Afinal, Uma Semana Sem Kung-Fu, Mas Com Muito Palavrão e Mulher Pelada - Pornochanchadas e Recepção No Recife (1975-1980) - 1

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UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DE PERNAMBUCO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA


MESTRADO EM HISTÓRIA

KATHARINE NATALY TRAJANO SANTOS

“AFINAL, UMA SEMANA SEM KUNG-FU,


MAS COM MUITO PALAVRÃO E MULHER PELADA”:
Pornochanchadas e recepção no Recife (1975-1980)

RECIFE
2021
KATHARINE NATALY TRAJANO SANTOS

“AFINAL, UMA SEMANA SEM KUNG-FU,


MAS COM MUITO PALAVRÃO E MULHER PELADA”:
Pornochanchadas e recepção no Recife (1975-1980)

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós-graduação em História da
Universidade Federal Rural de
Pernambuco, como requisito para
obtenção do grau de Mestra em História.

Orientadora: Prof. Dra. Alcileide Cabral


do Nascimento

RECIFE
2021
KATHARINE NATALY TRAJANO SANTOS

“AFINAL, UMA SEMANA SEM KUNG-FU,


MAS COM MUITO PALAVRÃO E MULHER PELADA”:
Pornochanchadas e recepção no Recife (1975-1980)

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós-graduação em História da
Universidade Federal Rural de
Pernambuco, como requisito para
obtenção do grau de Mestra em História.

APROVADA EM: 05/11/2021

BANCA EXAMINADORA

________________________________________
Profa. Dra. Alcileide Cabral do Nascimento
Universidade Federal Rural de Pernambuco - Orientadora

________________________________________
Prof. Dr. Natanael Duarte de Azevedo
Universidade Federal Rural de Pernambuco – Examinador interno

________________________________________
Prof. Dr. Alberto da Silva
Université Paris IV - Sorbonne – Examinador externo
AGRADECIMENTOS

Agradeço à minha orientadora, Profa. Alcileide Cabral pela acolhida e o apoio


nesta trajetória, assim como ao Núcleo de Pesquisa e Estudos em Gênero
(Nupege/CNPq) da Universidade Federal Rural de Pernambuco, coordenado por
esta e no qual também me incluo, pelo espaço e debates fecundos; à Profa. Janaína
Guimarães, que, desde a graduação, através do Grupo História e Gênero da
Universidade de Pernambuco, colaborou/a muitíssimo para a minha formação
acadêmica e pessoal. Agradeço ao Prof. Natanael Duarte e ao Prof. Alberto Silva
pelas conversas, aulas, livros e pelo aceite em participar da minha banca de defesa
traçando considerações essenciais a esta pesquisa.
Também à coordenação e ao Programa de Pós-graduação em História (PGH)
da Universidade Federal Rural de Pernambuco; estendo meus agradecimentos a
Rafael Cipriano de Souza, secretário e “anjo” deste PGH, pelas inúmeras
cooperações. Ofereço um abraço e um café quente aos colegas de turma e
professores/as do PGH/UFRPE pelas trocas, ensinamentos e risadas para enfrentar
manhãs e tardes de atividades.
Estendo os agradecimentos ao Grupo de Trabalho (GT) Estudos de Gênero
da Associação Nacional de História – seção Pernambuco pela honra em compor a
coordenação deste desde 2020, sobretudo pela oportunidade em fazer parte de sua
história e da Anpuh nacional; às artistas responsáveis pelas capas deste trabalho
por materializarem (de forma muito mais bonita) minhas abstrações: Lora Cristine
(Cristxine) que fez a ilustração recriando uma pose da atriz Valéria D'Ellia -
publicada na Revista Cinema em Close-up – imaginando-a na tela do Cinema São
Luís (Recife/PE) e à Helena Nascimento (Indômita) pela colagem unindo a primeira
à intervenção de jornalistas, escritores e manchetes/figuras que acompanhavam
alguns dos textos aqui analisados.
Agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior -
Brasil (CAPES) pelo apoio parcial à realização deste estudo, sob o código de
Financiamento 001.
Expresso igualmente gratidão à minha família, em especial, Geraldo Trajano e
Eliomar Santos, vulgos painho e mainha, pelo suporte e apoio que palavras jamais
darão conta, sendo este só mais um registro público de minha afeição. Aos meus
amores, em todas as possibilidades de/e trocas de afeto, pelas palavras, cheiros,
abraços, pitacos e até mesmo material de pesquisa – sem vocês, seria impossível
estar e ser aqui. Qualquer listagem não seria justa, mas quem é de fé sabe que é!
Agradeço e dedico essa conquista a todas as mulheres da minha família que,
ainda que sob existências precarizadas e de trânsito-êxodo, sempre se fortaleceram
e me fortalecem com carinho, incentivo e luta no coração do bairro do Ibura, em
Recife; esta ocupação do espaço acadêmico é só mais uma minha para nós, escrita
também daqui. Saúdo e celebro suas existências terrenas e encantadas, minhas
ancestrais e descendentes: Dona Eunice Maria, Dona Maria Anunciada (in
memoriam), Dona Eliane Maria, Larissa Ferreira, Ingrid Nascimento e Yasmim Ellen,
amo-as!
Reitero que a concretização deste trabalho, no segundo semestre de 2021,
acompanhou não só a pandemia de Covid-19, mas o desmonte e a
descredibilização dos espaços de ensino, educação e pesquisa, além de ataques
ferozes às vidas brasileiras em mais uma de suas facetas autoritárias e genocidas
de nossa história. Já ultrapassamos nesse momento a marca de 600.000 mil vidas
ceifadas pela pandemia e um número tão grande quanto em termos de violência de
gênero, classe e, especialmente, raça, em nosso país.
Nesse sentido, entendo que o fazer historiográfico possa ser uma ferramenta
de cura, como dizia Gloria Anzaldúa acerca da contação de histórias e memórias
atravessadas por nossas experiências, marcadas em nossas vidas e na do(s)
coletivo(s). Agradeço a quem me cura, me guia e me faz companhia nessa travessia
- incluindo eu mesma aí – sobre o terreno das historiografias, já que isso significa
que estamos tendo a possibilidade de acreditar, tentar, fazer aqui e ainda.
[...] o brasil não é o meu país: é meu abismo. o
terreiro de minhas, nossas contradições. é meu
câncer coletivo e a força luminosa da escuridão. é
nosso discurso interrompido sufocado e arrebentador.
o brasil não é o meu país: é meu veneno. é a miséria
que nenhum milagre ocultou. não é a esperança
discreta mas concreta e escandalosa de que tudo
(ainda) pode acontecer para melhor. é a dificuldade
de conscientização diante de tantos séculos de
escravismo colonial. o brasil não é o meu país: é o
meu antidiscurso. são idéias e traumas dentro e fora
do lugar. são corpos em tempo de fome, mesmo
assim luzindo de paixão. é o ódio latindo no peito dos
poderosos e seus pacotões pesadíssimos para nós.
são, apesar de, todos os projetos de democracia sem
adjetivos de importação ou tapeação. o brasil não é o
meu país: é a nossa esquizofrenia. é o medo de
sempre doendo e até anestesiado. é o gozo de
sempre roçando e até nos enganando.

(JOMARD MUNIZ DE BRITTO)


RESUMO

O presente estudo visa compreender questões de recepção cinematográfica


relativas às Pornochanchadas, centrando-se em como, entre 1975-1980, tal gênero
cinematográfico foi percebido em Recife através dos jornais Diário da Manhã e
Diário de Pernambuco. Neste período, observamos o crescimento das
Pornochanchadas no ciclo de exibição nacional e, paralelamente, é também quando
Recife tem várias salas de cinema em atividade - entre as salas de arte e comerciais
- e o tema cinematográfico é recorrente nesses espaços mediáticos. Este estudo
constitui uma pesquisa exploratória com discussões teóricas e análise documental.
Para tal, analisámos a construção dos estudos históricos sociais do cinema,
utilizando as propostas teórico-metodológicas de Judith Mayne (1993) para localizar
o debate ainda incipiente mas em desenvolvimento da discussão social do cinema
em Pernambuco, especialmente na nossa capital estadual. No período escolhido,
recorremos à pornochanchadas, obras cinematográficas de conteúdo sexual
realizadas no sudeste do Brasil durante os finais dos anos 60 até meados dos anos
80, problematizando algumas aproximações das obras no campo do cinema
nacional e pernambucano, bem como as suas condições periféricas. Entre as
leituras e descobertas, analisámos a construção dos estudos históricos sociais do
cinema, utilizando as propostas teórico-metodológicas de Judith Mayne (1993) para
localizar o debate ainda incipiente, mas em desenvolvimento da discussão social do
cinema em Pernambuco, especialmente na nossa capital. A análise permite-nos
compreender algumas lacunas relativas à construção de jornalistas e críticos de
cinema sobre as pornochanchadas - obras estigmatizadas não pelo seu conteúdo
problemático em termos de trama e representação, mas como figura de alteridade
entre tais profissionais nas suas construções discursivas e cinematográficas sobre a
identidade nacional e intervenção ditatorial. Tais caracterizações ignoraram o
contexto da produção e agência deste género, ainda equiparando-o a cinemas
estrangeiros que tiveram igual sucesso no período - como os filmes de artes
marciais - e incluindo-o a disputa de um "verdadeiro" cinema brasileiro. Na criação
de tais diferenças, estão envolvidas questões ideológicas, bem como questões de
classe, género, raça e sexo, tanto no terreno da cultura e da cinematografia
brasileira e recifense.

Palavras-chaves: História; Pornochanchadas; Recepção cinematográfica; Cinema –


Recife (PE); Sexualidade.
ABSTRACT

The present study aims to understand questions of cinematographic reception


regarding the Pornochanchadas, focusing on how, between 1975-1980, such
cinematographic genre was perceived in Recife through the newspapers Diário da
Manhã and Diário de Pernambuco. In this period, we observe the growth of the
Pornochanchadas in the national exhibition cycle and, in parallel, it is also when
Recife has several movie theaters in activity - among art and commercial theaters -
and the cinematographic theme is recurrent in those media spaces. This study
constitutes an exploratory research with theoretical discussions and documental
analysis. To do so, we analyzed the construction of the social historical studies of
cinema, by using Judith Mayne's (1993) theoretical-methodological proposals to
locate the still incipient but developing debate of the social discussion of cinema in
Pernambuco, especially in our state capital. In the chosen period, we turned to
pornochanchadas, cinematographic works of sexual content made in southeastern
Brazil during the late 1960s to the mid-1980s, problematizing some approximations
of the works in the field of national and Pernambuco cinema, as well as their
peripheral conditions. Among the readings and findings, we analyzed the
construction of the social historical studies of cinema, using the theoretical-
methodological proposals of Judith Mayne (1993) to locate the still incipient but
developing debate of the social discussion of cinema in Pernambuco, especially in
our capital. The analysis allows us to understand some gaps concerning the
construction of journalists and film critics about the pornochanchadas - works
stigmatized not for their problematic content in terms of plot and representation, but
as a figure of alterity among such professionals in their discursive and cinematic
constructions about national identity and dictatorial intervention. Such
characterizations ignored the context of the production and agency of this genre,
equating it with foreign cinemas that were equally successful in the period - such as
martial arts films - and including it in the contest of a "true" Brazilian cinema. In the
creation of such differences, ideological issues are involved, as well as issues of
class, gender, race, and sex, both on the terrain of Brazilian and Recife culture and
cinematography.

Keywords: History; Pornochanchadas; Reception; Cinema – Recife (PE); Sexuality.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 12
1. HISTÓRIA, CINEMA & RECEPÇÃO ............................................................................................... 17
1.1 Os estudos sobre recepção e contexto ....................................................................................... 21
1.2 Fronteiras entre práticas sexuais e a história do cinema .......................................................... 31
2. PORNOCHANCHANDO ............................................................................................................... 51
2.1 A Pornochanchada fragmentada no Diário da Manhã ............................................................... 63
2.2 Intersecções gênero, raça e classe nas pornochanchadas .......................................................... 75

3. SEXPLOITATION À BRASILEIRA E TERRENOS DE DISPUTA NO CINEMA NACIONAL E ESTADUAL .. 89


3.1 Ordenações e organizações no/do cinema setentista ................................................................ 91
3.2 As Pornochanchadas entre disputas e embates no Diário de Pernambuco ............................. 101

CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................................. 122


REFERÊNCIAS............................................................................................................................... 126
12

INTRODUÇÃO

No Brasil, a história social voltada ao cinema não se constitui como um


campo novo, embora tenha agregado maior peso nos últimos anos. Desde a
década de 1990 se destacam trabalhos produzidos nessa área no país, porém
temos parcos avanços em consolidar preceitos teórico-metodológicos sem
tomar de empréstimo trabalhos franceses ou estadunidenses – algo que se
modifica com as contribuições dos programas de pós-graduações no país e
grupos historiográficos voltados a tal discussão. Entre aproximações e
distanciamentos, sobre a égide dos estudos históricos, cinematográficos e de
espectatorialidade, buscamos compreender a recepção das Pornochanchadas 1
na cidade do Recife (PE).

Ainda que utilizemos os preceitos teórico-metodológicos de Judith


Mayne, entendemos que esta historiadora feminista norte-americana propõe,
através dos seus estudos sobre contexto e produções de sentido sobre obras
cinematográficas, lentes interseccionais em questões culturais que, por vezes,
escapam ou são secundarizadas em trabalhos historiográficos canônicos ou
sobre o cânone do cinema na história.

A aplicabilidade do contexto sobre um campo histórico que vem sendo


revisitado nos últimos anos, mas dessa vez a partir de sua recepção por
jornalistas, cineastas, pesquisadores e público, numa cidade além de sua
origem paulista, é o que nos integra a busca de mapear e apreender rastros da
circulação destes filmes populares fora do eixo São Paulo – Rio de Janeiro,
mas na capital pernambucana. Essa discussão se complexifica quando
pensamos que o cinema em/de Recife vem sendo pensado através de ciclos –
em parte, este movimento se deve a obras cujo enfoque é a realização e o
estilo, como nos trabalhos de Alexandre Figuerôa (2000) e Amanda Mansur

1
Compreendemos as pornochanchadas como um dos ciclos cinematográficos existentes e pulsantes
durante a década de 1970 – especialmente – no Brasil. As obras que se inserem nesta categoria e/ou
são lidas pela mídia tradicional (que é um dos nossos sujeitos aqui) como tal possuem arranjos
específicos sobre a temática da sexualidade e as suas práticas em ambiência com o drama, o horror, a
comédia e outros subgêneros em meio às restrições e permissividades do período ditatorial brasileiro.
Retomaremos essa discussão mais detalhadamente nos capítulos a seguir.
13

Nogueira (2014), criando lacunas no que tange a espectatorialidade e suas


funções culturais e sociopolíticas.

As imagens em movimento são construídas numa imbricada relação


com o seu contexto histórico, perpassando normativas sociais culturalmente
localizadas através dos ideais existentes, moldando corpos e narrativas,
manifestando, como coloca Giselle Gubernikoff (2016, p. 34), “o lugar onde se
exerce o poder”. As práticas sexuais se interligam a essa noção do poder, as
transgressões das normas sociais e morais variáveis em cada época,
coexistindo, pertubando e subvertendo o espaço de tolerância do saber sobre o
sexo na sociedade brasileira.

Durante a ditadura de segurança nacional 2 aqui instaurada em 1964, a


Pornochanchada – conjunto de obras cinematográficas caracterizada pela
comédia de costumes e temáticas sexuais – atraía grande público aos cinemas
brasileiros. A produção deste gênero foi associada à influência do cinema
libertário europeu, especialmente às comédias italianas, assim como à
exploração de temáticas sexuais nos filmes em alta naquele período no cenário
mundial – conhecido como sexploitation – e a uma atualização das
chanchadas, gênero paródico e musical que obteve sucesso no país nas
décadas anteriores. Veremos, ao longo do texto, como estas podem se
autodefinir.

Há um intenso debate sobre tal gênero cinematográfico brasileiro, no


qual se busca definir se seu conteúdo é pornográfico ou erótico. Retomamos
essa discussão no escopo do trabalho, mas assinalamos que estes são
modos/categorias de análise fronteiriça, sobretudo historicamente localizadas.
Nesse sentido, compreendemos que as pornochanchadas se inserem dentro

2
A utilização deste termo se refere à revisão proposta pelo historiador Enrique Serra Padrós (2009, p.
31-32) que define assim: “[...] os regimes autoritários que se estabeleceram, desde o início dos anos 60,
na América Latina, particularmente na região do Cone Sul”; ainde segundo o autor, estas ditaduras
tinham “aspectos gerais comuns como, principalmente, a Doutrina de Segurança Nacional, o
alinhamento militante junto aos Estados Unidos na política de contenção do comunismo”, assim como a
“defesa dos cânones do capitalismo bem como na concepção de guerra contra-insurgente contra todo
questionamento às estruturas nacionais de dominação, o que redundou em uma guerra suja.” Tal uso
implica no reconhecimento que o regime autoritário no Brasil está além de uma atuação só “militar” ou
ainda “civil-militar”, devendo ser compreendido como um pacto político, institucional, empresarial, com
poderoso agenciamento e estratagema em diversos fronts.
14

da exploração de temáticas sexuais utilizando características próprias de seu


contexto histórico e se autodefine. Esses atravessamentos se dão desde quem
produz e compõem tais filmes, os seus temas, as corporalidades ali retratadas,
as políticas de financiamento, distribuição, assim como faceta o debate público
sobre uma identidade cultural disputada pelos setores de classe média/alta
durante o período ditatorial. As pornochanchadas eram exibidas
exponencialmente pelo território nacional, alcançando um sucesso que ainda
se destaca em nossa bilheteria nacional, ainda que perpasse esquemas de
escoamento-distribuição paralelos e menos burocráticos do Estado pouco
documentados. Alguns, sequer documentados nas documentações oficiais.

Nas fontes consultadas para nossa análise exploratória, o Diário de


Pernambuco (DP) e o Diário da Manhã (DM), como outros periódicos
brasileiros, replicam o termo pornochanchada que, como veremos nos
capítulos a seguir, reforça uma pecha a tal gênero; concordamos com
Dominique Maingueneau (2010) que a utilização do dispositivo da pornografia
está ligada à criação de produções de temática sexual e de um juízo de valor
sobre estas. Sob o recorte temporal de 1975-1980, período de crescimento e
recrudescimento deste gênero, observamos nas publicações envolvendo a
pornochanchada que tal uso também perpassa a reafirmação de um cinema
verdadeiramente nacional, pretendido por setores da classe média/alta de
Pernambuco e outros estados, principalmente, envolvendo jornalistas, críticos
cinematográficos e cineastas interligados ao pensamento cinemanovista.

A marginalidade marca este trabalho de diferentes formas: pelo estudo


historiográfico social da pornochanchada no contexto pernambucano a partir do
contexto e da recepção midiática dessas, o debate sobre a diferença
instaurada no período entre figuras jornalísticas, críticas e cineastas, assim
como pela marginalidade espacial e social que se dá a produção majoritária
das obras que recebem tal alcunha, a Boca do Lixo paulista, e o seu público.
Realizamos um bricolée que comporta não apenas as passagens jornalísticas –
dispostas no acervo da Fundação Joaquim Nabuco (PE) e da Hemeroteca
Digital (RJ) – mas que se alinha aos materiais dispostos, formações e
15

informações fornecidas pela Cinemateca Brasileira (SP) e a Cinemateca


Pernambucana (PE), acessadas antes e durante a realização da pesquisa.

Para organizar o curso deste trabalho, dividiremos seu escopo em três


capítulos que destacarão aspectos interligados às temáticas que serão
abordadas.

No capítulo 1 é sobre os aportes teóricos e conceituais que refletimos


para poder basear nosso estudo. As concepções sobre recepção e
espectatorialidade na historiografia e nos estudos de cinema/comunicação são
bastante caras a compreensão metodológica da pesquisa, assim como a
pornochanchada, que tem conceito historicamente datado enquanto fruto de
uma indústria cinematográfica que emerge radicalmente durante os anos 70 no
Brasil e engloba inúmeros aspectos sociais, culturais e políticos. Os trabalhos
de viés historiográficos e cinematográficos de Judith Mayne, Alexandre Valim,
Francisco Santiago Jr., Alexandre Figuerôa, Rodrigo Gerace, Felipe Silva e
Amanda Mansur, entre outros, são contribuições que nos servem ademais à
localização pernambucana.

No capítulo 2, adentramos ao pornochanchar: recuperamos as


discussões sobre o estabelecimento da pornochanchada no país e em
Pernambuco, através da identificação das formas discursivas do cinema no que
tange as práticas sexuais e o aparecimento desse debate no Diário da Manhã
(DM). Os escritos de Kate Saraiva, Luís Manuel Domingues do Nascimento e
José Mário de Ortiz Ramos permitem uma apreensão de um dos polos de lazer
da cidade – os seus cinemas de rua; enquanto Laura Cánepa, Ana Marília
Carneiro, bell hooks, entre outras, auxiliam a analisar as representações
construídas nos filmes e reproduzidas no jornal entre 1975-1980, que
endossará os discursos de censura sobre as pornochanchadas reproduzindo
comentários pautados em preconceitos de gênero, raça e classe. Além disso,
colunistas sociais continuarão uma postura policialesca já registrada em
exibições pornográficas no Recife no início do séc. XX, que se refina agora
com os novos contornos e corpos periféricos que passam a ocupar o centro da
cidade que, outrora, esteve confinado às atividades e lazer da elite.
16

No capítulo 3, observamos que o Diário de Pernambuco (DP) segue a


mesma tônica do DM, mas a partir da crítica cultural e, principalmente, a crítica
cinematográfica e de cineastas do Super-8, com destaque para Fernando
Spencer; a alteridade da pornochanchada e, em algumas passagens, o cinema
de kung-fu de origem oriental que adentra as salas pernambucanas, são
colocadas como empecilhos à constituição de um cinema nacional-popular, nos
moldes cinemanovistas, no país e na capital pernambucana.

A popularidade destes dois gêneros entre os recifenses de classe C e D


incomoda à classe médio-alta recifense que se quer cinemanovista, culta e/ou
institucionalizada. Debatemos o episódio em que Spencer, figura que se
destaca na cena pernambucana em suas décadas de intensas produções no
DP e em outras mídias, observa com desdém as críticas realizadas pela
jornalista Luzanira Rêgo no mesmo periódico sobre a falsa homogeneização do
movimento superoistista no Recife, acusando-a de censora, patrulheira
ideológica, como replicando o episódio dos cinemanovistas Glauber Rocha e
Cacá Diegues ao serem interpelados por Beatriz Nascimento: a historiadora
chamava de delirante suas investidas em falar por/para o povo sem situarem
seu gênero, classe e, principalmente, raça. Voltamos-nos nessa passagem ao
que compreendemos ser o prolongamento do delírio ufanista cinemanovista
trazido por Nascimento - o delírio superoitista no DP.

Aqui, não pretendemos abarcar de forma total os horizontes de


espectatorialidade das Pornochanchadas no Recife. Nossas limitações se dão
nas escolhas dos periódicos utilizados, assim como nos temas e discursos
apreendidos, recuperando uma pequena parcela frente às inúmeras
possibilidades que estudos dessa espécie podem prover. Tendo os jornais
enquanto documentos históricos, discutimos as projeções sobre a
pornochanchada nestas mídias tradicionais e conservadoras que apoiaram e
sobreviveram sob o governo ditatorial em Pernambuco. Nesse sentido,
buscamos corroborar a constituição de uma história social do cinema brasileiro
a partir da recepção cinematográfica no Recife, identificando suas estratégias e
complexidades no debate sobre as pornochanchadas.
17
18

O Cinema enquanto objeto de estudo, já há algumas décadas, galgou


seu espaço de influente produção acadêmica e conceitual – os estudos a este
interligados ultrapassam a análise do objeto fílmico, per si, e apontam que seu
uso enquanto fonte nos oferece uma miríade de possibilidades. A produção, a
distribuição, a recepção, as representações, tal como a estética, a narrativa, os
seus suportes, são apenas algumas das categorias que nos permite
compreender determinada obra e o seu contexto histórico, levando em
consideração diversificados materiais e proporcionando ao fazer historiográfico
um divertido flerte com a cinematografia. Um romance candente, cuja união
reverbera em articular, por exemplo, respostas a inquietações presentes no
fazer historiográfico.

Inicialmente, visamos aprofundar nesse capítulo alguns preceitos


teórico-metodológicos fundamentais ao nosso trabalho e que vemos despontar
em análises sobre o contexto sócio-histórico e cultural das produções
cinematográficas brasileiras: a questão da recepção e a produção
cinematográfica durante o período da ditadura de segurança nacional (1964-
1985), sob a égide dos estudos sobre a sexualidade no cinema. Relembramos
o quão frutífero é discutir a relação entre a história do cinema brasileiro, o
erotismo e a “pornografia, o sexo dos outros”, como afirma Jean-Claude
Bernardet (1979, p. 103) neste período repressivo de nosso país.

Porém, como sistematizar tal operação? Como afirma o historiador


Michel de Certeau (2017), partimos de uma análise localizada, dividida por um
período, um objeto e um lugar. Esse processo de construção historiográfica,
assim como outros campos intelectuais, nos coloca próximos de saberes
inacabados, imperfeitos. Os procedimentos aqui empreendidos "não são
corpos flutuantes em um englobante que se chamaria a história (o 'contexto'!)"
(CERTEAU, 2017, p. 4), mas históricos posto que sejam operacionalizados por
escolhas teórico-metodológicas, concebendo a história como prática.

Para perceber as ligações entre a história, o cinema e a recepção, o


campo da história social do cinema é o que nos detém. Nessa análise histórica
são os contextos sociais, políticos, econômicos e culturais que nos auxiliam a
19

perceber as produções e suas especificidades, atuação que rememora os


preceitos pioneiros de Marc Ferro (1993) ao colocar os filmes não apenas
como uma obra de arte, mas um produto que extrapola as suas significações
cinematográficas.

Com a Nouvelle Históire empreendida nos anos 1970 observamos a


ascensão de novos objetos de pesquisa e procedimentos metodológicos, o que
fez o campo da história do cinema despontar na França, na Inglaterra e nos
Estados Unidos (entre 1970-1980); desde os anos 1950, nos EUA, já se falava
sobre uma História Social do Cinema nas obras de Robert Mandrou,
pertencente à segunda geração dos Annales, e os estudos mais clássicos de
seu uso como fonte se deram pelos trabalhos de Ferro, Pierre Sorlin e Robert
Rosenstone. Nesse sentido, a historiadora brasileira Sheila Scharvzman (2016,
p. 18) afirma:

O cinema, antes visto com desconfiança ou desinteresse pelo


historiador, por não passar de uma diversão popular, por construir
justamente mundos autônomos, fantasiosos e de escape, ganha um
outro relevo: é lugar das construções e projeções do imaginário, da
aferição de sensibilidades e práticas sociais, lugar da representação.

Nos estudos históricos, observamos uma dualidade no campo de


pesquisa cinematográfica: por um lado, a ‘história do cinema stricto sensu’ que
se interessava pelo cinema como algo fechado em si e sem correlação social,
instrumentalizado inclusive pela teoria do cinema. Para o historiador Francisco
Santiago Júnior (2012) de forma paralela e massivamente nos escritos
acadêmicos, o cinema é tomado como uma forma de analisar a sociedade
criando aquilo que se define ser a relação cinema e história se aproximando,
assim, à história social e cultural.

Outro historiador, Alexandre Valim (2005), identifica questões


relacionadas ao campo de uma história social do cinema no Brasil, focando
aspectos de mediação, recepção e produção de filmes. O autor destaca que o
desejo de ler filmes em sua totalidade se mostra equivocado, posto que o
cinema por si só seja complexo já que incorpora discursos sociais e políticos.
Este se firma como um ponto de mediação que num primeiro momento pode
ser caracterizado de certa maneira e, ao se acessar os meandros que
20

envolvem a produção e recepção, é possível construir um novo olhar sobre


este. Vislumbrar as estruturas de dominação e como o cinema dialoga com tais
forças seja por acomodação ou resistência em um período específico informa
as posições ocupadas pelos filmes nas esteiras de lutas sociais, como também
as representações que constroem.

O contexto de produção, assim, nos permite visualizar suas relações


políticas, ideológicas e culturais, algo bastante caro à historiografia e aos
estudos cinematográficos. Mas, falar sobre produção nos direciona a pensar
sobre a recepção, de quais formas se coloca a mediação fomentada pelo
artifício cinematográfico, juntamente a outras mídias, entre criadores e
consumidores. O lugar do filme nunca é isento, tampouco preciso, porém nos
dá vestígios e pistas a partir do lugar de onde e quando fala. Nos filmes, a
produção traz características e valores da sociedade que o concebe, assim
como a partir desses dois dialoga com aqueles que o recebe: o público.

O sujeito-espectador emerge ao passo que a indústria do cinema se


consolida em aspecto global, sendo este uma invenção do século XX. Autores
como Jacques Aumont (1993) falam sobre a peculiaridade que as imagens
possuem, e o quanto a sua universalidade é ‘sempre particularizada’ a
depender das apropriações feitas pelos indivíduos dentro de seu grupo social e
cultural, todas heterogêneas. Essa máxima pode ser ressignificada para as
imagens em movimento. Segundo o autor,

[...] a imagem é sempre modelada por es­truturas profundas, ligadas


ao exercício de uma linguagem, assim como à vinculação a uma
organização simbólica (a uma cultura, a uma sociedade); mas a
imagem é também um meio de comunicação e de representação do
mundo, que tem seu lugar em todas as sociedades humanas
(AUMONT, 1993, p. 131).

A relação dos filmes com o público não pode ser medida somente
através da imagem, já que estas mesmas representações perpassam
contextos socioculturais e históricos, além dos arranjos que englobam a
publicização, as ações promocionais, os locais de exibição e as companhias de
distribuição. As avaliações traçadas a partir daí, podem (ainda que não
garantam) fazer com que a película obtenha uma significativa bilheteria; mas, é
21

a interação do público a maior responsável por definir os rumos de uma obra.


Em seus estudos sociológicos sobre o tema, Graeme Turner (1997, p. 102),
nos adverte que

Os produtores cinematográficos sentem uma grande dificuldade em


prever como o público reagirá a cada nova produção - e em
convencer seus financiadores a patrocinar qualquer previsão que
finalmente possam fazer. Resta-lhes tentar especificar o mais
cuidadosamente possível para quem será o filme, e depois tentar
assegurar - mediante padrões de lançamentos e campanhas
promocionais - que esse público seja atingido.

Portanto, o que guia tais profissionais a situar os filmes? Turner indica


que o gênero e as estrelas são os elementos primordiais a um resultado de
sucesso. A variedade de público até hoje é uma questão - além da faixa etária,
as identificações estabelecidas pelas redes sociais, veículos da imprensa,
conversas ou indicações, formam importantes marcadores quando os
espectadores decidem ir ao cinema. Essa prática, em si, tem se atualizado e
pluralizado.

1.1 Os estudos sobre recepção e contexto

Assistir a um filme on demand, frequentar salas de cinemas, tornar-se


crítico, produzir e se inserir em ciclos cinematográficos são atividades distintas,
porém, conectadas. Antes e durante os anos 1970, as teorias sobre o cinema
se voltavam à questão da autoria das obras e, timidamente, alguns estudos
passaram a problematizar o sujeito espectador – a partir de vieses discursivos,
psicanalíticos, pragmáticos, socioculturais, também históricos. Dessa forma, os
debates iniciais entre espectadores e suas posturas eram apreendidos numa
dimensão textual que privilegia a postura destes perante o objeto fílmico.

Entretanto, como identificar o espectador? Os pesquisadores franceses


da linguagem cinematográfica, Francis Vanoye e Anne Golio-Lété (2011, p.
271), nos fornece a seguinte definição:

O sentido do termo espectador varia em função das disciplinas que


dele se ocupam: conjunto de unidades pertencentes à espécie
humana, afectadas pela difusão das imagens, eventualmente dotadas
de características comuns (o público, os públicos), entidade
construída pela e na imagem ou pelo teórico e que representa ou
22

descreve relações (psicológicas, cognitivas) do espectador com o


filme (arqui-espectador), variedade infinita de seres de carne e de
afectos com reacções imprevisíveis, unidos, porém, por esta
característica: o fascínio pelas imagens.

Para os autores, ainda, o fascinado pelas imagens compõe direta ou


indiretamente outros grupos, a depender da análise apreendida; para a
sociologia ou a economia, situa-se o espectador-alvo, sujeito e entidade
econômica, consumidor de produtos audiovisuais e responsáveis por
estabelecer limites de tolerância (ou não) destes. No que tange a
representação do espectador seja no filme ou do filme, a construção dessa
figura é importante para que criadores, produtores, seja na televisão, no
cinema e outras plataformas, possam visualizar o seu público e perfil através
da interpelação entre espectador-dispositivo audiovisual (exercendo um tipo de
parceria) ou pela direção (que designa formas de se endereçar por meio do
olhar, dos sentidos, das emoções, etc.).

Nesse sentido, a espectatorialidade pode ser tomada como um campo


transdisciplinar no qual o contexto da obra e seu público figuram o primeiro
plano; a utilização de uma perspectiva que abrange tal fenômeno vem se
construindo fortemente nas últimas décadas, enfrentando desafios e pleiteando
um espaço particular entre as teorias historiográficas do cinema. São
revisitadas as mediações socioculturais e institucionais para que se identifique
aspectos determinantes de consumo, indo além da linguagem, das formas e
estilos cinematográficos

O pesquisador Mohamed Bamba (2013, p. 23), referência no nosso país


sobre estudos de recepção, nos informa que os estudos dessa seara surgem
para se contrapor à “teoria estruturalista do cinema e, sobretudo, os estudos
poético-estilísticos dos filmes”, abordagens pelas quais “o espectador é um
ponto cego, esquecido, ou, às vezes, a sua presença no dispositivo fílmico era
mencionada de maneira metafórica”.

No campo dos estudos de cinema e história, os trabalhos de Douglas


Gomery e Robert Allen (1985) sobre o cinema norte-americano, como o de
Michele Lagny (1992) sobre as produções francesas e o de Adhemar Gonzaga
23

e Paulo Emílio Salles Gomes (1966) acerca das que eram feitas no Brasil, se
somam àquilo que é proposto por Graeme Turner (1997) sobre as dinâmicas
socioculturais da sétima arte: localizam o cinema dentro do quadro fecundo dos
estudos culturais e passa a entendê-lo como uma prática social pertencente a
um complexo multimidiático que se desdobra para além de seu intradiscurso.

Essas asserções dos estudos culturais são fundamentais para a própria


guinada dos estudos de cinema e história: Nos anos 80, há uma ruptura
teórico-metodológica contextualista promovida pelos culturalistas anglo-
americanos, ligados ao Center for Contemporary Cultural Studies (CCCS) da
Universidade de Birmingham, especialmente, na figura de Stuart Hall, que foi
apropriada por outros teóricos que não estavam inseridos nos estudos
culturais, como Judith Mayne, Janet Staiger, Robert Stam e bell hooks. Neste
viés contextualista, o foco se volta às audiências, mapeando ideais, contextos
discursivos, econômicos, sociais e regulatórios. Seu uso é estratégico para
fomentar estudos sobre produções periféricas, marginalizadas frente ao cânone
cinematográfico.

Para Fernando Mascarello (2004), um dos primeiros pesquisadores a se


voltar a discussão contextualista no país, os estudos de cinema têm se voltado
aos avanços contextualistas ingleses, se dividindo entre cinco áreas principais:
1. A teorização feminista; 2. A da política de localização; 3. Os estudos da
intertextualidade contextual; 4. Os estudos históricos de recepção; 5. A
pesquisa etnográfica. O caminho teórico que nos anos 1970 - justamente
quando emergem as Pornochanchadas -, se guiava pela psicanalização da
situação cinematográfica passa a ser revisitado graças à preocupação com a
espectatorialidade, a influência do modelo enconding-decoding de Stuart Hall
(2016) e a ascensão, no campo linguístico e literário, das teorias de respostas
de leitores. Desta forma, passa-se a priorizar as condições midiáticas e de
recepção, reconhecendo que os estudos culturalistas contextualizantes
24

desempenhavam um papel promissor e contraposto ao projeto modernista-


político da screentheory. 3

Sem necessariamente anular a função textualista da obra


cinematográfica, a teorização feminista do cinema (1) mostrou que era possível
alinhar tal preocupação com a de compreender os posicionamentos subjetivos
da audiência e das produções. Utilizando fortemente a semiótica, autoras como
Molly Haskel (1974), Laura Mulvey (1975), E. Ann Kaplan (1983) detiveram
destaque ao trabalhar a questão das representações de mulheres e estas
enquanto espectadoras e trabalhadoras do audiovisual produzindo narrativas
contra-hegemônicas e hegemônicas. A política de localização (2) ainda que
bastante textualista, se consolida teoricamente com formulações críticas às
produções dominantes e como estas são aprendidas socialmente. Se consagra
nos campos do feminismo negro e pós-colonial, com os trabalhos de bell hooks
(Black Looks, 1992), Ella Shohat (Notes on the post-Colonial, 1997) e Chinua
Achebe (O Mundo se Despedaça, 2009), além do já supracitado Stuart Hall
(Cultura e Representação, 2016).

No caso das análises intertextuais (3), estas se referem àquilo que


emerge em torno dos filmes e agenciam, de certa maneira, a sua recepção -
seja a crítica, o marketing, o fenômeno do star system 4, etc. Já a
intertextualidade é aqui categorizada pela conceituação de Julia Kristeva (La
révolution du langage poétique, 1974), cunhada em 1967, para que se
imaginasse o texto como um ‘mosaico de citações’ que absorve e transforma
outros; Robert Stam (Introdução à teoria do cinema, 2003) e Covaleski
(Cinema, publicidade, interfaces, 2009) utilizam tal perspectiva em seus
escritos. A abordagem etnográfica (5), que desponta ao final dos anos 80,
considera os espectadores como figura ativa frente aos textos fílmicos,

3 O “problema da screentheory era que o tema das audiências reais era ou descartado como

‘empiricista’, ou adiado indefinidamente” (GRISPRUD, 2000, p. 207), o que se torna mais


distante quando, nos anos 70, os estudos culturalistas sobre a televisão unem a leitura textual
aos estudos de audiência.
4 Este termo é utilizado para figurar a exploração de atrizes e atores de forma comercial,

visando atingir e cativar o público numa lógica de consumo industrial onde tais ‘astros’ passam
a ser encarados como mercadorias ou adquirem um papel mitológico. Surgiu na década de 10
do século passado e continua atuante. Cf. MORIN, E. As estrelas de cinema. Lisboa: Livros
Horizonte, 1980.
25

envolvendo teorias e métodos semiológicos e psicanalíticos, como foi


desenvolvida por Valerie Walkerdine (Progressive Pedagogy and Political
Struggle, 1986) e Jackie Stacey (Off-Centre: Feminism and Cultural Studies,
1991).

Judith Mayne (Cinema and Spectatorship, 1993) e Janet Staiger


(Perverse spectators, 2000) são historiadoras interligadas aos estudos sobre o
cinema, também aos estudos feministas, e suas contribuições foram seminais
para ao estabelecimento de uma história social do cinema que traça diálogo
com as questões de gênero e suas intersecções. Nesse campo de
experimentação compreendido como estudos do contexto histórico do cinema,
trabalhado por ambas por meio de análises feministas interseccionais,
observamos a junção de outras formas de pensar acervo e documentação
histórica a partir da preservação de experiências de recepção, acompanhando
o desenrolar de determinado filme, gênero ou escola.

Esta análise contextualista histórica (4) é a que nos enveredamos aqui.


Esta supõe que não nos prendemos ao texto, unicamente, posto que várias
interpretações possam ser realizadas ao nos ater às configurações sociais,
políticas e econômicas sobre as quais os filmes emergem. Ainda que Judith
Mayne (1993) parta do cinema clássico Hollywoodiano, são os métodos
empreendidos que nos fazem, neste trabalho, traçar pontes. Mesmo guiados
por tais estudos, nossos objetos (a pornochanchada e a sua crítica) são
pensados a partir de suas especificidades localizadas.

O uso de documentos de arquivo que registram estas experiências de


recepção de outras épocas é imprescindível aos estudos sobre o audiovisual.
Segundo Regina Gomes (2014, p. 192) em seu trabalho sobre o movimento
cinemanovista no Brasil, os estudos sobre espectatorialidade-contexto,

Lançando mão de diversos tipos de documentos, consegue imprimir


força à investigação que se ampara em evidências de marcas
receptivas. São críticas, textos jornalísticos variados, revistas
especializadas, boletins, cartas ao editor e até colunas de fofocas,
considerados como fontes e vestígios de um lugar de experiência de
recepção.
26

Em Cinema and Spectatorship (1993), Judith Mayne classifica os


modelos históricos nos estudos sobre audiência. Para ela, Bordwell, através de
seu modelo cognitivo, propõe bases experimentais e sofisticadas para o
cinema ao preconizar que se afaste a ideia de que se possa dar conta de
múltiplos fenômenos deste por meio de uma teoria unificante; e, que, além
disso, as pesquisas devem se concentrar em firmar um objetivo específico e
delimitado. A historiadora acredita que ainda há uma dificuldade da teoria
cinematográfica em distinguir uma audiência imaginada de uma audiência real,
algo que é ignorado ou tratado de forma secundária nestes estudos.

De acordo com Bordwell, espectar é uma atividade empreendida por


uma vasta gama de indivíduos, talvez, mas unidos por sua
capacidade de percepção ativa. O 'espectador', tal como definido pela
teoria do aparato [cinematográfico], é o ideal de um espectador de
filmes cinematográficos, um horizonte - de fato, como Bordwell diz,
uma posição - e não uma pessoa real. Eu já sugeri que apesar da
insistência dos teóricos do cinema de que o 'sujeito' do cinema não é
o mesmo que o 'espectador', alguma relação entre os dois
supostamente incomensuráveis, no entanto, existe (MAYNE, 1993, p.
55-56, tradução nossa). 5

Mayne recorre à Teresa de Lauretis e sua leitura teórica sobre a


recepção que concebe como processos imbricados de percepção e
significação, para além do cognitivismo alicerçar-se noutro processo: o de uma
"semiose (expectativas codificadas, padrões de resposta, suposições,
inferências, previsões e, eu acrescentaria, fantasia) que está em ação na
percepção sensorial, inscrito no corpo - o corpo humano e o corpo do filme".
(de LAURETIS, 1984, p.56, apud MAYNE, 1993, p.57, tradução nossa). 6

Os estudos culturais desafiaram noções abstratas de recepção que eram


comumente utilizadas. Esse tensionamento é benéfico ao ponto que
descentraliza teorias/abordagens analíticas que colocam os efeitos e domínios

5 “In Bordwell’s account, spectating is an activity undertaken by individuals of wide range,

perhaps, but united by their capacity for active perception. The “spectator” as defined in
apparatus theory is the ideal spectator of motion pictures, a horizon—indeed, as Bordwellsays,
a position—and not a real person. I have already suggested that despite the insistence of film
theorists that the “subject” of the cinema is not the same as the “viewer,” some relationship
between the two supposedly incommensurate term nonetheless exists”.
6 “(...) in turn semiosis (coded expectations, patterns of response, assumptions, inferences,

predictions, and, I would add, fantasy) isatwork in sensory perception, inscribed in the body—
the human body and film body”.
27

do aparato cinematográfico ao redor de um indivíduo branco, masculino,


heterossexual e ocidental; o que acabava por dar a tal normativa uma
estabilidade que não deveria ter e marginalizava outros estudos (MAYNE,
1993).

Então, a retomada dos estudos sobre o cinema numa óptica histórica


busca examinar a espectatorialidade como um complexo e até contraditório
fenômeno que perpassa, para Mayne (1993), quatro instâncias que debatemos
abaixo.

Em primeiro lugar, os estudos de Kristeva, são utilizados; Mayne (1993,


p. 64) se aproxima de seu ‘mosaico de citações’ para propor que não é apenas
a sedução do que é colocado na tela que atrai as pessoas ao cinema, sendo,
sobretudo, um vasto leque de instrumentos textuais e visuais utilizados para tal
feito, efetivando uma relação intertextual. Rememorando as décadas de 1940 e
1950 do cinema norte-americano, a autora explica a importante função que as
revistas desempenharam em despertar o consumo, veiculando imagens de
artistas e diretores, entre capas e chamadas, comentários sobre as trilhas
sonoras ou outros destaques que acabam impactando a leitura sociocultural.
Entre as colunas sociais daquelas que considerava serem revistas femininas,
se pregava aproximações e distanciamentos às obras fílmicas, pautando estilo
de vida/comportamento; nas revistas voltadas à discussão de arte/cinema se
alçava os fãs de com publicações e editoriais específicos para esse público.

Da mesma forma, a imprensa popular - especialmente, os jornais - em


diferentes plataformas serviram à propagação cinematográfica, com especiais
e colunas de críticos 7; em adicional, as publicações locais falavam sobre seu
próprio circuito e produção, trazendo artigos sobre a esfera nacional e

7 As passagens dos críticos e cineastas pelos jornais em Pernambuco, por exemplo, podem
ser observadas nas dissertações de Luiz Joaquim da Silva Jr. sobre as críticas
cinematográficas na Retomada (2004) e o de Rodrigo Carreiro sobre a crítica de cinema, o
consumo e a cultura pop na internet (2003), ambos da Universidade Federal de Pernambuco.
Cf: SILVA Jr, L.; Teixeira, C. Cinema brasileiro nos jornais: uma análise da crítica
cinematográfica na Retomada. 2004. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação
em Comunicação, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2004; CARREIRO,
Rodrigo; PRYSTHON, Angela. O gosto dos outros: consumo, cultura pop e internet na crítica
de cinema de Pernambuco. 2003. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em
Comunicação, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2003.
28

internacional que invadia as programações semanalmente. O merchandising,


desde o final do séc. XIX fora utilizado pelos irmãos Lumière e demais
realizadores: eram banners, panfletos, e às vezes um piano mecânico que
atraia o transeunte na rua ao filme em cartaz. Com o avanço da indústria
cinematográfica, tais usos ficaram mais sofisticados e as agências de
publicidade passaram a aperfeiçoar estratégias de divulgação com seus
‘agentes de imprensa’ e, logo, estratégias artísticas. As plataformas também se
refinaram e ao longo de todo século XX as campanhas se descentralizaram
espacialmente.

Em seguida, são as exibições cinematográficas que são colocadas em


foco por Mayne (1993); no historicizar da espectatorialidade é a ligação com os
locais de exibição que são priorizadas em boa parte das pesquisas produzidas.
Estes contextos expositivos estão presentes tanto nos estudos de história
social, quanto de antropologia urbana – estes últimos avançam sobre as
dinâmicas urbanas, as áreas de patrimônio e museu, utilizam métodos
etnográficos, e/ou caracterizam o cinema como um horizonte imaginativo pelo
qual é possível que se vivencie esferas de uma realidade. No primeiro caso,
podem ser as esferas econômicas, tecnológicas, sociais e estéticas levadas em
consideração – dialogando diretamente com o público, percebe os “padrões da
vida cotidiana” e experiências daqueles que outrora estiveram marginalizados
pela historiografia.

Uma terceira categoria de análise seria o cinema como uma esfera


pública particular, ou melhor, um ambiente de sociabilidades. Isso se dá à
compreensão de que os espectadores se inscrevem num processo de
aculturação de ideais sociais ou de reafirmar sua identidade nesse espaço,
unindo rituais sociais e fantasias individuais compartilhadas pela prática da ida
ao cinema. Em Mayne (1993) vemos como grupos sociais específicos se veem
partícipes da atividade cinematográfica reafirmando um senso de comunidade
ali, como foram grupos étnico-raciais, em especial mulheres e pessoas
29

LGBTQIA+ 8 nos EUA do início do séc. XX. No Brasil, houve semelhanças a


esse processo, sendo observadas pelas perseguições às cinéfilas melindrosas
em Recife (NASCIMENTO A.; MELO , 2014), assim como pelas espectadoras
que movimentavam o circuito cinematográfico em Belém (CARNEIRO, 2013) e
a coluna de Ironides Rodrigues, militante do movimento negro, advogado,
tradutor, dramaturgo e crítico de cinema no periódico A Marcha (PREDEBON,
2019). Estas experiências se inscreviam num outro horizonte de
espectatorialidade.

Esses lugares de convívio eram alternativos no sentido de oferecer um


espaço que não fosse repressivo a tais grupos, onde pudessem desfrutar do
cinema, fortalecer alianças e estreitar laços entre os seus, criando um sentido
de união – algo que se remodela a partir do momento em que tal ambiente se
populariza enquanto artifício de entretenimento e as diferenças entre as esferas
públicas e privadas se acirram. Contudo, o mesmo movimento nos fala sobre
questões de territorialidade e adaptação das populações frente ao advento
cinematográfico.

No quarto processo de modelos históricos está a análise da recepção:


unindo os estudos contextualistas cinematográficos e inspirados pela crítica
literária contemporânea, se delineiam os “horizontes de espectatorialidade” de
Mayne (1993). O propósito desse método é analisar diversos textos em torno
de uma obra e examinar como estes moldam e determinam, até certo ponto,
uma gama de significados; a análise textual, que entrou em crise nos anos 70,
é reformulada e se intersecciona a tal procedimento metodológico ao perceber
as formas de endereçamento que são colocadas em registros textuais
diferentes, indo para além do corpus fílmico.

A abordagem permite apreender de forma sócio-histórica as interações


existentes entre o espaço do cinema, os filmes, as instituições sociais e, claro,
o público.

8 Termo em inglês utilizado para designar a comunidade de lésbicas, gays, bissexuais,


transgêneros e pessoas queer, além de outras variações de dissidência sexual/gênero inclusas
no grupo.
30

Um bordão comum nos estudos históricos de espectatorialidade é


que a teoria cinematográfica dos anos 70 sacrificou um conhecimento
do social para o psíquico. Na verdade, um dos problemas com os
modelos históricos de espectadores é um dualismo persistente. As
teorias do sujeito são assumidas como ‘psicanalíticas’, e não ‘social’,
equacionando assim implicitamente o ‘social’ com o sociológico, que
não é a mesma coisa. Ao mesmo tempo, é claro, aqueles mesmos
teóricos do assunto geralmente ignoram as tentativas de dar conta da
constituição histórica do filme, o que só perpetua o dualismo. Para
colocar em termos simples – e reconhecidamente dualistas –, a
questão que ressalta o impulso para a historicização do espectador é
se essas teorias da instituição cinematográfica podem ter alguma
compatibilidade com estudos específicos e localizados do espectador.
E sob esta questão está outra, que tem preocupado desde o início os
estudos cinematográficos – se e como a psicanálise pode funcionar
em relação às determinações ideológicas (para usar a terminologia
dos anos 70) ou culturais (para usar a terminologia dos anos 80).
(MAYNE, 1993, p. 68, tradução nossa). 9

Janet Staiger é outra historiadora que dedicou grande parte de suas


obras aos estudos da espectatorialidade numa construção histórica, estando
presentes nos estudos de Mayne. Um ponto importante levantado pelas
autoras é a observação de que modos de endereçamento e de recepção são
associados aos ideais de bom e mau gosto, mutáveis historicamente, como a
divisão entre filmes cultos e populares. Essa separação, no entanto, não define
que indivíduos de determinada etnia, raça, classe, gênero e orientação sexual
são construídos para aderir integralmente o modo de recepção que alguns
teóricos os designaram. Entretanto, o reconhecimento das diferenças nos
auxilia a compreender diante das fontes históricas as enunciações e as
interlocuções postas em diferentes meios, já que no cinema esta pode dar o
tom a recepção dos filmes.

9 “A common refrain in historical studies of spectatorship is that 1970s film theory sacrificed
acknowledgement of the social for the psychic. Indeed, one of the problems with historical
models of spectatorship is a persistent dualism. Theories of the subject are assumed to be
‘psychoanalytic’, not ‘social’, thereby implicitly equating the ‘social’ with the sociological, which
is not the same thing. At the same time, of course, thos every theorists of the subject have
usually ignored attempts to account for the historical constitution of the film audience, which
only perpetuates the dualism. Toputthis in the baldest—and admittedly just as dualistic—terms,
the question which underscores the drive toward historicizing spectatorship is whether those
theories of the cinematic institution can have any compatibility whatsoever with specific, local
studies of spectatorship. And beneath that question is another, which has preoccupied film
studies from the outset — whether and how psychoanalysis can function in relation to
ideological (to use the terminology of the 1970s) or cultural (to use the terminology of the
1980s) determinations”.
31

1.2 Fronteiras entre práticas sexuais e a história do cinema

Tomando de empréstimo a leitura historiográfica contextualista que


preza pelos encontros na experiência da recepção, queremos focar no
horizonte da análise de recepção preconizada por Judith Mayne (1993). Se,
como falamos anteriormente, a relação entre o cinema e o público está
interligada a arranjos historicamente localizados, como podemos perceber a
relação estabelecida com os filmes que utilizam as práticas sexuais?
Desculpamos-nos pelas generalizações que se seguirão, mas elas servem
para localizar algumas interações entre as práticas sexuais e destaques
historiográficos sobre o cinema no eixo Rio de Janeiro-São Paulo (onde se
encontra a maior parte dos estudos da área) e a participação pernambucana.
Falar da prática sexual no cinema é debater dois valores colocados
como antagônicos – pornografia e erotismo –, sendo estes semânticos e
ideológicos que dão sentido ao que se define serem estes. Pornografia, palavra
originária do grego, sobre os ‘escritos sobre prostitutas’ se volta a
“obscenidades com finalidade comercial e sem qualquer pretensão científica ou
artística”, enquanto o erotismo, derivado etimológico de ‘eroticus’ e vinculado
ao deus do amor, Eros, se relaciona ao “que é próprio do amor, da paixão
insistente, do universo sensorial e da sensualidade”, escreve Rodrigo Gerace
(2015, p. 41) nas páginas iniciais de Cinema Explícito.

Outras definições trazem sentidos próximos, como o clássico livro O que


é a pornografia? das professoras Eliane Robert Morais e Sandra Lapeiz. Ao
tratar tais categorias, as autoras afirmam que o erotismo se interliga

a sensualidade e a sedução, enquanto a pornografia é


entendida como depravação, perversão e obscenidade. Ao
erótico, caberia a sugestão e a idealização, enquanto o
pornográfico é claramente explícito, escancarado,
despudorado. (MORAES; LAPEIZ, 1985, p. 56)

Formando-se enquanto adversários nestas definições, o erotismo e a


pornografia se legitimariam de um modo assimétrico, na rejeição de um ao
outro. O elemento constituinte do erótico – o ideal de sedução, de algo inibido e
misterioso, velado – é posto como superior ao pornográfico que, eticamente e
32

esteticamente, entrega uma mensagem direta, unívoca e em contrapartida


nada esconde.

Tal construção assimétrica, para Dominique Maingueneau (2010), é


baseada na polarização do corpo popularizada por Platão - a subdivisão do ser
humano numa parte animal, outra intermediária e uma espiritual elevada
(ventre/peito/cabeça, boca/nariz/olhos). Bastante comum em sociedades
ocidentais, principalmente indo-européias, tal classificação serve para criar um
juízo de valor, traçando no campo filosófico, das mentalidades e da psique, o
que se é civilizado (o erotismo) e rudimentar (a pornografia). Segundo ele,

(...) o erotismo é um modo de representação da sexualidade


compatível, dentro de certos limites, com os valores reivindicados
pela sociedade e dado que ele constitui uma espécie de solução de
compromisso entre a repressão das pulsões imposta pelo vínculo
social e sua livre expressão. Esse já não é o caso da pornografia, que
não mascara suas tendências sexuais agressivas. A desvalorização
do pornográfico em proveito do erótico recebe, então, uma acolhida
mais que favorável. Mas quando analisamos seus respectivos
funcionamentos, vemos que vale mais considerar cada qual em sua
ordem própria, em vez de enxergar em um uma grosseira degradação
do outro. Em toda sociedade, vemos que coexistem práticas de tipo
pornográfico e de tipo erótico e devemos evitar medir umas pela
medida das outras. (MAINGUENEAU, 2010, p. 32).

Apesar das conceituações entre o campo do erótico e do pornográfico,


entendemos que estes possuem como ponto de semelhança o debate em torno
do sexo – nele reside as expressões pelo desejo, às transgressões, as
normativas sociais de comportamento, experiências de/em gênero, mas
também a violência, entre outras questões pensadas através da sexualidade
enquanto dispositivo. Concordamos que são fronteiras, por vezes, imprecisas,
constituindo historicamente figuras do (in/)tolerável em disputas que se
materializam no corpo das pessoas e da própria cinematografia, como nos diz
Mayne (1993).

A prática sexual e os seus temas correlatos, segundo o filósofo Michel


Foucault (2014, p. 38), têm sido nos últimos três séculos alvo dos discursos
hegemônicos, modernos e ocidentais. Ora, vemos que por meio de diferentes
plataformas se volta à “(...) dele falar, para fazê-lo falar, para obter que fale de
33

si mesmo, para escutar, registrar, transcrever e redistribuir o que dele se diz”.


Construindo, assim, um saber sobre o sexo.

É sabido que desde o início do que entendemos hoje como cinema – em


termos hegemônicos/clássicos -, os corpos sempre ocuparam posições
importantes de contemplação. Tais corpos são atravessados por inúmeras
questões dentro e fora dos discursos hegemônicos, são representados e se
apresentam: corporificam inúmeras relações em sua complexidade material,
social e cultural. O aparato cinematográfico se fundamentou no poderoso
registro memorialístico da fotografia que agora com movimentos aparenta ser
“‘uma mensagem sem código’, uma duplicação não mediatizada do mundo
real” adverte a cineasta e historiadora Annette Kuhn (1991, p. 99), utilizada
para alimentar a verossimilhança e se aproximar da audiência.

As imagens em/de movimento presente nos estudos fotográficos sobre o


nu de Eadweard Muybridge, nas séries Photography (1877-1885), The Human
Figure in Motion (1884-1887), Movements Females, Dancing Fancy e Fencing
(1887); ou nos curtas-metragens dos burlescos irmãos Lumière ou Pathé, e nos
realismos de Thomas Edison, Edwin Porter, Méliès, Lois Weber, Alice Guy-
Blaché, Germaine Dulac, etc, no período chamado do primeiro cinema, entre o
decênio final do séc. XIX e início da década seguinte registram figuras e
práticas cotidianas que também envolviam a sedução (GERACE, 2015).

No final do séc. XIX, os avanços mecânicos e tecnológicos da captação


e circulação de imagens. O primeiro cinema, entre 1895-1908, vivencia um
processo de mudanças, saindo do artesanal para o industrial; no Brasil, os
aparelhos chegam a partir de 1896, pouco tempo depois da primeira exibição
dos irmãos Lumiére em Paris. (SILVA F., 2018). Nesse primeiro momento, se
observa paralelamente o desenvolver da psicanálise, o reforço de ditas
verdades científicas e as tensões sociopolíticas que iriam eclodir na fortificação
imperialista/colonialista, assim como no aumento das desigualdades sociais.

Enquanto isso, nas películas, uma gama de imagens das práticas


sexuais circula por meio dos cinematógrafos em Paris, Nova York, Brasil,
Argentina, entre outros. Os stag films ou dirty movies, filmes curtos, silenciosos
34

e em preto-e-branco, atraíam a atenção dos espectadores com narrativas


centradas em cenas de sexo explícitas, sendo considerados ancestrais dos
filmes de sexo explícito contemporâneos, como afirma Nuno Cesar Abreu
(1996, p. 44):

Na primeira década do século XX, quando o cinema começava a


estruturar sua linguagem e penetrar na narrativa ficcional e a ciência
espalhava seu discurso pelas artes, as fitas passaram a ficar ‘mais
fortes’, tratando de assuntos como drogas, doenças venéreas,
educação sexual, escravas brancas etc. (...) Em 1913, Traffic in
Souls, um filme que tratava do tráfico de escravas brancas (um
eufemismo para prostituição), faturou 250 mil de dólares – uma
fortuna na época – para a Universal, tornando-se o primeiro grande
sucesso popular do estúdio. De certo modo, algo pornográfico, no
sentido de transgressivo, já estava na tela, mesmo sob a capa da
ciência e da moral.

No começo do séc. XX muitos filmes pornográficos eram produzidos em


Buenos Aires, na Argentina, e exportados para os Estados Unidos e países
como a França e a Inglaterra (GERACE, 2015). A França que, inclusive, ao
final do séc. XIX era a maior produtora de materiais literários pornográficos. As
exibições aos espectadores-voyeur dos materiais explícitos - no contexto da
elite nas décadas de 1910 e 20 - se davam em bordéis de luxo,
estabelecimentos de jogos de azar e casas com peepshow (similar ao
striptease) em ambos o norte e sul global.

No território nacional, o Rio de Janeiro possui alguns registros dessas


distribuições que foram apresentadas por jornalistas em periódicos dos anos
1920 e, segundo Gerace (2015, p. 82), havia produções nacionais e
internacionais. Ele destaca as companhias Pathé (França), Nordisk
(Dinamarca), Cines (Itália), Bioskop (Alemanha), Edison (Estados Unidos) e
Biograph (Estados Unidos) que circulavam nas páginas e circuitos nacionais.
Um exemplo é as exibições realizadas no Cine-theatro Pavilhão Internacional,
casa do empresário ítalo-brasileiro Paschoal Segreto, no Rio de Janeiro. Em
seu trabalho, o cineasta Alex Viany (1987, p. 37), sintetiza:

Primeiro vieram os filmes experimentais de Edison, Lumière e outros.


Logo em seguida, as pesquisas mais elaboradas de Méliès, Zecca,
Edwin Porter etc. Depois as epopéias italianas de Ambrósio, Pastrone
e Guazzoni. Imediatamente após, os dramas escandinavos de Asta
35

Nielsen e Valdemar Psilander. Em 1915, num concurso de


popularidade efetuado no Brasil, os quatro primeiros postos foram
ocupados pela italiana Francesca Bertini, pelos dinamarqueses
Nielsen e Psilander e pelo norte-americano Maurice Costello. Daí por
diante, porém, garantidos pelos bancos, que pouco a pouco haviam
tomado o controle dos estúdios, os filmes norte-americanos
começaram a entrar com mais força no nosso mercado, eliminando
gradativamente, através de uma produção e uma publicidade
maciças, os demais concorrentes.

Em nossa pesquisa, localizamos algumas exibições como esta no


estado de Pernambuco. Numa edição de domingo do jornal Diário de
Pernambuco (DP), datada de 17 de janeiro de 1915, a coluna VARIAS trazia
um artigo (que se auto-intitula uma denúncia) sobre o cinematógrafo
pornográfico que “envergonharia Sodoma” e estava na área central do Recife
instalado. Ainda que sem assinatura, o texto demonstra a posição do periódico
nessa discussão e o apelo público à censura e controle deste espaço. Nos
próximos capítulos retomaremos o Diário de Pernambuco e sua construção,
mas por se tratar de um importante marco para tal trajetória desse gênero no
estado e no próprio DP, transcrevemos abaixo o trecho para situá-lo:

Não sabemos se com licença das autoridades, ou sem ella, está ha


dias funccionando nesta cidade, á rua da Detenção, uma verdadeira
escola de immoralidade. Trata-se d'um 'cinema livre' onde se exibem
scenas da mais baixa e crua obscenidade, espectaculos os mais
degradantes de depravação e deboche. Ha ainda a considerar a
escandalosa irreverencia com que, nesses espectaculos cuja exibição
envergonharia Sodoma, são calumniados e affrontados torpemente
institutos e corporações absolutamente dignos de respeito. O
ingresso é alli, por enquanto, habilmente reservado aos adultos, mas
não tardará como em outros lugares tem acontecido que esse
perigoso fôco de corrupção venha a attrahir adolescentes, senão
creanças, porque não ha de ser de um antro d'esses se deva esperar
o respeito a certos escrúpulos. E' positivamente incrível que dentro
d'uma capital policiada se permitta funcionar as escancaras uma tão
ignóbil armadilha á incauta curiosidade da juventude, constituindo,
por outro ldao, um vivo e permanente estímulo ao relaxamento dos
costumes, a alarmante indifferença que vêm encontrando, por parte
das sociedades modernas, as múltiplas formas de vicio. Aqui
deixamos o nosso protesto contra essa ignominia, na certesa que os
srs. Prefeito da Capital e Chefe de polícia, verificada a notória
36

realidade do facto, deliberarão de forma a que não tenhamos de


voltar a este ingrato assumpto, senão para lhes applaudir as
providencias immeditadas e radicaes que o decoro e a dignidade de
nossa terra estão a exigir imperiosamente. (VARIAS. Diário de
Pernambuco, Recife, 17/01/1915).

Essa censura oriunda do jornal, juntamente ao apelo à censura política


republicana, se intersecciona com a censura moral que, na virada do século
XIX ao XX, quando as ficções e fricções das práticas sexuais chegam ao
audiovisual e não ficam mais restritas aos livros ou públicos letrados e da elite,
acompanha e impacta mudanças socioculturais. Questiona-se, assim, o lugar
hegemônico dos sujeitos modernos (atravessadas por questões raciais,
econômicas, generificadas, impondo-se entre a heteronormatividade, a
cristandade e o imperialismo); o debate central neste trecho do DP são as
divisões binárias e opositoras entre os bons costumes, a sua defesa e a das
instituições sociais.

Esta co-dependência moral/social foi rememorada entre o pânico, as


cobranças e as promessas de aplausos ao desmonte do aparelho
cinematográfico e o seu público de pederastas, ou melhor, sodomitas, na
passagem supracitada. A Rua da Detenção levava tal nome justamente por sua
proximidade à Casa de Detenção do Recife (em funcionamento até os anos
1970, quando passa a ser a Casa da Cultura de Pernambuco) - a prisão sendo
assim mais um lugar de controle social, posto que até as suas redondezas
sejam marcadas pelos terrenos do ilícito.

Recife passava, também, pelo seu processo de modernização 10 e esta


mesma área central onde se encontrava a Casa de Detenção e o
Cinematógrafo assistia a higienização no eixo urbano. Registros como os
recuperados pelos historiadores Felipe Silva e Alcileide Cabral do Nascimento

10 A década de 1920 é costumeiramente retratada nos debates históricos recifenses e através

de alguns estudos conseguimos compreender a continuação de reformas/mudanças que se


iniciaram nas décadas anteriores tomando o debate da modernidade e do sexismo no espaço
urbano. Ver: REZENDE, Antonio Paulo (Des) encantos modernos: histórias da Cidade do
Recife na década de vinte. Recife: Fundarpe, 1997; Nascimento, Alcileide. O bonde do desejo:
o Movimento Feminista no Recife e o debate em torno do sexismo (1927-1931). Florianópolis:
Revista Estudos Feministas, vol. 21, núm. 1, 2013, pp. 41-57.
37

(2021) ainda no DP e noutros jornais da época, mostram, inclusive, que a


atividade cinematográfica (em termos de exibição) neste espaço já era antiga -
iniciou-se com o ator Lyra e o Kinetographo que trouxe da Europa em 1896.
Outras exibições foram documentadas no Teatro de Santa Isabel no mesmo
período por meio da sua ocupação por cinematógrafos itinerantes.

Ainda em Pernambuco, o Ciclo do Recife agitou as telas, entre 1923-


1931, através das produções da Aurora Filmes (1925) - fundada pelo ourives
Edson Chagas, o gravador Gentil Roiz e com apoio de Ary Severo (nome
adotado pelo estudante de engenharia Luís de França Rosa), instalando-se no
bairro de São José. Anteriormente esta era propriedade de J. Cambière e Ugo
Falangola sob o nome de Pernambuco Films.

O Ciclo é inovador e, ainda que com parcos recursos, produções como


Aitaré da Praia, Revezes e Filho Sem Mãe trazem conflitos sobre a reforma
agrária e as figuras dos cangaceiros nos seus enredos. Entretanto, o cinema
hollywoodiano continuava sendo a referência principal das tramas e, em 1931,
encerram-se as produções com a concorrência frente a estes mesmos filmes
que, agora, possuíam o diferencial de áudio sincrônico. Destarte, acabava-se a
Recifewood - para tomarmos de empréstimo o título dado pelo jornalista e
cineasta Alexandre Figuerôa (2000) à capital pernambucana que
experimentava sua própria versão de Hollywood.

Entre o final dos anos 1920 e durante 1930, o cinema enquanto indústria
toma maior corpo no Brasil com a Cinédia (Adhemar Gonzaga), a Brasil-Vita
Filmes (Carmem Santos) e a Sonofilmes (Wallace Downey); estes começam a
produzir lentamente cópias que, sob as imposições do governo Vargas,
exaltavam largamente as “belezas” brasileiras. Em comum, as produtoras
seguiam os modelos estadunidenses clássicos, tanto em narrativa quanto em
estética. O advento sonoro faz com que a popularidade do rádio chegasse às
salas de cinema - crescem os filmes musicais e as comédias; Acabaram-se os
otários (1929) de Luiz 'LuLu' de Barros é o primeiro a traçar tal percurso.

A alternativa de exibir filmes norte-americanos ou outros estrangeiros


desarticulou o estabelecimento da Indústria cinematográfica no Brasil, já que o
38

número de filmes nacionais no circuito decrescia, juntamente com as bilheterias


(posto que não recebessem em dólares, como os primeiros) e os cinemas, que
desde o final dos anos 1920, precisavam se remodelar para atender as novas
tecnologias de projeção sonora: Vitaphone (som em discos) e Movietone (som
no filme).

Entre os anos 1930-40 do séc. XX, inúmeras medidas foram colocadas


para incentivar e controlar o cinema nacional – podemos situar a obrigação de
exibidores em projetar curtas-metragens, a criação do Instituto Nacional de
Cinema Educativo (INCE) e o Departamento de Imprensa e Propaganda
também responsáveis por produzir as propagandas do Estado e filmes
pedagógicos à população marcados pelo nacionalismo. Cresceram sob tal
cenário os documentários, cinejornais e curta- metragens.

Também neste período, aumentam as propostas de capital privado e


público no investimento de produções brasileiras. A partir daí, surgem a Vera
Cruz (1949-1958), a Atlântida Cinematográfica (1941-1962), a Maristela (1940-
1950) e a Multifilmes (1952-1955) no contexto sudestino. Em Pernambuco,
como nos diz o historiador Arthur G. Lira do Nascimento (2015, p. 1) é criada a
Meridional Filmes, que, não apenas passa a ocupar o espaço deixado pelo
Ciclo, mas o preenche ficando “bem próximo do projeto político e cultural do
Estado Novo, tratando-se assim de um agente social e político muito
importante para a historiografia estadonovista”.

Sob o comando do cineasta Ruy Guerra, entre Bahia e Pernambuco, a


Meridional filmou em torno de 50 filmes de propaganda política (1935-1945).
Tratava-se também da aliança empresarial com o governo de Pernambuco -
Guerra já havia visitado a cidade antes de aqui instalar o seu laboratório,
encontrando o então prefeito da capital, Novaes Filho, em 1939. Junto ao
amazonense recém-chegado, Firmo Neto, e o pernambucano Newton Paiva,
foram gravados A instrução no Recife, assim como Moinho do Recife, A
Grande Exposição Nacional e a Inauguração do Pavilhão dos Estados do Sul.
Dentre outros, destacamos Coelho Sai (1942), o “(...) único ficcional produzido
39

pela Meridional e o primeiro longa-metragem sonoro produzido em


Pernambuco.” (NASCIMENTO A., 2015, p. 3). 11

Destarte, em termos contextualistas, percebemos que a guerra fria será


o background para disputas ainda mais acirradas em torno do cinema
brasileiro. Entre os chamados anos democráticos (1945-1964), a problemática
da identidade brasileira segue as tensões políticas entre a esquerda e a direita,
acompanhando a ascensão de Juscelino Kubitscheck e o seu viés
desenvolvimentista, como também o golpe que culminaria na ditadura de
segurança nacional brasileira.

No final dos anos 1930 até meados de 1950, com origem carioca e
paulista, surgiram as chanchadas – gênero cinematográfico que engloba
versões paródicas, comédias e musicais. Ocupando largamente as salas de
cinema brasileiras em confluência com as movimentações na música, nas
rádios e no teatro. Mazzaropi, Oscarito, Grande Otelo, Carmem Miranda e
Dercy Gonçalves foram figuras presentes nessas produções que apostam em
arquétipos da sociedade brasileira, na promoção de canções carnavalescas e
aproximações circenses.

Nos estudos historiográficos de Ellen Maziero (2011, p. 60) sobre a


chanchada, a autora destaca que:

Os sambas e as marchas apresentadas em forma de números


musicais nos filmes constituíam-se dos grandes sucessos
carnavalescos do ano, exibidos, na maioria das vezes, sem uma
relação direta com a trama. O rádio e as chanchadas tiveram como
ponto em comum o caráter popular de suas linguagens, destinado a
alcançar um público cada vez maior. De certa forma, o cinema
acabou transformando-se num suporte da produção radiofônica ao
divulgar, por intermédio dos filmes, os sucessos e artistas da época.
A relação entre ambos revelou-se simbiótica, pois, se por um lado, o
cinema favoreceu o rádio, por outro, este participou diretamente do
desenvolvimento e apogeu da chanchada. Nos primeiros musicais
brasileiros, é interessante notar a influência do rádio no próprio título
dos filmes, como é o caso de ‘Alô, Alô, Brasil’ e ‘Alô, Alô Carnaval’ – a

11Recomendamos a leitura da dissertação de Arthur Lira que detalha a rica trajetória da


Meridional e o cinema de/em Pernambuco nos anos 1935-1945. Cf. NASCIMENTO, Arthur
Gustavo Lira do. O Estado sob as lentes: a cinematografia em Pernambuco durante o Estado
Novo (1937-1945). 2015. Dissertação de Mestrado. Programa de pós-graduação em
História. Universidade Federal de Pernambuco, 2015.
40

palavra ‘alô’ era uma saudação típica dos locutores de rádio quando
iniciavam as suas transmissões.

Em Brazilian National Cinema (2007), Lisa Shaw e Stephanie Dennison


compreendem a chanchada 12 como um gênero verdadeiramente brasileiro. Na
produção de quase 300 filmes que se popularizaram em termos de exibição
pelo Brasil estão marcadas as representações de malandros, palhaços e
caipiras (com ênfase em figuras do nordeste e do centro-oeste do país).

Mesmo sob as chanchadas, obras fílmicas mais sensuais continuavam a


ocupar um lugar marginalizado – o filme Anjo do Lodo (Luiz de Barros, 1951)
foi extremamente criticado e até perseguido pelo então vereador Jânio
Quadros, que juntamente a passeatas de ligas católicas pedia o boicote a este.
Contudo, a obra obteve grande sucesso de público graças à atuação da atriz e
vedete Virgínia Lane, que interpreta uma prostituta no longa-metragem e as
angulações da câmera em determinados momentos da obra faz com que se
acreditasse que ela estivesse nua. À época, o filme foi censurado e a cena
retirada. Entretanto, tornou-se um dos maiores sucessos da Companhia
Cinédia, que viu o filme ser projetado quase dez vezes por dia.

Júlio César Lobo, em Cinema e Sociedade no Brasil (2015), traz


algumas perspectivas interessantes sobre a chanchada - entre elas, está a
inserção de Pernambuco nesse ciclo: a atriz carioca Nancy Wanderley
inaugura a “mais antiga caracterização de uma migrante nordestina no cinema
brasileiro” (LOBO, 2015, p. 181) no filme O petróleo é nosso (Watson Macedo,
1954). Ocupando um papel coadjuvante como prostituta e amante entre
malandros-gigolôs e damas, a personagem atribui a valentia à sua identidade
pernambucana; assim, sob os estereótipos já existentes e advindos da música
(baião-jingle), literatura, programas de humor (televisivos e radiofônicos) e
discursos sociopolíticos, crava mais uma representação do Nordeste nos anos
1950.

12 Utilizamos a definição de chanchada proposta por Gilmar Rocha (2011, p. 391) que se
intercala ao baixo corporal bakthiniano: “Herdeira do teatro de revista da Praça Tiradentes, a
chanchada – cujo significado etimológico remete à ideia de ‘porcaria’, ‘peça teatral ou filme de
valor duvidoso’, ‘pornografia’ – na verdade traduz uma visão de mundo carnavalesca, cômica,
burlesca, bufa.”
41

A figura da pernambucana valente, com sotaque e léxico re-imaginados


nos usos de termos como ‘sujeito baixo’, ‘enxerido’ e ‘poliça’ (polícia), marca
como a sexualidade/sexualização atribuída à sua personagem também integra
outras formas de se produzir uma identidade e um lugar de gênero. O ponto
alto do enredo perpassa descobrir através dos jornais ter sido enganada pelo
gigolô que fingia ser um geólogo francês instalado no Hotel Glória (Rio de
Janeiro) e pelo qual estava apaixonada; em estado de indignação, ela
proclama: “Indivíduo inescrupuloso. Vai me pagar. Ele vai ver quanto vale uma
pernambucana!” (LOBO, 2015, p. 187). Essa valoração seguirá atravessando a
trajetória de Wanderley nas chanchadas até 1961, posto que continuasse
interpretando outras personas nordestinas.

A política do governo JK, ainda que industrialista, relega a sobrevivência


da produção cinematográfica ao capital estrangeiro/internacional; logo, sem
apoio estatal, a produção se interliga a combinação nacionalista herdada de
Vargas e aos desejos do monopólio estrangeiro. Como observa o sociólogo
José Mário Ortiz Ramos (1983), a crítica dos profissionais de cinema no Brasil
aponta para o que consideram ser o esvaziamento da discussão política nos
filmes nacionais.

Entre 1955-60, no estado de São Paulo, observa-se a articulação das


Comissões de Cinema (posteriormente descentralizadas no país) por um
cinema brasileiro e independente com reivindicações de figuras como Alex
Viany e Nelson Pereira dos Santos. Esse ideal de independência crescente
partia de uma crítica à subordinação que o cinema nacional se encontrava
após a falência de grandes companhias cinematográficas nos anos 50 e a
chegada das redes televisivas no país.

Muitos dos trabalhadores de audiovisual do período que ficaram


desamparados pelas partidas, migraram para outras áreas e/ou se engajaram
nas demandas das Comissões e outras organizações, assim como fizeram
cine-clubistas, diretores, etc. A discussão sobre o cinema enquanto indústria,
contudo, parece figurar numa dualidade. Ortiz Ramos (1983, p. 23) divide:
42

Estes dois polos, o ‘nacionalista’ e o ‘industrialista-universalista’


(‘universalista’ ou ‘cosmopolista’, no sentido de absorver, sem críticas,
formas de produção e moldes artísticos estrangeiros), vão assumindo
contornos mais nítidos na virada da década, originando efeitos na
produção, articulando formas diferentes de posicionamento diante do
estado, sendo essencial a sua caracterização não somente para a
compreensão do Cinema Novo, como das ações dos órgãos
governamentais que surgirão. (...) a postura nacionalista procurará
escapar do processo que a plasmava com a visão
desenvolvimentista.

É importante percebermos as polaridades presentes na busca por uma


identidade nacional: esta é (ainda) um terreno de disputa de narrativas,
principalmente com o eixo sudestino do país. A chanchada enquanto gênero foi
tomada como inimiga/adversária de um cinema que se colocaria como
representante fiel do povo brasileiro; este seria realizado com apoio estatal e
com aqueles que compunham a Comissão Federal de Cinema (criada em
1956, mas movimentada a partir de São Paulo), que se tornaria, dois anos
depois, o Grupo de Estudos da Indústria Cinematográfica (GEIC) subordinado
ao Ministério da Educação de JK, em seguida passando ao Grupo Executivo da
Indústria Cinematográfica (GEICINE) em 1961; no Rio de Janeiro, destacamos
o surgimento da Comissão de Auxílio à Indústria Cinematográfica (CAIC),
criada em 1963, por Carlos Lacerda.

Porém, enquanto alguns cineastas desses grupos recebiam suporte às


produções de alto custo em níveis municipais/estaduais 13, não havia uma
homogeneidade político-ideológica entre os grupos de cineastas pró-
independência cinematográfica nacional. Seguia-se o projeto de uma cultura
cinematográfica nacional-popular. Talvez, possamos pensar que o maior ponto
de encontro foi justamente a tentativa de sobrepor o cinema tido como
despolitizado na gestação cinemanovista e a sua construção sobre as classes
populares. Lembremos que a figura nordestina, por exemplo, esteve sob a
captura de um brasil rural, presente no filme O cangaceiro (Lima Barreto,

13 Ramos (1983) elucida o financiamento de obras no contexto paulista através da Brasil Filmes

- ligada à Columbia Pictures - com o apoio do Banco do Estado que, entre financiamentos e
premiações, de 1956 até 1966, possibilitou obras de Nelson Pereira dos Santos, Roberto
Santos, Walter Hugo Khouri, Rubem Biáfora, dentre outros realizadores. As movimentações da
CAIC, no Rio de Janeiro, premiou Vidas Secas (Nelson Pereira, 1963) com 20 milhões de
cruzeiros e Garrincha, alegria do povo (Joaquim Pedro de Andrade, 1964) com 15 milhões,
valores superiores ao de realização; o CAIC também fomentou a produção de outros filmes.
43

1953), filmado pela Vera Cruz e que ganhou, no mesmo ano, o prêmio melhor
filme de aventura no Festival de Cannes. Tornou-se o primeiro filme brasileiro a
alçar tal prêmio.

O historiador Alberto da Silva (2016) discute, mais longamente, como as


vias esquerdas e revolucionárias (principalmente a elite) trouxeram ao cinema
figuras do rural como espaço privilegiado da cultura brasileira - o nordestino
(vivendo no campo ou migrando para a periferia das grandes cidades) passa a
ocupar diversas tramas. Em busca, ainda, de uma identidade brasileira, filmes
como São Paulo Sociedade Anônima (Luís Sérgio Person, 1965) reforçam as
dicotomias e assimetrias existentes, dessa vez nas áreas urbanas. Focando
nos aspectos da urbanização que, assim como a primeira tentativa de
homogeneização, acaba por diluir o papel da mesma elite que se pretende
moderna, mas segue conservadora e colonial.

Por outro lado, em termos de exibição de filmes pornôs, aconteciam as


sessões especiais em algumas salas de cinema espalhadas pelo país, sendo a
maior parte delas exclusivas para “cavalheiros” e que continuavam na
clandestinidade até a década de 1960 exibindo filmes de sexo explícito; sobre
estas, no contexto sudestino, há um curioso feedback negativo do público
quando se tratava de obras suecas: cenas mais quentes eram esperadas e se
estranhava a representação do ato sexual ali contidas, expõe Nuno César
Abreu (1996). “Os filmes [suecos] mostravam o desejo sexual inserido em
narrativas mórbidas, geralmente sem muitos tabus ou vergonhas. A
sexualidade era vista como uma força subversiva e necessária para a
existência humana” complementa Gerace (2015, p. 96) no mesmo sentido.

Anteriormente ao golpe militar de 1964, o país já assistia ao fazer


cinematográfico com propostas entrelaçadas à denúncia de desigualdades e
conflitos sociais. Os movimentos de resistência ganharam fôlego no início da
década fazendo surgir um projeto político-cultural que pretendia “desalienar” a
população através da produção cultural. No campo cinematográfico, as
chanchadas e a influência norte-americana eram responsabilizadas pela
44

pobreza intelectual brasileira, imprimindo uma visão causal, quase fatalista, aos
consumidores cinematográficos no período.

Todavia, como José Mario Ortiz Ramos (1983, p. 45) pontua ao retomar
as idéias cinemanovistas de Glauber Rocha, é preciso ter em consideração que
concomitantemente se pensava no cinema ‘independente’ “como uma forma
específica de industrialização cinematográfica” (com respaldo político e
econômico estatal), e no cinema ‘de autor’, “um ponto constante do cineasta e
marca registrada do Cinema Novo”. A influência cultural estrangeira, para
Glauber, deveria ser superada, assim como as obras oriundas dos grandes
estúdios:

Tudo é muito claro: o que se precisa é a união dos independentes


contra o truste americano – a primeira batalha foi interna, contra a
chanchada. A segunda é maior, é uma luta igual as outras da
indústria brasileira, e mais do que nunca, agora, este instrumento
fundamental no desenvolvimento cultural e no amadurecimento
político de um povo necessita da legenda: ‘o cinema é nosso’, como
no caso do petróleo. Eis porque, ao invés de co-produções, a
burguesia nacional precisa apoiar os independentes; o cinema é mais
do que a imprensa, a força da ideias novas do Brasil; as ideias de
independência econômica, política e cultural da exploração
imperialista. (RAMOS apud ROCHA, 1983, p. 46)

Glauber evoca a tendência a dois projetos políticos culturais que se


assistia nos anos 1960: 1. o nacionalista, imerso nas discussões contra
hegemônicas e politicamente comprometidas; e, 2 o universalista, o cinema
outro, que se popularizava acompanhando as tendências cosmopolitas e a
modernização. No pós-golpe, os universalistas conseguem aumentar a sua
projeção enquanto os cinemanovistas recriam as ideias nacionalistas diante da
nova configuração política (RAMOS, 1983, p. 49). Como veremos ao
desenrolar do texto, todas as pessoas que produziram cinema ou sobre estes
no contexto da ditadura irão sofrer diversas represálias – mas é importante
situar que a depender da classe, da raça, do gênero e da sua sexualidade, as
coerções, violações e violências, assim como a tônica das produções fílmicas
45

se remodelava, sofisticando o trauma cultural assistido nos regimes autoritários


aqui no Brasil e nos países que fazemos fronteira. 14

Em 1968, o general Costa e Silva decreta o Ato Institucional nº 5 (AI-5)


institucionalizando coerções que violavam direitos básicos individuais e
coletivos; no que concerne às produções culturais, foram criados mecanismos
de controle e fiscalização, assim como a sofisticação da censura já existente.
Lembremos que, desde que o golpe foi estabelecido, o cinema passou a ser
em esfera federal um dos maiores “problemas do governo” (RAMOS, 1983, p.
15).

Ao escrever para o acervo da plataforma virtual Memória do Cinema


Brasileiro, a curadora deste e artista Leonor Pinto (2007, p.7) afirma que

(...) durante a ditadura militar, o dispositivo da censura permitiu aos


militares, através da filtragem e da interdição de obras, modelar a
produção cultural. Os militares vendiam como verdade as versões
que cuidadosamente urdiam. Este processo afetou a formação de
gerações inteiras, intervindo dramaticamente sobre a produção
cultural do país e sobre a formação de nosso povo. A censura foi de
importância fundamental para manutenção e o fortalecimento do
regime ditatorial, uma vez que, para este regime, era de importância
estrutural destruir a identidade cultural do país.

Entre destruir, criar e recriar a dita identidade cultural brasileira


contemplamos as possibilidades do cinema em face à tamanha centralização
cultural que perpassa toda a ditadura refletida na criação da Empresa Brasileira
de Filmes Sociedade Anônima (Embrafilme), em 1969, e nos filmes realizados
com financiamento próprio ou de setores privados no país sob a sanção de
censores do regime. A Embrafilme, inclusive, começa a organizar os pólos de
produção e distribuição, predominantemente no Rio de Janeiro, assim como
incorporar os Conselhos existentes e fomentar o desenvolvimento de obras -
curtas e longas metragens -, criando projetos, co-produzindo e fomentando
premiações.

O espaço no setor de distribuição da Embrafilme aumentou o alcance de


novos cineastas e regiões; a distribuição possibilitou, aqui no Recife, em 1975,

14
Sobre a noção de trauma coletivo e a ditadura em nosso país, recomendamos o trabalho de
Patrícia Bandeira de Melo (2010) que correlaciona à experiência do trauma coletivo à
intervenção cultural desta no discurso cinematográfico.
46

a exibição de O palavrão, uma ação moralista, comédia de Cleto Mergulhão


exibida no cinema Art-Palácio, assim como foi com a obra Luciana, a
Comerciária (1976) de Mozart Cintra. (FIGUEIRÔA, 2000).

Outro marco cinematográfico do nosso estado neste período foi o Ciclo


Super-8, auxiliado pela bitola Super 8 – lançamento da indústria cenográfica
internacional em 1970 – que permitiu o desenvolvimento de curtas e médias
metragens em Pernambuco realizado por nomes como Jomard Muniz de Brito,
Geneton Moraes Neto, Fernando Spencer, Celso Marconi, Walderes Soares,
Paulo Menelau e Kátia Mesel, entre outros/as, circulando em mostras/festivais
do circuito nacional e estadual.

No entremeio da ditatorial, entre 1973 e 1983, se produzem em tais


bitolas mais de 200 obras feitas de forma independente, a maioria
autofinanciada. Segundo a pesquisadora de cinema pernambucano Amanda
Mansur Nogueira (2014, p. 797), o ciclo superoitista se dividia em dois grupos
distintos de cineastas: os “conversadores” que defendiam a profissionalização
do cinema e as representações sobre o povo pernambucano (caso de
Fernando Spencer e Osman Godoy, a exemplo) e o grupos dos “anarquistas”,
em sua maioria universitários, que eram influenciados pela estética
experimental (incluindo Amin Stepple, Geneton Moraes Neto, Paulo Cunha e
Jomard Muniz de Britto).

Em comum, todos os setores de produção e distribuição (privados e


públicos) partilhavam o desejo de combater as bilheterias internacionais que
possuíam lugar cativo nas programações semanais dos cinemas em todo o
país. Aí se verificava também um jogo de disputa interno com as medidas
protecionistas do Instituto Nacional de Cinema (INC). Apenas sob o nosso
recorte, as leis de proteção, com a obrigatoriedade de exibição de filmes
nacionais e distribuições mais abrangentes fazem com que as obras brasileiras
passassem a ser consumidas de 17.7% (1975) para 30.8% (1980) do público,
enquanto o filme estrangeiro tem queda de 82.3% (1975) para 69.2%(1980),
segundo estudo organizado pela Fundação Japão e com autoria de Jo
47

Takahashi (1985). A década de 1970 do século passado demarca, até hoje,


uma vasta produção fílmica no país.

Especialmente no caso da Embrafilme, uma sociedade de economia


mista vinculada ao Ministério da Educação e Cultura visava disputar (também)
um espaço no mercado internacional. Tal escoamento no mercado interno e
externo acompanhava publicações e ações de marketing da própria; podemos
citar, por exemplo, as múltiplas edições da revista Filme Cultura (1965-1988) 15
e o Histórico da Distribuidora da Embrafilme 16, escrito por Gustavo Dahl -
cineasta, crítico e gestor na/da Embrafilme em meados dos anos 1970, com
passagens também pela Associação Brasileira de Cineastas e o Conselho
Nacional de Cinema (Concine). Dahl se ligava ao movimento nacional-popular
e recebia mentoria de Paulo Emílio Salles Gomes (Cinemateca
Brasileira/Universidade de São Paulo).

As práticas sexuais já estavam nas produções do Cinema Novo, como


em Os cafajestes (Ruy Guerra, 1962), o primeiro nu frontal aqui gravado,
adentrando, posteriormente, na psique existencialista dos personagens de
Walter Hugo Khouri, como em Noite Vazia (1964) e As Deusas (1972). Se,
como afirma Katia Maciel, se delinea a realização de um cinema para um
“público ainda por vir, com uma política de invenção de personagens de um
novo Brasil” (MACIEL, 2000, p. 49), a ideia de autoria e da criação dessas
figuras é também um campo de tensão em termos de recepção.

Podemos vislumbrar na crítica de Beatriz Nascimento (1942-1955), A


senzala vista da Casa Grande (1976), publicada no jornal Opinião ao longa-
metragem Xica da Silva (Cacá Diegues, 1976) - financiado pela Embrafilme -,
como a dificuldade de Diegues de se situar a partir de sua branquitude acaba
como um desserviço ao movimento negro que se engajava no meio artístico e

15 Em 2017, o Ministério da Cultura (MinC), por meio da Secretaria do Audiovisual (SAv),


disponibilizou o acervo do periódico para acesso virtual. Cf. REVISTA FILME CULTURA.
Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura (SAv/MinC), 2017. Disponível em:
http://revista.cultura.gov.br/. Acesso em 20 de maio, 2021.
16 Recentemente, o pesquisador e professor Rafael de Luna Freire publicou uma versão

transcrita do documento. Cf. FREIRE, Rafael. O Consórcio Brasileiro de Cinema, a distribuidora


da Embrafilme e o comércio de filmes brasileiros para o exterior. Rebeca-Revista Brasileira
de Estudos de Cinema e Audiovisual, v. 8, n. 2, p. 305-315, 2019.
48

audiovisual (dentro e fora do eixo RJ-SP) por atuações e representações


positivadas de pessoas pretas e não-brancas. Na narrativa do filme e em
grande parte das críticas do período, Xica, interpretada pela atriz Zezé Motta,
utiliza de sua sensualidade para subverter, por meio do deboche, à ordem
colonial. 17

No trabalho de Margarida Adamatti (2016) sobre esta obra e a crítica


cinematográfica, a autora discute que a cineasta e historiadora Nascimento já
percebia o esvaziamento da discussão racial ali - tônica que é uma das
primeiras a trazer ao debate e que, posteriormente, é colocada como “patrulha
ideológica” em resposta vinda do próprio Diegues. Em seu artigo, Beatriz
chama atenção que Diegues, Glauber Rocha e Nelson Pereira reforçam um
delírio ufanista sobre as figuras negras e nordestinas. No trabalho escrito para
Opinião, o filme Xica, especialmente:

Repete, como já dissemos, Casa Grande e Senzala. Os portugueses


no filme, desde João Fernandes, passando pelo intendente, até o
frouxo inconfidente são opressores, exploradores, mas complacentes
com os negros, escravos, sentimentais (o pai do ‘Inconfidente’ e João
Fernandes) e, acima de tudo, bons apreciadores dos jogos do amor.
Os negros, escravos e quilombolas são passivos, rebeldes
inconseqüentes (bandidos salteadores) e reconhecidos da bondade e
generosidade do Senhor (...) O conflito racial (que não consegue
transpirar satisfatoriamente) só parte das pessoas menos dotadas (...)
Em suma, o ethos português colonizador é de humanidade e
reconhecimento da pessoa dos negros: uma escravidão amena e
divertida (NASCIMENTO, Beatriz. A senzala vista da casa grande.
Opinião, Rio de Janeiro, 15/10/1976).

Em paralelo, nos anos 1970-80, o sexploitation – interligado ao


exploitation americano (forma de elaboração que buscara colocar nas telas
temas populares ou polêmicos através de produções de baixo-custo) se volta à
tendência ‘libertária’ pregada pela contracultura sexual e a insurgente liberação
da pornografia. Na Europa, o sexploitation italiano se aproxima da sua fase neo
realista, se caracterizando pelas populares comédias divididas em episódios
que nos anos 1960 já recebiam utilizavam temáticas voltadas às sexualidades,
suas práticas, à moral e à heteronormatividade.

17A esse respeito, ver: SANTIAGO Jr., Francisco. Imagem, raça e humilhação no espelho
negro da nação: cultura visual, política e "pensamento negro" brasileiro durante a ditadura
militar. Topoi (Rio de Janeiro), v. 13, p. 94-110, 2012; SANTIAGO Jr., Francisco das Chagas
Fernandes. Reações na (à) cultura visual: racialização e humilhação no Brasil dos anos 1970.
São Paulo: Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH, jul/2011.
49

O formato das comédias eróticas importadas da Itália, assim como o


sexploitation francês, foi reproduzido não apenas como produto audiovisual a
ser distribuído, mas também como uma forma, uma possibilidade do fazer
cinematográfico. Estiveram presentes no resto da Europa, nos Estados Unidos,
no México e na Argentina. No Brasil, foram tomadas por empréstimo pelo
cinema produzido no Rio de Janeiro e em São Paulo, desde o final dos anos
1960, mas tiveram maior fôlego na década seguinte - sua maior característica
era a produção de baixo custo, apoiada por pequenos investidores e por
setores de distribuição, sem alianças governamentais diretas.

Como relata Jean-Claude Bernardet, crítico e cineasta responsável por


um grande apanhado do cinema nacional em texto escrito ao Folhetim:

(...) é sabido que houve/há setores da produção cinematográfica mais


independentes do Estado que outros. Os mais independentes,
todavia dependentes da legislação para circulação dos filmes, são
aqueles conhecidos como a Bela Época, a chanchada dos anos 1950
e, atualmente, a pornochanchada, além de alguns filmes isolados.
Nesses três momentos, encontramos uma produção condicionada
pelo consumo, condicionamento este regido pela aliança de
produtores com distribuidores e exibidores (...). Essa área de
produção é geralmente tida pelos escalões mais ‘cultos’ como vulgar,
alienada, reacionária, chula, malfeita, destituída de preocupações
culturais, estéticas, políticas etc, além de ser, no mais das vezes,
constituída de filmes de pequeno vulto de produção. (BERNARDET,
Jean-Claude. Cinema e Estado. Folhetim, São Paulo, 04/09/1983,
apud BERNARDET, 2009).

Na Argentina, graças às sexi-comedias, percebemos que os filmes


dessa esteira aqui produzidos se adaptaram aos contextos de ditaduras - como
já debatemos, noutros trabalhos, sobre as suas aproximações com as
pornochanchadas (TRAJANO, 2020). As práticas sexuais e os seus usos
narrativos remontam a ideias atravessadas por questões de gênero, raça,
classe e outros marcadores, também no que se colocava ser deboche.

Rapidamente, como em contraposto a estética do cine udigrudi 18, tal


sexploitation é encarado como uma atualização da chanchada no debate

18Termo retomado por alguns cineastas brasileiros para demarcar as suas apropriações de
ocupação do underground - filmes marginalizados dos circuitos padrões - com diversas
abordagens, mas algumas características em comum, tais como: reivindicar a marginalidade
para se colocar 'fora' da ordem econômica e pautar temáticas e modos de vidas minoritários,
50

público e, se agrega o prefixo ‘porno’ em alusão ao seu conteúdo sexual, tido


como pornográfico. Para o cineasta e professor Nuno César de Abreu, este
movimento cinematográfico era uma “tematização da revolução sexual à
brasileira” (ABREU, 2006, p. 75), incluindo nesse processo o prazer, a
‘liberação feminina’ - interligada à popularização das pílulas anticoncepcionais -
e outras modificações e inquietudes sociais frente aos costumes quanto a sexo,
música, drogas, etc.

Nos anos 1970, auge da ditadura brasileira, tais filmes formarão outra
Hollywood doméstica, localizando-se no eixo paulista e correspondendo a 40%
do mercado nacional cinematográfico; neste momento, “gemidos e sussurros:
nos porões da ditadura, os dos presos políticos. No escurinho das salas de
cinema, os dos amantes” (del PRIORI, 2011, p. 186).

Em Pernambuco, o sexploitation encontrará pouco ou nenhum espaço


em termos de produção - porém, como alguns grupos distribuidores apoiavam
o desenrolar desse cinema paulista atravessado pela precariedade, tendo Luiz
Severiano Ribeiro e a sua companhia dentre eles não tardou para que as
películas chegassem ao estado. O monopólio do Grupo Severiano Ribeiro no
Recife e noutras capitais nordestinas acompanhou o seu despontar com
sessões de exibição diárias nos anos 1970, além das compras/alugueis desses
filmes que chegavam aos cinemas de bairro fora dos eixos centrais da cidade.
É sobre tais aproximações que retomaremos nos capítulos seguintes.

contra-ideológicos. Cf: AUMONT, J.; MICHEL, M. Dicionário teórico e crítico de cinema.


Campinas: Papirus, 2003.
51
52

A década de 1970, ainda segundo a análise de Stephanie Dennison e


Lisa Shaw (2004) acerca do cinema popular no Brasil, é um dos momentos
mais efervescentes de nossa produção fílmica. Além de contar com a produção
de quase cem películas/ano, entre 1970-1980, tais filmes atraiam um número
significativo de público, se mantendo até os dias atuais em posições
privilegiadas em balanços de bilheteria organizados pela Agência Nacional do
Cinema (Ancine) sobre trajetórias de bilheteria no país.

É em meio ao conturbado cenário político de ditaduras de segurança


nacional na América Latina que surgem aqui as Pornochanchadas. Apesar de
constituir um marco em produções e bilheterias no cinema nacional, classificar
a pornochanchada enquanto gênero cinematográfico ainda é uma problemática.
Desde os anos 1970 do século passado, há uma resistência por parte dos
teóricos da história do cinema brasileiro em reconhecer tais produções
enquanto tal e, principalmente, complexificá-lo.

Para Nuno César Abreu (2006), estas obras são continuamente


analisadas por um viés classista, onde o prefixo porno serve para denotar
depreciação e mediocridade; as ressalvas de Abreu se pautam no que define
ser a condição popular da Pornochanchada - desde sua produção até o seu
público; segundo o autor,

O que era ‘comédia erótica’ começa a ser chamada de ‘chanchada


erótica’, denominação que evoluiu para ‘pornochanchada’ – em
circulação na imprensa por volta de 1973. (...) O uso indiscriminado do
termo ampliou a definição e contaminou uma variedade de filmes,
designando tanto os de produção apressada e mal acabada, quanto
outros, de construção elaborada. O critério básico de inclusão era o
desenvolvimento de roteiros com ênfase em situações eróticas e na
exibição de formas femininas. De todo modo, a definição tornou-se
uma etiqueta – uma pecha talvez – que ‘colou’, para um tipo de
produção voltada para segmentos populares do público. (...) logo se
tornou uma definição genérica para filmes brasileiros que recorriam,
em suas narrativas, ao erotismo ou apelo sexual, mesmo que fossem
melodramas, dramas policiais, suspense, aventura, horror etc.
Assim, a ‘pornochanchada’ passou a designar (indiscriminadamente)
um certo modelo de filmes como se fosse um gênero. (ABREU, 2006,
p.140)

Se utilizarmos as definições de Graeme Turner (1997) compreendemos


que a categorização em gênero dos filmes é um instrumento emprestado dos
estudos literários – através de códigos, convenções e estilos visuais, este
53

sistematiza rapidamente ao público o tipo de narrativa que está consumindo.


Assim, o leitor já tem uma expectativa sobre a obra, mas o trunfo é também
variá-la, demonstrando um dinamismo na intertextualidade que apresenta e se
insere. No caso dos filmes, as divisões se estabelecem por meio das formas de
produção na indústria cinematográfica, as conexões - e identificações - do
público e o texto.

Nesse sentido, são as semelhanças ou os elementos de reconhecimento


que constituem a ordenação de gênero dos filmes. No que concerne às
produções das Pornochanchadas, as aproximações perpassam elementos
estéticos, temáticas latentes e uma negociação cultural no que diz respeito a
esquemas de financiamento, distribuição, censura e recepção da audiência.

As primeiras noções sobre o que viria a ser a pornochanchada se


iniciaram no Rio de Janeiro, com produções como Os paqueras (Reginaldo
Faria, 1969), Memórias de um gigolô (Alberto Pieralisi, 1970) e Adultério à
brasileira (Pedro Carlos Rovai, 1969). O humor presente nas pornochanchadas
é fundado numa dupla moral, se construindo pela ambiguidade em falar sobre
jogos de sedução, chavões sobre a constituição das feminilidades e das
masculinidades, as sexualidades dissidentes, a ironia do cotidiano em
colocações sobre a situação política e econômica do país, entre outros
paralelos. A cineasta Fernanda Pessoa sintetiza no seu filme Histórias Que
Nosso Cinema (Não) Contava, lançado em 2018, diversos recortes sobre o
gênero e impulsiona o debate que a ordem moral e a burocracia projetada pelo
Estado eram as principais responsáveis pela censura que acontecia à estes
materiais.

Entretanto, é numa região paulista onde a pornochanchada ganha força


ao final da década de 60, com seu apogeu nos anos 70 e declínio a partir de
1980: o círculo da Boca do Lixo, como era chamado, compreendia as ruas do
Triunfo, Vitória, a dos Gusmões e dos Andradas; é em 1950 que esse local no
bairro da Luz, centro de São Paulo, passa a concentrar as prostitutas (cujo
meretrício em bairro próximo tinha sido recém-fechado), atraindo à Boca
clientela e outros marginalizados; por estar nas imediações das estações de
trens da Luz e Júlio Prestes, a circulação de pessoas na área da Boca
54

(apelidada assim desde a década de 1950 pela polícia) também era intensa e o
escoamento da produção cinematográfica facilitada. O nome sensacionalista
advém das investidas policiais que ali aconteciam, marcando esse território
como um ‘submundo’ urbano de crimes, vícios, sujeira, imoralidade e tragédias.

É com esse mesmo título de Boca do Lixo que o jornalista, crítico e


cineasta recifense Fernando Spencer escreve no Diário de Pernambuco, em
1970, sobre o que definia ser o atual cinema paulista realizado por jovens e ex-
críticos cinematográficos. Na passagem, Spencer retoma a entrevista de
Antônio Lima dada ao Jornal do Brasil, citando-o na passagem transcrita
abaixo:

Estamos fazendo filmes únicos - diz Antônio Lima. - Não se pode dizer
que existe um movimento denominado Cinema da Boca do Lixo. é
mais um estado de espírito, um ato de rebeldia contra os padrões
tradicionais da produção cinematográfica, que persistem em São
Paulo desde 1958, ano da graça do fechamento da Vera Cruz. Dessa
época até 1967, o verdadeiro cinema brasileiro passou a ser feito no
Rio [de Janeiro], nas águas do Ipiranga do cinema nôvo. (...) A boca
do Lixo começou a se movimentar: o cinema paulista renascia das
cinzas, ou melhor, começava tudo de nôvo. Inventamos esquemas,
criamos nossas próprias condições para filmar, sem verbas do INC,
sem vínculos com os produtores tradicionais; e, por mais incrível que
pareça, 13 filmes foram feitos, em menos de um ano, na Bôca do Lixo.
(SPENCER, Fernando. Bôca do Lixo. Recife, Diário de Pernambuco,
22/07/1970).

No trecho supracitado, Lima destaca a Boca como não apenas um ato de


rebeldia aos moldes hegemônicos de se fazer cinema, mas a sua potência
criativa, inventiva, em mover uma indústria sem apoio de estatais ou de
grandes grupos de produção. Na coluna de Cinema, ainda, Spencer traça uma
pequena trajetória dos filmes do quadrilátero do Triunfo, destacando Audácia,
obra em três episódios, recém-lançada e realizada por Carlos Reinchenbach e
Antônio Lima, no mesmo ano: dividiam-se em A baladíssima dos trópicos, Os
picaretas do sexo e Amor-69. O autor também trouxe Betty-Bomba (Carnaval
na lama ou Betty Bomba, a exibicionista, Rogério Sganzerla, 1970), Lua-de-
mel em alta tensão (Fauzi Mansur; Pena Filho, s/d) e O pornógrafo (João
Callegaro), entre outros destaques.

Em seguida, neste mesmo texto, Spencer chama atenção em como os


filmes produzidos na região paulista despertam o interesse de discentes e
55

docentes paulistas pelo seu "tom brasileiríssimo" que, inclusive, rendeu um


ciclo de estudos na Escola de Comunicações Culturais da Universidade de São
Paulo (ECA/USP). O nome escolhido para a mostra foi: Cinema Novíssimo,
Cinema Grosso. Além do paralelo e claro antagonismo com o Cinema Novo
carioca e sem ‘finesse’, mas grosso, neste título e na sua rememoração, é
importante observarmos que Spencer reitera um lugar acadêmico a esses
filmes, retomando um imaginário classista sobre a temática.

A esse respeito, vemos a figura crítica e intelectual categorizar/situar tais


filmes - assim como aconteceu em outros estados e espaços midiáticos. Inimá
Simões (1981) nos diz que, ao adentrarem as interlocuções sobre os seus
trabalhos advindas de pesquisadores/as, os/as profissionais da Boca
precisavam ficar em posições defensivas quase pré-determinadas que
versassem entre: 1. Desprezar o trabalho realizado; 2. Se voltar a pensar na
evolução de suas obras para se aproximar ao que estes - cultos - entendiam
enquanto cultura nas universidades; 3. Colocavam-se como cavaleiros solitários
na superação de problemas (tal qual a dificuldade de acessar incentivos
públicos de financiamento, ausência de notas sobre as realizações na
imprensa, enfim, obtenção de quaisquer suportes). Tal estigma ainda persiste
nas leituras historiográficas sobre o período ditatorial que foca, sobretudo, no
cinema realizado pela Embrafilme e/ou no Rio de Janeiro.

Os profissionais da Boca eram, na maioria dos casos, provenientes da


falida Vera Cruz ou tinham outras funções e ingressaram no fazer
cinematográfico. As discussões e os acordos não tinham um local predefinido,
mas aconteciam, por exemplo, nas mesas do bar Soberano e do Ferreira.
Nestes ambientes, se encontravam técnicos, diretores, atrizes e atores no que
se conhecia como quarteirão do cinema. A organização da Boca dialogava
diretamente com as dinâmicas da região e o espaço que ocupavam juntos aos
demais “marginais”, atraindo também os estudantes das artes, profissionais
eruditos e autodidatas. De certa forma, essas relações estão intrinsecamente
ligadas ao modelo de co-autoria participativa presentes nos filmes que foram
lançados e originados na Boca do Lixo.
56

O fomento para os filmes era de iniciativas privadas, largamente


pequenos empresários e distribuidores/investidores. As pornochanchadas
obedeciam a uma linha de produção próxima ao modelo de linha de montagem:
o que fosse arrecadado na bilheteria seria utilizado para custear outros filmes
ou quitar as dívidas do anterior. Em suma, os filmes da Boca partiam de
produtores responsáveis por conseguir financiamento e dos roteiristas de
suvaco - como eram chamados aqueles vagavam pela região com os seus
scripts no braço.

Alfredo Sternheim, Cláudio Cunha, Ody Braga, David Cardoso, Jean


Garrett, Neville d’Almeida, Fauzi Mansur e Carlos Reichenbach estavam entre
os principais diretores de filmes englobados como pornochanchada paulista;
Havia, também, o espaço ao cinema de invenção ou cinema marginal. Os
historiadores Luciana Klanovicz e Willian Corrêa (2016, p. 65) afirmam que este
é

caracterizado como sendo de vanguarda, ‘absolutamente


transgressor’ comprometido com a criatividade do autor e o
experimentalismo e que possibilitou nomes como Rogério Sganzerla,
Andrea Tonacci, Fernando Cony Campos, Lygia Pape, José Mojica
Marins de mergulharem em um universo paleopolítico, dissonante,
caótico e questionador.

Apesar da heterogeneidade da Boca do Lixo – indo, nos anos 70, desde


comédias, westerns, horror, dramas psicológicos até filmes policiais – a
classificação dos filmes enquanto produto se tornava homogênea por três
pontos aos olhos da censura, da crítica e da mídia: o baixo custo de produção,
o título apelativo e a temática das sexualidades. Organizadas por profissionais
pertencentes à mesma extração social que consumia os filmes, as
pornochanchadas atendiam as propostas temáticas internacionais – por vezes,
paródias muito próximas –, e a necessidade do mercado brasileiro em suprir a
demanda das legislações que buscavam ocupar o lugar do cinema importado.

Na década de 1970, se dão processos de metropolização das cidades


num contexto mundial em que Recife também se inscreve. Os centros
históricos são modificados e a prática cultural boêmia se desloca
geograficamente, em direção a zona sul da cidade. Dessa forma, a área do
centro passa a ser definida como uma área marginal - fazendo surgir “novas
57

práticas culturais da população e novas representações do perigo noturno, do


medo da rua, o que denota novos padrões de crimes, de consumo e de
entretenimento” como afirmam Magna Milfont, Circe Monteiro e David Bezerra
(2016, p.182) sobre as dimensões urbanísticas da capital pernambucana.

Nesse período, assiste-se uma modernização na cidade do Recife que é


interligada à comercialização; o setor financeiro cresce acompanhando as
movimentações do milagre econômico ocorrido durante o período da ditadura.
Se seguem alterações demográficas, arquitetônicas e de costumes - de forma
desordenada a cidade se expande revelando entre favelas (chamadas
anteriormente de mocambos) e bairros da classe médio-alta, problemas de
infra-estrutura e mobilidade urbana.

Os dois prefeitos da cidade sob nossa escolha temporal, Augusto Lucena


(1971-1975) e Antônio Farias (1975-1979), deram continuidade a um projeto de
requalificar e re-urbanizar as áreas centrais do Recife, assim como facilitar os
deslocamentos por meio de complexos viários e pontes-viadutos;
acompanhando tais obras, as demolições de edifícios históricos que imprimiam
formas a um Recife de outrora, se ligava à lógica modernizante e afetava as
formas de experienciar a cidade.

A partir daí, é a zona sul da cidade (em especial, o bairro de Boa


Viagem) que irá ofertar mais opções noturnas em meio às grandes obras da
Avenida Agamenon Magalhães e da zona norte. Os estabelecimentos de lazer
já existentes no bairro da Boa Vista e no bairro do Recife ainda conseguem
manter e preservar a clientela, juntamente as iniciativas da Empresa Estadual
de Turismo (EMETUR) em fazer das áreas centrais – como o Pátio de São
Pedro – um potencial turístico a ser aproveitado/explorado, seguindo as
diretrizes do Plano Nacional de Turismo que tomava força em todo o país. 19

Desde o início do séc. XX, o centro da cidade e os subúrbios foram


espaços de sociabilidade onde o cinema encontra um lugar cativo - dividindo o

19
Alguns trabalhos apreendem que as tentativas de atrações turísticas não obtiveram grande
sucesso, realocando-se para outros espaços no estado de Pernambuco. Cf. ALVES, L.;
DANTAS, E. Decurso histórico do turismo em Pernambuco: II PND, ditadura militar e o
retrocesso da atividade no estado. Boletim Goiano de Geografia, v. 33, n. 3, p. 81-94, 2013.
58

perímetro urbano entre cineteatros e cinemas, as programações do cinema


Moderno, Veneza, Cinema de Arte - AIP, São Luiz, Art Palácio e Trianon,
estiveram recheadas de títulos nacionais e internacionais.

Nos anos 1970-80, tiveram destaque nos periódicos analisados as salas


do grupo Severiano Ribeiro, a destacar: os Cinemas Veneza, São Luiz,
Moderno, Boa vista e o Cinema de Arte - AIP; nestes locais, as sessões com
teor sexual dividiam a grade com programações tidas nos jornais como
‘familiares’ ou infantis, mas as primeiras obtinham maior espaço durante a
semana, com exibições que iam da tarde até a madrugada.

O espaço das salas no Recife era tomado por produções de


sexploitation, tendo nas pornochanchadas seu principal expoente – se
multiplicavam nos editoriais seus anúncios, também nas crônicas de colunistas
em jornais como o Diário de Pernambuco (DP) e o Diário da Manhã (DM)
comentários sobre tal gênero. O cinema brasileiro que dominava as sessões
era destacado no DM com programações “sem kung-fu, mas com muito
palavrão e mulher pelada” (Cinema brasileiro domina, Diário da Manhã, Recife,
11 jun. 1975, Cinema, Música e Variedades, p. 7). Como exposto
anteriormente, temos poucos mapeamentos em nossa cidade que dão conta de
sua recepção.

Abreu (2006) indica como a imprensa formal foi responsável pela


condenação dos filmes produzidos dentro do eixo da Boca do Lixo, em São
Paulo – é a partir da leitura midiática que eles passam a ser chamados de
Pornochanchadas, título que serve tanto para censurar seu conteúdo como sua
exibição nas salas de cinema brasileiras. A partir daí, objetivamos a procurar a
palavra Pornochanchada dentro do DM, inicialmente, que era um dos mais
antigos jornais de Pernambuco e inclusive simpatizante do golpe militar nos
anos 60.

O DM foi fundado em abril de 1927 pela família Lima Cavalcanti e já


havia sofrido perseguições no final da mesma década por seu discurso pelo fim
de regimes antidemocráticos, contudo, nos anos 1930, fazendo sua sede de
ponto de encontro do Movimento Revolucionário de Getúlio Vargas (tendo João
59

Pessoa assassinado após sair de uma das reuniões) teve sua circulação
bloqueada e, apenas com a ascensão do populista que colocou Carlos de Lima
Cavalcanti como governador provisório, voltou às bancas pernambucanas
deixando de ser oposicionista.

Em 1937, ao lançar a manchete Prorrogação dos mandatos é usuparção


dos direitos do povo, Carlos de Lima Cavalcanti perdeu a chefia do estado para
o Coronel Azambuja e, em seguida, veio Agamenon Magalhães. As ações do
Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) e da Diretoria de Ordem
Pública e Política Social (DOPS) sob o aval de Magalhães fechou o DM
fazendo-o perder a estabilidade que tinha conquistado publicamente. Na
segunda fase, em meados dos anos 1940, o jornal retoma a produção guinando
à direita, porém sem a fama de antes. Nos anos 1960, tem nova direção e
apóia a ditadura. (LINS; LIRA, 2006).

Encontramos nas publicações de 1975-1980, por meio da busca


oferecida no site da Companhia Editora de Pernambuco (CEPE), que
digitalizou parte do acervo do Arquivo Público Jordão Emerenciano, 21
ocorrências do termo pornochanchada no DM. Reiteramos que a utilização
desse termo marca uma situação de simbólica violência que continuamente
cria um juízo de valor sobre tais filmes nacionais.

Durante o levantamento, observamos que anúncios do Grupo


Severiano Ribeiro eram feitos quase diariamente sem a menção ao termo; em
algumas colunas sociais e a de Cinema, Música e Variedades é que a palavra
foi mais utilizada. Iniciamos assim um percurso inquieto de perceber como
jornais recifenses conservadores e apoiadores do regime militar receberam tal
gênero em suas coleções, partindo da questão: como, através desse contexto
e discurso jornalístico, se legitimaram as ditas Pornochanchadas?

O trabalho da arquiteta e urbanista Kate Saraiva sobre as salas de


cinema do Recife nos dá indícios de como se articulava tal empreitada:

Os anos 70 foram os que tiveram maior público nos cinemas. As


pessoas eram atraídas para assistirem as pornochanchadas, um dos
gêneros mais populares do cinema brasileiro nesta década.
Segundo o jornalista Luiz Joaquim, quando começaram a ser
produzidos filmes de sexo explícito, alguns exibidores assumiram
60

sua exibição e tornaram-se reféns deles. Projetavam-no, mas não


sem ficar incomodados com o novo tipo de produto que
trabalhavam. Quando resolveram deixar de exibir tais fitas de sexo
explícito, perderam um público que já se tornara habitué desse
gênero. Aos poucos essa plateia foi deixando de ir aos cinemas de
bairro e do centro para ver tais filmes. (SARAIVA, 2013, p. 13).

Tal mal-estar por alguns exibidores pode ser ocasionado por inúmeras
questões, tais como a descentralização - no caso do centro do Recife - de
áreas de lazer e o afastamento desses cinemas, a rotatividade dos filmes, a
questão da audiência e os marcadores sociais que estavam na sua recepção e
o gênero, per si. As leis de obrigatoriedade criadas pela ditadura faziam com
que as películas nacionais fossem obrigatoriamente projetadas - também os
curtas-metragens, como explicitado anteriormente, caso contrário, as casas
seriam fechadas.

Ainda segundo os estudos de Abreu (2006), entre 1970-1980, a Boca do


Lixo produzia em média 90 filmes por ano ocupando, como dissemos no
capítulo anterior, cerca de 40% dos espaços cinematográficos no país. Foi a
partir de 1975 que Gustavo Dahl assumiu a Superintendência de
Comercialização (Sucom) trabalhando junto à Embrafilme durante a gestão de
Roberto Farias (primeiro cineasta a frente desta), bastante focada em produzir
e distribuir filmes que atraíssem maior público.

Quadro 1. Desempenho da Distribuição Cinematográfica por estado


(1977-1980)

PÚBLICO
ESTADO SALAS PÚBLICO PÚBLICO PÚBLICO
(ANO)
(ANO) (ANO) (ANO)

1977 1978 1979 1980

São Paulo 577 64.609.000 65.874.000 57.455.000 48.713.000


Rio de Janeiro 213 36.520.000 38.257.000 35.207.000 30.529.000
Minas gerais 341 24.427.000 25.059.000 22.851.000 19.246.000
Rio Grande do Sul 218 15.388.000 14.981.000 13.257.000 11.616.000
Paraná 184 11.836.000 11.072.000 9.433.000 7.787.000
Pernambuco 104 9.656.000 9.765.000 8.567.000 7.112.000
Bahia 96 7.407.000 7.503.000 6.951.000 6.282.000
Ceará 46 4.155.000 4.045.000 3.033.000 3.604.000
61

Goiás 67 4.010.000 3.876.000 3.563.000 3.227.000


Santa Catarina 82 3.958.000 3.915.000 4.252.000 3.488.000
Fonte: Jo Takahashi (1985).

No quadro acima, percebemos a liderança paulistana no mercado


brasileiro entre 1977 e 1980 com salas e público pagante. Recife, por sua vez,
é a 6ª capital com maior número de salas e público, tomando a frente em
comparação com outras capitais do Nordeste.
A Embrafilme em meados dos anos 1970 começa a centralizar a
indústria cinematográfica no Brasil: concentra setores ligados a
produção,distribuição e exibição. Para garantir o público e ganhar nas
bilheterias dos filmes estrangeiros, a Embrafilme abre 8 filiais no país: Rio de
Janeiro, Belo Horizonte, Botucatu, Curitiba, PortoAlegre, São Paulo, Salvador e
Recife.
Para Gustavo Dahl, que esteve a frente da Embrafilme e outras
organizações de cinema, o mercado como cultura é mote do que coloca como
expressão industrial somada à expressão cultural, definindo assim a
popularização do cinema brasileiro; em texto publicado, este reitera de forma
até problemática a junção da representação com a construção liberal de um
cinema acionando o discurso psicanalítico em alta no período – correlaciona a
recepção com o mito de Narciso, ocupando um lugar de vaidade tal qual:

(...) é importante compreender que, em termos de cinema, a ambição


primeira de um país é ter um cinema que fale a sua língua,
independentemente de um critério de maior ou menor qualidade
comercial ou cultural. O espectador quer ver-se na tela de seus
cinemas, reencontrar-se, decifrar-se. A imagem que surge é a
imagem do mito de Narciso, que, vendo seu reflexo nas águas,
descobre sua identidade. (DAHL, 1977, p. 127).

Para o sociólogo José Ortiz Ramos (1983, p. 165), tal ideal de Dahl se
relaciona, não metaforicamente, com a representação de uma nação unida,
integrada, que se anteriormente via a correspondência cultural nacional-
popular, passa a substitui-la por outra, a da "cultura- mercado-consumo". Nesse
cenário a tragédia de Ovídio parece tomar também outros contornos – a
Embrafilme é considerada, nos anos 1970, uma das maiores distribuidoras da
América Latina e entre 1974-1979 a venda de ingressos para filmes nacionais
tem um salto de 16% (GATTI, 2007).
62

O relatório do IBGE (1977) mostra que, nos anos 70, o rendimento


mensal das pessoas que trabalhavam no eixo metropolitano da cidade do
Recife oscilava entre dois salários mínimos numa porcentagem de 72% da
população 20 - em 1975, Cr$ 532,80 era o salário aumentando anualmente até
chegar em Cr$ 4,149,60, em 1980. Tais valores acompanhavam a inflação que,
no Brasil, variou de 30% a.a. a partir de 1974, chegando a 80% no final da
mesma década.

Para a Sudene (1977), 61,9% da população economicamente ativa de


homens desta região se inseria em ocupações de baixa renda, na proporção de
75,1% no caso de mulheres – e metade deste último quantitativo estava
ocupando empregos domésticos. Na região urbana, a metropolização
contribuíra para atividades clandestinas, com ambulantes que buscavam provir
desse meio o sustento ou o complemento de sua renda.

A classe média que emergiu durante os anos 1960-70 com o milagre


econômico passa a ocupar o bairro de Boa Viagem, enquanto nas periferias da
cidade começam a se traçar novos fluxos intra-metropolitanos que, inclusive,
recebe a população advinda do êxodo rural. A população urbana do Recife nos
anos 70 tinha um total de 1.046,413 pessoas. (CEBRAP, 1981).

Os cinemas do centro do Recife vão coexistir em meio a todo esse


background. A modernização da cidade também faz com que novas salas de
cinema sejam criadas nas áreas centrais: em 1970, é inaugurado o cinema
Veneza, na Rua do Hospício; o teatro do Parque reabre suas sessões após 15
anos fechado devido a um decreto municipal - com o aval da Prefeitura do
Recife, torna-se o Cinema Educativo do Recife (1973); já no ano de 1974, se
inaugura o duplex de cinemas Ritz e Astor, próximo ao Parque 13 de maio; o
auditório da Associação de Imprensa de Pernambuco (AIP), em 1975, torna-se
o cinema de arte da AIP; em 1976, outro cinema de arte é inaugurada na Casa
da Cultura, antiga Casa de Detenção da cidade. (NASCIMENTO L., 2004). No
período que privilegiamos, os ingressos, segundo dados da CINEJORNAL

20
“(...) do total de 673.498 pessoas ocupadas, quase metade, ou seja, 311.698 (46,3%) recebiam até 1
salário mínimo, 179.211 (26,6%) recebiam de 1 a 2 salários mínimos, enquanto apenas 16,1% recebiam
mais de 2 até 5 salários mínimos 10,1% recebiam mais de 5 salários mínimos, ficando os restantes na
categoria dos sem rendimentos (0,7%) ou sem declaração (0,2%).” (CEBRAP, 1981).
63

(1982), tinham um preço médio variável na capital pernambucana: Cr$ 8,58


(1977), Cr$ 12,06 (1978), Cr$ 17,24 (1979) e Cr$ 42,40(1980).

2.1 A Pornochanchada fragmentada no Diário da Manhã (1975-1980)

Os jornais pernambucanos adotam a mesma denominação de


Pornochanchada utilizada pela imprensa do eixo sudestino desde o início dos
anos 1970. O emprego deste termo se dá de forma negativa na maioria das
ocorrências do Diário da Manhã (1975-1980), condenando a qualidade dos
filmes e atacando sua a estética ‘apelativa’, principalmente, ao fazer
comparações com outras obras.

As diferenças e ambiguidades nos jornais recifenses sobre as


pornochanchadas se voltam, então, à criação de hierarquias nas questões
estéticas, atuações, trilha sonora e outros pontos que adentram o território de
disputa da atenção dos jornalistas e dos leitores/consumidores.

Para um início de semana sem novidades, a melhor opção ainda está


para 'O Marginal' (Veneza), película brasileira de inegáveis
qualidades técnicas, com Tarcísio Meira em sua melhor interpretação
e direção de Carlos Manga. Isto não se pode dizer de outra película
nacional que o Moderno exibe: 'As secretárias', uma pornochanchada
de má qualidade com Jorge Dória, Rossana Ghessa, Mario
Benvenuiti e Marta Moyano perdidos. (Diário da Manhã, Recife,
Cinema, Música e Variedades, 19/05/1975).

No extrato acima, o filme de Carlos Manga, O marginal (1974) é


vangloriado pelo DM por suas inúmeras qualidades frente a outro filme de três
episódios, igualmente nacional, As secretárias, cujo título completo seria As
Secretárias... que fazem de tudo (1974). O nome do diretor do último filme é
omitido, mas se trata do italiano Alberto Pieralisi. Jorge Dória, o ator principal
do filme, era também comediante - fez sucesso na televisiva A grande família,
e assim como Tarcísio Meira era um galã, disparando com sucesso em
telenovelas. A obra de Carlos tem, inclusive, como assistente de produção,
Sílvio de Abreu – ator/autor já conhecido pela escrita de produções com
temática policial em diferentes plataformas.

O DM dimensiona um abismo técnico entre os dois filmes que, mesmo


ambos sendo produzidos no Rio de Janeiro, a trilogia das secretárias é
associada aos moldes da Boca por figurar prostitutas que enganam os seus
64

chefes – logo, podemos compreender que tenha sido o enredo uma das razões
pelas quais a obra de Pieralisi foi relacionada à pornochanchada, juntamente à
sua classificação indicativa de 18 anos. E, não apenas uma pornochanchada,
mas uma de má qualidade, evidenciando novamente uma divisão binária,
relacional e hierárquica dentro do mesmo gênero.

Pieralisi já havia trabalhado com obras de vieses políticos como O quinto


poder (1962), filme que passou 40 anos sem ser exibido depois de ter os
negativos destruídos em 1963 e sua única cópia estava em Berlim; mas, ele
também esteve à frente das chanchadas que lhe deram bastante prestígio nos
anos 40-50 pela Companhia Cinematográfica Maristela.

A diferenciação criada entre o filme de mulheres exploradoras,


mentirosas e sedutoras para com os seus chefes, e o de Manga, co-produzido
pela Embrafilme, em torno de um protagonista que decepciona sua família ao
retornar ao mundo de crime e é assassinado (assim, duplamente penalizado na
trama), também está numa escolha estratégica do periódico: reafirmar a
chanchada ou os filmes advindos de seus realizadores sob uma pecha
pejorativa fronte à positivação de uma identidade nacional do cinema
verdadeiramente brasileiro, empreitada de Dahl na Embrafilme, mas também
de cunho cinemanovista.

Ora, se a chanchada era a contrapartida, o outro do movimento


cinematográfico naquele momento, era preciso desacreditá-la inclusive em sua
nova roupagem – a de pornochanchada. Glauber Rocha, em 1963, ao publicar
Revisão Crítica do Cinema Brasileiro, se dirige diretamente aos italianos da
Companhia Vera Cruz, “aqui aportados às dúzias, como assistentes de
Rosselini” (ROCHA, 2003, p. 71), fazendo um cinema amadorista e fomentando
apenas diretores também italianos em seus termos. Pieralisi era um dos jovens
estrangeiros citados no episódio que Glauber negou se tratar de racismo à
época. Sobre a falência da Vera Cruz, ele falava: “Pieralisi ficou por aqui,
fazendo comédias de segunda” (ROCHA, 2003, p. 82).

Pieralisi lança as secretárias como as comédias de costume italianas,


divididas em episódios: 1. A moça que veio para servir café; 2. Fazer o quê em
65

Paris; 3. Avante C.C.S. (Companhia de Combate ao Sexo), todos filmados em


1974 e lançados em 1975, com produção da Phoenix e co-produção da
Atlântida Cinematográfica. O filme chegou a ter 1.038.291 de espectadores
(ANCINE, 2018).

Apesar do que o título chamativo sugere, as insinuações sexuais do


“dar” (aqui, com sentido de oferecer sexo) por parte das secretárias acaba na
exibição de seus corpos; outro fator peculiar é que ao final dos episódios as
secretárias se casam, rememorando a auto-censura das pornochanchadas,
como colocou José Carlos Avellar (1980); embora pregasse uma liberação
sexual ao decorrer de seu enredo, o final seria interligado a uma penalização
ou valorização conservadora – identificada neste caso com a instituição de um
casamento normativo, uma readequação dos amantes transgressores à
instituição familiar. Pieralisi também dirigiu, em 1971, O Enterro da Cafetina,
obra censurada e na qual o discurso político está bastante presente e denuncia
o golpe sofrido em 1964.

Semanalmente, as estréias dos cinemas centrais e suburbanos eram


noticiadas pelo DM e, paulatinamente, nos foi possível observar que as
pornochanchadas eram recorrentes nas programações. Ainda em 1975, o
jornal publica o seguinte trecho:

O filme brasileiro domina a semana desde as continuações de


'Sedução' (Ritz) e 'Um intruso no Paraíso' (S. Luiz). Para amanhã,
entra a 'Ilha do Desejo', produção de David Cardoso, com o ator no
elenco e a pernambucana Fátima Antunes (...). (Diário da Manhã,
Recife, Cinema, Música e Variedades, 09/07/1975).

O filme a Ilha do Desejo (1975) é um marco no trabalho de David


Cardoso em colaboração do português aqui erradicado, Jean Garrett –
conhecido, na Boca do Lixo, por sua preocupação técnica e leituras surrealistas
em filmes. Garrett era fotógrafo da Revista Melodias (onde conheceu Cardoso)
e foi fotógrafo de cena no filme Sedução (1974) que também estava em cartaz
no Recife simultaneamente.

A Ilha é do subgênero policial e traz no seu roteiro o recrutamento de


garotas realizado por Gilberto para a boate da Madame Geny na Ilha – ou,
noutras palavras,para uma casa de prostituição. A sinopse do filmes abarca o
66

desaparecimento de duas garotas, e Madame Geny, que vive apenas com o


filho “anormal” 21, Beto, a empregada e o piloto de lanchas, fecha a Ilha para
impedir a saída de Gilberto e sua denúncia à polícia. Gilberto escapa e se
instaura uma investigação na qual Beto é indiciado como autor do crime. Com
produção da Dacar - empresa do próprio David Cardoso - e direção de Garrett,
o filme obtém renda de Cr$ 2.677.268,50 e 1.144.160 espectadores (ANCINE,
2018).

O destaque para a atriz pernambucana que estrela o filme junto à Davi


Cardoso, considerado o Rei das Pornochanchadas, Fátima Antunes, confirma
que havia um star system ligado ao chamariz do público às salas de cinema.
Adotando, até mesmo, uma faceta bairrista na passagem supracitada que não
trata a obra como pornochanchada.

Fátima atuou em aquatro produções e anteriormente representou a


cidade de Vitória de Santo Antão (PE) nas eliminatórias do Concurso de Miss
Pernambuco (1972), onde ficou com a vice-liderança. No mesmo ano foi eleita
Miss Objetiva Brasil e concorreu ao Miss Objetiva Internacional, mas acabou
perdendo para a peruana Susana Grundel, ficando novamente em segundo
lugar. Antunes era considerada uma estrela pernambucana e de nível
internacional, logo, o DM valorizou esse status social tratando o filme como
mais um lançamento do cinema nacional – dessa vez, sem destacar ou utilizar
o termo pornochanchada para se referir à este.

O filme de Garrett e Cardoso é interessante ao mostrar uma outra tríade


do sexploitation brasileiro - sexo, horror e violência. A marginalidade paulistana

21
Não foi possível encontrar/assistir ao filme durante a realização desta pesquisa. As cópias não foram
localizadas e utilizamos aqui informações baseadas nos dados dispostos no site da Cinemateca
Brasileira. Acreditamos que a menção ao filho ‘anormal’ colocada na sinopse do filme se interliga a um
portador de doença mental, estigmatizado socialmente pela loucura, em termos foucaultianos. No
Brasil, tal prática de marginalização pela dita loucura teve início no final do século XIX e início do XX, se
perpetuando em escritos médicos psiquiátricos e intervencionistas cujos trabalhos estavam voltados ao
controle social da população. Durante o período da Ditadura Militar inúmeras pessoas – principalmente
militantes da esquerda – foram taxados como loucos/as pelo regime. Cf. ENGEL, M. As fronteiras da
“anormalidade”: psiquiatria e controle social. Rio de Janeiro: Revista Hist. cienc. saude-Manguinhos, v.
5, n. 3, fev/ 1999. Disponível em:<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
59701999000100001&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 05 jul. 2020; KUPERMANN, D.; BULAMAH, L. C.;
MOREIRA, L. E. V. Entre barões e porões: Amílcar Lobo e a psicanálise no Rio de Janeiro durante a
ditadura militar. São João del-Rei: Analytica, Revista de Psicanálise, v.3, n.4, p.173-200, jan.-jun. 2014.
67

também agregava a marginalidade dos cinemas de horror, terror e policiais na


década de 70. Eric Schaefer (1999), ao pesquisar o exploitation na primeira
metade do séc. XX, nos diz que os filmes dessa seara – independente de quem
o realizasse – tinham de ter um caráter negativo, imoral; para conseguir tal
feito, os interditos sociais foram colocados em primeiro plano - incluindo sexo,
prostituição, uso de drogas ilícitas, nudez e outros materiais a depender das
escolhas dos diretores. Não à toa, Ilha do Desejo (1975) é feito após Garrett
trabalhar com José Mojica Morins (o Zé do Caixão), um dos pioneiros do
cinema de horror e terror no país vindo da Boca paulista.

Na Boca, os filmes tinham como vítimas do horror, geralmente, as


personagens femininas, jovens e desnudas – entretanto, neste mesmo espaço-
corpo, criaram-se figuras monstruosas: personagens algozes/revanchistas nas
situações de violência que sofriam. A exemplo: Belas e corrompidas (Fauzi
Mansur, 1977), Ninfas diabólicas (John Doo, 1977).

É apenas ao final dos anos 1970 e início da década seguinte que tal
relação estabelecida entre as relações de gênero dentro das pornochanchadas
é pautada no que seria até mesmo uma autocrítica (tendo como pilar a
estrutura e as narrativas fornecidas pelo horror). Laura Canépa, jornalista e
pesquisadora do cinema de horror nacional, explica que tais aproximações
sugerem que o “sexploitation brasileiro não apenas ‘evoluiu’ da nudez em
direção à violência explicita, mas também em direção a reflexão sobre a
representação e sobre o próprio uso do corpo da mulher pelo cinema.”
(CANÉPA, 2009, p. 10). Assim, é possível imaginarmos que os diretores já
compreendiam o argumento que as críticas midiáticas, dos intelectuais, dos
movimentos sociais e conservadores faziam, estabelecendo, às suas próprias
maneiras e circunstâncias, um diálogo.

Noutro trecho, o DM publica:

Afinal, uma semana sem karatê/kung-fu, mas com muito


palavrão e mulher pelada. É o cinema brasileiro explodindo e
provocando mil gargalhadas no público e nos produtores
também. o S. Luiz prossegue com 'Um intruso no Paraíso', um
desfile de beldades e alcova, sem finalidades, mas 'limpando a
vista'. O Ritz mostra as 'Mulheres que fazem diferente',
grosseira pornochanchada já vista no Recife. Vale a pena rever
68

a plástica de Sandrinha Barsotti e Verinha Fischer. O Veneza


anuncia para sexta-feira: 'Ainda agarro esta vizinha', de Pedro
Rovai, a mais badalada pornochanchada, no momento. Tudo é
passado num prédio 'treme-treme'. Alto gosação, com Cecil
Thiré e Adriana Pietro. O art-palácio exibe 'A Ilha do Desejo',
uma aventura desnuda de David Cardoso e a pernambucana
Fátima Antunes, ex-Miss objetiva do Brasil. Então, o que está
esperando? (Diário da Manhã, Recife, Cinema, Música e
Variedades, p. 7, 11/06/1975)

Seguindo tal publicação, dias depois se publica outra matéria sob o título
de Comece hoje a agarrar sua vizinha na mesma tônica dos comentários
anteriores:

Com a presença no palco de Carlos Leite (O Beleza), estréia


hoje no Veneza, a mais badalada pornochanchada do cinema
nacional: 'Ainda Agarro Está Visinha [sic]', de Pedro Carlos
Rovai, o realizador de 'A viúva virgem' e 'Os mansos'. O filme
reúne duas notáveis figuram prematuramente desaparecidas:
Oduvaldo Vianna Filho (Vianinha), que fez o roteiro e
adaptação e Adriana Pietro, a atriz principal. A estória de 'Ainda
Agarro Esta Visinha' [sic] é toda passada num edifício 'treme-
treme' em Copacabana. As hilariantes situações criadas, as
cenas de alcova e as piadas, não agridem o espectador. Não
há 'apelação' de sexo, apenas uma descrição real do que pode
ocorrer num edifício. Em linhas gerais, o filme tem seu fundo
moral, um bicão da zona Sul que se apaixona por uma donzela.
Depois de mil peripécias, acabam casando. Uma das coisas
mais gosadas da película é o trazeiro de Wilza Carla na janela
de um apartamento. (...) Direção de fotografia de Tony Batony e
músicas de Eduardo Souto e André José Adler.'Ainda Agarro
Esta Visinha' [sic] é o tipo do filme brasileiro que investe
contracertas culturas incultas. Vamos valorizar nosso cinema.
Hoje no [cinema] Veneza, com presença de Carlos Leite, o
beleza. (Diário da Manhã, Recife, Cinema, Música e
Variedades, 13/06/1975).

Ao lado dos textos se veicula uma imagem da protagonista do filme, com


a legenda: “Meyry Vieira é a mulher do supermercado e do marido manso em
'Ainda Agarro Esta Visinha', que estréia hoje no Veneza.” (Diário da Manhã,
Recife, Cinema, Música e Variedades, p. 7, 13/06/1975). Segundo o filósofo
Félix Guattari (1980, p. 108), o cinema, ligado aos seus contextos históricos e
sociais, foi transformado "numa gigantesca máquina de modelar a libido social";
nesse sentido, é fundamental que entendamos como o star system contribui ao
mesmo tempo que demonstra práticas e leituras sociais normatizadas
culturalmente onde vemos que se centraliza padrões de corpo e
comportamento a diferentes grupos.
69

Esse esquema de diferenciação é utilizado para valorizar certos


aspectos (sejam eles atributos físicos, morais, sexuais, etc.), reprimir as figuras
que são dissidentes a eles ou coibir transgressões. Para Giselle Gubernikoff
(2016), a implantação do star system nas obras cinematográficas nacionais,
sobretudo nas pornochanchadas, reitera uma visão da mulher enquanto objeto
ou figura inativa da sociedade que oficialmente se enraizou na cultura a partir
das classes dominantes. Ainda agarro esta vizinha é uma produção positavada
enquanto pornochanchada na última passagem e esse processo se interliga,
novamente, à Embrafilme - responsável pela co-produção do filme.

A utilização da imagem de Meyry em acompanhamento ao texto no DM,


corrobora para as colocações de Guattari no seu artigo Divã do Pobre (1980): o
cinema foi transformado numa gigantesca máquina de modelar a libido social;
nesse sentido, é fundamental que entendamos como o star system que vem do
cinema clássico Hollywoodiano normatiza práticas e leituras sociais
culturalmente no que tange corpos e comportamentos. Esses moldes
impactaram o fazer cinematográfico em espectro internacional, seja por
aproximação ou distanciamento, se fundou como parâmetro inclusive nos
estudos sobre a história do cinema.

Já que o texto não tem autoria sinalizada, é o próprio jornal que o


assina. E assina, também, sobre os corpos de mulheres que tratam enunciam
no diminutivo, associando à ida ao cinema com a oportunidade de ver as suas
cirurgias plásticas, assim como de saudar a participação de uma
pernambucana na Ilha. Até então, as atrizes Barsotti e Fischer eram figuras
pouco conhecidas, mas que se lançariam na televisão em seguida, segmento
crescente e apoiado pela classe média que passaria a tratar essas e outras
mulheres de forma diferente: aceitando-as quando passassem a ocupar outro
lugar que não a da marginalidade da pornochanchada.

A atuação das atrizes nos filmes considerados pornochanchadas eram


elementos secundarizados nas críticas e nos estudos sobre este cinema,
posto que os seus corpos é que seriam o centro das atenções e discussões
– mas, elas desenvolveram outros tipos de funções no interior desses filmes,
temática que já desenvolvemos noutros trabalhos (TRAJANO, 2021). Nesse
70

sentido, as pornochanchadas tinham o seu próprio star system com figuras


até então desconhecidas do grande público nos anos 70: Julciléa Telles,
Matilde Mastrangi, Helena Ramos, Aldine Muller, Vera Fischer, Ira de
Furstenberg, entre outras que são anônimas para nós até hoje por não
alçarem um patamar maior de fama ao final do ciclo, mas que figuraram
diversos filmes.

Sob o contexto da dita liberação sexual atravessado por uma ditadura


e resquícios socioculturais profundamente marcados pelos tempos coloniais,
o corpo ainda é um espaço que se produz e se reproduz o poder nas
narrativas cinematográficas. Raça, classe, sexo e gênero aí também se
incluem, são indivisíveis no jogo da sedução da Boca e do próprio período e
território que a torna possível.

Apoiada sobre o falso discurso de revolução sexual no contexto


internacional e o boom dos movimentos e discussões sociais do período,
incorporadas nos discursos sobre o sexo como uma forma de manifestação do
prazer, mas ainda arraigadas no imaginário colonialista, localizamos as
pornochanchadas. Nem só erótica, nem tão pornográfica, a pornochanchada se
definiu como um gênero monstruoso nas frestas das montagens, também dos
acervos, imaginários, corpos, modos de fazer e de consumir próprios daqueles
que também queriam se construir enquanto país disputando o posto de uma
identidade nacional cinematográfica, deslocada da classe média/alta, branca e
intelectualizada que buscava a todo custo se moldar às suas custas. Inclusive
combatendo as atuações do cinema estrangeiro e dos criadores das
chanchadas, sem também reconhecer os seus próprios fundamentos e
intenções.

No periódico Cinema em Close Up - editado entre 1975 e 1979 por


profissionais ligados/as à Boca do Lixo - eram expostas questões relacionadas
ao contexto desta; entre perspectivas e análises, a publicação era uma maneira
da Boca localizar o seu debate fora da mídia tradicional, centralizando suas
próprias discussões. Na edição de No. 15, de 1977, apresentam-se algumas
atrizes junto com suas entrevistas sobre fazer pornochanchadas, são elas: 1.
71

Dalma Ribas, "mineira de berço e carioca de coração" que havia trabalhado na


televisão para a Excelcior e na emissora Tupi, em seguida indo para o cinema;
2. Kandi, oriunda de Valadão (RS), fez faculdade de educação física e já
possuía uma filmografia múltipla na Boca; 3. Ilda Lucinda da Silva, paulista de
descendência indígena que, aos 21 anos, estrea no cinema com o nome Telma
Lucien; 4. Deize, uma carioca de 19 anos que começava a fazer filmes e tinha
acabado de estrear em Pra ficar nua, cachê dobrado (Élio Vieira de Araújo,
1977). Destacamos uma passagem da entrevista abaixo:

CLOSEU-UP: [Qual] O seu conceito sobre pornochanchada?

DALMA - Existe a condição atual de se fazer cinema porque


apareceu a pornochanchada. Não sou contra ela.

KANDY - Uma boa. Os brasileiros gostam de mulheres peladas. Eu


sou inteiramente a favor.

DEIZE - Como estou a pouco tempo no cinema, não tenho uma


opinião formada.

TELMA - É isso aí. Se o público aprecia pornochanchada, façamos


pornochanchada. Apenas que façamos boas pornochanchadas.
(Cinema em close-up, São Paulo, n. 15,1977, p. 26, grifos nossos).

Observamos nos grifos acima que as atrizes compreendiam a ocupação


da/na Boca do Lixo. Quando Dalma reitera que esta é, tão só, uma condição
atual do fazer fílmico, não estabelece um juízo de valor sobre o campo que
acolhe sua profissão – inclusive, reitera que não é contrária a sua realização.
Já Telma posiciona a questão da recepção quando se volta à apreciação do
público e o consumo destas pornochanchadas que, na sua opinião, deveriam
ter a preocupação de serem ‘boas’.

Ainda que tais passagens sejam influenciadas por serem publicadas


num espaço como tal periódico e, talvez por isso, tendenciosas, é um
contraponto interessante quando rememoro as classificações de Inimá Simões
(1981); não apenas entre produção, direção e roteiro, mas também entre as
atrizes que são partes fundamentais das obras observo que situar a
pornochanchada à época (e ainda) enquanto figura altera do cinema benquisto
pela mídia tradicional, o governo autoritário (através da Embrafilme e da
censura) e a elite intelectual, significava se colocar num contra-discurso,
72

assumindo uma postura defensiva e/ou reiterando a precariedade das obras


que poderiam ser melhoradas, como se os trabalhos desenvolvidos não fossem
bons suficientemente.

José Carlos Avellar, nos anos 1980, tece uma crítica sobre a
pornochanchada ser a irmã siamesa - “xifópaga” - da censura no país: ambas
não sobreviveriam sozinhas, sendo as leis de fomento à exibição nacional e a
sua condição conservadora essenciais a existência da primeira, assim como o
poder de veto ou cortes de censores à segunda. Entretanto, identificamos que
o sexploitation por si só faz com que as pornochanchadas ascendam –
inclusive quando a Embrafilme, que até meados dos anos 1970 se voltavam à
obras ufanistas, passa a utilizar mais o elemento das práticas sexuais.

Nas primeira páginas da mesma edição de n. 15, na coluna Ponto de


vista, figura uma opinião sobre as produções milionárias Dona Flor e seus dois
maridos (Bruno Barreto, 1976), assim como Xica da Silva (Carlos Diegues,
1976), que coaduna com nossa identificação:

Um fato comum a ambos os filmes é que, absorvendo e sofisticando


a picardia das chamadas pornochanchadas - picardia essa do inteiro
agrado das platéias brasileiras - estabeleceram uma imensa
comunicação popular, o que lhes possibilitou granjear a publicidade
espontânea que o povo faz dos filmes que entende e gosta. (Cinema
em close-up, São Paulo, n. 15, 1977, p. 3)

Acreditamos que as dualidades como erótica/pornográfica, boa/ruim,


conservadora/revolucionária, por vezes, empregadas, não apreendem a
complexidade de se fazer um cinema das/nas margens. O sexploitation no
Brasil retoma o cotidiano, torna-se o reflexo das ambiguidades hegemônicas e
contra-hegemônicas nos espaços que ocupa; entre a(s) vida(s) pública e
privadas reconhece o cinismo da moral e faz dele plataforma. Logo, falar sobre
o sexo à censura e aos espectadores se torna uma reafirmação das
colonialidades já repetidas até a saturação noutras plataformas, especialmente,
ao sexo sujo do imaginário urbano que ocupa São Paulo e outras capitais como
Recife, mas é em si uma tentativa de escapar e garantir sobrevivências no
cinema enquanto indústria – que estava em alta no período.
Interssecionalizando discussões sobre gênero, sexualidade e raça, veremos
como se organiza esses embates a partir da crítica.
73

A prática sexual heteronormativa, cisgênera e em acordo com a moral


cristã é central nas narrativas das pornochanchadas; os corpos das atrizes
serão generificados dessa maneira, a partir da perfomance de gênero, como
afirma a filósofa Judith Butler (2013): constituídos e constituindo as relações de
gênero numa perspectiva relacional a partir de repetições e assimilações
sociais, culturais, discursivas e, sobretudo, históricas. Para a autora nem o
sexo, nem o gênero são dados, mas sim construções que partem da interação
social e da forma dos sujeitos se expressarem no mundo. Ainda na entrevista
das atrizes ao periódico Cinema em close-up, destacamos a passagem a
seguir que revela como algumas dessas atrizes – que permaneceram no
anonimato – entendiam as suas atuações no contexto de tal gênero
cinematográfico.

CLOSE-UP - Você acha que esta transa de mulher tirar a roupa no


cinema é sacanagem ou uma forma de arte e é válida?

DALMA - Eu acho que sendo com arte é válida. Eu tirei a roupa pela
primeira vez em 'Pra Ficar Nua, Cachê Dobrado' pela exigência do
papel; Teria tirado antes se os papéis exigissem.

KANDY - É válida. Se somos as mulheres mais lindas do mundo, se


temos o que mostrar, sacanagem seria se não mostrassemos.

DEIZE - Não posso dizer nada. Realmente não fiz uma aferição da
questão.

TELMA - A mentalidade atual é diferente. Sacanagem existe. Não é


só no cinema. Na publicidade, na vida social, enfim, é preciso que
haja motivos para isso. É a persuassão, atrair o público a consumir,
entende? (Cinema em close-up, São Paulo, n. 15,1977, p. 26, grifo
nosso).

Telma, na passagem destacada acima, reconhece uma categoria


fundamental e quase fundante da pornochanchada e dos discursos sobre ela: a
sacanagem. Sacanagem e malandragem são tomadas como uma gramática,
uma complexa construção simbólica interligada ao universo sexual brasileiro. A
sacanagem, para o antropólogo Richard G. Parker (1989) no artigo Bodies and
pleasures: On the construction of erotic meanings in contemporary Brazil, faz
uma ponte com a carnavalização - lugar onde a ordem e as repressões são
invertidas, extrapoladas do ambiente íntimo/particular para o público,
permitindo também uma igualdade entre aqueles que usufrem a festa.
Entretanto, Parker explica que o conceito de sacanagem envolve uma relação
74

de dinâmicas históricas, percebidas através da agressão, hostilidade, mas


também de entrenimento e excitação sexual, brincadeiras e diversões.

Tal elemento esteve presente na construção histórica e artística do


Brasil, se perpetuando nas pornochanchadas e nos filmes pornográficos que
seriam realizados no país a partir dos anos 1980. A esse respeito, comenta
Nuno Abreu:

Com poucas exceções, o pornô brasileiro não escapa, numa análise


pouco rigorosa, de uma impressão de caricatura ou comicidade (às
vezes involuntária). Há neles a forte presença de um traço recorrente
da cultura brasileira: a sacanagem, referida tanto à conduta (à ética)
quanto ao terreno da sexualidade. Os filmes parecem ser feitos de
sacanagem sobre sacanagem. Escracho e deboche são seus
ingredientes essenciais, salvo algumas exceções com pretensões
estéticas ou psicologizantes, que às vezes deslizam para o ridículo.
(ABREU, 1996, p. 86)

Para reafirmar prerrogativas sobre a construção de uma


heteronormatividade no cinema popular/sacana, o DM utiliza jargões nos usos
de "muito palavrão e mulher pelada" ou a "aventura desnuda" e "o que está
esperando?" em sentidos igualmente apelativos para convencer os leitores a
irem a sessão dos filmes no Art-Palácio, cinema localizado no bairro de Santo
Antônio. A mídia tradicional de Pernambuco, como continuaremos vendo no
capítulo seguinte, pouco discutiu os aspectos socio-culturais das
pornochanchadas e seus enredos; nestes, estavam, segundo trabalho de
Cristina Felizardo sobre a erotização à brasileira,

(...) tipos femininos para todos os gostos: virgens, viúvas,


mulheres experientes, quase sempre belas e desinibidas. Os
personagens masculinos eram geralmente tipos machões,
espertos, cafajestes e malandros (vinculados ao sucesso
sexual), ou então garotos virgens e maridos impotentes
(relacionados ao fracasso). Os homossexuais, em geral, eram
ridicularizados. (FELIZARDO, 2009, p.17).

O contexto de espectatorialidade desenvolvido aqui pode ser


compreendido no sentido de imersão que Metz (1982) credita ser o processo
voluntário que os indivíduos estabelecem no cinema na adoção de uma crença,
desassociando as projeções da tela de sua realidade – que, devemos aqui
imaginar como o contexto ditatorial – e os a transgressão aos interditos.O
observador/espectador, no entanto, não pode ser visto como uma figura
totalmente passiva àquilo que é produzido – quando levamos em consideração
75

o contexto, admitimos que este faz parte do mesmo processo histórico nos
quais os filmes se incluem, como Mayne (1993) nos indica e hooks (2019)
intercala, estamos nos referindo a esquemas ideológicos e culturais que
guiaram por séculos visões estereotipadas e estreitas que perpetuaram normas
sociais sistemicamente.

2.2 Intersecções gênero, raça e classe nas Pornochanchadas

A crítica feminista sobre a construção dos gêneros nos filmes, desde o


início do cinema, têm elaborado pontos como a descentralização de um único
sujeito – homens, brancos, heterossexuais e de classe social privilegiada –
como espectador, assim como o deslocamento para visões positivas nas quais
espectadores outros possam se identificar, mas buscando o entendimento
daquilo que há cem anos têm se debatido: as questões sobre identificação,
autodefinição e dos modos (e possibilidades) de se ver enquanto sujeitos.
Teresa de Lauretis, ao falar sobre o aparato cinematográfico e suas relações
com as tecnologias de gênero – construídas social e discursivamente e sendo
responsáveis pelo controle e disciplinamentos dos corpos como sustentáculo
do poder – nos diz:

De fato, há razões para questionar o paradigma teórico de um sujeito-


objecto, seja ele Hegeliano ou Lacaniano, que subjuga tanto os
discursos estéticos como científicos da cultura ocidental; pois o que
esse paradigma contém, no que esses discursos repousam, é o
pressuposto não conhecido da diferença sexual: que o sujeito
humano, o Homem, é o masculino. (DE LAURETIS, 1987, p. 130,
tradução nossa). 22

Retomando às páginas do DM, vemos que a diferença sexual também é


balizada por outra violência: a do racismo. Destacamos um fragmento:

Mais uma pornochanchada brasileira em cartaz. Trata-se de


'Um Varão Entre As Mulheres', um filme-agressão divididos em
vários 'skets', com Jorge Dória rodeado pelas belezas de
Sandra Barsotti, Nídia di Paula, entre outras. Uma das
sequências mais ridículas e imbecilóides é quando uma
negrinha esquelética vai fazer um desatroso 'strep-tease' para o
patrão e coloca na vitrola um disco de Billie Holliday cantando
'Blue Moon'. Assim é demais. Em exibição no [cinema]
Moderno. (Diário da Manhã, Recife, 28/08/1975).

22
“There is indeed reason to question the theoretical paradigm of a subject-object, wether
Hegelian ou Lacanian, that subtends both the aesthetic and scientific discourses of Western
culture; for what that paradigm contains, what those discourses rest on, is the
unacknowledgment assumption of sexual difference: that the human subject, Man, is the male.”
76

Sem sequer incluir dados sobre a produção do filme ou o seu diretor, a


publicação do DM trata como sequência "ridícula” e de “imbecilóides" a cena
em que uma mulher negra, cujo nome é omitido e se usa o termo racista
“negrinha esquelética”, apresenta um strip-tease ao som da cantora afro-
americana de blues Billie Holliday. No elenco do filme estava Zezé Motta
interpretando a empregada e o enxerto nos leva a crer que era a ela que se
reportava tal injúria presente no periódico. Como afirma Jairo Nascimento
(2015), os estereótipos raciais nas pornochanchadas englobavam os 'negros
viris-sensuais', tanto para homens, quanto para mulheres. A reafirmação dessa
virilidade pode ser associada ao próprio título do filme, no emprego do termo
‘varão’ - atendendo a um controle discursivo do ‘ser homem’ hegemônico que
garantiria sua dominação simbólica e a subordinação das mulheres. (CONNEL,
1995).

Tal visão sexista e racista se aprofunda quando as atrizes negras são


colocadas para interpretar empregadas domésticas, remetendo à códigos
coloniais, às relações psicossociais exercidas e que ainda permeiam a
mentalidade brasileira. As domésticas, principalmente, são colocadas "(...)
como uma espécie de animal doméstico para uso sexual, sempre à mão na
cozinha, por perto do tanque ou máquina de lavar roupa." (AVELLAR, 1973,
p.2, apud NASCIMENTO J., 2015, p. 272). Quando o DM vangloria a estética
branca e coloca o termo pejorativo “negrinha”, faz uma escolha bastante
racializada e desumanizadora: se o corpo exposto é branco, no caso das
atrizes Barsotti e di Paula, se evoca uma atração sexual - quando ele é preto,
não é identificado, mas é caracterizado para causar repulsa. O repúdio ainda é
assinalado ao se falar da música escolhida na sequência, posto que a cantora
Billie Holliday seja um ícone da música negra norte-americana que lançou, em
1939, a canção Strange Fruit, denunciando o racismo, as injustiças sociais, e o
sistema de repressão sistêmica endereçado às pessoas negras – algo que se
perpetuou nas suas canções sobre afetividade, relações amorosas e políticas
por toda sua carreira.

Ainda na esteira de comentários de racistas realizados pelo DM – em


consonância ao que se colocava na maioria das pornochanchadas, revela-se
77

outro estigma: o da mulata. Numa passagem meses depois da supracitada, se


coloca:

Quem dizer curtir as pornochanchadas nacionais, tem à


disposição nada menos que três filmes até amanhã: 'Uma
Mulata Para Todos'(vale a pena ver a mulata Juciléa
Teles; 'Pensionato de Mulheres (este é péssimo sobre
todos os aspectos). Ainda prá entrar esta semana:
'Quando As Mulheres Querem Provas' e 'Essas Mulheres
Lindas, Nuas e Maravilhosas'. (Diário da Manhã, Recife,
08/12/1975, grifo nosso).

A produção das representações acerca dos corpos das “mulatas” como


símbolos sexuais esteve mais presente nas pornochanchadas produzidas no
Rio de Janeiro do que na Boca paulista. Os diretores Carlo Mossy e Roberto
Machado foram os que mais utilizaram tal prática, elegendo suas musas: Adele
Fátima e Lúcia Legrand, assim como Julciléa Telles, respectivamente.
(NASCIMENTO J., 2015). Machado é quem desenvolve a direção, produção,
argumento e o roteiro do filme Uma mulata Para Todos, lançado em 1975 e
distribuído pela Cinedistri. Tendo Rosa (Julciléa Telles) como protagonista, o
argumento do filme retrata a saída desta do interior parao centro do Rio de
Janeiro - na busca por trabalho, torna-se manicure e depois de sofrer um golpe
pelo personagem Juca, é empregada por Arlindão numa boate como uma
vedete. O filme mostra o embate entre os dois homens pelo amor (ou seria
posse?) de Rosa, que consegue se desvencilhar dos cariocas ‘malandros’, mas
acaba se prostituindo para garantir seu sustento. A bilheteria deste registrou
795.992 espectadores, segundo dados da Ancine (2018).

No Brasil, através de representações nas obras literárias, assim como na


televisão, no espetáculo carnavalesco, através de colocações historiográficas,
médicas, biológicas, entre outras, a “mulata” foi engendrada discursivamente
num conjunto assimétrico que envolvia sua cor, gênero e sua sexualidade. As
classificações raciais binárias (entre brancos e não brancos) fez com que esta’
se tornasse uma categoria bastante ambígua e fluída, criando dessa forma
quase um terceiro termo racial; a figura mítica da mulata, para a antropóloga
Mariza Corrêa, "firmou-se no mesmo campo semântico do qual faziam parte
uma série de outros discursos" cujas palavras que podem ser "utilizadas para
qualificá-la como indesejada, têm estreita afinidade com os atributos que
78

serviam para identificar positivamente a mulata no imaginário brasileiro".


(CORRÊA, 1996, p.40).

As angulações do filme não pouparam o corpo de Julciléa, que além de


símbolo sexual na esteira do sexploitation nacional, foi uma das primeiras
mulheres realizadoras do país: coproduziu com Roberto Machado os filmes
Essa Freira É Uma Parada (1977) e A Gostosa Da Gafieira (1980), seu
primeiro roteiro e obra na onde também trabalhou na direção de arte ligada ao
figurino; tal função de figurinista se repetiu em Deu A Louca Nas Mulheres
(1977) e na guinada ao pornô que Machado dá nos anos 1980, com os filmes
Tabu da Virgindade (1982) e Piranha de Véu e Grinalda (1982), onde a atriz
igualmente interpreta personagens.

Para hooks (2019, p. 136-137), no âmago da cultura popular se


estabeleceu uma iconografia racista e machista na qual a sexualidade da
mulher preta sugere “disponibilidade sexual e licenciosidade”, que ela é uma
‘’gostosa’ altamente sexualizada” e desviante. Tais estereótipos negativos não
serviram para subverter os valores culturais nos quais estavam arraigados,
sendo absorvidos passivamente ou combatidos por tais mulheres, ainda que
convertessem, sob o controle representativo, o lucro que pudessem alcançar
na frente/atrás das câmeras. 23

No emprego da palavra “mulata” feito pelo DM é possível constatar que


assim como noutras plataformas o discurso midiático impresso foi um lugar
utilizado para reafirmar essa condição, tratando a atriz Julciléa Teles como algo
que valesse a pena sair de casa para ‘ver’. O sentido de ‘ver’ para hooks
(2019) é bastante relacional – por isto, a autora tece críticas ao voyeurismo
presente nos estudos de Laura Mulvey (1975), ao debater que as mulheres
negras criaram enquanto espectadoras, há anos, um olhar opositor – posto que

23
É interessante pontuar que o exploitation norte-americano conseguiu prover um espaço de
heróis e heroínas pretos/as, com filmes de autoria do mesmo grupo, nos anos 1970: eram os
filmes de Blaxploitation, oriundos do levante dos movimentos negros no país pelos direitos
civis, resultando num grande público que queria se sentir retratado no cinema comercial -
pressão que recaia na indústria cinematográfica (em Hollywood ou em espaços marginais) para
realizar obras orientadas para a negritude, com o intuito de aliviar a tensão política e financeira
da indústria cinematográfica no período. Cf. SIMS, Y. Women of blaxploitation: how the black
action film heroine changed American Popular Culture. North Carolina: McFarland & Company,
Inc., 2006.
79

até mesmo em filmes produzidos por diretores negros estariam passíveis a


serem objetificadas, além de já não se sentirem representadas pelas figuras
brancas hegemônicas no cinema clássico e suas narrativas. Para a autora,
ainda,

Talvez pessoas negras se apeguem à fantasia de que o


falocentrismo e o patriarcado fornecerão um caminho para fora
da confusão e destruição causadas pelo ataque genocida
racista (...). Essa forma de pensar significa que pessoas negras
não têm que imaginar estratégias criativas para confrontar e
resistir ao patriarcado branco e ao racismo internalizado. (...).
Na cultura popular, representações da masculinidade negras
igualam ao falocentrismo bruto, ao ódio pelas mulheres, a uma
sexualidade combativa‘estupradora’ e a um claro desprezo
pelos direitos individuais (HOOKS, 2019, p. 194-195).

No período estudado, a Empresa Brasileira de Turismo (Embratur)


veiculava massivamente ao exterior uma imagem do Brasil interligado a um
paraíso de mulatas para reafirmar a identidade nacional em torno da
mestiçagem/sexualidade, colocando-o como um lugar de festa permanente e
permissiva legitimando o abuso e o assédio sexual sobre corpos assim
classificados. A denúncia do racismo estava proibida: os generais do governo
consideravam “que afirmar a existência de racismo contraria a imagem de
cordialidade e ausência de conflitos intergrupais no país” (GILLIAM; GILIIAM,
1995).

Tal prática era recorrente entre jornais e revistas que podiam ser
apreendidas/recolhidas, já que debater racismo podia ser interpretado como
incitação ao ódio ou discriminação racial, portanto, era contra a Lei de
Segurança Nacional e o AI-5; no caso do DM, como jornal apoiador do golpe,
as perseguições eram menores, em comparação a imprensa independente ou
materiais organizados pelo movimento estudantil pela mobilização contra o
regime em Pernambuco.

O universo do Diário da Manhã não nega a quais grupos sociais suas


publicações se voltavam: nas leituras observadas no processo da pesquisa,
foram inúmeras as asserções do jornal em pacto com a governança militar,
sobretudo, focando na vida econômica e social da cidade. Um dos nomes de
maior prestígio no jornal, o colunista Clóvis Menezes, assume a coluna
80

Sociedade em Movimento, em 1967, fazendo o que diz ser sua “reentrée”


(MENEZES, Clóvis, Diário da Manhã, Recife, Sociedade em Movimento, p. 7,
03/04/1967) nas atividades jornalísticas, após oito meses de afastamento, com
o apoio do diretor do jornal, o jornalista e advogado Heleno Gouveia, e o
suporte de Augusto Boudoux, secretário do semanário. A preocupação
apresentada pelo jornalista, em 1967, é dispor um espaço voltado à vida social
da cidade, aos movimentos artísticos e das letras, destarte, a movimentação
das classes média e alta no Recife que já acompanhava a frente de eventos
sociais e leilões beneficentes.

Nos anos 1970, Clóvis passará a ser um porta-voz das indignações e


denúncias feitas por estas mesmas classes moradoras/frequentadoras da área
central do Recife – saindo das páginas 6 e 7 do DM e indo para a página 2 –,
ou é isso que se propõe a fazer quando começa a tecer comentários, por
vezes, sucessivos, às exibições das pornochanchadas aqui. Sob o título de
CINEMA & POUCA VERGONHA, utilizando a caixa alta para enfatizar sua fala,
ele afirma:

Ao entrar em qualquer cinema da chamada 'cidade


maravilhosa', você encontra, 'de cara, um investigador de
menores, um outro policial e o gerente da casa. Por mais
pornográfico e licencioso que seja o filme, você o assiste com a
platéia calma, sorrindo na hora apropriada. Aqui, no Recife, o
negócio é completamente diferente. No domingo, fui ao
[cinema] São Luiz assistir a pornochanchada 'Com as Calças
na Mão'. A 'barra estava pesada', uma vez que as palavras de
baixo calão eram pronunciadas por alguns dos presentes nos
momentos das cenas eróticas. Não sei como é que se permite
tamanha falta de consideração para o público espectador.
Como é que nãohá providência imediata contra certo tipo de
gente que demonstra, com a sua maneira de proceder, que não
tem condições de freqüentar ambiente familiar? Evidente que a
direção da casa de espetáculo nada tem com o 'peixe', uma vez
que ela é a maior vítima. (MENEZES, Clóvis. Diário da Manhã,
Recife, 23/02/1976).

Na passagem acima, Clóvis nos traz algumas informações sobre como


os cinemas funcionavam (ou deveriam, a seu ver) em alguns lugares do país:
contendo membros da polícia para exercer controle sobre os espectadores.
Faz-se necessário explicar que diante do contexto da ditadura, a Divisão de
Censura de Diversões Públicas (DCDP) foi o instrumento oficial da censura
81

sobre as produções culturais – o cinema, o teatro, a televisão, as obras


literárias etc. –, que estavam sob sua fiscalização, também da chefia do
Serviço de Censura de Diversões Públicas (SCDP). O esquema de censura
apenas se modificara no período, tendo existido anteriormente ao regime,
criado pelo general Eurico Dutra após a queda de Vargas, em 1946.

Em 1974, anos antes da publicação de Menezes e tendo Geisel 24 na


presidência, crescia a demanda da censura e, em frente a tal quadro, se
organizou o Curso de Transformação para quem quisesse se tornar censor,
promovido pela Academia Nacional de Polícia, elucida o historiador Carlos Fico
(2002) 25. A inquietação do jornalista se insere na preocupação, também
governamental, dos atentados à moral e aos bons costumes – tendo em vista o
aumento de peças teatrais e de álbuns musicais da contracultura, assim como
de obras cinematográficas, televisivas e literárias, com conteúdo sexual. 26

Esse incômodo se mostra igualmente ao final, quando fala do cinema


São Luiz como um ambiente familiar vítima das balbúrdias do público – para
marcar a imoralidade, ele reafirma que, no Rio de Janeiro, nem mesmo “o mais
pornográfico” filme (aqui, com sentido de vulgaridade), sofria com o que
acontecia no Recife. O cinema São Luiz, inaugurado em 6 de setembro de
1952 na base do Edifício Duarte Coelho, no bairro da Boa Vista, era um

24
O período de gestão Geisel (1974-1979) é um dos mais complexos, em termos econômicos,
da ditadura brasileira. Isso se dá pelas relações políticas e econômicas internacionais - entre a
diversificação nas relações com outros países da América Latina, de África e do Leste
Europeu; entretanto, a má execução do II Plano Nacional de Desenvolvimento (anunciado em
1974) acabou por aumentar a vulnerabilidade e a dependência do mercado externo, gerando
maiores dívidas do que melhorias ao país. Para maiores informações, ver: CUNHA, Raphael
Coutinho da; FARIAS, Rogério de Souza. As relações econômicas internacionais do governo
Geisel (1974-1979). Revista brasileira de política internacional, v. 54, p. 46-69, 2011.
25
Carlos Fico indica que existiam limitações técnicas na DCDP, tanto em tecnologia, quanto em
pessoal: Segundo seus dados, em 1973, estavam em atuação de 34 censores, 45 censores em
1978 e o máximo de 59, em 1981 (FICO, 2002, p. 265). Como se colocavam enquanto
importantes intelectuais, os ataques à censura criavam grande ressentimento entre os
censores, gerando uma forte tensão e desistências. Além disso, muito dos antigos censores
começaram a ser substituídos em meados dos anos 70 e 80 já que não conseguiam crescer
nos processos seletivos internos.
26
A esse respeito, Ana Carneiro (2013, p. 60-61) comenta: “(...) embora a censura de cunho
político-ideológico tenha sido praticada durante o regime militar, a censura de costumes
permanecia sendo o campo habitual de atuação da DCDP, como evidencia a natureza
erótica/pornográfica da maioria das obras censuradas nesse período. Quando examinamos,
mesmo superficialmente, a lista de filmes e publicações vetadas, percebe-se facilmente a
prevalência das publicações de Cassandra Rios, Brigitte Bijou e Adelaide Carraro,
consideradas pela censura autoras de obras pornográficas.”
82

exemplo de lugar de requinte na cidade – sua arquitetura art-déco e seu interior


com 1260 cadeiras, platéia e balcão, foram pensados parar atrair um público
seleto que, nos anos 50, utilizava trajes de gala para frequentá-lo.

Segundo a descrição da arquiteta Kate Saraiva (2013, p. 39), esse


ambiente sofisticado é acompanhado pelo “painel de Lula Cardoso Ayres,
retratando os sobrados, figuras de maracatu e bumba-meu-boi, salas de espera
com sofás confortáveis, quadros para cartazes dos filmes e bomboniére" além
dos "vitrais de Aurora de Lima, aluna de Heinrich Moser". Por meio dessa
asserção, compreendemos que a maior problemática era a ‘balbúrdia’
instaurada nas salas que seguiam as mudanças no centro da cidade, atraindo
um novo tipo de clientela – inclusive, consumidoras das pornochanchadas –,
malquista pelas classes mais abastadas que acreditavam ser ali parte de seu
território. O lugar do luxo, no Recife, passara a ser um réquiem da
pornochanchada e seus seguidores.

Menezes investia, portanto, numa abordagem ainda mais violenta pelos


órgãos de censura, cobrando uma fiscalização que também adentrasse aos
espaços privados, às posturas individuas dos espectadores – indicando que no
período, a divisão entre o público e o privado se tensionava. Em outra
publicação, o autor reforça que o policiamento deveria existir, não apenas nos
cinemas, mas noutros lugares “familiares” – a praia de Boa Viagem, local que a
classe média/alta tinha se direcionado com a ascensão econômica nos anos
1970 (fomentada por uma rápida verticalização), parecia estar sendo invadida
por uma “anomalia” social:

Não se sabe e nem se compreende a razão pela qual


ainda permanece o problema do futebol nas praias
recifenses, mui especialmente na de Boa Viagem. Parece
que falta de interesse por parte dos setores competentes,
uma vez que o deslocamento de um número não muito
grande de policiais,fardados, nos fins de semana, por
exemplo, seria a medida mais certa a ser adotada e em
condições de solucionar a anomalia. Você chega a praia
com sua família e não tem sossego um só momento.
Chutes violentos, bicicletas ,motocas (para usar um termo
bem na 'onda') e até cavalos são encontrados a todo
instante em Boa Viagem, quando o movimento dos
banhistas é muito grande... - 2. - OUTRO problema que
está a merecer uma solução urgente diz respeito o da
ausência de policiamento nos cinemas. Gostaria que as
83

autoridades do setor fossem assistir, para ver e sentir a


gravidade do problema, a última sessão de um dos
cinemas do centro do Recife. Garanto que ficarão
surpresos com a linguagem de baixo calão empregada
livremente. Quando se trata de filme nacional, sempre na
base da pornô-chanchada, aí é que o negócio fica feio.
(MENEZES, Clóvis. Diário da Manhã, Recife,
22/11/1976).

Novamente, Menezes utiliza a caixa alta para indicar que os problemas


dos cinemas de centro persistem; dessa vez, ainda convida as “autoridades do
setor” para “ver e sentir” o que acontece nas salas das “pornô-chanchadas”,
condenando como um crime as sessões noturnas e seu público,
aparentemente responsáveis por uma ‘desonra’ dos espaços de sociabilidades
recifenses que apenas a ordem policial pudesse alterar. Entre as suas notícias
CURTAS, BOAS E ATUAIS, ele veicula entre os itens 5-7:

5.Quem quer que se aventure a comparecer aos cinemas do centro


da cidade, pode ir preparado para enfrentar um verdadeiro festival de
pouca vergonha. A ausência de policiamento não poder ser
justificado, de forma alguma.

6.Alegar-se que a polícia não existe para fiscalizar a frequência nos


cinemas, parece indicar um estímulo à tanta pouca vergonha.
Palavras de baixo calão, inexistentes até na zona do 'bas fond', são
pronunciadas a todo instante.

7.Quando está sendo exibida uma pornochanchada, a situação se


agrava mais ainda, uma vez que o linguajar aumenta em variedade.
Se a polícia não existe para esse tipo de fiscalização, quem é que
pode se responsabilizar pelo dito-sujo? (MENEZES, Clóvis. Diário da
Manhã, Recife, 24/05/1978, grifo nosso)

A fala de Menezes continua em ataque às pornochanchadas e a falta de


policiamento nos cinemas. Nos trechos acima, ele intercala definições para se
referir às duas situações de forma degradante. Quando ironiza ao empregar o
“verdadeiro festival de pouca vergonha”, ao se referir aos cinemas de rua
(tomados, na maioria, pelas comédias de costume obscenas), cuja ausência de
policiamento “indica um estímulo” que nem na “zona do bas fond” 27 se
encontra; o autor que outrora cobrava um posicionamento das autoridades,
parece se rebelar contra esta. Afinal, quem iria se responsabilizar pela
resolução de tamanho constrangimento em ver a ralé recifense assistindo aos

27
Definição de bas-fond [bɑfɔ̃]: 1. Camada degradada da sociedade; escória social, ralé; 2. POR EXT. Local
onde vive essa gente e que apresenta alto índice de prostituição. Dicionário [online] Michaelis: Editora
Melhoramentos, 2015. Disponível em: < http://michaelis.uol.com.br/busca?id=V8BY >. Acesso em 10 de
jun. 2021.
84

filmes promíscuos produzidos/protagonizados pelo mesmo extrato social, mas


paulista?

É nesse sentido que o crítico e realizador Jean Claude Bernadet (2009)


encara a censura que as pornochanchadas sofreram:

Seus opositores pertencem a um público culto. Esses opositores, via


de regra, não se perguntam o que de significativo os amantes da
pornochanchada encontram nesses filmes. Estão propondo é
substituir o sexo que eles não querem, e a que chamam pornografia,
pelo sexo que querem, e a que chamam de erotismo (BERNARDET,
2009, p. 207).

A defesa da moral e dos bons costumes, considerados alicerces da


família brasileira e tão caras ao golpe militar e seus apoiadores conservadores,
parecem estar perdendo a força, juntamente com a censura, que existira
justamente para impossibilitar que as transgressões ocorressem. A imoralidade
dos filmes confrontava toda a formação moral cristã da instituição familiar que
se defendia, ao explicitar "insinuações sobre amor livre, divórcio, infidelidade
conjugal, sexualidades 'ilegítimas'”. (CARNEIRO, 2013, p. 12-13).

Durante a pesquisa, nos foi possível observar que Menezes continuava


a caçoar e maldizer quaisquer filme de teor sexual quando condena produções
como Tentação proibida, filme ítalo-espanhol de 1978, que “ganha disparado
para a 'Dama do Lotação' [Neville d'Almeida] e outros que tais” (MENEZES,
Clóvis. Diário da Manhã, p. 2, 15 de junho de 1978), da mesma forma que o
libertino Casanova (1976), de Federico Fellini, demonstra que o “cinema norte-
americano (algumas vezes), o francês e o italiano também apelam bastante”
(MENEZES, Clóvis. Diário da Manhã,p. 2, 16 de maio de 1978).

Tão logo, a preocupação de alguns cineastas e atores era se afastar da


penumbra que a classificação pornochanchada trazia para poder se colocar
sob os holofotes. No DM, conseguimos localizar uma citação de Bruna
Lombardi nesse sentido – a atriz dizia: “meu sonho é fazer cinema; porém
enquanto estiver na faixa da pornochanchada, não entrarei” (LOMBARDI apud
MARCEL, DM, p. 7, 8 de março de 1979). Em outra passagem, o DM veicula o
filme de um pernambucano que volta a cidade do Recife para promovê-lo e já
está em alerta:
85

O diretor Gilvan Pereira, natural de Aliança, Pernambuco,


encontra-se no Recife, promovendo o lançamento de seu
1º longa-metragem, 'Com Um Grilo na Cama’, que ontem
estreiou no [cinema] S. Luiz. Segundo o jovem diretor,seu
filme não é uma pornochanchada, mas uma comédia de
costumes, sobre um tema muito discutido na atual moral
brasileira: a virgindade. Em linhas gerais, 'Com um Grilo
na Cama', descreve a história de duas moças da zona
Sul carioca, que procuram uma clínica especializada na
restauração da virgindade. O elenco é muito bom: Dilma
Lóes, Iris Bruzzi e Monique Lafond. O diretor Gilvan
Pereira está radicado no Rio há 18 anos, 12 dos quais
ligado ao cinema, escrevendo roteiros para os filmes de
Jece Valadão, Daniel Filho, entre outros. O público
recifense está na obrigação de prestigiar este filme,
realizado por um filho da terra. (Diário da Manhã, Recife,
Cinema, Música e Variedades, 8/12/1975).

Gilvan Pereira dirige, argumenta e lança tal filme por sua própria
produtora (Gilvan Pereira Filmes), tendo a Atlântida Cinematográfica na
coprodução. Um Grilo Na Cama é distribuído pela U.C.B. - União
Cinematográfica Brasileira S.A., registrando bilheteria de 580.971
espectadores, segundo a Ancine (2018). Por se tratar de uma comédia que gira
em torno da virgindade, as comparações inevitavelmente viriam – dessa forma,
traçar a carreira de Gilvan Pereira como um colaborador de cineastas mais
famosos, ligados a Embrafilme, serviu para dar um peso positivado à produção
realizada “por um filho da terra”. 28

Em linhas gerais, o Diário da manhã evitou falar sobre as


pornochanchadas, algo que foi diferente em outros jornais do Recife, como
veremos a frente com o Diário de Pernambuco. A coluna de Cinema, Música e
Variedades, raramente trazia textos assinados – no nosso recorte sobre a
pornochanchada, ela seguiu as convenções da mídia jornalística tradicional do
período, agindo de forma conservadora e banalizando as exibições dos filmes e
os seus conteúdos. Sem uma crítica cinematográfica especializada, vemos que
no DM as mais contundentes percepções no horizonte da espectatorialidade se
interliga ao colunista social Clóvis Menezes. Em seu espaço no periódico,
Menezes tem uma postura bastante conservadora que acompanhou toda a sua

É possível encontrar todas as produções que Pereira participou, desde os anos 1950, na base de dados
28

da cinemateca brasileira. Cf. CINEMATECA BRASILEIRA. Disponível em:


<http://bases.cinemateca.gov.br/> Acesso em 15 de jan. 2021.
86

trajetória no jornal – o autor chegou até a pedir a proibição dos clubes


carnavalescos nos dias de folia, como rememora Diogo Melo (2010).

Há uma clara inclinação em seus textos pela defesa da moral e a


exaltação negativa da “pornô-chanchada”, os constantes apelos pelo uso da
força policial para garantir o controle da população ‘marginal’, mesmo em seus
momentos de lazer. A depender da origem, a Pernambucália de parte da elite
recifense conseguia e era bem vinda a se apresentar no Teatro de Santa
Isabel, o mesmo que não acontecia com as Vivecas de Olinda 29 ou com o
cinema popular do período, vulgarizado no emprego de pornografia feita por
Menezes.

Os estigmas e preconceitos sobre o tal gênero foram transformados pela


Boca e seus distribuidores, que responderam à mal propaganda recheando as
programações dos cinemas recifenses semanalmente, dividindo as sessões
com os filmes de arte exibidos em dias específicos, os blockbusters
estrangeiros e os filmes de karatê e kung-fu. Esses últimos tiveram destaque
nos cinemas que também se encontravam fora da Rede Severiano Ribeiro que
dominou grande parte do circuito pernambucano no período e diariamente
veiculava as programações do grupo no DM.

A importação de filmes voltados às artes marciais estava


intrinsecamente ligada ao sucesso de público mundial e as taxas baixas para
exibição. Os anos 1960 e 70 foram uma época auréa para o gênero Wuxia e o
de Kung Fu 30, produzidos massivamente em Hong Kong (ainda colônia
britânica naquele período), por autores como Akira Kurosawa, Hiroshi Inagaki e
Hideo Gosha, escoados rapidamente pela indústria cinematográfica.
Aproveitando o filão, os grandes estúdios hollywoodianos, como a Warner
Bros, captam o interesse pelas produções e lançam seus próprios filmes -
apresentando Bruce Lee, Jackie Chan e David Carradine entre os atores
principais.

29
Assim eram chamadas as pessoas integrantes do Vivencial Diversiones, grupo de teatro olindense que
mesclava as temáticas do cabaré com críticas políticas expressas em corpos dissidentes de gênero e
sexo.
30
Há diferenças entre a constituição destes dois gêneros. Cf: GARCIA, Demian. O som do
Chanbara.Paraná: Revista HATARI!, v.3, n. 3, 2016.
87

No período da ditadura, no Brasil, tal produto, segundo análise histórica


de Ana Carneiro (2013, p. 20) "alcançava extensa faixa de audiência" e, ao
longo da década de 1970 e início de 1980, "a DCDP avaliou para liberação
mais de duzentos filmes e seriados", cortando as cenas que consideravam ser
de extrema violência ou que incitavam a luta pela justiça social, algo que
poderia ser considerado subversivo ou maoísta. Tanto é, que em 1976, é
lançado Kung-Fu Contra As Bonecas, dirigido por Adriano Stuart, com
produção da A. P. Galante Produções Cinematográficas, Kinoart Filmes e
Embrafilme. Ambientado no sertão, a trama envolve a briga de Chang para
vingar a morte do pai e da irmã, assassinados por um cangaceiro, chamado
Azulão. Ainda que sob produção da Embrafilme e direção de Stuart,
responsável pelo sucesso do humorístico Os Trapalhões, o filme não tem
bilheteria superior à 500.000 pessoas (ANCINE, 2018).

No Cinema Glória, por exemplo, nos anos 1970, as sessões envolviam


bastante as Pornochanchadas e os filmes de lutas marciais – mesmo que
pouco se mencione este espaço no DM, é possível acompanhar o desenvolver
desses gêneros no Glória através do documentário gravado em Super-8, em
1979, por Fernando Spencer e Felix Filho. Levando o nome do mesmo espaço,
o documentário Cinema Glória (1979) colhe depoimentos dos seus mais
assíduos frequentadores – “camelôs, prostitutas, biscateiros”, como se coloca
em sua descrição, junto a Jota Soares, Liêdo Maranhão, Bajado e Celso
Marconi, como Maria José Leite, responsável por manter o cinema da família
fundado desde 1926. 31 O cinema, fechado há 35 anos, foi transformado numa
galeria e recentemente sofreu modificações em sua fachada passando de
Cinema Glória para um espaço comercial - a Galeria Glória.

Podemos pensar que os cinemas de Recife foram espaços que, junto


aos bares, as boates e outras áreas de lazer do centro da cidade, passaram a
ser frequentados por outra população urbana que acompanhava o ritmo
modernizante dali e também a atmosfera política, social e cultural em sua
efervescência. E, naquelas ruas, em meio a ditadura de segurança nacional,

O documentário está disponível na plataforma da Cinemateca Pernambucana. Cf. SPENCER,


31

F.; FILHO, F. Cinema Glória. Disponível em: <


http://cinematecapernambucana.com.br/filme/?id=2651> . Acesso em 20 de janeiro de 2020.
88

tais espaços eram divididos entre os pornográficos, a pernambucália, as


vivecas e os moralistas. Até mesmo no periódico Diário da Manhã, famoso por
seu discurso conservador, tais modificações não passaram despercebidas,
sendo na maioria das vezes contestadas, mas é a sua existência enquanto
fator/fonte históricas que nos interessa.

Pensando em um cinema marginal pelo lugar que ocupara (a Boca do


Lixo) e marginal nas poéticas traçadas sobre a cidade-metamorfose que é
Recife nos períodos da ditadura, esse diálogo é bastante profícuo findado nos
estudos contextualistas históricos – perpassando o cinema, seus espectadores
e os discursos, conseguimos cartografar ao menos uma faceta dessa região.
No capítulo a seguir, vemos como as publicações jornalísticas e autorias de
prestígio compreenderam tais movimentações.
89
90

Como nos diz a historiadora da pornografia e da cultura Lynn Hunt


(1999), a separação e os locais dispostos ao erótico e o pornográfico variam
em distintos momentos históricos – obedecem às necessidades de atender ao
mercado e, também, à lógica do saber nas sociedades. Nesse sentido, o
enlace entre sexualidade enquanto conhecimento proibido perpassa o poder,
se constitui na lógica foucaultiana enquanto dispositivo – em sua História da
Sexualidade compreendemos que no seio da cultura hegemônica ocidental
tratou-se, historicamente, tal prática como interdito.

Se o sexo é reprimido, isto é, fadado à proibição, à inexistência


e ao mutismo, o simples fato de falar dele e de sua repressão
possui como que um ar de transgressão deliberada. Quem
emprega essa linguagem coloca-se, até certo ponto, fora do
alcance do poder; desordena a lei; antecipa, por menos que
seja, a liberdade futura (FOUCAULT, 1988, p. 11).

Para Michel Foucault foram produzidas verdades acerca da sexualidade.


O cinema é, então, uma dessas plataformas e onde as práticas sexuais se
interligam ao imaginário coletivo, aos arranjos sociais, políticos e morais,
transgredindo ou reiterando estes. Nesse sentido, precisamos situar o poderio
que a sexualidade possui e exerce – a filósofa Judith Butler (2000, p. 111),
afirma que

o ‘sexo’ não apenas funciona como uma norma, mas é parte de uma
prática regulatória que produz os corpos que governa, isto é, toda
força regulatória manifesta-se como uma espécie de poder produtivo,
o poder de produzir – demarcar, fazer, circular, diferenciar – os
corpos que ela controla. Assim, o ‘sexo’ é um ideal regulatório cuja
materialização é imposta: esta materialização ocorre (ou deixa de
ocorrer) através de certas práticas altamente reguladas. Em outras
palavras, o ‘sexo’ é um constructo ideal que é forçosamente
materializado através do tempo. Ele não é um simples fato ou a
condição estática de um corpo, mas um processo pelo qual as
normas regulatórias materializam o ‘sexo’ e produzem essa
materialização através de uma reiteração forçada destas normas.

A explicitação do sexo nas telas, abarcando a visão foucaultiana


também trabalhada por Butler, entende a transgressão, porém, como uma
continuação e não causalidade. Para Foucault, a transgressão se arquitetou
numa “explosão discursiva mais ampla de sexualidades perversas”, como nos
diz Linda Williams em seus estudos sobre cinema e pornografia:

Tenham ou não essas perversões realmente se constituído em novas


formas de prazer, elas foram ‘historicamente’ implantadas de modos
que se tornam agudamente visíveis no sexo exibido nos cinemas no
91

final do século vinte. Felação, orgasmos femininos prolongados e


múltiplos, excitação sado-masoquista e relações homossexuais –
todos eles têm momentos claros de emergência na história principal e
marginal do sexo exibidos nas telas (...) não como transgressões
liberadoras, mas como facas de dois gumes de liberação e mais
controle disciplinar. (WILLIAMS, 2012, p. 32)

No começo do século XX, as películas fílmicas, outrora mais


documentais e utilizadas no campo científico, adentram a intimidade e
compõem textos ficcionais. Nesse processo de industrialização, se conceberam
os elementos básicos a compor a linguagem cinematográfica: da montagem à
iluminação, o enquadramento da fotografia para compor as imagens que
seguem o movimento da câmera, etc. Dentre estes itens, a produção discursiva
estava mergulhada no imaginário, se subscrevendo enquanto ferramenta
projetiva.

O cinema é colocado enquanto uma indústria tendo que, então,


acompanhar o mercado estabelecendo uma relação próxima ao seu grupo
consumidor. A ascensão do cinema norte-americano teve forte influência na
América Latina; as películas lá produzidas refletiam os problemas sociais e
econômicos das grandes cidades, incluindo as dinâmicas sexuais,
perpassando os dilemas de uma sociedade em crise pela modernidade.

3.1 Ordenações e organizações no/do cinema setentista

Teresa de Lauretis, a partir de uma leitura feminista sobre o gênero,


entende-o como uma tecnologia. A autora enfatiza que as noções de gênero e
sua representação estão submersas nos processos que o estabelecem como
tal, sendo, concomitantemente, meio e produto. E, portanto, “um construto
sócio-cultural e um aparato semiótico, um sistema de representação que
designa significados (identidade, valor, prestígio, localização no parentesco,
status na hierarquia social etc.) aos indivíduos de uma sociedade”. (De
LAURETIS, 1987, p. 64).

Tal tecnologia impacta, logo, no sentido material e subjetivo das


existências generificadas, racializadas, perpassadas também pela questão de
classe e da sexualidade das representações ali fabricadas e as leituras feitas
no lugar da recepção. Assinala-se que a mise-en-scène das produções detinha
92

o poder de exercer (e ainda detém) de produzir formas pedagógicas sobre a


sexualidade. Como vimos nos capítulos anteriores, a sexualidade como
dispositivo no cinema brasileiro também esteve relacionada à colonialidade.

Destarte, o cinema se insere no campo sociocultural e político sob o


arranjo de “corpos, gestos e rituais” situados em disputas históricas que são
representadas como

legítimas, modernas, patológicas, normais, desviantes, sadias,


impróprias, perigosas, fatais, etc. Ainda que tais marcações sociais
sejam transitórias ou, eventualmente, contraditórias, seus resíduos e
vestígios persistem, algumas vezes por muito tempo. Reiteradas e
ampliadas por outras instâncias, tais marcações podem assumir
significativos efeitos de verdade (LOPES, 2008, p. 82).

Nos anos 1960-70, a dita revolução sexual era colocada nas produções
cinematográficas apropriando-se das problemáticas dos beatnicks, junkies,
punks, hippies, e os blues no jogo do rock’n’roll. Entretanto, o orgasmo
enquanto catarse ainda era majoritariamente masculino e ferozmente
conservador. Segundo Gubernikoff (2016, p. 69),

[...] Mesmo com o grande avanço da emancipação feminina, nos anos


de 1960, as mulheres do cinema ainda são construídas com base em
estereótipos, escondendo-se atrás de um romantismo exagerado e
sem nenhuma indicação sobre o modo real de vida delas.
Simplesmente ignorava-se o feminismo no cinema. Quando se
permitia a uma mulher atuar num papel central, como em Looking for
Mr. Goodbar (1977), sua ideologia era truncada, já que toda a mulher
que ousasse se emancipar, no final acabava mal. As atrizes e suas
personagens, sempre trabalhando com arquétipos de vamps ou
mães, sempre são vítimas de si mesmas ou de contingências
externas. E, mesmo que reajam contra isso, nunca se vêem
verdadeiras heroínas, mas pessoas passivas e reacionárias.

O feminismo no cinema estaria nas produções embrionadas por


mulheres e pessoas LGQTQIA+ no mesmo período no Brasil; Elice Numerato e
Maria Helena Darcy de Oliveira, em 1980, nos falam da necessidade que havia
naquele período de referências cinematográficas adequadas para a formação
das cineastas, que, estavam mais na frente das telas do que atrás das
câmeras. Enquanto objeto de desejo, os corpos de mulheres (cis e
transgêneras) se deslocavam entre narrativas ora ingênuas, ora fatais, para
incorporar mulheres que “descobriram e assumiram suas potencialidades
sexuais” (NUMERATO; OLIVEIRA, 1980, p. 82); além disso, na maioria dos
93

enredos a trama gira em torno de relações afetivas heteronormativas e a sua


existência, confinando as personagens aos percalços amorosos, sem ir além.

Ainda no texto Musas da Matiné, estas escritoras frisam o avançar de


propostas por uma cinematografia não sexista:

Mas é relevante notar que, desde 1978, as mulheres que trabalham


em cinema, no Rio de Janeiro, seja como diretoras, atrizes ou
técnicas, aglutinaram-se numa associação que tem por objetivo
discutir as especificidades de sua profissão e sua condição de
mulher. (NUMERATO; OLIVEIRA, 1980, p. 85).

Entretanto, como já colocado, vemos surgir nos anos 1970-80 o


sexploitation – interligado ao exploitation americano (forma de elaboração que
buscara colocar nas telas temas populares ou polêmicos através de produções
de baixo-custo); o ‘sex’ foi agregado seguindo os debates moralistas, de
censura, também o da contracultura sexual e a insurgente liberação da
pornografia. Com a proibição de cenas de sexo explícitas (até a década de 80),
as insinuações eróticas se tornavam uma constante necessária para atrair o
público, apelando ao que o ‘destape’ espanhol já realizava como afirma Emma
Camarero (2017): uma abordagem cômica à nudez feminina e ao sexo como
uma forma de escape à repressão política de uma ditadura.

Apesar de o sexploitation estar presente em diversos subgêneros


cinematográficos, os pontos de aproximação mais comuns são as cenas em
torno da prática sexual e a nudez feminina. Esta exploração conseguiu penetrar
as produções nas décadas seguintes, posto que tenha sido uma fórmula com
variações numerosas. Divididas em episódios e explorando seu star system, a
comédia erótica italiana utilizava uma miríade de estereótipos..Essa
diversidade, entretanto, perpassa práticas sexuais remontadas a uma
normatização que interliga a prática sexual com comportamentos
conservadores, num jogo de lugares entre poder e sacanagem. O historiador
Jairo Nascimento categoriza a junção de alguns subgêneros e representações:

a. Iniciação sexual, com mulheres lindas e sensuais que seduzem


jovens virgens (Malizia/1973/Salvatore Samperi); b) Sátiras e
paródias, sobre o período medieval e contos infantis, dentre outros
(Bianca neve & Co./1982/Mario Bianchi); c) Professoras e colegiais –
Educadoras e alunas sedutoras, que levam à loucura os homens,
professores e alunos (La liceale/1975/Michele Massimo Tarantini); d)
Médicas e enfermeiras – Doutoras e enfermeiras, lindas e sensuais,
94

que enlouquecem os pacientes (L'infermiera di notte/1975/Mariano


Laurenti); e) Militares e policiais – Mulheres lindas que tiram a
concentração dos homens nos quartéis militares, seja como militares
ou médicas (La soldatessa alla visita militare/1977/Nando Cicero).
(NASCIMENTO J., 2015, p. 7)

No Brasil, vemos que estas relações serão tomadas de empréstimo pelo


cinema popular do Rio de Janeiro e de São Paulo. A influência dessa comédia
enquanto “sátira” à moral e aos costumes em sua intrínseca relação com a
sexualidade, atravessa a América Latina desestabilizada por regimes ditatoriais
e seus regimes de censura, entre o fim dos anos 1960 e 80. Nesse ínterim, é
na Boca do Lixo paulista que tais produções terão maior reflexo, num acelerado
ritmo industrial se tornarão as comédias eróticas ou as chanchadas eróticas –
comumente chamadas de pornochanchadas. Como oriundas diretas de
tamanho e complexo contexto, inclusive anterior à categoria do sexploitation,
as pornochanchadas se arraigam numa continuação balizada pelo lastro
colonial.

Em termos de industrialização e produção no perído, além das disputas


pelo patrocínio estatal e uma política nacional cinematográfica, se inserem
diversas prerrogativas quue devem ser rememoradas. A esse respeito,
traremos alguns apontamentos a seguir.

Em 18 de Novembro de 1966, o governo militar instituiu, através do


decreto-lei Nº 43, a criação do Instituto Nacional de Cinema (INC); Nesse
momento, o INC passa a acolher os já existentes Instituto Nacional de Cinema
Educativo (INCE) e o Grupo Executivo da Indústria Cinematográfica (GEICINE)
coordenados pelo Ministério da Educação e o Ministério da Indústria e
Comércio, respectivamente.

Através do INC, a política de exibição dos filmes nacionais adquiria


novos rumos: a obrigatoriedade da exibição de filmes aqui produzidos
aumentou a cotação de 56 dias por ano, em 1967, para 84 dias, em 1971. Além
disso, a Instituição entrevia nas atividades de exibição, produção e distribuição.
Entre 1966-69, iniciam-se os programas de fomento à produção de filmes de
longa-metragem calcados no volume financeiro advindo dos impostos sobre o
rendimento de filmes estrangeiros; esse mesmo rendimento fomentava os
95

curtas que, a partir das leis de exibição compulsórias impostas pelo regime,
deveriam ser exibidos anteriormente às películas estrangeiras – estabelecendo
assim uma relação de dependência financeira paradoxal (BERNADET, 2006, p.
176). Tais ações, posteriormente, iriam se consubstanciar com a criação da
Empresa Brasileira de Filmes S.A., a Embrafilme (ABREU, 2006, p. 17-18).

Em sua fase inicial, a Embrafilme coexistia com o INC e sinalizava a


preocupação do governo militar em centralizar as políticas cinematográficas,
em consonância às diretrizes do Plano Nacional da Cultura (PNC) e a
dissolução de outros órgãos ou reforma destes. Seu mote era a resolução do
problema de distribuição dos filmes brasileiros no mercado interno e no exterior
– de tal forma que começara a pautar a participação destes produtos em
eventos e mostras internacionais. André Gatti, cineasta e autor de Embrafime e
o cinema brasileiro (2007), afirma que para o idealizador-produtor Roberto
Farias,

[...] a finalidade principal não expressa no decreto de criação da


empresa era capitalizar o produtor nacional, aumentando-lhe os
ganhos com uma nova fonte de receita, a do mercado externo –
complementar –, e possibilitar à obra cinematográfica nacional, no
mercado interno, maior competitividade com o produto estrangeiro.
(GATTI, 2007, p. 15).

Por outro lado, a Embrafilme em sua articulação interna filtra as


produções e interfere na sua realização. O elemento presente na obra,
principalmente, a escolha do elenco, estava a mercê daquilo que se acreditava
ser mais rentável. De certa forma, mesmo que não agisse diretamente, como a
censura articulada pelo Ministério da Educação e Cultura e do Ministério da
Justiça, a Embrafilme cerceava as produções e, consequentemente, os
cineastas que teriam acesso ao seu fomento, às suas premiações e afins.

Em 1975, a efetividade da Embrafilme absorve o INC, ao mesmo passo


em que se consolida como uma empresa de economia mista onde 70% eram
pertencentes ao MEC. Há, também, o aumento do capital com a inserção de
outros meios: dotação da União, taxas sobre títulos de filme exibidos,
empréstimos, recolhimento de multas, juros, taxas de financiamento sobre
filmes nacionais, ingressos e borderôs, ademais a cobrança de impostos para
96

empresas estrangeiras (ABREU, 2006). Segundo o pesquisador de cinema


brasileiro Tunico Amancio (2007, p. 178):

Armava-se um cerco à evasão de divisas, pelo controle de bilheteria


(através da venda do ingresso padronizado) e pela obrigação de
investimento no curta-metragem. Tudo isto detonou uma retaliação
judicial, através de um número enorme de mandados de
segurança.Mas a arrecadação aumentava, o mercado se
desvendava; os filmes brasileiros começaram a ter um desempenho
que demonstrava as potencialidades do mercado. Atuando no campo
jurídico-administrativo os produtores/realizadores conseguem, por
meio da Embrafilme, retomar um pouco do território cinematográfico
ocupado pelo cinema estrangeiro, e entre 1974 e 1979 a venda de
ingressos para filmes nacionais tem um incremento de 16%, e a de
filmes estrangeiros,uma diminuição de 1,6%. A Embrafilme conduzia
o processo, distribuindo nacionalmente curtas e longas-metragens.
Sua distribuidora chegou a ser considerada a maior da América
Latina em determinado momento.

As leis de obrigatoriedade criadas pela ditadura faziam com que as


películas nacionais fossem obrigatoriamente projetadas - também os curtas-
metragens, como explicitado anteriormente, caso contrário, as casas seriam
fechadas. Para Abreu (2006), entre 1970-1980, a Boca do Lixo produzia em
média 90 filmes por ano e ocupava 40% dos espaços cinematográficos no país.

Quadro 2. Mercado do cinema Brasileiro (1970-1980)

ANO FILMES ARRECADAÇÃO ESPECTADORES MERCADO ESPECTADORES


OCUPADO POR
LANÇADOS (MILHÕESCr$) (MILHÕES) EM FILMES DA
FILME BRASILEIRO
(%) EMBRAFILME(%)

1970 74 - - - -
1971 76 53,4 28,1 13,8 10,1
1972 68 74,3 31,0 16,2 15,0
1973 57 81,3 30,8 15,9 8,4
1974 74 89,8 30,7 15,2 22,2
1975 79 174,8 48,9 17,7 12,09
1976 87 252,9 52,0 20,8 26,8
1977 73 453,3 50,9 24,5 29,9
1978 81 775,7 61,8 29,2 35,2
1979 104 1 016,4 55,8 29,0 -
1980 93 1 876,6 50,7 30,7 -
Fonte: Embrafilme (Cinejornal 1980;1981;1982 apud Ramos, 1983).
97

Em paralelo às ações da Embrafilme, o Conselho Nacional de Cinema


(Concine), em 1973, assume a função de fiscalização e se firma nos processos
burocráticos. Seguindo as diretrizes já estabelecidas pelos órgãos de regulação
do governo militar e as premissas da Embrafilme, o Concine atenta para a
fiscalização e penalização dos infratores. Nos anos seguintes, aponta para uma
política protecionista, aumentando a cota obrigatória de filmes de longa-
metragem para 112 exibições ao ano (Resolução Nº 10, de 15 de março de
1977). Entretanto, a crescente ofensiva do cinema estrangeiro e a burla das
leis estabelecidas fizeram com que, a partir de 1982, se desorganizasse o
cenário nacional e enfraquecesse o poder da Embrafilme e do Concine.

Tais números se tornam ainda mais curiosos se pensarmos que o


controle dos ingressos era dificultado pelos espaços múltiplos onde os filmes
eram exibidos, como cineclubes ou cinemas de rua e que os dados mais
latentes dizem respeito às produções da Embrafilme, segregando outras
produtoras e distribuidoras. Além disso, a bilheteria das cidades fora do eixo
urbano precisava de constante fiscalização para que a arrecadação não
sofresse fraude; a Concine desempenhou importante papel em coordenar e
vigiar tais ações. Entretanto, as pornochanchadas paulistas desempenhavam
rotas de realização e distribuição paralelas, o que ainda dificulta o
levantamento de dados sobre estas, posto que alguns diretores não
conseguissem arcar ou aguardar os documentos oficiais de liberação que
circundam a construção dos dados pesquisados.

Os números expostos no quadro 2 apontam o crescimento do mercado


cinematográfico no Brasil com significativo aumento de arrecadação,
especialmente entre 1975 e 1980. A participação da Embrafilme cresce – tanto
por suas produções, tanto quanto suas co-produções – em resposta ao já
esperado diante das leis de obrigatoriedade da exibição de películas brasileiras
nos circuitos de cinema, como comentado no capítulo anterior. Os dados de
Ramos (1983) apontam para 30% de ocupação de produtos nacionais nas
programações brasileiras, menor que os 40% defendido por Abreu (2006).

Estudos recentes indicam que a contabilização das salas de cinema no


Brasil utiliza em sua maioria dados do Instituto Brasileiro de Geografia e
98

Estatística (IBGE) e as fontes oficiais do período que seriam o INC e a


Embrafilme; as médias estabelecidas, entretanto, se realizadas com o uso de
fontes menos comuns podem indicar diversas variáveis como o número de
cadeiras disponíveis ao público, a quantidade de salas por cinema (alguns, a
partir dos anos 1970 passam a ser divididos em dois ou três ambientes para
exibição), a decadência dos cinemas de rua e a popularização dos cinemas em
galerias e shoppings. 32

No caso das produções que recebiam financiamento da Embrafilme, o


Rio de Janeiro detinha preferência frente à produção de São Paulo. O cinema
da Boca conseguia financiamento apenas ao seguir diversos critérios nos
processos de seleção – uma prática burocrática inserida, também, para
dificultar a produção, a circulação de filmes e diversos outros mecanismos de
controle e censura adotada pelo governo ditatorial e seu liberalismo.

São Paulo, com uma produção principalmente gerada na Boca do


Lixo, é o primeiro estado em arrecadação e espectadores, o filme
erótico capitaneando estas cifras. Mas o que pesa nos contratos de
co-produção é a força política de pressão sob a empresa estatal, e os
cineastas paulistas são escolhidos de acordo com a ‘tradição
histórica’ ou ‘capital cultural’ que possuam. (...) um levantamento da
própria Embrafilme relacionando filmes que receberam certificado [de
participação] entre 1976 e 1980, aponta um total de 127 filmes com a
participação da empresa (74 co-produções, 46 filmes distribuídos e 7
financiados), sendo que somente 32 são paulistas. (RAMOS, 1983, p.
138).

Para se legitimar culturalmente sem as amarras negativas ligadas à


Boca, os diretores Oswaldo Massaini, Fauzi Mansur e Alfredo Sternheim se
lançam na Embrafilme fazendo adaptações de obras literárias para
cinematografia, tais como os romances brasileiros O guarani (Fauzi Mansur,
1979) e Lucíola, o anjo pecador (Alfredo Sternheim, 1975). Em Lucíola,

32
Estudos locais podem facilitar a apreensão do circuito exibidor de algumas cidades. O trabalho de
Freire e Zapata (2017) debate algumas diferenças entre os números oficiais e apresentados em
trabalhos consagrados da esteira dos estudos de cinema nacionais, focalizando ao final na cidade de
Niterói (Rio de Janeiro). Fora do eixo urbano e indo para as cidades rurais o quadro ainda piora – por
meio de iniciativas como o Festival de Cinema de Triunfo (cidade do sertão pernambucano) e o Cinema
no Interior (mostra itinerante que adentra alguns estados brasileiros, tendo apoio de editais públicos e
iniciativas privadas) vemos o quadro se alterar no que tange espaços de lazer disponíveis atualmente,
mas são escassos dados históricos sobre as salas. Os cinemas voltados ao consumo apenas de produtos
pornográficos também são mais difíceis de identificar entre os dados oficiais, algo que vêm se
alternando por meio de pesquisas etnográficas. A respeito do último, ver: VALE, Alexandre. No
escurinho do cinema: cenas de um público implícito. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2012.
99

inclusive, a cortesã que dá o título principal ao filme é cortejada por Paulo, que
acabava de chegar ao Rio de Janeiro vindo de Recife.

No caso dos cinemanovistas ou grupos marginais, há uma disputa


interna sobre tais acessos à Embrafilme e a questão ideológica. Bruno Barreto,
que ainda jovem faz sucesso com Dona Flor e seus dois maridos (1976),
reafirma uma luta pela defesa da cultura brasileira e contra os estrangeirismos,
declarando que: "quando comecei a filmar já sabia que não ia mudar nada. (...)
Para mim o cinema significa, sobretudo um modo de preservar nossaidentidade
cultural, os hábitos e costumes do povo." (BARRETO, 1977, apud RAMOS,
1983, p. 139).

Quadro 3. Filmes produzidos entre 1975-1980

ANO NºDEFILMES EMBRAFILME BOCADOLIXO

1975 89 25 24

1976 84 23 37

1977 73 12 21

1978 100 22 40

1979 96 19 44

1980 103 13 39

Fonte: Nuno César Abreu (2006).

A Embrafilme buscava imprimir neutralidade e democracia promovendo


filmes que envolviam ufanismo (através de adaptações das obras literárias
como as de Jorge Amado e Nelson Rodrigues), um star system fortemente
ligado à televisão e, pontualmente, produções contestatórias ao que a moral e
os bons costumes defendiam – o cinema feminista, psicanalítico e contestador
feito por Ana Carolina e suas personagens revolucionárias (Os homens que eu
tive, 1973; Mar de Rosas, 1977; Das tripas coração, 1982) é outro exemplo da
relação ambígua mantida pela estatal mista. 33

33
Cf.VEIGA, Ana. Cineastas brasileiras em tempos de ditadura: cruzamentos, fugas, especificidades. Tese
(doutorado). Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências
Humanas.Programa de Pós-graduação em História, 2013.
100

Fora do Sudeste, em Pernambuco, Kátia Mesel e Adelina Pontual foram


realizadoras interligadas as Associações Brasileiras de Documentaristas (ABD)
que conseguiram angariar incentivos para realizar curtas-metragens, a partir da
Lei do Curta que ainda tomava corpo em Pernambuco. Posteriormente, nos
anos 80, o grupo Vanretrô (formado por alunos da Universidade Federal de
Pernambuco em 1985) com a participação de Adelina Pontual, Valéria Ferro,
Cláudia Silveira, Patrícia Luna, Solange Rocha, Andréa Paula, Samuel Paiva,
Cláudio Assis, Paulo Caldas, Lirio Ferreira e André Machado, integraram a
equipe do curta-metragem Henrique - projeto aprovado por Assis na
Embrafilme. 34

Nesse sentido, é preciso notar que o fomento de curtas pela Embrafilme


auxiliou a ampliação do mercado de audiovisual para mulheres, já que muitas
se inseriam nesse tipo de produção – através da chamada Lei do Curta era
possível que realizadoras recebessem 5% da renda bruta da bilheteria e os
seus trabalhos fossem levados para outros espaços fora do cinema, como
televisão, escolas, etc. (NONATO, 2018). Katia Mesel, em especial, nos anos
1970-80, já havia produzido/participado de 20 documentários filmados em
Super-8, com destaque para Viva o Outro Mundo (1972), El Barato (1972),
Feira do Caruar u(1974), Iaô de Oxum (1975), Itamaravilha (1976), Pedra Do
Ingá (1976) e Banguê (1978), em Pernambuco. O último foi seu primeiro super-
8 sonoro.

Todavia, situamos que cineastas pernambucanos/as ainda pediam a


aplicação mais ampla da Lei do Curta no estado na década seguinte à que
analisamos, e, em 1984, encaminham a Carta de Olinda concebida em seu
encontro nacional com esta solicitação à Embrafilme, assinada pela seção
pernambucana da ABD, a Associação Brasileira de Documentaristas e junto à
Associação Pernambucana de Cineastas (ABD/Apeci), fundada em 1979. 35
Esse terreno de disputa pelo fomento da estatal mista, contudo, começou há

34
Cf. GALVÃO, Yanara. Cinema com mulheres em Pernambuco: trajetórias, políticas, estéticas.
Dissertação (mestrado). São Cristóvão: Universidade Federal de Sergipe, 2018.
35
Para mais informações, ver: ABD/Apeci – apresentação. Disponível em: http://abd-
apeci.blogspot.com/p/apresentacao.html. Acesso em 05 de jul. de 2021.
101

muito e esteve presente na trajetória de cineastas e autores já atuantes na


capital pernambucana.

3.2. As Pornochanchadas entre disputas e embates no Diário de


Pernambuco

Contextualizar o cinema pernambucano, para além das leis de fomento


nacional e como se organizavam os espaços regionais, é entender como outra
face da recepção, a crítica, incorpora as discussões cinematográficas. Como
vimos no Capítulo 2, através do Diário da Manhã, as matérias e ensaios que
envolviam as pornochanchadas se voltavam a criar diferenças – indo desde
quais dessas seriam elogiadas e recomendadas ao público até o temor moral e
social das balbúrdias nas salas de cinema que outrora estiveram dedicadas
somente à elite moderna/modernizante da cidade.

Se, nas colunas sociais e relacionadas à cultura do Diário da Manhã –


algumas destas sem autoria identificada – percebemos que as classes C e D
que assistiam as pornochanchadas (FREITAS, 2004) não eram bem-vindas
nas salas de cinema centrais, o Diário de Pernambuco trará uma nova tônica: a
crítica jornalística especializada em cinema não apenas reforçará a visão do
espectador destas como ignorantes que fomentam filmes incultos, tidos como
meramente comerciais e sexualizantes frente às apostas ideológicas
revolucionárias - ideário cinemanovista -, como também servirá para colocar o
Super-8 e seu grupo de realizadores - em sua maioria, homens, cisgêneros, de
classe média/alta atuantes na cena recifense - como figuras centrais no debate
público e político da cinematografia do estado.

Recentemente, ao publicar Às palavras, às imagens: a crítica em


Pernambuco (2019), André Dib e Luiz Joaquim recuperaram a trajetória da
crítica de cinema no estado 36. Lançando luz sobre o trabalho já realizado por
Luciana Corrêa de Araújo (1997) sobre a crônica cinematográfica recifense dos
anos 50, os autores destacam nomes, filiações e percursos de figuras
conhecidas e desconhecidas desde o início do século XX até as primeiras

36Em 2020, André Dib e Gabi Saegesser publicaram uma coletânea pela Editora Cepe acerca
dos discursos sobre o cinema na crítica pernambucana entre os anos de 1924-1948.
102

décadas do XXI em um condensado de fôlego, ainda que sob as limitações de


ser apenas um capítulo na obra Trajetória da crítica de cinema no Brasil,
organizada por Paulo Henrique Silva. Voltamos-nos às suas acepções sobre as
décadas de 1960-80 aqui.

Fernando Spencer (1927-2014), jornalista e, depois, cineasta, começou


a integrar a redação do Diário de Pernambuco (DP) no final dos anos 50 do
século passado. Seu primeiro texto publicado, sobre a dublagem no Brasil, data
de 1957. A partir do ano seguinte, o autor se consagra mantendo colunas
especiais sobre o cinema no DP - veículo no qual ficou por mais de quatro
décadas. Atuante também na televisão, Spencer era responsável, em 1963,
pela condução do Falando de Cinema, exibido pela TV Clube (interligada à
Tupi) nas sextas-feiras às 17h. Em 1965, pós-golpe militar, Spencer inaugurou
o Filmelândia, programa radiofônico da Rádio Clube. (DIB; JOAQUIM, 2019).

Segundo Alexandre Figuerôa (2017, p. 22), Spencer:

(...) nos anos 1970 e 1980, ao lado do jornalista Celso Marconi, foi
programador das sessões do Cinema de Arte do Recife; e nas
décadas de 1980 e 1990 foi diretor da Cinemateca da Fundação
Joaquim Nabuco. Como cineasta, Spencer foi autor de uma vasta
ilmograia dedicada sobretudo ao cinema documentário e realizada
em 16mm, 35mm e super 8 com ilmes reconhecidos e premiados
como Valente É o Galo (1974), Adão Foi Feito de Barro (1978) e
Estrelas de Celulóide (1986), entre outros.

Enquanto escritórios jornalísticos se fechavam e a censura perseguia a


imprensa independente e jornalistas comunistas - como foi Celso Marconi e o
Folha da Manhã 37 em Recife -, Spencer se firmava como um dos porta-vozes
do cinema nos três maiores meios de comunicação do período. Driblando a
censura, imposta inclusive à Marconi por suas ideias radicais contra o cinema
estrangeiro, Spencer o convidou para colaborar em suas seções de
cinematografia no DP. No decênio de 1960-70, no DP e noutras plataformas,
colaboraram com os seus escritos Jomard Muniz de Britto, Ângelo de Agostini,
Airton Cavalcanti e Aranha de Moura (DIB; JOAQUIM, 2019).

37 Celso Marconi assinava no periódico como João do Cine, depois migrou para o Jornal
Pequeno e, em seguida, para o Diário de Pernambuco e o carioca Último Hora. Marconi ficou
três meses encarcerado pelo regime militar e não poderia ser contratado por outros jornais
devido à determinação dos militares contra o re-estabelecimento de jornalistas vindos do
Último Hora - fechado no mesmo ano do golpe. (DIB; JOAQUIM, 2019).
103

Em seu trabalho, Figuerôa identifica o posicionamento contrário às


chanchadas de Spencer que chamava de “carnaval da Atlântida”
[Cinematográfica] as produções de Carlos Manga, Cajado Filho “e outros
manjadíssimos senhores de nosso cineminha capenga” (SPENCER, 1960,
apud FIGUERÔA, 2017). Como já observamos e comentamos, há uma
tendência de união em posicionamentos críticos-intelectuais-militantes neste
período, constituindo, nas discussões cinematográficas, as chanchadas como
outro na busca de uma identidade verdadeiramente brasileira. Vulgaridade,
mediocridade, cinema capenga: essa narrativa se atualiza quando, nos anos
1970, o sexploitation desponta no país e passamos às pornochanchadas.

No Diário de Pernambuco, destacamos uma das passagens onde


Spencer define a diferença do cinema da Boca e as produções cinemanovistas:

'O capitão Bandeira contra o Dr. Moura Brasil' é o programa do


Trianon. Filme nacional na linha tropicalista de Antônio Calmon, com
Cláudio Marzo, Odete Lara, Huga Carvana e outros. É também a
primeira realização em Cinemascope do cinema brasileiro. A fita tem
idéias interessantes, do ponto de vista satírico, mas o diretor não
chegou a dominar completamente o assunto. Há aquelas influências
do chamado cinema bôca do lixo, criado lá em São Paulo, em
oposição ao cinema nôvo. Tanto assim que numa sequência há uma
gozação ao filme 'Deus e o Diabo na terra do sol', de Glauber Rocha.
A fita de Calmon rompe com certos conceitos do cinema nôvo,
incorporando-se às ideias de Sganzerla e aderentes. (SPENCER,
Fernando, Roteiro e seleções hoje, Diário de Pernambuco, Recife,
28/08/1971, grifo nosso).

Quase um mês depois, Spencer publicava um boletim realizado por


Celso Marconi que trazia mais comentários sobre o cinema no eixo urbano,
sujo e marginal da Boca:

O cinema brasileiro, concluída a histórica revolução determinada pelo


'Cinema Nôvo', e na busca de novos rumos, teve também seu
movimento de vanguarda: o cinema marginal ou bôca do Lixo. O
cinema anti-Khouri, desvinculado dos padrões em voga, negando
perpetuar-se no esquema cinemanovista e saindo prá outra, com a
afirmação de outros métodos de trabalho e pontos-de-vista. Radical,
suicida (por desafiar as leis do cinema comercial), um cinema sujo na
confecção e no modo de retratar o marginalismo que era seu ponto
de referência (...). Concluida ou ainda cultivada pelos retardatários, a
experiência representou uma etapa importante em seus propósitos
renovadores e para o surgimento de valores nôvos. (MARCONI,
Celso, 1971, apud SPENCER, Fernando. Diário de Pernambuco,
Recife, 30/09/1971).
104

A estratégia de legitimar o cinema novo leva Marconi a colocar o cinema


marginal/boca do lixo como um movimento de vanguarda, demarcando que se
tratava, sim, de uma guerrilha cultural. É interessante notarmos que apesar da
intenção em negativar a pornochanchada, havia o reconhecimento que a sua
própria marginalidade era a sua referência. E este fator, invariavelmente,
estava interligado à sua forma de produção (também) precária.

Em seguida, Marconi elege o drama baiano exibido no Festival de


Brasília, Meteorango Kid, Herói Intergalático (André Luis Oliveira, 1969), como
sendo um filme “maldito” que sequer tinha chegado ao cinema comercial.
Continuando a leitura, entendemos a razão da rememoração: o Cinema de Arte
começaria o seu Festival Bôca do Lixo 38, o que para o autor significava o
“primeiro contato do público recifense com um tipo de cinema feito a partir de
uma recusa do 'cinema nôvo'”; discordando de Spencer, ele não o entende
como tropicalista, porém afirma o seu rompimento com estruturas de fazer
culturais vigentes, dando “margem para o aparecimento de um cinema que se
apropriasse do 'lixo' nacional. É um cinema, por definição, que rejeita o
certinho, rejeita todas as normas estéticas até então adotadas, quer mesmo ser
'sujo'. (...).” (MARCONI, Celso, 1971, apud SPENCER, Fernando. Diário de
Pernambuco, Recife, 30/09/1971).

Marconi encerra as suas observações comentando que os filmes a


serem exibidos se constituíam em um teatro do ritual - nele, o artista
(destacando intérpretes) se serve mais do que se comunica com o público;
assim, imprimindo novamente uma ideia de fase mercadológica do que de um
gênero ou potência criativa marginal, Celso Marconi construía a Boca como
"anti-arte, sem dúvida nenhuma; que tem uma missão a cumprir, numa
determinada etapa. Depois se acaba". (MARCONI, Celso, 1971, apud
SPENCER, Fernando. Diário de Pernambuco, Recife, 30/09/71).

Durante a pesquisa nos escritos de Spencer ao DP, poucos foram os


textos que faziam uma análise das pornochanchadas, per si. Estas irão

38Seriam exibidos: O pornógrafo (João Callegaro, 1970); Gamal, O Delírio do Sexo (João
Batista de Andrade); e o Em cada coração um punhal: três histórias que não fundem a cuca de
ninguém (Sebastião de Siqueira, J. Rubens Siqueira, João Batista de Andrade, 1969).
105

continuamente ocupar o lugar onde se inscreve a diferença, já que são


inúmeras as ocorrências onde as suas classificações se encerram na
apresentação dos lançamentos semanais - corriqueiro nos cadernos de
roteiro/viver - ou nos ácidos comentários incluindo-as como obras vulgares,
insignificantes e passageiras.

A crítica, então, demarcava um lugar tático de Spencer e seus


colaboradores: o de reafirmar valores cinemanovistas, construir o cinema
popular como figura monstruosa frente ao plano de uma identidade nacional a
ser consolidada e, ainda, não situar as suas próprias relações e intenções
enquanto cineastas neste campo sob a fachada de fomentar um viés nacional-
popular, também bairrista. Ao contrário do que aconteceu em outros espaços
de crítica, no DP, os filmes da Boca não eram problematizados a partir de seus
conteúdos ou aspectos conservadores, racistas, misóginos e LGBTfóbicos,
mas a sua existência estava confinada ao lugar da subalternidade, da abjeção
que reitera e mantém a sua marginalidade não apenas territorial, mas social.

Lembremos que Marconi, Spencer, Jomard Muniz e outras pessoas


envolvidas nas discussões do DP, já tinham tido contato em eventos, reuniões
e trabalhos com Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, assim como
participavam ativamente de grupos e cineclubes voltados à discussão sobre
cinema brasileiro e documental, também organizações civis nesta mesma
esteira, em Pernambuco, Salvador, Rio de Janeiro e outros locais. Há uma
nítida tensão nas discussões, porém o que se sobressai é a defesa do cinema
pernambucano, ou, a tentativa de fabricá-lo, construí-lo.

Voltando à coluna de Spencer, em uma das passagens do ano de 1975,


a produtora Center representada pelo produtor Genivaldo de Pace e o diretor
de fotografia Carlos Alberto Campos, é divulgada pelo jornalista como pioneira
na produção de filmes publicitários e materiais para Rádio e Televisão; agora,
estava para adentrar o mercado cinematográfico e atender cineastas de
Pernambuco. Na matéria, Spencer aponta a Center como o primeiro laboratório
cinematográfico industrial do Nordeste, afirmando que estava por vir um
documentário sobre o Maracatu e suas origens, os Autos de Congos, sem
106

revelar sua direção. (SPENCER, Fernando. Diário de Pernambuco, Recife,


07/02/1975).

A pesquisa sobre a temática tinha sido realizada por Artur Ramos,


Renato Almeida, Theo Brandão, Mário de Andrade, Jayme Griz e outros; já a
parte da ilustração se basearia nas gravuras feitas pelo alemão Johann Moritz
Rugendas. 39 No mesmo trecho, o autor pontua como seria interessante se
houvesse iniciativa do INC em fomentar o cinema pernambucano apoiando a
produção. Cinco anos mais tarde e através da Center, Spencer roteiriza e dirige
o documentário Santa do Maracatu; Dona Santa (Maria Júlia do Nascimento)
era rainha do maracatu Elefante, nascida em 1877 no pátio de Santa Cruz,
bairro da Boa Vista, no Recife. A fotografia tinha sido realizada por Carlos
Alberto Campos. 40

Duas semanas depois, Spencer se dirigia aos “cineastas de Super-8”


para falar de oportunidades avisando que aconteceria o II Festival Brasil do
Filme Super-8. (SPENCER, Fernando. Diário de Pernambuco, Recife,
21/02/1975) As inscrições-submissões de filmes poderiam ser realizadas na
própria sede do DP; destaque para o júri que seria composto por figuras da
crítica como José Carlos Avellar (Jornal do Brasil); Sérgio Augusto Vieira (Veja
e Pasquim); Jean-Claude Bernardet (Opinião), Solange Lages (Secretaria de
Educação de Alagoas), entre outros nomes. Os convidados especiais eram:
Prof. Alcino Teixeira de Melo (presidente do INC), Paulo Emílio Sales Gomes
(Cinemateca Brasileira), Roberto Farias (diretor da Embrafilme) e Cosme Alves
Neto (diretor da Cinemateca do Museu de Arte Moderna). A convite do cineasta
Sylvio Back, Celso Marconi também havia sido convidado para compor o júri da
premiação.

39 Johann Moritz Rugendas fez parte da Expedição Langsdorff - incursão pelo Brasil chefiada

pelo médico e naturalista George Heinrich von Langsdorff, cônsul-geral da Rússia residente no
Rio de Janeiro desde 1813. Com financiamento do governo russo, George contratou Rugendas
e outros profissionais para adentrar ao território brasileiro, mas por desentendimentos, o
segundo não chega até o final da viagem. Os desenhos que Rugendas produziu durante sua
estadia foram publicados em Voyage Pittoresque dans le Brésil entre 1827 a 1835. Nas obras,
há um reforço da visão eurocêntrica sobre os corpos de pessoas não-brancas, espacialmente,
indígenas e negras.
40 O filme pode ser consultado no acervo da Cinemateca Pernambucana (Fundação Joaquim

Nabuco).
107

Sob a chamada Pernambuco já tem o seu primeiro filme erótico, o


segundo caderno (sem assinatura) noticiava o primeiro filme interligado ao
erotismo produzido no Recife; sem título exposto, tratava-se de uma produção
de Jomard Muniz de Britto, na época professor de comunicação, exibida
apenas a círculos restritos. O diferencial, ainda, eram os corpos andróginos
colocados em cena, revelando inclusive uma fuga à binaridade de gênero
constante nas narrativas cinematográficas do período. Abaixo da passagem
consta ainda uma nota sobre as doações de documentários à Filmoteca Alberto
Cavalcanti (prefeitura do Recife). (Diário de Pernambuco, Recife, 19/03/1975).

Spencer, em 1977, articula junto ao Grupo Super-8 encontros com


possíveis fomentadores de seus filmes - o governo estadual e o Instituto
Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais. O primeiro na residência oficial no
Palácio das Princesas, e o segundo na recém-inaugurada Casa da Cultura. A
diretoria do Super-8, composta por Flávio Rodrigues, Marisa Watts, Nadja
Paiva, Paulo de Tarso Menelau, Celso Marconi e o próprio Fernando, elegem o
então governador de Pernambuco, Moura Cavalcanti (filiado ao ARENA e
indicado do presidente golpista Ernesto Geisel), sócio honorário desta entidade
"que visa antes de tudo, desenvolver e estimular a cultura cinematográfica
nessa região"; na tentativa de estabelecer o I Festival de Cinema Super 8 do
Recife, foi entregue ao governador um pedido de ajuda para a realização do
que seria o primeiro desse tipo no estado.

Em sua coluna, o autor-cineasta continua: "Sensível à cultura


cinematográfica e entusiasta da bitola Super 8 (possui todo equipamento para
a realização de seus filmes), o sr. Moura Cavalcanti elogiou a iniciativa do
Grupo 8 e disse que tudo faria para que o Festival tivesse o melhor êxito.
(SPENCER, Fernando. Diário de Pernambuco, Recife, 05/09/1977). Além
disso, Spencer expõe que o próprio governador possuía o equipamento
superoitista para uso particular.

Lembremos que já aconteciam mostras com incentivo do governo: a


historiadora Ghita Galvão (2018) traz a I Mostra Pernambucana de Belo
Jardim, patrocinada pela prefeitura da mesma cidade e a Empresa
108

Pernambucana de Turismo (Empetur), em 1973, assim como a I Mostra


Recifense do Filme Super 8 que aconteceu no Cinema Educativo do Recife,
pertencente à prefeitura e localizado no Teatro do Parque, em 1975.

Em Janeiro de 1978, na coluna Imagem & Som do DP, seção Cenas,


Spencer apresenta o desfecho com a chamada: Empetur e Grupo 8 promovem
concurso de filmes de Carnaval. Atendendo ao proposto, Spencer afirma que o
presidente da Empetur, o jornalista Francisco Bandeira de Mello, “disse que
esta é a melhor maneira de estimular as vocações para o cinema. O carnaval
de Pernambuco é um excelente motivador para o realizador cinematográfico".
(MELLO, Francisco, 1978 apud SPENCER, Fernando. Diário de Pernambuco,
Recife, 12/01/1978). Haveria premiação para o 1º e 2º lugar: Cr$15 mil ao
primeiro colocado e uma semana de hospedagem no Hotel Grande Rio
(Petrolina) com acompanhante ao segundo.

Acreditamos que o plano de carnavalizar as produções se interliga as


propostas nacionais (da Embrafilme) e da própria Empetur, investindo na
atividade turística da cidade, como já falado anteriormente, sendo uma forma
da própria capitanear as produções - já que os direitos autorais seriam todos
cedidos aos propositores do evento, incluindo a Rede Globo. Entretanto, o que
pode também ter influenciado é divulgado quatro meses depois: em maio de
1978, é anunciada a aprovação do projeto de Harlan Gadelha (vereador do
Movimento Democrático Brasileiro - MDB -, partido de oposição ao regime
militar) considerando utilidade pública a ação do Grupo 8 no estado. Criava-se
a Lei municipal 13.004. (SPENCER, Fernando. Diário de Pernambuco, Recife,
30/05/1978).

Ainda que as pornochanchadas só surgissem pela marcação da


diferença, destacamos que, no texto intitulado INC premia os melhores de
bilheteria de Spencer, estão apenas produções que envolvem comédia e
sexploitation. Arrecadando no último trimestre de 1974 cerca de 12 milhões
(Cr$), o valor do prêmio concedido foi de 2 milhões (Cr$). Elencam-se as
escolhas: 1. Robin Hood, o trapalhão da floresta (J.B. Tanko Produções
Cinematográficas); 2. Marido Virgem (Belfilmes Produções Cinematográficas);
109

3. Ainda agarro esta vizinha (Sincro Filmes); 4. A virgem e o Machão (Masp


Filmes); 5. Anjo Loiro (Brasecran Distribuidora Importadora e Exportadora de
Filmes); 6. Café na cama (Produtora Alberto Pieralisi). (SPENCER, Fernando.
Diário de Pernambuco, Recife, 05/03/1975).

Como vemos, Pieralisi, figura italiana trabalhando no Rio de Janeiro, já


citada aqui pela ojeriza de Glauber Rocha à chanchada, compunha com a sua
própria produtora a lista do INC em 1975. Em consonância, Spencer fala sobre
este no DP ao anunciar o lançamento de Essa Mulher é Minha... e dos Amigos
(1976), definindo o filme como

uma produção vulgar, de apelação (até no título) de Alberto Pieralisi,


responsável por uma série de pornochanchadas. O argumento é
baseado na peça 'Essa mulher é minha', de Raimundo Magalhães Jr.
A fita vive do deboche, das situações forjadas para atrair o público
interessado nesse tipo de comédia. Muito ruim também para o autor
da peça, um nome respeitado em todo o Brasil. (SPENCER,
Fernando. Diário de Pernambuco, Recife, 01/04/1978).

Em seguida, no mesmo trecho, Spencer elogia Jean Garrett - cineasta


advindo da Boca - pelo filme Excitação. Então, mesmo dentro das
pornochanchadas havia uma predileção por certos cineastas caso fossem
considerados mais ‘tecnicamente equilibrados’ ou se acontecesse alguma
projeção social. E essa posição esteve em publicação do ano anterior, quando
David Cardoso, o Rei das Pornochanchadas, lançava Dezenove mulheres e um
homem aqui, no Recife, filme feito em conjunto com Garrett. Sobre este e a
comoção que Cardoso, mato-grossense conhecido pelas filmagens em seu
estado causou 41, Spencer se limitou a elogios e convocação ao público. Com
um tom muito mais brando, ele considerava a "aventura" do produtor-diretor-
intérprete a partir do seu "egoísmo" em estar cercado por belas mulheres,
sozinho. (SPENCER, Fernando. Diário de Pernambuco, Recife, 05/08/1977). Aí
estava outro reforço da complexa masculinidade e heteronormatividade
construída nas pornochanchadas que sequer foi questionado.

A mesma aprovação não aconteceu à obra paulista Os Depravados


(Tony Vieira, 1978), classificada como subgênero policial erótico da "pior

41 Umas das ferramentas para a realização das obras de Cardoso era o apoio do governo local
- em troca, eram exibidas belas imagens da locação ou outras maneiras de apoiar/valorizar
pontos turísticos e o comércio local em filmes de projeção nacional.
110

categoria". O cinema estrangeiro amarelo que em Recife ganhava projeção


também não escapou às críticas, que reforçaram racismo, xenofobia e elitismo,
ocupando, paralelamente, a mesma posição abjeta do primeiro:

O cinema de Hong Kong não para de exportar lixo para o mundo


ocidental, através dos seus kung-fu. Hoje tem mais um: A última
Batalha da Dinastia Ming. Até quando o produtor Shaw vai enlatar
seus subfilmes não sabemos. Infelizmente, eles estão chegando e
encontrando mercado. (SPENCER, Fernando. Diário de Pernambuco,
Recife, 14/03/1979).

Essa tônica acompanhará outras promoções de filmes populares no DP.


Ainda sobre os filmes de kung-fu colocados no mesmo patamar das
pornochanchadas, destacamos que, em 1979, aconteceu uma exibição de
cinema em 3D na capital pernambucana: o filme Dinastia (sem maiores
informações) estava no cinema Art Palácio, com classificação para maiores de
18 anos. Spencer teceu um comentário breve sobre na sua coluna Imagem &
Som, pormenorizando o evento e atribuindo vulgaridade a este, assim como à
sua técnica inovadora para o período e lugar de exibição:

Dinastia está no Art Palácio. Com óculos especiais para ver karaté
em 3ª Dimensão, o público envolve-se na vulgaridade do filme. Para o
produtor, descobriu a galinha dos ovos de ouro. Se o filme vai
compensar financeiramente é uma incógnita. Essa estória de 3ª
Dimensão é uma farsa. Até hoje não tivemos filme de importância
com essa técnica. (SPENCER, Fernando. Diário de Pernambuco,
Recife, 14/07/1979).

Tendo em vista as dinâmicas elaboradas no DP, retomamos o termo da


célebre escritora, historiadora e cineasta Beatriz Nascimento (1976) para
entender outro derivado ambíguo do delírio ufanista da época - que
chamaremos, aqui, de delírio superoitista. Entendemos ambos os movimentos
como co-dependentes, xifópagos, nos termos que o crítico José Carlos Avellar
(1980) une a pornochanchada à censura, mas que neste caso reitera a relação
de realizadores-intelectuais-militantes na produção fílmica e outras
significações que daí deriva a partir de uma localização pernambucana, fora do
eixo sudestino, porém integrante da agenda nacional em curso na ditadura.
Sobretudo, o delírio superoitista reside numa agenda por uma identidade
nacional que é atravessada por questões complexas que escapam às falas em
defesa da produção nacional/estadual, remetendo à própria crise da
111

modernidade de uma elite (ainda colonial), seu domínio sobre a produção


cinematográfica e o investimento do Estado.

Em mais um subtema da coluna Imagem & Som, sob a chamada Quem


virá ao festival do Recife, Spencer elenca os convidados das cenas
cinemanovista e das mídias nacionais que viriam à capital prestigiar II Festival
recifense:

O Instituto Joaquim Nabuco e Grupo de Cinema Super 8 de


Pernambuco, promotores do II Festival de Cinema do Recife, a
realizar-se de 22 a 26 de novembro, encaminharam convistes
(dependendo apenas de confimação): Cacá Diegues, Glauber Rocha,
Jean Claude Bernardet, Roberto da Mata, Márcio Souza, Oswaldo
Caldeira, Pola Vartuk, Abrão Berman, Jorge Caron, entre outros.
(SPENCER, Fernando. Diário de Pernambuco, Recife, 15/09/1978).

Como falamos anteriormente da Embrafilme e a sua atuação entre


algumas figuras cinemanovistas - categoria disputada internamente e no
debate público desde os anos 1950 -, compreendemos que o desenrolar do
cinema e da crítica pernambucana foi complacente com os posicionamentos
das linhas mais clássicas do cinema-novo, em especial, com o trabalho de
Glauber Rocha. Este, nos anos 1970, se aproximará da estatal mista, assim
como outros, pleiteando a criação de uma identidade brasileira e um cinema de
financiamento público. O mesmo acontecia no cenário recifense e, nesse
momento, era importante também expor para esses grandes nomes do cenário
nacional o trabalho desenvolvido por Spencer e o grupo superoitista com apoio
do governo municipal.

Para se projetarem enquanto cineastas, Spencer e Rocha reforçam um


viés salvacionista em falar por/para/pelo povo brasileiro. Essas disputas de
narrativas tomaram as reuniões dos órgãos de cinema, periódicos, revistas,
eventos, programas de rádio e quaisquer espaços onde a defesa do
dito/imaginado cinema nacional pudesse ser feita antes, durante e depois da
ditadura no país. Entretanto, como observamos, essa defesa podia estar
baseada na subjugação de outros modos de fazer e consumir cinema fora dos
ideais “revolucionários”. A partir daí temos as tensões entre o Rio de Janeiro e
São Paulo, o cinema marginal/Boca do Lixo colocado como adversário do
cinema-novo e um pacto no que tange combate aos filmes estrangeiros -
112

especialmente, o cinema asiático que trazia o exploitation das artes marciais,


assim como a comédia italiana repaginada, imaginada como uma chanchada
erótica, a pornochanchada.

Ao pontuar o delírio cinemanovista, a escritora interpela questões de


raça, classe e, podemos também pensar gênero, já que este será interligado à
construção dos comportamentos conservadores sobre sexo e gênero, na crítica
ao que foi construído nos enredos das obras cinemanovistas. À época, Beatriz
recebeu a resposta do diretor de Xica da Silva, Carlos Diegues, acusando-a de
ser uma patrulheira ideológica por sua crítica à fantasia colonial que se
observava nas produções. O texto dela intitulava-se A senzala vista da Casa
Grande.

Sergipana, historiadora, poetisa, cineasta e crítica, articuladora nos


movimentos de esquerda, da imprensa independente e do movimento negro,
Beatriz era chamada de censora pelo “aliado” alagoano, Diegues, cuja
construção quase mítica de figuras nordestinas, assim como do fazer
revolucionário, consagrou-se dentro da mesma ditadura que afirmava
combater, no lugar ufanista que lhe foi oferecido na Embrafilme e nas páginas
de muitos estudos historiográficos que até hoje não conseguem apreender as
críticas à história deste cinema brasileiro.

É interessante que vemos acontecer no estado de Pernambuco algo


semelhante - Fernando Spencer (aqui, porta-voz do Grupo 8 no DP), ao ver o
Super 8 ser apontado como apenas um lazer da classe média/alta recifense,
recupera uma fala de Glauber Rocha sobre esta mesma patrulha ideológica -
que, como vimos, está no campo progressista, das esquerdas, mas não da
censura ou do governo ditatorial. É com estes, inclusive, que ambos os
movimentos cinemanovista e superoitista se alinharam em troca de seu
desenvolvimento e afirmação, mas também para chamar de censura as críticas
aos seus modos de realização e postura ética. Em nosso Recife, também foi
uma mulher progressista acusada de censura: a jornalista Luzanira Rêgo
(1955-2007).
113

Luzanira, ainda jovem, começou a publicar no Diário de Pernambuco -


achamos, desde 1977, algumas reportagens suas. As questões culturais e
sociais eram centrais às suas produções, indo desde a memória sobre o
Cangaço, os trabalhos de Capiba, até as discussões sobre o uso da sociologia
e o crescimento das religiões protestantes em Pernambuco. Destacamos a sua
matéria sobre os anticoncepcionais, seus usos e efeitos colaterais, pouco
debatidos na época, mas amplamente aceitos no discurso midiático, da
revolução sexual e da saúde pública, ocultando as testagens que aconteciam
nos corpos de nordestinas: a sua manchete Quantos menos filhos, melhor (ou
de como dar lucro às indústrias farmacêuticas e usar mulheres como cobaias)
(RÊGO, Luzanira, Diário de Pernambuco, Recife, 11/09/1977) sinaliza uma
posição bastante necessária e corajosa para o período, sendo esta uma pauta
também feminista 42. Noutra matéria do mesmo ano, a jornalista discute os usos
medicinais de ervas e raízes em tratamentos oncológicos, entre “curandeirismo
ou ciência” (RÊGO, Luzanira, Diário de Pernambuco, Recife, 05/10/1977).

A polêmica que envolve Rêgo e Spencer data do ano seguinte, 1978, se


iniciando com a reportagem que a primeira realizou sobre o movimento
superoitista entrevistando alguns de seus integrantes. Ela convida Jomard
Muniz de Britto, Amin Stepple, Geneton de Moraes Neto, Fernando Spencer e
Raimundo Vidarico do Nascimento. Ao serem questionados sobre o que
entendiam ser o super-8, as opiniões não eram tão próximas quanto
aparentavam ser nas discussões de Spencer publicadas no DP; Geneton, por
exemplo, acreditava se tratar da "cura do ócio dos filhos da classe média",
enquanto Jomard Muniz de Britto reforçava que ia desde as "classe médias
triunfantes" até as "suas parcelas auto-dilaceradoras, destrutivas e degoladas",
enquanto Amin Stepple a define como um modo criativo e anárquico na
realização de filmes em curtas-metragens naquele período. (RÊGO, Luzanira,
Diário de Pernambuco, Recife, 07/09/1978).

42Recomendamos o trabalho de Aílla Kássia de Lemos Santos, também em desenvolvimento


pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Rural de Pernambuco,
que debate diretamente a questão da contracepção feminina no Recife durante a década de
1970.
114

Na matéria publicada, Luzanira Rêgo destacava quão custoso era tal


ofício superoitista, economicamente falando, o que fazia tal prática se
perpetuar entre profissionais liberais que, como hobby e nas horas vagas,
filmavam na bitola de n.8. Ela destaca que um filme de tempo médio de 5
minutos custaria cerca de Cr$ 3mil.

Sobre a definição homogeneizante de movimento superoitista, Geneton


é categórico:

A condição básica para que exista um movimento, a meu ver,


consiste na tomada de consciência de um conjunto de idéias, em
comum ou em conflito, juntamente com o debate a partir desses
atritos e aproximações, mas isso nunca houve entre nós. Movimento
dá idéia de um grupo de pessoas reunidas em torno de um objetivo
comum, mas o que existe no Recife são pessoas fazendo filmes e
não um autêntico movimento super 8. Não há uniformidade de
temática na produção de filmes super 8 e que realmente configure a
existência de um movimento cultural. (MORAES NETO, Geneton,
1978, apud RÊGO, Luzanira, Diário de Pernambuco, Recife,
07/09/1978, grifo nosso).

Na passagem grifada acima são justamente as temáticas que unem,


para Moraes Neto, um movimento cinematográfico e a sua consolidação -
compreendendo também os espaços de pluralidade de opiniões que devem
existir neste. Amin Stepple, por sua vez, compreende a diversidade do super-8
naquele período através da divisão entre dois grupos: "um que se preocupa em
refletir um questionamento cultural mais profundo e uma discussão política e
cultural da realidade", sendo assim mais anárquico, formado por ele próprio,
Jomard Muniz de Britto, Geneton Moraes Neto e Paulo Cunha; no outro lado
"estariam os que "compõem o Grupo de Cinema Super 8 de Pernambuco -
Grupo 8", mais interligado à sua institucionalização e apropriação comercial.
(STEPPLE, Amin, 1978, apud RÊGO, Luzanira, Diário de Pernambuco, Recife,
07/09/1978).

A publicação de Rêgo foi ao público no dia 7 de setembro - data


comemorativa relacionada à Independência brasileira. Porém, a discussão
superoitista pretendida pelo Grupo 8 parecia tão farsante quanto a nossa
propria independência - e ecoa, na fala de Amin Stepple, questionando o
exercício cinematográfico em tempos de censura:
115

Defendo um cinema político, militante, para o Super 8. Filmes que


não apenas contemplem a fome, mas que sintam-na; que não apenas
registrem a dor da tortura, mas sofram-na; que não se limitem a
presenciar todas as formas de injustiças sociais, mas combatam-nas;
Não acredito num cinema bem comportado, não pensante, submisso.
Para mim, cinema é uma ação humana e como tal, deve ser rebelde,
insurrecional. Temos que criar a estética do salário-mínimo, do bóia-
fria, da língua cortada de medo. (...) O cinema super 8 deve ignorar a
censura (..). Não tendo contingências de mercado, o super 8 deve ser
um cinema forçosamente clandestino, santuário de resistência à
opressão cultural imposta ao povo brasileiro. Submeter um filme não
profissional aos prazeres mundanos da censura é compor,
cinicamente, com o terror oficializado. A única posição lúcida dos
superoitistas brasileiros é decretar, por conta própria, o fim da
caquética senhora. (STEPPLE, Amin, 1978, apud RÊGO, Luzanira,
Diário de Pernambuco, Recife, 07/09/1978, grifos nossos).

Novamente, na fala de Stepple, está a superação da opressão cultural


do povo brasileiro pelas vias clandestinas superoitistas que, por conta própria,
romperia com a censura, os censores e o regime. Spencer, que é chamado de
“burocrata da cultura” por Jomard, entende as queixas de Stepple, mas
discorda - para ele, é preciso recuperar o investimento feito nas fitas que, por
vezes, são apreendidas pela Polícia Federal e proibidas de circular. Spencer
reitera:

Não faço um cinema submisso, mas filmes que depois possam ser
adquiridos por instituições culturais e compensar de algum modo, o
investimento feito. Qualquer artista, qualquer brasileiro, não pode
ignorar a censura ao fazer uma obra, não pode desprezá-la.
(SPENCER, Fernando, 1978, apud RÊGO, Luzanira, Diário de
Pernambuco, Recife, 07/09/1978).

O trabalho de Luzanira Rêgo se encerra com outra polêmica: a da


censura ideológica debatida pelos cineastas que se inscreveram no II Festival
do Super 8 de Pernambuco - a acontecer em novembro do mesmo ano –
devido à pré-seleção que as obras passariam, uma espécie de curadoria do
Grupo 8. Jomard Muniz comenta que essa postura se interligava à
"sensibilidade ferida dos mais legítimos representantes da sociedade patriarcal
repressora" que, por trás de critérios estéticos e técnicos, estava "encobrindo
uma atitude policialesca, castradora, repressiva" - para ele, a meta-censura.
(BRITTO, Jomard Muniz de., 1978, apud RÊGO, Luzanira, Diário de
Pernambuco, Recife, 07/09/1978).

Quatro dias depois, na coluna Imagem & Som, Spencer retoma a


discussão sob o dramático título Tomada de posição, alinhado junto à imagem
116

de Bernardo Bertolucci no set, com os braços enfaixados em decorrência da


fratura de seus cotovelos. Na legenda, Spencer frisa que, ainda com os braços
engessados, o cineasta retomava a direção do filme A lua (1979). Desabitual
da organização gráfica da coluna, o título e a imagem estão centralizados na
cópia que Spencer faz da entrevista de Glauber Rocha ao jornal O Estado de
São Paulo, citando as patrulhas ideológicas. Antes de copiar o texto, Spencer
ressalta:

(...) em resposta à fúria dos falsos intelectuais, (algumas bonecas)


que andam por ai pichando e censurando aqueles que, afinal de
contas, têm o direito de pensar, adotar a linha de trabalho que
entendam. Nos durões de nova censura ideológicas, grupos de
mentalidade repressiva/opresssora ele entrou de sola chamando-os
de 'patrulhas ideológicas'. E eles na verdade são. Agem igual a
censura policialesca. Ambos são nefastos ao processo de criação.
Opressores como a outra censura, pois querem impor o que acham
que é o certo. (SPENCER, Fernando, Diário de Pernambuco, Recife,
11/09/1978).

Numa atitude bastante ressentida, Spencer se coloca como o


profissional que, no exercício de sua função, e, apesar de todos os ataques
que o maculam, segue desenvolvendo o seu trabalho; podemos pensar, assim,
a utilização da figura de Bertolucci que talvez tenha sido uma referência para o
autor. Por outro lado, a citação de Glauber Rocha, o uso pejorativo do termo
“bonecas” e o inflamar de uma “outra” censura marcam a postura defensiva do
crítico, que, como Beatriz Nascimento (1976) falava sobre os cinemanovistas,
partia de suas fantasias para construir uma identidade, mas ainda era incapaz
de se perceber enquanto integrante da pequena burguesia (progressista)
brasileira. E entre se perceber ou negar tal contexto situacional, existe uma
estratégia. O autor continua:

A entrevista coletiva concedida pelo pessoal que faz cinema Super 8


no Recife, publicada na quinta-feira passada, está muito bacana.
Definiu posições, dividiu grupos (já sabemos nós do Grupo 8 que
somos do cinema bem comportado). Agora, esperamos que um novo
grupo surja no Recife, cheio de idéias (inclusive capaz de salvar o
Brasil cultural e a nossa província). Novos parâmetros, enfim, como
se deve fazer cinema, dentro do figurino estabelecido por esses
'patrulheiros da censura ideológica'. Eu, particularmente, fico na
minha. Fazendo meus filmes, não como lazer burguês, mas
profissionalmente, independente do Grupo 8 ou de outros meios que
me promovam. Deles não preciso. Não me interessa fazer cinema
para rodinhas de amigos, festinhas ao som do rock, de blues e soul.
Interessa-me, isto sim, um cinema sério, que reflita a nossa realidade
cultural e social. Se ainda não o consegui, paciência. A vontade e as
117

intenções são as melhores. Ficar submisso a esses policiais da


cultura, nunca. Faço o cinema que gosto, sem compromisso com
ninguém. Eles que fiquem na sua. Nesta coluna não fazemos
polêmica. As posições já foram definidas. Com clareza e sem receio.
(SPENCER, Fernando, Diário de Pernambuco, Recife, 11/09/1978).

Abaixo da longa passagem de Rocha, onde este se coloca como


cineasta que está ao lado do povo, pensando em sua diversão, não em seu
saber ou no exercício de ensinar, as críticas ao monumento - e não movimento
- cinemanovista, como diz, estava na patrulha que tolhia a criatividade,
dirigindo cineastas a determinadas tendências. O papel da crítica, por um
próprio crítico como Spencer, era diminuído a mero agenciamento e opinião
pessoal; assim, nesse sentido, ela não seria dialógica, mas subjetiva, partiria
de princípios que, sempre, serão individuais. Individualizar as questões foi uma
tática de ambos os cineastas; Spencer, após fechar as aspas glauberianas,
continuava a falar sobre a reportagem de Luzanira Rêgo como se fosse uma
tragédia pessoal. O cineasta se colocava no lugar de benevolente mártir
superoitista, desassociando toda a sua trajetória de institucionalizar seu outro
ofício no espaço municipal, estadual e federal. Este foi um dos delírios.

Outro aspecto dos delírios ufanistas e superoitistas está, ainda, nesta


última fala de Spencer, nos fazendo questionar: quem eram as “bonecas”?
Além de Luzanira, acreditamos que o ataque se refira a Jomard Muniz de
Britto. Além de realizar o primeiro filme erótico pernambucano noticiado nas
páginas do mesmo DP, Jomard foi responsável por situar a questão da
identidade brasileira e seus moralismos, construindo na Recifernália 43 do
período uma crítica contundente às normas de gênero e sexo, mas sobretudo
uma narrativa sensorial e poética a partir da dissidência destas normas.
Concordamos com a colocação de Tiago dos Santos de Sant'ana (2016):
Jomard era e propunha, neste período, um queer à brasileira - ele gongava
seus contemporâneos. E tal postura segue, até hoje, seu pensamento e
produções.

Dedicar maior espaço às opiniões de grupos descentralizados na


construção do Super-8 utilizando, inclusive, a efervescente crítica cultural já

43 Termo de correlação do tropicalismo em suas leituras originadas em Recife.


118

conhecida (mas marginal) de Jomard numa matéria de destaque no DP em


plena data de comemoração da Independência em tempos de ditadura, foi a
maneira de Luzanira Rêgo em desestabilizar as narrativas oficiais.

Ali, a jovem jornalista subverteu, mais uma vez, o discurso público sobre
temas periféricos, no uso furcaz desta mesma mídia impressa que apoiava a
ditadura, assim como o questionar de figuras centrais como Spencer nas
narrativas sobre o cinema, para pensar que as suas maneiras de produzir
certas verdades e repetí-las à saturação como um exercício memorialístico
ocultava propositalmente suas incongruências e hipocrisias no âmbito social.
Nesse sentido, a partir da matéria sobre o movimento superoitista, localizamos
tal produção como extremamente sagaz. Pela impossibilidade de negar às
suas colocações, Spencer acolheu o criticismo da reportagem enquanto ataque
e, como forma de defesa, seu único reconhecimento, quase implícito ao falar
das divisões internas do Grupo 8 e os superoitistas, era também o de seu papel
como mediador cultural e sua posição privilegiada entre as normas sociais: ele
continuaria a fazer o cinema que gostava, “sem compromisso com ninguém”.

Em novembro, dias depois da realização do II Festival de Cinema do


Recife que durou 5 dias com 40 filmes projetados "sob aplausos ou vaias", este
ambiente pouco amistoso no cinema, criticado no Diário da Manhã e utilizado
para enfatizar um discurso policialesco contra as pornochanchadas, foi aceito e
tratado como cotidiano nos debates entre público e realizadores do Super-8.
Spencer escreve:

No final do último programa encontrei um grupo revoltado com as


agressões de lado a lado, durante os debates. É isso aí. Este ano, na
Bahia, as agressões foram mais violentas. Houve até um realizador
que desfilou nu, durante as discussões. Aqui não foi a tanto, mas os
ânimos estiveram bem quentes. (SPENCER, Fernando. Diário de
Pernambuco, Recife, 29/11/1978).

No mesmo texto, notamos não haver menção aos nomes das figuras de
projeção nacional convidadas. A mesa julgadora foi composta por críticos,
cineastas, realizadores e fótografo, a saber: Pola Vartuk (O Estado de São
Paulo), Celso Marconi (Jornal do Commercio), José Carlos Targino (Jornal
Universitário), Abrão Berman (Centro de Estudos de Cinema Super 8 de São
119

Paulo), Guido Araújo (Universidade Federal da Bahia), Reginaldo Marinho


(Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais) e o próprio Spencer.

Em seguida, Spencer fala sobre a diretoria do Grupo de Cinema Super 8


de Pernambuco que seria renovada no ano seguinte, tendo a possibilidade de
"corrigir as falhas" do evento, ligadas à fatores econômicos: "Funarte, Sudene,
Universidade Federal de Pernambuco, Caixa Econômica, não deram a mínima
atenção e permaneceram insensíveis ao Festival" (SPENCER, Fernando.
Diário de Pernambuco, Recife, 29/11/1978).

Ele continua dessa vez falando sobre a atuação do Grupo no mesmo


festival que teria sido maior e melhor caso fosse recebido patrocínios:

Talvez o Grupo 8 no próximo ano possa realizar um trabalho mais


amplo. A entidade reconhecida de utilidade pública, sem fins
lucrativos, vivendo aos trancos e barrancos, às vezes até sob a
ameaça de fechar sua sede por falta de dinheiro, vai mesmo assim
partir para o III Festival. Se os deputados (eleitos ou não) cumprirem
com a promessa de ajuda, através de subvenções, tudo bem. Em
caso contrário, a nova diretoria terá que topar a missão a ferro e a
fogo. Pernambuco não pode parar o II Festival. Será um atestado de
fraqueza e pauperismo cultural. O negócio é deixar de lado os
preconceitos, os complexos de inferioridade e saltar os obstáculos.
(SPENCER, Fernando. Diário de Pernambuco, Recife, 29/11/1978).

Abaixo desta passagem estava a possível contribuição à revolta de


Spencer: os “filmes vitoriosos”. Geneton Moraes Neto e Paulo Cunha
receberam 4 prêmios pelo documentário Esses onze aí: o de 1. Melhor filme
pelo Júri do Festival; 2. Melhor filme pernambucano (Prêmio Miranda Falcão -
Diário de Pernambuco); 3. Melhor direção (Medalha de ouro Kodak); e, 4.
Troféu Fundarpe por voto popular. Em segundo colocação pelo júri do Festival
estava Batalha dos Guararapes parte II, filme de Paulo André, Fredi e Geraldo
Pinho. Em terceiro lugar estava Jomard Muniz com a obra Inventário de um
feudalismo cultural. Amin Stepple recebeu menção honrosa por O lento, seguro
gradual strip-tease de Zé Fusquinha. Todos esses homens eram
pernambucanos, mas, ao que a coluna de Spencer indica, não estavam
inseridos no Grupo 8. O cineasta Flávio Rodrigues, com o documentário La
Ursa, ganhou o prêmio de filmes turísticos/folclórico da Empetur. Rodrigues e
Spencer chegaram a desenvolver filmes juntos e administrar o Teatro do
Parque (Prefeitura) nos anos seguintes.
120

Os prêmios se dividiram entre projetor e filmador Ektasound da Kodak,


além de cerca de Cr$31.500 subdivididos nas categorias e financiamento da
Rede Globo, DP e pela Empetur. Em 1979, acontece o III Festival, mas as
gratificações em dinheiro diminuem substancialmente - o primeiro colocado
receberia o Prêmio de Aquisição Paulo Emílio Sales Gomes (tema regional) de
Cr$ 10 mil concedido pelo Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais. No
cartaz do evento constavam como promotores o Grupo-8, a Funarte, a
Embrafilme e o Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais (IJNPS). As
submissões eram encaminhadas para o endereço do próprio Flávio Rodrigues,
no bairro da Madalena, que já havia recebido cópias locais e paulistanas.
(ROTEIRO. Diário de Pernambuco, Recife, 12/11/1979).

Como vimos nas diversas passagens elencadas ao longo deste trabalho,


o DP e o DM promoveram uma continuação no debate pejorativo sobre as
Pornochanchadas. Este se inscrevia em relações de poder da mídia impressa e
de seus mediadores que produziam verdades baseadas nos códigos e
tecnologias que envolvem a sexualidade e o gênero, como falamos no início
deste capítulo. Essas repetições dos dispositivos sexo-gênero corroboram e
corroboraram para a naturalização da matriz genital/biologizante, além da
cisheteronorma sobre os corpos na atividade da crítica.

Ainda que não nos alonguemos neste debate, esta noção da


heteronorma é indivisível dos delírios ufanistas e superoitistas, especialmente
nos discursos de Glauber Rocha e de Fernando Spencer. Para consagrar os
seus modos de fazer cinema, os autores construíram, historicamente, a
diferença classista, racista, cissexista e LGBTfóbica, marcando fortemente a
construção de um cinema brasileiro e pernambucano - em termos de produção
e de discursos sobre estes. Essa fixidez reitera e garante, como as
provocações da historiadora social do cinema Judith Mayne (1993) já nos
advertia no capítulo 1, a estabilidade desses sujeitos e as normatizações das
corporalidades divididas em hierarquias no palco central nos estudos
historiográficos e da história do cinema.
121

Os monstros da identidade nacional cinematográfica eram


dimensionados a partir das intersecções de violências estruturantes da
sociedade e dos pretensos “centros” sudestinos que usufruíram destes em seu
êxodo intelectual, seja no nordeste, no norte e no centro-oeste do país no que
tange corroborar e produzir narrativas elitistas de lá ou reforçá-las no emprego
de representatividades vazias, preenchidas por estereótipos coloniais.

O delírio superoitista percebido nas páginas jornalísticas


pernambucanas reside justamente em acreditar na possibilidade de, ainda sob
os termos sudestinos, descentralizar uma narrativa sobre cinema no/do país
que sempre nos subalterniza, em termos de produção inclusive do saber.
Spencer e o Grupo 8 poderiam entender que o fomento do INC, da Embrafilme
e, enfim, o apoio institucional e mercadológico poderiam contribuir para a sua
ascensão durante o período ditatorial no país.

Porém, destacamos que acreditar no discurso glauberiano fazia Spencer


não nos enxergar territorialmente mesmo no historicizar do cinema
pernambucano que fazia há anos 44; talvez, para este dito centro, fôssemos tão
vulgares quanto as pornochanchadas e o cinema de kung-fu, nossos monstros
aqui, posto que sequer conseguíssemos, por exemplo, alçar a projeção
carioca/paulista nas salas espalhadas por todo país. Nós, também, éramos e
ainda somos os monstros. E, agora, décadas depois, estamos construindo
novas leituras sobre essas ligações, o continuum que permeia o cinema de/no
Recife e o que ainda está na margem deste se revela a partir de trabalhos
historiográficos, jornalísticos, artísticos e de demais áreas e produções
empenhadas nestes estudos a partir de Pernambuco. Esse também, para nós,
é o devir não de uma patrulha ideológica, mas o de uma crítica histórica forjada
a partir do popular.

44A título de exemplo, entre os anos de 1962-1964, Spencer editou obras de Jota Soares
publicadas na seção de Cinema do Diário de Pernambuco. Tratava-se de uma série de 59
textos de Soares intitulada “Relembrando o Cinema Pernambucano” (DIB; JOAQUIM, 2019).
Além disso, vasta parte de suas produções cinematográficas feitas a respeito do nosso estado
estão dispostas na Cinemateca Pernambucana.
122

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O emprego da história social do cinema têm sido, sobretudo, apreender


os contextos de recepção de obras e seus inúmeros aspectos na relação com o
público consumidor - seja nas salas de cinema ou nos múltiplos espaços que
observamos despontar para tal prática, há um sentido de lazer, diversão e
análise de dinâmicas culturais, sociais, políticas, econômicas e históricas que
escapam aos documentos oficiais ou aos discursos hegemônicos. Foi através
das contradições da história do cinema, mais especificamente, das
Pornochanchadas, que fizemos a nossa incursão historiográfica.
Privilegiando a sua recepção na cidade do Recife, observamos o/através
do contexto histórico, pistas e fragmentos do fazer e do desfrutar
cinematográfico na capital pernambucana. Foi possível localizar, na mídia
tradicional, um continuum que relacionava os filmes com práticas sexuais ou
representações baseadas nestas sob uma cortina moral, arraigada nas
questões moderno-coloniais, tal qual sua defesa por setores das classes
médio-altas em nosso estado, em consonância com grande parte da mídia
brasileira.
A história do cinema pernambucano, dividida na obra clássica que
citamos ao longo de todo o trabalho, Cinema Pernambucano: uma história em
ciclos, de autoria do Professor Alexandre Figuerôa (2000), concentra-se no
ciclo do Recife na década de 20 do século passado, assim como no Super-8 e
nos “filhos” deste nos anos 80 e 90. Essas localizações tensionam como essas
próprias divisões, comuns também e ainda em trabalhos mais recentes,
marginalizam outras possibilidades de análise.
Trabalhos realizados no seio dos Programas de Pós-graduação em
Pernambuco ou de discentes que migram para outros centros de estudos
historiográficos-cinematográficos, principalmente, têm pautado a recepção
como ponto necessário e indispensável à articulação histórica do cinema não
apenas realizado no estado, mas as dinâmicas de consumo deste frente a
obras advindas de outras regiões do país e do mundo. Algumas dessas
publicações como as de Felipe Silva, Arthur Lira, Kate Saraiva, Amanda
Mansur Nogueira, dentre outras pessoas, nos possibilitaram construir e prover
um trabalho quase arqueológico unindo a crítica, o espaço social, assim como
123

o espaço físico e as dimensões sociais e culturais do público que observou


duas Hollywoods: a do Ciclo do Recife, e a paulista-carioca das
Pornochanchadas.
Sobre os anos 1970 que privilegiamos aqui as discussões ainda são
parcas - mesmo o estado sendo um celeiro de pensadores, realizadores,
espaços e consumidores cinematográficos. Há um vasto referencial, inclusive
de arquivos vivos, que podem e devem ser utilizados para a continuação das
análises sobre o cinema no estado. Recuperar os fragmentos do Diário da
Manhã e do Diário de Pernambuco nos auxiliou a definir quais relações
aconteciam com as Pornochanchadas, partindo, sobretudo, daqueles que
foram primordiais à construção deste mesmo título sobre essa fase de
sexploitation brasileira: os jornalistas e críticos. Figuras como Celso Marconi e
Fernando Spencer tiveram destaque unindo o jornalismo ao cinema, mas
também aos seus outros ofícios, como professores, orientadores e
fomentadores do que hoje observamos ser colocado como o cinema
pernambucano de “brothagem” (NOGUEIRA, 2014).
Entretanto, para além de uma ligação afetuosa com a cidade do Recife e
a produção de filmes, houve no período estudado uma aproximação
institucional importante já que se convivia com a experiência traumática da
ditadura que, como observamos, passou a controlar e concentrar as atividades
cinematográficas por meio de diversos sustentáculos. A censura foi a maior
destas, sofisticando-se desde o início do golpe que é instaurado com a
centralização das produções culturais em 1964.
A necessidade de marcar a produção cinematográfica do/no país, assim
como a possibilidade de exportação, movimentou inúmeros profissionais do
cinema e outras áreas próximas neste período. Pernambuco tinha uma vivaz
produção superoitista, mas que ainda estava concentrada como uma atividade
da elite pelo seu alto custo. Nem mesmo as aproximações com os políticos
locais garantiram - já que não acontecia com o incentivo direto da Embrafilme
ou do INC - o crescimento de uma indústria pernambucana. Além da
heterogeneidade própria de realizadores/as superoitistas no que tange enredo,
formato, proposta e questões que apresentamos no terceiro capítulo, a política
é outra questão fundamental: dividiam-se entre conservadores e anarquistas,
124

reféns cordiais da censura ou libertários que queriam sua dissolução.


Entretanto, a liga que os unia era também a cidade do Recife.
Nos anos 1970, a questão identitária é quase um elemento fundante nas
produções culturais. Vivíamos o milagre econômico que também foi convertido
e percebido no aumento de filmes produzidos e exibidos em salas de cinema
na área urbana e rural, mas estávamos ainda tentando entender se éramos ou
não modernos. Observamos que, certamente, ainda éramos aprisionados pela
colonialidade, na guerrilha onde as diferenças foram e continuam sendo
impostas para hierarquizar e valorizar certos aspectos, privilegiando-os ou não,
mesmo que o cinema e o seu fazer e perceber, para os estudos de recepção,
seja múltiplo.
À época, em tal discussão no campo cinematográfico, a disputa se
acirra em quem vai representar e apresentar ao público brasileiro a sua “própria
face”. Instaurada como a vilã dos intelectuais cinemanovistas, a
Pornochanchada provoca as ambiguidades dos discursos salvacionistas e/ou
nacional-popular quando atrai um expressivo público às salas. E esse público,
assim como a pornochanchada, é malquisto pela elite e as classes
médias/altas: aqui, no Recife, Clóvis Menezes fazia uma verdadeira
perseguição jornalística às “novas” ocupações do espaço central,
principalmente, nas áreas de lazer, onde entendemos o cinema.
Era o público da classe C e D, alguns desviados e desvairados, que
desafiavam as políticas do espaço nas sessões que iam desde as tardes até a
madrugada com obras de classificação indicativa para maiores de dezoito
anos. O gozo das pornochanchadas é apreendido por estes junto com seus
cacoetes, corporalidades, exageros e ocupação dos cinemas, graças a uma
carnavalização que não dura 5 dias de folia, mas algumas horas possíveis
dentro de uma ditadura nefasta. Da mesma forma foram as sexi-
comedias argentinas e o destape espanhol. Esse entendimento nos faz
deslocar o espectador como uma mera figura passiva, situando também que
não só a atuação da censura federal ou das leis de obrigatoriedade criada no
período justifica a ascensão dessas obras.
Além disso, observamos que são opiniões e propostas baseadas em
diferenças de classe, raça, gênero e sexualidade que permeiam e até
125

instauram o debate pernambucano sobre o cinema. Elencamos diversos


trechos onde não apenas a Pornochanchada foi pormenorizada (sem sequer
uma análise destas), mas também os cinemas estrangeiros que aqui se
popularizaram - as chanchadas e os filmes relacionados às artes marciais ou o
cinema de kung-fu, como foram apelidados. Entretanto, em alguns trechos
conseguimos localizar pernambucanos/as inclusos nas produções das
pornochanchadas que tiveram uma acolhida diferenciada pela mídia a partir de
um bairrismo (ainda que elitizado), assim como o que nos parece ser a primeira
exibição em 3D realizada no estado, em 1978, com o filme Dinastia. Se a
perspectiva do nacional-popular era defendida pelos superoitistas alinhados ao
cinemanovismo, a crítica cultural presente também nos jornais conseguia
apontar as incongruências ali, como observamos com as colocações de
Jomard Muniz de Britto e Luzanira Rêgo, acusados de censura por seus
“pares” assim como foi Beatriz Nascimento no eixo Rio de Janeiro-São Paulo.
Encerramos nos situando como mais um esforço em compreender a
recepção cinematográfica em conjunto com o trabalho historiográfico em
Pernambuco, empenho este que não se acaba em nossas linhas finais,
tampouco nesta dissertação e sequer neste programa de pós-graduação. Pelo
contrário, acreditamos que algumas das provocações aqui expostas retomam
questões já debatidas e outras que ainda demandam desdobramentos e fôlego
no frutífero espaço da historiografia do cinema recifense, pernambucano e
nacional.
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