A ARTE DE CAMINHAR. Ilha de Maré

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A ARTE DE CAMINHAR

Ilha de Maré
CONSELHO EDITORIAL

Dra. Andréia Oliveira


Dr. Messias Bandeira
Dr. Nelson Pretto
Dra. Paola Barreto Leblanc
Dr. Ricardo Iglesias
Dr. Tiago Franklin
Dra. Vanessa Santos
A ARTE DE CAMINHAR
Ilha de Maré

Karla Brunet
(Organizadora)

Proext/UFBA
2018
cc 2018 Karla Brunet

Capa: Karla Brunet e Andressa Melo


Revisão: Ariane Silva, Gilberto Pinheiro, Monique Feitosa
Projeto Gráfico e editoração: Andressa Melo e Karla Brunet

Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-
NãoComercial-CompartilhaIgual 4.0 Internacional.

Primeira Impressão: 2018

A arte de Caminhar: Ilha de Maré / Karla Brunet (organizadora). – Salvador:


ECOARTE/UFBA, 2018.
122 p.

ISBN - 978-1-387-87476-7

1. Arte e Caminhar 2. Prática Artística 3. Formas de Arte. I. Brunet,


Karla. II. Ecoarte

Ecoarte/UFBA
Rua Barão de Jeremoabo, s/n, Ondina
Salvador, BA 40170-115
www.ecoarte.info
Tel: +55(71) 3283-6787
[email protected]
AGRADECIMENTOS

Gostaria de agradecer à PROEXT/UFBA ao edital da ACCS que


possibilitou este livro e o projeto A Arte de Caminhar.
Agradeço imensamente aos professores e estudantes da Escola
Municipal Ilha de Maré que nos acolheram e aceitaram fazer parte deste
projeto de forma tão enriquecedora.
Agradeço a todas as bolsistas do Grupo de Pesquisa Ecoarte que
ajudaram e se dedicaram ao máximo para que este projeto e livro se tornas-
sem realidade.
Sumário
AGRADECIMENTOS 5

O ATO DE CAMINHAR 9
A Arte de Caminhar. Uma prática artística na Ilha de Maré
Karla Brunet 11

O CAMINHAR E A ESCRITA 23
As histórias e o lugar: notas sobre conhecimento e espaço a
partir de uma caminhada experimental
Natália Lima Figueiroa 25
O Caminhar e a cura para os problemas da sociedade
Rodrigo Araújo C. de Oliveira 33
Como Caminhadas Solitárias Constroem uma Narrativa de Si
Daniel Maurício de Aragão 55
Narrativas da arte de caminhar escutando a fé em Ilha de Maré
Nete Amorim 57
Presentes de uma caminhada
Walter Lemos Alves Junior 61

O CAMINHAR E AS VISUALIDADES 63
eu o mar a ilha
Susan Rodrigues e Victor Chaves 65
Atravessar
Monique Feitosa 69
O Entretempo
Raphael Dutra 71
O Paraíso do Fim do Mundo
Iara Crepaldi 77
Pedaços de Maré
Marcela D’almeida 83
Emaranhados
Andressa Melo 91
String Art
Ilmara Souza 95
É bom colecionar coisas
Wilian Carmo 97
Marcas do Solo
Giulia Pita 101
O que é que a Ilha tem?
Caruma Obi 103
Percursos
Eduarda Bango 107
O Caminhar
Alessandra Mariano 110

BIOGRAFIAS 115

SUGESTÃO DE BIBLIOGRAFIA 119


O Ato de Caminhar
A Arte de Caminhar.
Uma prática artística na Ilha de Maré
Karla Brunet

Nossa vida ficou cada vez mais acelerada, os deslocamentos de


um lado para outro devem ser rápidos. Essa rapidez gerada pelo locomover
de um ponto a outro de carro/metrô/avião/trem, não trouxe mais tempo
para nós, e sim mais tempo para produzirmos. Quanto mais rápido nos
locomovemos, mais ocupados estamos. Caminhar é ter um tempo para si
mesmo. O ato de caminhar faz com que desaceleremos um pouco, que pos-
samos observar nosso entorno.
Esse artigo foca no ato de caminhar num caminhar como ação ar-
tística, como ato político, como conexão com a natureza. É um artigo e,
também, um projeto sobre sair da vida urbana, da cidade, da rotina apressa-
da e entrar na natureza.
A antropóloga especializada em cyborg, Amber Case, em uma en-
trevista para o jornal El Pais “O celular é o novo cigarro: se fico entediada,
dou uma olhada nele. Está nos escravizando”1 fala sobre nosso vício pelo
celular e aponta como única saída para combater esse vício é nos voltarmos

1URL: http://brasil.elpais.com/brasil/2017/12/05/tecnologia/1512483985_32011
5.html
12 | Karla Brunet
para a natureza. Esse projeto A Arte de Caminhar propõe colocar em prática
esse escape. Sair da cidade e caminhar em locais que não tenham acesso ao
serviço de celular, locais onde o caminhar não é no asfalto. Reaprendermos
a conectar com a natureza por nosso movimento corporal. É uma forma de
desconectarmos do mundo acelerado em que vivemos. Estarmos abertos a
parar, conversar com as pessoas, escutar histórias, conhecer mais
sobre a biodiversidade.

O caminhar e a escrita

No decorrer da história, filósofos e escritores usaram a caminhada


como parte do processo de criação. Rousseau era o caminhante romântico
em busca de uma natureza pura. Afirmou que só conseguia meditar quando
caminhava. Kant era conhecido por ter um horário fixo para suas caminha-
das diárias, caminhava para depois sentar e escrever. Já Friedrich Nietzsche
escrevia enquanto caminhava (SOLNIT, 2016; COVERLY, 2015). Henry
David Thoreau (2012) optou por caminhar na natureza como uma forma de
fugir da sociedade, de entender que somos parte do
meio ambiente.
Poetas e escritores também basearam suas escritas na caminhada.
Um dos clássicos da poesia e caminhada foi William Wordsworth que cami-
nhou por dias, semanas, meses para escrever centenas de poemas que
contavam seus encontros e percepções nessas caminhadas. Virginia Woolf,
em 1930, escreveu o ensaio 'Street Haunting: A London Adventure' – tradu-
zido no Brasil como “Batendo pernas nas ruas: uma aventura em Londres”
– sobre sua caminhada por Londres quando saiu para comprar um lápis. É
um ensaio que narra o prazer de percorrer as ruas de Londres num
dia de inverno.
Em “Trilhas: A incrível jornada de uma mulher pelo deserto aus-
traliano” Robyin Davidson conta de forma pessoal e introspectiva a sua
história de caminhada no outback australiano. Nos anos 70, com 27 anos,
Robyin cruzou o deserto da Austrália em direção ao mar acompanhada de
quatro camelos e sua cadela de estimação. Foram quase 3 mil quilômetros de
caminhada numa jornada de nove meses que exigiu força e persistência.
Reflexões sobre identidade e a sensibilidade da autora são sentidas na escrita.
Outro escritor que narra uma jornada caminhando é Werner Her-
zog em “Of walking on ice” – sem tradução no Brasil. O livro conta a
A Arte de Caminhar |13
caminhada que Werner realizou de Munique a Paris quando soube que sua
amiga Lotte Eisner estava muito doente, prestes a morrer. Nesse dia, Wer-
ner decidiu ir caminhando até Paris para encontrar a amiga. Sua caminhada
seria uma forma de manter sua amiga viva. O livro é escrito em forma de
diário, cada capítulo é um dia, começando em 23 de novembro e terminan-
do em 14 de dezembro. Como no livro de Robyn, a ideia de caminhada está
ligada a um sentimento forte, de superação e, também, espiritual. Esses são
somente alguns dos diversos exemplos de caminhada e escrita. A literatura
clássica e contemporânea está recheada de livros baseados em caminhadas
ou escrito enquanto caminhando.

Caminhar como ação política

Caminhar por si só pode ser considerado um ato político quando


pensamos nas cidades e metrópoles em que vivemos onde o carro é o prota-
gonista no planejamento urbano. As grandes cidades brasileiras não são
feitas para caminhar, sua escala está voltada para o uso de carros e ônibus.
Mesmo quando queremos caminhar, encontramos barreiras simples como a
falta de calçada, de formas de cruzar ruas, viadutos sem possibilidade de
caminhada. Além do perigo eminente que, ao caminhar em determinados
lugares, podemos ser roubados ou agredidos fisicamente, especialmente se
somos mulheres. Insistir em querer caminhar como modo de locomoção
nas grandes cidades é sim um ato político. Quando menos gente caminhar,
mais perigoso ficará e menos atenção política recebemos de infra-estrutura
para os pedestres.
Como parte deste processo de leitura e conscientização sobre a
caminhada, este ano vendi meu carro e comecei a ir – algumas vezes por
semana – a pé ao trabalho. Levo 45 minutos em cada trajeto. Sendo mulher,
ainda é mais preocupante o horário limite que tenho para voltar para casa.
Caminhar é uma forma de transgredir os valores consumistas e a política
‘carrocêntrica’ da cidade.
No decorrer da história, existiram diversas marchas onde a cami-
nhada foi forma de demonstração política. Neste artigo, selecionei três
como exemplo. O primeiro é um movimento que ocorreu em Londres nos
anos 90 e se propagou para outros lugares do mundo, o chamado Reclaim the
14 | Karla Brunet
Streets2. A proposta era usar as ruas como espaços de lazer, trazer as pessoas
para as ruas e mostrar que as ruas não eram somente dos carros. Foram
realizadas diversas festas e atividades culturais nas ruas para trancarem o
trânsito e retomarem o espaço público urbano.
Um exemplo marcante da história da caminhada política foi a
marcha de Selma a Montgomery3. Foram caminhadas realizadas em 1965 e
lideradas por Martin Luther King Jr. em prol do direito dos americanos
africanos ao voto nos Estados Unidos. Nas primeiras tentativas de marcha a
polícia usou da violência para restringir o movimento. O marco foi no dia
16 de março de 1965 quando os manifestantes cruzaram a ponte em direção
a Montgomery e a polícia abriu caminho. Uma das caminhadas políticas
mais emocionantes televisionada.
Outra marcha histórica é a chamada Marcha do Sal ou Satyagraha4
realizada na Índia. Foi uma caminhada de quase 400km liderada por Gandhi
em protesto às imposições britânicas contra a extração de sal na Índia colo-
nial. Gandhi e seu seguidores caminharam até o mar. Foram 25 dias de
caminhada, de 12 de março a 6 de abril quando Ghandhi chegou no litoral e
pegou um punhado de sal. Gandhi e seu seguidores foram presos, mas a
marcha seguiu em direção às salinas na região de Bombaim – atual Mumbai.

Caminhar como ação artística

A caminhada também faz parte da arte contemporânea. Richard


Long, Marina Abramovic e Ulay, Francis Alys, Regina José Galindo, Simon
Faithfull, Laurent Malone e Dennis Adams são alguns dos exemplos de
artistas que se utilizam do caminhar como ação artística.
Richard Long, durante toda sua carreira artística, utilizou da cami-
nhada como forma de construção da arte ou de entender o espaço da arte.
Um dos clássicos exemplos é A Line Made by Walking, 19675 onde o artista
caminhou diversas vezes, ida e volta, num gramado no interior da Inglaterra.
Os traços dessa caminhada criaram uma linha que foi fotografada como

2Mais informações na URL: http://www.bl.uk/learning/histcitizen/21cc/counter


culture/disruption/reclaim/reclaimthestreets.html
3 Mais informações na wikipedia: https://pt.wikipedia.org/wiki/Marchas_de_

Selma_a_Montgomery
4 Mais informações na Wikipédia: https://pt.wikipedia.org/wiki/Marcha_do_Sal
5 URL: http://www.richardlong.org/Sculptures/2011sculptures/linewalking.html
A Arte de Caminhar |15
forma de objetificar a obra de arte. Em outras obras posteriores como
Dusty Boots Line Sahara (1988)6 e Nomad Circle (1996)7, Long também usa
formas simples como linha e círculo para representar suas caminhadas na
natureza. Richard Long afirmou: “Gosto da arte simples, prática, emocional,
tranqüila, vigorosa, gosto da simplicidade de caminhar.”(Lailach, 2007, p.70).
A caminhada pode ser identificada em toda obra de Long, tanto nas mais
literais, que foram baseadas em uma caminhada, como nas que a caminhada
foi somente um ponto inicial para se realizar algo.
Em 1988, Marina Abramovic e Ulay realizaram a obra The Lovers
- The Great Wall: Lovers at the Brink (Os Amantes – A Grande Muralha:
amantes à beira)8. Depois de muitos anos de negociação com o governo
chinês, os dois partiram para uma performance/caminhada na Grande Mu-
ralha da China. Marina Abramovic caminhou em direção a oeste, partindo
do Mar Amarelo, enquanto Ulay caminhou em direção a leste, partindo da
fronteira com o deserto de Gobi. Depois de reduzirem de um ano para 6
meses o percurso da caminhada. E, finalmente, caminharam por 3 meses
para se encontrarem no meio do caminho, em Shenmu, na província de
Shaanxi e disseram adeus. Foi o fim da relação deles como dupla artística,
como casal. (O’ROURKE, 2016). A performance é conhecida como um dos
clássicos da arte e caminhada. Aqui, o tempo, as reflexões durante o percur-
so e os sentimentos foram representados nessa ação artística e
documentados em fotografia e vídeo.
Uma mescla de ativismo e arte é o trabalho de Francis Alys, The
Green Line (Jerusalém 2004)9 onde o artista caminhou derramando uma
tinta verde pelos arredores de Jerusalém, tentando desenhar a linha verde
existente no mapa. Alys diz que “às vezes, fazer algo poético pode se tornar
político e, às vezes, fazer algo político pode se tornar poético”10. O rastro da
caminhada – feito com 58 litros de tinta e documentado em vídeo – trouxe à
tona discussões sobre território, lugar e fronteiras.

6 URL: http://www.richardlong.org/Sculptures/2011sculpupgrades/dusty.html
7URL: http://www.richardlong.org/Sculptures/2011sculpupgrades/nomad.html
8 Mais informações no: https://publicdelivery.org/marina-abramovic-the-lovers-

the-great-wall-walk/
9 URL: http://francisalys.com/the-green-line-albert-agazarian/
10 Tradução do original: “Sometimes doing something poetic can become political

and sometimes doing something political can become poetic.”


16 | Karla Brunet
Em 2003, Regina José Galindo apresenta uma arte política engaja-
da com a situação política de seu país, Guatemala. Na sua
performance/caminhada “Quien puede Borrar las huellas”, Regina cami-
nhou na frente do Congresso Nacional deixando pegadas de sangue pelo
chão. A cada poucos passos, a artista parava e mergulhava seus pés numa
bacia cheia de sangue humano que ela carregava durante a caminhada. A
obra é um protesto contra a candidatura a presidência do ex-ditador José
Efraín Ríos. As pegadas, como as linhas de Long, deixam marcas no chão
para desenhar com o corpo este novo espaço da arte.
O inglês Simon Faithfull em Going Nowhere 2 (Indo a lugar Ne-
nhum 2) caminha em um terreno não tão explorado artisticamente, o
subaquático. Simon, vertido com calças jeans e camisa branca, parece cami-
nhar de forma objetiva se distanciando da câmera. Não entendemos onde
ele quer chegar, mas percebemos que possui um objetivo pré-determinado.
O trabalho em vídeo é uma segunda versão, na Going Nowhere 1, Simon
caminha num terreno nevado e com muito vento até sua silhueta quase de-
saparecer do vídeo e depois volta.
Nos Estados Unidos, Laurent Malone e Dennis Adams realizaram
uma caminhada de 11 horas saindo do centro de Nova Iorque ao aeroporto
JFK. Começando às 8 horas da manhã, cruzaram ruas movimentada, su-
búrbios, pontes, viadutos, cemitérios. O propósito era tirar indeterminado
número de fotos do percurso com uma câmera 35mm, sempre em duplas,
cada um fazia a foto na direção oposta a do outro. Quando um parava para
uma fotografia, logo a câmera do outro deveria realizar uma foto exatamente
na direção oposta. O resultado foi um livro contendo 243 pares de imagens
na seqüência que foram feitas e impressas lado a lado. Aqui, o resultado é
uma geografia visual do percurso que foi criada pela caminhada e as regras
do jogo artístico proposto.
Uma referência no Brasil em arte e caminhada é a artista paulista-
na Edith Derdyk. Seu trabalho com linhas e desenhos representam uma
espacialidade do percurso caminhado. Em sua instalação “Fantasmagoria”,
Edith diz ter usado 80km de linha e muitas caminhadas para poder construir
sua obra. Além das obras a partir de caminhadas, a artista desenvolve o pro-
jeto “Bagagem: caminhada como prática poética”11, promove residências
artísticas de caminhadas poéticas e coordena a Pós-graduação Lato Senso

11
Url: http://bagagem-caminhada.blogspot.com/
A Arte de Caminhar |17
“Caminhada como Método para Arte e Educação"12 na Casa Tombada.
Caminhada é parte de sua ação artística.
Esses projetos artísticos descritos acima são somente uma peque-
na mostra da variedade de obras que usam o caminhar como ação artística,
são performances, vídeos, fotografias, telas, land art, música, ativismo, entre
outros.

Caminhar e a Ilha de Maré

Nesta edição de 2018.1 do projeto A Arte de Caminhar, fizemos


as caminhadas na Ilha de Maré, parte do município de Salvador e localizada
na Baia de Todos os Santos. As caminhadas foram uma imersão na natureza
do lugar, contato com a comunidade local e com a biodiversidade da região.
A comunidade da Ilha de Maré não possui carros ou ônibus, o
transporte é feito principalmente por meio de barco e caminhadas. Como a
região da ilha possui algumas colinas, mangue e lama, as caminhadas e inter-
câmbios entre uma localidade e outra é escassa. Existe um maior
intercâmbio com o continente do que com o outro lado da ilha. A mobilida-
de é precária dentro da ilha. O barco é o meio de transporte mais difundido.
As gerações passadas caminhavam entre uma comunidade e outra da ilha.
Atualmente, os jovens já não caminham tanto ou não possuem o hábito de
caminhar longas distâncias. Caminhar virou perda de tempo e algo
sem sentido.
A população vive principalmente da pesca e do turismo. A agricul-
tura familiar também é uma das atividades de sustento. Muitos dos
moradores trabalham no continente já que o transporte entre ilha e o conti-
nente é relativamente rápido. Em visitas prévias ao projeto, percebi que
existe uma falta de interesse dos moradores pela sua própria região. O calor,
a lama e o relevo fazem com que a preferência seja ir para cidade do que
caminhar para outra região da ilha. A mobilidade entre comunidades da
própria ilha não é incentivada ou preocupação da gestão da região. A pro-
posta destas caminhadas é motivar uma topofilia (Yi-Fu Tuan, 1990) dos
habitantes da ilha por seu território. Na rotina diária, tomamos como certo o
lugar que vivemos. Algumas vezes é importante parar para refletir sobre

12
URL: http://acasatombada.com.br/arte-e-educacao-caminhada-como-metodo2osemestre
-2018/
18 | Karla Brunet
nosso território. Na medida que os estudantes locais estiveram em contato
com os estudantes da UFBA e foram eles os protagonistas, os que conheci-
am o local, percebi que demonstraram esse cuidado com seu lugar.
Para Tuan (2001: 66), “o espaço se torna lugar à medida que o
conhecemos melhor e damos valor a ele”13. O espaço deixa de ser abstrato e
a medida que o experimentamos em diversas extensões (pessoal, social,
cultural e física) se torna um lugar. A coleta de narrativas e a experiência na
natureza proporcionou um imaginário comum de pertencimento do lugar.
A ACCS (Atividade Curricular em Comunidade e Sociedade) pro-
põe um pensamento crítico sobre a ação de caminhar como um ato artístico,
social e político. A arte, aqui, é o modo de atingir esse objetivo. Através
dessas caminhadas na comunidade da Ilha de Maré, os estudantes da UFBA
ficaram mais perto da natureza e em interação com a população da ilha. A
troca de experiências desses alunos e dos moradores da ilha, tanto com os
estudantes locais que caminharam com o grupo quanto dos habitantes que
encontramos pelo caminho foram de grande importância para a formação
acadêmica e social dos alunos. Nosso objetivo era incentivar o ato de cami-
nhar, construir uma maior conexão com a natureza e com os espaços pouco
habitados do município de Salvador e produzir uma experiência de
estética ambiental.
Mesmo morando em uma Ilha sem transporte público terrestre, os
moradores da Ilha de Maré estão cada vez mais caminhando menos. Essa
ACCS buscou resgatar esse ato de caminhar nos jovens moradores da Ilha
de Maré e nos jovens estudantes da UFBA. Ao caminhar, esperava-se:
• aumentar o respeito pela natureza;
• incentivar o contato com as comunidades vizinhas;
• entender melhor seu meio ambiente;
• descobrir nova forma de locomoção;
• incentivar o respeito pelo outro;
• aumentar a concentração;
• estimular nos habitantes locais a uma topofilia pelo lugar
onde vivem;
• melhorar a saúde e o condicionamento físico;
• reduzir o estresse.

13Traduzido de: “space becomes place as we get to know it better and endow it
with value.”
A Arte de Caminhar |19

Em Maré, qualquer morador sabe diferenciar os tipos de caran-


guejos, enquanto que os moradores do continente, só conhecem o nome
genérico. Essas caminhadas foram uma forma de conexão com a comunida-
de e o lugar. Caminhamos juntos com 20 estudantes e 3 professores da
Escola Municipal de Ilha de Maré. Os professores que nos acompanharam
eram de arte e de geografia e os estudantes eram de diferentes séries, 5º, 9º e
EJA (Educação de jovens e adultos)14. Os estudantes adultos atuaram como
líderes nessas caminhadas, indicando caminhos e sugerindo trajetos.
A ACCS “A Arte de Caminhar” é um componente curricular que
leva o estudante para fora da sala de aula. Convida à prática do caminhar.
Tanto um caminhar como forma de locomoção, como um caminhar como
ação artística, como imersão na natureza, como ato político, como ato espi-
ritual e/ou filosófico. A proposta é sair da UFBA, da nossa zona de
conforto, da região que vivemos e caminharmos em uma outra localidade da
cidade, pouco habitada. Enfrentar o calor, a lama, a chuva,
o sol, o desconhecido.

Produções da ACCS A Arte de Caminhar

Nessa ACCS de 2018.1, os estudante da UFBA precisavam fazer


alguma produção escrita, visual ou sonora sobre sua caminhada. Foram
convidados a pensar numa materialidade dessas caminhadas. Surgiram, en-
tão, ensaios, poesias, contos, esculturas, bordados, fotografias, desenhos,
pinturas, string art, vídeos e colagens. Neste livro, apresentamos a seguir cada
obra resultante dessa experiência e intercâmbio na ilha. Espero
que desfrutem.

Referências bibliográficas:

COVERLY, M. A arte de Caminhar: O Escritor como caminhante. São


Paulo: Martins Editora Fontes,2015.
LAILACH, M. Land Art. Köln: Taschen, 2007.

14Lista da equipe da caminhada ACCS 2018.1 http://caminhar.ihac.ufba.br/index.


php/2018/04/19/equipe/
20 | Karla Brunet
O’ROURKE, K. Walking and Mapping. Artists as Cartographers.
Cambridge, Massachusetts, London, England: MIT Press, 2016.
SOLNIT, R. A História do Caminhar. São Paulo: Martins Fontes, 2016.
THOREAU, H. D. Caminhada. Lisboa: Antígona, 2012.
TUAN, Y.-F. Topophilia: a study of environmental perception, atti-
tudes, and values. New York: Columbia University Press, 1990.
TUAN, Y. Space and place: the perspective of experience. Minneapolis:
University of Minnesota Press, 2001.

Links de referências de vídeos:

• Reclaim the streets - various protests 1993- 1999:


http://youtu.be/EjDTbYVkNTU
• Bloody Sunday - Selma, Alabama: https://youtu.be/P7vrrYVyN3g
• Footage - Gandhi - 1930 April, #02:
https://youtu.be/lJdErHQGEHM
• Marina Abramovic and Ulay - The Lovers (The Great Wall: Lovers
at the Brink) https://youtu.be/zaso0j9x098
• Regina José Galindo: Quien puede Borrar las huellas:
https://youtu.be/SDTLipg9vMc
• The Green line - Francis Alÿs https://vimeo.com/132929393

Site do projeto A Arte de Caminhar/UFBA http://caminhar.ihac.ufba.br


A Arte de Caminhar |21

“Acho que no momento que


começo a mover minhas
pernas, meus pensamentos
começam a fluir”

Henry David Thoreau


O Caminhar e a Escrita
As histórias e o lugar: notas sobre
conhecimento e espaço a partir
de uma caminhada experimental
Natália Lima Figueiroa

Àquela altura eu já havia demonstrado minha inabilidade


para atravessar terrenos lamacentos e desnivelados, o cor-
po acostumado ao terreno plano da cidade. Suja de lama
dos pés à cabeça, eu me movia de forma claudicante pela
restinga, as pernas a cada passo afundando nas terras escu-
ras do mangue. Em certo momento avistei um graveto e,
de improviso, o transformei numa espécie de bastão na
esperança de que a ferramenta me auxiliasse na manuten-
ção de certa estabilidade. Logo à minha frente seguiam os
meus acompanhantes imediatos, sete alunos Escola Muni-
cipal Ilha de Maré, que contrastavam significativamente de
mim: lideravam o caminho contado histórias sobre o lu-
gar, andavam com destreza, num ritmo próprio, mantendo
seus uniformes impecavelmente limpos. Em certo mo-
mento, vendo-me na iminência de uma nova queda
Maria15 estendeu-me a mão ajudando a me equilibrar. Dali

15
Os nomes de alunos citados no texto são fictícios a fim de manter a pri-
vacidade dos estudantes.
26 | Natália Lima Figueiroa
em diante ela me guiou por todo o percurso: “cuidado,
não pise ali não que é urtiga”, “pise mais pra lá”, “por aqui
tem um atalho”. (Diário de Campo, 18/05/2018)
A experiência de caminhar é sempre um “descobrir-caminho”, al-
go que está sob o signo do inesperado, por mais que já tenhamos trilhado
várias vezes a mesma rota. O fundamento imprevisível do caminhar não está
necessariamente contido nas maravilhas da paisagem ou no exótico do lugar.
De vez em quando a comoção da novidade é provocada pelo próprio ato de
caminhar (um pé depois do outro), como também pelos caminhos que se
atravessam. O ato em si torna-se um desafio. O “simples” gesto de colocar
um pé na frente do outro, esse movimento tão fundamental que chegamos a
julgá-lo como natural, se torna uma aventura e, em última instância, um
aprendizado prático. Traçar caminhos desconhecidos nos permite desnatu-
ralizar ações que tomaríamos como inatas. Situações e circunstâncias que
nos exigem novas habilidades nos mostram, na prática, que as técnicas do
corpo são um aprendizado contínuo. Não temos opção senão concordar
com Mauss quando ele afirma que, “em suma, talvez não exista ‘maneira
natural’ no adulto” (MAUSS, 2015, p. 405). É esta condição sempre precária
do movimento que excerto do diário do início do texto revela, a partir do
meu andar incerto amparado pelos saberes dos alunos da Escola Municipal
de Ilha de Maré num terreno desconhecido para mim. Explorar o vínculo
entre conhecimento, espaço e narrativas é justamente o que este breve
ensaio pretende.
A cena que escolhi para dar início a este texto é um relato de cam-
po que se refere à uma das atividades promovidas pela Ação Curricular em
Comunidade e em Sociedade “A Arte de Caminhar”, idealizada e conduzida
pela professora Karla Brunet da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Dentre as várias atividades desenvolvidas pela disciplina, esta em específico,
buscava promover uma troca de experiências mediada pela caminhada en-
volvendo alunos da UFBA e da Escola Municipal Ilha de Maré. Em “A Arte
de Caminhar”, e sobretudo nesta vivência pedagógica em Ilha de Maré, inte-
ressei-me, como pesquisadora, em compor um quadro de experiências
diverso daquele que estou habituada a explorar na pesquisa de doutorado
que venho levando a cabo nos últimos dois anos.
A caminhada, esta atividade essencial, pode ser atuada e aparecer
na vida humana de diversas formas, em inúmeros contextos e com as mais
diversas orientações. A pesquisa que desenvolvo no doutorado é voltada
As histórias e o lugar | 27
para a análise da caminhada enquanto atividade física direcionada para a
transformação corporal e/ou para o aprimoramento do quadro de saúde do
caminhante; sendo assim, ela costuma explorar um campo de atuação da
caminhada que é fundamentalmente urbano e que muitas vezes envolve o
controle de metas e performance. Trata-se de um caminhar rotineiro, que
geralmente atravessa espaços da cidade que, seja por políticas públicas ou
pela prática dos habitantes, são previamente demarcados e mapeados para
aquele determinado uso. Um caminhar que se distancia do desafio de per-
correr a costa, lamaçais e mangues da Ilha de Maré.
É importante tentar, na medida do possível, descrever esse espaço;
não na intenção de cristalizá-lo numa imagem estática e estéril, mas sim para
entender suas características e especificidades. A Ilha de Maré é um territó-
rio do município de Salvador localizado na Baía de todos os Santos, sem
ligação direta com o continente e cujo acesso se dá por meio marítimo. Por-
tanto, para encontrar Ilha de Maré é preciso fazer uso de lanchas ou barcos,
o que, num dia ensolarado como o da minha visita, torna-se um agradável
sacrifício com duração de aproximados trinta minutos. Embora se localize
numa das capitais mais turísticas do país, Ilha de Maré preserva um certo
espírito outsider, com uma temporalidade própria. Ao passo que nos aproxi-
mamos da borda da Ilha o silêncio das águas do mar permanece como pano
de fundo para que os andarilhos transpassem as casas simples e o terreno
desnivelado de terra da maioria das ruas. Com a atenção voltada para o
chão, típica de quem percorre um lugar pela primeira vez e teme cair, obser-
vei na caminhada-trajeto do porto até a Escola Municipal de Ilha de Maré,
amontoados de conchas do mar, cascalhos, carcaças de caranguejo, restos de
vegetação, raízes de árvores, seixos, pedaços de cimento, garrafas pet e saco-
las plásticas. Num exercício arqueológico rudimentar é possível intuir que
esta coleção de restos é reveladora não somente dos hábitos dos nativos da
Ilha, mas como pude observar pela quantidade de lixo costeando nosso
roteiro inicial pelo litoral, da condição da região de destinatária dos detritos
da circunvizinhanças. Na atmosfera do lugar pairava uma sensação de paraí-
so perdido, impressão que se constrói não somente pelo impacto imagético
das desconcertantes paisagens naturais que encontramos, mas também pela
abertura e cordialidade instantânea dos nativos para com os forasteiros. As
ruas estreitas de terra, sem espaço para a passagem de veículos e, portanto,
privilegiando a prática pedestre, pareciam convidar o olhar para dentro das
casas, trazendo uma intimidade voluntária entre os passantes e os habitantes.
28 | Natália Lima Figueiroa
Esta breve caminhada pela Rua da Caieira nos levou à Escola Mu-
nicipal de Ilha de Maré. Lá, conhecemos os alunos que iriam nos
acompanhar no processo e conversamos sobre os possíveis itinerários para
chegar ao destino previamente combinado. Assim, se formaram dois grupos
que traçaram rotas de caminhadas distintas (no intuito de comparar experi-
ências diferentes) mas perseguindo um mesmo destino: chegar a Botelho, na
costa leste da Ilha.
Ao seguir pelo mangue posso ressaltar que a caminhada estreitou
os laços de sociabilidade e afeto entre as pessoas. Caminhar em grupo, ao
invés do caminhar solitário urbano, torna a prática definitivamente distinta.
Além da subversão que se segue à desconstrução da caminhada com mero
meio de transporte de um ponto a outro, é digno de nota que o caminhar
em grupo ganha um outro sentido político na medida em que instaura um
senso colaborativo entre seus participantes, unidos pelo desafio de transpor
o caminho em conjunto, extinguindo a competitividade e respeitando os
tempos individuais. Um andar que conecta os sujeitos é o exato oposto da
tendência observada por Solnit: “Muitas pessoas hoje em dia vivem numa
série de ambientes internos - o lar, o carro, a academia, o escritório, lojas - e
divorciados uns dos outros.” (SOLNIT,2016,p.28).
Esta outra forma de andar, a despeito da dimensão instrumental e
pragmática do caminhar nas metrópoles, instaura também o espaço profícuo
para a abertura comunicativa. O ter que trilhar um caminho em comum
propõe também a troca de narrativas e experiências. Me aproximei, desta
forma, dos alunos, que aparentavam ter entre onze e quinze anos, fazendo
perguntas sobre a escola e sobre a experiência de viver em Ilha de Maré.
Caminhar não parecia, naquele momento, distante de conversar. Havia uma
exigência de comunicação que era ampliada pelo fato dos alunos terem aca-
bado se tornando nossos guias. Essa comunicação não era, porém,
meramente informativa ou cartográfica. Ela surgia à medida que passávamos
pelos lugares, como condição essencial para a evocação de saberes e narrati-
vas sobre o espaço. Por exemplo, a certo ponto, um aluno que aparentava
ter doze anos apontou para uma pegada no chão e disse que ela pertencia ao
chamado “cachorro da noite”, um animal que aparece para “pegar” as pes-
soas assim que escurece. Dali em diante eu já não estava apenas no mangue,
mas eu fazia parte de um cenário que ganhava uma nova identidade através
daquelas narrativas. Sem que se tenha planejado, eu estava conhecendo o
lugar com os pés descalços, a partir de histórias, piadas, observações e ane-
dotas e, de outro lado, os alunos estavam demonstrando familiaridade com a
As histórias e o lugar | 29
região e nos ensinando sobre os perigos do mangue, sobre a melhor rota a
ser seguida, sobre a topografia, a fauna e flora.
Uma análise superficial poderia dar a impressão que essas narra-
ções de contos fantásticos têm pouca ou nenhuma relação com os temas
que estou desenvolvendo aqui. O que o cachorro da noite, com seus hábitos
noturnos que parecem ter saído do mais assustador pesadelo infantil, pode-
ria informar sobre o gesto da caminhada, sobre o espaço e conhecimento?
O que uma história que pertence ao distante domínio do mundo ficcional
teria a oferecer para o exame de uma atividade tão mundana, “real” e pre-
tensamente objetiva quanto o simples ato de apoiar os pés no material do
mundo? Diante dessas inquietações que parecem carregar uma resposta
óbvia, gostaria de argumentar pelo controverso ao afirmar que essas histó-
rias além de não pertencerem a um domínio irrelevante em relação àquele
que vivemos, também são fundamentais para compreender e dar sentido ao
espaço. Trata-se de uma ideia que pode ser resumida no argumento de In-
gold de que “os lugares não tem posições e sim histórias” (INGOLD, 2005,
p.77), o que significa dizer que “descobrir-caminho [...] assemelha-se mais a
contar histórias do que utilizar um mapa” (INGOLD, 2005, p.77).
Poderia se argumentar, talvez com alguma razão, que essas histó-
rias que participam ativamente da composição dos lugares não podem ser do
tipo ficcional. As histórias que fariam parte da manufatura do tecido do
espaço que se dá nesse descobrir-caminho seriam, então, da ordem dos rela-
tos das experiências dos caminhantes daquela região, tocando no “campo de
relações estabelecido através da imersão do ator-perceptor num dado con-
texto ambiental” (INGOLD, 2005, p.78). Se nos alinharmos com essa
perspectiva, estaríamos diante de um tipo de narrativa que envolve tradição,
o conhecimento vivenciado por gerações anteriores, memória e algo próxi-
mo de uma documentação histórica. Sendo assim, a separação entre mundo
“real” e mundo ficcional, fundamento indispensável para a racionalidade e
cientificidade moderna, estaria preservada. Assumir essa postura, porém, é
diminuir a vida e suas possibilidades. Essa divisão, que parece incontestável
para nós, herdeiros desse modelo investigativo, se ancora na crença de uma
ciência cartesiana que se estabelece como um véu que separa o mundo das
coisas-em-si, o mundo da ciência; e os mais variados mundos das culturas e
das elaborações sociais. No entanto, no domínio da vida vivida, da experiên-
cia de ser e estar no mundo, essa distinção não se faz tão fácil e
precisamente; “o real” está contaminado por percepções e, portanto, imagi-
nações, não existindo, um real objetivo, desencarnado e a-histórico.
30 | Natália Lima Figueiroa
Não se trata, portanto, de dizer que o “cachorro da noite” não e-
xiste e que, por isso, devemos abrir mão de examinar a narrativa de sua
história sob a pena de não realizarmos um empreendimento notadamente
científico. Pelo contrário, mesmo assumindo que o cachorro da noite é um
sujeito do mundo ficcional, precisamos reconhecer que seu campo de atua-
ção não está separado da vida vivida, precisamos vê-lo “não como um
elemento do mundo natural, mas como um fenômeno da experiência”
(INGOLD, 2012, p. 19). Ele é a manifestação fantástica dos medos e peri-
gos de atravessar aquele trajeto no escuro da noite e, nesse sentido, a
narrativa sobre esse ser fantástico é também uma forma de configurar o
conhecimento sobre aquela região e, em última instância, de tornar mais
concreta a transmissão desse conhecimento.
À medida em que íamos transpondo o terreno, os alunos se senti-
am mais desinibidos com a nossa presença, tornando-se mais confiantes
para demonstrar seus conhecimentos sobre a região e assumindo um certo
protagonismo na condução do trajeto. Já no terço final da nossa caminhada
atravessamos uma extensa porção de terra cuidando para não pisar no mar
de siris que se escondiam na areia a cada um dos nossos passos. Um aluno
ao avistar o animal numa poça fez questão de mostrar um siri caxangá, tipi-
camente utilizado na culinária local. Segundo ele a passagem do estado da
sua casca dura, e, portanto, protetora de seus órgãos internos, para a casca
mole atestaria que a alma do bicho também o abandonara.
Em certo sentido é possível dizer que esta forma reencantada de
ver o mundo - uma que dá alma aos animais e aos lugares- subverte a lógica
e o tempo hegemônico do urbano contemporâneo. Desafiando as fronteiras
do real e do imaginário, as narrativas dos alunos não encarnam um modo de
experienciar o espaço mediado pelo utilitarismo e produtivismo classificató-
rios, que poderia se expressar num grupo de alunos treinado para entoar
narrativas oficiais ou saberes enciclopédicos sobre o local. Antes os alunos
demonstram, através das histórias comuns, uma sintonia própria com o teci-
do social e natural da região, em outras palavras, uma familiaridade
com o ambiente.
Basta dizer que estas histórias só surgiram num contexto de ade-
são da Escola Municipal Ilha de Maré à proposta da ACCS A Arte de
Caminhar, e da própria compreensão, às vezes não óbvia, do valor pedagó-
gico da caminhada. Como demonstrado por Elizabeth Curtis(2008),a
experiência de utilizar a caminhada como forma de produção de conheci-
As histórias e o lugar | 31
mento através da construção de apurados roteiros guiados na cidade Aber-
deen permitiram, na sua experiência local, que os alunos, desde as séries
primárias, construam uma atitude positiva com o entorno da cidade e suas
construções históricas, permitindo um desenvolvimento pedagógico basea-
do não em informações mas em percepções que o olhar, sentir, brincar e
pensar proporcionam.
Em Ilha de Maré, entretanto, de forma ainda mais contundente,
não haviam roteiros pré estabelecidos e milimetricamente construídos. Sem
manuais que ordenassem pausas, direções, atalhos, ou referências foi através
da posição de protagonismo assumido por alunos como Maria, que sabiam
exatamente onde pisar, que a experiência tornou-se ainda mais rica.

Referências Bibliográficas

CURTIS, Elizabeth.Walking Out of the Classroom: Learning on the Stre-


ets of Aberdeen In: Ingold, Tim; Vergunst, Lee. (Org); Ways of walking:
ethnography and practice on foot. London: Ashgate publishing, 2008
INGOLD, Tim. Jornada ao longo de um caminho de vida: mapas, desco-
bridor-caminho e navegação. Religião & Sociedade, Rio de Janeiro, v. 25,
n. 1, p.76-110, jul. 2005.
INGOLD, Tim. Caminhando com dragões: em direção ao lado selvagem.
In: STEIL, Carlos Alberto; CARVALHO, Isabel Cristina de Moura (Org.).
Cultura, Percepção e Ambiente: Diálogos com Tim Ingold. São Paulo:
Terceiro Nome, 2012.
MAUSS, Marcel. As técnicas do corpo. In:____ Sociologia e Antropologia.
São Paulo: Cosac Naify, 2003
SOLNIT, Rebecca. A história do caminhar. São Paulo: Martins Fontes,
2016.
O Caminhar e a cura para os
problemas da sociedade
Rodrigo Araújo C. de Oliveira

Como integrante do grupo A Arte de Caminhar, visitei Ilha de


Maré em Salvador-BA. A ideia era de caminharmos e retomarmos o contato
com a natureza, nos relacionando com o nosso entorno e observando-o
com mais paciência e calma, interagindo com o espaço. Queríamos experi-
mentar novamente a vida sem fadiga, o estresse e o cansaço, causados pela
dinâmica citadina e a falta de tempo que assola a contemporaneidade, man-
tendo seus cidadãos cada vez mais ocupados.
A atualidade trouxe uma quebra da relação da pessoa não apenas
com o espaço, mas também consigo mesma, e a ideia de caminhar veio co-
mo proposta de reatar esses laços que foram espatifados por diversos
elementos. Um deles são os meios de mobilidade urbana, que retirou das
pessoas o contato com os seus pares e com o espaço, sendo sempre pensa-
dos para poupar tempo e chegar mais rápido aonde quer que seja.
Sei como é se sentir sem tempo: tenho que chegar nos destinos o
mais rápido possível, caso contrário, sofro sanções ou me sinto mal, como
se estivesse cometendo um erro ao perder tanto tempo, num processo duplo
de fiscalização. Eis um resumo da vida atual para a maior parcela da socie-
dade: acordar, pegar um transporte, sair do transporte, chegar num local
34 | Rodrigo Araújo C. de Oliveira
para uma atividade, voltar a entrar num transporte, sair mais uma vez para
outra atividade, voltar para casa, dormir. Repetitivamente é assim,
dia após dia.
Diante disso, durante as discussões que tivemos, a ideia de cami-
nhar foi me apetecendo cada vez mais. Já faço caminhadas e corridas para
me manter saudável, mas repensar essas atividades, ressignificando e atribu-
indo outras finalidades, me fez refletir. Pensando no caminhar como
mobilidade me fez analisar a rotina: ignoramos os lugares por onde passa-
mos a todo instante, já que são transformados em meros locais de passagem.
Isso porque o nosso objetivo não se encontra ali onde estamos passando.
Além disso, a sensação é de que enquanto estamos passando, entramos num
estado de suspensão, sem ser ninguém, nem nada. Simples transeuntes que
aparentemente não tem nada a fazer naquele lugar que só serve para passar.
Isso é um equívoco já que cada lugar pode abrigar inúmeras expe-
riências, instigando nossa sensibilidade, que tem sido perdida. Não sentimos,
vemos, cheiramos ou escutamos. Estamos imersos em atividades, ocupados
demais para sentir algo, em pensamento e preocupações, vivendo sempre no
futuro ou remoendo o passado, nos tornando ansiosos, deprimidos, quiçá
até mesmo melancólicos. Nós nos tornamos uma sociedade doente que não
vive, que não é, sempre produzindo, sempre estando.
Com reflexões desse contexto, passei a repensar minha maneira de
viver e uma mudança significativa que notei em meu dia a dia foi à consci-
ência espacial que ganhei e começou nas corridas que faço: ao invés de
tentar simplesmente realizar um percurso em um determinado tempo, co-
mecei a analisar as pessoas, suas relações, os animais, os objetos, as casas.
Tudo o que há e que me chame a atenção. Isso foi crescendo de tal maneira
que atualmente me sinto capaz de perceber inclusive as mudanças que ocor-
rem no espaço onde estou localizado. A empatia também cresceu,
melhorando não apenas a consciência espacial, mas também a relação
com as pessoas.
Pretendo falar mais sobre os efeitos sentidos em minha vida no
final do relato. Por hora, desejo me alongar sobre o que virá: fiz três visitas
com o grupo, sendo que a primeira delas, apesar de ser técnica, considero
especialmente importante. Foi nela que comecei a fazer as assimilações da
teoria, as aplicações práticas, e ter iniciado um processo de sensibilização
muito forte.
O Caminhar e a cura para os problemas da sociedade | 35
Tive inúmeras ideias para produzir em relação às caminhadas, mas
as que mais me cativaram foram três: construir um relato sobre as sensações
e experimentações vividas na ilha; apontar as diferenças existentes entre a
população existente lá e a da parte continental; e destacar problemas sociais
e dificuldades encaradas pela comunidade de Ilha de Maré.

Primeiro dia – 04 de maio

Nesse dia, uma equipe diminuta do grupo foi selecionada para rea-
lizar uma visita técnica, reconhecer o trajeto e os procedimentos que seriam
adotados no dia da viagem.
Nos encontramos no campus da UFBA, em Ondina, e não nos
demoramos muito: dividimos os lanches e entramos num carro. Não con-
versei muito com as colegas pois não as conhecia, enquanto elas
conversavam entre si sobre assuntos que considerei um tanto formais. Logo
peguei meu celular pensando num texto que deveria ler para a aula que teria
na noite daquele dia.
Ao longo do percurso a paisagem foi mudando. Quanto mais nos
afastávamos do centro, mais a sensação de desordem e falta de organização
aumentava. Os prédios organizados e a paisagem harmoniosa iam sendo
substituídas por favelas, pistas menos uniformizadas, vegetação e barrancos
ao redor. Já havia observado isso em Salvador como um vestígio da desi-
gualdade que existe. Então fiz a viagem dessa maneira: ignorando as colegas
dentro do carro, a paisagem do lado de fora e preocupado com o texto que
estava lendo no celular.
Assim que chegamos na Base Naval de Aratu, a mudança do am-
biente era sensível. Apesar de não ter sido suficiente para me fazer
estupefato, a nova paisagem havia me trazido para mais próximo do
aqui e do agora.
Ter contato com a areia, com a brisa suave vinda daquele céu tão
azul que trazia o cheiro da maresia e com a água ainda não havia sido sufici-
ente para me arrancar das preocupações que tenho comumente.
Com alguns procedimentos estabelecidos para o dia da primeira
visita oficial, tomamos um barco e nos direcionamos para Praia Grande em
Ilha de Maré. Comecei a lembrar das discussões que tivemos em sala. Uma
boa metáfora para essa experimentação é pensar naquela travessia como um
36 | Rodrigo Araújo C. de Oliveira
processo de sensibilização, que aumentava proporcionalmente ao
avanço do barco.
Se ao entrar no barco eu já estava mais conectado com a paisagem
ao meu redor, nos poucos minutos que se passaram após isso, meu nível de
absorção de mundo e de receptividade de experiências sensoriais já estavam
elevadíssimos. Eu me sentia mais leve e feliz, sem preocupações nem estres-
ses. O grupo, timidamente, já começava a conversar sobre trivialidades e até
mesmo ria.
Eu sentia o deslizar do barco sobre a água que criava um balanço
bastante agradável, quase como um ato de ninar, e ondinhas durante sua
passagem. Isso criava um efeito visual admirável com as ondulações rece-
bendo os raios de sol, fazendo a superfície do mar brilhar. O ar estava
úmido e salobro que, ao tocar a pele, lembrava uma espécie de afago que
envolvia todo o corpo, como um abraço caloroso. Olhando para o horizon-
te, encontrei o céu, que estava repleto de nuvens gigantescas e tão baixas
que faziam parecer que ele estava caindo.
O conjunto de todas essas coisas traziam uma sensação de imen-
sidão e completude, além de uma paz interior muito intensa, como se tudo
no mundo estivesse no lugar certo, do jeito que tem que ser. Ao olhar para
trás, percebi que Salvador se apequenava e que para frente, o engrandeci-
mento de Ilha de Maré era mais constante, me senti feliz. Ainda observando
a aproximação da ilha percebi que eu estava no meio de um processo de
transformação. Estava caminhando para o presente e para dentro
de mim mesmo.
Logo, aquela primeira travessia teve uma aura mística para mim,
com uma carga apelativa muito forte, especialmente por ser uma experiência
não tão desgastada. As sensações eram pouco exploradas e o aumento da
sensibilização me fez sentir a paisagem, que tinha uma magnificência e uma
beleza tão grande, que me remeteu diretamente ao meu interior, me fazendo
questionar sobre minha própria vida. Questões como “o que eu quero para
minha vida; estou vivendo ou sobrevivendo; sou feliz diariamente?” me
invadiram a mente. Via ao longe as casas dos moradores, pequenininhas,
coloridas e organizadas de seu modo peculiar. Pensei no quanto aqueles
moradores teriam sorte de viver ali.
Repentinamente me dei conta de que eu havia esquecido comple-
tamente de meu celular. Isso me fez lembrar de como as pessoas estão tão
O Caminhar e a cura para os problemas da sociedade | 37
acostumadas com esse tipo de aparelho, dificultando até mesmo a sociabili-
dade. Está cada vez mais difícil o relacionamento interpessoal, e ele é um
dos fatores. Esse esquecimento, acredito agora, me fez estar mais próximo
das pessoas que compunham o grupo, de modo que facilitou
nossa comunicação.
Enquanto atracávamos, uma nuvenzinha de chuva veio fazer nos-
sa recepção. Inicialmente achei ruim, mas logo percebi o quanto para aquele
trabalho de experimentação de sensações isso poderia ser bom. O tocar da
água da chuva na pele, sem convite. Havia esquecido como era a sensação
de aceitar tomar um banho de chuva. Fomos andando através do cais, e fui
observando o pontilhar da chuva caindo no mar enquanto sentia a água em
meu corpo, resistente a ela. Mais para frente ao sentir o cheiro de terra mo-
lhada, eu já estava encharcado e finalmente comecei a aceitar o toque
daqueles minialfinetes e a lama sob os pés. Eu definitivamente já não era
mais a mesma pessoa do início daquela manhã.
Fizemos uma curta caminhada até uma das escolas municipais da
ilha. A chuva logo parou. Durante o percurso, fui me atendo aos cheiros e
detalhes da ilha. O chão era quadriculado, sem asfalto; o barro e a lama
competiam para decidir quem seria maioria sobre a grama; caranguejos,
gatos, cachorros, galinhas, pássaros e cavalos passeavam tranquilamente ao
nosso redor e em todos os locais, acostumados com a presença humana.
Havia barcos parados, estáticos na areia da praia ou ancorados no
mar, flutuando com o ir e vir da maré e dos ventos. As árvores dançavam,
balançando suas copas e exibiam suas cores. Tudo estava tão desordenada-
mente ordenado, que tive a sensação de que se alguém tentasse arrumar
aquele lugar, a identidade se perderia.
Ao entrarmos na escola, as surpresas não cessaram, a começar pe-
lo próprio ambiente da escola: uma área ampla com poucas construções,
nitidamente pensado para poupar espaço. Ele era aproveitado de tal maneira
que permitia aos alunos se exercitarem naquela vasta grama bem cuidada. As
salas também não eram retangulares nem quadriculares, se organizavam em
colmeias. Os muros eram baixos e não gradeados, mesmo sem a aparente
ausência de uma fiscalização da ordem pública. A ideia de funcionamento e
respeito às convenções parecia dominar o lugar.
Nos reunimos com a direção da escola e professores para ajustar
elementos e expor as ideias quanto ao motivo de levar aqueles alunos para
38 | Rodrigo Araújo C. de Oliveira
caminhar conosco. O diálogo transcorreu de forma fluida devido à vontade
de contribuir de ambos os lados. Neste ínterim em que os parâmetros iam
sendo ajustados, o intervalo começou.
Decidi que queria me aproximar mais dos alunos, e então sai da
sala logo no começo do intervalo para poder observar seu modo de agir, em
busca de diferenças e similaridades. As crianças brincavam e interagiam
diretamente com o espaço, seus corpos em contato direto com a natureza ao
redor, correndo, jogando bola, conversando e divididas em grupinhos não
tão estáticos. A maioria parecia se falar e interagir com os diversos grupos.
Além disso, eram suficientemente desapegados de smartphones,
tablets e celulares. Isso fazia com que sua interação se desse de forma inten-
sa. Aquelas crianças jogando bola, descalças na grama, ou conversando entre
si, rindo e se divertindo umas com as outras, foi algo que percebi e não con-
sigo mais ver sem me encantar.
Contudo, algo não tão agradável logo saltou aos olhos. Em menos
de vinte minutos de intervalo, observei um tratamento hostil por alguns dos
alunos, independente do gênero. Passei a observar esse detalhe com mais
atenção e notei que esse tratamento enérgico e hostil era comum entre al-
guns deles. Além disso, vi três brigas se iniciando entre eles. Isso me fez
perguntar sobre a educação daquelas crianças e sobre os exemplos que elas
tinham dos mais velhos.
Sei que observar pessoas mais velhas faz parte do processo de e-
ducação de uma criança. Acredito que o homem é fruto do meio em que
vive. Diante disso, passei a observar o modo de agir dos mais velhos tam-
bém, para tentar justificar a ação daquelas crianças.
Observando os educadores da escola, notei que aparentemente
são pessoas bem instruídas. Ao menos, o conteúdo das lousas indicava isso.
Contudo, apenas isso não era suficiente para analisar, então decidi mudar o
foco para o modo com eles tratavam as crianças. Não havia nada de violento
ou exagerado no modo de falar, com equilíbrio e proporcionalidade. A única
coisa que me incomodou nesse aspecto foi o modo impositivo como eles se
dirigiam aos alunos.
Acredito que imperatividade não é uma qualidade que combina
com professores, logo, aquele papel de autoridade inquestionável observado
não é nada saudável. Ninguém gosta de ser mandado o tempo todo ou de
receber ordens, especialmente crianças, devido ao seu estágio de desenvol-
O Caminhar e a cura para os problemas da sociedade | 39
vimento cognitivo. Isso pode acabar interferindo no processo da formação
adulta de uma pessoa. Talvez, em conjunto com outros fatores, essa impera-
tividade possa contribuir para um temperamento hostil das crianças. Ainda
há outro fator: se elas não puderem expressar suas insatisfações, acabarão se
tornando ressentidas, podendo ter efeitos muito piores do que
temperamento agressivo.
Assim sendo, acredito que não basta que esteja escrito no quadro
a história da revolução industrial ou a formação dos tecidos celulares, mas
que a escola seja uma espécie de miniatura do mundo, de modo que elas
aprendam a interagir em sociedade. Ensinar a criança a se tornar uma cidadã
conhecedora e respeitadora das convenções sociais. Isso não é feito de for-
ma impositiva e sim negociável, com diálogos e convencimentos, num
processo de construção e modificação do espaço diário.
Ao fim do intervalo, nós nos direcionamos para uma sala onde te-
ríamos nosso primeiro contato verbal com os alunos: conheceríamos
aqueles que provavelmente fariam parte de nosso grupo de caminhada. A
sala era redonda, de modo que pude observar cada aluno facilmente. Eles
tinham feições que mostravam uma mistura de ansiedade, curiosidade e
vergonha. Alguns deles, descaso.
Ao fim de nossas apresentações, Karla discorreu sobre a finalidade
da caminhada. Infelizmente para nós, muitos alunos foram desistindo de
estar naquele grupo de modo que ao fim de sua fala apenas uns treze ainda
estavam dispostos. O bom foi que quem continuou estava aparentemente
bem animado com a proposta, e assim a experiência seria mais realista e
vivenciada como propúnhamos já que não se sentiam obrigados.
Com tudo resolvido, caminhamos de volta ao barco. Comi meu
lanche enquanto andava com certa dificuldade. Voltamos conversando, de
modo que chegava até mesmo a sentir que estava entre amigos, e não sim-
plesmente colegas. Percebi que ainda estava com a sensibilidade aumentada,
mas não mais para a natureza e para a paisagem, e sim para as pessoas. En-
tão passei a observar aspectos da vivência e conforto daquele local.
Notei que realmente não havia policiamento na região. Havia con-
versado com um professor na escola que afirmou a existência de milícias.
Não pude notar isso durante a caminhada, mas é se desconfiar a existência
delas já que as pessoas pareciam não se preocupar muito com crimes. Passe-
ávamos exibindo câmeras, celulares e mochilas, mas não fomos
40 | Rodrigo Araújo C. de Oliveira
importunados para além dos olhares curiosos que eram lançados em nossa
direção.
Além disso, os adultos aparentemente se tratavam com respeito,
de modo que suspeitei que a ação das crianças pudesse ser oriunda da ener-
gia que acompanha a idade. Finalmente havíamos chegado ao barco e logo
rumamos de volta a Salvador.
Nessa viagem tive a oportunidade de conversar com um senhor
que se apresentou como Colônia. Ele era um “filho da ilha”, termo utilizado
para denominar pessoas que nasceram e cresceram nela. Colônia me contava
algumas características de lá, como a alimentação das pessoas que, devido à
dificuldade de travessia de alimentos, muitos sobreviviam da agricultura de
subsistência. Ao que parecia, plantar em roças, pescar no mar e ir em busca
de caça não era incomum. Enquanto ele falava eu tentava lembrar da quan-
tidade de minimercados que havia visto, e não lembro de ter mais de três.
Colônia também me contou sobre um abandono que a ilha tem
por parte da prefeitura que não presta assistência, especialmente, no tocante
a segurança e saúde. Além do mais, ela tinha recebido energia elétrica há
apenas 10 anos: 2008, se ele estiver correto. Apesar disso tudo, era mais
confortável morar lá: não havia um ritmo tão acelerado quanto no continen-
te, sendo melhor para educar suas crianças e possuindo uma qualidade de
vida melhor.
Descobri durante a conversa, que Colônia era 1° Sargento da re-
serva da Polícia Militar, e que assim como ele muitos moradores de lá
vinham para o continente trabalhar e voltavam para a Ilha todos os dias.
Começamos a discutir sobre história, política e segurança pública em um
determinado momento, e assim fomos até chegarmos no cais. Estávamos de
volta à cidade.

Segundo dia – 18 de maio

Finalmente havia chegado o dia da segunda visita, ou melhor: da


visita propriamente dita com todo o grupo. Éramos dezenove pessoas no
campus, aguardando a chegada do restante do grupo.
Aproveitei esse tempo para ir comer um café da manhã. Atraves-
sei parte do campus a pé, tentando conduzir o processo de sensibilização.
Tentei observar as copas de árvores e sentir os raios de sol que passavam
O Caminhar e a cura para os problemas da sociedade | 41
por entre as folhas; ou o vento frio que sopra pela manhã e a ausência das
pessoas. Notei uma grande diferença entre o turno da tarde e noite com o da
manhã, que está muito mais calmo, silencioso e tranquilo. Imaginei que ele
fosse se tornando mais agitado ao longo do dia, à medida que as pessoas vão
despertando. Tentei saborear meu café enquanto voltava para perto do gru-
po, que agora terminava de se organizar.
Karla chegou com os lanches e umas sacolinhas. Nossa saída atra-
sou um pouco devido à divisão desses materiais, mas nada muito alongado.
Eu queria ajudar, mas ela estava abafada. Assim sendo, sugeri que centrali-
zássemos os itens e nos afastássemos para que ela pudesse pensar com
clareza. Suspeitei de que meus colegas estiveram alheios a esses problemas
de início das atividades. Entretanto, isso não me surpreende: o comum é
estarmos imersos em nossos problemas e devaneios, sem muita empatia e
consciência de grupo. Enquanto escrevo, tendo certeza que minha sensibili-
zação forçada com o ambiente falhou, me pergunto se eu não estava mais
sensível às pessoas dessa vez.
Karla logo terminou a distribuição dos itens: recebemos uma gar-
rafinha de água, uma sacolinha, um hamburgão, um pacote de biscoitos,
uma barra de cereal, uma banana, uma maçã e uma caixinha de suco. Com
tudo em condições, o grupo rumou para o micro-ônibus. Vê-los andando
em fila, me fez sentir vontade de começar a tirar fotos. Foi assim que dei
início ao meu trabalho de fotografo sem experiência, habilidades e até mes-
mo equipamentos apropriados!
A viagem de ida do grupo todo não foi muito diferente do reduzi-
do, mas dessa vez as pessoas estavam aproximadas por afinidade, de modo
que algumas duplas ou trios conversavam entre si, sem fazer muito barulho
ou algazarra. Inclusive eu, para evitar preocupações, fui conversando com
uma amiga que fiz na primeira ida: queria apenas sentir ao máximo tudo o
que a viagem pudesse proporcionar.
Quando chegamos a Base Naval e descemos do micro-ônibus, eu
de alguma forma me afastei do grupo, e ao olhar para o restante à minha
frente, percebi que nossa presença era discrepante ali. Não havia harmonia
com a paisagem, sendo facilmente observável que não éramos dali, com
nossas câmeras, mochilas, tênis e modo de andar e olhar ao redor.
Via também as pessoas ao redor nos olhando com curiosidade. Vi
um dos alunos adultos da escola trabalhando como marítimo, o que me
42 | Rodrigo Araújo C. de Oliveira
deixou triste, pois sabia que tinha aula nesse dia. O grupo seguiu para em-
barque tirando inúmeras fotos da paisagem.
Era engraçado observa-los tirando todas aquelas fotos. Me per-
guntava como estaria o processo de sensibilização deles. Se estavam
realmente sentindo o ambiente e a paisagem, se encantando como eu havia
me encantado ou se estavam mais preocupados com a fotografia perfeita. A
essa altura, eu já havia desistido de tentar me sensibilizar: estava preocupado
com a segurança do grupo e já não me encantava mais da mesma maneira,
talvez pelo fato de já ser a segunda vez que fazia a mesma travessia.
Notei que o semblante da maioria estava diferente agora. Pareciam
mais relaxados e entusiasmados do que no início da manhã, então acredito
que tiveram uma experiência parecida com a minha da primeira viagem.
Contudo, eu não estava conseguindo realmente me conectar com a paisa-
gem. Imaginava tanta coisa que podia acontecer e dar errado, já que afinal de
contas, 19 pessoas significavam que existiam 19 possibilidades de acidentes.
Tentei me desligar de minhas preocupações e observar meus cole-
gas dentro do barco. Havia apenas uma delas falando com a outra, que a
ouvia com atenção, enquanto o restante estava em silêncio, com feições
observadoras e calmas. Karla começou a organizar alguns materiais com
outros colegas e eu decidi ajudar para me desligar de meus pensamentos.
Logo chegamos na Ilha.
A idéia, era chegarmos na escola e levarmos os alunos conosco
para a caminhada no horário marcado. Contudo, já estávamos atrasados e
nos atrasamos ainda mais pois, no trajeto muitos colegas paravam para tirar
fotos. Assim, eu fui à retaguarda do grupo, me certificando de que não havia
ficado ninguém para trás. Hoje, enquanto escrevo, acredito que não pude
me conectar com o ambiente por causa de minha preocupação latente. Tal-
vez devido à atividade que iríamos executar naquele dia: trilha no meio da
mata, com muita lama e terreno escorregadio.
Assim que chegamos vi os alunos no intervalo, com mais brinca-
deiras que exigiam esforço físico. Estava ansioso para ver a interação entre o
pessoal daquela escola com o do nosso grupo. Nos reunimos com a direto-
ria para separar os grupos e decidir quais trilhas iríamos tomar, porém,
percebemos que nada havia sido decidido ainda por parte da escola. Depois
de muito debate infrutífero, Karla decidiu que nos dividiríamos em dois
grupos: um iria por dentro da mata fechada, com morros e ladeiras para
O Caminhar e a cura para os problemas da sociedade | 43
subir e descer, com as trilhas cobertas de lama, e o outro por dentro tam-
bém, mas por uma trilha menos acidentada.
Comecei a interação com o pessoal da escola ainda dentro dela e
percebi que eles também estavam ansiosos para interagir conosco. Havia um
senso de competição entre eles que avaliei com humor. Ficavam se compa-
rando com nosso grupo a todo o tempo, em relação à resistência física e a
facilidade que teriam com as trilhas na mata. Lembro que tentando interagir
com eles, sugeri de jogarmos bola e um deles me provocou, dizendo que
para jogar lá, a pessoa precisaria de dois pares de pulmão. Algumas conver-
sas aconteceram, mas todas com o mesmo teor provocador, quebrando o
gelo e criando uma certa harmonia no novo grupo.
Saímos da escola já divididos em grupos. Num ato de preocupa-
ção, antes de entrarmos na trilha atribui um número para cada um presente,
de modo que todos deveriam saber onde estaria a pessoa de número anteri-
or e a posterior. Isso facilitaria a própria contagem do pessoal e evitaria que
alguém se perdesse ou passasse alguma dificuldade sozinha. Com todos os
23 presentes enumerados, entramos na trilha irregular.
Notei uma grande facilidade dos alunos em andar se desviando da
lama, enquanto eu e meus colegas já atolávamos no começo. Logo na pri-
meira atolada, decidi fazer a trilha descalço. Tirar a sandália foi ótimo: tive
mais facilidade para andar.
Fiquei para trás mais uma vez, me certificando de que todos esta-
riam bem. Fui acompanhado durante parte do trajeto por um professor de
geografia da escola que ia explicando e mostrando curiosidades. Uma aluna
me deu uma concha que encontrou para que guardasse como recordação. A
partir daí, notei uma animação e um entusiasmo nas pessoas da escola em
nos mostrar e ensinar coisas da ilha: fosse sobre plantas como samambaias e
urtigas, sobre animais, pedras ou onde pisar e segurar. Contudo, em todo
momento havia uma espécie de competição e comparação. Ou seja, ao
mesmo tempo, em que estávamos analisando-as, sofríamos análises também.
O terreno começou a ficar mais difícil, de modo que íamos fican-
do cada vez mais para trás. Só nos uníamos quando o pessoal da frente se
atrasava em algum terreno mais difícil. A primeira delas foi uma descida
escorregadia, cheia de lama. As alunas da escola ao mesmo tempo que nos
ajudavam, se divertiam com nossas tentativas. Enquanto isso, meus colegas
passavam por situações difíceis, engraçadas e constrangedoras ao tentar não
44 | Rodrigo Araújo C. de Oliveira
se sujar. No fim das contas o resultado era cômico: não apenas se sujavam,
mas faziam isso mais do que o normal. Na tentativa de não se sujar, muitos
acabavam caindo e se sujando ainda mais do que apenas o tênis ou perna.
Íamos todos conversando, rindo, observando o ambiente e fazen-
do gozações sobre as dificuldades do terreno que, afinal de contas, não eram
tão difíceis assim. Assim, a caminhada foi acontecendo, fazendo com que
nos uníssemos e estivéssemos mais próximos uns dos outros. Fui relaxando,
percebendo que a trilha não apresentava tantos perigos, e que o pessoal
também saberia se cuidar em caso de algum problema, então fui sentindo
mais alívio e passei a estar mais presente no ambiente. Conversei com as
pessoas que estiveram próximas a mim, me diverti e me relacionei com o
ambiente no presente.
O interessante é que íamos compartilhando experiências, nos aju-
dando uns aos outros para passar pela trilha sem grandes dificuldades.
Alguém sugeria algo sobre alguma adversidade e nossa passagem pela mata
acabou sendo confortável. Passávamos lama na pele para evitar os mosqui-
tos; dávamos o braço para ajudar aqueles que tinham dificuldade em
determinada trilha; procurávamos caminhos alternativos para um que fosse
intransponível para outro.
Ou seja, apesar da aparente apatia que reina sobre o meio social, a
vontade de ajudar e a comoção e flui a depender da necessidade. Estar em
um local que propiciou dificuldades e exigiu que estivéssemos com a atenção
completamente voltada para o presente nos fez afixarmo-nos no agora. São
relações sociais assim, empáticas, na qual considero que se perderam no
cotidiano.
Ao longo da trilha fui observando a paisagem: casas de cupins,
maribondos, formigas, plantações, espécies de plantas, lama, borboletas,
limo, cogumelos, frutas. Era mais que apenas o “mato” que costumamos
falar. Existe riqueza de variedade e cada elemento tem sua função. Lembrei
das questões de equilibro ambiental e fiquei feliz por aquela região não ter
uma presença humana muito marcante.
À medida que íamos nos aproximando das casas, vestígios da po-
pulação iam surgindo lixos como: plásticos, papéis, sacos, embalagens,
carcaças de televisores, pneus e outros, iam surgindo nos cantos da trilha.
Foi dessa forma até chegarmos na comunidade.
O Caminhar e a cura para os problemas da sociedade | 45
Mais uma vez estávamos atrasados e novamente ficamos vislum-
brados com a beleza do lugar. A mata deu lugar a praias lindíssimas, com
canoinhas atracadas e um vasto mar, azul e calmo ao longo de toda a exten-
são de nossa vista. Íamos andando sentindo o chão, a areia e o vento, tendo
uma belíssima paisagem para deleitar os olhos. Apesar de ser 12h, o sol esta-
va ameno e tudo contribuía para uma sensação de conforto com o ambiente,
que era ainda mais acentuado por sairmos daquela trilha, onde o os raios não
incidiam diretamente sobre nós.
A sensação que tive foi de liberdade, e tudo estava claro. Um dos
alunos da escola nos ofereceu um doce de banana, feito em uma localidade
da ilha, que era bem diferente do que eu estava acostumado a comer. Era
feito em barra, viçoso e apesar de não ter sabor caramelizado, era doce,
acredito que tinha cravo nele. Muito saboroso!
Voltamos ao barco e logo iniciamos a volta para o porto próximo
a escola. Alguns colegas foram levar os alunos de volta à escola, outros fica-
ram no barco e eu, com mais outros, fomos tomar um banho de mar.
Andamos bastante para conseguir chegar num local onde mergulhássemos o
corpo por inteiro. O chão era lamacento e tinha coloração escura, mas dava
uma sensação muito boa de se pisar. Ficamos lá, imersos, aproveitando a
água salgada e a lama, boiando e olhamos para o céu enquanto éramos nina-
dos pela maré mansa.
Nadamos de volta para o barco e, assim que o restante retornou,
iniciou-se a viagem de retorno. Voltei em silêncio, com a mente vazia. Sem
pensar em nada relevante, apenas em coisas aleatórias e observando a paisa-
gem, descansando. Meus colegas pareciam estar no mesmo estado: alguns
vieram dormindo, outros tão calados quanto eu, e poucos conversavam.
Chegamos a Salvador e cada um seguiu seu caminho de volta para suas vi-
das.

Terceiro dia – 08 de junho

O último dia de caminhada começou como de costume, no en-


contro no campus para ir em direção à ilha. Como das outras vezes, as
conversas aconteciam entre poucas pessoas, tímidas, mas ao longo do dia
foram se tornando mais animadas.
Diferentemente da viagem anterior, eu estava muito preocupado
com a aula que teria à noite, quando teria uma prova. Desse modo, quando
46 | Rodrigo Araújo C. de Oliveira
chegamos no barco fiquei na parte inferior, sozinho. Lá havia um cheiro
forte que demorei de me acostumar, além do barulho do motor que era
ensurdecedor, de modo que nenhuma conversa ou ruído da parte superior
me incomodava.
Dessa maneira fui a viagem de ida inteira, estudando sozinho para
a prova. Uma colega desceu para tirar algumas fotos e notei como é curioso
o fato de nossa atenção ser facilmente desviada quando outra pessoa está
próxima. Ela não demorou, mas minha atenção já havia sido completamente
minada. Assim fui no restante da travessia, tentando ler o texto, mas a mente
vagava pelas diversas situações da vida.
Quando menos esperava já havíamos chegado, então subi rapida-
mente e logo rumamos em direção à escola. Tive a sensação de que
chegamos muito mais rápido que das outra vezes. Dessa vez eu não obser-
vava as pessoas nem as coisas, apesar de à retaguarda. Fui apressando as
pessoas para que chegássemos o quanto antes.
Na escola havia uma multidão reunida protestando pela omissão
da prefeitura em garantir a segurança dos alunos em relação ao avanço do
mar e às travessias que são feitas entre as diversas localidades de Ilha de
Maré, e com o continente também. Ao que pareceu, existia uma barreira de
contenção que foi engolida pelo mar, e atualmente, ele se encontra a menos
de três metros de distância do muro em frente ao colégio.
A população havia se reunido e trancado a escola para impedir que
as aulas acontecessem como protesto. A Polícia Militar foi acionada e rea-
briu a escola, aquém dos protestos da população. Considero válido o
protesto daquelas pessoas, as condições de travessia realmente não são segu-
ras; não existe um cais adequado para que as embarcações atraquem; no cais
existente não há barreiras de contenção; o mar avança, oferecendo risco para
quem ousar sair de casa; o chão é de barro em muitos locais que, quando
chove, se torna lamacento e escorregadio. Enfim, problemas não faltaram
para que aquela multidão se reunisse.
Enquanto entrávamos na escola fui observando as feições de in-
conformidade daquelas pessoas e lembrei de tudo o que eu havia vivenciado.
A ilha tão bonita e acolhedora, com o mar calmo e em alguns pontos até
mesmo cristalino, com tanta coisa harmonizada e com grande espaço para se
viver, também tinha seus problemas.
O Caminhar e a cura para os problemas da sociedade | 47
Assim sendo, decidi deixar o restante do grupo resolvendo o que
faltava para iniciar a caminhada e sai para entender de fato o que as pessoas
estavam fazendo ali reunidas. Observei uma repórter falando para a câmera
as informações que tinha recolhido durante a manhã. Ela falava sobre a
população ser abandonada pela prefeitura de Salvador, que os representantes
só apareciam na ilha em cada quatro anos, quando aconteciam as eleições.
Relatava, também, sobre a falta de meios de locomoção na ilha, que acaba-
vam acontecendo a pé, por bicicletas, ou animais. Poucas motos se viam lá,
e os barcos não oferecem segurança suficiente para fazer desse um meio
comum, sobre falta de policiamento e saúde.
Ignorei o restante para tentar ouvir o que as pessoas falavam entre
si. Não tive muito sucesso nesse momento, pois o clima já era de fim da
mobilização, quando as pessoas já estão voltando para suas casas. Então
decidi abordar algumas delas e fazer perguntas.
Parei um rapaz para lhe perguntar sobre o que havia acontecido
para que as pessoas tivessem se reunido daquela forma naquele dia. Ele se
apresentou como “Branco” e me informou que essa mobilização já estava
acontecendo a cerca de uma semana. Resumidamente, o problema era o
descaso que a população da ilha sofria por parte da prefeitura. Esse rapaz
conhecia alguns boatos que existem lá e me contou. Reproduzirei aqui não
apenas os que ele me contou, mas o de todas as pessoas que entrevistei, para
ilustrar algumas razões que fizeram aquela população se revoltar, mas afirmo
que não conheço a veracidade do assunto.
Branco me disse que, já há algum tempo, a Petrobrás já havia doa-
do um montante de R$ 4 mil para a construção de uma contenção em toda a
extensão de Praia Grande, mas que esse dinheiro nunca havia sido desfruta-
do pelos moradores. Revelou, também, que dentro da escola onde estava
acontecendo os protestos, trabalhava muita gente desqualificada, uma vez
que lá o sistema de indicação valia mais do que o currículo. E ainda, que a
ilha estava menos segura, pois em algum momento, num passado recente,
uma grande quantidade de drogas ilícitas chegaram nela, fazendo com que
os moradores precisassem fazer sua própria segurança. Contou que, assim
como ele, muitos filhos da ilha se sentiam incomodados com a grande quan-
tidade de pessoas que iam lá apenas para turismo, pois assim era difícil saber
onde e como agir, já que a condição de normalidade era que todos se conhe-
cessem, independente da localidade. Disse também que não havia médicos
na ilha e que muita gente ao adoecer, precisava se tratar com curandeiros.
48 | Rodrigo Araújo C. de Oliveira
Além disso, a alimentação era precária, fazendo com que muitos precisassem
caçar, pescar ou plantar. Muitos usavam também fossas negras como forma
principal de descarte sanitário, comprometendo a qualidade do solo e ofere-
cendo inúmeros riscos à saúde.
Queria ter conversado mais com ele, mas não tive oportunidade já
que meu tempo estava acabando e eu devia voltar para perto do grupo. Fi-
quei pensando muito nas coisas que me contou e fiquei entristecido, já que
aquele lugar parecia, nas primeiras visitas, perfeito. Foi nesse momento,
enquanto retornava para o interior da escola, que decidi mudar o foco de
minha caminhada naquela última visita. Decidi que recolheria histórias e
narrativas das pessoas daquele lugar ao longo da caminhada.
Quando finalmente cheguei perto do grupo, já estavam dividindo
novamente os subgrupos. Desta vez faríamos diferente: andaríamos num
único grande grupo e este seria dividido em subgrupos, recolhendo histórias
e observando aspectos que interessariam ao tema do subgrupo.
Assim, mais uma vez, meu grupo ficou para trás, mas desta vez,
acidentalmente. Fomos parando para conversar com diversas pessoas ao
longo do caminho. Muitas delas não se sentiam confortáveis ou mostravam
desinteresse em falar. Assim, seguimos andando em nosso próprio ritmo,
observando as pessoas e imaginando como e com quais perguntas
as abordaríamos.
Foi curioso perceber que a rádio que escutavam lá não era a de
Salvador, mas a de Candeias, que é uma cidade vizinha. Isso é de uma im-
portância muito grande, uma vez que a rádio é um dos meios de se fazer
uma população se sentir parte de um determinado território. Quando per-
guntei para uma senhora que estava sentada à porta, abrindo alguns
mariscos, disse que não se importava com que rádio ouviam, nem que se
sentiam parte de Salvador nem de Candeias. Deduzi que eles vivem numa
espécie de ostracismo político, sem ser atendidos por nenhuma das prefeitu-
ras. O que considerei muito injusto, já que o voto daquelas pessoas é
requerido quando tem eleição.
Quando paramos para entrevistar outro senhor que estava sentado
com mais dois jovens percebi que a comunicação não seria tão fácil assim.
Tentamos, sem sucesso, estabelecer um diálogo e assimilar algo que pudesse
servir para o projeto, mas foi em vão. Enquanto fazíamos isso, o restante do
subgrupo seguiu em frente, e ficamos apenas três. Cada um possuía um foco
O Caminhar e a cura para os problemas da sociedade | 49
diferente dentro das narrativas. O bom foi que fizemos companhia um ao
outro. Concordamos que apesar daquelas pessoas não se mostrarem insatis-
feitas com nossa presença, também não se sentiam animadas, de modo que
não havia interesse em estabelecer algum diálogo.
Passamos por uma dupla de mulheres que se mostraram animadas
em responder algumas perguntas. Na verdade, essa animação vinha da pró-
pria insatisfação de ser obrigadas a caminhar uma grande distância para
conseguir o remédio que precisavam. Foi então que começou a enxurrada de
reclamações que tinham para fazer da ilha.
Falaram sobre a precariedade da saúde e da falta de médicos na i-
lha, afirmando que todos os problemas relacionados deviam ser tratados em
Salvador, e as emergências eram tratadas por pessoas que entendiam de chás
e ervas; sobre a precariedade da mobilidade, já que qualquer atividade deve-
ria ser feita a pé ou barco, mas que quando chovia era difícil fazer qualquer
uma das duas; reclamaram sobre a ausência de segurança, que a noite tam-
bém se sentiam menos confortáveis em sair de casa.
Um parente delas chegou e participou da entrevista. O curioso foi
que ele já chegou falando que tinha muita coisa para reclamar, sendo que
não havia ouvido a conversa anterior e nem mesmo tínhamos comentado de
forma alguma sobre aspectos negativos da ilha. Nossas perguntas buscavam
aspectos positivos e negativos, mas sempre descambavam para os problemas
existentes lá.
Ele começou a falar sobre as mudanças que a ilha sofreu nos últi-
mos anos. Afirmou sobre a existência de drogas e pessoas estranhas à ilha;
sobre a dificuldade em conseguir alimentação, e que por muitas vezes sentia
medo de consumir alimentos devido à falta de saneamento e tratamento de
esgoto; falou sobre a falta de representação do governo; manifestou que a
infraestrutura da ilha deixa muito a desejar; expressou ainda sobre uma anti-
ga escola que foi abandonada e que agora era um “elefante branco”, sem
nenhuma função, sendo que poderia se tornar, por exemplo, um centro
cultural ou posto de atendimento médico.
As reclamações aumentaram quando a dupla de mulheres decidiu
se juntar ao rapaz, no momento que ele falou sobre o sentimento de aban-
dono por Salvador, quando, a exemplo do período de carnaval, que é
prometido para toda a cidade, a ilha não tem uma atração sequer. Revelaram
sobre preços de alimentos inflacionados, forçando as pessoas a terem um
50 | Rodrigo Araújo C. de Oliveira
cardápio predominantemente oriundo da pesca, o que também apresentava
um perigo. Narraram ainda sobre despejos de dejetos no mar pelas grandes
empresas no polo petroquímico e sobre a escalada ascendente do
turismo na região.
Quando lhes perguntei sobre aspectos positivos, lembraram basi-
camente de um: é um lugar tranquilo e com paz. Era um bom lugar para
viver devido a este fato, mas quando perguntei por outro não souberam
responder. Assim, nos despedimos e seguimos andando.
Notamos que o horário estava muito avançado e que havíamos fi-
cado muito para trás, de modo que decidimos não fazer muito mais
perguntas e tentaríamos acelerar mais a passada. Buscamos conversar com
outro senhor de idade avançada para tentar descobrir como era a ilha num
passado mais distante, mas ele só soube afirmar que era muito feliz em viver
lá e não queria mudar nunca. Parecia genuinamente satisfeito com
todas as coisas.
Quando uma colega parou parar fotografar um gato, alguns dos
moradores viram e foram muito simpáticos, nos chamaram e fizeram ques-
tão de mostrar um que possuíam. Ele era lindo: cinza e preto, muito peludo
e tão grande que parecia uma almofada. Fugiu de nós rapidamente. Observei
que estavam fazendo objetos de palha com grande agilidade. Ficamos con-
versando um pouco com aqueles moradores que também pareciam muito
felizes em morar na ilha, sem reclamações. Contaram uma história não mui-
to comum, dando a entender que o lugar era seguro para eles: um deles
tinha a mania de beber durante a noite e correr pelado, sem roupas, pela
comunidade na madrugada. Ficaríamos conversando por mais tempo, mas
tínhamos que chegar no ponto de encontro com o restante do grupo:
a praia das Neves.
Esse lugar prometia uma das paisagens mais belas de toda a ilha.
É, atualmente, o destino turístico mais procurado. Decidimos não entrevis-
tar mais ninguém para podermos chegar no ponto combinado pelo menos
para não atrasar a saída do barco. Não considero suficientes as histórias que
recolhi, mas não tínhamos mais tempo, então, seguimos andando.
Passamos por locais de difícil acesso, e outros que só foram possí-
veis atravessar devido à maré baixa. Havia locais onde o lixo era despejado
para ser recolhido à barco, especificamente por canoas. Notei que haviam
O Caminhar e a cura para os problemas da sociedade | 51
pessoas indo e voltando, o que me fez supor que aquele caminho era roti-
neiro para a maioria delas.
No caminho, um cachorro da rua começou a nos seguir e tenta-
mos dar um nome a ele. Sugeri “sarnento”, mas os outros dois não gostaram
da ideia. Assim, fomos andando com aquele cachorro nos seguindo e fomos
conversando, rindo e jogando conversa fora. O sol a pino nos fez sentir
vontade de tirar a blusa. A rua estava vazia e não faria mal a ninguém. En-
tão, assim seguimos: dois de nós sem blusa, um completamente vestido,
jogando conversa fora.
Um homem a cavalo nos ultrapassou e manteve uma certa proxi-
midade. Sugeriu que guardássemos a câmera pois, podíamos ser assaltados.
Agradecemos a sugestão e a guardamos. De algum modo, me senti satisfeito
dele continuar mantendo proximidade. Descemos uma ladeira e havíamos
chegado numa praia. Logo, notei a presença de parte do grupo, o que nos
deixou mais seguro e menos preocupados com o horário. Estávamos ani-
mados e deixamos nossas coisas na areia, e corremos para a água. Quando
finalmente estávamos imersos, o rapaz do cavalo sinalizou para nós. Quan-
do sai da água ele recomendou que não deixássemos nossas coisas ali, sem
ninguém por perto. Enquanto conversava com ele, os outros dois que esta-
vam na água se aproximaram de nós e o clima já não mais permitia diversão.
Decidimos continuar o caminho e chegar à Neves, e seguimos o senhor.
A paisagem mudou de modo muito perceptível. O ambiente era
lindo. Havia árvores com as raízes submersas, a água numa coloração esver-
deada e as casas arrumadinhas e bem construídas. Tudo muito diferente dos
locais por onde passamos andando. Encontramos o restante do grupo e
fomos andando mais afastados da mesma forma. Havíamos nos relacionado
de uma forma que, para mim, era mais satisfatório estar entre eles dois do
que com todo o grupo. Assim, seguimos o pequeno pedaço que faltava para
chegar em Neves.
Lembro de ter feito a seguinte pergunta: “Já pensaram se aqui for
mais bonito que Neves? Ficarei muito insatisfeito se chegar lá e perceber
que troquei a beleza daqui por lá”. E isso aconteceu.
Ao chegarmos em Neves, percebi que considerei muito mais boni-
to o caminho que o destino propriamente dito. Lá era bonito, isso é
inegável, mas tinha colocado muita expectativa sobre o lugar, assim como
meus colegas haviam sugerido quando fiz aquele comentário. De qualquer
52 | Rodrigo Araújo C. de Oliveira
forma, aproveitei a praia e mergulhei com todos. Tiramos algumas fotos,
boiamos. Uma colega passou areia do mar no rosto, para diversão de todos.
Ficamos aproveitando a paisagem, o mar, a presença um do outro. Dei-me
conta de que mais uma vez havia esquecido a aula da noite e, consequente-
mente, a prova.
Então, depois de algum tempo voltamos para o barco. Todos pa-
reciam um pouco tristes com isso, ou talvez fosse apenas eu, entristecido,
fazendo uma leitura errônea de meus colegas. Havia me afastado de meu
subgrupo e fui conversando com outra colega sobre a prova.
Ao chegarmos no barco as pessoas começaram a cantar inúmeras
músicas e conversavam alto, interagindo entre elas, diferentemente de todas
as outras vezes. Achei aquilo muito divertido, porém mais uma vez fui para
a parte inferior e voltei a estudar para a prova. Minha viagem
havia terminado.
Hoje, enquanto escrevo, percebo que passei por um processo. As
andadas me fizeram muito mais do que apenas um bem físico, como imagi-
nei que iam fazer. Aliás, se fosse esse o objetivo, eu deveria ter continuado
com minhas corridas, ou fazendo longas caminhadas.
Elas tiveram uma relevância muito grande. Pude perceber como a
caminhada pode ter diversos objetivos e possibilidades, e como nos permite
um contato mais próximo com as pessoas. Isso, além da sensibilização a que
fui submetido, nunca experimentada dessa forma antes.
O melhor de tudo foi ser retirado de um estado de pressão latente
e contínua para vivenciar uma experiência sensorial que não existe no cotidi-
ano. Mergulhar num local onde é permitido viver e ter sensações que
esquecemos. Era tudo o que precisava dentro dessa dinâmica da vida citadi-
na que conhecemos. Considero que isso também melhoraria as condições e
a qualidade das relações sociais que conhecemos.
Enfim, percebo agora que caminhar não era o que bastaria para
mim. Isso se faz comumente, de várias formas: como meio de mobilidade,
de protesto, de exercício físico, romântico e outras coisas mais. Contudo,
uma caminhada como meio de me afixar de volta no presente, me atentando
a detalhes e criando mais empatia me fez sentir mais vivo e feliz. Acredito
que essas atividades podem ajudar toda uma massa neurótica ou ansiosa a
resolver seus problemas, ou ao menos mostrar o caminho para se caminhar.
O Caminhar e a cura para os problemas da sociedade | 53
Concluo então, com base em minha experiência, que para a socie-
dade neurótica e melancólica, sempre triste e apressada, essas atividades que
propõe o retorno à natureza são essenciais. Devemos nos preocupar mais
com os pares e agir com mais empatia, além de minimizar a quantidade de
estresse e preocupações que assolam a mente de um cidadão em seu cotidia-
no. Observar os detalhes, se permitir as sensações, muitas vezes esquecidas,
que o espaço propõe e se engajar no cuidado com o ambiente e com o pró-
ximo. Esse é o resultado da arte de caminhar.
Como Caminhadas Solitárias
Constroem uma Narrativa de Si
Daniel Maurício de Aragão

Caminhar para mim sempre teve a ver com a solidão. A bem vin-
da solidão. Aquela em que nos distanciamos do dia-a-dia para - com o corpo
em movimento - pensarmos livremente sobre a vida. Cada caminhada pode-
ria ser uma experiência única, mas não é exatamente assim que ocorre.
Quando o sujeito que caminha é o mesmo, ainda que em fase diferente de
sua vida, novas caminhadas remetem à subjetividade presente nas anteriores.
Imagine uma vida contada só a partir dos pensamentos solitários
de um sujeito em suas caminhadas. Ainda que o cenário seja diferente ou
tenha mudado, ainda que os desejos e as angústias sejam de outro momento
existencial, há um caráter de continuidade entre as caminhadas que falam do
mesmo sujeito. São caminhadas que se comunicam entre si. Cada nova ca-
minhada traz marcas subjetivas de caminhadas anteriores.
Ao participar de um dia de caminhada na Ilha de Maré como parte
do projeto A Arte de Caminhar, distanciei-me um pouco do grupo em al-
guns momentos. Encontrei-me com o mesmo Daniel que aos 20 anos
pegava um ônibus para caminhar quilômetros da praia de Arembepe sozi-
nho e ao sol tentando libertar-se e processar na cabeça sentimentos
confusos, o mesmo que anos depois caminhava de noite na praia da
56 | Daniel Maurício de Aragão
Armação, em Florianópolis, o mesmo que já andou solitário por tantos luga-
res, caminhando e processando os mistérios e as ansiedades de uma vida.
Nessas caminhadas, as mesmas canções vinham à cabeça e eram
cantaroladas baixinho: Trem das Cores e Tigresa, de Caetano, Sangue Lati-
no, dos Secos e Molhados, Luisa e Lígia, de Tom Jobim, Metamorfose
Ambulante, de Raulzito, e tantas outras. Essas músicas estabeleceram uma
conexão consciente entre tantas caminhadas. Era quase como se fossem a
chave para engatilhar minha subjetividade, o password para os downloads
subjetivos. O corpo em movimento, um cenário estimulante, as canções e eu
em uma eterna busca de um entendimento melhor de para onde ir, o que me
permitir, de que desistir, com o que sonhar.
Caminhar não é o mesmo que ficar parado pensando no sofá ou
na cama. Não é o mesmo que parar e contemplar a natureza, as pessoas, o
nascer ou o pôr do sol. Há certos pensamentos que precisam de movimen-
to. É próximo da experiência de viajar de ônibus sozinho contemplando as
paisagens. É próximo dos pensamentos processados ao nadar na piscina ou
no mar. Caminhar permite juntar a contemplação e o movimento, estimu-
lando a reflexão de um sujeito que se move com o mundo.
Cada caminhada solitária acrescentou um pedaço da narrativa que
eu construo sobre a minha vida. Na cabeça, o real e o irreal se misturavam,
possibilidades de ser quem eu era, não era, ou talvez fosse. Ao final das ca-
minhadas, o corte necessário pra voltar ao mundo e ser o acúmulo do ponto
em que foi possível chegar. Brincando com o verso do poeta Pessoa, cami-
nhar é preciso pra que viver tenha mais sentido.
Narrativas da arte de caminhar
escutando a fé em Ilha de Maré
Nete Amorim

No primeiro dia 18.05.2018 na Ilha, o tempo estava chuvoso, nos-


sa caminhada foi por cima de muita lama na trilha escolhida pelo meu
grupo, sob a orientação do professor e de mais cinco estudantes da Escola
Municipal de Ilha de Maré. Até ali, não tinha certeza do que fazer como
produção final. Porém, ao retornar, olhando as fotos que tiramos, e visto
que “lugares novos oferecem novos pensamentos e novas possibilidades”
(SOLNIT, 2016), percebi templos religiosos dentre elas, e resolvi escutar os
moradores com o foco em saber mais sobre a religiosidade do local, ao vol-
tarmos no dia 08.06. 2018.
Segundo Tereza, V., (2012),” Um olhar e uma escuta dessintoni-
zados é uma forma de alienação da realidade do grupo.” Assim, como fiquei
com o grupo de narrativas, a turma se dividiu próximo à Escola e iniciamos
a segunda caminhada. Enquanto isso, passava por nós, seu Renato Neves,
que embora sem tempo, garantiu que falaria comigo posteriormente. Dali
em diante, segui com algumas perguntas simples acerca da fé daquela comu-
nidade, perguntas que fossem comuns a todos. Meu primeiro entrevistado
foi o Sr. Béu, homem nativo da localidade, que disse não ter religião, mas
que ali tinha uma diversidade de templos religiosos (alguns já observados)
onde eu encontraria várias denominações religiosas. Caminhando, encontrei
58 | Nete Amorim
pessoas bastante receptivas, que se dispusera a falar sobre suas crenças e dos
seus familiares.
Para começar, registrei algumas falas. Nesse passo, encontrei Ali-
ne, Sra. Maria Eugênia e Sra. Linda, uma delas espírita e as outras cristãs
protestantes. Elas disseram que eram novas ali, moravam há apenas um ano,
e que na rua onde moravam já tinham visto três igrejas diferentes. Achamos
também, muitos búzios e conchas no caminho, logo, não perdi tempo em
perguntar se tinham alguma relação com a religiosidade das pessoas, disse-
ram que eram muito usados para o enfeite das casas, mas elas acreditam que
alguns usem também para fins religiosos.
Conversei com Sr. Diego, que afirmou respeitar a todas as religi-
ões e tendo elas, muita importância. Ele tem 30 anos na Ilha e pertence a
comunidade evangélica. Alguns se diziam católicos, mas não praticantes, e
relatavam que a igreja costuma fazer procissão, novena, além de comemora-
rem o dois de fevereiro, dia de Iemanjá.
Um relato interessante foi do Sr. Oziel, carpinteiro naval que disse
ter um sindicato (clientes do bar) em Santana, que religiosamente não estão
ali e só anda cheio que essa era a fé ali. Quis saber também, se diante de
tanta diversidade, eles tinham uma loja de produtos religiosos... não tinham.
Escutei ainda o Sr. Valdo, e a Sra. Nelia de 68 anos, e por fim, Andréia,
marisqueira, estudante adepta da religião evangélica, na qual me falou de
saúde, o que não era o tema em questão, mas a escutei.
Por fim consegui falar com Sr. Renato Neves, e este falou que a
comunidade tem certificação quilombola a qual pertence à escola. Mencio-
nou ainda a ancestralidade indígena e africana da Ilha, e em especial ao povo
de santo, onde culturalmente muitas coisas têm se perdido, o que o próprio
denomina colapso cultural. À escuta, a esse povo faz sentido quando leva-
mos isso ao “pé” da letra.
Após as escutas, agora entendo que o desafio foi: Caminhar e es-
cutar dando atenção à crença das pessoas, seja na lama, na terra ou nas areias
do mar, em Ilha de Maré, sem perder a passada. Como diz Rubem Alves
(2005), “Pra mim Deus é isso: a beleza que se ouve no silêncio. Daí a impor-
tância de saber ouvir os outros: a beleza mora lá também. Comunhão é
quando a beleza do outro e a beleza da gente se juntam num contrapon-
to…”
Narrativas da arte de caminhar escutando a fé em Ilha de Maré | 59

Referências Bibliográficas

SOLNIT, R. A História do Caminhar. In: São Paulo: Martins Fontes,


Cap.1, 2016.
TERESA, V.; BEMFICA, S. A educação estética ambiental do olhar e
do escutar : do estranhamento à criação. RevBEA, v. 7, p. 50-62, 2012.
ALVES, R. A educação dos sentidos e mais. Campinas, São Paulo:
Verus, 2005.
Presentes de uma caminhada
Walter Lemos Alves Junior


Poesia feita, a partir da vivência com os alunos em Ilha de Maré,
possibilitada pela ACCS: Arte de Caminhar. Dessa forma, tentei relatar em
versos minhas melhores lembranças sobre essa experiência fantástica que,
me possibilitou conhecer novas realidades e ir para além dos muros
da Universidade.
De fato, foi uma vivência muito prazerosa, onde pude aproveitar
incontáveis momentos de felicidade, junto a pessoas que aprendi a gostar,
sem falar, o contato abundante com a natureza que me trouxe fortes lem-
branças do meu interior, me remetendo à inevitável saudade de casa.
Estou muito satisfeito com a trajetória construída. As relações
harmoniosas do grupo e a sensação de estar em uma equipe unida, me ale-
grou bastante, além disso, a possibilidade de sair do caos da capital e da
loucura de uma rotina pesada, mostrando que a vida pode e deve ser mais
diversificada, foi outro ponto que me satisfez imensamente. Assim, levarei
esta experiência para administrar minha rotina, deixando sempre espaço para
atividades que gosto de realizar e o mais importante, irei fazê-las sem o
sentimento de culpa me atormentando.
62 | Walter Lemos Alves Junior

Que perturbação é a cidade


Quem me dera um verde para olhar
Mas em Salvador é raridade
Não posso me acostumar

Queria ter tempo para sair da rotina


Para as simples coisas dar atenção
Mas a responsabilidade me incrimina
Puxando de volta para minha solidão

Só queria um lugar para caminhar


Que fosse calmo e bonito
Cercado pelas matas e pelo mar
Com certeza seria o me lugar favorito

Hoje posso dizer que o encontrei


Vocês devem imaginar onde é
Demorou mas eu achei
Estou falando da Ilha de Maré

Esse presente não veio sozinho


De várias amizades veio carregado
Assim no meu peito fazendo carinho
E de felicidade ele ficou lotado

Das cantorias e das prosas


Com certeza me lembrarei
As despedidas são dolorosas
Mas dessa caminhada jamais esquecerei.
O Caminhar e as Visualidades
eu o mar a ilha
Susan Rodrigues e Victor Chaves

Produzido por Susan Rodrigues e Victor Chaves, a intervenção ar-


tística criada para a ACCS: A Arte de Caminhar é um conjunto de
percepções e interações que ocorreram a partir de uma experiência repleta
de surpresas no município de Ilha de Maré.
A primeira parte do trabalho consiste num conto que narra a his-
tória de um personagem em uma jornada de descobertas, novas vivências e
encontro de si mesmo. A substância do conto: personagens, cenários e a-
contecimentos são baseados na união da imaginação e experimentações
vividas. A segunda parte e a conclusão da obra são fundamentadas numa
produção audiovisual, em que o conto resumido, é narrado e ilustrado, em
uma compilação de imagens produzidas também nas mediações de
Ilha de Maré.
66 | Susan Rodrigues e Victor Chaves
eu o mar a ilha | 67

Link para o vídeo: http://vimeo.com/278855466


“Só consigo meditar quando
caminho. Parado, deixo
de pensar; minha mente
só funciona acompanhando
minhas pernas”

Jean-Jacques Rousseau
Atravessar
Monique Feitosa

O ser para experimentar as coisas, no sentido de se deixar tocar,


atravessar, precisa se expor, ir sentir. Isso me fez pensar em toda essa vivên-
cia em Ilha de Maré, todas as sensações, toques e atravessamentos vividos
nessas duas caminhadas. Foi uma travessia literal, sensitiva, lúdica, interna.
Dois mundos imergindo juntos e somando experiências. Duas realidades
construindo uma terceira, mais maleável e encharcada por vivências, apren-
dizados e interações. Caminhar é mais do que um processo físico, é um
processo de conhecimento, pessoal e externo, é um processo visual, olfativo,
tátil, auditivo. Essa experiência foi um aporto em mares desconhecidos, foi
uma travessia para fora da zona de conforto. Pensando nisso, resolvi fazer
um vídeo documental para não esquecer todas essas sensações e trocas, para
revisitá-las sempre que possível.
70 | Monique Feitosa

Link do vídeo:
http://caminhar.ihac.ufba.br/index.php/2018/07/08/monique/
O Entretempo
Raphael Dutra

O entretempo, ou o tempo de caminhar entre um lugar e outro.


Tempo em que o corpo se estabelece entre o céu e a terra e que a mente
toma consciência da força de resistir através dos sentidos que transmutam
atos universais a significados particulares.
Os caminhos, abstratos e concretos, mentais e físicos, são estrei-
tamente particulares a cada um.
Não existe mundo externo percebido inteiramente igual, nem
mente que teça a mesma teia de pensamentos em uma mesma sequência.
No entretempo, podemos estar na mente e no corpo simultanea-
mente, mas sem predominância de nenhum sobre o outro.
O diálogo perfeito da concomitância e ausência.
Observações, lembranças, planos, a mente e a paisagem são cami-
nhadas, esquecidas, reformuladas, transmutadas, e tudo num mesmo
período de tempo.
A paisagem reflete o ser e o ser se vê na paisagem, mas tudo pas-
sageiro e obedecendo a um ritmo de fluxo.
72 | Raphael Dutra
Fluxo temporal que não somos capazes de definir com clareza,
nem sequer muitas vezes compreender ou aceitar, mas que inegavelmente
estamos imersos e positivamente obrigados a conviver.
O lugar do entretempo é infinito, constante, ‘impermanente’ e in-
fluencia toda nossa experiência humana.
O Entretempo | 73
74 | Raphael Dutra
O Entretempo | 75
O Paraíso do Fim do Mundo
Iara Crepaldi

A Baía de Todos os Santos e suas 56 ilhas compõem um ambi-


ente raro, seja pelas dimensões, seja pela flora e fauna, seja pelo patrimônio
material e imaterial que reúne. Seria a descrição de paraíso não fossem as
toneladas de lixo que encalham em suas praias e o abandono que assola
suas populações.
O fato é que não há paisagem sem dejetos nem foto sem sujei-
ra. Uma sujeira que vai desde a passagem para a escola pública desabando
sobre o mar até o entulho largado nas ruas, praias, matas e calçadas, cheias
de cães, cheios de sarna.
O paraíso está virando um lixão a céu aberto, anunciando o
fim de um mundo no qual se perpetuam culturas impossíveis de existir
fora dali.
O ensaio fotográfico O Paraíso do Fim do Mundo amplia e pro-
jeta essa realidade de deterioração e descaso para um momento pós-
contaminação por agentes químicos.
O acúmulo de dejetos tóxico - produzido pelas indústrias de
armas químicas e refinarias - tingiu o céu, o mar, a vegetação e a terra de
algumas ilhas; em outras, deixou tudo escuro ou claro demais.
78 | Iara Crepaldi
Os poucos sobreviventes são mutantes, com peles e pelos de
coloração tão impossível quanto a capacidade humana de conviver com os
seus paraísos.
O Paraíso do Fim do Mundo | 79
80 | Iara Crepaldi
O Paraíso do Fim do Mundo | 81
82 | Iara Crepaldi
Pedaços de Maré
Marcela D’almeida

Meu apego pelo mar é tão antigo que nem me lembro quando fo-
mos apresentados, não lembro dele sem ser, já fazendo parte da
minha rotina.
Crescer em Salvador me trouxe o privilégio de poder quase sem-
pre escolher caminhos que levassem ao mar, de poder escolher caminhar
perto dele. Salvador bonita do jeito que é, até onde não se vê mar, me fez
entender o quão significativo é caminhar por onde a gente ama. A conexão
que se sente, ajuda a trazer o lugar para perto, é o entender definitivo que a
gente faz parte.
E foi daí que desde pequena ficou claro para mim a importância
do caminhar como uma maneira de se perceber parte do todo.
E das caminhadas pela minha cidade, do andar na beira do mar,
veio a vontade de caminhar por toda parte.
Caminhar na natureza alimenta. Li, faz pouco tempo, um texto
que defendia a teoria de que a natureza nos alimentaria de energia e o cami-
nhar junto ao mato, ao rio, ao mar, seria diferente do caminhar na cidade. Se
você estivesse na sintonia certa, pronto para receber aquela energia, você iria
mais longe.
O caminhar em Ilha de Maré, como não poderia deixar de ser, me
fez sentir presente. O tempo foi para outro eixo, foi suspendido, e eu senti
84 | Marcela D’almeida
com calma as casinhas, a lama, as pegadas dos bichinhos, a dancinha dos
siris, o mar, a areia, as conchas, o sol, as árvores, o céu. Tudinho. Com
calma. Fui presente.
E voltando para casa, no barco, com o sol na cabeça e o barulho
do mar, eu pensei que não poderia existir maior felicidade que aquilo.
Meu trabalho é uma colcha de retalhos, no sentido figurado. Ele
junta pedacinhos de maré e pedacinhos da caminhada que me foram especi-
almente queridos. A construção foi bem intuitiva, ele foi pensado para ser
sentido.
É uma espécie de diário, com registros das coisas que chamaram
atenção ao longo da caminhada, não de todas, às vezes, a gente só está tão
envolvido que esquece de pegar a câmera para registrar. Vai desde fotos dos
descascados das casas até a maré.
Caminhar é guardar um tempo só para gente e caminhar em Ilha
de Maré foi especialmente inspirador, me lembrou o tempo todo o quanto é
importante para mim estar perto da água salgada.
“Quando eu morrer
Voltarei para buscar os instantes
Que não vivi junto ao mar”
O Canto de Oxum - Vinicius de Moraes
Pedaços de Maré | 85
86 | Marcela D’almeida
Pedaços de Maré | 87
88 | Marcela D’almeida
Pedaços de Maré | 89
90 | Marcela D’almeida
Emaranhados
Andressa Melo

O ato de caminhar tornou-se tão natural como respirar, reprodu-


zimos de forma automática, ao caminhar não pensamos em qual pé mover
primeiro, ou qual a distância de um passo para outro. Muitos usam a cami-
nhada para meditar, organizar os pensamentos, como prática esportiva,
peregrinação ou até mesmo como ato político. Existem diversos exemplos
de caminhadas, uma delas foi a Marcha do Sal em 1930, feita por Mahatma
Gandhi e seus seguidores, eles percorreram por quase 400 km em 25 dias até
o litoral do Oceano Índico. Sua caminhada foi um ato de desobediência civil
contra o monopólio britânico, ao chegar Gandhi tomou em sua mão um
pouco de sal do mar, esse ato representava que o sal pertencia aos indianos,
e que estes podiam produzir seus próprios suprimentos.
Os exemplos de estudiosos, religiosos, e figuras históricas que u-
savam a caminhada para além da locomoção são inúmeros, esses exemplos
mostram a diversidade de objetivos e significados que o caminhar pode ter.
A caminhada também pode ser usada como arte, diversos artistas usam o
caminhar para produzir arte, o artista Richard Long inseriu o caminhar em
várias de suas obras. Na obra “A line made by walking”, Long percorreu o
mesmo caminho até que uma trilha fosse formada a partir da sua caminhada,
nessa obra ele usou a caminhada para mostrar os impactos que até mesmo
um ato tão comum pode causar na natureza.
92 | Andressa Melo
Usar o ato de caminhar dá ao artista variadas formas de produzir
arte, a própria caminhada pode ser essa obra artística, um desenho, foto,
vídeo, ou um bordado que foi a forma que escolhi para expressar os efeitos
da caminhada em mim. Ao participar da ACCS “A Arte de Caminhar”, que
teve como um dos objetivos explorar os diversos significados que a cami-
nhada pode ter, as diferentes formas de caminhar e sua relação com a arte,
pude experimentar de perto as boas sensações que o caminhar proporciona.
Caminhar pela Ilha de Maré foi uma experiência sem igual resgatou lem-
branças da minha infância, propiciou inúmeras emoções, me permitiu
conhecer diferentes pessoas, ouvir suas histórias e eternizar momentos atra-
vés de fotografias. Até mesmo a exaustão corporal, o suor que derramei
eram provas da caminhada, eram marcas deixadas pelo caminhar.
Escolhi como produção artística intervir nas fotografias da cami-
nhada através do bordado, utilizando linha e agulha criei novos elementos
nas fotos, preenchendo vazios, acrescentando novas formas e criando novas
relações. Nomeei a produção de “Emaranhados” por me remeter a algo
envolto por fios, sem ordem definida, que é exatamente minha intenção ao
bordar as fotos, envolvê-las pela linha alterando aquele momento e criando
novos significados.

Referências Bibliográficas

SOLNIT, Rebecca. A história do caminhar. São Paulo: Martins Fontes,


2016.
Emaranhados | 93
94 | Andressa Melo
String Art
Ilmara Souza

Transpassar o ato mecânico de caminhar e fazer dele uma arte,


significa que nos encontramos em determinados pontos, que esses caminhos
se entrelaçam, se afastam, retornam e o ponto de início, também é o ponto
de término, onde podemos retornar, nos reconectar com a natureza, pois,
fazemos parte dela, e assim seguir a caminhada como um ciclo, da mesma
maneira que a natureza.

Fotos de: Giulia Pita, Caruma Obi, Susan Rodrigues e Ilmara Souza.
Informações do quadro:
Dimensões - 55x44
Técnica – String Art
96 | Ilmara Souza
É bom colecionar coisas
Wilian Carmo

“É bom colecionar coisas, mas é melhor caminhar. Porque


caminhar também é uma forma de colecionar coisas: as coisas
que a gente vê, as coisas que a gente pensa. Esse processo é
facilitado pela renovação da paisagem, seja ela rural ou urba-
na, e pelo próprio automatismo do ato de caminhar.”
Anatole France
É extremamente interessante a imensidão de sensações incríveis
quando nos colocamos dispostos a fugir da zona de conforto, quando per-
mitimos o contato, a troca de informações com a natureza e com as pessoas
que compõem um determinado espaço. O “observar” ganha uma nova con-
figuração, não antes como um “olhar colonizador”: formado diante de um
mundo caótico, atormentado pelo fantasma da globalização perversa, o qual
se torna extremamente robótico ao longo das sensações e vivências. Desta
vez, o olhar, a observação, o sentir, tornam-se objetos de destaque dentro de
um contexto baseado na troca mútua de experiências, sejam elas concretas
ou abstratas. Conhecer histórias, pessoas, provar novos sabores (aqui, me
refiro ao maravilhoso doce de banana de Adenilton), e acima de tudo, esta-
belecer vínculos com pessoas tão diferentes das quais estou acostumado a
conviver, foram algumas das milhares de sensações que permearam a minha
participação na ACCS.
Desta forma, fui inspirado a fotografar cada momento singular
com essas pessoas, cada caminhada, sorriso, e “cara feia” por estar sujando
98 | Wilian Carmo
os pés, cada canção compartilhada no barco, e todo laço fraterno que
iria se formando...
Para que no final, pudesse criar uma teia de relações, as quais vão
se desenvolvendo ao longo da troca mútua de experiências. Gostaria de
agradecer aos alunos e professores da Escola Municipal de Ilha de Maré,
pois sem eles, o meu projeto nem sairia, bem como, tais vivências não
seriam possíveis.

Referência Bibliográfica:

FRANCE, Anatole. O crime de Sylvestre Bonnard. Tradução: Marcos de


Castro. Rio de Janeiro: Record, 2007
É bom colecionar coisas | 99
Marcas do Solo
Giulia Pita

O que é arte? Um dos problemas clássicos é estabelecer uma defi-


nição do que é arte. Nos dicionários sua definição são tantas e tão diversas,
que o termo, cada vez mais, evidencia o tamanho da sua complexidade.
Mesmo não sendo passível de ser definido por completo, manifesta em
diferentes âmbitos, o desenvolvimento, criação de uma atividade que ex-
pressa e se baseia em emoções e sentimentos dos artistas. O caminhar por
si, é uma arte, pode ter diferentes intuitos e formas de expressão. Caminhar
para relaxar, aliviar estresses, pensar, decidir coisas, por saúde, e até mesmo
como um ato político. Com finalidade ou sem finalidade, caminhar apenas
por caminhar já é considerado arte. Para diferentes pessoas, a necessidade de
refúgio na caminhada pode ter distintas representações e transformações,
tanto para o corpo quanto para mente. O escritor francês Anatole France
(1844-1924) faz uma comparação entre o fato de colecionar coisas e o cami-
nhar. Ele diz que “é bom colecionar coisas, mas é melhor caminhar. Porque
caminhar também é uma forma de colecionar coisas: as coisas que a pessoa
vê, as coisas que a pessoa pensa”. Dessa forma, toda caminhada resulta em
um processo de coleção e desse processo, a obtenção de conhecimento e de
algo que em si, já não se tinha antes. Uma nova paisagem, uma nova histó-
ria, novas pessoas, novos pensamentos, novas perspectivas e novas formas
de enxergar o mundo.
A ida para Ilha de Maré com o propósito de caminhar, conhecen-
do e interagindo com os habitantes e com a natureza, desperta e despertou
102 | Giulia Pita
sentimentos diferentes do que antes sentidos em caminhadas por locais
conhecidos. A ida para um local com intuito apenas de caminhar, gera um
processo de autoconhecimento, inspiração e coleção, que foi sentido por
todo o grupo participante da caminhada. Risadas, cansaço, conversas, distra-
ções, plenitude, conhecimento e descoberta do novo e do outro. Esse
trabalho, portanto, com a representação do mapa da ilha de Maré com fotos
dos diferentes tipos de solo encontrados durante os dois dias de caminhada,
retrata a diversidade existente tanto na arte, no caminhar, quanto na subjeti-
vidade presente em cada um.
O que e que a Ilha tem?
Caruma Obi

Ao pensar em produzir uma arte através das caminhadas em Ilha


de Maré, quis demonstrar a beleza da ilha. Pensei em poder instigar outras
pessoas, que como eu, não tiveram a oportunidade de conhecer este muni-
cípio da cidade do Salvador. Tentei retratá-la de diversas formas, com
origami, papietagem, com maquete, porém o resultado não saia como o
esperado, ou eu não conseguia tirar o projeto do plano das ideias.
Passei dias olhando as fotos, sem saber como concluir uma repre-
sentação da caminhada, quando avistei o estojo de lápis de cor do meu
sobrinho, procurei uma folha de papel e resolvi expressar a imagem que eu
sentia quando pensava em “Ilha de Maré”.
A arte de colorir foi bem relaxante e descobri como poderia retra-
tar o passeio. Desta vez resolvi usar a tinta para relembrar da terra que nos
enlameou na travessia de Praia Grande em direção a Botelho por dentro da
mata em um período chuvoso. Entre subidas e descidas, escorregões, quei-
maduras de urtiga e picadas de insetos, embarcamos de volta, da lama ao
caos do outro lado do mar, desta forma:
104 | Caruma Obi
O que é que a Ilha tem? | 105
A segunda caminhada foi pela praia dando atenção a natureza,
quando subi uma escadaria alta para apurar a natureza de lá de cima, tive
uma linda visão da Ilha, da baía, conheci lagartas, gafanhotos e
uma bela igreja.

Querendo ficar, tive de me despedir do paraíso com desejo de vol-


tar, já estou convencendo a minha família e amigos a irem conhecer esse
pedaço do céu escondido na Baía de Todos os Santos. Essa imagem retrata a
despedida com gostinho de quero mais.
Percursos
Eduarda Bango

A arte de caminhar não se trata da chegada à um destino. O desti-


no pode ser o final de uma caminhada, mas é o seu percurso que faz dela
singular. As caminhadas feitas em Ilha de Maré, me levaram a produzir duas
telas em tinta acrílica, uma para cada dia. São retratos do que vi e senti du-
rante o percurso.
108 | Eduarda Bango

No primeiro dia eu estava imatura, inocente e ansiosa. Era um dia


de sol quente. Adentramos a mata fechada, andamos na lama e respiramos
ar puro e úmido. As cores estavam saturadas, vivas. Havia muito verde,
alguns pontos vermelhos, amarelos das flores e dendê. A primeira caminha-
da ficou marcada por diversas pegadas das pessoas do grupo.
Percursos | 109

O segundo dia estava frio e chuvoso, me senti mais preparada pa-


ra ousar outras formas de caminhar. Engatinhei, saltitei e arrastei os pés
desenhando na areia. A caminhada foi realizada pela praia e havia uma certa
calma nos tons de azul e cinza que nos rodeava. As pedras marcadas pela
água do mar davam a sensação de reflexo, como se eu estivesse entre um
mar de água e um mar de pedra. Sentir a caminhada, de fato foi mais apro-
veitador do que simplesmente correr até meu destino final.
O Caminhar
Alessandra Mariano

Eu sou feita da minha caminhada.


Os caminhos que percorri me construíram e continuam a me transformar.
O caminho esculpe o caminhante.

Essa obra reflete o pensamento de que o corpo do caminhante é feito do


mesmo material do solo onde ele pisa, materializando a ideia de que cami-
nho e caminhante estão profundamente unidos.
A obra foi feita com lascas de tronco de árvores, coletadas durante a cami-
nhada em Ilha de Maré, coladas sobre uma placa de madeira compensada.
O Caminhar | 111
"Todos os pensamentos
verdadeiramente grandes
são concebidos durante
uma caminhada".

Friedrich Nietzsche
Biografias

Alessandra Mariano. Arquiteta baiana, interessada em formas de


viver harmonizadas com a natureza. Desenvolve projetos de arquitetura
bioclimática, focando no uso de recursos naturais com baixo impacto ambi-
ental. Estudos na área de construções de terra crua, de bambu e eficiência
energética das edificações.
Andressa Melo. Graduanda em Bacharelado Interdisciplinar de
Artes na Universidade Federal da Bahia. Bolsista PIBIC no grupo de pesqui-
sa Ecoarte. Interessada em arquitetura, praticante do bordado livre como
forma de manifestação artística e lazer.
Caruma Obi. Indígena e estudante do Bacharelado Interdiscipli-
nar em Saúde. A união de natureza, caminhada e arte é a forma perfeita de
integrar em uma universidade esta pessoa apaixonada pela natureza, adora
caminhar e amante das artes.
Daniel Maurício de Aragão. Professor do IHAC e do Mestrado
Acadêmico em Relações Internacionais da UFBA. Desenvolve pesquisas em
estudos críticos da globalização e da governança global, direitos humanos,
atores não-estatais e cooperação internacional para o desenvolvimento.
Eduarda Bango. Graduanda no Bacharelado Interdisciplinar em
Artes na Universidade Federal da Bahia, sua área de interesse é Cinema e
Audiovisual. Participou de algumas produções audiovisuais e atualmente
116 | Biografias

trabalha como videografista. Deseja trabalhar como roteirista e diretora de


arte para cinema.
Giulia da Silva Pita. Graduanda da Universidade Federal da Ba-
hia no curso de Bacharelado Interdisciplinar em Humanidades. Área de
interesse voltada para questões relacionadas aos estudos da sociedade con-
temporânea com foco nas questões de gênero.
Iara Crepaldi. Nascida em São Paulo, jornalista, fotógrafa e cola-
boradora do grupo de pesquisa Ecoarte, Iara Crepaldi desenvolve pesquisa
de cunho artístico-ativista sobre as ilhas da Baía de Todos os Santos.
Ilmara Silva A. de Souza. Graduanda no Bacharelado Interdisci-
plinar em Artes na Universidade Federal da Bahia. Gosta de trabalhar com
música, argila, gravura, crochê e unificar as diversas linguagens artísticas em
seus trabalhos. Tem interesse pelas questões relacionadas a natureza, sociais
e educacionais.
Karla Brunet. Artista e pesquisadora, participou de diferentes ex-
posições de artes visuais e arte eletrônica no Brasil e exterior. Atualmente, é
professora do IHAC/UFBA e coordena o Grupo de Pesquisa Ecoarte, onde
pesquisa e desenvolve projetos de interação entre arte, tecnologia e natureza.
Marcela D'almeida, estuda Publicidade e Propaganda UNIFACS
e Bacharelado Interdisciplinar de Artes na Universidade Federal da Bahia.
Trabalha com design e fotografia, mas gosta de se arriscar em tudo (ou qua-
se tudo) que envolva arte e natureza.
Monique Feitosa. Graduada em Direito, graduanda do Bachare-
lado Interdisciplinar em Artes na Universidade Federal da Bahia. Bolsista
Pibic na Ecoarte. Área de interesse voltado para fotografia e cinema.
Natália Lima Figueiroa. Licenciada, mestre e doutoranda em
Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia. Dedica especial atenção
às temáticas que envolvem corporeidade, saúde e movimento. Pesquisa ca-
minhada atuada como atividade física na cidade de Salvador.
Nete Teixeira Amorim. Licenciada em Biologia. Especialista La-
to Sensu em Preceptoria do SUS- Ministério da Saúde. Graduanda do
Bacharelado Interdisciplinar em Saúde na Universidade Federal da Bahia.
A Arte de Caminhar: Ilha de Maré | 117

Raphael Dutra. Estudante do Bacharelado Interdisciplinar em


Artes na Universidade Federal da Bahia, fotógrafo, monitor do Labfoto,
interessado em fotografia artística e documental, atualmente desenvolve o
projeto Bogary Zine.
Rodrigo Araújo C. De Oliveira. Graduando do Bacharelado In-
terdisciplinar em Humanidades da Universidade Federal da Bahia. Gosta de
trabalhar fora de sala de aula e encarar a realidade fática do seu objeto de
estudo. Tem interesse nas relações interpessoais e de poder da sociedade e o
modo delas se relacionarem com o espaço.
Susan Rodrigues. Estuda Cinema e Audiovisual. Atualmente
trabalha como produtora no coletivo Gran Maître Filmes. Sua grande área
de interesse é direção de fotografia para cinema, onde é possível explorar e
passar diferentes sensações através de imagens.
Walter Wagner Lemos Alves Junior (Itanhém, BA, 1998). Atu-
almente, mora em Salvador e cursa o Bacharelado Interdisciplinar de Saúde
na Universidade Federal da Bahia. Pretende entrar no curso de medicina por
gostar da área e nas horas vagas pratica esportes como futebol, vôlei, bas-
quete, etc.
Victor Augusto de Morgado Chaves. Baiano, 22 anos. Estudan-
te do curso Bacharelado Interdisciplinar em Artes na Universidade Federal
da Bahia - UFBA, desenhista e escritor de contos e poesias, além de possuir
olhar interessado e contemplativo sobre as áreas de fotografia, cinema e
tatuagem.
Sugestão de bibliografia

BLOCK, E.; RAMSDEN, H. The Walking Project: Desire Lines, Walk-


ing and Mapping Across Continents. Disponível em:
http://leoalmanac.org/gallery/locative/walking/index.htm. Acessado em:
Novembro 2017
BRADY, E. Aesthetics of the natural environment. In: PRATT, V.;
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