficientemente desapegados de smartphones,
tablets e celulares. Isso fazia com que sua interação se desse de forma inten-
sa. Aquelas crianças jogando bola, descalças na grama, ou conversando entre
si, rindo e se divertindo umas com as outras, foi algo que percebi e não con-
sigo mais ver sem me encantar.
Contudo, algo não tão agradável logo saltou aos olhos. Em menos
de vinte minutos de intervalo, observei um tratamento hostil por alguns dos
alunos, independente do gênero. Passei a observar esse detalhe com mais
atenção e notei que esse tratamento enérgico e hostil era comum entre al-
guns deles. Além disso, vi três brigas se iniciando entre eles. Isso me fez
perguntar sobre a educação daquelas crianças e sobre os exemplos que elas
tinham dos mais velhos.
Sei que observar pessoas mais velhas faz parte do processo de e-
ducação de uma criança. Acredito que o homem é fruto do meio em que
vive. Diante disso, passei a observar o modo de agir dos mais velhos tam-
bém, para tentar justificar a ação daquelas crianças.
Observando os educadores da escola, notei que aparentemente
são pessoas bem instruídas. Ao menos, o conteúdo das lousas indicava isso.
Contudo, apenas isso não era suficiente para analisar, então decidi mudar o
foco para o modo com eles tratavam as crianças. Não havia nada de violento
ou exagerado no modo de falar, com equilíbrio e proporcionalidade. A única
coisa que me incomodou nesse aspecto foi o modo impositivo como eles se
dirigiam aos alunos.
Acredito que imperatividade não é uma qualidade que combina
com professores, logo, aquele papel de autoridade inquestionável observado
não é nada saudável. Ninguém gosta de ser mandado o tempo todo ou de
receber ordens, especialmente crianças, devido ao seu estágio de desenvol-
O Caminhar e a cura para os problemas da sociedade | 39
vimento cognitivo. Isso pode acabar interferindo no processo da formação
adulta de uma pessoa. Talvez, em conjunto com outros fatores, essa impera-
tividade possa contribuir para um temperamento hostil das crianças. Ainda
há outro fator: se elas não puderem expressar suas insatisfações, acabarão se
tornando ressentidas, podendo ter efeitos muito piores do que
temperamento agressivo.
Assim sendo, acredito que não basta que esteja escrito no quadro
a história da revolução industrial ou a formação dos tecidos celulares, mas
que a escola seja uma espécie de miniatura do mundo, de modo que elas
aprendam a interagir em sociedade. Ensinar a criança a se tornar uma cidadã
conhecedora e respeitadora das convenções sociais. Isso não é feito de for-
ma impositiva e sim negociável, com diálogos e convencimentos, num
processo de construção e modificação do espaço diário.
Ao fim do intervalo, nós nos direcionamos para uma sala onde te-
ríamos nosso primeiro contato verbal com os alunos: conheceríamos
aqueles que provavelmente fariam parte de nosso grupo de caminhada. A
sala era redonda, de modo que pude observar cada aluno facilmente. Eles
tinham feições que mostravam uma mistura de ansiedade, curiosidade e
vergonha. Alguns deles, descaso.
Ao fim de nossas apresentações, Karla discorreu sobre a finalidade
da caminhada. Infelizmente para nós, muitos alunos foram desistindo de
estar naquele grupo de modo que ao fim de sua fala apenas uns treze ainda
estavam dispostos. O bom foi que quem continuou estava aparentemente
bem animado com a proposta, e assim a experiência seria mais realista e
vivenciada como propúnhamos já que não se sentiam obrigados.
Com tudo resolvido, caminhamos de volta ao barco. Comi meu
lanche enquanto andava com certa dificuldade. Voltamos conversando, de
modo que chegava até mesmo a sentir que estava entre amigos, e não sim-
plesmente colegas. Percebi que ainda estava com a sensibilidade aumentada,
mas não mais para a natureza e para a paisagem, e sim para as pessoas. En-
tão passei a observar aspectos da vivência e conforto daquele local.
Notei que realmente não havia policiamento na região. Havia con-
versado com um professor na escola que afirmou a existência de milícias.
Não pude notar isso durante a caminhada, mas é se desconfiar a existência
delas já que as pessoas pareciam não se preocupar muito com crimes. Passe-
ávamos exibindo câmeras, celulares e mochilas, mas não fomos
40 | Rodrigo Araújo C. de Oliveira
importunados para além dos olhares curiosos que eram lançados em nossa
direção.
Além disso, os adultos aparentemente se tratavam com respeito,
de modo que suspeitei que a ação das crianças pudesse ser oriunda da ener-
gia que acompanha a idade. Finalmente havíamos chegado ao barco e logo
rumamos de volta a Salvador.
Nessa viagem tive a oportunidade de conversar com um senhor
que se apresentou como Colônia. Ele era um “filho da ilha”, termo utilizado
para denominar pessoas que nasceram e cresceram nela. Colônia me contava
algumas características de lá, como a alimentação das pessoas que, devido à
dificuldade de travessia de alimentos, muitos sobreviviam da agricultura de
subsistência. Ao que parecia, plantar em roças, pescar no mar e ir em busca
de caça não era incomum. Enquanto ele falava eu tentava lembrar da quan-
tidade de minimercados que havia visto, e não lembro de ter mais de três.
Colônia também me contou sobre um abandono que a ilha tem
por parte da prefeitura que não presta assistência, especialmente, no tocante
a segurança e saúde. Além do mais, ela tinha recebido energia elétrica há
apenas 10 anos: 2008, se ele estiver correto. Apesar disso tudo, era mais
confortável morar lá: não havia um ritmo tão acelerado quanto no continen-
te, sendo melhor para educar suas crianças e possuindo uma qualidade de
vida melhor.
Descobri durante a conversa, que Colônia era 1° Sargento da re-
serva da Polícia Militar, e que assim como ele muitos moradores de lá
vinham para o continente trabalhar e voltavam para a Ilha todos os dias.
Começamos a discutir sobre história, política e segurança pública em um
determinado momento, e assim fomos até chegarmos no cais. Estávamos de
volta à cidade.
Caminhar para mim sempre teve a ver com a solidão. A bem vin-
da solidão. Aquela em que nos distanciamos do dia-a-dia para - com o corpo
em movimento - pensarmos livremente sobre a vida. Cada caminhada pode-
ria ser uma experiência única, mas não é exatamente assim que ocorre.
Quando o sujeito que caminha é o mesmo, ainda que em fase diferente de
sua vida, novas caminhadas remetem à subjetividade presente nas anteriores.
Imagine uma vida contada só a partir dos pensamentos solitários
de um sujeito em suas caminhadas. Ainda que o cenário seja diferente ou
tenha mudado, ainda que os desejos e as angústias sejam de outro momento
existencial, há um caráter de continuidade entre as caminhadas que falam do
mesmo sujeito. São caminhadas que se comunicam entre si. Cada nova ca-
minhada traz marcas subjetivas de caminhadas anteriores.
Ao participar de um dia de caminhada na Ilha de Maré como parte
do projeto A Arte de Caminhar, distanciei-me um pouco do grupo em al-
guns momentos. Encontrei-me com o mesmo Daniel que aos 20 anos
pegava um ônibus para caminhar quilômetros da praia de Arembepe sozi-
nho e ao sol tentando libertar-se e processar na cabeça sentimentos
confusos, o mesmo que anos depois caminhava de noite na praia da
56 | Daniel Maurício de Aragão
Armação, em Florianópolis, o mesmo que já andou solitário por tantos luga-
res, caminhando e processando os mistérios e as ansiedades de uma vida.
Nessas caminhadas, as mesmas canções vinham à cabeça e eram
cantaroladas baixinho: Trem das Cores e Tigresa, de Caetano, Sangue Lati-
no, dos Secos e Molhados, Luisa e Lígia, de Tom Jobim, Metamorfose
Ambulante, de Raulzito, e tantas outras. Essas músicas estabeleceram uma
conexão consciente entre tantas caminhadas. Era quase como se fossem a
chave para engatilhar minha subjetividade, o password para os downloads
subjetivos. O corpo em movimento, um cenário estimulante, as canções e eu
em uma eterna busca de um entendimento melhor de para onde ir, o que me
permitir, de que desistir, com o que sonhar.
Caminhar não é o mesmo que ficar parado pensando no sofá ou
na cama. Não é o mesmo que parar e contemplar a natureza, as pessoas, o
nascer ou o pôr do sol. Há certos pensamentos que precisam de movimen-
to. É próximo da experiência de viajar de ônibus sozinho contemplando as
paisagens. É próximo dos pensamentos processados ao nadar na piscina ou
no mar. Caminhar permite juntar a contemplação e o movimento, estimu-
lando a reflexão de um sujeito que se move com o mundo.
Cada caminhada solitária acrescentou um pedaço da narrativa que
eu construo sobre a minha vida. Na cabeça, o real e o irreal se misturavam,
possibilidades de ser quem eu era, não era, ou talvez fosse. Ao final das ca-
minhadas, o corte necessário pra voltar ao mundo e ser o acúmulo do ponto
em que foi possível chegar. Brincando com o verso do poeta Pessoa, cami-
nhar é preciso pra que viver tenha mais sentido.
Narrativas da arte de caminhar
escutando a fé em Ilha de Maré
Nete Amorim
Referências Bibliográficas
Poesia feita, a partir da vivência com os alunos em Ilha de Maré,
possibilitada pela ACCS: Arte de Caminhar. Dessa forma, tentei relatar em
versos minhas melhores lembranças sobre essa experiência fantástica que,
me possibilitou conhecer novas realidades e ir para além dos muros
da Universidade.
De fato, foi uma vivência muito prazerosa, onde pude aproveitar
incontáveis momentos de felicidade, junto a pessoas que aprendi a gostar,
sem falar, o contato abundante com a natureza que me trouxe fortes lem-
branças do meu interior, me remetendo à inevitável saudade de casa.
Estou muito satisfeito com a trajetória construída. As relações
harmoniosas do grupo e a sensação de estar em uma equipe unida, me ale-
grou bastante, além disso, a possibilidade de sair do caos da capital e da
loucura de uma rotina pesada, mostrando que a vida pode e deve ser mais
diversificada, foi outro ponto que me satisfez imensamente. Assim, levarei
esta experiência para administrar minha rotina, deixando sempre espaço para
atividades que gosto de realizar e o mais importante, irei fazê-las sem o
sentimento de culpa me atormentando.
62 | Walter Lemos Alves Junior
Jean-Jacques Rousseau
Atravessar
Monique Feitosa
Link do vídeo:
http://caminhar.ihac.ufba.br/index.php/2018/07/08/monique/
O Entretempo
Raphael Dutra
Meu apego pelo mar é tão antigo que nem me lembro quando fo-
mos apresentados, não lembro dele sem ser, já fazendo parte da
minha rotina.
Crescer em Salvador me trouxe o privilégio de poder quase sem-
pre escolher caminhos que levassem ao mar, de poder escolher caminhar
perto dele. Salvador bonita do jeito que é, até onde não se vê mar, me fez
entender o quão significativo é caminhar por onde a gente ama. A conexão
que se sente, ajuda a trazer o lugar para perto, é o entender definitivo que a
gente faz parte.
E foi daí que desde pequena ficou claro para mim a importância
do caminhar como uma maneira de se perceber parte do todo.
E das caminhadas pela minha cidade, do andar na beira do mar,
veio a vontade de caminhar por toda parte.
Caminhar na natureza alimenta. Li, faz pouco tempo, um texto
que defendia a teoria de que a natureza nos alimentaria de energia e o cami-
nhar junto ao mato, ao rio, ao mar, seria diferente do caminhar na cidade. Se
você estivesse na sintonia certa, pronto para receber aquela energia, você iria
mais longe.
O caminhar em Ilha de Maré, como não poderia deixar de ser, me
fez sentir presente. O tempo foi para outro eixo, foi suspendido, e eu senti
84 | Marcela D’almeida
com calma as casinhas, a lama, as pegadas dos bichinhos, a dancinha dos
siris, o mar, a areia, as conchas, o sol, as árvores, o céu. Tudinho. Com
calma. Fui presente.
E voltando para casa, no barco, com o sol na cabeça e o barulho
do mar, eu pensei que não poderia existir maior felicidade que aquilo.
Meu trabalho é uma colcha de retalhos, no sentido figurado. Ele
junta pedacinhos de maré e pedacinhos da caminhada que me foram especi-
almente queridos. A construção foi bem intuitiva, ele foi pensado para ser
sentido.
É uma espécie de diário, com registros das coisas que chamaram
atenção ao longo da caminhada, não de todas, às vezes, a gente só está tão
envolvido que esquece de pegar a câmera para registrar. Vai desde fotos dos
descascados das casas até a maré.
Caminhar é guardar um tempo só para gente e caminhar em Ilha
de Maré foi especialmente inspirador, me lembrou o tempo todo o quanto é
importante para mim estar perto da água salgada.
“Quando eu morrer
Voltarei para buscar os instantes
Que não vivi junto ao mar”
O Canto de Oxum - Vinicius de Moraes
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86 | Marcela D’almeida
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Emaranhados
Andressa Melo
Referências Bibliográficas
Fotos de: Giulia Pita, Caruma Obi, Susan Rodrigues e Ilmara Souza.
Informações do quadro:
Dimensões - 55x44
Técnica – String Art
96 | Ilmara Souza
É bom colecionar coisas
Wilian Carmo
Referência Bibliográfica:
Friedrich Nietzsche
Biografias