Livro Desafios Contemporaneos o Direito A Moradia

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Inserido no rol dos direitos sociais em razão da Emenda Constitucional nº

26, de 2000, o direito à moradia desponta enquanto direito fundamental


dotado de dupla dimensão, já que, embora corresponda a direito subjetivo
a prestações positivas, não se ignora a sua natureza negativa, que se
explicita sobretudo na vedação de remoções forçadas. Com efeito, resta
sedimentado no imaginário social a compreensão de que o direito à
moradia apenas se perfectibiliza com a promoção do acesso à casa
própria, circunstância que revela o distanciamento da concepção da
moradia enquanto um bem universal acessível via políticas estatais
diversas – não apenas de compra e financiamento – e uma equivocada
aproximação à compreensão da moradia enquanto mercadoria. O
Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV), programa habitacional de
maior relevo na história brasileira, demonstra a imprecisão da atuação
política que se orienta pelo critério da rentabilidade, vez que, ao
condicionar a aquisição de lotes para a construção dos conjuntos
habitacionais ao menor preço disponível, o PMCMV reproduziu as
desigualdades há muito articuladas no espaço urbano, marcado sobretudo
pela segregação socioterritorial. Os desafios pela propagação do
coronavírus – especialmente em decorrência da constatação das
inúmeras situações de coabitação e de adensamento excessivo, para além
da ausência de acesso ao saneamento básico, vez que muitas famílias
sequer têm acesso à água tratada e a banheiros de uso exclusivo –
reforçam a urgência pela superação da clássica compreensão do direito à
moradia, que, apesar de se constituir enquanto direito autônomo, a partir
da promulgação do Estatuto da Cidade, deve ser entendido como direito
interdependente e contemplado no conceito guarda-chuva de direito à
cidade, que, atualmente, se contorna enquanto instrumento jurídico de
reivindicação de uma vida digna no espaço urbano, sendo que se
reconhece que a perspectiva urbanística é conteúdo insuprimível do
conceito – ressignificado – de direito à moradia.

Editora Fundação Fênix


Direito à moradia:
desafios contemporâneos quanto à sua conceituação
e concretização à luz do direito à cidade
Série Direito
Conselho Editorial
____________________________________________________________
Editor

Ingo Wolfgang Sarlet

Conselho Científico – PPG Direito PUCRS


Gilberto Stürmer – Ingo Wolfgang Sarlet
Marco Felix Jobim – Paulo Antonio Caliendo Velloso da Silveira
Regina Linden Ruaro – Ricardo Lupion Garcia

Conselho Editorial Nacional

Amanda Costa Thomé Travincas - Centro Universitário UNDB


Ana Elisa Liberatore Silva Bechara – USP
Ana Paula Gonçalves Pereira de Barcellos - UERJ
Angélica Luciá Carlini – UNIP
Augusto Jaeger Júnior - UFRGS
Carlos Bolonha – UFRJ
Claudia Mansani Queda de Toledo- Centro Universitário Toledo de Ensino de Bauru
Cláudia Lima Marques – UFRGS
Danielle Pamplona – PUCRS
Daniel Antônio de Moraes Sarmento – UERJ
Daniel Mitidiero – UFRGS
Daniel Wunder Hachem - PUCPR e UFPR
Fabiano Menke – UFRGS
Flavia Cristina Piovesan - PUC-SP
Gabriel de Jesus Tedesco Wedy – UNISINOS
Germano André Doederlein Schwartz – UNIRITTER
Gilmar Ferreira Mendes – Ministro do STF, Professor Titular do IDP e Professor
aposentado da UNB
Gisele Cittadino - PUC-Rio
Gina Vidal Marcilio Pompeu – UNIFOR
Giovani Agostini Saavedra - Universidade Presbiteriana Mackenzie – SP
Guilherme Camargo Massaú – UFPel
Hermes Zaneti Jr – UFES
Ivar Alberto Martins Hartmann - FGV Direito Rio
Jane Reis Gonçalves Pereira - UERJ
Juliana Neuenschwander Magalhães – UFRJ
Laura Schertel Mendes – UnB
Lilian Rose Lemos Rocha – Uniceub
Luís Roberto Barroso – Ministro do STF, Professor Titular da UERJ, UNICEUB, Sênior
Fellow na Harvard Kennedy School
Mônia Clarissa Hennig Leal – UNISC
Otavio Luiz Rodrigues Jr – USP
Patryck de Araújo Ayala – UFMT
Paulo Ricardo Schier - Unibrasil
Phillip Gil França - UNIVEL – PR
Teresa Arruda Alvim – PUC-SP

Conselho Editorial Internacional

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Alvaro Avelino Sanchez Bravo - Universidade de Sevilha
Catarina Isabel Tomaz Santos Botelho - Universidade Católica Portuguesa
Carlos Blanco de Morais – Universidade de Lisboa
Cristina Maria de Gouveia Caldeira - Universidade Europeia
César Landa Arroyo - PUC de Lima, Peru
Elena Cecilia Alvites Alvites - Pontifícia Universidade Católica do Peru
Francisco Pereira Coutinho - Universidade NOVA de Lisboa
Francisco Ballaguer Callejón - Universidade de Granada - Espanha
Fernando Fita Ortega - Universidade de Valência
Giuseppe Ludovico - Universidade de Milão
Gonzalo Aguilar Cavallo – Universidade de Talca
Jorge Pereira da Silva - Universidade Católica Portuguesa
José João Abrantes – Universidade NOVA de Lisboa
José Maria Porras Ramirez - Universidade de Granada – Espanha
Manuel A Carneiro da Frada – Universidade do Porto
Paulo Mota Pinto – Universidade de Coimbra
Víctor Bazán - Universidade Católica de Cuyo
Pedro Paulino Grandez Castro - Pontificia Universidad Católica del Peru
Eloísa Assis

Direito à moradia:
desafios contemporâneos quanto à sua conceituação
e concretização à luz do direito à cidade

Editora Fundação Fênix

Porto Alegre, 2021


Direção editorial: Ingo Wolfgang Sarlet
Diagramação: Editora Fundação Fênix
Capa: Editora Fundação Fênix

O padrão ortográfico, o sistema de citações, as referências bibliográficas, o


conteúdo e a revisão de cada capítulo são de inteira responsabilidade de seu
respectivo autor.

Todas as obras publicadas pela Editora Fundação Fênix estão sob os direitos da
Creative Commons 4.0 –
http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR

Série Direito – 36

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Eloísa Assis dos Santos

ASSIS, Eloísa. Direito à moradia: desafios contemporâneos quanto à sua


conceituação e concretização à luz do direito à cidade. Porto Alegre, RS: Editora
Fundação Fênix, 2021.

209p.
ISBN – 978-65-81110-34-5

https://doi.org/10.36592/9786581110345

Disponível em: https://www.fundarfenix.com.br

CDD – 340
_______________________________________________________________
1. Direito à Moradia. 2. Direito à Cidade. 3. Direitos Fundamentais.
4. Programas Habitacionais.

Índice para catálogo sistemático – Direito – 340


Dedico o presente livro aos brasileiros que habitam em moradias
precárias, e que têm o direito à cidade diariamente negado, para que
saibam que tal cenário não corresponde ao projetado pela Constituição
Federal.
“Quando dou comida aos pobres, chamam-
me de santo. Quando pergunto por que eles
são pobres, chamam-me de comunista.”
(Dom Hélder Câmara)

“É por isso que eu denomino que a favela é o


quarto de despejo de uma cidade. Nós, os
pobres, somos os trastes velhos. “
(Carolina Maria de Jesus)

“Meu Brasi de Baxo amigo,


Pra onde é que vai?
Nesta vida do mendigo
Que não tem mãe nem tem pai?
Não se afrija, nem se afobe,
O que com o tempo sobe,
O tempo mesmo derruba;
Talvez ainda aconteça
Que o Brasi de Cima desça
E o Brasi de Baxo suba.”
(Patativa do Assaré)
AGRADECIMENTOS

Entendo a vida como composta por sucessivas viagens de avião, sendo cada
viagem única – seja em razão do destino, da previsão do tempo ou dos passageiros
com quem se compartilha a experiência. Há viagens em que você precisa ser o piloto
e garantir uma boa viagem para todos os tripulantes, noutras, você pode se dar ao
luxo de apenas se sentar na poltrona da janela e apreciar toda a beleza e perspectiva
que só uma viagem de avião pode proporcionar. Na viagem com destino à obtenção
do título de Mestre em Direito, tive a convicção de que precisaria assumir o controle
da aeronave e garantir um pouso em segurança.
Executada com imensa satisfação, a decolagem deu início à jornada, e,
rapidamente, atingi o voo de cruzeiro. Contudo, embora tudo parecesse seguir o
plano de voo, fui surpreendida pela pior turbulência que já tive que enfrentar em toda
a minha vida. Nesse momento de desespero – em que, inclusive, duvidei das minhas
habilidades para seguir comandando o voo – contei com o amor, apoio, carinho e
acolhimento de todos que acreditavam que o destino ainda era possível de ser
alcançado.
Meu agradecimento, portanto, se dirige a todos os comissários de bordo que
tentaram – cada um à sua maneira – me oferecer acolhimento e amor para que
enfrentasse a zona de instabilidade. Na tentativa de me incentivar e de me convencer
de que eu era capaz de superar tais adversidades, os comissários performaram as
mais diversas habilidades. Assim, agradeço imensamente à minha mãe, Rovani, pelo
amor incondicional, pela cumplicidade e por, além de ter me permitido voar, ter
acreditado na minha capacidade. Agradeço à Pablo, meu companheiro de
praticamente todas as viagens dos últimos seis anos, pelo amor, cuidado e
dedicação. Agradeço também à Larissa pela amizade verdadeira e pelos momentos
em que me arrancou fortes gargalhadas, me distraindo da turbulência. Meu
agradecimento também se direciona a todos que se dedicaram a fazer com que eu
me sentisse amada e capaz. Dessa forma agradeço à João Vítor, Tarsila e Vicente
pelo amor, admiração e por muitas vezes terem que escutar meus relatos de bordo;
à Panaiota, pelo acolhimento e carinho maternal que nutre por mim; à Geruza, por
muitas coisas, mas, principalmente, pelas palavras de incentivo e motivação e à
Rovânio, que, além de se fazer presente, mesmo estando em outro hemisfério,
tentou me confortar com um plano de pouso de emergência – que, felizmente, não
se fez necessário.
Expresso, ainda, minha gratidão à equipe técnica da torre de controle que me
acolheu e me direcionou na execução desse voo; assim, agradeço ao Prof. Dr. Ingo
Sarlet, à Prof.ª. Drª. Vanêsca Prestes, ao Prof. Dr. Adalberto Pasqualotto e à
secretária do PPDG, Caren Klinger. Agradeço também à CAPES pelo financiamento
dessa jornada.
A finalização dessa viagem não seria possível sem o auxílio de todos os
anteriormente citados. Contudo, se fôssemos analisar a caixa preta desse avião,
identificaríamos inúmeras mensagens de pessoas, que, apesar da distância, sempre
que podiam, tentavam me transmitir o carinho que sentiam por mim. As mensagens
dessas pessoas me traziam a esperança de que as condições meteorológicas se
estabilizariam. Assim, agradeço a Grazieli, Michele, Edivane, Leônidas, Marianna,
Eduarda, Raphaela, Andressa, Tomlyta, Flávia, Mérilan, Lays, Thaís e Gabriela. Sei que
vocês torcem muito por mim e vibraram com cada acrobacia aérea que executei
nesses últimos meses. E por isso eu sou muito grata. Obrigada.
Enfim, pousei em segurança. Touchdown. A todos, muito obrigada.
SUMÁRIO

PREFÁCIO
Ingo Wolfgang Sarlet; Vanêsca Buzelato Prestes ................................................... 17

APRESENTAÇÃO
Adalberto Pasqualotto .............................................................................................. 21

INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 25

1. A CONSTRUÇÃO DO CONTEÚDO JURÍDICO DO DIREITO À MORADIA .............. 31


1.1 O RECONHECIMENTO DA MORADIA ENQUANTO DIREITO HUMANO NO
CENÁRIO JURÍDICO INTERNACIONAL ................................................................... 37
1.2 A PREVISÃO DE UM DIREITO FUNDAMENTAL À MORADIA NO PLANO
CONSTITUCIONAL BRASILEIRO ............................................................................. 50

2. HABITAR NA (E A) CIDADE: DO ACESSO À MORADIA AO DIREITO À


CIDADE ....................................................................................................................... 67
2.1 O QUE É CIDADE? DA CIDADE ANTIGA À CONTEMPORÂNEA ........................ 67
2.2 CIDADES BRASILEIRAS: BREVE HISTÓRICO DAS POLÍTICAS
HABITACIONAIS E URBANAS NO BRASIL ............................................................. 73
2.3 A CONSTRUÇÃO DO CONTEÚDO DO DIREITO À CIDADE ............................... 88

3. O DIREITO À CIDADE E SEUS PRINCÍPIOS ESTRUTURANTES – QUE


EVIDENCIAM A EXTENSÃO DO SEU CONTEÚDO ................................................... 105
3.1 OS PRINCÍPIOS ESTRUTURANTES E ORIENTADORES DO DIREITO À
CIDADE ................................................................................................................... 105
3.1.1 Princípio da Dignidade da Pessoa Humana ............................................... 107
3.1.2 Princípio da sustentabilidade ..................................................................... 112
3.1.3 Princípio da Democracia ............................................................................. 120
3.1.4 Princípios da Equidade e da Justiça Social ............................................... 125
3.1.5 Princípio da Função Social da Propriedade ............................................... 128
3.1.6 Princípio da Função Social da Cidade ........................................................ 137
3.1.6.1 Cidades Inclusivas ................................................................................... 140
3.1.6.2 Cidades Seguras ....................................................................................... 147
3.1.6.3 Cidades Resilientes .................................................................................. 153
3.1.6.4 Cidades Sustentáveis............................................................................... 159

4. A IMPRESCINDIBILIDADE DA VINCULAÇÃO DO DIREITO À MORADIA AO


DIREITO À CIDADE: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS ............................................ 167
4.1 A CONTEXTUALIZAÇÃO DO DIREITO À MORADIA NO DIREITO À CIDADE:
UMA ANÁLISE A PARTIR DO PROGRAMA MINHA CASA, MINHA VIDA ............. 167
4.2 A PANDEMIA DO CORONAVÍRUS E A URGÊNCIA PELA RESSIGNIFICAÇÃO
DO DIREITO À MORADIA ....................................................................................... 182

CONCLUSÃO ............................................................................................................ 193


REFERÊNCIAS .......................................................................................................... 201
SOBRE A OBRA ........................................................................................................ 209
PREFÁCIO
Ingo Wolfgang Sarlet
Vanêsca Buzelato Prestes
Tendo acompanhado desde o início a elaboração do texto que ora se
publica, da lavra de ELOÍSA ASSIS DOS SANTOS, e que corresponde à sua
dissertação de Mestrado em Direito por nós orientada e defendida perante Banca
de Defesa integrada também pelos ilustres colegas e amigos, Professores
Doutores Adalberto Pasqualotto (PUCRS) e Jayme Weingartner Neto
(UNILASSALLE), é com particular alegria e sentimento de orgulho que recebemos
o convite para redigir o respectivo Prefácio, cientes, além disso, da grande
dedicação e não menos intenso esforço dispendidos pela autora ao longo do curso
de Mestrado, ao final recompensados com sua aprovação com louvor e
recomendação de publicação do trabalho.
Muito embora o direito à moradia, na sua condição de direito fundamental
social na ordem jurídico-constitucional brasileira já tenha sido objeto de não
poucos trabalhos de conclusão de curso de graduação e de especialização, de
dissertações de Mestrado e teses de Doutorado, ademais de um número
expressivo de publicações entre nós, é possível afirmar que ELOÍSA logrou êxito
em produzir uma obra que, além de uma reconstrução sistemática do tema a partir
da literatura, legislação e jurisprudência, contribui para com a conformação
dogmática do conteúdo jurídico do direito à cidade, a partir da compreensão do
conteúdo normativo do direito fundamental à moradia e da profunda vinculação
entre ambos.
Importa sublinhar que ELOÍSA, embora ainda muito jovem, já demonstrou
ser uma pesquisadora vocacionada, o que se verifica não apenas pela sua
dedicação e capacidade de trabalho, mas também pela sua facilidade em acessar
as fontes, dominar o conteúdo e promover uma reflexão crítica.
Na obra, ELOÍSA apresenta a matéria de modo sintético, objetivo e, ainda
mais tendo em conta o perfil de uma dissertação de Mestrado, inclusive com
profundidade, dialogando com a doutrina e com as decisões dos Tribunais
Superiores, sem deixar de consignar o seu próprio pensamento.
18 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

Com propriedade, sustenta a inarredável e profunda vinculação do direito


fundamental à moradia, previsto na Constituição Federal, com o direito à cidade,
sobretudo em um País em que se verifica um enorme déficit habitacional, e no qual
as políticas públicas da área pecam por não tratar o direito à moradia na sua
plenitude. Para tanto, traz dados, analisa modelos de produção habitacional, bem
como analisa o Programa Minha Casa, Minha Vida, desenvolvido a partir de 2009
no Brasil.
Para demonstrar a vinculação dogmática entre os direitos à moradia e à
cidade, a autora explicita o modo pelo qual se dá essa articulação, em especial a
partir dos seguintes eixos: a) apresentação da trajetória de atribuição de conteúdo
– normativo e axiológico – ao direito à moradia e ao direito à cidade; b) a
sistematização do direito à moradia, evidenciando sua natureza, conteúdo,
eficácia, suas dimensões objetiva e subjetiva, bem como sua força normativa; c)
a verificação da sustentação científica do direito à cidade enquanto direito
fundamental; d) a identificação dos argumentos que demonstram a urgência pela
ressignificação do direito à moradia – que passa a ser concebido enquanto direito
interdependente ao direito à cidade.
Vale destacar a argumentação e as diferenciações produzidas no segundo
capítulo. Neste, a autora trata da atribuição de conteúdo jurídico ao direito à
cidade, que nasce a partir da reflexão filosófica de Henri Lefebvre, porém, quando
inserido no contexto do Estado Socioambiental Democrático de Direito, encontra
suporte filosófico-jurídico na justiça distributiva, sendo classificado como um
direito fundamental de terceira dimensão. Demonstra que o direito à cidade tem
início como projeto político de luta anticapitalista, mas que, no Estado
Socioambiental e Democrático de Direito, que congrega um conteúdo de direitos
protegidos, confere igualdade no acesso às cidades. Sustenta e demonstra que
se trata, no caso do direito à cidade, de um direito de natureza metaindividual que
contribui para a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Também
aponta que não há direito à cidade sem que seja assegurado igualmente o direito
a uma moradia adequada. Enfatiza, por sua vez, que o direito a uma moradia
adequada não se resume a um direito de acesso e uso de um local, mas sim,
engloba o acesso a um conjunto de serviços e condições para o exercício da vida
Ingo Wolfgang Sarlet; Vanêsia Buzelato Prestes | 19

digna. Eis um dos pontos que indicam a necessária e urgente ressignificação do


direito à moradia.
A autora indica como fio condutor da necessidade de interrelação entre o
direito à moradia e o direito à cidade o capítulo da política urbana da Constituição
Federal, em especial no que diz com a função social da propriedade. Demonstra
que sendo o direito à cidade resultado de uma lógica filosófico-jurídica
direcionada à garantia da dignidade dos indivíduos, incumbida de promover
justiça social, contribuir com a distribuição equânime dos benefícios da vida em
coletividade e participação dos cidadãos nos assuntos públicos, os princípios da
função social da propriedade e da função social da cidade condensam diretrizes
que asseguram a dinamização de cidades inclusivas, justas, resilientes,
democráticas e sustentáveis. Diante disso, aponta que uma enunciação frágil das
funções sociais da propriedade esvazia as políticas urbanas e compromete a
plena efetivação do direito à moradia e do direito à cidade.
E é esta a articulação que a autora alerta que precisa ser percebida,
desenvolvida e assumida no Brasil. Aduz que em um período impactado pela
pandemia, mas também na esfera pós-pandêmica, marcado pelo aumento da
pobreza e piora das condições de vida, urge que ocorra a imbricação das políticas
habitacionais com as diretrizes urbanísticas, de tal sorte que a política
habitacional integre o conteúdo jurídico do direito à cidade.
Nessa ordem de coisas, a autora de modo profundo, sistemático, se
afastando do voluntarismo, aprofunda os limites constitucionais para o
tratamento do conteúdo apresentado, demonstra a urgência da necessidade de
ressignificação do direito à moradia e sua inafastável vinculação às diretrizes
urbanísticas que buscam fundamento no direito à cidade.
A pesquisa realizada evidencia o significado do direito à moradia, que,
embora seja um direito autônomo, se constitui enquanto fragmento do direito à
cidade, sendo as diretrizes urbanísticas indissociáveis de seu conteúdo. A autora
chama a atenção para o fato de que a mera construção de uma moradia, ignorando
a interação das unidades habitacionais com os centros urbanos e com os serviços
essenciais lá prestados, é insuficiente para contemplar o direito à moradia
constitucionalmente protegido, na perspectiva do direito à cidade.
20 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

É por todo o exposto que temos a convicção de que a obra que ora chega
às mãos dos leitores contribui sobremaneira para explicar os motivos jurídicos
pelos quais há necessidade da ressignificação do direito à moradia, na perspectiva
do direito à cidade. Além disso, o texto apresenta potencial concreto para servir
de referência para a reflexão e ação tanto dos profissionais da seara jurídica,
quanto gestores públicos e todos os que se dedicam à efetivação do direito
fundamental à moradia no contexto de uma cidade sustentável, condição também
para a diminuição das desigualdades sociais e erradicação da pobreza, na forma
estabelecida pela Constituição Federal de 1988.
Assim, nos resta parabenizar ELOÍSA pelo seu belo texto e almejar que
tenham a receptividade e sucesso merecidos.
Desejamos a todos uma boa leitura!
Porto Alegre, novembro de 2021.

Ingo Wolfgang Sarlet.


Professor Titular e Coordenador do PPGD da PUCRS.

Vanêsca Buzelato Prestes.


Professora Direito Urbanístico.
APRESENTAÇÃO

Adalberto Pasqualotto

Entendo a vida como composta por sucessivas viagens de avião, sendo


cada viagem única.
Assim Eloísa abre a página de agradecimentos na sua dissertação de
mestrado. E segue na analogia, mencionando os nomes que lhe foram caros na
jornada.
Eloísa partiu de Salvador com escala no Rio de Janeiro e chegou a Porto
Alegre. Conheci-a no primeiro dia de aula da minha disciplina no primeiro
semestre de 2019. Como costumo fazer, perguntei a cada um a sua origem
acadêmica e seu projeto de pesquisa. É uma primeira aproximação com os
interesses do aluno e uma verificação das possibilidades de convergência com os
conteúdos de Direito do Consumidor. O projeto de Eloísa centrava-se no direito à
cidade. Encontramos logo a convergência com a disciplina no direito à moradia.
Este acabou sendo o tema do seu seminário, do qual resultou um texto escrito a
quatro mãos, publicado na Revista Jurídica Luso-Brasileira.
A nossa colaboração não ficou nisso. Eloísa integrou-se ao Grupo de
Pesquisa em Direito do Consumidor, tornando-se uma das pesquisadoras mais
profícuas e assíduas. Enquanto isso, sob a segura orientação do Professor Ingo
Sarlet, foi desenvolvendo a sua dissertação, até chegar à banca, da qual participei
com grande júbilo.
Não é por acaso que alguém com tamanha sensibilidade social escolhe
como objeto da sua dissertação de mestrado um tema tão inquietante quanto o
direito à moradia, especialmente em um país de tanta desigualdade como o Brasil.
O direito à moradia é um direito social reconhecido na Constituição
brasileira. Eloísa vai buscar a sua origem na Declaração Universal dos Direitos
Humanos. Uma vez introduzido na Constituição pela Emenda nº 26, de 2000,
transformou-se em direito subjetivo a uma prestação positiva do Estado. Não
obstante, não foi resolvido o nosso grave déficit habitacional, que em 2009 era de
5,89 milhões de moradias e em 2019 era praticamente o mesmo: 5,87 milhões.
Como destaca Eloísa, o reconhecimento do direito à moradia como direito
22 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

fundamental na Constituição brasileira foi influenciado por compromissos


firmados pelo país na comunidade internacional, mas a política habitacional não
obteve avanços significativos.
Este é um dos maiores méritos de sua dissertação. Ela não se restringe a
uma digressão teórica sobre a matéria, acrescentando um olhar crítico, próprio da
sociologia, que aponta o enorme gap entre a teoria e a prática dos direitos sociais
no Brasil, entre law in the books e law in action. Essa abordagem permite que
Eloísa contextualize historicamente o problema habitacional em diferentes
regiões do país. Assim relata, por exemplo, como o processo de favelização do Rio
de Janeiro foi resultado de uma política equivocada de extinção dos cortiços, até
o surgimento, em Porto Alegre, das malocas e do bairro Restinga, para onde
deveria ser deslocada a população de baixa renda, convenientemente distante dos
olhos da elite; sem esquecer de incluir no roteiro sua amada Salvador e o Recife.
A sua crítica às carências da política habitacional tem como referência a
avaliação qualitativa dos planos diretores municipais (obrigatórios para cidades
com mais de 20 mil habitantes), levada a efeito pela Rede Nacional de Avaliação e
Capacitação para Implementação de Planos Diretores Participativos. O relatório
apontou que, apesar de os planos diretores contemplarem as diretrizes gerais da
política urbana definida pelo Estatuto da Cidade, foram ineficientes na elaboração
de estratégias para concretização daquelas diretrizes.
No conceito de déficit habitacional, não se compreende apenas “a
quantidade de unidades habitacionais que faltam para promover o abrigo de todas
as pessoas”, abrangendo outros quesitos, como a precariedade das unidades
habitacionais, a coabitação e o ônus excessivo dos aluguéis.
Nesse ponto, a crítica de Eloísa se torna mais aguda, apontando as causas
materiais do insucesso das políticas habitacionais:

(...) patologias construtivas, erros de execução, ausência de atendimento às


normas técnicas no que se refere aos confortos térmico, acústico e visual, má
qualidade, inclusive dos acabamentos, péssima localização.
Adalberto Pasqualotto | 23

Ilustra essa crítica com dados de pesquisa feita com moradores de


conjuntos habitacionais, dando conta de que a imensa maioria das famílias de
baixa renda entrevistadas consideram que, comparativamente às suas condições
de vida anteriores ao ingresso no programa, houve piora no acesso ao transporte
público, a postos de saúde, a telefone público, a comércio e serviços, ao trabalho,
à escola, ao lazer e na iluminação pública, tudo isso em percentuais elevados, que
chegam a ultrapassar oitenta por cento. Toda essa insatisfação tem uma causa
comum, aponta Eloísa: a lógica de mercado contaminando a política habitacional,
fazendo com o que empreendedor privado, executor dos programas habitacionais,
construísse em terrenos de menor preço e padronizasse os conjuntos para
privilegiar o lucro em detrimento da dignidade da moradia.
Por fim, Eloísa não deixa de lado o fato de que a pandemia da Covid-19
“escancarou as condições degradantes de vida de grande parte da população
brasileira”, mostrando que as moradias de muitos conjuntos habitacionais não
possuem condições minimamente adequadas para o cumprimento da orientação
de distanciamento social.
Em termos dogmáticos, Eloísa propõe que a moradia seja compreendida
como elemento integrante do mínimo existencial, dialogando com os parâmetros
de uma vida saudável e com qualidade. Como ela afirma, a universalização do
direito a uma moradia digna ainda tem um longo caminho a ser trilhado. A
pavimentação desse caminho passa necessariamente por críticas lúcidas e bem
fundamentadas como a que o leitor agora tem em mãos.
Outros voos, mais longos e exploradores, esperam Eloísa. Desejo-lhe desde
logo boas viagens e fico aguardando os novos presentes que certamente ela vai
trazer na bagagem e oferecer generosamente ao público.

Porto Alegre, novembro de 2021.

Adalberto Pasqualotto.
Professor Titular de Direito do Consumidor no Programa de Pós-Graduação em Direito.
da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, PUCRS.
INTRODUÇÃO

Desde tempos imemoriais a humanidade busca formas de viabilizar a


manutenção da vida, sendo a moradia uma das maiores necessidades de
subsistência humana. É possível observar que essa necessidade passa a ser
regulada pelo Direito Internacional em 1948, quando, na Declaração Universal dos
Direitos Humanos, a moradia restou consagrada como direito humano. Após o
reconhecimento da indispensabilidade de um padrão de vida capaz de assegurar,
dentre outras coisas, o acesso à habitação, o direito à moradia passou a figurar
em copiosos documentos internacionais que confirmavam sua essencialidade
para a garantia da dignidade dos indivíduos.
No Brasil, o direito à moradia foi inserido no texto constitucional em razão
da Emenda Constitucional nº 26 de 2000, oportunidade em que foi incluído no rol
dos direitos sociais. Todavia, antes mesmo de sua positivação no ordenamento
jurídico brasileiro, a noção de um direito à moradia se vinculava à garantia da
proteção à dignidade humana; temáticas como a usucapião urbana para fins de
moradia e a inclusão da moradia dentre as necessidades vitais básicas do
trabalhador indicavam a sua constitucionalidade material.
O reconhecimento formal do acesso à moradia enquanto um direito social
confirmou a compreensão de que se tratava de um direito subjetivo a prestações
positivas, conquanto não se ignore a dimensão negativa de tal direito. A atribuição
de valoração axiológica e proteção jurídica, contudo, não implicam concretização
fática do bem jurídico tutelado, motivo pelo qual se justifica a constatação do
crescente déficit habitacional no país mesmo após a consagração do direito social
à moradia. Considerando, de antemão, que o próprio conceito de déficit
habitacional diz respeito não apenas à quantidade de indivíduos sem habitação,
mas, em verdade, também abrange as situações de habitações precárias, se
contorna o problema de pesquisa no questionamento acerca da extensão da
dimensão positiva do direito à moradia, ao efeito de explicitar a quais concepções
fáticas tal direito social se direciona e quais seriam seu conteúdo e função no
âmbito das cidades, a fim de compreender as razões que justificam a
inexpressividade das políticas habitacionais até então implementadas no país.
26 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

A hipótese inicial corresponde à compreensão de que o direito à moradia,


apesar de ser direito autônomo, é fragmento do direito à cidade, abrigado em seu
conceito guarda-chuva, que contempla um amplo feixe de direitos de inegável
importância para o desenvolvimento das potencialidades dos indivíduos no
espaço coletivo. Assim, entende-se que a trajetória conceitual do direito à cidade
ensejou ressignificação do direito à moradia – que, por sua vez, já não pode mais
ser, equivocadamente, reduzido à noção de mero direito à propriedade individual,
sob o risco, aliás, de que se proceda ao raciocínio pela suficiência de diligências
pela produção massificada de unidades habitacionais, que reproduzem lógicas
territoriais marcadas pela segregação – de sorte que se integra à hipótese inicial
a premissa no sentido de que as diretrizes habitacionais se vinculam,
inarredavelmente, às diretrizes de política urbana.
O objetivo geral da pesquisa se traduz na explanação do conteúdo do direito
à moradia e de sua inafastável vinculação ao direito à cidade, sendo que se
assentam como objetivos específicos i) a apresentação da trajetória de atribuição
de conteúdo – normativo e axiológico – ao direito à moradia e ao direito à cidade;
ii) a sistematização do direito à moradia, evidenciando sua natureza, conteúdo,
eficácia, suas dimensões objetiva e subjetiva, bem como sua força normativa; iii)
a verificação da sustentação científica do direito à cidade enquanto direito
fundamental; iv) a identificação dos argumentos que demonstram a urgência pela
ressignificação do direito à moradia – que passa a ser concebido enquanto direito
interdependente ao direito à cidade.
A pesquisa, em sua abordagem, se valerá do método hipotético-dedutivo,
eis que restam assentadas enquanto linha de premissa as hipóteses no sentido de
que (i) o direito à moradia é interdependente ao direito à cidade, que, por sua vez,
abriga feixe de garantias e princípios estruturantes de indiscutível importância
para o desenvolvimento das potencialidades dos indivíduos no espaço coletivo, e,
por assim o ser (ii) o direito à cidade pode ser compreendido enquanto direito
materialmente fundamental, em razão da abertura material do catálogo de direitos
fundamentais; sendo que (iii) a trajetória conceitual do direito à cidade implicou
ressignificação do conteúdo do direito à moradia, que deixa de ser reduzido à
noção de mero direito à propriedade individual, sob o risco, aliás, de que se proceda
Eloísa Assis | 27

à perpetuação da segregação socioterritorial, reforçada pela produção


massificada de unidades habitacionais segundo critérios de rentabilidade, de sorte
que (iv) as diretrizes habitacionais se vinculam, inarredavelmente, às diretrizes de
política urbana a fim de que os programas habitacionais não reproduzam as
assimetrias socioterritoriais. Assim, em razão do método de abordagem adotado,
as hipóteses serão submetidas a um processo de falseamento, sendo que de tal
procedimento sucederá a confirmação ou refutação das hipóteses inicialmente
formuladas.
Válido assinalar, ainda, que, como método de interpretação, adota-se o
sistemático-sociológico, uma vez que se é certo que o ordenamento jurídico-
constitucional é percebido enquanto sistema complexo, organizado e
hierarquizado, também o é que se compreende o direito enquanto ciência social
aplicada, e, portanto, enquanto resultado de um processo que se desdobra no
tempo e no espaço, sendo, assim, fruto de fatores exógenos e endógenos. A
justificativa pela utilização do método sociológico se demonstra reforçada
especialmente em razão do reconhecimento de que as reivindicações por um
direito à cidade têm como nascedouro os movimentos sociais bem como que a
insuficiência das políticas habitacionais repercute no tecido social e se revela,
inclusive, em dados estatísticos e demográficos.
Ademais, no que se refere às técnicas de pesquisa, importa assinalar que,
quanto à natureza, a presente dissertação é qualitativa e teórica; assim, fora
lastreada em atualizada doutrina, sendo que, no que tange aos objetivos, consiste
em pesquisa exploratória e explicativa, porquanto se direciona a não apenas
apresentar os dados coletados, mas, também, organizá-los, submetê-los a
falseamento e examiná-los, a fim de possibilitar a identificação da ressignificação
do direito à moradia no ordenamento jurídico brasileiro, sobretudo seu conteúdo e
os desafios de sua concretização, lançando luz, aliás, na relação de imbricação
entre direito à moradia e direito à cidade. Por fim, quanto ao procedimento de
pesquisa, adota-se a documentação indireta de pesquisa bibliográfica e
documental.
As reflexões vão divididas em quatro capítulos. O primeiro capítulo se
dedica à construção do conteúdo jurídico do direito à moradia. Nesse sentido é
28 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

apresentada a trajetória de atribuição de valoração axiológica e jurídica à moradia,


que resultou no reconhecimento enquanto direito humano, no cenário
internacional, e como direito social fundamental, no âmbito nacional. O primeiro
capítulo, portanto, se volta a explicitar a operacionalização jurídica do direito à
moradia, demonstrando suas dimensões objetiva e subjetiva, sua força normativa,
sua natureza e sua eficácia, confrontando, todavia, a tutela constitucional de tal
direito com a constatação de um crescente déficit habitacional.
Por reconhecer que a intensificação do processo de urbanização alterou a
compreensão quanto à extensão do direito à moradia, o segundo capítulo aborda
o conceito de cidade, traçando uma breve exposição dos primeiros vestígios de
cidade, nas últimas fases do período neolítico, até a contemporaneidade,
explicitando a estruturação das cidades brasileiras cujas dinâmicas sociais se
constituem enquanto reflexo das políticas habitacionais implementadas – assim,
observa-se que as cidades brasileiras são compostas por favelas, invasões,
moradias precárias e segregação socioterritorial, que se demonstram enquanto
resultado de políticas públicas que favorecem os interesses mercadológicos em
prejuízo da garantia do bem-estar da população. O segundo capítulo discorre,
ainda, sobre a atribuição de conteúdo jurídico ao direito à cidade, que nasce a partir
da reflexão filosófica de Henri Lefebvre, e, inserido no contexto do Estado
Socioambiental Democrático de Direito, encontra suporte filosófico-jurídico na
justiça distributiva, sendo classificado como um direito fundamental de terceira
dimensão, considerando sua natureza metaindividual, contribuindo para a
construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Ainda no segundo capítulo,
analisando a estruturação da política urbana, emerge a problemática da
indeterminação do conteúdo do princípio da função social da propriedade, que,
apesar de ser tarefa atribuída pelo Constituinte aos gestores municipais, por meio
do Plano Diretor, observa-se que tal mandamento constitucional é
constantemente desrespeitado.
Ao efeito de compreender a gravidade da ausência de definição – ou da
frágil enunciação – dos parâmetros de ordenação da cidade condizentes com a
função social da propriedade, o terceiro capítulo apresenta os princípios que
orientam o direito à cidade e racionalizam sua legitimação enquanto direito
Eloísa Assis | 29

fundamental. Assim, são evidenciados os conteúdos dos princípios da dignidade


da pessoa humana, da sustentabilidade, da democracia, da equidade, da justiça
social, e, por fim, das funções sociais da propriedade e da cidade – sem negar,
todavia, o reconhecimento da conexão do direito à cidade a outros princípios que
alicerçam o Estado Socioambiental Democrático de Direito. Reforçando o direito à
cidade enquanto resultado de uma lógica filosófico-jurídica direcionada à garantia
da dignidade dos indivíduos, promovendo justiça social, distribuição equânime
dos benefícios da vida em coletividade e participação dos cidadãos nos assuntos
públicos, percebe-se que os princípios da função social da propriedade e da
função social da cidade condensam diretrizes que asseguram a dinamização de
cidades inclusivas, justas, resilientes, democráticas e sustentáveis, de sorte que
uma enunciação frágil das funções sociais da propriedade esvazia as políticas
urbanas e compromete a plena efetivação do direito à moradia e do direito à
cidade.
O quarto e último capítulo evidencia a vinculação do direito à moradia ao
direito à cidade, demonstrando os desafios contemporâneos que reforçam a
urgência pela imbricação das políticas habitacionais às diretrizes urbanísticas.
Para tal desiderato, examina os resultados obtidos a partir da implementação do
Programa Minha Casa, Minha Vida, que confirma a fragilidade das políticas
habitacionais que se direcionam ao mero fornecimento de um local para abrigo,
ignorando a interação das unidades habitacionais com os centros urbanos e com
os serviços essenciais lá prestados. Observa, ainda, os impactos da pandemia do
coronavírus e a relação desses com a acepção que se faz da implementação do
direito à moradia considerada enquanto excerto do direito à cidade.
Assim, se o direito à cidade desponta, originalmente, como um projeto
político de luta anticapitalista, como um anseio de ruptura radical da dinâmica
urbana capitalista, hoje, assume a feição de reivindicação que prospecta conferir
igualdade no acesso às cidades – embora ainda – capitalistas, abrangendo um
feixe de direitos, dentre os quais se identifica o direito à moradia. Nessa ordem de
coisas, a presente dissertação pretende demonstrar a urgência pela
ressignificação do direito à moradia e sua inafastável vinculação às diretrizes
urbanísticas que buscam fundamento no direito à cidade. A pesquisa se direciona,
30 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

portanto, a evidenciar o significado do direito à moradia, que, embora seja um


direito autônomo, se constitui enquanto fragmento do direito à cidade, de sorte
que as diretrizes urbanísticas compõem o núcleo indissociável de seu conteúdo.
1. A CONSTRUÇÃO DO CONTEÚDO JURÍDICO DO DIREITO À MORADIA

De início, importa consignar que o processo de conceituação do vocábulo


moradia pode encontrar alguns obstáculos, eis que existem dentro da literatura
nacional outros termos que são utilizados no mesmo contexto, como se sinônimos
fossem, como, por exemplo: habitação, domicílio e residência. O conceito de
moradia é abordado por diferentes ciências em que, cada uma, dentro da sua
singularidade, reforça os aspectos relevantes para a perspectiva da disciplina. No
estudo vertente, o conceito de moradia contempla particularidades intrínsecas à
ciência jurídica. Assim, a moradia é concebida enquanto um bem, ou seja, um
objeto passível de apropriação e utilização pelo ser humano; contudo, mais que
um bem, a moradia se constitui enquanto um bem essencial, constitucionalmente
reconhecido como indispensável à dignidade humana.
Quanto à existência de termos com significados similares, visualiza-se
certa tentativa de distinção dos vocábulos habitação e moradia, havendo
indicação do direito à moradia enquanto um valor jurídico, um bem irrenunciável,
indisponível e que integra, inclusive, o conteúdo essencial para o desenvolvimento
da personalidade humana, ao passo que o direito à habitação consistiria em direito
real que recai sobre um determinado bem, sendo o enfoque de cunho objetivo –
centrado no bem 1 . Residência e domicílio também são conceitos que se
confundem com a definição de moradia. Residência é o local onde a pessoa natural
mora com intuito permanente, sendo que o domicílio, segundo determinação do
Código Civil, em seu artigo 70 2, é o local onde a pessoa estabelece sua residência
com caráter definitivo. Embora existentes peculiaridades que distinguem os
termos mencionados, fato é que não se identifica significativa diferença valorativa
entre os conceitos de habitação, moradia, residência e domicílio.

1
SOUZA, Sergio Iglesias Nunes de. O Direito Humano da moradia após a emenda constitucional n.
26, de 2000 e sua análise com o direito de habitação no direito civil. Revista Argumentum – RA,
Marília/SP, v. 16, pp.73-98, jan./dez. 2015, p. 92.
2
BRASIL. Lei n o 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil Brasileiro. Brasília: DF:
Presidência da República, 2002. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm. Acesso em: 12 mar. 2020.
32 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

Com efeito, a Constituição Federal de 19883 utiliza os termos habitação e


moradia de maneira indiscriminada, eis que, no artigo 21, inciso II4, a Constituição
disciplina a competência privativa da União para estabelecer diretrizes de
desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes
urbanos. Já no artigo 23, inciso IX5, enuncia a competência comum da União, dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios para promover programas de
construção de moradias bem como melhoria das condições habitacionais e de
saneamento básico. Tudo a indicar a indiscriminada utilização dos vocábulos,
razão pela qual se adota a concepção no sentido de que habitação e moradia são
sinônimas.
Adianta-se que o direito à moradia se constitui enquanto direito humano e
fundamental, que tem no princípio da dignidade humana seu vetor. É consabido
que o conteúdo do princípio constitucional da dignidade humana ultrapassa
aspectos patrimoniais e econômicos; todavia, não se pode olvidar que, no sistema
capitalista, há uma relação direta, embora não exclusiva, que circunda dignidade
humana e patrimônio (leia-se propriedade), pois compreende-se que os indivíduos
necessitam de patrimônio para que possam se desenvolver minimamente 6. Em
outras palavras, sem condições econômicas e materiais mínimas o sujeito não se
liberta da sua condição de miserabilidade e não usufrui de sua dignidade, em que
pese não se desconsidere o fato de que direito à moradia e direito à (e de)
propriedade não se confundem. Com a satisfação que envolve o direito à moradia
coexistem três componentes, a saber: 1) viver com segurança; 2) viver com paz; e,
3) viver com dignidade7.
Sem embargo, o direito à moradia engloba uma complexidade de direitos e
de deveres de cunho negativo (de defesa) e positivo (prestacional). A condição de

3
BRASIL. [Constituição (1998)]. Constituição da República Federativa do Brasil. Texto compilado
até a Emenda Constitucional nº 107 de 02/07/2020, Brasília, DF: Senado Federal, 1988. (165p.).
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em:
12 jan. 2020.
4
Ibidem.
5
BRASIL, op. cit., 1988.
6
SILVA, José Robson da. Paradigma biocêntrico: do patrimônio privado ao patrimônio ambiental.
Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
7
SAULE JUNIOR, Nelson. A proteção jurídica da moradia nos assentamentos irregulares. Porto
Alegre: SAFE, 2004. p. 133.
Eloísa Assis | 33

direito negativo ou de defesa se desenrola no fato de que a moradia, como bem


jurídico fundamental, a princípio, situa-se protegida contra toda e qualquer espécie
de agressão por parte de terceiros 8 . No contexto da dimensão positiva ou
prestacional, o direito à moradia presume uma postura positiva do Estado,
mediante políticas públicas que oportunizem à população –independentemente
de quaisquer características sociais – o acesso universal à moradia digna. Em
razão da identificação de uma dimensão prestacional, o direito à moradia é
classificado como um direito fundamental de segunda geração.
Importante destacar que os direitos fundamentais surgem classificados a
partir de gerações, como apontam Bobbio 9 e Silva 10 ou, ainda, por dimensões,
conforme ensina Sarlet11, subdividindo-se em cinco. Essa distinção se relaciona
com os movimentos políticos, jurídicos, econômicos, sociais e culturais
desenvolvidos contínua e regularmente ao longo da história. Os direitos de
primeira dimensão (ou geração) são produtos da lógica liberal-burguesa do século
XVIII, manifestamente individualista 12 – que se caracterizam como direitos de
defesa, com a demarcação de uma zona de não intervenção do Estado, onde
prevaleceria a autonomia dos indivíduos13. Tais direitos se direcionam a exigir uma
conduta negativa por parte do poder público, ou seja, reivindica-se a abstenção da
atuação estatal ao efeito de garantir as liberdades dos indivíduos. São exemplos
marcantes de direitos de primeira geração o direito à vida, à liberdade e a
concepção tradicional do direito à propriedade14.
Os direitos sociais (de segunda dimensão) emergem a partir da constatação
de que a enunciação formal dos direitos à liberdade e à igualdade não asseguram
sua efetiva fruição. Somado a isso, os problemas socioeconômicos decorrentes
da industrialização e da crescente urbanização conduziram a sociedade à

8
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos
fundamentais na perspectiva constitucional. 13. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2018, p. 211.
9
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Editora Campus: Rio
de Janeiro, 2004.
10
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 27. ed. São Paulo: Malheiros,
2006.
11
SARLET, op. cit., 2018, p. 45.
12
SARLET, op. cit., 2018, p. 46.
13
Ibidem, p. 47.
14
Ibidem.
34 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

reivindicação por uma ativa atuação do Estado direcionada a promover a justiça


social15. A principal distinção entre os direitos de primeira e segunda dimensão
repousa na compreensão de que enquanto os direitos de primeira dimensão
reclamam uma abstenção do Estado para o gozo da liberdade e da autonomia dos
indivíduos, os de segunda dimensão pretendem que a liberdade e a igualdade
sejam impulsionadas ativamente pelo Estado 16. Nessa ordem de coisas, o direito
à moradia é compreendido como um direito social, ou seja, um direito fundamental
de segunda dimensão.
Projetando o homem enquanto, ao mesmo tempo, obra e construtor do meio
ambiente e, mais do que isso, reconhecendo que o meio ambiente – natural e
artificial – equilibrado influencia no bem-estar dos indivíduos 17 , os direitos
fundamentais de terceira dimensão se caracterizam como direitos de
solidariedade18, de titularidade coletiva, sendo que desse rol recebem particular
relevância o direito ao meio ambiente, à qualidade de vida e, como se pretende
demonstrar, o direito à cidade.
A existência de uma quarta dimensão dos direitos fundamentais é
preconizada por Paulo Bonavides, para quem tal rol tem como componentes o
direito à democracia, o direito à informação e o direito ao pluralismo, dos quais
“depende a concretização da sociedade aberta do futuro, em sua dimensão de
máxima universalidade, para a qual parece o mundo inclinar-se no plano de todas
as relações de convivência”19. Trata-se da globalização dos direitos fundamentais,
que os eleva, assim, ao mais alto patamar de juridicidade, fortalecendo os direitos
de primeira dimensão com as expectativas e os pressupostos de que sejam
concretizados, através da efetivação dos direitos da igualdade e fraternidade.
A quinta dimensão dos direitos fundamentais é capitaneada pelo direito à
paz, que fora incluído por Karel Vazak, inicialmente, como integrante do rol dos
direitos de fraternidade, na terceira dimensão, e que agora vem sendo reconhecido

15
SARLET, op. cit., 2018, p. 47.
16
Ibidem.
17
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração de Estocolmo sobre o Meio Ambiente
Humano. Anais Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano. Estocolmo, 6p.,
1972.
18
SARLET, op. cit., 2018, p. 49.
19
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 30. ed. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 586.
Eloísa Assis | 35

pela doutrina como integrante de uma categoria própria, o que, para Bonavides,
“configura um dos mais notáveis progressos já alcançados pela teoria dos direitos
20
fundamentais” . Segundo Sarlet 21 , essas diversas dimensões dos direitos
fundamentais são resultado da evolução do processo de seu reconhecimento e
apontam para a característica de abertura e mutabilidade de tais direitos ao longo
do tempo, em que pese se reconheça a existência de estabilidade em relação a
determinados direitos, a exemplo dos direitos à vida, à liberdade de locomoção e
de expressão, dentre outros. O que fica claro com essa sobreposição de
dimensões dos direitos fundamentais é que cada dimensão imediatamente
seguinte se funde à anterior, numa incessante busca de efetivação de todos esses
direitos, o que, infelizmente, ainda tem sido um desafio a ser superado.
Tal como preconizado por Bobbio, as diferentes gerações dos direitos
fundamentais direcionam para a mutabilidade destes – a partir da maneira como
se modificaram (e ainda se modificam) as urgências humanas ao longo do tempo;
basta ver a propriedade, que surge como decorrência de uma lógica liberal, de
cunho marcadamente individualista, não subsistindo ônus aos proprietários, e,
com a sobrelevação de um Estado Social, que tem na solidariedade seu vetor, o
direito à propriedade passa a ser condicionado à observância de sua função social,
demonstrando que “o que parece fundamental numa época histórica e numa
determinada civilização não é fundamental em outras épocas e em outras
culturas”22, ou pelo menos não apresenta a mesma conformação a depender da
dinâmica social assentada.
O reconhecimento do direito à moradia enquanto um direito fundamental,
no cenário jurídico pátrio, fora indiscutivelmente influenciado pelos compromissos
firmados pela comunidade internacional em diversos documentos para a
concretização da moradia – entendida internacionalmente como um direito
humano – o que confirma o posicionamento de Bobbio no sentido de que os
direitos fundamentais resultam de uma compreensão social e culturalmente
contextualizada. A Constituição Brasileira, por meio da Emenda Constitucional nº

20
Ibidem, p. 587.
21
SARLET, op. cit., 2018, p. 53.
22
BOBBIO, op. cit., 2004, p. 18.
36 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

26, de 14 de fevereiro de 200023, afixou em seu texto a moradia como um direito


social fundamental de todos os cidadãos brasileiros. A inclusão do direito à
moradia no texto constitucional ocorreu tardiamente – uma vez que apenas 12
anos depois da promulgação da Constituição Federal é que o direito fundamental
à moradia foi inserido expressamente na Carta Maior – por conta das “resistências
do Brasil no que se refere a muitos aspectos que foram regulados nos
instrumentos internacionais no que se refere à moradia”24.
A Emenda Constitucional nº 26/200025 teve origem na Proposta de Emenda
à Constituição (PEC) nº 26, de 199626, de autoria do Senador Mauro Miranda. Ao
justificar a proposta, o Senador salientou a influência efetiva da Conferência das
Nações Unidas Habitat II, ocorrida em Istambul, em junho de 1996 27 – sendo
válido ressaltar que, para esse evento de grande amplitude mundial, o Brasil, ao
preparar relatórios acerca da dinâmica urbana para apresentar à comunidade
internacional, se confrontou com uma delicada situação, pois além da precária
situação dos espaços urbanos brasileiros, havia uma notória lacuna na
Constituição Federal, vez que inexistente uma tutela constitucional expressa que
identificasse o direito à moradia enquanto um direito fundamental.
A tutela constitucional do direito à moradia é resultado da pretensão de
alinhamento do ordenamento jurídico brasileiro com as experiências estrangeiras
e com os compromissos assumidos pela comunidade internacional. E, em razão
da relevância da construção do direito humano à moradia no âmbito internacional
para a formulação constitucional do direito social à moradia, demonstra-se

23
BRASIL. Emenda constitucional nº 26, de 14 de fevereiro de 2000. Altera a redação do art. 6o da
Constituição Federal. 2000. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc26.htm. Acesso em: 12 fev.
2020.
24
SARLET, Ingo Wolfgang. Comentários ao art. 5º, caput. In: CANOTILHO, J. J. Gomes et al.
(Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, p. 547.
25
BRASIL, op. cit., 2000.
26
BRASIL. Senado Federal. Justificação à Proposta de Emenda à Constituição nº 28, de 1996. 1996.
Disponível
em:http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=5C81209593D6
C94DFB92B55C16A6FCFD.proposicoesWebExterno2?codteor=1234598&filename=Do ssie+-
PEC+601/1998. Acesso em: 12 mai. 2020.
27
UNITED NATIONS. United Nations conference on human settlements (Habitat II). 1996.
Disponível em: https://www.un.org/ruleoflaw/wp-content/uploads/2015/10/istanbul-
declaration.pdf. Acesso em: 12 mar. 2020.
Eloísa Assis | 37

oportuna uma breve explicitação da trajetória traçada pelo direito internacional no


que se refere à atribuição de proteção jurídica à moradia.

1.1 O RECONHECIMENTO DA MORADIA ENQUANTO DIREITO HUMANO NO


CENÁRIO JURÍDICO INTERNACIONAL

Nos últimos anos, o interesse pela temática dos direitos humanos se


demonstra crescente. No entanto, reconhece-se que tal conteúdo não tem origem
recente; pelo contrário, remete a tempos distantes, sendo que as concepções dos
direitos humanos inatos e sua proteção legítima se desenvolveram gradualmente
ao longo da história 28 . O direito à moradia não é mencionado nos primeiros
documentos que tratam dos direitos do homem, restando apenas reconhecido
enquanto direito humano pela primeira vez na Declaração Universal dos Direitos
Humanos de 1948 29 , oportunidade em que, nos artigos 22 a 27, a ordem
internacional validou os direitos econômicos, sociais e culturais, incluindo o direito
à moradia. Embora de forma sutil30, a Declaração disciplinou o direito à habitação.
A contar da publicação desse diploma, a moradia passou a figurar em inúmeros
documentos internacionais.

28
As primeiras leis da Idade Média foram projetadas para proteger os indivíduos do poder arbitrário
dos governantes. Nesse cenário, desponta a Magna Charta Libertatum (Grande Carta das
Liberdades), que, em 1215, se direcionou a proteger os nobres e clérigos – e em alguns casos
também os camponeses – contra impostos excessivos fixados pela Corte Inglesa. Esse documento
se traduz em pacto firmado pelo Rei João Sem-Terra e pelos bispos e barões ingleses, sendo que,
em que pese a menção de se tratar de garantia aos nobres ingleses a privilégios feudais, representa
ponto de referência para direitos e liberdades civis, tornando-se a base mais importante para o
direito constitucional inglês. Importa consignar que inspirados na Magna Carta surgem outros
documentos que expressam direitos e enunciam liberdades gerais, como o Bill of Rights, de 1689
– instrumento contrário às arbitrariedades efetuadas durante o Reinado de Jaime II.
Posteriormente a isso, com a Declaração de Direitos do Povo da Virgínia, de 1776, e a Declaração
Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, inaugura-se, verdadeiramente, o
reconhecimento de direitos do homem, eis que restou consagrado o caráter universal dos direitos,
não mais restritos a membros de determinada casta ou classe social, como na Magna Charta. Aqui,
os direitos fundamentais baseiam-se em pressupostos jusnaturalistas e individualistas,
apresentando-se, em verdade, como direitos dos indivíduos perante o Estado, direitos que
demarcam a zona de não intervenção do Estado em razão da autonomia dos cidadãos; são os
chamados direitos de primeira geração, que denotam um caráter negativo, vez que exigem do
Estado uma abstenção frente à liberdade e autonomia dos indivíduos.
29
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948.
Disponível em: https://nacoesunidas.org/direitoshumanos/declaracao/. Acesso em 10 fev. 2020.
30
Mesmo que de maneira vaga e enunciativa, tal instrumento desempenhou papel decisivo para
que a ONU concentrasse esforços nessa questão que, atualmente, afeta mais de 1,2 bilhões de
pessoas – que sobrevivem em condições precárias de moradia dentro do contexto urbano.
38 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

O direito à moradia fora abordado inclusive em algumas Convenções


Internacionais de Direitos Humanos que tratavam de temas específicos, como
direito das mulheres, das crianças e dos refugiados; assim, se vislumbra o reforço
da existência de um direito humano à moradia no artigo 21 da Convenção
Internacional sobre o Estatuto dos Refugiados, de 1951 31 , e no artigo V da
Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação Racial, de 196532.
Seguindo a linha de documentos internacionais que dispuseram sobre o
direito à moradia, tem-se que a moradia figura no Pacto dos Direitos Civis e
Políticos, de 1966, que, no seu artigo 17, disciplina sobre a inviolabilidade de
domicílio, e no Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
(PIDESC), de 196633, em seu artigo 11, §1º34. O PIDESC já suscitava um olhar de
complementariedade entre os direitos estabelecidos como essenciais, ressaltando
a moradia adequada como um dos pressupostos para um desenvolvimento
saudável. Embora igualmente silente quanto às referências qualitativas, o PIDESC
deu tratamento detalhado à temática ao prever o direito à moradia adequada. A
utilização do termo adequada – qualificando a expressão moradia – indica o
despontar de uma preocupação da comunidade internacional não meramente com
o alojamento e com fato de um indivíduo estar guardado, mas, também, com as
condições da morada.
Nesse sentido, de acordo com tal dispositivo, ninguém poderá sofrer
ingerências arbitrárias ou ilegais em sua vida privada, em sua família, em seu

31
BRASIL. Decreto nº 50.215, de 28 de janeiro de 1961. Promulga a Convenção relativa ao Estatuto
dos Refugiados, concluída em Genebra em 28 de julho de 1951. Brasília, DF: Presidência da
República, 1961. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1960-
1969/decreto-50215-28-janeiro-1961-389887-publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em 12 mar.
2020.
32
BRASIL. Decreto nº 65.810, de 8 de dezembro de 1969. Promulga a Convenção Internacional
sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial. 1969. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1950-1969/D65810.html. Acesso em: 12 abr. 2020
33
O Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e o Pacto Internacional
sobre Direitos Civis e Políticos, adotados pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 16 de
dezembro de 1966, foram aprovados pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo nº
226, de 12 de dezembro de 1991, entraram em vigor, para o Brasil, em 24 de abril de 1992, na forma
dos seus arts. 27, § 2º e 49, § 2º, e foram promulgados pelos Decretos nºs 591 e 592, de 6 de julho
de 1992, publicados no Diário Oficial da União do dia 7 subsequente, respectivamente.
34
No Brasil, a Carta de Adesão ao Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais foi depositada em 24 de janeiro de 1992.
Eloísa Assis | 39

domicílio ou em sua correspondência, nem sofrer ofensas ilegais às suas honra e


reputação. O Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, a Declaração
Universal dos Direitos Humanos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais são a tríade de composição da Carta Internacional dos Direitos
Humanos, documento de expressiva relevância na construção dos direitos.
O compromisso da comunidade internacional com a elaboração do
conteúdo e a efetivação do direito à moradia se intensificou e adquiriu maior
visibilidade com o estabelecimento do Programa das Nações Unidas para os
Assentamentos Humanos (ONU-Habitat) – desenvolvido enquanto resultado da
Conferência das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos (Habitat I),
ocorrida em 1976, em Vancouver, no Canadá. Na oportunidade, representantes de
diversas nações discutiram acerca da precariedade da habitação e dos desafios
para concretização do direito humano à moradia, sendo que tais debates
resultaram na elaboração da Declaração de Vancouver sobre Assentamentos
Humanos 35 , que, da leitura dos princípios gerais nela constantes, evidencia o
reconhecimento da importância da distribuição equitativa dos benefícios do
desenvolvimento econômico, sobretudo no que se refere ao planejamento e à
regulação do uso da terra.
A Declaração de Vancouver agregou à problemática do direito à moradia a
perspectiva dos assentamentos humanos, revelando uma preocupação que
extrapola o espaço físico da habitação e que se relaciona com a integração desta
com o espaço urbano. Corroborando tal compreensão, dispõe o artigo 3º da
Declaração de Vancouver: “moradia e serviços urbanos adequados são um direito
humano básico, o qual coloca como obrigação dos governos assegurar a
realização para todas as pessoas”36. Em 1978, o ONU-Habitat adquiriu status de
agência das Nações Unidas, fixando sua sede em Nairóbi, no Quênia, atuando para

35
UNITED NATIONS. The Vancouver Declaration on Human Settlements. 1976. Disponível em:
https://mirror.unhabitat.org/downloads/docs/TheVancouverDeclarationOnHumanSettlements.pd
f. Acesso em: 20 jul. 2020.
36
UNITED NATIONS. United Nations Conference on Human Settlements (Habitat). 1976. Disponível
em: http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/legislacao/moradia-
adequada/declaracoes/declaracao-sobre-assentamentos-humanos-de-vancouver. Acesso em:
15 fev. 2020.
40 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

assegurar um desenvolvimento urbano social, econômico e ambientalmente


sustentável e o acesso universal à moradia adequada.
Ainda, o direito envolvendo a moradia consta no artigo 43 da Convenção
Internacional de Proteção do Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e
Membros de Sua Família, de 197737; no artigo 14 da Convenção sobre a Eliminação
de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 197938; nos artigos 3 e
11 do Protocolo de San Salvador, de 198839; e no artigo 21 da Convenção sobre os
Direitos da Criança, de 198940.
Com efeito, ao que se verifica, a comunidade internacional se posicionou
pela necessidade em explicitar de forma mais contundente o que entendia por
moradia adequada. Assim, em razão da intolerabilidade da disposição meramente
formal do direito à moradia – levando em consideração a constatação de que
muitas edificações fornecidas pelos Estados com a finalidade de servir de moradia
para os cidadãos não possuíam mínimas condições de habitabilidade – o Comitê
de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU (ECOSOC)41, no Comentário

37
UNITED NATIONS. International Convention on the Protection of the Rights of All Migrant Workers
and Members of Their Families. 1977. Artigo 43. Disponível em:
https://www.ohchr.org/EN/ProfessionalInterest/Pages/CMW.aspx. Acesso em: 13 mar. 2020.
[Adotada pela Resolução 45/158 da Assembleia Geral da ONU em 18 de dezembro de 1990. Brasil
não assinou e ainda não aderiu. Seu texto está em análise pelos órgãos governamentais
competentes].
38
UNITED NATIONS. International Convention on the Protection of the Rights of All Migrant Workers
and Members of Their Families. 1977. Artigo 14. Disponível em:
https://www.ohchr.org/EN/ProfessionalInterest/Pages/CMW.aspx. Acesso em: 13 mar. 2020.
[Adotada pela Resolução 45/158 da Assembleia Geral da ONU em 18 de dezembro de 1990. Brasil
não assinou e ainda não aderiu. Seu texto está em análise pelos órgãos governamentais
competentes].
39
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
Protocolo adicional à Convenção Americana sobre direitos humanos em matéria de direitos
econômicos, sociais e Culturais, “Protocolo de San Salvador”. Disponível em:
http://www.cidh.org/basicos/portugues/e.protocolo_de_san_salvador.htm. Acesso em: 20 jun.
2020.
40
BRASIL. Decreto n. 99.710, de 21 de novembro de 1990. Promulga a Convenção sobre os Direitos
da Criança. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d99710.htm.
Acesso em: 20 jun. 2020.
41
O Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais foi instituído em 1985 pelo Conselho
Econômico e Social (ECOSOC) das Nações Unidas a fim de controlar a aplicação, pelos Estados
Partes, das disposições do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos. Para este efeito
os Estados Partes apresentam relatórios ao Comitê onde enunciam as medidas adotadas para
tornar efetivas as disposições do Pacto. Os relatórios são analisados pelo Comitê e discutidos
entre este e representantes do Estado Parte em causa, após o que o Comitê emite as suas
observações finais sobre cada relatório: salientando os aspectos positivos bem como os
problemas detectados, para os quais recomenda as soluções que lhe pareçam adequadas. O
Comitê dispõe ainda de competência para formular comentários gerais relativos a determinados
Eloísa Assis | 41

Geral número 4, abordou detalhadamente o termo moradia adequada, fixando


parâmetros para a avaliação do cumprimento aos ditames que restaram
consignados quando da elaboração do Pacto Internacional sobre Direitos
Econômicos Sociais e Culturais.
Por ocasião da formulação do Comentário Geral nº 4 do ECOSOC42, restaram
assentados sete aspectos essenciais para o reconhecimento da observância ao
que se passou a entender por moradia adequada, quais sejam: (i) segurança
jurídica da posse; (ii) disponibilidade de serviços, materiais, equipamentos e
infraestruturas básicas para a garantia da saúde, segurança, conforto e nutrição
dos titulares do direito; (iii) acessibilidade do fator custo, de sorte que as despesas
com a manutenção da moradia não comprometessem a satisfação de outras
necessidades básicas; (iv) habitabilidade e segurança física dos ocupantes; (v)
facilidade de acesso aos grupos vulneráveis e desfavorecidos, sobretudo aos
idosos, crianças e pessoas com deficiência; (vi) localização satisfatória no que se
refere ao acesso ao emprego, aos serviços de saúde e educação bem como aos
demais serviços sociais essenciais e (vii) adequação cultural – elemento que
reclama a expressão da identidade e diversidade cultural da população no modo
de construção da moradia.
Nessa ordem de coisas, tem-se que o posicionamento do ECOSOC foi no
sentido de que o direito à moradia não deveria ser concebido em seu sentido
estrito, eis que não esgotava seu conteúdo na exigibilidade de simples
fornecimento de um local para se abrigar. Segundo o Comitê, o direito à moradia
se relaciona com outros conceitos – como a dignidade humana e o princípio da
não discriminação – de sorte que a atribuição de significado e concretude à tal
direito deveria levar em consideração fatores sociais, econômicos, culturais,
climatológicos e ecológicos.

artigos ou disposições do Pacto e organizar debates temáticos sobre matérias cobertas pelo
mesmo. Atualmente, encontra-se em discussão a instituição de um grupo de trabalho encarregado
de elaborar um Protocolo Facultativo ao Pacto sobre os Direitos Civis e Políticos, com o objetivo
de dotar o Comitê de competência para o exame de queixas individuais.
42
BRASIL. Comentário geral nº 4 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. In: ______.
Direito à moradia adequada. (pp. 34-39). Brasília: Secretaria dos Direitos Humanos, 2013.
Disponível em: http://www.urbanismo.mppr.mp.br/arquivos/File/DH_moradia_final_internet.pdf.
Acesso em: 14 mar. 2020.
42 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

Embora não tenha sido essencialmente estruturada para dialogar sobre os


desafios para a concretização do direito à moradia, cabe mencionar a Agenda 21
– documento assinado durante a Conferência das Nações Unidas sobre Meio
Ambiente e Desenvolvimento, a ECO-92, realizada no Rio de Janeiro em 1992 – vez
que nela fora dedicado um capítulo para tratar da problemática dos
assentamentos humanos sustentáveis. Encarando a estrutura dos assentamentos
humanos como condicionante para a qualidade de vida dos indivíduos, restaram
traçados como objetivos a oferta de moradia adequada: o aperfeiçoamento do
manejo dos assentamentos humanos; a promoção do planejamento sustentável
do uso da terra; a promoção de infraestrutura ambiental integrada: contemplando
acesso à água, ao saneamento, à drenagem e ao manejo de resíduos sólidos;
incentivo aos sistemas sustentáveis de energia e de transporte; adequada gestão
das áreas sujeitas a desastres; incentivo às atividades sustentáveis na construção
civil e a promoção da capacitação institucional e técnica voltada ao
desenvolvimento dos assentamentos humanos43.
Na continuidade dos debates no âmbito das Nações Unidas, sobreveio a
Conferência Habitat II, ocorrida em Istambul, na Turquia, em 199644. Com o intuito
de desenvolver estratégias apropriadas à problemática da crescente urbanização
– e da constatação da imprescindibilidade da promoção de políticas públicas
direcionadas ao desenvolvimento sustentável, ao efeito de propiciar a plena
efetividade do direito à moradia – aponta-se como inovação ocorrida na
Conferência a abertura à participação do setor não-governamental 45 , que, em
verdade, representou a consagração da descentralização e da importância do

43
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento. Agenda 21. Rio de Janeiro, 1992. Disponível em:
http://www.ecologiaintegral.org.br/Agenda21.pdf. Acesso em: 25 jan. 2021.
44
UNITED NATIONS. United Nations conference on human settlements (Habitat II). 1996.
Disponível em: https://www.un.org/ruleoflaw/wp-content/uploads/2015/10/istanbul-
declaration.pdf. Acesso em: 12 mar. 2020
45
Na verdade, a inovação não se deu propriamente nesta conferência, eis que o que houve foi a
consagração da inovação trazida pela Agenda 21. Válido assinalar, nesse rumo, que o Habitat II
possibilitou a superação da crença de que somente um governo central forte era capaz de dar
resposta contundente e adequada de forma a enfrentar os problemas urbanos que despontavam à
época. E a superação desse paradigma é relevante em razão da necessidade de reconhecimento
de que a problemática da moradia é temática que exige a atuação conjunta de diversos setores e
atores.
Eloísa Assis | 43

poder local para a temática dos assentamentos humanos, evidenciando, assim, a


tendência à implementação do caráter participativo e democrático nas
formulações das ações que se destinam à superação dos desafios que se
sobrelevam com a crescente e acelerada urbanização.
Como resultado da Conferência Habitat II tem-se a Declaração de Istambul
sobre Assentamentos Humanos, que se traduz em reforço, atualização e
complementação dos compromissos assumidos em Vancouver. Ressalta-se, aqui,
o minucioso detalhamento quanto ao conteúdo e extensão do direito à moradia,
eis que, em tal documento, a moradia é identificada como vocábulo cujo
significado abrange – mas não se limita – à disposição de espaço suficiente, com
acessibilidade física, saneamento, fatores apropriados de qualidade do meio-
ambiente e com uma localização adequada em relação ao trabalho e ao
oferecimento dos serviços básicos.
A realização de uma nova conferência internacional (Rio+20), em junho de
2012, para discutir os avanços do desenvolvimento sustentável em suas diversas
dimensões, na mesma cidade e vinte anos depois daquela que adotou a Agenda
21, foi uma oportunidade para apresentar propostas de paradigmas inovadores
para o desenvolvimento das cidades, na ótica de uma nova matriz urbana capaz
de incorporar a escala de valores socioambientais que vem sendo construída
desde então. Durante os debates, ficou demonstrado que a maioria da população
mundial já vive em áreas urbanas e que essa situação só tende a progredir. Daí a
necessidade de intensificação dos esforços para que as cidades sejam cada vez
mais espaços de equidade, inclusão, justiça socioambiental e bem-estar. Esse
dinamismo sempre incluirá a necessidade de produzir novas e melhores moradias,
provisão adequada de saneamento básico e melhores sistemas de mobilidade
urbana. Foi com esta convicção que foram elaborados documentos setoriais sobre
os desafios, impactos e oportunidades para a consolidação do desenvolvimento
sustentável nas cidades brasileiras, os quais foram apresentados e discutidos na
Conferência Rio+2046.

46
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento
Sustentável, a Rio+20. 2012. Disponível em: http://www.rio20.gov.br/sobre_a_rio_mais_20.html.
Acesso em: 04 jun. 2020.
44 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

Posteriormente a isso, em setembro de 2015, representantes dos Estados-


membros da ONU, durante reunião realizada em Nova York, assumiram o
compromisso de erradicar a pobreza em todas as suas formas e dimensões,
fixando o desenvolvimento sustentável enquanto desafio global a ser perseguido
pelos quinze anos seguintes, formulando, assim, a Agenda 203047, que se constitui
enquanto um plano de ações para o alcance do desenvolvimento sustentável e da
paz universal. A Agenda 2030 é composta por dezessete Objetivos de
Desenvolvimento Sustentável, os ODS, que contemplam 169 metas para
erradicação da pobreza e promoção de uma vida digna para todos. Dentre os
Objetivos se destaca o número 11, a saber, tornar as cidades e os assentamentos
humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis, sendo duas das principais
metas para atingir tal objetivo a promoção de acesso à habitação segura,
adequada e a preço acessível para todos bem como a urbanização das favelas.
Atualmente, discute-se o alcance dos compromissos publicamente
assumidos pelas delegações presentes na Terceira Conferência das Nações
Unidas sobre Moradia e Desenvolvimento Urbano Sustentável (Habitat III, também
denominado de Nova Agenda Urbana)48, ocorrida em Quito, no Equador, em 2016.
O documento conta com 175 itens que podem ser detalhadamente explicitados
quando divididos em quatro eixos estratégicos, a saber: (i) Consignação de
Compromissos e Princípios para o Desenvolvimento Urbano Sustentável; (ii)
Estruturação da Política Urbana; (iii) Elaboração de Mecanismos de
Implementação Local Efetiva; (iv) Acompanhamento e Revisão.
Entende-se que a consignação de compromissos e princípios para o
desenvolvimento urbano sustentável é um eixo estratégico em razão de a Nova
Agenda Urbana ressaltar exaustivamente a necessidade de que certos princípios
sejam considerados e observados por todas as nações. Nesse sentido, pode-se
apontar como princípio geral – que deve ser entendido enquanto compromisso
inarredável – a promoção do crescimento econômico contínuo, inclusivo e

47
Idem. Transformando Nosso Mundo: A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável. 2015.
Disponível em: http://www.itamaraty.gov.br/images/ed_desenvsust/Agenda2030-completo-
site.pdf. Acesso em 05 jun. 2020.
48
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Habitat III Conference: Nova Agenda Urbana. 2016.
Disponível em:https://www2.habitat3.org. Acesso em: 16 abr. 2020.
Eloísa Assis | 45

sustentável. Tal compromisso se desdobra em outros princípios que buscam


promover crescimento econômico aos países, contudo, tal projeção de
crescimento estipula como observância obrigatória: (i) o desenvolvimento
sustentável, seja em relação à saúde e ao bem-estar dos seres humanos ou
quanto à proteção da fauna e da flora; (ii) a atenuação, em curto prazo, e a
erradicação, a longo prazo, da pobreza e das desigualdades sociais; (iii) o
empoderamento das mulheres e meninas, com a garantia da igualdade de gênero;
e (iv) o respeito à diversidade. A consignação de compromissos e princípios para
o desenvolvimento urbano sustentável assegura o que Nova Agenda Urbana
denomina de visão compartilhada, que se destina a garantir a reapreciação do
modo de planejar, governar, administrar, desenvolver e financiar as cidades e
aglomerados urbanos, tendo por objetivo o alcance do desenvolvimento
sustentável em suas dimensões social, econômica e ambiental.
A estruturação da política urbana desponta enquanto eixo estratégico que
se desdobra em (i) dinamização da governança urbana e (ii) elaboração de
legislação urbana. A relevância de tal eixo estratégico se justifica no
estabelecimento de padrões mínimos aceitáveis no planejamento da dispensação
dos serviços básicos à população, bem como na distinção das atribuições de
responsabilidade para todos os níveis de governo, tornando o processo de
urbanização sustentável transparente – o que, por sua vez, viabiliza aos cidadãos
a previsibilidade quanto aos mecanismos e serviços oferecidos, conferindo
segurança.
A política urbana que se incentiva na Nova Agenda Urbana é aquela atenta
às realidades específicas das localidades nas quais se implantarão, motivo pelo
qual se reconhece o papel proeminente dos governos nacionais – em constante
diálogo com representantes regionais e locais, inclusive aqueles da sociedade
civil. O direcionamento, portanto, é ao desenvolvimento das capacidades e
potencialidades regionais ancorado na coordenação institucional e normativa,
com inclusão de medidas de sensibilização ambiental e anticorrupção, ao efeito
de garantir uma gestão adequada do desenvolvimento do território urbano.
Em razão da imprescindibilidade de criação de um ambiente favorável para
a implementação efetiva dos compromissos assumidos, visualiza-se ainda
46 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

enquanto eixo estratégico a elaboração de mecanismos de implementação local


efetiva. Elementos como acesso à ciência, tecnologia e inovação, bem como fontes
de financiamento recebem destaque em tal eixo, eis que evidente a dificuldade de
materialização dos objetivos consignados na Nova Agenda Urbana sem a
existência de recursos adequados e suficientes. Estabelece-se, ainda, enquanto
medida imprescindível o asseguramento de captação de recursos financeiros para
os governos, ressaltando o apoio para construção de acesso a diferentes fundos
multilaterais, como o Fundo Verde para o Clima, entre outros. Em verdade, ao que
se verifica, nesse eixo estratégico, tem-se como principais medidas o
aprimoramento da cooperação internacional e a viabilidade de acesso a
financiamentos, isso sem perder de vista: (i) a necessidade de reforço às
instituições nacionais, subnacionais e locais; (ii) o apoio ao desenvolvimento
econômico local; bem como (iii) a promoção da integração, cooperação,
coordenação e diálogo entre os diferentes níveis de governo, setores funcionais e
atores relevantes.
Com efeito, merece maior elucidação a estratégia de financiamento, em
razão do objetivo de aperfeiçoamento da capacidade de gestão financeira dos
governos às vistas da sustentabilidade fiscal. Espera-se, com a implementação da
Nova Agenda Urbana, uma mobilização de receitas e recursos internos gerados a
partir da captura dos benefícios da urbanização, bem como dos efeitos
catalisadores e do impacto maximizado de investimentos – sejam eles públicos e
privados – de forma a aperfeiçoar as condições financeiras de todos os níveis do
governo. Para garantir tal objetivo, o setor empresarial é convidado a aplicar sua
criatividade e inovação para solucionar os desafios do desenvolvimento
sustentável; e, são também convocadas as instituições internacionais
multilaterais de financiamento, bancos regionais de desenvolvimento, instituições
financeiras de desenvolvimento e agências de cooperação a prestar apoio
financeiro, por meio de mecanismos financeiros inovadores para programas e
projetos que implementem a Nova Agenda Urbana, particularmente em países em
desenvolvimento.
O quarto e último eixo estratégico é o Acompanhamento e Revisão. Na Nova
Agenda Urbana, as delegações presentes comprometeram-se a realizar
Eloísa Assis | 47

acompanhamento periódico e revisão acerca da implementação dos acordos


ajustados, assegurando a coerência da aplicação aos níveis nacional, regional e
global, ao efeito, ainda, de acompanhar o progresso, avaliar o impacto e assegurar
o estabelecimento eficaz da Nova Agenda Urbana, sem prejuízo da devida
prestação de conta aos cidadãos e das demais medidas de transparência,
tornando o processo de desenvolvimento urbano sustentável inclusivo. A partir
desse eixo estratégico serão tomadas medidas de monitoramento, elaboração de
relatórios e revisão, considerando as particularidades locais, para uma efetiva
implementação dos compromissos assumidos.
Fundamentada na Declaração Universal dos Direitos Humanos, nos
tratados internacionais de direitos humanos e em outros instrumentos
internacionais, como a Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento 49, a Nova
Agenda Urbana canaliza estratégias aptas a produzir o desenvolvimento urbano
sustentável – o maior desafio dos próximos anos.
Ao reconhecer que a urbanização é uma das mais desafiadoras tendências
do século XXI, a Nova Agenda Urbana desponta enquanto instrumento desafiador.
Nesse sentido, merece destaque o item 32 da Nova Agenda Urbana, que, ao
salientar os compromissos assumidos no que se refere à promoção do
desenvolvimento de políticas habitacionais, aponta a preocupação da integração
da questão habitacional com os dilemas etários e de gênero, bem como com as
problemáticas acerca da educação, saúde, emprego e integração social. O
merecimento do destaque do item 32 resta reforçado em razão da atribuição de
qualificação robusta do que se espera – a comunidade internacional – com a
efetivação do direito à moradia; com efeito, o que se prospecta é a “prestação de
moradia adequada, econômica e fisicamente acessível, eficiente, segura, resiliente,
bem conectada e bem localizada, com especial atenção ao fator proximidade e ao
reforço das relações espaciais em relação ao resto do tecido urbano e às áreas

49
Documento internacional em que a Assembleia Geral das Nações Unidas, por reconhecer que o
desenvolvimento é um processo de cunho econômico, social, cultural e político, estabelece
diretrizes direcionadas a garantir o bem-estar da população e identifica o direito ao
desenvolvimento enquanto direito humano inalienável.
48 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

funcionais adjacentes”50.
Para conferir maior visibilidade às questões urbanas e habitacionais, o
ONU-Habitat instituiu o Outubro Urbano, que se direciona a apoiar debates que
visam abordar temas importantes para o Programa, tendo início no Dia Mundial do
Habitat (na primeira segunda-feira do mês de outubro) se encerrando com o Dia
Mundial das Cidades (31 de outubro). Em 2018, o escritório da ONU-Habitat no
Brasil criou o Circuito Urbano – uma convocatória para apoiar institucionalmente
e dar visibilidade aos eventos durante o Outubro Urbano. Sob o tema “Cidades
Pós-Covid-19: Diálogos entre o Brasil e a África Lusófona”, em outubro de 2020,
ocorreu a terceira edição do Circuito Urbano em parceria com os escritórios do
ONU-Habitat dos países africanos lusófonos, oportunidade em que foram
realizados cerca de 186 eventos virtuais com a temática do desenvolvimento
sustentável das cidades51.
Via de regra, os instrumentos oriundos de eventos da Organização das
Nações Unidas resultam de difíceis consensos entre as nações, motivo pelo qual
os temas, na maioria das vezes, são generalizados ao efeito de evitar debates mais
espinhosos e atrasos nas tratativas. As diferenças que compõem o mundo
deveriam ser contempladas dentro do discurso de desenvolvimento sustentável
das cidades; nesse sentido, aspectos como gênero, idade, raça, etnicidade e renda
(que são ícones da desigualdade social) bem como a luta pela diferenciação das
moradias para determinadas minorias – (anões, pessoas com deficiência,
quilombolas, índios etc.), muitas vezes sub-representadas, desconsiderando a sua
expressividade quantitativa – merecem ênfase, todavia, nem sempre concedida.
Na Nova Agenda Urbana, percebe-se mínima e genérica referência a certas
coletividades encontradas em situação de vulnerabilidade. Muitos grupos, como a
população LGBTQIA+, sequer são citados, sendo relegados à invisibilidade. Há
muito a comunidade LGBTQIA+ reivindica direitos urbanos, como a questão do
acesso à moradia, vez que se noticiam casos de discriminação a casais formados

50
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Habitat III Conference: Nova Agenda Urbana, Quito, 2016.
Disponível em:<https://www2.habitat3.org>. Acesso em 16 abr. 2020.
51
ONU-HABITAT: POR UM FUTURO MELHOR. Circuito Urbano 2020, 2021. Página inicial. Disponível
em: http://www.circuitourbano.org/. Acesso em: 29 jan. 2021.
Eloísa Assis | 49

por pessoas do mesmo sexo no acesso à moradia52. Dessa forma, entende-se que
as políticas sociais conduzidas e incentivadas por acordos e organismos globais
precisam se atentar às minúcias da democratização do acesso à moradia e à
cidade e suas consequências, embora se compreenda que a existência de nações
com concepções tão diversas obstaculize tal diligência pluralista. Conquanto
silente a respeito de determinadas minorias, válido assinalar que a Nova Agenda
Urbana contempla as questões de gênero, existindo dezenas de disposições sobre
os direitos específicos de meninas e mulheres no contexto das cidades.
Embora não ostentem caráter impositivo, as recomendações emitidas pela
ONU, através de seus comitês e agências, e os compromissos assumidos pelos
Estados nos documentos internacionais delimitam os parâmetros do que se
considera adequado ou suficiente para a garantia de direitos aos indivíduos; nesse
rumo, estabelecidos internacionalmente os padrões mínimos, cria-se um
ambiente favorável à pressão aos Estados pelo cumprimento das exigências
postas. Isso porque, embora os documentos internacionais, como é o caso da
Nova Agenda Urbana, não sejam dotados de cogência – denominados pelos
doutrinadores de Direito Internacional Público como soft law – em contrapartida,
exercem pressão política sobre os Estados, de sorte que conduzem ao
reconhecimento no sentido de que existe obrigação jurídica à efetivação dos
compromissos assumidos junto à comunidade internacional 53. De fato, ao que se
verifica, a experiência internacional exerceu pressão política sobre o Brasil, de
sorte que o constrangimento diante da percepção do descompasso do país com
as demais constituições estrangeiras em que havia proteção à moradia conduziu
à tutela constitucional do direito à moradia.

52
Para aprofundamento ver: GOUVEIA, Filipe; NILSSON, Therese; BERGGREN, Niclas. “Two
gentlemen sharing’: Rental discrimination of same-sex couples in Portugal”. INF Working Paper, n.
1318, 2020 – estudo onde são apresentados os resultados de uma pesquisa acerca da
discriminação de casais homossexuais nas contratações de aluguéis de imóveis residenciais em
Portugal.
53
ACCIOLY, Hildebrando et al. Manual de Direito Internacional Público. São Paulo: Saraiva, 2009,
p.171.
50 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

1.2 A PREVISÃO DE UM DIREITO FUNDAMENTAL À MORADIA NO PLANO


CONSTITUCIONAL BRASILEIRO

O direito à moradia resta consagrado no texto constitucional, no artigo


6º, caput 54 . Esse direito foi introduzido na Lei Maior por força do disposto na
Emenda Constitucional nº 26 de 200055. Inobstante tal introdução tardia, visto que
a Constituição Federal é do ano de 1988, esse direito figurava, de forma implícita,
respaldado no referido Texto Constitucional.
A percepção da existência de um implícito direito fundamental à moradia se
extraía do entendimento de que o acesso à habitação se constituía enquanto
cumprimento do mandamento constitucional de proteção à dignidade humana,
vez que, com um local para se abrigar e para usufruir da intimidade pessoal e da
privacidade familiar, se concebia viabilizado o livre desenvolvimento das
potencialidades dos indivíduos, conclusão que conduz, a seu turno, à
compreensão do direito à moradia enquanto expressão das condições materiais
para uma vida com dignidade. Assim, por promover o alcance de um dos
fundamentos da República Federativa do Brasil, qual seja, a dignidade da pessoa
humana, o status de direito materialmente fundamental era atribuído ao direito à
moradia.
Incorporado ao texto constitucional, o direito à moradia, atualmente, é
entendido enquanto direito social. Muito se questiona sobre o propósito do
legislador com a disposição topográfica do direito à moradia, que figura no elenco
dos direitos sociais, no artigo 6º, e não no rol dos direitos do artigo 5º entendidos
como fundamentais. A reflexão é oportuna, considerando que, inclusive, se
sobrelevou durante a tramitação da Proposta de Emenda Constitucional 601-A de
1998 56 . Em tal oportunidade, a relatora da Comissão Especial constituída para

54
BRASIL, op. cit., 1988.
55
BRASIL, op. cit., 2000.
56
BRASIL. Câmara dos Deputados. Relatório da Comissão Especial destinada a proferir parecer à
Proposta de Emenda à Constituição nº 601-A, de 1998, do Senado Federal, que "Altera a redação
do art. 6º da Constituição Federal". Relatora Deputada Almerinda de Carvalho. 1999. Disponível
em:
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=012EC6E2F598B9C
637EB50EFE7B0C36B.node1?codteor=1234598&filename=Avulso+-PEC+601/1998. Acesso em:
17 abr. 2020
Eloísa Assis | 51

proferir parecer à Proposta de Emenda à Constituição, deputada Almerinda de


Carvalho, refletiu sobre a relevância em se discutir a existência, ou não, de
diferenças entre um direito inserido no artigo 5º ou no artigo 6º da Constituição
Federal57.
Ao que se verifica, a disposição do direito à moradia no rol dos direitos
sociais visa identificá-lo enquanto direito que exige prestações positivas estatais,
não se limitando ao âmbito dos direitos de defesa – embora não se ignore a
dimensão negativa dos direitos sociais, que tem por objeto imediato a resistência
a uma intervenção estatal, sendo que no caso do direito à moradia se visualiza
sobretudo quando se fala em proteção contra desocupações forçadas58.
Sarlet entende que não subsiste distinção entre os direitos de liberdade e
os direitos sociais, estando todas as categorias de direitos fundamentais, em
verdade, sujeitas ao mesmo regime jurídico59. Por tal motivo, o artigo 5º, §1º, da
Constituição Federal 60 , que determina a imediata aplicabilidade das normas
definidoras de direitos e garantias, contemplaria também o direito social à
moradia. Aliás, a aplicabilidade imediata das normas definidoras de direitos
fundamentais visa “evitar um esvaziamento dos direitos fundamentais, impedindo

57
De acordo com o parecer, as considerações da relatora, in verbis: “Qual a diferença básica entre
um determinado direito estar inserido no art. 5º ou no art. 6º da Constituição Federal? Há um rol de
direitos que não podem ser negados ou obstaculizados ao ser humano, sob pena de comprometer-
se a fruição destes mesmos direitos pelo restante da humanidade. Esses seriam os direitos
fundamentais, disciplinados pelo art. 5º de nossa Carta Política. O direito à moradia surgiria nesse
campo como um dos componentes do direito à vida, aos moldes da Declaração Universal dos
Direitos do Homem, ou mesmo como decorrência do direito à igualdade. Não teria o status de um
direito fundamental autônomo. Os direitos sociais dispostos no art. 6º apresentam outro
significado. Segundo José Afonso da Silva, eles ligam-se a “prestações positivas estatais”. Em
outras palavras, impõem políticas públicas e legislação que assegurem a sua fruição por todos os
cidadãos. Vale notar que, não obstante a Constituição tenha optado pela expressão direitos sociais,
alguns autores classificam esses direitos de prestações como econômicos, sociais e culturais. O
direito à moradia adequa-se bem à classificação como direito social. A própria Agenda Habitat
caminha nessa linha, ao definir o direito à moradia adequada como um direito que deve ser
progressivamente assegurado, a partir de medidas concretas dos governos e da sociedade como
um todo.”
58
Outra importante contribuição do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais na temática
da moradia foi a elaboração do Comentário Geral número 7, a partir do qual, em 1997, o Comitê se
posicionou no sentido de considerar a desocupação e o despejo forçados como hipóteses de
violações aos direitos humanos. Nesse sentido, a expectativa pela ausência de atuação do Estado
direcionada às desocupações forçadas contornam a dimensão negativa do direito à moradia, a sua
faceta de direito de defesa.
59
SARLET, op. cit., 2018, p. 167.
60
BRASIL, op. cit., 1988.
52 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

que ‘permaneçam letra morta no texto da Constituição’” 61. Ainda, Sarlet afirma que
a norma contida no artigo 5º, §1º deve ser considerada um mandado de
otimização, ou seja, que ela determina que os órgãos estatais reconheçam a maior
eficácia possível aos direitos fundamentais62. A consignação da eficácia imediata
dos direitos sociais é extremamente relevante e contundente, sobretudo quando
se leva em consideração que os direitos sociais estão intrinsicamente
relacionados com o provimento das condições materiais mínimas para uma vida
com dignidade.
Aqui, válido salientar que, no que tange especificamente ao direito social à
moradia, antes mesmo de sua positivação, já se fazia referência à sua imbricação
com a garantia da proteção à dignidade humana. Assim, em que pese a
compreensão no sentido de que o direito à moradia se integrou ao sistema
constitucional brasileiro por ocasião da edição da Emenda Constitucional nº 26,
de 2000 63 , seria desarrazoado desconsiderar o reconhecimento de um direito
fundamental à moradia no âmbito interno – que demonstrava se relacionar com
diversos direitos e garantias já positivados – antes mesmo de sua incorporação
expressa em fevereiro de 2000. A diferenciação que se faz, contudo, entre a
concepção do direito à moradia antes e depois da edição da Emenda
Constitucional nº 26 diz respeito ao fato de que, a despeito de doutrinas que
negam a atribuição de fundamentalidade aos direitos sociais 64, somente após a
edição da emenda constitucional supramencionada que o direito à moradia foi
elevado à categoria de direito fundamental – já que incluído no Título II da
Constituição Federal, que versa, justamente, sobre os direitos e garantias
fundamentais.
Ao analisar o conjunto de normas institucionais, Saule Júnior 65 assevera
que é possível demonstrar que o direito à moradia era deduzido em nosso

61
SARLET, op. cit., 2018, p. 272.
62
Ibidem, p. 278.
63
BRASIL, op. cit., 2000.
64
Subsiste doutrina no sentido de não reconhecer a fundamentalidade do direito à moradia, sendo
relevante, ao efeito de entender o sustentáculo jurídico de tal posicionamento, a leitura da obra
ATRIA, Fernando. Existem Direitos Sociais? In: MELLO, Claudio Ari (Coord.). Os Desafios dos
Direitos Sociais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.
65
SAULE JÚNIOR, Nelson; CARDOSO, Patrícia de Menezes. O Direito à Moradia no Brasil: Violações,
práticas positivas e recomendações ao governo brasileiro. São Paulo: Instituto Pólis, 2005. 160p.
Eloísa Assis | 53

ordenamento jurídico mesmo antes da Emenda Constitucional nº 26. No ponto,


quanto ao gradual reconhecimento constitucional da relevância do direito à
moradia, destaca-se a formulação de nova modalidade de usucapião, a usucapião
urbana, pela qual a moradia é reconhecida como elemento constitutivo para a
aquisição do domínio de áreas urbanas utilizadas por pessoas e famílias para,
exatamente, fins de moradia. Concebido tradicionalmente sob a ótica civilista, o
instituto da usucapião, a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988,
foi alçado à feição de instrumento de política urbana. A usucapião constitucional
urbana, nesse sentido, corresponde ao efetivo direcionamento à concretização da
competência comum dos entes federados pela promoção do acesso à moradia.
O elemento que distancia a usucapião urbana das demais modalidades
tradicionalmente disciplinadas sob a ótica civilista repousa nas especificidades
dos requisitos de tal espécie de ação, que, por sua vez, se justificam na finalidade
moradia. De forma inédita, a Constituição Federal de 1988 apresenta um capítulo
específico sobre política urbana e descreve a usucapião urbana enquanto
instrumento de política habitacional, sendo possível vislumbrar a preocupação do
Estado em promover o acesso da população à moradia.
A figura da usucapião urbana é disciplinada no artigo 183, da Constituição
Federal66 e reproduzida, em sua literalidade, no artigo 9º, do Estatuto da Cidade67,
e no artigo 1.240, do Código Civil de 2002 68 . Tamanho reforço na fixação do
conteúdo desse instrumento, com a fiel reprodução dos elementos que compõe a
essencialidade da espécie, conduz ao reconhecimento quanto à existência de
poucas controvérsias a seu respeito. Disciplinam os dispositivos
supramencionados a possibilidade de aquisição do domínio de área urbana – de
até 250 m2 – como resultado da posse ininterrupta e sem oposição por cinco anos,
desde que condizente com a utilização para finalidade moradia, ressalvada, ainda,
a hipótese de que o possuidor não seja proprietário de outro imóvel urbano ou

66
BRASIL, op. cit., 1988.
67
BRASIL. Estatuto da cidade. Lei no 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e
183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras
providências. 2001. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10257.htm. Acesso em: 01 mar. 2020.
68
BRASIL, op. cit., 2002.
54 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

rural. De início, cabe referir que a vedação à aquisição de domínio através da


modalidade de usucapião urbana quando o possuidor é proprietário de outro
imóvel se justifica no reconhecimento de que tal modalidade constitucional se
direciona ao acesso à moradia e não à promoção de condutas de especulação
imobiliária.
Para além disso, a limitação de área representa a quantidade reconhecida
enquanto adequada para o estabelecimento de moradias, sendo que os demais
requisitos, como a redução do tempo da posse para cinco anos – e aqui se fala em
redução devido à referência de que sob a ótica civilista, sem boa-fé e justo título,
exigia-se à época da edição da norma constitucional o exercício da posse por vinte
anos – vinculam-se à justificativa da condução ao acesso à moradia. Decrescendo
dois terços do prazo estabelecido no âmbito estrito da tutela dos direitos reais, o
Constituinte almejava a facilitação e aceleração do momento de prestígio daquele
que promove a função social da propriedade – que assim atuava, aliás, para
acesso à moradia – com o reconhecimento da sua aquisição de domínio.
Para além da usucapião, pode-se citar também o inciso IV, do artigo 7º, da
Constituição Federal69, que, ao assinalar o salário mínimo como um direito social
dos trabalhadores, que deve ser capaz de atender às necessidades vitais básicas
do indivíduo e de sua família, identifica a moradia enquanto elemento do rol das
necessidades vitais básicas que serve de parâmetro para a fixação do valor do
salário mínimo. Por fim, pode-se apontar, ainda, a indicação da competência dos
entes federados pela promoção de programas de construção de moradias e a
melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico, a teor do que
disciplina o artigo 23, IX, da Constituição70.
Uma vez inserido no texto constitucional, sendo seu conteúdo
expressamente enunciado, o reconhecimento do direito à moradia como um direito
social implicou, inclusive, alteração no entendimento do Supremo Tribunal Federal
acerca da exceção à impenhorabilidade do bem de família71 em contrato de fiança

69
BRASIL, op. cit., 1988.
70
Ibidem.
71
Concebido no Texas por ocasião da crise financeira ocorrida nos anos de 1839, nos Estados
Unidos, o bem de família expandiu-se pelos demais estados do país tendo adquirido tratamento
jurídico específico inclusive ao redor do mundo. No Brasil, em razão da Lei nº 8.009/1990, fora
Eloísa Assis | 55

nas execuções de dívidas locatícias. O entendimento pacificado na Corte


Constitucional, em razão do julgamento do Recurso Extraordinário 407.68872, cuja
decisão fora proferida em 2006, era no sentido de que o bem de família de uma
pessoa que assume voluntariamente a condição de fiador em contrato de aluguel
poderia ser penhorado em caso de inadimplência do locatário, em consonância
com a exceção de impenhorabilidade do bem de família disciplinada no artigo 3º,
inciso VII, da Lei 8.009/199073.
À época do julgamento do Recurso Extraordinário 407.688 74 , o então
Ministro Eros Grau apresentou divergência no sentido de afastar a possibilidade
de penhora do bem de família do fiador, posicionamento consubstanciado na
instituição do direito à moradia, que, dentre seus efeitos, teria o de tornar
indisponível o bem de família para a penhora. Contudo, em que pese a existência
de divergência, prevaleceu o entendimento do relator, Ministro Peluso, no sentido
de reconhecer enquanto constitucional a previsão de penhora do bem de família
do fiador.
É importante destacar que o precedente firmado pela Corte Constitucional,
no julgamento do Recurso Extraordinário 407.68875, assentou que a não aplicação
da exceção à impenhorabilidade do bem de família implicaria impacto no mercado
de locações residenciais e no direito à moradia de potenciais locatários, assim, a
partir da ponderação entre o direito à moradia de fiadores e idêntico direito de
locatários, pautando-se na garantia de acesso à locação, fora proclamada a
constitucionalidade da previsão de penhora do bem de família do fiador nos
contratos de locação residencial.

instituída a impenhorabilidade do bem de família, que assegura a impossibilidade de penhora do


imóvel residencial para pagamento de dívidas, ao efeito de não promover a desassistência e
desabrigo de famílias, reconhecendo a moradia enquanto bem indispensável.
72
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário: RE 407688 AC. Relator: Ministro
Cezar Peluso. DJ: 06/10/2006. Disponível em:
http://www.stf.jus.br/portal/inteiroTeor/obterInteiroTeor.asp?id=261768. Acesso em: 25 jun.
2020.
73
BRASIL. Lei nº 8.009 de 29 de março de 1990. Dispõe sobre a impenhorabilidade do bem de
família. 1990. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8009.htm. Acesso em: 26
jun. 2020.
74
BRASIL. Supremo Tribunal Federal, op. cit., 2006.
75
BRASIL. Supremo Tribunal Federal, op. cit., 2006.
56 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

Anos mais tarde, em 2018, instado a se pronunciar acerca da


impenhorabilidade do bem de família do fiador em contrato de locação comercial,
o Supremo Tribunal Federal proferiu, no julgamento no Recurso Extraordinário
605.70976, novo entendimento. O relator, Ministro Dias Toffoli, e o Ministro Barroso
se posicionaram pela aplicação do entendimento pacificado no Supremo no
sentido da possibilidade de penhora do bem de família do fiador no contrato de
locação, eis que, no entender dos ministros, embora não estivesse em causa o
direito à moradia do locatário – vez que não se tratava de imóvel residencial, mas,
sim, comercial – o caso dizia respeito à livre iniciativa, que também é assegurada
constitucionalmente, de sorte que deveria o fiador ser instado a cumprir com a
garantia que restou obrigado quando da celebração do contrato de locação.
Prevaleceu, contudo, a divergência apresentada pela Ministra Rosa Weber
no sentido de que o artigo 3º, inciso VII, da Lei nº 8.009/1990 77 , não fora
recepcionado pela Emenda Constitucional nº 26 de 200078. Entendeu a ministra
que a restrição do direito à moradia do fiador em contrato de locação comercial
não se justificava na satisfação do crédito de locador de imóvel comercial ou no
estímulo à livre iniciativa. Refere a Ministra Rosa Weber que “eventual desestímulo
à livre iniciativa que decorre da afirmação da impenhorabilidade do bem de família
do fiador em contrato de locação comercial” 79 não tem força suficiente para
sobrepujar a exigibilidade de observar o direito social à moradia, que, em verdade,
é desdobramento da dignidade da pessoa humana e da proteção constitucional à
família.
Acentua a Ministra que a estipulação de limites à penhora de determinados
bens constitui uma conquista civilizatória endereçada a garantir o mínimo
existencial. Assim, permitir a penhora de bem de família para satisfazer débito
decorrente de locação comercial, em observância à livre iniciativa, resultaria em

76
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário: RE 605709 SP. Relator: Ministro Dias
Toffoli. Redatora: Ministra Rosa Weber. DJ: 12/06/2018. Disponível em:
https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15339527780&ext=.pdf. Acesso em: 25
jun. 2020.
77
BRASIL, op. cit., 1990.
78
BRASIL, op. cit., 2000.
79
BRASIL, op. cit., 2018.
Eloísa Assis | 57

ultrapassar a estrutura assentada para preservar a dignidade humana face às


dívidas. Nesse rumo, por entender que a penhora do bem de família do fiador em
contrato de locação comercial implicaria violação ao direito fundamental à
moradia, por maioria, o Supremo Tribunal Federal assentou o posicionamento no
sentido de que o bem de família do fiador não pode ser alcançado para fins de
satisfação dos créditos devidos referentes a contratado de locação de imóvel
comercial, reconhecendo a imprescindibilidade da moradia para uma vida com
dignidade.
Disso se depreende que a impenhorabilidade do bem de família também
pode ser compreendida como uma possibilidade de efetivação do direito à
moradia. Muitos são os caminhos para concretização do acesso à moradia, sendo
exemplos de expressão de tal direito: (i) a regularização fundiária 80; (ii) o aluguel
social81; (iii) a compra assistida82 – denominada bônus moradia, em Porto Alegre.
Tudo a demonstrar, inclusive, que o direito à moradia não se confunde e não se
limita ao direito à (e de) propriedade, de sorte que se expressa de variadas formas
em suas inúmeras densificações. Nesse sentido, o direito à moradia desponta
enquanto um direito social, que demanda atuação estatal dirigida à sua efetivação,
embora isso não signifique que a estratégia governamental deve se limitar ao

80
A regularização fundiária urbana consiste no reconhecimento, pelo Poder Público, dos direitos
reais daqueles que ocupam imóveis urbanos, se constituindo enquanto instrumento de conceito
amplo, vez que contempla todas as ferramentas que viabilizam a conformação de um
empreendimento imobiliário ao regramento urbanístico vigente. A regularização fundiária,
portanto, é o conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, econômicas, ambientais e sociais que se
direcionam à regularização de assentamentos irregulares bem como à titulação dos ocupantes, a
fim de assegurar o direito social à moradia e a fruição da dignidade da pessoa humana. Atualmente,
a regularização fundiária está disciplinada na Lei nº 13.465, de 2017.
81
O aluguel social se constitui enquanto recurso assistencial governamental, por período de tempo
determinado, direcionado a atender, em caráter de urgência, famílias desabrigadas, que passam a
receber uma quantia mensal equivalente ao custo de um aluguel popular. O aluguel social tem
como base legal a Lei Orgânica da Assistência Social, Lei nº 8.742, de 1993, regulamentada pelo
Decreto nº 6.307, de 2007.
82
A compra assistida equivale a uma carta de crédito para aquisição de moradia com condições
adequadas de habitabilidade. Em Porto Alegre, a compra assistida, também chamada de bônus-
moradia, é adotada como instrumento de indenização das famílias que habitam em áreas de risco
ou que foram afetadas por projetos estruturadores da cidade que demandam o reassentamento
dos indivíduos em outras áreas. A compra assistida é uma indenização que corresponde à
aquisição de um imóvel – apontado pelo indenizado – pelo Poder Público, a fim de que
determinadas famílias saiam do local onde habitam. Por meio de tal instrumento, confere-se
autonomia aos indivíduos, que podem optar por imóveis inclusive em outras cidades, desde que
observada a certificação de habitabilidade, a fim de evitar a repetição das condições de risco.
58 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

fornecimento de unidades habitacionais.


Enunciar os direitos sociais enquanto relacionados às expectativas por
prestações positivas estatais conduz à discussão acerca da dimensão subjetiva
de tais direitos, ou seja, quanto à justiciabilidade – que nada mais é senão a
possibilidade de serem exigíveis, perante o Poder Judiciário, pelos seus titulares
em face de seus destinatários. A razoabilidade em ressaltar o debate quanto à
dimensão subjetiva dos direitos sociais repousa na compreensão da existência de
certa divergência quanto ao assunto; isso porque há quem considere que os
direitos sociais são direitos de gradual satisfação, vez que estão intimamente
ligados – e submetidos – à riqueza disponível nos Estados que os tutelam, motivo
pelo qual, identificando menor densidade 83 nas normas definidoras de direitos
sociais, suscitam reflexões sobre, por exemplo, a reserva do financeiramente
possível8485.
Ingo Sarlet86 destaca que a justiciabilidade dos direitos sociais abrange a
problemática de o Poder Judiciário impor ao Poder Público uma prestação
veiculada na Constituição. Em razão do cunho especialmente delicado da questão,
há compreensões no sentido de que as normas de direitos sociais possuem cunho
meramente programático, assim, ainda que tivessem alguma eficácia vinculativa,
restariam condicionados à manifestação legislativa, sem possibilidade de
dedução direta – a partir da Constituição – dos deveres de prestação dos quais é

83
A densidade revela o grau de precisão do texto constitucional, assim, diz-se que o direito à
moradia, por ser um direito social, se constitui enquanto comando com menor densidade, ou seja,
com baixo grau de determinação; e, por assim ser, sofre reflexos em sua vinculação, aplicabilidade
e justiciabilidade – LINS, Liana Cirne. A justiciabilidade dos direitos fundamentais sociais: uma
avaliação crítica do tripé denegatório de sua exigibilidade e da concretização constitucional
seletiva. Revista de Informação Legislativa, v. 46, n. 182, abr./jun. 2009, p. 54.
84
LINS, Liana Cirne. A justiciabilidade dos direitos fundamentais sociais: uma avaliação crítica do
tripé denegatório de sua exigibilidade e da concretização constitucional seletiva. Revista de
Informação Legislativa, v. 46, n. 182, abr./jun. 2009, p.60.
85
O conceito de reserva do possível é decorrente da paradigmática decisão do Tribunal
Constitucional Federal da Alemanha sobre o acesso à universidade de medicina diante da limitação
de vagas oferecidas pelo Estado. Na decisão ficou estabelecido que as pretensões dos indivíduos
devem corresponder ao que, razoavelmente, se pode exigir da sociedade, assim, ainda que o Estado
disponha de recursos, entende-se que deve ser respeitado o limite do razoável. No Brasil, todavia,
o que se verifica é a invocação da cláusula da reserva do possível com o intuito de exoneração do
cumprimento das obrigações constitucionais. SARLET, op. cit., 1988, p. 295.
86
SARLET Ingo; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. 10
ed. São Paulo: Saraiva, 2021, p. 284
Eloísa Assis | 59

87
destinatário o Estado. Nesse sentido, Sarlet adverte que não se pode
desconsiderar a existência de direitos subjetivos a prestações positivas,
reconhecimento este que contorna a autorização pela formalização da exigência
da prestação – fática e normativa – pelos titulares dos direitos sociais.
Com o assentamento da dimensão subjetiva dos direitos sociais,
consequentemente, se afasta o entendimento no sentido de que os direitos sociais
se constituem enquanto meros programas de ação governamental –
posicionamento que se desenvolveu em razão da compreensão de uma certa
abertura semântica (indeterminação do conteúdo) do dispositivo constitucional
que disciplina os direitos sociais 88 ; assim, considerando que não se definiu
concretamente o que se espera com a devida prestação do direito tutelado,
sustentava-se que sem a atuação do Legislador os direitos sociais eram
inexigíveis, e, portanto, sem plena eficácia. Contudo, como bem sinaliza Sarlet, a
forma genérica com a qual foram dispostos os direitos sociais (diante da ausência
de adjetivação, também chamada de abertura semântica e imprecisão do teor) não
autoriza que se esvazie o conteúdo de tais direitos e não afasta a atribuição de
máxima eficácia e efetividade às normas de direitos sociais89.
Assinalada a compreensão de que o direito à moradia se constitui enquanto
um direito subjetivo a prestações positivas, demonstra-se oportuno, aqui, salientar
sua dimensão objetiva, que, em verdade, se refere à sua eficácia irradiante. É em
sua perspectiva objetiva que o direito à moradia é identificado como parâmetro de
aplicação e interpretação dos dispositivos infraconstitucionais, reforçando o
inafastável dever do Estado pela realização dos direitos fundamentais, vinculando
e exigindo a atuação dos órgãos estatais. Ainda que assim não fosse, no que tange
especificamente ao direito à moradia, não se pode ignorar a determinação
constitucional no sentido de que cabe aos entes federativos a promoção de
programas de construção de moradias e melhoria das condições habitacionais e
de saneamento básico, a teor do que determina o artigo 23, IX90.

87
Ibidem.
88
Ibidem, p. 280.
89
SARLET, op. cit., 2021.
90
BRASIL, op. cit., 1988.
60 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

À formulação da noção da dimensão objetiva dos direitos fundamentais se


atribui como paradigmática a decisão proferida pelo Tribunal Constitucional da
Alemanha, no caso Lüth, em 1958, oportunidade em que restou consignado que os
direitos fundamentais ultrapassam a função de meros direitos subjetivos de
defesa dos indivíduos contra os atos do Poder Público, constituindo-se, mais do
que isso, em determinações valorativas de natureza jurídico-objetiva que irradiam
eficácia em todo o ordenamento jurídico, explicitando diretrizes para os Poderes
Executivo, Legislativo e Judiciário91.
O Caso Lüth representa um marco conceitual da dogmática alemã dos
direitos fundamentais, vez que a partir desse caso foram assentadas as bases
para o que a doutrina, mais tarde, convencionou denominar de dupla dimensão dos
direitos fundamentais, raciocínio que indica a existência de uma dimensão
subjetiva dos direitos fundamentais, que se centra no indivíduo tutelado, e de uma
dimensão objetiva, onde há transmudação dos direitos fundamentais em valores
e finalidades a serem perseguidos por toda a sociedade – pelo Estado, pelos
indivíduos e pelas organizações civis. Nessa perspectiva objetiva, resta assinalada
a noção de irradiação da eficácia jurídica dos direitos fundamentais no âmbito do
direito infraconstitucional, vez que as garantias fundamentais são concebidas
independentemente da perspectiva individualista que fundamenta a dimensão
subjetiva, de forma que irradiam valores fundamentais da ordem jurídica que são
do interesse de toda a comunidade, motivo pelo qual os direitos fundamentais são
considerados bússolas para atuação do Estado quanto à promoção e proteção dos
direitos.
Daí decorre a compreensão de um dever inafastável de interpretação e
aplicação conforme os direitos fundamentais a todo o ordenamento jurídico. Para
além disso, compreende-se que também está vinculada à dimensão objetiva a
função organizatória e procedimental, no sentido de que “a partir do conteúdo das
normas de direitos fundamentais é possível extrair consequências para a
aplicação e interpretação das normas procedimentais”92. Os direitos fundamentais
são, de certa maneira, condicionados à organização e ao procedimento

91
SARLET, op. cit., 2021.
92
SARLET, op. cit., 2021.
Eloísa Assis | 61

estabelecidos infraconstitucionalmente; contudo, observa-se que a eficácia


irradiante dos direitos fundamentais atua sobre o direito procedimental e suas
dinâmicas organizacionais, viabilizando que esses últimos auxiliem na efetivação
da proteção e promoção dos direitos fundamentais 93 . A dimensão objetiva dos
direitos fundamentais, portanto, transcende a perspectiva subjetiva e impulsiona
a aplicação e a interpretação do direito infraconstitucional a partir do conteúdo
das normas de direitos fundamentais.
Importa assinalar que, com a decisão do Caso Lüth, inaugura-se uma nova
acepção da Constituição, que passa a figurar enquanto ordem de valores,
enquanto sistema axiológico basilar, sendo que, para o Tribunal Alemão, essa
ordem de valores, composta especialmente por direitos fundamentais, encontra
seu fundamento nuclear de legitimação na dignidade da pessoa humana,
realizando uma estruturação jurisprudencial que concebe a Constituição como um
sistema de valores cujos efeitos se irradiam por todo o ordenamento jurídico.
É nesse sentido que se questiona se as proibições que cidades impõem ao
Airbnb seriam uma expressão da dimensão objetiva do direito à moradia. O Airbnb
é uma iniciativa decorrente da sharing economy, que surge em um cenário onde o
rápido avanço da tecnologia reestrutura as dinâmicas sociais, influenciando novos
hábitos e comportamentos. A sharing economy tem como fundamento o consumo
colaborativo, sendo que sua origem está diretamente associada à lógica de que
mais importante que a propriedade é a possibilidade de desfrutar dela, dos bens e
serviços de forma compartilhada 94 . O Airbnb tem se popularizado nos últimos
anos, tratando-se de um serviço online, de uso comunitário, no qual as pessoas
anunciam e reservam acomodações. Existem razões para que esse tipo de locação
encontre dificuldades, sendo conveniente apenas destacar o afastamento dos
antigos moradores das zonas de turismo, devido ao alto preço dos imóveis,
tornando determinadas zonas urbanas eminentemente turísticas enquanto a
população residente, sobretudo de baixa renda, é lançada às margens da cidade.

93
Ibidem.
94
MARQUES, Alessandra Garcia. Inovação e direitos fundamentais: o impacto do aplicativo Uber
no mercado consumidor brasileiro. RDC, v. 107, 2016, p. 4.
62 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

No contexto nacional, concorrem divergências entre a proibição ou não


dessa forma de economia compartilhada. Os defensores se ancoram na Lei do
Inquilinato 95 , que prevê um contrato com duração não superior a 90 dias; e os
desfavoráveis à regulamentação do Airbnb entendem que não se trata de locação
para temporada, mas, sim, de um serviço de hotelaria, com teor puramente
comercial.
Inexistindo legislação que possa definir essa prática e todas as suas
peculiaridades, discute-se se a proibição – quando justificada no resultado de
especulação imobiliária – seria expressão da dimensão objetiva do direito à
moradia, que irradia seus efeitos nas normas infraconstitucionais, a fim de garantir
a dignidade dos habitantes das cidades. Isso porque, geralmente, as justificativas
para a obstaculização da operacionalização do Airbnb repousam no entendimento
de que o modelo de hospedagem compartilhada drena para o mercado da locação
temporária os imóveis que deveriam servir à garantia de moradia, para além do
encarecimento dos aluguéis da região e da descaracterização dos bairros.
Explicitadas as dimensões subjetiva e objetiva do direito à moradia, urge
que se aborde a problemática da titularidade dos direitos sociais, se individual ou
coletiva. Com efeito, refere Ingo Sarlet 96 que os direitos sociais, em razão do
reforçado vínculo com o princípio da dignidade da pessoa humana e da correlação
com a garantia de um mínimo existencial, foram incorporados como direitos
referidos à pessoa humana individualmente considerada. Ocorre que há
tradicional divisão no sentido de que os direitos individuais seriam aqueles que
representam cunho negativo, defensivo – os direitos de liberdade – que exigiriam
do destinatário uma abstenção, ao passo que os direitos sociais, por exigirem
prestações positivas – ainda que não se ignore a dimensão negativa destes –
seriam direitos de titularidade necessariamente coletiva. Contudo, tal divisão não
prospera; sustenta Sarlet que os direitos sociais foram assim designados por
serem “direitos a prestações do Estado na consecução da justiça social, mediante

95
BRASIL. Lei no 8.245, de 18 de outubro de 1991. Dispõe sobre as locações dos imóveis urbanos
e os procedimentos a elas pertinentes. 1991. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8245.htm>. Acesso em: 16 maio 2020.
96
SARLET, op. cit., 2018, p. 222.
Eloísa Assis | 63

a compensação de desigualdades fáticas e garantia do acesso a determinados


bens e serviços por parte de parcelas da população socialmente vulneráveis” 97.
Em verdade, o autor identifica que os posicionamentos que negam a titularidade
individual dos direitos sociais representam estratégia para impedir a judicialização
das políticas públicas e dos direitos sociais98. Assim é que se assenta a noção no
sentido de que os direitos sociais possuem titularidade simultaneamente
individual e coletiva.
Embora o direito à moradia esteja assentado enquanto direito social cuja
concretização se contorna enquanto obrigação inafastável dos entes federados,
contrapõe, contudo, tal compreensão a verificação do crescente déficit
habitacional no Brasil. Em que pese reforçado o inarredável compromisso do
Estado pela proteção e promoção do direito à moradia, fato é que, segundo
levantamento realizado pela Fundação João Pinheiro (FJP), o déficit habitacional
no país, segundo dados recolhidos entre 2016 e 2019, é de 5,87 milhões de
unidades habitacionais99.
Oportuno destacar que déficit habitacional é a medida da insuficiência das
unidades habitacionais de determinada região, sendo que o diagnóstico não diz
respeito apenas à quantidade de unidades habitacionais que faltam para promover
o abrigo de todas as pessoas, mas, também, se relaciona com o número de
unidades habitacionais precárias, com as situações de coabitação, de
adensamento excessivo e de ônus excessivo dos aluguéis. Nesse rumo, válido
assinalar que a FJP também apontou a existência de cerca de 1,4 milhão de
habitações em situações precárias; cerca de 1,3 milhão de unidades domésticas
conviventes, com densidade de mais de duas pessoas por cômodo servindo como
dormitório; e mais de 3 milhões de famílias enfrentando o ônus excessivo de
aluguel urbano100.

97
Ibidem. p. 225.
98
SARLET, op. cit., 2018, p. 223.
99
FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO. Diretoria de Estatística e Informações. Déficit habitacional no
Brasil: 2016-2019. Belo Horizonte: FJP, 2021, 140p. Relatório. Disponível em:
https://www.gov.br/mdr/pt-
br/assuntos/habitacao/RelatrioDeficithabitacionalnoBrasil20162019v1.2.pdf. Acesso em: 05 mar.
2021.
100
Ibidem.
64 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

A crise habitacional no Brasil, em verdade, é resultado de um processo de


urbanização desordenado; isso porque o crescimento dos grandes centros
urbanos do país não fora acompanhado de um adequado planejamento. Corrobora
tal afirmação a própria cronologia das legislações de regulam a matéria e propõem
o direcionamento de um desenvolvimento urbano sustentável, vez que, por
exemplo, a Lei de Parcelamento Territorial Urbano é de 1979101; sendo que não
apenas no âmbito infraconstitucional a regulação se deu tardiamente, eis que,
analisando as Constituições anteriores, é possível perceber que as preocupações
fundiárias se concentravam na propriedade rural e em sua possível
desapropriação, contudo, inexistentes abordagens acerca de uma política
fundiária para as cidades.
Fato é que apenas com a Constituição de 1988, com a inovação de um
capítulo dedicado exclusivamente à política urbana, que restou traçado o esboço
das diretrizes da política de desenvolvimento urbano assentadas no objetivo de
garantir o bem-estar social aos habitantes das cidades. A política habitacional
brasileira, nesse cenário, é marcada pela constituição de relevantes marcos
institucionais, normativos e regulatórios, cabendo destaque ao lançamento – pelo
Governo Federal, por meio da Lei nº 11.977/2009102 – do Programa Minha Casa
Minha Vida (PMCMV), que possui como finalidade promover, através da
concessão de incentivos para produção e aquisição de novas unidades
habitacionais, resposta à problemática do déficit habitacional. O programa fora
elaborado de forma a atender grupos sociais de rendas – e, portanto, com
demandas – distintas, de forma a promover mecanismos de contratações e
subvenções econômicas adequadas às particularidades dos cidadãos. No
entanto, conforme se demonstrará nos capítulos a seguir, o PMCMV apresenta
problemas estruturais que comprometem a eficácia da política habitacional
instituída.

101
Brasil. Lei no 6.766, de 19 de dezembro de 1979. Dispõe sobre o Parcelamento do Solo Urbano
e dá outras Providências. 1979. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6766.htm>. Acesso em: 29 mar. 2020.
102
BRASIL. Lei nº 11.977, de 7 de julho de 2009. Dispõe sobre o Programa Minha Casa, Minha Vida
– PMCMV [...] e dá outras providências. 2009. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l11977.htm. Acesso em: 24 maio
2020.
Eloísa Assis | 65

Embora existentes no ordenamento jurídico pátrio, seja no plano


constitucional ou no plano infraconstitucional, regras que possibilitem a
efetivação do direito à moradia, constata-se que a universalização desse direito
ainda requer trilhar um longo caminho, vez que as condições de moradia de
milhões de cidadãos brasileiros reforçam a existência de uma verdadeira chaga
social na maioria das grandes cidades brasileiras. Urge, portanto, que seja iniciado
um processo em que a moradia seja compreendida enquanto elemento integrante
do mínimo existencial.
O reconhecimento da existência de um mínimo existencial é vinculado à
ideia de garantia de uma vida digna – tese elaborada por Otto Bachof, na Alemanha
do Segundo Pós-Guerra, acolhida pelo Tribunal Federal Administrativo, e,
posteriormente, pelo Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, oportunidade
em que restou consagrado um direito fundamental à garantia de condições
mínimas para uma vida digna – que se constitui enquanto conteúdo essencial do
Estado Social de Direito e inarredável tarefa dos Governos 103 . No âmbito
constitucional brasileiro, embora inexista unanimidade no que diz respeito ao
conteúdo de um mínimo existencial, o entendimento predominante é no sentido de
que, mais que resguardo à vida humana, o mínimo existencial dialoga com os
parâmetros para uma vida saudável e com qualidade104. Assim, a noção de mínimo
existencial ultrapassa a dimensão de condições mínimas de sobrevivência física,
eis que contempla também a garantia de um mínimo de integração social, ou seja,
a facilitação do acesso aos bens culturais e à participação na vida política105, o
que se relaciona diretamente com a concepção de direito à cidade, conforme se
demonstrará oportunamente.
Em que pese o arcabouço jurídico que estrutura o direito à moradia, a
identificação de um crescente déficit habitacional demonstra a ausência de
políticas públicas suficientemente adequadas, ou, ainda, sugere a possibilidade de
essas políticas estarem voltadas aos interesses individuais e mercadológicos, em
que se desconsidera a situação de miserabilidade da população de baixa renda,

103
SARLET, op. cit., 2021, p. 290.
104
SARLET, op. cit., 2021.
105
SARLET, op. cit., 2021.
66 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

ignorando, ainda, os compromissos assumidos nos documentos internacionais e


as determinações estabelecidas pelo Constituinte quanto à efetivação dos direitos
sociais. Nessa ordem de coisas, oportuno examinar as políticas públicas
habitacionais e urbanas implementadas pelo Governo brasileiro – diligência a qual
se procede no capítulo subsequente.
2. HABITAR NA (E A) CIDADE:
DO ACESSO À MORADIA AO DIREITO À CIDADE

O capítulo anterior abordou a construção do conteúdo jurídico do direito à


moradia, desde o reconhecimento enquanto direito humano estabelecido no
cenário internacional até a previsão de um direito fundamental à moradia no plano
constitucional brasileiro. O direito à moradia estende seus efeitos na estruturação
das dinâmicas nas cidades, influenciando o planejamento e a execução das
políticas de urbanização. Nessa perspectiva, identifica-se uma relação simbiótica
entre o direito à moradia e o direito à cidade, onde ambos buscam, um no outro, a
complementação de seus respectivos conteúdos.
Nesse diapasão, o presente capítulo abordará o conceito de cidade, o
caminho percorrido desde as últimas fases do período neolítico até a
contemporaneidade, com ênfase nas cidades brasileiras, as quais se alicerçam em
políticas habitacionais e urbanas. Como desfecho, será abordada a construção do
conteúdo jurídico do direito à cidade sistematizado na Constituição Federal de
1988 e densificado no Estatuto da Cidade.

2.1 O QUE É CIDADE? DA CIDADE ANTIGA À CONTEMPORÂNEA

Estudos demonstram que o homem apareceu na face da terra há milhões


de anos e no decurso do tempo buscou alimento e abrigo em espaços naturais. No
campo arqueológico, a civilização humana teve seu marco inicial na pré-história e
prosseguiu até este século. O advento da escrita, ocorrido em torno de 4.000 a.C.,
é a linha que separa a pré-história da história, sendo que, nos primórdios do
período histórico, isto é, justamente aproximadamente no ano 4.000 a.C.,
começam a se formar os primeiros agrupamentos humanos, com características
de cidade.
Não há evidências suficientes para afirmar quais as condições que deram
origem às primeiras cidades, mas alguns teóricos têm especulado sobre o que
consideram pré-condições e mecanismos básicos que poderiam explicar o
surgimento das cidades. A agricultura é considerada um pré-requisito para as
68 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

cidades, vez que ajuda a preservar a produção excedente e a criar economias de


escala.
A visão convencional sustenta, portanto, que as cidades se formaram pela
primeira vez após a Revolução Neolítica, com a disseminação da agricultura1. O
advento da agricultura encorajou os caçadores a abandonarem o estilo de vida
nômade e se estabelecerem perto de outros que viviam da produção agrícola. A
agricultura produzia mais alimentos, o que possibilitava populações humanas
mais densas, apoiando, assim, o desenvolvimento da cidade. Mumford registra
que a cidade física data das últimas fases do período neolítico, referindo que o
surgimento real da cidade se deu como resultado da união entre os componentes
paleolíticos e neolíticos, eis que a cidade vem como resultado da introdução da
cultura da irrigação e do arado, portanto, da revolução agrícola2.
Coulanges, a seu turno, relata que o surgimento da cidade se deu no
momento em que famílias começaram a se associar3. Refere o autor que, por muito
tempo, a família figurou como única forma de sociedade, professando cada família
sua religião, sendo a religião o aspecto que as diferenciava e a razão pela qual a
união de famílias era proibida 4 . Contudo “era possível que várias famílias, sem
nada sacrificar de sua religião particular, se unissem pelo menos para a celebração
de outro culto que lhes fosse comum”5. Assim, sob a condição de respeito aos
respectivos cultos, as famílias passaram a se associar, formando o que se
denominou fratria.
A associação continuou a crescer e fratrias se agruparam formando tribos,
corpos independentes que possuíam cultos especiais dos quais os estranhos
eram excluídos. Igualmente à família e à fratria, a tribo não admitia novos
integrantes; todavia, as tribos começaram a se associar entre si, sob a condição
de que o culto de cada uma fosse respeitado. Assim, relata Coulanges, a cidade
começou a existir. Narra o autor que “várias famílias formaram a fratria, várias

1
MUMFORD, Lewis. A Cidade na História: suas origens, transformações e perspectivas, 4. Ed. São
Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 28.
2
MUMFORD, op. cit., 1998, p. 28.
3
COULANGES, Fustel. A Cidade Antiga. São Paulo: HEMUS, 1975, p. 93
4
Ibidem, p. 93
5
Ibidem, p. 93
Eloísa Assis | 69

fratrias a tribo, e diversas tribos a cidade. Família, fratria, tribo, cidade, são,
portanto, sociedades perfeitamente análogas nascidas umas das outras por uma
série de confederações” 6.
A cidade nasce como uma confederação, isso porque embora os grupos,
paulatinamente, se associassem entre si, nenhum deles perdia sua individualidade
ou independência, razão pela qual registra o autor que a cidade não é um
ajuntamento de indivíduos, antes uma confederação de vários grupos,
constituídos antes dela e que ela deixa subsistir7. Destaca Coulanges que a cidade
se desenvolveu paralelamente à religião, de forma que resta dificultoso afirmar,
para o autor, se foi o progresso religioso que causou o progresso social ou o
contrário8. No mesmo sentido, Raquel Rolnik, ao definir a cidade enquanto ímã,
refere que “o templo era o ímã que reunia o grupo” 9 , reforçando a ideia de
imbricação entre formação da cidade e religião.
Antes de obter conteúdo jurídico, a cidade, enquanto conceito, é explorada
por estudiosos de diversas áreas do conhecimento, como arquitetura e urbanismo,
geografia, filosofia, sociologia, entre outras. Nesse sentido, Freitag se debruça
sobre o que denomina teorias da cidade, apresentando teóricos que detiveram
seus estudos no fenômeno urbano. Adverte a autora que “não há notícia de um
pensamento consolidado, que buscasse formular uma ‘teoria’ das cidades, mesmo
que arquitetos e urbanistas tenham elaborado as suas”10, razão pela qual entende
que uma explicitação das teorias da cidade e do fenômeno urbano precisa ser
necessariamente interdisciplinar11. Para ordenar a apresentação, a autora, abrindo
mão de seguir um critério cronológico, diferentemente do seguido por
Vasconcelos 12 , organizou-a em Escolas, ou seja, em grupos que possuem
afinidades de pensamento.

6
Ibidem, p. 101
7
COULANGES, op. cit., 1975, p. 102
8
Ibidem, p. 104
9
ROLNIK, Raquel. O que é cidade. São Paulo: Brasiliense, 1995, p. 14.
10
FREITAG, Barbara. Teorias da cidade. 4. Ed. São Paulo: Papirus, 2012, p. 10.
11
Ibidem, p. 11
12
VASCONCELOS, Pedro A. As metamorfoses do conceito de cidade. Mercator, Fortaleza, v. 14, n.
4, Número Especial, p. 17-23, dez. 2015.
70 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

Para expor a Escola Alemã, Freitag, em razão da impossibilidade de


apresentar todos os pensadores alemães que teorizaram sobre a cidade,
selecionou os autores cujos trabalhos se destacaram por sua excelência; assim é
que analisa as contribuições de Georg Simmel, Max Weber, Ronald Daus e Walter
Benjamin. Com efeito, Georg Simmel concebe a cidade como a sede da economia
monetária13, como lugar de intensa divisão econômica e social do trabalho. Max
Weber, a seu turno, entende a cidade como o lócus da relação de dominação e
também como produto do capitalismo, o que a faz ser entendida enquanto
“resultado de determinantes universais de caráter mais econômico que cultural”14.
Já Ronald Daus analisou o fenômeno urbano a partir das metrópoles
extraeuropeias. Walter Benjamin, por sua vez, se debruçou sobre as problemáticas
da cidade moderna, e, descrevendo a Paris do século XIX, anteviu megalópoles
como a São Paulo do século XXI; para Freitag, as descrições de Benjamin sobre as
cidades modernas se constituíam enquanto prenúncio das situações que
experimentariam as grandes cidades do século XXI.
A Escola Francesa é representada pelos enciclopedistas Didert e d’Almbert,
pelo filósofo utopista Charles Fourier, pelo político reformista Haussmann, pelo
urbanista Le Corbusier, pelo antropólogo Lévi-Strauss e pelos sociólogos
contemporâneos Alain Touraine, Henri Lefebvre e Manuel Castells. Destes
destacam-se Corbusier e Lefebvre, o primeiro em razão do que representa até hoje
para o urbanismo moderno e o segundo especialmente por conta da relevância de
suas contribuições e por ter sido o primeiro teórico a enunciar a existência de um
direito à cidade.
Le Corbusier é conhecido por ser o autor da Carta de Atenas, documento
redigido por ele dez anos após um encontro de arquitetos e urbanistas ocorrido na
Grécia, em 1933, que é, em verdade, uma “espécie de mandamentos do urbanismo
moderno”15, tendo por essência a distinção de quatro funções básicas que devem
ser respeitadas no planejamento urbano, a saber: as funções de habitar, trabalhar,
circular e do lazer. Corbusier influenciou arquitetos como Lúcio Costa e Oscar

13
FREITAG, op. cit., 2012, p. 21
14
Ibidem, p. 41
15
FREITAG, op. cit., p. 59
Eloísa Assis | 71

Niemeyer, sendo que as ideias extraídas da Carta de Atenas consubstanciaram a


formulação dos princípios arquitetônicos da modernidade.
Ao analisar as cidades, Lefebvre enuncia o caráter sociopolítico do espaço
urbano, sobretudo ao referir a cidade enquanto “projeção da sociedade sobre um
local”16. Afirma, ainda, o autor que a luta de classes robustece o sentimento de
pertencimento à cidade, cabendo aos cidadãos “indicar suas necessidades
sociais, inflectir as instituições existentes, abrir os horizontes e reivindicar um
futuro que será obra sua” 17 . Para Lefebvre, o espaço urbano é “contradição
concreta”18, figurando enquanto “espaço político, lugar e objeto das estratégias”19
e atuando como um “campo de tensões altamente complexo” 20.
Os autores da Escola Inglesa analisados por Freitag foram Thomas Morus,
Ebenezer Howard, Patrick Geddes, Raymond Unwin e Peter Hall, sendo que estes
se destacam pelo pragmatismo e utilitarismo. Howard foi o criador da concepção
de “cidades-jardim”, sendo considerado pioneiro na ecologia urbana,
preocupando-se detidamente com os problemas de saneamento da cidade. A
escola inglesa baseia-se no conhecimento de história e do status quo das cidades
já existentes, introduzindo tendências urbanas de maneira dialógica e
democrática. De maneira geral, a escola inglesa forneceu três grandes modelos de
pensar a cidade, são eles: o modelo utópico de Thomas Morus, que reivindicava
uma reforma na sociedade inglesa renascentista; o modelo de “cidades-jardim”,
de Howard e seus seguidores, que preocupava-se em fornecer soluções
adequadas e suficientes para a deteriorada vida dos operários dos centros de
produção industrial; e o modelo da cidade cultural, que tem por maior nome Peter
Hall e a apresentação do desenvolvimento das metrópoles europeias.
Analisando os teóricos americanos, Freitag examina a Escola de Chicago, e
autores como Mumford, Sennet e Sassen. Refere a autora que, para esses
estudiosos, a cidade é concebida enquanto ser orgânico, como plantas, que

16
LEFEBVRE, Henri. O Direito à Cidade. São Paulo: Centauro, 2001, p. 62.
17
Ibidem, p. 123.
18
LEFEBVRE, Henri. A Revolução Urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2019, p. 55.
19
Ibidem, p. 60.
20
Ibidem, p. 56.
72 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

“crescem e se expandem, definham e morrem” 21. Os teóricos da Escola de Chicago


entendiam que para conhecer as cidades era necessário fazer reportagens, “isso
significa que as cidades precisam ser ouvidas, observadas, percorridas,
investigadas, interpretadas, examinandas e esmiuçadas estatisticamente,
estudadas sociologicamente, avaliadas política e economicamente”22, isso porque
entendiam que a cidade não era apenas unidade espacial, mas, sim, “produtora de
cultura, com relações sociais, normas, valores próprios” 23 , pensaram a cidade,
assim, a partir do multiculturalismo que as caracteriza.
Freitag sinaliza que os teóricos americanos “levaram em consideração os
desenvolvimentos macroestruturais dos séculos XX e XXI”, desenvolvimentos
esses que ainda não tinham sido absorvidos pela Europa, eis que essa
experimentava períodos de guerra desde a primeira metade do século XX. Para a
autora, foram os americanos que introduziram uma nova leitura da megalópole
moderna, desenvolvendo tecnologias de autoestradas, arranha-céus, e de
informática, mudando, assim, o estilo das cidades, moldando, ainda, as
megalópoles latino-americanas, africanas e asiáticas.
Ainda apreciando as teorias da cidade, Freitag se debruça por analisar quais
escolas que exerceram maior influência sobre os teóricos brasileiros, identificando
que Marx e Engels tiveram influência decisiva sobre o pensamento brasileiro sobre
a cidade. Destaca a autora, ainda, Le Corbusier, que inspirou uma geração de
arquitetos e urbanistas brasileiros, como Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, sendo que
há quem diga que Brasília é um quase-projeto de Le Corbusier, vez que concretiza
inúmeros princípios plasmados na Carta de Atenas. Passando aos teóricos
brasileiros, enfatiza a autora o advogado e geógrafo Milton Santos, os arquitetos
e urbanistas Lúcio Costa e Oscar Niemeyer e o urbanista e cientista social Nestor
Goulart Reis. Milton Santos merece o destaque em razão de suas contribuições no
estudo do espaço, sendo sua preocupação precípua a minimização do sofrimento
das pessoas pobres que habitam em um espaço dividido.

21
FREITAG, op. cit., p. 107
22
Ibidem, p. 108
23
Ibidem, p. 109
Eloísa Assis | 73

Observa a autora que, embora as teorias da cidade desenvolvidas em vários


cantos do mundo tenham encontrado solo fértil com os estudiosos brasileiros, os
problemas das metrópoles e megalópoles brasileiras não foram resolvidos; assim,
reforça a Freitag que a questão urbana precisa ser examinada de maneira inter e
multidisciplinar, de forma que passam a ser necessárias análises sobre as teorias
das cidades contemporâneas. Nesse sentido, um levantamento histórico da
atuação estatal quanto às problemáticas urbanas e habitacionais das cidades
brasileiras se configura enquanto indispensável.

2.2 CIDADES BRASILEIRAS: BREVE HISTÓRICO DAS POLÍTICAS HABITACIONAIS E


URBANAS NO BRASIL

No cenário brasileiro, a expansão das cidades brasileiras e das


aglomerações urbanas teve como influência direta a produção industrial e o
estabelecimento das metrópoles como lócus de seu desenvolvimento. Nas
palavras de Moura, foram se configurando densas regiões urbanizadas marcadas
por um célere crescimento populacional, que, somado às nítidas desigualdades
socioeconômicas existentes, proporcionou o crescimento elevado das periferias24.
Essa expansão periférica engendrou espacialidades marcadas pela pobreza e por
inúmeras carências que revelam a desigualdade socioeconômica25. Milton Santos
abre o livro A urbanização brasileira questionando como se definiria o processo de
consolidação das cidades brasileiras. O autor encadeia a esse questionamento
uma gama de outras indagações que ainda inquietam atualmente, refletindo sobre
a distribuição dos indivíduos no espaço urbano como resultado da marginalização
e da segregação, demonstrando clara preocupação com a garantia de direitos no
contexto das cidades26.

24
MOURA, Rosa. Arranjos urbano-regionais no Brasil: especificidades e reprodução de padrões.
Revista Bibliográfica de Geografía y Ciencias Sociales, v. 7, n. 923, 2011, p. 3.
25
Ibidem.
26
“Como, nas cidades, vive a maioria dos brasileiros? Quais as suas condições de trabalho e não-
trabalho? Qual a sua renda? Que acesso têm aos benefícios da maternidade? Quais as suas
carências principais? Como se distribuem, na cidade, as pessoas, segundo as classes e os níveis
de renda? Quais as consequências da marginalização e da segregação? Quais os problemas da
habitação e da mobilidade, da educação e da saúde, do lazer e da seguridade social? Como definir
74 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

À época ancorado nos dados do recenseamento de 1991, que denotava que


o crescimento urbano arrefecia, mais especificamente das grandes cidades,
Santos discordava de estudiosos que comemoravam a diminuição das taxas de
crescimento (nem sempre reais) da população em determinadas metrópoles. Os
números apresentados pelo recenseamento eram compreendidos de uma outra
forma pelo autor. No entendimento de Santos, mais do que um arrefecimento da
urbanização, estaria ocorrendo um “novo arranjo espacial do território brasileiro”
sublinhado pela expansão de cidades locais e sua força, bem como de centro
regionais. Nesse novo arranjo haveria, simultaneamente, uma “tendência
crescente à diferenciação e à complexificação, estando as cidades “cada vez mais
diferentes umas das outras”27.
No Brasil, a marcha da urbanização se iniciou no começo do século XX,
tendo como marco o processo de industrialização, uma das principais razões do
êxodo rural. Esse deslocamento para os centros urbanos foi acompanhado de
alterações estruturais, passando do desempenho de uma política agrário-
exportadora para uma política voltada ao desenvolvimento urbano-industrial. No
entanto, as desigualdades identificadas nas regiões brasileiras resultaram na
verificação de processos de urbanização diferentes em cada uma das regiões do
país. A rápida e desordenada urbanização brasileira carrega em si uma gama de
consequências, em grande parte negativas. A ausência de um planejamento
urbano eficiente contribuiu para o aparecimento de diversos fenômenos, como a
favelização e a violência urbana.
A experiência urbana brasileira é marcada por um longo período de inércia
estatal quanto à questão urbana e habitacional. Com efeito, durante o período da
República Velha (1889-1930), os ideais liberalistas predominavam, sendo a
intervenção direta do Estado na atividade econômica, obviamente, rechaçada.
O contingente de escravos recém libertos – considerando que a abolição da
escravidão ocorreu em 1888 – e de imigrantes, nacionais e estrangeiros, que
buscavam nas cidades meios de sobrevivência, provocou uma forte crise

os lugares sociais na cidade, o centro e a periferia, a deterioração crescente das condições de


existência?” SANTOS, M. A urbanização brasileira. São Paulo: Editora Hucitec, 1993, p. 10.
27
SANTOS, M, op. cit., 1993, p. 122.
Eloísa Assis | 75

habitacional. Em resposta a tal crise, multiplicaram-se as habitações coletivas nos


centros das cidades. As habitações coletivas surgiram por volta de 1850 e eram
caracterizadas por conjuntos de pequenas casas térreas enfileiradas, com
dimensões mínimas. Apresentando composições arquitetônicas múltiplas, se
assemelhavam na sua essência – como resultado da crise habitacional que se
agravava no país – sendo, indistintamente, denominadas de cortiços 28 , por
possuírem os mesmos elementos de uso coletivo: banheiro, pátio, área de serviço
e tanque.
Se as habitações coletivas despontavam enquanto solução para a crise
habitacional dos primeiros anos da República, fato é que, ao mesmo tempo,
contribuíam para agravá-la. À medida que aumentava a aglomeração nas
habitações, reduziam-se drasticamente as condições de higiene, de forma que
epidemias de cólera, febre amarela e varíola eram frequentes e periódicas29. Não
bastasse isso, as habitações coletivas eram produto de um sistema de
investimento, onde os proprietários cediam seus imóveis a terceiros que investiam
na edificação das habitações coletivas ou na subdivisão das edificações já
existentes, sendo que para se abrigar nesses ambientes insalubres, a população
de baixa renda precisava desembolsar altas quantias para os aluguéis30.
Em razão do predomínio da lógica liberal, nesse período, as iniciativas
estatais se limitavam às determinações das legislações sanitárias para repressão
de situações graves de insalubridade nas moradias. Assim, com a imposição de
normas higiênicas, houve o desfazimento dos cortiços para dar lugar a vilas de
casas higiênicas; no entanto, a modernização dos cortiços – facilitada por
incentivos e concessões de favores a construtores 31 – resultou na alteração dos
seus destinatários, vez que a higiene e as novas diretrizes de habitabilidade
possuíam um preço que os moradores dos antigos cortiços não eram capazes de

28
Cortiço é uma peça feita de cortiça, ou de qualquer outra casca de árvore, com a finalidade de
alojar colônias de abelhas. Acredita-se que o uso do termo cortiço para designar habitações
coletivas deriva da associação que se fazia entre as habitações e as colmeias, que eram formadas
por casulos minúsculos que abrigavam as abelhas tal qual as habitações coletivas que
hospedavam inúmeras pessoas em um mesmo cômodo.
29
VAZ, Lilian Fessler. Dos cortiços aos edifícios de apartamentos – A modernização da moradia no
Rio de Janeiro. Análise social, v. xxix, 1994, p. 581-597.
30
VAZ, op. cit., 1994, p. 583.
31
Ibidem, p. 584.
76 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

suportar. A atuação dos órgãos sanitários se demonstra inegavelmente higienista


e vinculada a um ideal de beleza urbana, que, por óbvio, não incluía a presença das
classes populares.
Conforme relata Lilian Vaz, no Rio de Janeiro, o gradual desaparecimento
dos cortiços fora resultado de artimanhas legislativas: os órgãos sanitários
fechavam os cortiços e a seus proprietários recaía a obrigação de pagar multa e
de realizar melhoramentos sanitários, todavia, o órgão municipal de licenciamento
de construções não autorizava a realização das obras, de forma que se
obstaculizava o surgimento de novos cortiços e se impossibilitava a permanência
dos já existentes32. O processo de favelização no Rio de Janeiro também é produto
dessa dinâmica. O Prefeito Pereira Passos, em 1903, estabeleceu medidas de
regulação das construções, implementando uma série de requisitos legais,
técnicos e arquitetônicos para edificações em toda a cidade; assim, se antes ao
trabalhador restava a vida no subúrbio com casas autoconstruídas, a partir desse
momento, até mesmo a construção na zona suburbana restava impossibilitada, de
forma que restou aos pobres – expulsos do centro e impossibilitados de
autoconstruir suas moradias nos subúrbios – a ocupação de morros próximos ao
centro urbano, ocupação essa que seria uma forma embrionária das atuais favelas,
que só se tornaram oficialmente reconhecidas enquanto fenômeno na década de
194033.
Válido consignar que o mercado imobiliário se configurava enquanto
oportuna estratégia de investimento, vez que os aluguéis eram exorbitantes;
assim, observando São Paulo como exemplo, verifica-se que, em 1920, menos de
20% dos imóveis eram habitados pelos seus proprietários, pois o que predominava
era o aluguel como forma de acesso à moradia 34. Em que pese o fato de grande
parte da população ser inquilina, as questões referentes aos contratos e aos
valores dos aluguéis ficavam condicionadas apenas à livre negociação entre
locador e inquilino, inexistindo intervenção estatal. Em 1921, no entanto, o Decreto

32
Ibidem, p. 585.
33
Ibidem, pp. 587-590.
34
BONDUKI, Nabil G. Origens da Habitação Social no Brasil. Análise social, vol xxix, 1994, p. 713.
Eloísa Assis | 77

nº 4.403 35 determinou o congelamento dos aluguéis em resposta à crise


habitacional e aos excessivos valores de aluguéis. Contudo, a medida foi ineficaz,
visto que, em razão de a lei não impedir os despejos, esses se tornaram estratégia
recorrente dos locadores36.
Quanto à atuação estatal para construção de casas populares, se verifica
uma inatividade estatal nesse sentido, contudo, desponta Recife como exceção –
que confirma a regra – pois, em 1926, 40 unidades habitacionais foram edificadas
pela Fundação A Casa Operária, órgão do governo do estado de Pernambuco
criado, em 1924, com o objetivo de construir casas para habitação de pessoas
pobres mediante aluguel reduzido37. A intervenção estatal, no entanto, foi recebida
com insatisfação, eis que o raciocínio predominante à época acreditava que as
iniciativas estatais para enfrentar o problema habitacional resultariam no
desinteresse da iniciativa privada no setor imobiliário, o que agravaria a crise.
Assim, entendia-se que o governo não deveria produzir casas para os pobres e
operários, mas, sim, estimular a iniciativa privada a investir no setor. Nesse
cenário, a solução que emergiu foi a edificação de vilas operárias pelas próprias
indústrias para moradia de seus funcionários38.
A grande maioria das vilas operárias surge como solução para as indústrias
que desejavam fixar os operários nas imediações de suas instalações, exercendo
controle sobre eles. A cruel vinculação entre a perda do emprego e o despejo da
casa produzia operários cativos, submetidos política e ideologicamente aos seus
empregadores. No entanto, a lógica que predominava à época era que o modelo
das vilas operárias assegurava condições dignas de moradia, diferenciando-se da
insalubridade dos cortiços, atendia aos interesses da iniciativa privada e não
comprometia verbas públicas, sendo, portanto, um projeto satisfatório 39.

35
BRASIL. Decreto 4.403 de 22 de dezembro de 1921. Regula a locação dos prédios urbanos e dá
outras providências. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1920-
1929/decreto-4403-22-dezembro-1921-569624-publicacaooriginal-92854-pl.html. Acesso em
29 jan. 2021.
36
BONDUKI, op. cit, 1994, p. 714.
37
Ibidem.
38
Ibidem, p. 715.
39
Ibidem.
78 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

A intervenção do Estado brasileiro direcionada a solucionar a problemática


da habitação de maneira significativa se inicia na década de 30, momento em que
o Estado compreende que a construção, financiamento e comercialização de
moradias completamente dependente das livres forças do mercado se
demonstrava insustentável. Essa nova postura assumida pelo Estado brasileiro no
que se refere à habitação tem nítida vinculação com a estratégia política adotada
pelo governo Vargas, de estruturar uma sociedade urbano-industrial, promovida
pela intervenção estatal na atividade econômica40. O governo Vargas foi marcado
pelo populismo, assim, atrair a legitimação das massas populares se demonstrava
condizente com os desígnios do estadista; nesse sentido, considerando que a
habitação era preocupação central da população, visto que os valores dos aluguéis
consumiam significativa parcela do salário 41 , promover uma política voltada à
proteção do inquilinato e à produção de moradias foi a estratégia utilizada por
Vargas para se manter no poder.
A criação das carteiras prediais dos Institutos de Aposentadorias e Pensões
(IAPs) é um claro exemplo da nova postura estatal quanto à questão habitacional.
Tratou-se de uma intervenção estatal direta no mercado habitacional com a
utilização dos recursos das Caixas de Aposentadorias e Pensões (CAPs) 42 . Os
recursos captados pelo sistema previdenciário, antes direcionados
exclusivamente a assegurar a aposentadoria dos trabalhadores, passaram a ser
aplicados na construção e aquisição de moradias para as famílias dos associados.

40
BONDUKI, op. cit., 1994.
41
Bonduki registra que pesquisas realizadas entre 1930 e 1940 apontavam que cerca de 20% dos
orçamentos familiares eram comprometidos com o aluguel. (BONDUKI, op. cit, 1994, p. 717).
42
Válido referir que as primeiras entidades previdenciárias organizadas pelo Governo brasileiro
surgiram a partir da Lei Elói Chaves – Decreto nº 4.682 de 1923. Com a promulgação do Decreto
nº 19.496, de 1930, a estrutura das CAPs fora modificada, restando estabelecida a possibilidade de
se utilizar parte dos recursos dessas entidades previdenciárias para programas habitacionais. A
preocupação principal das entidades previdenciárias, no entanto, não era a crise habitacional, vez
que o objetivo da regulamentação da aquisição e construção de casas com os recursos
previdenciários tinha nítida intenção de proporcionar estabilidade econômico-financeira às
instituições previdenciárias. Corrobora tal percepção a inexistência de qualquer menção expressa
no sentido de que o aluguel deveria ser social, ou seja, de que deveriam ser cobrados valores
inferiores aos cobrados regularmente, o que evidencia o fato de que o propósito da medida era
preservar a solidez patrimonial das entidades previdenciárias, sendo a assistência dos associados
apenas uma consequência. (TRIANA FILHO, Antônio. Habitação Popular no Brasil: Análise do
modelo operacional de financiamento pelas agências oficiais. Dissertação (Mestrado em
Arquitetura e Urbanismo). Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de Brasília. Brasília,
154 f., 2006, p. 46).
Eloísa Assis | 79

No entanto, nesse projeto, a função da edificação como solução para a questão


habitacional é secundária, eis que o principal objetivo era garantir rentabilidade
para as reservas dos institutos para que restassem asseguradas a aposentadoria
e as pensões aos associados43.
O Decreto-Lei do Inquilinato – Decreto-Lei nº 4.598 44 , de 1942, que
determinou o congelamento dos preços dos aluguéis e representou uma
regulamentação estatal nas relações entre locadores e inquilinos – é entendido
como uma das medidas implementadas pelo governo no que tange à habitação.
As consequências da lei do inquilinato, entretanto, não foram tão positivas quanto
o que se previa. O investimento em casas de aluguel, com a promulgação da lei do
inquilinato, deixou de ser rentável e atraente, de forma que a iniciativa privada
reduziu significativamente a construção de casas de aluguel, o que agravou a
problemática do déficit habitacional nas grandes cidades brasileiras45. Além disso,
uma estratégia utilizada pelos proprietários foi o despejo, apegando-se às
permissões legais que viabilizavam o despejo dos inquilinos. A partir desse
momento, se intensificou a estruturação do padrão periférico de crescimento
urbano nas cidades brasileiras, onde prevaleciam as autoconstruções em
situações precárias – opção acessível à população despejada.
Em verdade, a aquisição de lotes para construção de moradias já estava
mais facilitada desde a promulgação do Decreto-Lei nº 58 de 1937 46 , que
regulamentou a aquisição de terrenos a prestações. Percebe-se, então, que
restava estruturado um sistema que objetivava estimular o trabalhador a edificar
sua própria casa, sobretudo considerando que, concomitantemente à venda do
terreno, previa-se a possibilidade de empréstimos para a aquisição de recursos
para a construção dos imóveis. A problemática desta solução habitacional
repousa na ausência de estruturas urbanísticas, especialmente a carência de

43
BONDUKI, op. cit., 1994.
44
BRASIL. Decreto-Lei 4.598 de 20 de agosto de 1942. Dispõe sobre aluguéis de residências e dá
outras providências. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-
1949/decreto-lei-4598-20-agosto-1942-414411-publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em 29
jan. 2021.
45
BONDUKI, op. cit., 1994, p. 721.
46
BRASIL. Decreto-Lei 58 de 10 de dezembro de 1937. Dispõe sobre o loteamento e a venda de
terrenos para pagamento em prestações. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1937-1946/del058.htm. Acesso em 30 jan. 2021.
80 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

transporte, saneamento e infraestrutura. Entretanto, mesmo diante de flagrantes


desrespeitos aos padrões mínimos de urbanização, o Poder Público se omitiu,
atuando como se existisse um acordo tácito que relevava as precárias
características dos assentamentos em razão de assimilar a autoconstrução como
a única solução para a crise habitacional, intensificando o processo de
favelização47.
Em 1946, com a promulgação do Decreto-Lei nº 9.218 48 , foi instituída a
Fundação da Casa Popular – FCP, destinada a proporcionar a brasileiros e
estrangeiros residentes há mais de dez anos no Brasil a aquisição ou construção
de moradia própria em zona urbana ou rural. O escopo de atuação da FCP, no
entanto, beirava à megalomania, vez que, além da moradia, se propunha a financiar
infraestrutura, saneamento, urbanização do local da moradia, bem como a
estruturação da indústria de material de construção 49 . A extensa proposta de
atuação da fundação, somada à ausência de recursos suficientes, resultou na
inexpressividade da ação da FCP. Isso porque, segundo relata Bonduki 50 , em
dezoito anos de atuação (1946-1964), a FCP produziu um total de 18.132 unidades
habitacionais em 143 empreendimentos, sendo que, a nível de comparação, os
IAPs financiaram, no mesmo período, 123.995 unidades habitacionais, excluindo-
se do cálculo os milhares de apartamentos financiados para a classe média51.
Finalizando o período populista, o golpe militar, de 1964, dá início a um
período marcado pelo autoritarismo. Quanto à atuação do governo ditatorial na
habitação social, destaca-se a Lei nº 4.380, de 1964, que instituiu o Sistema
Financeiro da Habitação (SFH) e criou o Banco Nacional de Habitação (BNH). Por
essas instituições o Governo Federal projetou sua intervenção no setor
habitacional, propondo promover a construção de habitações sociais bem como o
financiamento da aquisição da casa própria, especialmente pelas populações de
baixa renda. Atuando em todo o território nacional, o BNH financiou cerca de 4,5

47
BONDUKI, op. cit., 1994, p. 730.
48
BRASIL. Decreto-Lei 9.218 de 1º de maio de 1946. Autoriza a instituição da “Fundação Casa
Popular”. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-
9218-1-maio-1946-417087-publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em: 30 jan. 2021.
49
BONDUKI, op. cit., 1994, p. 717.
50
Ibidem, p. 726.
51
BONDUKI, op. cit., 1994, p. 728.
Eloísa Assis | 81

milhões de moradias no Brasil, estratégia utilizada pelos militares para alcançar a


legitimidade do novo regime perante as massas populares.
O modelo de urbanização brasileiro se demonstra, desde o princípio,
potencialmente segregador. Exemplos indiscutíveis da feição segregadora das
políticas urbanas e habitacionais são a Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, e a
Restinga, em Porto Alegre, conjuntos habitacionais afastados dos grandes centros
urbanos, e, portanto, com inacessibilidade de seus moradores a serviços
essenciais e à plena fruição de seus direitos.
Apesar de localizados em estados distintos, as histórias se assemelham. A
Cidade de Deus foi inicialmente concebida em razão dos projetos de Carlos
Lacerda – governador do estado do Rio de Janeiro à época – para redefinição e
modernização do conceito de cidade, projetos estes que, em verdade, tinham
interesses higienistas e estéticos 52 . Cidade de Deus é resultado de um projeto
urbanístico de habitação social que tinha como um dos principais objetivos
remover os habitantes de seis favelas da Zona Sul do Rio de Janeiro, zona nobre
carioca, e abrigar, longe dos cartões postais da cidade, trabalhadores que
atenderiam a Barra da Tijuca, bairro de classe A. O projeto, aprovado em 1964, teve
a execução iniciada em 1965, contudo, um desastre natural alterou a ordem
prevista. Em 1966, uma grande enchente provocou um caos na cidade do Rio de
Janeiro, deixando pelo menos cem mortos e mais de 20 mil pessoas desabrigadas
no município. Diante da situação emergencial, o governador à época recém
empossado, Negrão Lima, autorizou a transferência das famílias desabrigadas
provenientes de cerca de 57 favelas diferentes do Rio de Janeiro para as casas
inacabadas da Cidade de Deus. Contudo, para além dos problemas com as
estruturas físicas das casas inacabadas, os novos moradores tiveram que lidar
com outros problemas, como ausência de transporte público efetivo, significativa

52
MARTINS, Marcela R.. Habitação e desastre: o conjunto habitacional Cidade de Deus e a “grande
enchente” de 1966. In: XVI Encontro Regional de História da ANPUH-Rio. Anais Eletrônicos. 2014.
Disponível em:
http://www.encontro2014.rj.anpuh.org/resources/anais/28/1400466476_ARQUIVO_HABITACAOE
DESASTRE-Martins-2014.pdf. Acesso em 31 jan. 2021.
82 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

distância dos centros urbanos e dos serviços públicos essenciais lá disponíveis,


como centros de saúde e escolas, e a intensificação da violência53.
Já o bairro Restinga, localizado na zona sul de Porto Alegre, fora criado em
uma área rural, sendo concebido para abrigar as camadas de baixa renda da
cidade. Para compreender o contexto de sua proposição, é importante destacar
que a cidade de Porto Alegre, em princípios de 1947, foi palco do aparecimento
acelerado de centenas de casebres em terrenos baldios e em logradouros
públicos, que, em razão da precariedade observada, receberam o apelido de “vila
de malocas” 54 . Para a administração municipal, bem como para a elite porto-
alegrense, as vilas de malocas se constituíam enquanto um problema urbanístico,
eis que não condiziam com o ideal de modernidade e ocupavam territórios
estratégicos que poderiam ser utilizados para os projetos modernistas da
municipalidade, havendo, portanto, um claro objetivo de remover os moradores
das malocas dos centros urbanos. Alocados na Restinga, a situação dos
moradores era marcada pela ausência e pela distância; ausência da atuação do
Poder Público para garantia de dignidade e qualidade de vida, e distância do centro
administrativo da cidade e dos serviços lá prestados55.
Para além das tentativas governamentais, que se demonstravam ineficazes
para solucionar a problemática habitacional, tem-se que, as classes populares,
para garantir minimamente o acesso à moradia, por mais precária que fosse,
frequentemente valiam-se da ocupação de espaços públicos ou das
autoconstruções habitacionais inclusive em áreas de risco. O crescimento das
cidades, conforme demonstrado, não fora acompanhado da presença e atuação
diligente do Poder Público em relação às demandas sociais por habitação,
infraestrutura, saneamento básico, transporte, ocupação ordenada do território e

53
MARTINS, op. cit., 2014.
54
GAMALHO, Nola Patrícia. Malocas e Periferia: a produção do bairro Restinga. Revista Eletrônica
Ateliê Geográfico, v. 4, n. 2, abr. 2010, p. 122-141.
55
Nesse sentido, é válido colacionar o que Faillace descreveu em “Restinga, uma vila ao abandono”,
em 1967, no jornal Zero Hora: “a água é fornecida de oito em oito dias por carros-tanques, que
enchem as pipas públicas e as três ou quatro caixas d’água que existem...Água exposta a todas as
contaminações. E quando o carro atrasa mais de quinze dias, eles bebem água da sanga...Em
desespero de causa, os moradores tentaram perfurar poços por conta própria... só encontraram
barro.... A escola fica a mais de três quilômetros de distância e os pequenos que não podem
caminhar tanto perderam o ano...Os grandes perderam os empregos... (FAILLACE, Tânia. Zera Hora,
18 maio. 1967, p. 12-3).
Eloísa Assis | 83

participação popular na estruturação da política urbana. Em razão da negligência


estatal, emergiu um movimento de resistência, composto sobretudo por
moradores das favelas e pelos que percebiam as violações perpetradas pelo
Estado no contexto das favelas. Esse movimento popular pleiteava a elaboração
de leis que impossibilitassem remoções arbitrárias, que promovessem a
regularização fundiária e que viabilizassem a participação popular na política
urbana. Oportuno pontuar que o encerramento da atuação do SFH ocorreu em
razão da crise financeira sobrevinda no país na década de 1980, que resultou na
extinção do BNH em 1986. Com a dissolução do regime ditatorial e o despontar da
redemocratização, o Movimento Nacional pela Reforma Urbana se contornou e,
mais tarde, o Fórum Nacional da Reforma Urbana – diretamente responsáveis pela
promulgação de uma Constituição composta por um capítulo direcionado à
política urbana.
Se até 1988 a questão habitacional ficava condicionada ao interesse e à
disposição dos governantes, com a promulgação da Carta Magna, em razão da
determinação dos artigos 23, 182 e 18356, foram designadas competências entre
os níveis de governo tanto no que concerne às políticas urbanas como à promoção
de programas de construção de moradias e à melhoria das condições
habitacionais e de saneamento básico 57. Assim, com a Constituição Federal de
1988, a questão habitacional passa a ser compreendida enquanto atribuição
estatal inafastável. Em 2000, com a Emenda Constitucional nº 26 58, a moradia foi
alçada ao status de direito social, sendo compreendida, conforme já assinalado no
capítulo anterior, enquanto direito fundamental. Posteriormente a isso, em 2001,
os artigos 182 e 183, da Constituição, foram regulamentados pelo Estatuto da
Cidade, Lei nº 10.25759, oportunidade em que foram designadas diretrizes gerais
das políticas urbanas, cujo objetivo principal era dar resposta adequada à
segregação espacial estruturada em grande parte das cidades brasileiras.

56
BRASIL, op. cit., 1988.
57
MARICATO, E. Por um novo enfoque teórico na pesquisa sobre habitação. Cadernos Metrópole, v.
21, p. 33-52, 2009.
58
BRASIL, op. cit., 2000.
59
BRASIL, op. cit., 2001.
84 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

A Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Cidade inauguram uma nova


dinâmica, vez que, se antes a problemática urbana e habitacional se condicionava
aos desígnios dos governantes, ou aos projetos dos partidos políticos, doravante,
as reivindicações por moradias e pela fruição da cidade restaram revestidas de
conteúdo jurídico, tornando-se direitos exigíveis.
No ano de 2000, o Instituto Cidadania, presidido por Luís Inácio Lula da Silva,
diligenciou na elaboração de um projeto – denominado de Projeto Moradia –
voltado a solucionar a problemática habitacional do país. O Projeto Moradia
sugeria a criação do Ministério das Cidades para gestão das áreas de habitação,
saneamento ambiental, transporte e desenvolvimento urbano 60. Com a vitória de
Lula nas eleições presidenciais, em 2003, o Ministério das Cidades foi criado para
consolidar as políticas de desenvolvimento urbano. A criação do Ministério das
Cidades demonstra a instituição de um novo marco político-institucional para a
questão urbana e habitacional, representando o reconhecimento governamental
de que os desafios urbanos do Brasil deveriam ser enfrentados com políticas de
Estado, e não apenas de Governo, por meio de abordagem integrada 61 . A nova
Política Nacional de Habitação (PNH) direcionada a efetivar o exercício do direito
social à moradia a todo cidadão brasileiro com a exigência da integração com as
políticas urbanas é resultado dessa nova dinâmica inaugurada com a criação do
Ministério das Cidades. Dentro do processo de implementação da nova Política
Nacional de Habitação desponta o Plano Nacional de Habitação (PlanHab) –
elaborado para equacionar as necessidades habitacionais brasileiras e conduzir o
planejamento das medidas públicas e privadas no setor habitacional durante
quinze anos ao efeito de garantir ações estratégicas adequadas62.
Em 2005, avançando dentro do que o Estatuto da Cidade determinou, foi
aprovada a Lei nº 11.124, que criou o Sistema Nacional de Habitação de Interesse
Social (SNHIS), lei esta que estabeleceu o processo participativo de elaboração do
Plano Nacional de Habitação e constituição de fundos articulados nos diferentes

60
BRASIL. Ministério das Cidades. Secretaria Nacional de Habitação. Avanços e Desafios: Política
Nacional de Habitação – Ministério das Cidades. Secretaria Nacional de Habitação, Brasília, 2010,
p. 10.
61
BRASIL, op. cit., 2010, p. 14.
62
Ibidem, p. 23.
Eloísa Assis | 85

níveis da federação, controlados por conselhos com participação popular e com


ações planejadas em Planos Locais de Habitação de Interesse Social (PLHIS)63. A
criação do SNHIS, que ocorreu mediante iniciativa popular, pautou-se na
expectativa de que a política habitacional estivesse finalmente a caminho de uma
execução adequada aos problemas assentados, sendo sua atuação dividida em
dois grandes eixos, quais sejam: i) urbanização de assentamentos precários e ii)
produção habitacional.
O compromisso do Governo Federal com a universalização do acesso à
moradia foi reforçado com o lançamento do Programa de Aceleração do
Crescimento (PAC), que destinou cerca de dezessete bilhões de reais aos
programas habitacionais no período de 2007-2010. O PAC foi um programa
instituído com o objetivo de proporcionar o crescimento econômico, a geração de
empregos e a melhoria das condições de vida da população brasileira por meio do
investimento público em infraestrutura e do incentivo ao investimento privado
para aceleração do desenvolvimento sustentável64.
Embora a economia brasileira apresentasse vigoroso crescimento até 2007,
a crise financeira internacional de 2008 afetou significativamente os
investimentos das empresas privadas, sobretudo no setor da construção civil.
Nessa conjuntura, o Governo Federal adotou uma série de medidas para atenuar o
impacto da crise na economia brasileira. Dentre essas medidas adotadas se
destaca a criação, em 2009, do Programa Minha Casa Minha Vida65 (PMCMV). O
PMCMV foi concebido como estratégia de aquecimento da economia, para além
de servir como tentativa de garantir uma vantagem política de curto prazo dentro
de um escopo político-partidário que desejava se manter na administração. Esse
programa visava reduzir o déficit habitacional, e, para isso, estabeleceu formas de
incentivo à construção e à aquisição de novas unidades habitacionais bem como
à requalificação de imóveis urbanos e à produção ou à reforma de habitações

63
BRASIL. Lei 11.124 de 16 de junho de 2005. Dispõe sobre o Sistema Nacional de Habitação de
Interesse Social – SNHIS, cria o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social – FNHIS e institui
o Conselho Gestor do FNHI. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-
2006/2005/Lei/L11124.htm>. Acesso em: 22 ago. 2020.
64
Ibidem, p. 30.
65
BRASIL, op. cit., 2009.
86 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

rurais para famílias com renda mensal de até dez salários mínimos. Dessa forma,
o governo pretendia garantir que a população de baixa renda tivesse acesso à casa
própria, e, concomitantemente, acelerar o crescimento econômico com a geração
de novos empregos. Contudo, para que o PMCMV se tornasse real, e o projeto
tramitasse em regime de urgência, foi necessário que o governo barganhasse e
articulasse politicamente, resultando no fato de que o programa restou subjugado
às negociações do mercado66.
Atualmente, a política habitacional, no âmbito federal, é estruturada pelo
Ministério do Desenvolvimento Regional, que lida com ações referentes ao
desenvolvimento regional e urbano, à mobilidade e serviços urbanos, ao
saneamento, à proteção e defesa civil, à habitação e à irrigação, tendo como
principais projetos o Projeto de Integração do Rio São Francisco e o Programa
Casa Verde e Amarela. Visando facilitar o acesso da população a uma moradia
digna, o Programa Casa Verde e Amarela pretende alcançar 1,6 milhão de famílias
de baixa renda com o financiamento habitacional até 2024. Além do financiamento
habitacional, o programa se direciona à regularização fundiária e melhoria de
residências, dando resposta aos problemas de inadequações construtivas, como
a ausência de banheiros.
Merece destaque, ainda, a formação da Secretaria Nacional de Mobilidade
e Desenvolvimento Regional e Urbano, resultado da fusão das antigas Secretaria
Nacional de Desenvolvimento Regional e Urbano e Secretaria de Mobilidade e
Serviços Urbanos. A nova Secretaria é responsável por promover o
desenvolvimento regional e urbano ao efeito de assegurar o acesso universal à
cidade de forma socialmente inclusiva e ambientalmente sustentável. Em 2019, a
Secretaria iniciou a elaboração da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano,
PNDU, que propõe a adoção de uma perspectiva sistêmica, com abordagem
multinível, no enfrentamento dos desafios para o desenvolvimento econômico. A
PNDU objetiva reduzir as desigualdades socioespaciais nas cidades, de forma a
equilibrar os benefícios e os ônus da urbanização, com diretrizes que comporão o

66
FERREIRA, G. G et al. Política habitacional no Brasil: uma análise das coalizões de defesa do
Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social versus o Programa Minha Casa, Minha Vida.
urbe. Revista Brasileira de Gestão Urbana, 2019.
Eloísa Assis | 87

que se denomina Objetivos do Desenvolvimento Urbano Sustentável – ODUS,


documento que ainda está em processo de formulação, cuja conclusão não se
verificou especialmente em razão das limitações impostas pela pandemia do
coronavírus.
Ainda em 2019, o Ministério do Desenvolvimento Regional, por meio da
Secretaria de Desenvolvimento Urbano Regional (SDRU), elaborou o programa de
financiamento Pró-Cidades, que consiste em aplicação de recursos financeiros
oriundos do Fundo de Garantia de Tempo de Serviço (FGTS) para a promoção do
desenvolvimento urbano integrado, inclusivo e democrático. Trata-se de
financiamento de intervenções estruturantes do espaço público, ao efeito de
garantir a democratização do acesso aos equipamentos públicos urbanos; a
modernização tecnológica urbana, com a implementação das noções de cidades
inteligentes; a reabilitação de áreas urbanas; a promoção de habitações com boa
localização e o estímulo à utilização de imóveis vazios para habitação de interesse
social67.
O histórico habitacional do Brasil é assinalado pela falta de eficiência das
políticas públicas habitacionais. O processo de industrialização contribuiu
sobremaneira na aceleração da urbanização, gerando inúmeros impasses
fundiários, acarretando um panorama de segregação espacial. Um cenário
permeado de favelas e de invasões é o resultado real de um processo de gestão
seletiva, em que as demandas políticas são pautadas em interesses individuais e
de mercado, relegando a planos inferiores o bem-estar da população.
Diante da falta de lugar adequado para morar, a informalidade na produção
de moradias em assentamentos não urbanizados tem sido escolhida pela
população como uma forma de solução hegemônica, o que desvela o baixo nível
de alcance das políticas públicas instituídas no decurso dos anos, que, inclusive,
se confirma diante de um déficit habitacional cada vez maior. Nesse contexto,
observa-se que o embaraço na integração de políticas habitacionais e da inclusão

67
BRASIL, Ministério do Desenvolvimento Regional. Manual – Programa de Desenvolvimento
Urbano: Pró-Cidades. 2019. Disponível em: https://www.gov.br/mdr/pt-
br/assuntos/desenvolvimento-regional/MANUAL_DO_PROGRAMA_PR_CIDADES_00000002.pdf.
Acesso em: 02 fev. 2021.
88 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

espacial no contexto da gestão e do planejamento tem como consequência a


produção de moradias dissociadas da vida urbana, mantendo-se, assim, a
negação do direito à cidade.
O que se observa é que as políticas habitacionais até então implementadas
foram concebidas, conforme já denunciava Lefebvre no fim da década de 1960, a
partir de uma lógica que considera razoável “fornecer moradias o mais rápido
possível pelo menor custo possível” 68 . Esta noção fixa a preocupação com o
habitat, ignorando completamente o habitar. Para Lefebvre, habitat e habitar eram
conceitos distintos. Considerando os programas habitacionais brasileiros, pode-
se compreender que, comumente, é fornecido o habitat: casas padronizadas de
qualidade questionável, enquanto o habitar, por sua vez, é obstaculizado pela
ausência de ambiente social propício, eis que o habitar demanda pertencimento
do indivíduo com o local onde está abrigado, e, para além disso, o habitar alberga
em sua definição a garantia de qualidade de vida e o respeito à dignidade dos
indivíduos. Intentando aproximar os conceitos de habitat e habitar sobreleva-se a
concepção da existência de um direito à cidade.

2.3 A CONSTRUÇÃO DO CONTEÚDO DO DIREITO À CIDADE

Narrativa reivindicatória presente nas Jornadas de Junho de 201369,

68
LEFEBVRE, op. cit, 2001, p. 26.
69
As Jornadas de Junho representam o conjunto de manifestações populares iniciadas
especialmente como contestação em razão do aumento nas tarifas dos transportes públicos. Fala
que explicita claramente a utilização do direito à cidade enquanto fundamento reivincatório pode
ser visualizada na Carta que o Movimento Passe Livre Salvador entregou, em 2014, ao Prefeito ACM
Neto, onde constava a seguinte frase: “Lutamos por uma vida sem catracas, onde cidadãos terão
direito à cidade e aos serviços públicos de forma universal”. (NASCIMENTO, Luciano. Salvador: Por
redução na tarifa de transporte, manifestantes ocupam a Câmara de Vereadores. Revista Fórum,
2013. Disponível em: https://revistaforum.com.br/noticias/salvador-por-reducao-na-tarifa-de-
transporte-manifestantes-ocupam-camara-de-vereadores/. Acesso em: 20 maio. 2020). Válido
assinalar que, atualmente, discute-se as arranjo político conduzido a partir das Jornadas de Junho,
que, ao que se verifica, conduziram ao Impeachment da Presidente Dilma, em 2016, e à força na
eleição de Jair Bolsonaro, 2018 (sobre o assunto, ver: SOLANO, Esther, ROCHA, Camila. A direita
nas redes e nas ruas: a crise política no Brasil. São Paulo: Expressão Popular, 2019).
Eloísa Assis | 89

no Movimento Passe Livre70, de 2014, e nos polêmicos Rolezinhos71, em 2014, o


direito à cidade se revelou enquanto conceito apto à invocação da defesa pela
ocupação e fruição dos espaços públicos e dos serviços disponíveis nas cidades.
Cumpre destacar que a exigência por um direito à cidade não é demanda exclusiva
dos movimentos sociais brasileiros; ao redor do mundo se desdobram
reivindicações bastante semelhantes às vivenciadas em solo brasileiro, sendo que
em alguns casos o direito à cidade aparece não apenas nas bandeiras e discursos,
mas, também, nos próprios nomes dos movimentos, como na Right to the City
Alliance, em Nova Iorque; na rede Recht auf Stadt, em Hamburgo, e no movimento
Pravo na Grad em Zagreb. Tudo isso a indicar que o direito à cidade é exigência
que se articula mundialmente; constatação, aliás, que reforça um questionamento
constante não apenas na academia como também na esfera pública, a saber, o
que é o direito à cidade, afinal?
Explicitar o conteúdo axiológico-normativo do Direito à Cidade é diligência
desafiadora, eis que a expressão direito à cidade é revelada e traduzida em
diferentes significados nas suas diversas abordagens reivindicatórias. Direito à
cidade, nesse rumo, passa a ser compreendido enquanto conceito guarda-chuva,
que abriga uma pluralidade de direitos e concepções, que, aliás, não são apenas
forjados na academia, porquanto as demandas por um direito à cidade se
contornam enquanto reivindicações que brotam no tecido social, assumindo
peculiares e distintas nuances.
O direito à cidade nasce como fruto das reflexões do sociólogo francês
Henri Lefebvre, autor que, em razão de ser o primeiro teórico a enunciar a

70
Evidenciada sobretudo diante da fala emblemática dos representantes do MPL, a saber: “Cada
vez que a tarifa sobe, aumenta o número de pessoas excluídas do transporte coletivo. Com menos
gente circulando, novos aumentos serão necessários, numa espiral que diminui cada vez mais o
direito à cidade da população”. (LEONEL. Flávio. Movimento Passe Livre marca protesto contra
tarifa em SP. Revista Exame, 2014. Disponível em: https://exame.abril.com.br/brasil/movimento-
passe-livre-fara-protesto-em-sp-dia-9-contra-alta-nas-tarifas/. Acesso em: 16 maio. 2020).
71
Os chamados rolezinhos foram episódios de amplitude nacional, ocorridos em São Paulo, em
2014; tratava-se de encontros de jovens da periferia de São Paulo em Shoppings, que, apesar de
não possuir como finalidade a execução de protestos, mas, sim, o simples lazer, o efeito colateral
gerado com a presença dos jovens periféricos em espaços predominantemente elitizados
provocou uma discussão quanto à extensão do direito à cidade nos espaços privados. Ao
resistirem pela fruição do espaço recreativo dos Shoppings, os jovens, mesmo sem tal intenção
inicial, impulsionaram calorosos debates quanto ao direito à cidade, ao direito a se divertir na
cidade.
90 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

existência de um direito à cidade, se tornou referência no tema, sobretudo


considerando seu pioneirismo na temática e seu engajamento na análise da
sociedade urbana. Embora sua obra não possua um direcionamento jurídico
imediato, contendo, em verdade, alta carga filosófica, o sociólogo tece
considerações que repercutem no cenário jurídico e acentuam sua relevância
ainda nos dias atuais.
Importa assinalar que o direito à cidade, em Lefebvre, não é originalmente
concebido como um instrumento jurídico capaz de proporcionar melhoria nas
condições de vida no espaço urbano no contexto da lógica do capital, antes, em
verdade, como reivindicação pela ruptura da dinâmica urbana capitalista. É,
portanto – o direito à cidade – um projeto político de luta anticapitalista 72 .
Conquanto as reflexões de Lefebvre se direcionem à superação da ordem
socioespacial capitalista, fato é que o sociólogo também projeta o direito à cidade
enquanto demanda 73 a ser exigida pela classe operária, demanda essa que
congrega uma série de outros direitos que ao direito à cidade se vinculam, tais
como “direito à liberdade, à individualização na socialização, ao habitat e ao
habitar, o direito à obra (à atividade participante) e o direito à apropriação (bem
distinto do direito à propriedade).”74. O direito à cidade, nesse sentido, sobreleva-
se enquanto reivindicação à vida urbana, sendo termo em constante disputa,
envolto em permanente conflito, tal como o espaço urbano.
Embora reconhecendo que a cidade preexiste à industrialização, Lefebvre
analisa e expõe a problemática urbana a partir do processo de industrialização, eis
que entende que tal fenômeno é o “motor das transformações da sociedade” 75.
Para o autor, a industrialização define e caracteriza a sociedade moderna, sendo,
em verdade, indutor dos problemas relativos ao crescimento demográfico e à
planificação 76 . Explica o autor que a industrialização assaltou e saqueou a

72
“Devemos derrubar e substituir todo o sistema capitalista de acumulação perpétua, juntamente
com suas estruturas associadas de exploração de classe e do poder estatal. A reivindicação do
direito à cidade é uma estação intermediária no caminho em direção a esse objetivo”. (HARVEY,
David. Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. São Paulo: Martins Fontes, 2014,
p. 16).
73
LEFEBVRE, Henri. O Direito à Cidade. São Paulo: Centauro, 2001, p. 54
74
LEFEBVRE, op. cit., 2001, p. 134.
75
LEFEBVRE, op. cit., 2001, p. 11.
76
Ibidem, p. 11.
Eloísa Assis | 91

realidade urbana preexistente e, sendo conduzida a partir de uma estratégia de


classe, “comporta como um poder negativo da realidade urbana”77. Para Lefebvre,
a sociedade urbana nasce da industrialização 78 , sendo a revolução urbana o
processo no qual, a partir de transformações experimentadas no tecido social,
passa-se de um predomínio de questões de industrialização para um “período no
qual a problemática urbana prevalecerá decisivamente, em que a busca das
soluções e das modalidades próprias à sociedade urbana passará ao primeiro
plano”79.
Fazendo referência à reforma urbanística promovida por Haussmann, em
Paris, entre 1853 e 1870, Lefebvre discorre sobre segregação e urbanização
excludente. Narra o autor que, ameaçada com a presença dos proletários no
âmago da cidade, a classe dominante, em uma clara estratégia de classe,
promoveu um remanejamento do tecido espacial, expulsando os operários para os
subúrbios, destituindo-os da urbanidade. Refere o autor que a “democracia de
origem camponesa, cuja ideologia animou os revolucionários, poderia ter se
transformado em democracia urbana”, contudo, considerando que ameaçava os
privilégios da burguesia, tratou a classe dominante de impedir o nascimento da
democracia urbana, empurrando os proletários dos centros urbanos para os
subúrbios, privando-os da vida urbana e dos encontros que lá se operam, assim
“afastado da cidade, o proletariado acabará de perder o sentido da obra” 80 . O
direito à cidade, para Lefebvre, portanto, seria a reivindicação da classe operária
pelo retorno à vida urbana.
Válido mencionar que a expressão direito à cidade fora positivada, no
ordenamento jurídico brasileiro, apenas quando da promulgação do Estatuto da
Cidade, em 2001, contudo, as disposições constitucionais quanto à construção
conceitual de tal direito não podem ser desmerecidas. Como acertadamente
assevera Betânia Alfonsin81, é possível concluir que o direito coletivo à cidade tem

77
Ibidem, p. 28.
78
LEFEBVRE, Henri. A Revolução Urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2019, p. 17.
79
Ibidem, p 21.
80
LEFEBVRE, op. cit,, 2001, p. 22-24
81
ALFONSIN, Betânia de Moraes. Direito à cidade sustentável na nova ordem jurídico-urbanística
brasileira: emergência, internacionalização e efetividade em uma perspectiva multicultural. In:
WOLKMER, Antônio Carlos; LEITE, José Rubens Morato (org.). Os “novos” direitos no Brasil:
92 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

como nascedouro o artigo 182 da Constituição Federal, vez que, em tal dispositivo,
restou disciplinada a noção de função social das cidades e a relevância da garantia
de bem-estar de seus habitantes.
Ingo Sarlet sustenta que o direito à cidade adquiriu relevo quando passou a
ser entendido enquanto viabilizador da efetivação do direito à moradia, ao afirmar
que “em termos de efetivação da dimensão prestacional do direito à moradia,
importa mencionar o Estatuto da Cidade, cuja principal meta é dar efetividade às
diretrizes constitucionais sobre política urbana, estando a contribuir para a difusão
de um verdadeiro direito à cidade” 82.
Por sua vez, Cláudio Ari Mello 83 identifica a existência de uma tutela
normativa à cidade já na Lei nº 7.347/198584, eis que tal lei, ao explicitar a lesão à
ordem urbanística enquanto situação que enseja a utilização da ação civil pública,
evidencia a cidade enquanto bem jurídico merecedor de proteção legal, porquanto
o termo “ordem urbanística”, em verdade, representa metonímia para cidade.
Nessa ordem de coisas, Ari Mello85 defende a existência de um direito coletivo à
cidade.
Nascido dos movimentos urbanos, o direito à cidade é erguido como um
direito no âmago dos direitos humanos e fundamentais, tornando-se um direito
manifesto em documentos das instâncias internacionais, a exemplo da Habitat III,
e das legislações nacionais, como o Estatuto da Cidade, que foi um marco dentro
da legislação urbanística brasileira, contemplando, além da incumbência de
regular a política urbana da Constituição Federal, a aproximação do cidadão com

natureza e perspectivas uma visão básica das novas conflituosidades jurídicas. São Paulo: Saraiva,
2012. p. 323.
82
SARLET, Ingo Wolfgang. Comentários ao artigo 6º. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes et al.
(Coord.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 1168.
83
MELLO, Cláudio Ari. Elementos para uma Teoria Jurídica do Direito à Cidade. Revista de Direito
da Cidade, Rio de Janeiro. v. 9, n. 2, p. 444, 2017.
84
BRASIL. Lei 7.347 de 24 de julho de 1985. Disciplina a ação civil pública de responsabilidade por
danos causados ao meio-ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético,
histórico, turístico e paisagístico (vetado) e dá outras providências. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7347orig.htm#:~:text=LEI%20No%207.347%2C%20DE%
2024%20DE%20JULHO%20DE%201985.&text=Disciplina%20a%20a%C3%A7%C3%A3o%20civil%20
p%C3%BAblica,VETADO)%20e%20d%C3%A1%20outras%20provid%C3%AAncias. Acesso em: 20
set. 2020.
85
MELLO, op. cit., 2017, p. 444.
Eloísa Assis | 93

a gestão municipal – por intermédio de ferramentas de democracia participativa


– alicerçada na construção de um ideal comum de cidade.
O conteúdo do termo cidade, com a promulgação da Constituição Federal
de 1988, se desloca da acepção meramente sociopolítica, passando a integrar a
dimensão jurídica. Por tal razão, diz-se que passou de temática dentro do campo
da possibilidade para uma reivindicação juridicamente exigível86. Compreende-se,
assim, que o direito à cidade é decorrente do Estado Socioambiental Democrático
de Direito, ou seja, de um Estado democrático, social e garantidor da fruição do
meio ambiente natural e construído equilibrado. Nesse sentido, relevantes as
considerações de Fensterseifer 87 , que identifica um Estado Socioambiental de
Direito ao observar a convergência das agendas social e ambiental num mesmo
projeto jurídico-político que tem a dignidade humana como fundamento
estruturante e a formação de uma sociedade livre, justa e solidária como principal
objetivo.
O direito à cidade é resultado de um processo histórico, político, social,
econômico e jurídico desenvolvido no decorrer do Século XX, marcado pela
passagem do Estado Liberal para o Estado Social. Surge, portanto, como
decorrência da superação da lógica individualista e essencialmente
patrimonialista – característica marcante do Estado Liberal – para uma
concepção do Direito voltada à solidariedade e à garantia de direitos aos
indivíduos. O Estado Socioambiental é produto da compreensão da existência de
direitos de natureza metaindividual que têm a proteção do meio ambiente como
característica mais expressiva.
A cidade, inserida no conceito de Estado Socioambiental Democrático de
Direito, adquire contornos específicos, que se desassemelham de todas as feições
que incorporou no decorrer dos séculos, vez que já não corresponde à ideia de
cidade feudal, assinalada pela completa autonomia econômica e cultural; também
não se vincula à concepção medieval onde aos habitantes das cidades era exigida

86
PRESTES, Vanêsca Buzelato. Dimensão Constitucional do Direito à Cidade no Brasil. Revista
Bimestral Interesse Público, ano 18, n. 99, Belo Horizonte, set./out. 2016, p 17.
87
FENSTERSEIFER, Tiago. Direitos fundamentais e proteção do ambiente: a dimensão ecológica da
dignidade humana no marco jurídico constitucional do estado socioambiental de direito. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 94.
94 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

estrita obediência às ordens do Estado; no mesmo sentido, não atende à acepção


de cidade liberal, na qual predominava o livre (des)equilíbrio das forças do
mercado e também se distancia do conceito de cidade modernista, para a qual o
embelezamento da cidade era preocupação central, ainda que tal diligência
provocasse desigualdade e segregação 88 . A cidade no Estado Socioambiental
Democrático de Direito, no entendimento de Prestes 89, é caracterizada i) pela sua
feição democrática; ii) pelo compromisso com a concretização dos mandamentos
constitucionais, alçando a dignidade da pessoa humana enquanto fio condutor; iii)
pela preocupação com a inserção da sustentabilidade urbano-ambiental na pauta
política municipal; iv) pela exigibilidade inegociável da observância às funções
socioambientais da cidade e da propriedade instituídas no Plano Diretor; v) pelo
respeito e proteção às diferenças, e, portanto, vi) pela sua pluralidade90. O direito à
cidade, nesse diapasão, se traduziria na exigibilidade pelo desfrute de uma cidade
que atende aos reclames do Estado Socioambiental Democrático de Direito.
O direito à cidade encontra suporte filosófico-jurídico na lógica solidarista
da justiça distributiva, compondo o conjunto de direitos de titularidade indefinida,
superando a clássica noção de titularidade individual marcante no Estado Liberal.
Por tal razão, classifica-se o direito à cidade enquanto direito fundamental de
terceira dimensão, considerando sua natureza metaindividual que objetiva
alcançar o bem-estar da sociedade enquanto coletividade. Conforme já salientado
no capítulo anterior, os direitos fundamentais de terceira dimensão surgem a partir
do reconhecimento de que a proteção do meio ambiente é um quesito
imprescindível para o bem-estar dos indivíduos, pois o ser humano, ao mesmo
tempo, constitui-se enquanto obra e construtor do ambiente que o cerca, o qual
lhe proporciona sustento material e lhe oportuniza o desenvolvimento intelectual,
cultural, moral e social91.

88
PRESTES, op. cit., 2016, p. 7.
89
Ibidem.
90
PRESTES, op. cit., 2016.
91
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração de Estocolmo sobre o Meio Ambiente
Humano. In: Anais Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano. Estocolmo, 6p.,
1972.
Eloísa Assis | 95

A ideia de desenvolvimento, durante um longo período, esteve desarticulada


da concepção de proteção ambiental. As práticas econômicas e industriais se
abstinham de considerar a conservação dos recursos naturais, maximizando a
importância da produção e a redução de custos. No correr da década de 1970, fora
constatado que a escassez de recursos naturais era iminente, o que resultou em
reflexões de ordem social, econômica e ambiental. Assim, associado aos
princípios da sustentabilidade, da democracia e da justiça social, o direito à cidade
desponta na Agenda Habitat, na Agenda 21 e na Carta Mundial pelo Direito à
Cidade, transformado em diretrizes que se constituem enquanto compromisso a
ser cumprido pelos Estados.
A Carta Mundial pelo Direito à Cidade foi elaborada no Fórum Social das
Américas, realizado em Quito, no Equador, em 2004, retificado no Fórum Mundial
Urbano de Barcelona, na Espanha, em julho do mesmo ano, e, mais tarde, aprovado
no V Fórum Social Mundial, realizado em Porto Alegre, no Brasil, em 2005. O
documento apresenta o direito à cidade como expressão do direito à dignidade
humana, sendo definido como reflexo do equitativo uso do espaço urbano a partir
dos princípios de sustentabilidade, democracia e justiça social 92 , direcionado a
promover um padrão de vida adequado. Na Carta, o direito à cidade é apresentado
como um direito interdependente a todos os direitos humanos reconhecidos no
âmbito internacional, contemplando direitos civis, políticos, econômicos, sociais,
culturais e ambientais93.
No âmbito constitucional, o direito à cidade decorre do princípio da
dignidade humana, sobretudo em razão de o artigo 182 enunciar a cidade
enquanto lócus onde se garante o bem-estar dos indivíduos, considerando, ainda,
o bem-estar como quesito indispensável para o livre desenvolvimento das
potencialidades dos indivíduos. A partir dessa compreensão, concebe-se o direito
à cidade enquanto direito fundamental – tese razoável considerando a cláusula de
abertura instituída pelo §2º, do artigo 5º, da Constituição Federal de 1988, que

92
FÓRUM SOCIAL MUNDIAL. Carta Mundial pelo Direito à Cidade. 2005. Disponível em:
https://www.suelourbano.org/wp-content/uploads/2017/08/Carta-Mundial-pelo-Direito-
%C3%A0-Cidade.pdf. Acesso em: 19 jan. 2021.
93
FÓRUM SOCIAL MUNDIAL, op. cit., 2005.
96 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

permite a identificação de um direito fundamental fora do catálogo expressamente


enunciado.
O disposto na Constituição é no sentido de que podem ser reconhecidos
direitos fora do catálogo decorrentes do regime e dos princípios adotados pela
Carta Magna. Entende-se que quando a Constituição disse “regime” quis se referir
à forma de associação política, ou seja, à democracia 94, e, quanto aos princípios,
estes seriam os princípios da República Federativa do Brasil explicitados nos
artigos 1º ao 4º, que compõem o Título I da Constituição Federal. No entendimento
de Sarlet, os direitos decorrentes do regime e dos princípios devem apresentar
sintonia com os direitos do catálogo 95 . Os princípios que norteiam o direito à
cidade serão detalhadamente apresentados no capítulo a seguir, contudo,
oportuno adiantar que se argumenta pelo reconhecimento do direito à cidade
enquanto direito fundamental, considerando que está diretamente vinculado à
garantia de dignidade da pessoa humana, sendo que seu conteúdo contempla
direitos sociais do catálogo constitucional, tais como direito à moradia e ao lazer,
que se dirigem à construção de uma sociedade livre, justa e solidária – objetivo
designado no artigo 3º da Constituição Federal.
O conteúdo jurídico do direito à cidade contempla a gestão do território,
abrangendo o meio ambiente natural e o construído, na zona urbana e rural,
atuando como direito fundamental implícito síntese de outros direitos
fundamentais expressos na Constituição, tais como o direito à moradia, à gestão
democrática, à segurança, ao transporte e ao meio ambiente 96. O direito à cidade
se apresenta como um conceito guarda-chuva, como um feixe de direitos
fundamentais direcionado a assegurar a proteção de um dos principais
fundamentos estruturantes do Estado Socioambiental Democrático de Direito: a
dignidade da pessoa humana.
Sendo um direito fundamental, o direito à cidade assume dupla dimensão,
a saber: subjetiva e objetiva. Quanto à dimensão subjetiva, que indica a
exigibilidade do direito pelos titulares em face dos destinatários, considerando se

94
SARLET, op. cit., 2018, p. 87.
95
Ibidem, p. 95.
96
PRESTES, op. cit., 2016, p. 11.
Eloísa Assis | 97

tratar de um direito fundamental de terceira dimensão, tem-se que o direito à


cidade é um direito coletivo, que tem como titulares os cidadãos e como
destinatários os Poderes Públicos federal, estadual e municipal. A dimensão
objetiva revela o direito à cidade como parâmetro de aplicação e interpretação dos
dispositivos infraconstitucionais, impondo um dever geral de efetivação.
Identificada a dimensão constitucional do direito à cidade, válido pontuar
as formas de densificação deste direito, ou seja, as estratégias para conferir sua
concretude. No Brasil, o Estatuto da Cidade é a lei infraconstitucional que densifica
o direito à cidade e institui as diretrizes da política urbana, que atuam “em prol do
bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio
ambiental”97. No Estatuto da Cidade, o direito à cidade é apresentado enquanto
cluster de direitos que compreende “o direito à terra urbana, à moradia, ao
saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços
públicos, ao trabalho e ao lazer para as presentes e futuras gerações” 98. O direito
à cidade, portanto, sintetiza um extenso rol de direitos direcionados para as
presentes e futuras gerações, sendo ele um direito coletivo, de natureza indivisível,
de que são titulares os habitantes das cidades.
A estruturação da política urbana municipal é atribuída ao Plano Diretor, que
reflete uma mudança de paradigma: partindo de um planejamento antes centrado
no tecnicismo e na burocracia para um planejamento urbano participativo,
includente, democrático, atento às desigualdades urbanas e disposto a diligenciar
para superá-las. Apesar de ser concebido como “instrumento básico da política de
desenvolvimento e de expansão urbana”99, nos termos do §1º, do artigo 182, da
Constituição Federal100, o Plano Diretor é obrigatório para cidades com mais de
vinte mil habitantes. O Estatuto da Cidade, por sua vez, amplia a obrigatoriedade
do Plano Diretor, ao determinar a indispensabilidade do instrumento de política
urbana aos municípios integrantes de regiões metropolitanas e aglomerações
urbanas, bem como às áreas de especial interesse turístico ou de influência de

97
BRASIL, op. cit., 2001.
98
Ibidem.
99
BRASIL, op. cit., 1988.
100
Ibidem.
98 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

empreendimentos ou atividades com significativo impacto ambiental, e, ainda, às


áreas suscetíveis à ocorrência de fenômenos naturais de impacto expressivo, para
além das situações em que o poder público municipal pretende utilizar os
mecanismos previstos no §4º, do artigo 182, da Constituição Federal 101, ou seja,
para determinar que o proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou
não utilizado promova seu adequado aproveitamento.
O que se observa é que enquanto à instância federal de governo incumbe
estabelecer as diretrizes e fixar regras para manuseio dos dispositivos
constitucionais que viabilizarão ao poder público municipal gerir o espaço urbano,
aos gestores municipais incumbe o estabelecimento de medidas suficientemente
adequadas para a concretização dos objetivos designados pela Constituição.
Essas medidas, por sua vez, são veiculadas nos Planos Diretores, que, na verdade,
se constituem enquanto elementos-chave para o enfrentamento das mazelas
urbanas.
Reconhecendo que a efetividade dos instrumentos presentes no Estatuto
da Cidade – voltados a ordenar o espaço urbano em prol do bem coletivo, do bem-
estar dos cidadãos e do equilíbrio ambiental – depende da elaboração de Planos
Diretores municipais consistentes, o extinto102 Ministério das Cidades, através do
Conselho das Cidades (órgão colegiado que tinha por objetivo analisar e propor
diretrizes para a estruturação e implementação da Política Nacional de
Desenvolvimento Urbano) elaborou a Resolução nº 34, de 2005103, documento em
que estabelece orientações e recomendações quanto ao conteúdo mínimo do
Plano Diretor, instituindo como um dos conteúdos indispensáveis a previsão de

101
Ibidem.
102
O Ministério das Cidades foi extinto em 2019, pelo Presidente da República, Jair Bolsonaro. Para
as entidades, organizações e movimentos populares, a extinção do Ministério representou o
desmonte de políticas de desenvolvimento urbano em flagrante descompasso com os
compromissos assumidos na Nova Agenda Urbana e na Agenda 2030. As questões referentes ao
desenvolvimento urbano, desde então são contempladas no Ministério do Desenvolvimento
Regional, que abrange temas como: irrigação, segurança hídrica, saneamento, proteção e defesa
civil, habitação, mobilidade e serviços urbanos, desenvolvimento regional, desenvolvimento urbano
e fundos regionais e incentivos fiscais.
103
BRASIL. Ministério das Cidades. Conselho das Cidades. Resolução nº 34 do Conselho das
Cidades, de 1º de julho de 2005. Disponível em:
http://planodiretor.mprs.mp.br/arquivos/resolucao34.pdf. Acesso em 19 jan. 2021.
Eloísa Assis | 99

ações e medidas para assegurar o cumprimento da função social da propriedade


urbana.
Considerando a potencialidade dos Planos Diretores para a materialização
das diretrizes urbanas traçadas na Carta Magna, foi criada a Rede Nacional de
Avaliação e Capacitação para Implementação de Planos Diretores Participativos,
um projeto que avaliou qualitativamente os Planos Diretores de municípios de todo
o Brasil, em parceria com a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), através
do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR), com a
pretensão de contribuir para o debate acerca da implementação do Estatuto da
Cidade nos municípios e da elaboração de estratégias aptas a solucionar os
problemas urbanos.
A elaboração de um Plano Diretor consistente assegura a implantação de
uma adequada política de desenvolvimento urbano. Por esse motivo, a Rede foi
criada com o propósito de avaliar a atuação administrativa dos municípios no
exercício do planejamento urbano para, a partir dos resultados obtidos, direcionar
e estimular os municípios à realização de práticas participativas de gestão e
planejamento urbano, bem como para evidenciar a necessidade de articulação de
políticas urbanas eficazes – que garantam o bem-estar da população – ao efeito
de promover o desenvolvimento urbano sustentável, inclusivo e direcionado à
redução das desigualdades sociais104.
Após realizar uma análise comparativa dos Relatórios de Avaliação dos
Planos Diretores Participativos produzidos durante a pesquisa, o projeto teve seus
resultados divulgados, em 2011, em um livro intitulado “Os Planos Diretores
Municipais Pós-Estatuto da Cidade: Balanço Crítico e Perspectivas” bastante rico
em informações, que, inclusive, foram divididas em temáticas, sendo que se
destaca o capítulo direcionado a examinar as políticas de habitação social

104
É importante assinalar que a pesquisa avaliou 526 Planos Diretores municipais, o que
corresponde a aproximadamente um terço do total de municípios onde recai a obrigatoriedade de
elaboração de Planos Diretores estabelecida pelo Estatuto da Cidade. A seleção dos municípios
que tiveram seus planos analisados obedeceu a três critérios: i) aprovação do plano diretor ter
ocorrido após a promulgação do Estatuto da Cidade; ii) a distribuição populacional dos municípios,
para preservar a diversidade de municípios em relação à tipologia de municípios estabelecida no
Plano Nacional de Habitação (PlanHab); e iii) as escolhas de pesquisadores e representantes das
organizações sociais e das prefeituras municipais discutidas em oficinas realizadas nos
respectivos estados.
100 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

estabelecidas nos Planos Diretores analisados. Os relatórios indicam que, apesar


de identificarem nos Planos Diretores as diretrizes gerais da política urbana
definida pelo Estatuto da Cidade, não se visualiza a elaboração de estratégias para
concretização dessas diretrizes, sendo que se observa que os instrumentos de
gestão e planejamento urbano indicados pelo Estatuto da Cidade foram
incorporados aos Planos Diretores de forma superficial e genérica 105 , o que
inviabiliza a concretização da política urbana idealizada.
A conclusão da análise foi no sentido de que os Planos não são
autoaplicáveis e não obedecem às orientações veiculadas na Resolução nº 34106,
do Conselho das Cidades, vez que o conteúdo mínimo estabelecido na Resolução
não foi respeitado. Assim, percebe-se que, embora o discurso sobre a política
urbana esteja inegavelmente avançando, não se verifica dedicação para definição
de metas e estratégias concretas para efetivar os objetivos veiculados nos
discursos. Em muitos relatórios, a integração das políticas urbanas aparece como
inexistente ou insuficiente, sendo recorrente a indicação de Planos que remetem a
questão habitacional à posterior estruturação de Planos Municipais de Habitação.
Há relatórios que destacam o descaso dos municípios com a problemática
habitacional, sendo abrangentes na definição de objetivos, que, pela ausência de
planos de ações e medidas, apresentam insuficiente efetividade.
Quanto à indicação de estratégias para aumento de oferta de moradias na
cidade por intermédio de intervenção regulatória, urbanística e fiscal, o estudo
aponta que os Planos, em sua maioria, apresentam respostas vagas e
abrangentes. Todavia, há relatórios da análise de alguns municípios dos estados
do Espírito Santo, São Paulo, Mato Grosso, Goiás, Amazonas, Maranhão, Rio
Grande do Norte, Pernambuco, Ceará, Tocantins e Acre que mencionam a

105
SANTOS JÚNIOR, Orlando Alves dos; MONTANDON, Daniel Todtmann (orgs.). Os planos
diretores municipais pós-estatuto da cidade: balanço crítico e perspectivas. Rio de Janeiro: Letra
Capital: Observatório das Cidades: IPPUR/UFRJ, 2011, p. 111.
106
BRASIL. Resolução 34 de 01 de março de 2007. Propõe orientações e diretrizes para a Política
Nacional de Desenvolvimento Urbano e a implementação do programa de Aceleração do
Crescimento – PAC, de forma a alcançar os objetivos e promover crescimento com inclusão
territorial, estimulando a ação federativa e compartilhada entre o Governo Federal, Governos
Estaduais, Distrito Federal e Governos Municipais. Disponível em:
https://www.normasbrasil.com.br/norma/resolucao-34-2007_106490.html. Acesso em: 20 jan.
2021.
Eloísa Assis | 101

existência de algumas estratégias apropriadas, tais como: elaboração de cadastro


da demanda habitacional; destinação de bens dominiais públicos para moradia;
criação de banco de lotes; prestação de assessoria jurídica, técnica, urbanística e
social gratuita aos movimentos sociais; criação de reserva fundiária para
habitação social, entre outras107. Para além dessas estratégias, identifica-se que
a instituição de ZEIS – Zonas Especiais de Interesse Social – é o instrumento mais
utilizado pelos Planos Diretores; contudo, é importante assinalar que são poucos
os Planos que conferem autoaplicabilidade às determinações referentes às ZEIS,
e, para além disso, fora verificado que boa parte das áreas indicadas na localização
das ZEIS situa-se em regiões periféricas e sem infraestrutura adequada 108.
Os relatórios estaduais também indicam a ausência de articulação entre as
diretrizes da política de habitação e os instrumentos do orçamento municipal em
quase a totalidade dos Planos Diretores analisados, não se observando a
obrigatoriedade, por exemplo, de um Programa de Habitação a ser contemplado
no Plano Plurianual, na Lei de Diretrizes Orçamentárias e na Lei Orçamentária
Anual ou até mesmo na definição de prioridades de investimentos no setor
habitacional.
A conclusão da pesquisa é no sentido de que, embora as diretrizes
estabelecidas no Estatuto da Cidade estejam presentes nos Planos Diretores, não
há inovação; os municípios não ultrapassam a linha tracejada pela legislação
federal, não efetuando as determinações necessárias à efetiva aplicação dos
comandos constitucionais densificados no Estatuto da Cidade. A assimetria das
informações constantes dos relatórios de estados tão diferentes que contemplam
tantos outros municípios com diversas realidades dificulta a enunciação de
conclusões precisas. No entanto, é praticamente unânime o reconhecimento
quanto à baixa aplicabilidade das medidas referentes à política habitacional,
sendo que há relatórios apontando a presença de Planos Diretores sem nenhuma
aplicabilidade, vez que não se identifica a definição de prazos, enumeração de
objetivos ou o mapeamento de ações concretas. Contribuem para a falta de
efetividade dos Planos Diretores fatores como a dificuldade de acesso à

107
SANTOS JÚNIOR; MONTANDON, op. cit., 2011, p. 113.
108
Ibidem, pp. 115-116.
102 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

informação, a ausência de equipe técnica especializada na manutenção de


sistemas de informação e cadastros, e a falta de conhecimento quanto à
problemática habitacional e seus principais meios de enfrentamento.
Das conclusões reunidas, merece destaque a questão da definição dos
parâmetros de uso e ocupação do solo consubstanciados na função social da
propriedade, vez que o estudo demonstra que a maioria dos municípios não
estabelece os parâmetros no Plano Diretor, deixando de cumprir o comando
constitucional que determina a responsabilidade do poder público municipal na
atribuição de conteúdo ao princípio da função social da propriedade109. Dentre os
municípios que abordam a questão, não se visualiza dedicação em proporcionar o
acesso ao solo urbanizado para a população de baixa renda. No ponto, os
municípios do estado do Amazonas se destacam, vez que os Planos analisados
demonstram a construção de medidas condizentes com a função social da
propriedade, havendo referência, ainda, à delimitação de terras indígenas 110. Por
fim, mesmo aqueles Planos onde há menção à função social da propriedade,
percebe-se que não há clara definição quanto às implicações da adoção dos
parâmetros da função social da propriedade na gestão do território bem como não
há indicação das ações necessárias para assegurar o cumprimento desse
princípio111.
No livro “Salvador e os descaminhos do Plano Diretor de Desenvolvimento
Urbano: Construindo Novas Possibilidades”, procede-se à uma abordagem crítica
do Plano Diretor da cidade de Salvador, datado de 2016, com o objetivo de
explicitar suas deficiências e distorções, salientando a resistência da sociedade
frente à dita leviana elaboração do Plano Diretor Municipal. De acordo com o
relatado, o Plano Diretor da cidade de Salvador, em seu artigo 286, ao dispor sobre
parcelamento, edificação ou utilização compulsórios, em atendimento à função
social da cidade e da propriedade, determina que o Município poderá exigir do
proprietário de imóvel localizado na Macrozona de Ocupação Urbana, considerado
não edificado, subutilizado ou não utilizado, o adequado aproveitamento do imóvel

109
SANTOS JÚNIOR; MONTANDON, op. cit., 2011, p. 117.
110
Ibidem.
111
Ibidem.
Eloísa Assis | 103

na forma de parcelamento, edificação ou utilização compulsórios, sob pena de,


dentre outras coisas, desapropriação 112 . A redação do artigo mencionado,
contudo, traz preocupação, considerando que, no §5º, do artigo 286 113 , resta
explicitado que os imóveis não edificados, subutilizados ou não utilizados
dependem de identificação e notificação dos proprietários, sem, todavia, fixar
prazo para que esse estudo de identificação seja realizado. Mais. Embora o §3º,
do mesmo artigo mencionado, tenha prescrito que “considera-se subutilizado o
terreno edificado em que a área construída seja inferior ao coeficiente de
aproveitamento mínimo (CAMín) estabelecido para a zona em que se localize” 114,
não houve a elaboração do mapa que demonstrasse as zonas rebatidas e
delimitadas no território municipal; assim, por não se ter conhecimento em que
zona determinado imóvel está, não se pode saber o CAMín aplicável, e, não
sabendo o CAMín aplicável, não há como avaliar se o imóvel está subutilizado ou
não 115 . Não bastasse isso, o Plano Diretor atribuiu à legislação municipal
específica a regulamentação para tornar aplicáveis no território de Salvador os
instrumentos urbanísticos do parcelamento, edificação e utilização compulsórios,
sem sequer estabelecer prazo para tal regulamentação116.
Para compreender a gravidade da ausência de estabelecimento ou da
explanação frágil dos parâmetros da ordenação da cidade condizentes com a
função social da propriedade é necessário, antes de tudo, entender o conteúdo
estruturante deste princípio. Assim, o capítulo subsequente se dedicará a
explicitar os princípios que alicerçam o direito à cidade e racionalizam a sua
legitimação enquanto direito fundamental.

112
PREFEITURA DE SALVADOR. Lei nº 9.069, de 30 de junho de 2016. Dispõe sobre o Plano Diretor
de Desenvolvimento Urbano do Município de Salvador – PDDU 2016 e dá outras providências.
Disponível em: http://www.sucom.ba.gov.br/wp-content/uploads/2016/07/LEI-n.-9.069-PDDU-
2016.pdf. Acesso em: 22 fev. 2021.
113
PREFEITURA DE SALVADOR, op. cit., 2016.
114
Ibidem.
115
GOMES, Hortênsia; SERRA, Ordep; NUNES, Débora (Org.). Salvador e os descaminhos do plano
diretor de desenvolvimento urbano – construindo novas possibilidades. Salvador: EDUFBA, 2019.
Disponível em: https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/30600/1/salvador-e-os-descaminhos-
do-PDDU-RI-.pdf. Acesso em: 22 fev. 2021.
116
Ibidem.
3. O DIREITO À CIDADE E SEUS PRINCÍPIOS ESTRUTURANTES –
QUE EVIDENCIAM A EXTENSÃO DO SEU CONTEÚDO

A estruturação da relevância da moradia para os indivíduos abrange


componentes políticos, econômicos, sociais e culturais; contudo, não se pode
desconsiderar a contribuição jurídica, embora se reconheça que a simples
afirmativa jurídico-formal está longe de significar a efetividade dos direitos na
realidade social. Integrado à concepção de moradia adequada desponta o direito
à cidade, que visa incorporar às políticas públicas habitacionais estratégias
urbanísticas. A promulgação da Constituição Federal de 1988 é indício dessa
integração, eis que apresenta, dentre as diretrizes da política urbana, conceitos
como usucapião urbana para fins de moradia e função social da propriedade.
No que se refere à função social da propriedade, observa-se que a
Constituição Federal atribuiu ao Plano Diretor a tarefa de definir o conteúdo de tal
princípio, todavia, conforme demonstrado no capítulo anterior, identifica-se o
descumprimento do citado comando constitucional. Ao efeito de compreender
propriamente as consequências da inobservância da determinação constitucional
pela conceituação do princípio da função social da propriedade, oportuno que se
proceda à explicitação dos princípios que orientam a aplicação do direito à cidade,
a fim de decifrar a extensão do seu conteúdo.

3.1 OS PRINCÍPIOS ESTRUTURANTES E ORIENTADORES DO DIREITO À CIDADE

O aumento da população, o desenvolvimento econômico e as maiores


condições de trabalho dentro do contexto urbano amplificaram a necessidade de
um maior número de moradias, alavancando o crescimento das cidades. Trata-se
de uma relação simbiótica, pois, à medida que as cidades crescem, demandam-se
mais unidades habitacionais, sendo que o aumento de unidades habitacionais, por
sua vez, contribui para o crescimento das cidades. No entanto, o que se observa é
que a grande maioria das moradias no Brasil não atendem às exigências básicas
tanto no que concerne à infraestrutura interna quanto externa. Contribuem para o
cenário deficitário da questão habitacional, no Brasil, a má distribuição de renda, a
106 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

especulação imobiliária e a inexistência de uma reforma agrária eficaz 1 . Em


verdade, são de grande magnitude os obstáculos a serem transpostos no que diz
respeito à estruturação de estratégias para alcançar uma cidade socialmente justa
e democrática no que diz respeito ao acesso universal aos bens e serviços2.
Assim sendo, necessário se faz o desenvolvimento de cidades pautadas na
valorização do uso comum do espaço urbano, relegando a um patamar secundário
o valor de troca3. Nesse rumo, a reivindicação pelo direito à cidade se sobreleva
enquanto pauta de significativa relevância nos movimentos sociais nacionais e
internacionais. No cenário brasileiro, trata-se de uma temática que se tem
revertido em inúmeros debates desde a preparação da Emenda Popular para a
Reforma Urbana para o Congresso Constituinte em 19884.
O direito à cidade, segundo a Carta Mundial pelo Direito à Cidade 5, orienta-
se pelos princípios da sustentabilidade, democracia, equidade e justiça social.
Embora não se desconsidere os princípios elencados pela Carta Mundial, fato é
que também se demonstra plausível a vinculação do direito à cidade a outros
princípios, tais como: dignidade da pessoa humana, e funções sociais da
propriedade e da cidade, sem o prejuízo do reconhecimento da conexão a outros
princípios do Estado Socioambiental Democrático de Direito. Convém consignar
que se adota a distinção teórico-normativa entre regras e princípios em que esses
últimos são concebidos como mandados de otimização; ou seja, como tais, os
princípios exigem que determinada tarefa seja realizada na maior medida possível,
dado o contexto fático-jurídico6.
Adianta-se que não há pretensão de reconstruir com riqueza de detalhes a
trajetória filosófico-jurídica de cada um dos princípios que orientam o direito à
cidade, vez que dar-se-á destaque às concepções relevantes para a atual feição

1
COSTA, Beatriz S.; VENÂNCIO, Stephanie R.. A função social da cidade e o direito à moradia digna
como pressupostos do desenvolvimento urbano sustentável. Revista Direito Ambiental e
sociedade, v. 6, n. 2, p. 106-136, 2016.
2
RODRIGUES, Arlete Moysés. Estatuto da Cidade: função social da cidade e da propriedade. Alguns
aspectos sobre população urbana e espaço. Cadernos Metrópole, n. 12, p 9-25, 2004.
3
LEFEBVRE, op. cit., 2001, p. 118.
4
Ibidem.
5
FÓRUM SOCIAL MUNDIAL, op. cit., 2005.
6
ALEXY, Robert. A Theory of Constitutional Rights. Julian Rivers (trad.). Oxford: Oxford University
Press, 2002, p. 47.
Eloísa Assis | 107

do conteúdo dos princípios analisados bem como para a construção da


abordagem situada no contexto urbano que se faz. Para facilitar a compreensão,
tais comandos de otimização serão apresentados nos subtópicos que seguem.

3.1.1 Princípio da Dignidade da Pessoa Humana

A dignidade da pessoa humana – seja ela compreendida enquanto


fundamentada em leis divinas ou concebida como produto de embates políticos e
sociais, ou, ainda, baseada em qualquer outra posição que se pretenda defender –
não despontou no pensamento filosófico-jurídico enquanto um conceito
hermético, pelo contrário, os eventos sociopolíticos exerceram forte influência em
seu processo de formulação. Reforçando que não se pretende apresentar a
totalidade dos pensadores que contribuíram para a atual conformação desse
princípio, salienta-se o destaque conferido àqueles que figuram como teóricos
inequivocamente relevantes para a definição do conceito de dignidade da pessoa
humana.
De acordo com o artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal de 19887, a
dignidade da pessoa humana se constitui enquanto fundamento do Estado
Democrático de Direito. Embora explicitamente demarcada a elementaridade da
dignidade humana, fato é que ainda se encontra dificuldade em definir o que vem
a ser dignidade – e, apesar de ser um problema teórico, por óbvio, reflete efeitos
na aplicação desse princípio. Conquanto não existam dados precisos para
confirmar indubitavelmente a veracidade desta compreensão, há indícios de que a
noção de atribuição de um valor intrínseco ao ser humano encontra raiz na
doutrina judaico-cristã, sobretudo quando se verifica que o ser humano, segundo
a Bíblia, é concebido enquanto ser à imagem e semelhança de Deus 8 –
compreensão essa que passou por mudanças estruturais ao longo dos séculos.

7
BRASIL, op. cit., 1988.
8
A compreensão do significado de ser à imagem e semelhança de Deus passou por diversos
momentos de desenvolvimento de sua conceituação, nos quais a noção de atribuição de dignidade
ao ser humano adquiriu estruturas diferenciadas. Pode-se visualizar as concepções do homem
digno enquanto i) objeto; ii) sujeito; e c) ser intersubjetivo. A noção do ser humano enquanto objeto
corresponde aos pensamentos antigo e medieval a partir dos quais o homem, apesar de ter sido
formado à imagem e semelhança de Deus, é dotado de falibilidade, sendo que seus erros
precisavam ser corrigidos. Essa acepção do homem enquanto objeto talvez explique o motivo pelo
108 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

Peter Häberle questiona se existe um núcleo independente da dignidade


humana que destaque seu conceito nuclear do âmbito cultural 9 . Com efeito, a
concepção de dignidade adquire contornos seculares, afastando-se da lógica
cristã, com os filósofos do Iluminismo, sobretudo com Immanuel Kant e a
explicitação da natureza racional do homem, sua autonomia e a proibição de sua
instrumentalização10. A ideia de universalização dos direitos e deveres humanos e
a noção igualitária de dignidade dos indivíduos foram marcantemente
influenciados pelo pensamento iluminista, embora não se possa desconsiderar a
contribuição da burguesia – que à época já se tornara hegemônica – eis que a
universalização de direitos, ao promover a decomposição das hierarquias pré-
modernas e das organizações estamentais, lhes garantia a segurança necessária
para sedimentar seu papel de protagonismo no contexto político-social11.
A compreensão contemporânea da dignidade humana se volta à plena
universalização de direitos, sendo válido assinalar que esse processo de
universalização não ocorreu de maneira homogênea e linear, desempenhando
performances distintas nas combinações espaço-temporais. A dignidade da
pessoa humana, atualmente, se vincula à teoria dos direitos humanos e
fundamentais 12 e se relaciona com a noção jusnaturalista – desenvolvida
sobretudo no século XVIII – que enuncia a ideia de que o homem, tão somente em
virtude de sua condição humana, e independentemente de qualquer circunstância

qual a Santa Inquisição tenha praticado tamanhas crueldades para corrigir a falibilidade humana.
A abordagem do ser humano enquanto sujeito repousa no entendimento do homem enquanto
indivíduo dotado de autonomia; tal concepção se inicia da modernidade, sobretudo a partir da
Reforma Protestante. A subjetividade do homem conduziu ao reconhecimento quanto à proibição
de instrumentalização do ser humano, ou seja, que os indivíduos não poderiam ser considerados
meios para atingir determinado fim. A problemática da abordagem do homem enquanto sujeito
repousa na constatação de potencialização dos egos e na degradação da natureza fundamentada
numa suposta necessidade humana. A abordagem intersubjetiva da dignidade destaca o homem
enquanto sujeito que compõe uma coletividade formada por outros sujeitos e objetos – seres
humanos, animais e meio ambiente.
9
HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional. Héctor Fix-Fierro (trad.). México: Universidad Nacional
Autónoma de México, 2003, p. 169.
10
SARLET, Ingo. Dignidade (da pessoa) humana e direitos fundamentais na Constituição Federal
de 1988. 10. Ed. rev. atual. e ampl. 3. tir. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2019, p. 39.
11
SARMENTO, Daniel. Dignidade da Pessoa Humana: conteúdo, trajetórias e metodologia. Belo
Horizonte: Fórum, 2016, p. 36.
12
SARLET, op. cit., 2019, p. 27-8.
Eloísa Assis | 109

exterior, é titular de direitos que devem ser reconhecidos e observados pelos seus
semelhantes e pelo Estado13.
A dignidade é concebida como qualidade inerente e irrenunciável da
condição humana14, motivo pelo qual não deve ser entendida enquanto atributo
que pode ser concedido ou retirado – embora se reconheça que pode ser violado
– de sorte que a extensão do seu conteúdo deve ser reconhecida, respeitada,
protegida e promovida15. Reforçando esse entendimento despontam a Carta das
Nações Unidas16, de 1945, e a Declaração Universal dos Direitos Humanos17, de
1948, da ONU18, que proclamam os seres humanos enquanto indivíduos livres e
iguais em dignidade e direitos. O preâmbulo da Declaração já explicitava a
dignidade como atributo inerente a todos os seres humanos, indicando, ainda, a
inalienabilidade dos direitos como fundamento da liberdade, da justiça e da paz no
mundo.
Sarlet assenta sua definição de dignidade da pessoa humana como sendo
a qualidade intrínseca a cada ser humano, que o faz merecedor de respeito e
consideração pelos seus semelhantes e pelo Estado, e da qual decorrem direitos e
deveres fundamentais que se direcionam a proteger os indivíduos contra atos
degradantes ou desumanos e a garantir condições mínimas para uma vida
saudável (ou, segundo os ensinamentos de Juarez Freitas, uma vida
multidimensionalmente sustentável), para além da promoção da participação
ativa que confira corresponsabilidade quanto aos destinos da própria existência e
da vida em comunidade, tudo isso mediante o respeito aos demais seres que
integram o sistema da vida19. Para Cármen Lúcia Antunes Rocha, a dignidade da

13
Ibidem, p. 47.
14
Ibidem, p, 51.
15
Ibidem.
16
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, Carta das Nações Unidas. 1945. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1930-1949/D19841.htm. Acesso em: 15 fev. 2021. A
Carta das Nações Unidas foi promulgada pelo Brasil em 22 de outubro de 1945.
17
Em verdade, o termo dignidade foi mencionado – em seu plural dignidades – na Declaração Dos
Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, contudo, conforme alerta Cármen Lúcia Antunes Rocha,
não possuía a mesma acepção que a explicitada na Declaração Universal dos Direitos Humanos,
motivo pelo qual destaca-se esse último documento.
18
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, op. cit., 1948.
19
SARLET, op. cit., 2019, p. 77.
110 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

pessoa humana é princípio-matriz do direito contemporâneo 20 cuja formulação


jurídica adquiriu os contornos que detém atualmente em razão da perplexidade da
comunidade internacional com as crueldades perpetradas pelo governo nazista
durante a Segunda Guerra Mundial 21 . A noção jurídica da dignidade humana
desponta em resposta ao período de negação de direitos, como – na visão da
ministra Cármen Lúcia – um anticorpo jurídico capaz de aniquilar a praga da
degradação humana 22 . Para a ministra, o conteúdo da dignidade da pessoa
humana contempla todas as dimensões existenciais dos indivíduos, demarcando
sua inviolabilidade, que ultrapassa a acepção meramente física23.
Nesse contexto, à dignidade da pessoa humana é atribuída a posição de
valor supremo e fundamental, sendo compreendida como “princípio fundante dos
direitos fundamentais e da própria ordem política” 24. Assim, a dignidade da pessoa
humana figura enquanto patrimônio jurídico-moral que contribuiu para a
reconstrução do conceito de democracia, que fora fortemente abalado pelas
condutas autoritárias ocorridas em meados do século XX 25. E, em razão de sua
contribuição para o reestabelecimento das noções de democracia na
contemporaneidade, a dignidade da pessoa humana foi alçada à posição de
superprincípio constitucional 26 , a partir do qual todas as escolhas políticas
próprias do Estado Democrático de Direito – ou melhor, do Estado Socioambiental
Democrático de Direito – buscam fundamento 27 . Daí porque se fala que sem
dignidade não há democracia28. E, mais do que isso, para Fábio Konder Comparato,
a dignidade da pessoa humana é a finalidade-matriz, a razão que justifica todo o
sistema jurídico29.

20
ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e a Exclusão Social.
Jurisprudência Catarinense, Florianópolis, v. 35, n. 117, abr./jun., 2009, p. 79.
21
Ibidem.
22
Ibidem.
23
Ibidem, p. 80.
24
Ibidem, p. 82.
25
Ibidem, p. 83.
26
Ibidem, p. 85.
27
Ibidem, p. 85.
28
Ibidem, p. 91.
29
COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 12. ed. São Paulo:
Saraiva Educação, 2019, p. 77.
Eloísa Assis | 111

O assentamento da dignidade da pessoa humana enquanto fundamento da


República Federativa do Brasil se traduz na vinculação de todas as ações e
políticas públicas promovidas pelo Estado, que, a partir de então, restam obrigadas
a respeitar, proteger e promover a incontornável e indissociável dignidade dos
cidadãos. Nesse rumo, o regime democrático deve se voltar à realização de
políticas públicas que concretizem e assegurem a fruição da dignidade. Todavia,
em que pese a presença do superprincípio da dignidade da pessoa humana no
ordenamento jurídico brasileiro, as práticas sociais e estatais, por vezes,
conservam e reproduzem, de forma sutil ou explícita, as hierarquias sociais, sejam
elas materiais ou simbólicas30, de forma que a desigualdade multidimensional é
uma realidade brasileira.
Não se está a desconsiderar os avanços políticos, sociais e jurídicos no que
se refere à concretização da dignidade da pessoa humana, contudo, a manifesta
assimetria verificada no tecido social indica a existência de um longo caminho a
ser percorrido, de sorte que a lógica classista forjada no nosso passado
escravocrata seja superada 31 – o que se constitui enquanto trabalho árduo,
considerando que a desigualdade social no Brasil é fortemente naturalizada.
Com efeito, ao lado do princípio da dignidade humana despontou, mais
recentemente, o conceito de mínimo existencial. Sarmento aponta que a
elaboração jurídica do direito ao mínimo existencial fora realizada por um
brasileiro: Pontes de Miranda, que já em 1933 anunciou a existência de um direito
subjetivo à subsistência que ele denominou “mínimo vital”32. É relevante salientar
que dentre os direitos compreendidos no âmbito do mínimo vital, Pontes de
33
Miranda alocou o direito à habitação . Contudo, a comunidade jurídica
internacional atribui a Otto Bachof a formulação do conceito de um direito ao

30
SARMENTO, op. cit., 2016, p. 41.
31
No ponto, Jessé Souza entende que a dinâmica social que performamos atualmente tem sua
gênese na escravidão. Para o sociólogo, “nossa forma de família, de economia, de política e de
justiça foi toda baseada na escravidão”, de forma que a atual divisão de classes sociais repete os
padrões forjados durante o período escravocrata – de superexploração de populações já
fragilizadas, que, embora compostas por indivíduos de todas as cores, são majoritariamente
negros e mestiços. SOUZA, Jessé. A Elite do Atraso: Da escravidão à lava jato. Rio de Janeiro: Leya,
2017, p. 28.
32
SARMENTO, op. cit., 2016, p. 191.
33
PONTES DE MIRANDA. Direitos à subsistência e direito ao trabalho. Rio de Janeiro: Alba Limitada,
1933, p. 28.
112 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

mínimo existencial, que decorre do princípio da dignidade humana e dos direitos


fundamentais34.
À teoria do mínimo existencial, no entanto, dirigem-se severas críticas. No
ponto, Potyara Pereira entende o conceito de mínimo existencial como decorrência
das sociedades estratificadas em classes, sejam elas escravistas, feudais ou
capitalistas, que em nada contribui para a erradicação da pobreza extrema, mas,
sim, confere respostas isoladas e emergenciais, quando, considerando que o
problema da miserabilidade é estrutural, se esperam respostas mais contundentes
e que efetivamente transformem o status quo35.
Em defesa do valor do direito ao mínimo existencial, Daniel Sarmento
sinaliza que o conceito não se limita à provisão de condições mínimas para a
sobrevivência física, mas, sim, diz respeito ao alcance das condições necessárias
para uma vida digna, que além de abranger direitos que tutelam a vida, acolhem
também os direitos que garantem uma digna convivência em comunidade, motivo
pelo qual já se fala, inclusive, em mínimo existencial sociocultural 36. É justamente
nesse ponto que se compreende o direito à cidade enquanto produto de uma lógica
jurídico-política voltada à garantia de dignidade aos indivíduos, como conteúdo
integrante do chamado mínimo sociocultural, motivo pelo qual se entende que a
dignidade da pessoa humana orienta a aplicação do direito à cidade, sendo que a
concretização desse direito, por sua vez, assegura o cumprimento do
mandamento constitucional de proteção e promoção da dignidade de todos os
seres humanos que habitam as cidades.

3.1.2 Princípio da Sustentabilidade

A sustentabilidade é temática bastante presente nos discursos e debates


atuais, no entanto, pouco se sabe da sua composição além de suas feições
ambientalista ou desenvolvimentista. O tema se vincula inequivocamente às
questões ambientais sobretudo no que se refere à preservação dos recursos

34
SARMENTO, op. cit., p. 191-2.
35
PEREIRA, Potyara A. P. Necessidades humanas: subsídios à crítica dos mínimos sociais. São
Paulo: Cortez, 2020.
36
SARMENTO, op. cit., 2016, p. 210.
Eloísa Assis | 113

naturais como estratégia para garantir um meio ambiente equilibrado para as


presentes e futuras gerações; e, a partir da perspectiva desenvolvimentista, a
sustentabilidade visa atender, concomitantemente, o direito à livre iniciativa e o
direito ao meio ambiente equilibrado. Conquanto a sustentabilidade contemple a
problemática ambiental e o anseio desenvolvimentista, tais perspectivas se
perfazem somente enquanto alicerces da sustentabilidade, cujo significado é mais
amplo.
Sustentabilidade é, concomitantemente, simples e complexa 37; isso porque,
ao mesmo tempo em que o senso comum consegue avaliar se algo é sustentável
ou não a partir de critérios sedimentados no imaginário social, a sustentabilidade
é um conceito orientado por valores e princípios éticos que conferem
complexidade à temática 38 . Klaus Bosselmann concebe a sustentabilidade
enquanto conceito que se vincula à ideia de justiça, advertindo que uma conduta
sustentável visa garantir que as atuais gerações não vivam às custas das
gerações futuras e do ambiente natural, proporcionando, assim, equidade
intragerações e justiça intergeracional39.
Em que pese a existência de políticas orientadas pela sustentabilidade a
partir do final do século XIV40 – em flagrante resposta à crise desencadeada pelo
desenfreado desenvolvimento agrícola, seguido pelo grande período de fome e
pela devastadora pandemia da Peste Negra, que dizimou milhões de pessoas41 –
fato é que se reconhece que o tema da sustentabilidade foi formalmente
introduzido no cenário internacional apenas na década de 1980. No entendimento
de Klaus Bosselmann, a Europa apresenta uma consideração pela temática da
sustentabilidade desde os tempos medievais, sendo que tal ideia fora suplantada

37
BOSSELMANN, Klaus. O Princípio da Sustentabilidade: transformando direito e governança
Tradução de Philip Gil França. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 25.
38
Ibidem.
39
BOSSELMANN, op. cit., 2015, p. 28.
40
Para Bosselmann, embora as práticas sustentáveis fossem incentivadas desde o século XIV, o
termo sustentabilidade apenas foi formulado durante o Iluminismo, pelo engenheiro e cientista
florestal Hans Carl Von Carlowitz, diante de uma nova experiência de crise ecológica resultante do
desenfreado aumento da demanda econômica. BOSSELMANN, op. cit., 2015, p. 36.
41
Ibidem, p. 31
114 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

com o advento da industrialização, de forma que o Relatório Brundtland 42 –


formulado em 1987 pela Comissão Mundial de Meio Ambiente e Desenvolvimento
e assim nomeado em razão de que a Comissão era presidida à época pela então
Primeira-Ministra da Noruega, Gro Harlem Brundtland – representa o resgate das
ideias desenvolvidas no século XIV43.
As reflexões veiculadas no Relatório Brundtland – também denominado
Relatório Nosso Futuro Comum – resumiam a sustentabilidade numa tríade de
elementos básicos, a saber: i) o desenvolvimento; ii) que se volta às necessidades
das gerações atuais; iii) sem comprometer a dignidade das gerações futuras 44,
motivo pelo qual Bosselmann entende que, ao apresentar a sustentabilidade
reduzida ao conceito de desenvolvimento sustentável, o Relatório Brundtland
obscureceu o real e amplo significado de sustentabilidade45. Válido assinalar que,
embora não tenham enunciado explicitamente o termo sustentabilidade, a
Declaração de Estocolmo, de 197246, e a Carta Mundial para a Natureza, de 198247,
representam o despontar das questões ambientais na agenda da comunidade
internacional – compromisso reafirmado de forma explícita na Declaração do Rio
sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, de 199248, na Agenda 21, de 199249, na
50
Carta da Terra, de 2000 , e na Declaração de Johanesburgo sobre
Desenvolvimento Sustentável, de 200251.

42
UNITED NATIONS. World Commission on Environment and Development. Our Common Future.
1987. Disponível em: https://ambiente.files.wordpress.com/2011/03/brundtland-report-our-
common-future.pdf. Acesso em 11 fev. 2021.
43
BOSSELMANN, op. cit., 2015, p. 34.
44
FREITAS, Juarez. Sustentabilidade: Direito ao Futuro. 4. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 44.
45
BOSSELMANN, op. cit., 2015, p. 45.
46
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, op. cit., 1972.
47
UNITED NATIONS. World Charter for Nature. 1982. Disponível em: https://www.dh-
cii.eu/0_content/investigao/files_CRDTLA/convencoes_tratados_etc/carta_mundial_da_natureza_
de_28_de_outubro_de_1982.pdf. Acesso em 08 fev. 2021.
48
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento – ECO-92. Rio de Janeiro, 1992. Disponível em:
https://www.scielo.br/pdf/ea/v6n15/v6n15a13.pdf. Acesso em: 12 fev. 2021.
49
Idem – Agenda 21. Rio de Janeiro, 1992. Disponível em:
http://www.ecologiaintegral.org.br/Agenda21.pdf. Acesso em: 12 fev. 2021.
50
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E CULTURA. Carta da Terra.
Paris, 2000. Disponível em:
https://leonardoboff.files.wordpress.com/2020/05/folder_carta_da_terra.pdf. Acesso: 12 fev.
2021.
51
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração de Johanesburgo sobre Desenvolvimento
Sustentável. Johanesburgo, 2002. Disponível em: https://cetesb.sp.gov.br/proclima/wp-
content/uploads/sites/36/2013/12/decpol.pdf. Acesso em: 13 fev. 2021.
Eloísa Assis | 115

A inclusão da pauta ambiental na agenda internacional visava elucidar que


os objetivos econômicos e ambientais eram indissociáveis e deveriam ser
articulados de maneira equânime. Vinculada ao equilíbrio entre as necessidades
das presentes gerações e a viabilidade de dignidade às gerações futuras, a
sustentabilidade emerge como um princípio. Todavia, apesar de compreender tal
abordagem antropocêntrica da sustentabilidade, Bosselmann julga prejudicial
basear o desenvolvimento sustentável em especulações sobre o futuro e as
necessidades de uma futura geração, desconsiderando as necessidades dos não-
humanos52.
Conforme enuncia Juarez Freitas, a sustentabilidade é “princípio
constitucional que determina, com eficácia direta e imediata, a responsabilidade
do Estado e da sociedade pela concretização solidária do desenvolvimento
material e imaterial, socialmente inclusivo, durável e equânime, ambientalmente
53
limpo, inovador, ético e eficiente” que se direciona a “assegurar,
preferencialmente de modo preventivo e precavido, no presente e no futuro, o
54
direito ao bem-estar” . Do conceito proferido por Freitas extraem-se os
elementos nucleares do conceito de sustentabilidade, a saber, i) sua natureza
enquanto princípio constitucional imediatamente aplicável; ii) a responsabilidade
do Estado e da sociedade pela sua efetivação; iii) o objetivo de proporcionar bem-
estar multidimensional; iv) a solidariedade intergeracional, eis que o bem-estar
que se prospecta deve atender às presentes e futuras gerações; v) o dever de evitar
danos certos; vi) o dever de evitar danos prováveis; vii) a promoção do meio
ambiente, limpo, equilibrado e saudável; viii) a eficiência; ix) a eficácia; x) a
dimensão ética55, e, ousando complementar a assimilação consignada pelo autor,
adiciona-se o décimo primeiro elemento: xi) a inclusão social, expressão do direito
à igualdade e do direito à diferença, com a função de erradicar discriminações
negativas de gênero, raça, sexualidade etc.
A sustentabilidade, portanto, é dever fundamental que objetiva o bem-estar
intergeracional e se dirige ao incentivo do desenvolvimento sustentável,

52
BOSSELMANN, op. cit., 2015, pp. 53-4.
53
FREITAS, op. cit., 2019, p. 39.
54
Ibidem.
55
Ibidem.
116 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

contemplando componentes éticos, ambientais, jurídicos, políticos, sociais e


econômicos, ao efeito de garantir o direito ao futuro 56 . O desenvolvimento dito
sustentável, portanto, não possui apenas cunho econômico, mas abrange também
questões éticas, ambientais, jurídicas, políticas e sociais, sendo que o bem-estar
ao qual se direciona a sustentabilidade corresponde ao bem-estar considerado em
sua multidimensionalidade, albergando os aspectos físico e psíquico, inclusive.
Adverte-se que quando se fala em desenvolvimento sustentável, o
substantivo desenvolvimento sempre é qualificado pela sustentabilidade e nunca
o contrário, isso porque a sustentabilidade não deve servir aos interesses e
anseios desenvolvimentistas, mas, sim, o desenvolvimento, que, para ser
condizente com o Estado Socioambiental Democrático de Direito, deve observar
os parâmetros de sustentabilidade. Nesse sentido, entende-se que a
sustentabilidade é “qualificação insuprimível do desenvolvimento” 57 , o que
direciona ao entendimento de que o desenvolvimento suscitado no texto
constitucional – em seu preâmbulo e nos artigos 170, inciso VI, e 225 – é o
desenvolvimento que se condiciona à sustentabilidade, sendo que qualquer outra
acepção de desenvolvimento teria feição inconstitucional58.
A noção clássica da sustentabilidade a concebe em suas perspectivas
social, ambiental e econômica. Juarez Freitas, a seu turno, compreende que, em
razão do bem-estar ser multidimensional, a sustentabilidade também o é,
abrangendo as dimensões ética e jurídico-política ao seu espectro conceitual59. A
dimensão social da sustentabilidade reclama a perseguição de um
desenvolvimento inclusivo, justo, solidário e equânime, que rechaça todas as
formas de discriminação negativas e se volta à universalização do acesso aos
bens e serviços essenciais, ao efeito de viabilizar o desenvolvimento das
potencialidades humanas 60 . A dimensão ambiental, por sua vez, se relaciona
diretamente com a garantia de um meio ecologicamente equilibrado para as atuais
e subsequentes gerações, onde se reforça que inexiste longevidade digna em um

56
FREITAS, op. cit., 2019, p. 46-7.
57
Ibidem, p. 45.
58
Ibidem.
59
Ibidem, p. 74.
60
Ibidem, p. 75.
Eloísa Assis | 117

meio ambiente deteriorado61. A feição econômica da sustentabilidade demanda


adequada ponderação entre eficiência e equidade na observância dos custos e
benefícios, para garantir que a economicidade enunciada na Constituição, em seus
artigos 70 e 170, IV, prevaleça e proporcione um desenvolvimento sustentável. As
dimensões social, ambiental e econômica compõem a tríade sob a qual se
estruturava o conceito de clássico de sustentabilidade. Em razão dos
ensinamentos de Freitas, somam-se a elas as dimensões ética e jurídico-política.
A abordagem ética da sustentabilidade contempla a dignidade dos seres
vivos, superando o antropocentrismo estrito e exigindo a universalização do bem-
estar social, ambiental e psíquico62. À dimensão jurídico-política incumbe a tutela
dos direitos que garantem um futuro digno, sendo eles: i) o direito à longevidade
digna, o que abrange, por exemplo, a disponibilização de consulta médica em
tempo razoável; ii) o direito à alimentação saudável; iii) o direito ao ambiente limpo
e marcado pela presença de energias renováveis; iv) o direito à educação de
qualidade; v) o direito à democracia e ao exercício da cidadania; vi) o direito à
informação, o que demanda viabilização de acesso universal à internet; vii) o
direito ao processo judicial e administrativo com conclusão tempestiva; viii) o
direito à segurança; ix) o direito à adequada e decente remuneração oriunda do
trabalho; x) o direito à boa administração pública, direcionada a proporcionar o
bem-estar multidimensional dos indivíduos; e xi) o direito à moradia digna63, sendo
que se adiciona ao rol dos direitos elencados por Freitas o direito à cidade, que,
inclusive, já estava representado pelos direitos que se abrigam em seu conceito
guarda-chuva, a saber: direito à democracia e direito à moradia.
A adequação em adicionar o direito à cidade no âmbito dos direitos
tutelados pela dimensão jurídico-política da sustentabilidade se justifica
sobretudo a partir da promulgação do Estatuto da Cidade, que estabelece o direito
a cidades sustentáveis – direito esse que exige a garantia de condições dignas no
espaço urbano para a coletividade. No Estatuto da Cidade, o direito a cidades
sustentáveis aparece como diretriz geral para execução da política urbana,

61
Ibidem, p. 82.
62
FREITAS, op. cit., 2019, p. 80.
63
Ibidem, pp. 85-86.
118 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

englobando questões referentes ao “direito à terra urbana, à moradia, ao


saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços
públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações” 64. Assim, a
sustentabilidade, além de despontar como qualificadora do direito à cidade, é
erguida ao status de princípio norteador do direito à cidade, a teor do que enuncia
a Carta Mundial pelo Direito à Cidade65. Corroborando a conveniente vinculação do
direito à cidade ao conceito de sustentabilidade, sobreleva-se a Agenda 203066,
que, dentre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, enuncia o propósito de
tornar as cidades locais inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis.
Conforme assevera Gabriel Wedy, os Objetivos de Desenvolvimento
Sustentável (ODS), devido à sua natureza global, concebidos enquanto fonte do
direito internacional, precisam dialogar com o ordenamento jurídico brasileiro em
suas dimensões constitucional e infraconstitucional – nacional, regional e local67.
No entendimento do autor, os ODS preenchem o conceito de desenvolvimento
consignado na Constituição Federal, motivo pelo qual não podem ser
desconsiderados ou ignorados68. Para Wedy, o direito ao desenvolvimento é parte
integrante do catálogo dos direitos humanos, sendo, portanto, direito
imprescritível, inderrogável e indissociável dos indivíduos, recaindo aos Estados a
responsabilidade por sua proteção, promoção e garantia, especialmente quando
se reconhece que o direito fundamental ao desenvolvimento sustentável está
intrinsecamente vinculado ao princípio da dignidade da pessoa humana 69.
No mesmo sentido, Sarlet e Fensterseifer entendem que a noção de
desenvolvimento sustentável, inserida no âmbito do Estado Socioambiental
Democrático de Direito, formata direitos fundamentais socioambientais que se
direcionam à redução das assimetrias sociais, motivo pelo qual sinalizam a

64
BRASIL, op. cit., 2001.
65
FÓRUM SOCIAL MUNDIAL, op. cit., 2005.
66
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, op. cit., 2015.
67
WEDY, Gabriel. Marcos Recentes do Desenvolvimento Sustentável. In: RODRIGUES, Nina;
SPAREMBERGER, Raquel; CALGARO, Cleide (Org.). Direito Constitucional Ecológico. Porto Alegre:
Editora Fi, 2017.
68
Ibidem.
69
WEDY, Gabriel. Desenvolvimento sustentável como direito fundamental e o princípio da
dignidade da pessoa humana. Direitos Fundamentais & Justiça. Belo Horizonte, ano 12, n. 38, p.
195-224, jan./jun. 2018.
Eloísa Assis | 119

necessidade de observância às dimensões social e ecológica da dignidade da


pessoa humana 70 . Para os autores, no Estado Socioambiental Democrático de
Direito, ante a sobrelevação dos novos riscos ambientais e da insegurança
produzida pela introdução da tecnologia no cotidiano da sociedade
contemporânea, ao conteúdo da dignidade humana deve ser anexada a proteção
da vida humana com qualidade ambiental, contemplando a lição de Canotilho no
sentido de que o Estado de Direito contemporâneo contempla, dentre suas
dimensões fundamentais, a sustentabilidade71.
A sustentabilidade, enquanto princípio que preenche o conteúdo do direito
à cidade e orienta sua aplicação, direciona a política urbana à perseguição da
garantia do bem-estar multidimensional no que se refere à efetivação dos direitos
interdependentes que se inserem no conceito guarda-chuva de direito à cidade.
Nesse sentido, levando em consideração a redação do Estatuto da Cidade,
compreende-se que a sustentabilidade é adjetivo insuprimível do conceito de
direito à cidade, vez que a sustentabilidade adiciona ao conceito de direito à cidade
os princípios ambientais da integração72, da cooperação73, da precaução74 e da
prevenção 75 e, para além disso, pode, sozinha, justificar a observância aos
preceitos de outros princípios que norteiam o direito à cidade, como a justiça
social, a democracia, e a função social da propriedade e da cidade; pois, todos
esses, em última instância, prospectam a garantia do bem-estar considerado em
sua multidimensionalidade. Entretanto, considerando a existência de

70
SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Princípios do Direito Ambiental. 2. ed. São
Paulo: Saraiva, 2017.
71
Ibidem.
72
O princípio da integração é resultado da assimilação de que a abordagem ambiental não deve
figurar apenas como política setorial, integrando-se, em verdade, às demais políticas públicas
estatais, das quais se passa a exigir a inclusão de estratégias voltadas à preservação do ambiente
natural e construído bem como o desenvolvimento sustentável multidimensional.
73
O princípio da cooperação exprime um dos elementos da sustentabilidade destacados por
Freitas, qual seja, a responsabilidade do Estado e da sociedade pelo cumprimento de tal dever
constitucional. Nesse sentido, depreende-se que a sustentabilidade contempla o princípio da
cooperação ao exigir mútua cooperação na proteção do meio ambiente, em consonância com o
que determina o artigo 225 da Constituição Federal.
74
Ainda segundo a explanação de Juarez Freitas, a implementação de medidas necessárias à
proteção do meio ambiente em face de risco de perigo abstrato – ou seja, a implementação de
medida de precaução – se insere no âmbito do conceito de sustentabilidade.
75
Na mesma linha de raciocínio, a adoção de providências frente a perigo de dano provável – a
adoção de medidas preventivas – está agregada à noção de sustentabilidade e integra sua
acepção.
120 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

peculiaridades que distinguem tais princípios do princípio da sustentabilidade,


procede-se à devida explicitação destes.

3.1.3 Princípio da Democracia

A democracia, enquanto regime político, se apresenta como conceito


histórico, isto é, não diz respeito a um conceito político estático e abstrato, mas,
sim, a um processo ou instrumento de afirmação e garantia de direitos
fundamentais que foram conquistados no decorrer dos séculos 76 . O regime
político democrático, condicionado à vontade do povo, se dirige a assegurar a
realização dos direitos que, paulatinamente, são conquistados 77 . Isso significa
dizer que, considerando que os direitos fundamentais possuem longa
historicidade, que, inclusive, não apresenta linearidade, confere-se ao conceito de
democracia um caráter polissêmico que se condiciona à contextualização
histórico-social. Considerando que a definição de democracia proferida por
Abraham Lincoln a apresenta como “governo do povo, pelo povo, para o povo”, e,
constatando que a concepção de povo também varia com o tempo, compreende-
se que a democracia da antiguidade grega não corresponde à democracia
moderna, à democracia burguesa capitalista ou à democracia popular 78.
Nesse sentido, Norberto Bobbio, apresentando um acordo semântico,
sedimentou o entendimento no sentido de que, atualmente, o vocábulo democracia
se refere aos regimes políticos surgidos após as revoluções americana e
francesa 79 . Para Bobbio, embora existam múltiplas acepções da democracia,
parece haver consenso quando tal regime político é concebido como
contraposição aos governos autocráticos, consignando, assim, que a democracia
é caracterizada por um conjunto de regras que determina quem está autorizado a
realizar decisões coletivas e a partir de quais procedimentos 80. De acordo com

76
SILVA, José Afonso da. Curso Constitucional de Direito Positivo. 25. ed. rev. atual. São Paulo:
Malheiros Editores, 2005, p. 125-6.
77
Ibidem.
78
SILVA, op. cit., 2005, p. 126.
79
BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia: uma defesa das regras do jogo. Marco Aurélio
Nogueira (trad.). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986, p. 9.
80
Ibidem, p. 18.
Eloísa Assis | 121

Michelangelo Bovero, democracia consiste no regime político em que o exercício


do poder político é desmembrado na obrigação de obedecer às leis e às
autoridades públicas e no direito-poder de participar direta ou indiretamente no
processo de elaboração das leis e de estruturação dos órgãos de decisão
coletiva81. Na perspectiva de José Afonso da Silva, a democracia contempla em
sua definição os princípios i) da soberania popular, que explicita a regra no sentido
de que todo o poder emana do povo; e ii) da participação, direta ou indireta, do
povo no poder, ao efeito de que a vontade popular seja efetiva e prevaleça82.
Ao conceituar democracia, Ronald Dworkin destaca a distinção entre a
democracia e a regra de maioria, pois, para o autor, a democracia corresponde a
uma regra da maioria qualificada pela legitimidade, ou seja, a democracia equivale
a uma regra da maioria legítima83. Isso significa dizer que o fator majoritário não
constitui – per se – democracia, a menos que determinadas condições sejam
observadas84. Dworkin compreende a dificuldade em definir essas tais condições,
mas adverte que uma estrutura constitucional que prevê normas limitadoras, que
restringem os poderes conferidos pelas normas possibilitadoras, é pré-requisito
para a própria democracia, pois é certo que uma maioria, diante da inexistência de
normas limitadoras, destruiria a democracia ao negar a fruição de direitos pela
minoria85.
Quanto à democracia, Dworkin divide as normas constitucionais em
possibilitadoras e limitadoras; a primeira espécie diz respeito às normas que
estruturam o governo da maioria, designando as regras que definem a dinâmica
eleitoral e a representação dos eleitores, sendo que a segunda se volta a restringir
os poderes dos representantes conferidos pelas normas possibilitadoras 86 . Na
concepção do autor, as normas limitadoras são essenciais à democracia; nesse
sentido, o jurista estadunidense questiona a essencialidade da garantia de um

81
BOVERO, Michelangelo. Para uma Teoria Neobobbiana da Democracia. Marcelo de Azevedo
Granato (trad.). São Paulo: FGV Direito SP, 2015, p. 19.
82
SILVA, op. cit., 2005, p. 129. [Silva sinaliza, ainda, a identificação de um princípio secundário: o
da representação, quando a participação do povo é indireta].
83
DWORKIN, Ronald. Constitucionalismo e Democracia. Emílio Peluso Neder Meyer (trad.).
European Journal of Philosophy, nº 3:1, 1995, p. 2.
84
Ibidem.
85
Ibidem.
86
DWORKIN, op. cit., 1995, p. 2-3.
122 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

nível decente de serviços de saúde, habitação ou educação, salientando que tais


direitos não se vinculam a procedimentos políticos equânimes como o direito à
liberdade de expressão, mas, sim, confrontam, por vezes, uma restrição ao legítimo
direito de a maioria governar, ao efeito de que sejam assegurados direitos a uma
minoria87.
No que se refere ao exercício do poder democrático, as democracias podem
ser qualificadas como direta, indireta ou representativa e semidireta ou
88
participativa . Contudo, a democracia, para Jürgen Habermas, deve ser
estruturada procedimentalmente, baseada no discurso e na deliberação, motivo
pelo qual elabora a noção de democracia deliberativa 89 . A legitimidade, na
democracia deliberativa, decorre de um processo de tomada de decisões políticas
realizado a partir de uma ampla discussão pública, em que há intenso debate a
respeito dos assuntos em pauta, para, somente então, decidir 90. Nesse sentido,
concebe-se uma teoria procedimental através da qual a legitimidade das normas
jurídicas é aferida pela racionalidade do processo democrático da legislação
política91.
Oportuno referir que, no entendimento de Habermas, o desencantamento do
mundo – ideia desenvolvida por Max Weber, que se traduz na dissolução do
pensamento mágico na justificação das dinâmicas do mundo, que corresponde à
constatação de que, à medida que o processo de racionalização avança, os
elementos cognitivos se desacoplam da acepção religiosa, e o mundo religioso, ao
mesmo tempo, se desmagifica 92 – conduziu à dissipação do elemento unificador
da sociedade, a partir do momento em que a religião deixa de fundamentar as
estruturas das principais esferas que compõem a vida, quais sejam, a sociedade
– compreendida sobretudo a partir de sua dimensão política – a cultura e a

87
Ibidem, p. 3.
88
SILVA, op. cit., 2005, p.1 36.
89
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1997, v. 1.
90
Ibidem.
91
Ibidem.
92
HABERMAS, Jürgen. Teoria do agir comunicativo: racionalidade da ação e racionalização social,
v.1. Paulo Soethe (trad.). São Paulo: Martins Fontes, 2012.
Eloísa Assis | 123

personalidade93, que passaram a exprimir valores autônomos94, provocando um


distanciamento entre os indivíduos que já não partiam da mesma premissa.
Segundo enuncia Habermas, a racionalização do mundo tem como ponto
de partida o questionamento comum a todas as religiões mundiais, a saber, a
indagação acerca da justificação de uma distribuição desigual dos bens que
promovem felicidade entre os homens 95 . Reconhecendo que o processo de
desencantamento do mundo provocou fragmentação das compreensões de
mundo, Habermas identifica instrumentos de mediação capazes de atuar como
pontes entre as fragmentadas esferas do sistema social, sendo um deles o
fortalecimento da razão comunicativa. Na concepção do filósofo alemão, o debate
público objetiva a conciliação dos direitos, em razão da coerção do melhor
argumento, e se traduz num instrumento de entendimento mútuo voltado ao
alcance do consenso96.
Indicando a razão comunicativa enquanto elemento basilar da política,
Habermas elabora o que denominou democracia deliberativa, que incorpora a
razão comunicativa e a justificação pública nos canais de decisões políticas,
ampliando e consolidando as vias diretas de participação política. Isso porque
entende o autor que o incentivo à intensa deliberação de questões de interesse
público torna a dinâmica política mais compreensível, conferindo maior
significado à atuação política dos cidadãos97. Se na democracia participativa os
cidadãos são convocados a votar nos plebiscitos, referendos e assembleias
populares – havendo uma preocupação apenas direcionada a ampliar
quantitativamente a inclusão de cidadãos no processo decisório, sem levar em
consideração, contudo, a formação das preferências e das opiniões dos cidadãos

93
HABERMAS, op. cit., 2012, p. 289.
94
No que se refere à sociedade, identifica-se que, no Estado moderno, a esfera política se
desacoplou da abordagem e justificação religiosa, sobretudo a partir das ideias Iluministas e da
Revolução Francesa; no que tange à cultura, observa-se que, se antes as expressões artísticas se
vinculavam diretamente ao culto religioso, na decoração do templo, na dança, canto ou até mesmo
na encenação de episódios significativos e narrativas sagradas, com a racionalização, sob a lógica
moderna burguesa-capitalista, a cultura adquire valores próprios e autônomos, exprimidos de
forma cada vez mais consciente e fundados numa razão estética; por fim, quanto à personalidade,
Habermas aponta que o surgimento da contracultura representa o desvio comportamental dos
preceitos religiosos. HABERMAS, op. cit., 2012, p. 293-6.
95
HABERMAS, op. cit., 2012.
96
Ibidem.
97
Ibidem.
124 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

– na democracia deliberativa, por outro lado, o processo de tomada de decisões é


precedido pelo intercâmbio de argumentos entre os cidadãos, ao efeito de tornar
mais compreensível o contexto fático-jurídico e as consequências da futura
decisão.
Diferentemente da democracia participativa, a democracia deliberativa não
se esgota com a apuração dos resultados dos instrumentos de consulta popular,
eis que, a todo instante, os cidadãos são convocados a discutir, participar e
deliberar com os representantes eleitos, numa evidente demonstração do respeito
à soberania popular, que legitima as decisões do Estado. Nesse sentido, a gestão
democrática, veiculada nos artigos 194, inciso VII e 206, inciso VI, da Constituição
Federal, e assentada nos artigos 2º, incisos II e XIII; 4º, inciso III, alínea f; e 43 a 45,
do Estatuto da Cidade, é resultado da concepção deliberativa da democracia.
A gestão democrática das cidades explicita inequivocamente a relação
estabelecida entre direito à cidade e democracia. Em verdade, o próprio processo
de elaboração do Plano Diretor e de fiscalização de sua implementação exprime
os princípios da democracia deliberativa, sobretudo em razão de o Estatuto da
Cidade determinar “a promoção de audiências públicas, debates, participação da
população e de associações representativas dos vários segmentos da
comunidade” 98 , sendo que, nos termos do artigo 52, inciso VI, do Estatuto da
Cidade99, incorre em improbidade administrativa o Prefeito que impedir ou deixar
de garantir os requisitos do processo de elaboração do Plano Diretor,
estabelecidos nos incisos I a III, do §4º, do artigo 40, do Estatuto da Cidade,
reforçando a relevância da democracia deliberativa no contexto da política urbana
e da gestão das cidades. A gestão democrática da cidade viabiliza a redução das
desigualdades no espaço urbano, ao assegurar deliberações que contemplem a
participação das classes desfavorecidas da comunidade; nesse sentido, a
democracia, no contexto das cidades, pode contribuir para a materialização de
outros princípios que norteiam o direito à cidade, a saber: a equidade e a justiça
social.

98
BRASIL, op. cit., Artigo 40, §4º, I. 2001.
99
BRASIL, op. cit., 2001.
Eloísa Assis | 125

3.1.4 Princípios da Equidade e da Justiça Social

Os princípios da equidade e da justiça social serão apresentados


conjuntamente em razão da identificação de relação simbiótica na estruturação
dos conceitos de tais princípios, sobretudo quando se verifica a concepção de
justiça como equidade formulada por John Rawls. Com efeito, Platão, concebendo
a justiça como virtude e sabedoria100, distingue a justiça da lógica de restituição
do que é devido a cada indivíduo, vez que, segundo a racionalidade da restituição,
o homem justo poderia prejudicar seus inimigos, sendo que, para o filósofo,
provocar o mal a alguém em qualquer ocasião se constituía enquanto ilícito101.
Para Platão, a justiça viabiliza a convivência harmônica 102 . A cidade justa, na
concepção do filósofo, repousaria no exercício, por cada cidadão, da função que
lhes é própria em razão de suas aptidões103 – que são definidas a partir das três
virtudes identificadas na cidade: a sabedoria, a coragem e a temperança, cabendo
ao mais sábio governar a cidade, ao mais corajoso a composição do exército e ao
temperado era dado o trabalho104; a justiça seria, portanto, a virtude universal por
meio da qual cada indivíduo desenvolveria sua aptidão, contribuindo para a
harmonia na cidade. A ideia de justiça para Platão está intrinsecamente ligada à
política e às funções dos cidadãos em prol do desenvolvimento da cidade.
A justiça, para Aristóteles, é uma virtude completa 105, sendo que o filósofo
concebe o homem justo como o respeitador da lei106, que exerce sua virtude não
apenas em relação a si mesmo, mas também em função do próximo, motivo pelo
qual se identifica a relevância da vida em coletividade para Aristóteles107. Assim, o
conceito de justiça na visão aristotélica, semelhantemente à concepção de Platão,
possui uma implicação política. Oportuno assinalar que, para Aristóteles, as
legislações se direcionam a garantir vantagem comum e felicidade aos cidadãos,

100
PLATÃO, A República. Leonel Vallandro (trad.). Rio de Janeiro: Ediouro. [2001?], p. 44.
101
Ibidem, p. 17.
102
Ibidem, p. 46.
103
PLATÃO, op. cit., 2001, p. 174.
104
Ibidem, p. 171.
105
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Leonel Vallandro (trad.). São Paulo: Nova Cultural, 1991, p.
96.
106
Ibidem, p. 95.
107
Ibidem, p. 97.
126 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

de forma que o cidadão que respeita a lei contribui para o alcance da felicidade da
comunidade, e é, portanto, justo108.
Das reflexões de Aristóteles é possível destacar duas formas de justiça: a
justiça distributiva e a justiça comutativa. A ideia de justiça distributiva contempla
as noções de igualdade e proporcionalidade na determinação da distribuição dos
benefícios da vida em sociedade 109 , sendo que também é chamada de justiça
geométrica, pois tem como vetor o tratamento baseado não em uma igualdade
real, mas, sim, em uma igualdade proporcional. A justiça comutativa, por sua vez,
se relaciona com a recomposição da igualdade entre os envolvidos,
reestabelecendo o equilíbrio nas relações privadas110.
Saltando da Grécia Antiga para a Idade Contemporânea, nota-se que, para
John Rawls, a justiça é a primeira virtude das instituições sociais, sendo que, para
o autor, mais que eficientes e organizadas, as instituições precisam ser justas111,
ou seja, precisam estar ordenadas em um esquema de cooperação com atribuição
de direitos e deveres e distribuição adequada dos benefícios e encargos da vida
social 112 . Apresentando a justiça como equidade, Rawls indica que essa seria
visualizada em uma sociedade que se entende como empreendimento cooperativo
que objetiva a vantagem de todos113. Segundo o filósofo, a justiça como equidade
fornece base filosófica e moral para as instituições democráticas, viabilizando o
entendimento quanto às exigências da liberdade e da igualdade114.
Conforme acentua Rawls, a justiça como equidade resulta de uma visão
igualitária 115 , voltada, portanto, à superação das desigualdades econômicas e
sociais. Nesse rumo, o jurista pondera as razões que justificam a preocupação
com a extinção das desigualdades, sendo elas: i) a plausibilidade de que todos
tenham acesso pelo menos ao suficiente para satisfazer as necessidades básicas,

108
Ibidem, p. 96.
109
Ibidem, p. 101.
110
Ibidem, p. 102.
111
RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. Almiro Pisetta (trad.). São Paulo: Martins Fontes, 2000,
p. 3-4
112
Ibidem, p. 57.
113
RAWLS, op. cit. 2000, p. 90.
114
RAWLS, John. Justiça como Equidade: uma reformulação. Cláudia Berliner (trad.). São Paulo:
Martins Fontes, 2003, p. 6
115
Ibidem, p. 183.
Eloísa Assis | 127

desde que não se verifique uma real escassez; ii) a compreensão de que o controle
das desigualdades impede que uma parcela da sociedade domine o restante; iii) o
entendimento de que as desigualdades políticas e econômicas, comumente, se
relacionam com as desigualdades sociais, provocando que aqueles que possuem
um status menor sejam considerados, por si mesmos e pelos outros, como
inferiores; iv) o reconhecimento de que a desigualdade pode ser injusta em si
mesma ainda que a sociedade utilize procedimentos equitativos116. Assim é que o
jurista estabelece que, em uma sociedade bem-ordenada pelos princípios da
justiça como equidade, o vínculo social entre os cidadãos é constituído pelo
compromisso de preservar as condições que a relação igualitária entre cidadãos
demanda117.
A ideia de equidade, em Rawls, se baseia em uma abstração da posição
original, onde os indivíduos estariam cobertos pelo denominado véu da ignorância
– por meio do qual desconheceriam seus status sociais e suas posições de classe
– para pactuar as ideias de justiça. Cobertos pelo véu da ignorância, acredita
Rawls que ninguém ousaria propor um valor de justiça que contemplasse
vantagens para determinados indivíduos em detrimento de outros 118 . Assim, a
concepção de justiça elaborada por Rawls consiste na distribuição igualitária de
bens primários 119 – como a liberdade, renda e riqueza – admitindo-se uma
distribuição desigual apenas para favorecer os desfavorecidos120.
Semelhantemente à abordagem dualista de Aristóteles – que analisa a
justiça a partir da injustiça – as concepções contemporâneas de justiça social se
relacionam com as injustiças e desigualdades sociais bem como com as ações
direcionadas à resolução dessa problemática. Contudo, oportuno referir que,
diferentemente do que acreditava Aristóteles, atualmente, compreende-se que
todo e qualquer indivíduo deve ser tratado com igualdade, não subsistindo
fundamento para sustentar a existência de uma desigualdade natural entre

116
Ibidem, p. 184-5.
117
Ibidem, p. 186.
118
RAWLS, op. cit., 2000, p. 146-7.
119
Para Rawls, bens primários consistem em condições sociais necessárias para que os cidadãos
possam se desenvolver adequadamente.
120
RAWLS, op. cit., 2003, p. 82
128 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

indivíduos que justifique discriminações legitimamente negativas e as qualifique


como justas. A justiça social se configura no compromisso do Estado para a
distribuição equânime dos direitos reconhecidos.
Nessa ordem de coisas, tem-se que o direito à cidade, orientado pelo
princípio da justiça social, se dirige a assegurar o uso equitativo da cidade e de
seus equipamentos e serviços, aproximando-se da teoria de John Rawls. Se na
concepção de Platão a cidade justa corresponderia ao local onde os cidadãos
desempenhariam as funções que lhes eram próprias em razão de suas aptidões,
atualmente, às cidades é que se atribuem funções a fim de garantir o bem-estar
dos cidadãos que nelas habitam. No ordenamento jurídico brasileiro, identifica-se
que a justiça é concebida enquanto valor supremo, sendo que a construção de uma
sociedade livre, justa e solidária constitui objetivo fundamental da República
Federativa do Brasil, nos termos do artigo 3º, inciso I, da Constituição Federal. No
que se refere à política urbana brasileira, ao que se verifica, a justiça social é
identificada enquanto relacionada às necessidades dos cidadãos no contexto das
cidades, vez que o Estatuto da Cidade, ao estabelecer que a propriedade urbana
cumpre sua função social quando atende às condições fundamentais explicitadas
no Plano Diretor, assegura que serão contempladas as necessidades dos cidadãos
quanto, dentre outras coisas, à justiça social, a teor do que determina o artigo
39121.

3.1.5 Princípio da Função Social da Propriedade

Por ocasião da promulgação da Constituição Federal de 1988, a questão


urbana recebeu tratamento inédito, eis que pela primeira vez houve um capítulo
constitucional dedicado à política urbana. Ao indicar que as políticas de
desenvolvimento urbano devem ter como objetivo o pleno desenvolvimento das
funções sociais da propriedade e da cidade e a garantia do bem-estar de seus
habitantes, o Constituinte demonstra a razoabilidade do entendimento que
considera as questões urbanas enquanto diretamente relacionadas à fruição da
dignidade humana, direito que fazem jus todos os habitantes das cidades.

121
BRASIL, op. cit., 2001.
Eloísa Assis | 129

Em que pese a inovação de um capítulo constitucional referente à política


urbana, fato é que se identifica omissão do Constituinte quanto ao conteúdo da
função social da propriedade e da cidade. Isso porque, nos termos do §2º, do artigo
182, da Constituição 122 , a definição das funções sociais da propriedade fora
atribuída aos gestores municipais, que devem explicitá-las nos respectivos Planos
Diretores dos municípios. Quanto à função social da cidade, por outro lado, para
além da ausência de detalhamento no texto constitucional, a definição de seu
conteúdo sequer fora atribuída ao poder público municipal.
A função social da propriedade é conceito há muito desenvolvido no direito
estrangeiro e nacional, articulando-se a partir da compreensão de que a
propriedade não é mais entendida enquanto direito subjetivo pautado sob uma
ótica individualista vinculada à lógica liberal – que se opunha a qualquer limitação
indevida à autonomia privada, especialmente aos direitos de liberdade e
propriedade. Se outrora qualquer atuação contrária à livre disposição de tais
direitos de defesa configurava uma atuação excessiva e inadmissível, com a
sobrelevação do Estado Social, a propriedade passa a ser vislumbrada sob a ótica
de uma dinâmica solidarista, que considera, portanto, não apenas os interesses e
desígnios individuais, como também os coletivos 123 . Assim, de uma dimensão
puramente patrimonial, a propriedade passa a ser percebida diante da
estruturação de uma concepção filosófica solidarista, e, nesse sentido, revela a
sua subordinação aos deveres que dela decorrem – em evidente referência à
expressão a propriedade obriga, cuja origem será apresentada na sequência.
A primeira vez em que se fez referência à existência de um conteúdo
filosófico-jurídico da propriedade vinculado ao inarredável atendimento da função
social foi por ocasião da Constituição de Mexicana, de 1917, que, embora não
tenha referido textualmente a expressão função social da propriedade, ao referir
que a propriedade privada deveria se direcionar ao atendimento do interesse
público, por óbvio, já denotava a superação da concepção individualista de tal
direito, aproximando-se, assim, de sua dimensão solidarista124.

122
BRASIL, op. cit., 1988.
123
CANOTILHO, J.J. Gomes, et. al. (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo:
Saraiva/Almedina, 2013, p. 313.
124
Ibidem, p. 314.
130 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

Apesar da disposição da Constituição Mexicana, fato é que, quando se fala


em inauguração do entendimento de que a propriedade se desdobra em imposição
não apenas de direitos, mas, também, de deveres ao proprietário, atribui-se
proeminência à Constituição de Weimar, de 1919, em razão do seu artigo 153, que
ganhou projeção internacional ao referir, em sua última alínea, que “a propriedade
obriga. Seu uso deve igualmente ser um serviço ao bem comum”125. O dispositivo
da constituição alemã experimentou maior repercussão internacional vez que,
apenas em tal redação, restou inequivocamente assinalada a ideia de que a
propriedade não era um instituto do qual decorriam apenas direitos, vantagens e
tutelas ao seu titular, mas, também, ensejava a incidência de ônus e deveres
inafastáveis126.
O sistema constitucional brasileiro convive com a noção de que a
propriedade deveria servir aos interesses individuais dos proprietários
concomitantemente aos interesses coletivos da sociedade desde a Constituição
de 1934127, onde restava estabelecido que o direito de propriedade não poderia ser
exercido em desfavor do interesse social ou coletivo. Desde então, o direito de
propriedade deixou de ser entendido como um direito absoluto no ordenamento
jurídico brasileiro, e a propriedade fora distinguida enquanto dotada de uma
função social. No mesmo sentido, a Constituição de 1937, em razão do seu artigo
122128, assegurava o direito à propriedade, ressalvando, contudo, a possibilidade
de desapropriação, mediante indenização prévia, por necessidade ou utilidade
pública. Tal determinação, todavia, deixou de vigorar em razão do Decreto nº
10.358, de 1942129, que declarou o estado de guerra em todo o território nacional,
em razão da oficial oposição brasileira à Alemanha Nazista e à Itália Fascista.

125
ALEMANHA. Weimar Constitution. The Constitution of the German Reich, de 11 de Agosto de
1919. Disponível em:
http://hydraprod.library.cornell.edu/fedora/objects/nur:01840/datastreams/pdf/content. Acesso
em: 20 mai. 2020.
126
CANOTILHO, op. cit., 2013, p. 315.
127
BRASIL. [Constituição (1934)]. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, Rio de
Janeiro, 1934. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao34.htm. Acesso em: 02 out. 2020.
128
BRASIL. [Constituição (1937)]. Constituição dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro, 1937.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao37.htm. Acesso
em: 02. out. 2020.
129
BRASIL. Decreto nº 10.358, de 31 de agosto de 1942. Declara o estado de guerra em todo o
território nacional. Rio de Janeiro, 1942. Disponível em:
Eloísa Assis | 131

Na Constituição Federal de 1946130 o direito de propriedade se associou à


viabilidade de desapropriação – não apenas por necessidade ou utilidade pública,
como já previam as Constituições de 1934 e 1937, mas, também – por interesse
social. Restou estabelecido, ainda, que a desapropriação serviria como uma
ferramenta para efetivação da reforma agrária; isso porque os proprietários de
bens imóveis rurais que não observassem a função social da propriedade também
poderiam ser destituídos de sua titularidade, mediante indenização. Em que pese
tais considerações, a reforma agrária permaneceu inerte, apesar de, em 1966, ser
elaborado o primeiro Plano Nacional da Reforma Agrária 131 . Oportuno destacar
que, ao dispor sobre a ordem econômica e social, a Constituição de 1946
estabeleceu que o bem-estar social deveria ser respeitado dentro do escopo do
direito de propriedade, e, mais do que isso, que caberia ao Estado a promoção de
uma distribuição equânime da propriedade, com equiparação de oportunidades
para todos132.
O princípio da função social da propriedade foi manifestamente consagrado
no ordenamento jurídico brasileiro por ocasião da vigência do Estatuto da Terra,
Lei nº 4.504, de 1964133. Embora tenha sido promulgado ante uma ordem política
autoritária, em razão do Golpe Militar de 1964, o Estatuto da Terra condicionou
expressamente a fruição do direito à propriedade ao cumprimento de sua função
social, estabelecendo, ainda, que a propriedade da terra desempenha
integralmente sua função social quando, simultaneamente, i) viabiliza o bem-estar
dos proprietários e dos trabalhadores que nela labutam, bem como de suas
famílias; ii) mantém níveis satisfatórios de produtividade; iii) garante a

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1930-
1949/d10358.htm#:~:text=Declara%20o%20estado%20de%20guerra,Art.. Acesso em: 02. out.
2020.
130
BRASIL. [Constituição (1946)]. Constituição dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro, 1946.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao46.htm. Acesso em:
03 out. 2020.
131
BRASIL. Decreto nº 59.456, de 4 de novembro de 1966. Aprova os planos Nacional e Regionais
de Reforma Agrária e dá outras providências. Disponível em:
https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1960-1969/decreto-59456-4-novembro-1966-
399970-publicacaooriginal-38471-pe.html. Acesso em: 03 out. 2020.
132
BRASIL, op. cit., 1946, artigo 147.
133
BRASIL. Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964. Dispõe sobre o Estatuto da Terra e dá outras
providências. Brasília: DF, 1964. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l4504.htm. Acesso em: 15 fev. 2021.
132 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

conservação dos recursos naturais e iv) respeita as determinações legais que


regulam as relações de trabalho entre os que a possuem e a cultivam. É importante
assinalar que a promulgação do Estatuto da Terra durante o Governo Militar
possuía o claro objetivo de controlar as tensões sociais relacionadas à posse e à
propriedade no cenário político nacional. No entendimento de Castello Branco134,
Presidente da República à época, a indefinição quanto à questão agrária favorecia
a utilização do tema enquanto plataforma política para os movimentos de
esquerda, de forma que a elaboração do Estatuto da Terra visava atrair
legitimidade ao governo, ao suprir anseios populares, bem como atuar como fator
de desarticulação da esquerda brasileira135. Contudo, em que pese os esforços de
Castello na elaboração e promulgação do Estatuto da Terra, a partir do governo
Costa e Silva, as disposições do Estatuto foram negligenciadas 136 , vez que os
militares as consideravam inócuas e resultantes de uma compreensão equivocada
da estrutura agrária brasileira137. No ponto, Carmem Lúcia de Salis acentua que o
Estatuto da Terra nasceu como e para ser letra morta, de sorte que quem o
elaborou não previu sua complexidade, quem sucedeu o cargo não desejava a
aplicabilidade e aqueles que se ampararam em seus dispositivos almejavam

134
Em discurso na cidade de Recife, Castello Branco, à época Presidente da República, em 05 de
maio de 1964, afirmou que “(...)o comunismo brasileiro não quer dar de comer a ninguém: nem
pretende dar terra a pessoa algumas. O que quer é destruir as nossas instituições políticas
democráticas, desbaratar as Forças Armadas e levar ao caos a economia brasileira, a fim de poder
implantar a ditadura já instalada em outros países (...) o meu anticomunismo admite que a
evolução política e social do Brasil deve incorporar também ideias e propósitos da esquerda
democrática, sem o que não estaríamos presentes na segunda metade deste século.”. A declaração
de Castello Branco indica claramente a intenção de desmobilizar os movimentos sociais de
esquerda com a elaboração e promulgação do Estatuto da Terra. Oportuno assinalar, contudo, que
o entendimento de Castello Branco foi recebido com duras oposições daqueles que entendiam que
as intenções do presidente se desviavam dos ideais da dita “Revolução” e apontavam a
continuidade do esquerdismo no Brasil. (CASTELLO BRANCO, H. A. Discursos. 05 de maio de 1964.
Secretaria de Imprensa. Disponível em: http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/presidencia/ex-
presidentes/castello-branco/discursos/1964-1/07.pdf/view. Acesso em: 17 fev. 2021.)
135
DE SALIS, Carmem Lúcia Gomes. Estatuto da terra: origem e (des) caminhos da proposta de
reforma agrária nos governos militares. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Ciências e
Letras, UNESP. Assis, 230f., 2008.
136
Simone Dickel aponta que as desapropriações de terra realizadas nas décadas de 1960 e 1970
contabilizam um pequeno número, sobretudo se comparado à década de 1980, quando,
exatamente em razão de o Estatuto da Terra não ter sido implementado plenamente, houve o
fortalecimento dos movimentos sociais de luta pela terra, impulsionados pela aproximação de um
período de redemocratização. (DICKEL, Simone Lopes. O princípio da função social no estatuto da
terra e o processo de desapropriação da Fazenda Annoni, no norte sul rio-grandense.
Manduarisawa – Revista Eletrônica Discente do Curso de História – UFAM, vol. 3, nº 2. 2010.)
137
DE SALIS, op. cit., 2008.
Eloísa Assis | 133

alterar não apenas a estrutura fundiária, mas, sim, toda a estrutura econômico-
política138.
Por ocasião da Constituição de 1967, a função social da propriedade foi
designada enquanto princípio orientador da ordem econômica e social, que tem
por fim a realização da justiça social, nos termos do artigo 157, inciso III139, sendo
que a disposição quanto às desapropriações contemplava apenas as propriedades
privadas localizadas na zona rural, a teor do que determina o §1º, do artigo
supramencionado.
Inaugurando o período democrático, após amargos anos de ditadura militar,
a Constituição de 1988 enuncia a função social da propriedade enquanto um dos
princípios reguladores da ordem econômica, a teor do que dispõe o inciso III, do
artigo 170140. Contudo, a Constituição Cidadã se diferencia das Constituições que
a precederam sobretudo em razão de tal princípio ser elevado ao nível de garantia
fundamental do cidadão, vez que, após consagrar o direito de propriedade
enquanto garantia fundamental, a vigente Constituição anunciou a exigibilidade de
atendimento à sua função social, nos termos dos incisos XXII e XXIII, do artigo
5º 141 , dispositivo localizado no título correspondente aos direitos e garantias
fundamentais. Para além disso, a Constituição de 1988 estabeleceu a função
social da propriedade não apenas rural (artigo 186 142 ) como também urbana
(artigo 182, §2º143), prevendo a possibilidade de desapropriação do imóvel que não
cumprir sua função social (artigo 182, §2º 144 e artigo 184 145 ), ou onde forem
localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho
escravo (artigo 243146), impondo, ainda, efeitos tributários gravosos em razão de
descumprimento da função social da propriedade (artigo 153, §4º, I147; artigo 156,

138
Ibidem.
139
BRASIL. [Constituição (1967)]. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 1967.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao67.htm. Acesso em:
03 out. 2020.
140
BRASIL, op. cit., 1988.
141
CANOTILHO, op. cit., 2013, p. 315.
142
BRASIL, op. cit., 1988.
143
Ibidem.
144
Ibidem.
145
Ibidem.
146
Ibidem.
147
BRASIL, op. cit., 1988.
134 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

§1º148 e 182, § 4º149).


Nessa perspectiva, o que se demonstra é que a propriedade não mais é
concebida enquanto direito absoluto, de natureza individual e blindado contra
qualquer atuação externa, eis que, sob a influência da ética solidarista, a
propriedade só é merecedora de tutela quando dotada de sua função social, em
reverência e consonância com os objetivos e interesses coletivos e sociais, que
acabam, portanto, superando e sendo mais valorados que o interesse individual do
proprietário. Nesse rumo, a função social passa a ser concebida enquanto parte
integrante do próprio conteúdo da propriedade privada. Todavia, trata-se de um
conceito jurídico indeterminado, genérico e impreciso, motivo pelo qual a
Constituição Federal atribuiu aos gestores municipais, por meio do Plano Diretor,
a tarefa de explicitar o conceito da função social da propriedade, sendo essa
designação reforçada pelo Estatuto da Cidade. Contudo, conforme demonstrado
no capítulo anterior, o que se verifica na prática é a inobservância das exigências
constitucionais e legais quanto ao conteúdo mínimo do Plano Diretor e quanto à
regulamentação das ferramentas de defesa da função social da propriedade. A
determinação de um conteúdo mínimo para os Planos Diretores se articula com a
eficiência que esses serão capazes de promover para o ordenamento do
desenvolvimento do espaço urbano, sendo que a inobservância desse conteúdo
mínimo contribui para o esvaziamento dos princípios da função social da
propriedade urbana e da função social da cidade, obstaculizando a implementação
da política urbana projetada pelo Constituinte e a concretização da justiça social
no espaço urbano.
O Plano Diretor é entendido como o instrumento que orienta a vida na
cidade, buscando ordenar seu crescimento, planejar seu desenvolvimento
habitacional, industrial, comercial, criando condições para uma cidade
sustentável. As normas de Direito Urbanístico se configuram enquanto reações ao
crescimento urbano desordenado e ao caos produzido e conduzido pelas
egoísticas atuações individuais quanto à divisão do espaço urbano, de forma que
a introdução de um capítulo constitucional destinado à explicitação da política

148
Ibidem.
149
Ibidem.
Eloísa Assis | 135

urbana não representa apenas um projeto de publicização do espaço urbano, mas,


sim, um ideal de racionalização urbana via atuação estatal, sendo que essa
atuação só se legitima se estiver racionalmente direcionada e assentada em
planejamentos bem definidos, sob o risco de que o caos privado seja substituído
pelo caos estatal150.
Nesse sentido é que o Plano Diretor assume dimensão técnica e
multidisciplinar, sendo a bússola que direciona os atos legislativos e executivos
municipais sobre política urbana. A ausência de explicitação do princípio da
função social da propriedade no Plano Diretor, tal como ordenado pela
Constituição, representa um esvaziamento do conteúdo do princípio da função
social da propriedade – que se constitui enquanto pedra angular do Direito
Urbanístico, que visa, precipuamente, o bem-estar comum – e uma desarticulação
do processo de efetivação da política urbana delimitada na Constituição. Disso se
depreende que, quando o Plano Diretor não é elaborado de forma adequada, pode
contribuir para a desmobilização da política urbana e para a invalidação e
desvalorização da luta dos movimentos sociais voltados à questão urbana.
Incumbe mencionar que tramita no Senado Federal a Proposta de Emenda
à Constituição (PEC) nº 80, de 2019151, que pretende alterar os artigos 182 e 186
da Constituição Federal para dispor sobre a função social da propriedade urbana
e rural. De acordo com a redação proposta, o artigo 182 enunciaria que a
propriedade urbana cumpre sua função social quando é utilizada sem ofensa a
direito de terceiros e atende pelo menos a uma das exigências fundamentais de
ordenação da cidade expressa no Plano Diretor, a saber: i) parcelamento ou
edificação adequados; ii) aproveitamento compatível com sua finalidade; ou iii)
preservação do meio ambiente ou do patrimônio histórico, artístico, cultural ou
paisagístico.

150
SUNDFELD, Carlos Ari. O Estatuto da Cidade e suas diretrizes gerais. In: DALLARI, Adilson;
FERRAZ, Sergio (Coord.) Estatuto da Cidade: Comentários à Lei Federal nº 10.257/2011. São Paulo:
Malheiros, 2002.
151
BRASIL. Senado Federal. Proposta de Emenda à Constituição nº 80, de 2019. 2019. Disponível
em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/136894. Acesso em: 20 jan.
2021.
136 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

Nos termos da Nota Técnica emitida pelo Instituto Brasileiro de Direito


Urbanístico (IBDU), a PEC nº 80/2019 é flagrantemente inconstitucional vez que: i)
desconsidera o Plano Diretor como instrumento básico da Política de
Desenvolvimento Urbano; ii) suprime a autoexecutoriedade dos atos de poder de
polícia administrativa municipal quanto ao cumprimento da função social da
propriedade; iii) prevê pagamento de indenização com valores de mercado para
propriedades que não atendam a sua função social, o que representa uma
premiação por um comportamento inconstitucional; iv) apresenta motivações
incompatíveis com o princípio da função social da propriedade bem como de
outros direitos e garantias individuais152. Ainda de acordo com a Nota Técnica do
IBDU, a PEC nº 80/2019 representa um retrocesso na política urbana brasileira,
sobretudo em razão de a proposta de emenda à Constituição analisada sugerir que
o proprietário possa escolher de qual forma pretende atender à função social da
propriedade, enquanto o atual modelo de Plano Diretor é rígido, não discricionário
e vinculante, do que se demonstra desarrazoado conferir ao proprietário a
possibilidade de decidir quais regras constitucionais a respeito da função social
da propriedade deseja observar, atribuindo-lhe a liberdade de manter conduta
incompatível com o Plano Diretor nos demais aspectos153. Destaca-se, ainda, a
inadmissibilidade do tratamento que se pretende atribuir à desapropriação por
descumprimento da função social, que está em desacordo com as determinações
do Constituinte quanto às desapropriações-sanção, vez que, tomando como
exemplo a desapropriação para fins de reforma urbana, tem-se que esta não será
prévia e também não corresponderá ao valor de mercado, nos termos do artigo
182, §4º, III, da Constituição Federal 154 e do artigo 8º, §2º, do Estatuto da
Cidade155156.
Conquanto se reconheça a desídia dos gestores municipais na explicitação
das funções sociais da propriedade urbana no Plano Diretor, fato é que, em

152
IBDU. Nota Técnica sobre a PEC 80/2019 – retrocesso na política urbana brasileira. 2019.
Disponível em: https://ibdu.org.br/api/wp-content/uploads/2019/06/Nota-T%C3%A9cnica-IBDU-
PEC-80.pdf. Acesso em: 21 jan. 2021.
153
IBDU, op. cit., 2019.
154
BRASIL, op. cit., 1988.
155
BRASIL, op. cit., 2001.
156
IBDU, op. cit., 2019.
Eloísa Assis | 137

observância ao princípio da separação de poderes, plasmado no artigo 2º da


Constituição Federal 157 , restam o Legislativo e o Judiciário desautorizados à
usurpação da prerrogativa conferida ao Executivo Municipal pelo Constituinte,
especialmente quando a usurpação vem em desacordo com as contemporâneas
compreensões do conteúdo da função social da propriedade, eis que na
justificação da Proposta de Emenda à Constituição, o proponente se refere à
propriedade como um bem sagrado158, o que demonstra um atraso conceitual de,
pelo menos, um século159.
A função social da propriedade se volta a obstaculizar a especulação
imobiliária e está diretamente ligada à justiça social e à compreensão de que a
propriedade não é um direito absoluto, mas do qual decorrem também deveres, a
fim de garantir o bem-estar de todos os habitantes das cidades. A função social
da propriedade, portanto, assegura a plena fruição do direito à cidade, sendo que
ambos são utilizados como fundamentação para a necessidade de redistribuição
e acesso equânime às propriedades urbanas. O acesso à propriedade proporciona
a mobilização dos indivíduos no âmbito de seus próprios interesses, contribuindo
para o desenvolvimento de suas potencialidades, de sorte que se compreende que
a função social da propriedade, por exigir o uso adequado das propriedades, sob
pena de desapropriação, reforçou a compreensão do direito à cidade enquanto
instrumento de justiça social, em consonância com o que determina o artigo 39 do
Estatuto da Cidade160.

3.1.6 Princípio da Função Social da Cidade

No que se refere à função social da cidade, tem-se que é justamente no


bem-estar coletivo que também repousa esse princípio, sendo que, ao que se
verifica, o Constituinte, igualmente ao princípio da função social da propriedade,

157
BRASIL, op. cit., 1988.
158
BRASIL. Senado Federal. Proposta de Emenda à Constituição nº 80, de 2019. 2019. Disponível
em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=7955908&ts=15940. Acesso em: 21
jan. 2021.
159
IBDU, op. cit., 2019.
160
BRASIL, op. cit., 2001.
138 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

deixou de aclarar quais seriam as funções que devem ser observadas para que
sejam promovidas efetivas melhorias na qualidade de vida dos habitantes das
cidades. O Estatuto da Cidade, a seu turno, identificou as diretrizes gerais que
devem ser respeitadas ao efeito de que seja ordenado o pleno desenvolvimento
das funções sociais da cidade, enunciando, dentre elas, a garantia do direito a
cidades sustentáveis, conceito que contempla os direitos à terra urbana, à
moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos
serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para além do direito à participação
política.
As funções sociais da cidade foram enunciadas pela primeira vez na Carta
de Atenas, que baseava suas compreensões acerca do espaço urbano no ideal de
cidade modernista. A Carta de Atenas161, como é chamado o documento resultante
do IV Congresso Internacional de Arquitetura Moderna, realizado em Atenas, na
Grécia, em 1933, analisa, de forma ampla, o estado crítico das cidades,
intencionando a melhoria da estrutura urbana. Questões relacionadas à habitação,
ao lazer, ao trabalho e ao patrimônio histórico são algumas das temáticas
abordadas pela Carta, oferecendo como resposta a proposta de setorização das
áreas urbanas e o uso da terra de forma planejada. Com a contribuição de
arquitetos de diversos países, a Carta determina que são necessários limites
quanto à densidade urbana, com o intuito de prevenir problemas sociais. Além da
preocupação com a preservação dos patrimônios históricos das cidades – que se
justificava sobretudo em razão de o período em que a Carta fora elaborada se
situar após a realização da Primeira Guerra Mundial – um dos itens de maior
destaque é a melhoria da qualidade de vida, de forma que se estabelece o
compromisso de que as moradias devem estar localizadas em condições salubres
quanto à insolação, poeira, gases tóxicos e ruídos.
Outro ponto essencial assinalado pela Carta de Atenas afirma que a cidade
deve se organizar ao efeito de satisfazer quatro funções básicas: habitar, trabalhar,
recrear e circular – funções essas que devem ser observadas dentro do escopo do

161
CONSEJO EUROPEO DE URBANISTAS (CEU). Carta de Atenas. 1933. Disponível em:
<http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Carta%20de%20Atenas%201933.pdf>.
Acesso em: 20 maio 2020.
Eloísa Assis | 139

planejamento urbano, ao efeito de i) assegurar moradias saudáveis e salubres; ii)


organizar os locais de trabalho a fim de que o labor recuperasse seu sentido de
atividade humana natural e se afastasse da pecha de árdua sujeição; iii)
disponibilizar instalações necessárias para a recreação dos cidadãos nas horas
livres; e iv) garantir o deslocamento no espaço urbano, de forma a assegurar o
acesso às instalações urbanas.
Reforçando e ampliando os parâmetros assentados na Carta de Atenas de
1933, em 1998, sobreveio novo documento, assim chamado Nova Carta de
162163
Atenas . Nele restaram consignados compromissos para um
desenvolvimento urbano sustentável, estabelecendo recomendações entendidas
enquanto necessárias à atuação do urbanista, que podem ser condensadas nos
seguintes eixos: (i) inclusão social, que suscita considerações sobre pobreza
urbana de forma que o processo de planejamento de cidades deve passar a
garantir a inclusão de todos os grupos na vida econômica, social e cultural, sendo
elemento que congrega, ainda, a capacitação do urbanista ao efeito de encorajar
a participação comunitária nas decisões das cidades; (ii) novas tecnologias, em
razão da reestruturação da dinâmica nas cidades a partir da inserção de novas
tecnologias e suas ambivalências no auxílio ao planejamento da cidade; e (iii)
aspectos ambientais, firmando e reafirmando os princípios do desenvolvimento
sustentável, com a estipulação, por exemplo, de utilização de recursos renováveis
e tecnologias limpas. Assim é que a Nova Carta de Atenas promove um repensar
o espaço urbano na construção de ambientes e habitações mais sustentáveis164.
A Nova Carta de Atenas, ao enfatizar o desenvolvimento urbano sustentável,
dá indícios de que a cidade não mais se limita ao desempenho de quatro funções,
vez que, considerando os atuais desafios, demonstra-se necessária uma visão
mais ampla. O entendimento que se defende na presente dissertação é no sentido
de que as atuais funções sociais da cidade restaram reveladas nos Objetivos de

162
CONSEJO EUROPEO DE URBANISTAS (CEU). Nueva Carta de Atenas. 1998. Disponível em:
http://www.patrimonio.go.cr/quienes_somos/legislacion/leyes_reglamentos/Carta%20de%20Ate
nas%201998.pdf. Acesso em 17 fev. 2021.
163
É válido referir que as diretrizes assentadas na Nova Carta de Atenas de 1998 foram revisadas
e reorganizadas numa nova carta datada de 2003.
164
KANASHIRO, Milena. Da antiga à nova Carta de Atenas − em busca de um paradigma espacial
de sustentabilidade. DMA, n. 9, p. 33-37, 2004.
140 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

Desenvolvimento Sustentável (ODS), estabelecidos na Plataforma Agenda 2030,


da ONU, especialmente o ODS número 11, que enuncia o compromisso de “tornar
as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e
sustentáveis”. As funções sociais da cidade, portanto, seriam promover um espaço
urbano inclusivo, seguro, resiliente e sustentável, adjetivos esses que se conectam
diretamente com direitos fundamentais expressamente assegurados na
Constituição, que têm por propósito garantir o bem-estar dos indivíduos. Para
melhor compreender as novas funções sociais da cidade, procede-se à
apresentação dos adjetivos que devem qualificar as cidades contemporâneas, a
partir da perspectiva da Agenda 2030, da ONU.

3.1.6.1 Cidades Inclusivas

As desigualdades sociais e territoriais nas cidades brasileiras refletem as


vulnerabilidades estruturais de um país marcado pela segregação desde os
primórdios de sua colonização. Válido referir que as definições de desigualdades
sociais assumem variadas formas, condicionadas aos propósitos críticos e
ideológicos dos que as examinam. Adota-se o conceito de desigualdade extraído
da Agenda 2030, da ONU, especificamente do ODS número 10, que se direciona a
reduzir a desigualdade dentro dos países e entre eles. Das metas estabelecidas
para o alcance do Objetivo número 10, depreende-se que a desigualdade
corresponde a uma distribuição desproporcional de riquezas, de privilégios e de
oportunidades, configurando-se enquanto um problema global que demanda
soluções integradas dirigidas à erradicação da pobreza em todas as suas
dimensões, à redução das desigualdades socioeconômicas e à verdadeira
inclusão social, econômica e política de todos, independentemente de raça,
gênero, idade, deficiência, origem, religião, condição econômica ou qualquer outra
variante.
O fenômeno da desigualdade limita e por vezes impossibilita o acesso de
determinados grupos a direitos básicos como educação e saúde de qualidade,
propriedade, moradia, saneamento básico, trabalho, lazer, entre outros. Esse
tratamento desigual pode assumir variadas perspectivas, vez que as
Eloísa Assis | 141

desigualdades podem se consubstanciar em motivos raciais, de gênero, de


classes etc. Dentre as dimensões de desigualdades sociais, destacam-se as
raciais, levando em consideração a simbólica, histórica e cruel distribuição e
inserção territorial da população negra nas cidades brasileiras, embora não se
desconsidere a magnitude dos recortes de gênero, de classe e de outras variáveis.
Oportuno assinalar que, em termos biológicos, raça não existe 165 . Raça,
portanto, é um conceito socialmente construído, fundamentado em discursos que
identificam a transmissão de traços fisionômicos, qualidades morais, psicológicas
e intelectuais, e baseado na identificação de uma desigual distribuição de
vantagens e desvantagens, que resulta numa classificação de indivíduos a partir
de seus traços fenotípicos166.
As denúncias de discriminação racial no Brasil se intensificaram com a
consolidação de organizações negras, como a Frente Negra Brasileira (1931-1937)
e o Teatro Experimental do Negro (1944-1968) – fundado por Abdias Nascimento,
economista, teatrólogo, pesquisador, deputado, senador e militante político, que,
inclusive, foi preso, em 1942, em razão de seus protestos contra a discriminação
racial167. Antes desse momento, as relações raciais no Brasil eram percebidas a
partir de uma ideia de democracia racial, sobretudo em razão de Gilberto Freyre,
que, embora não tenha proferido a expressão democracia racial, em sua obra
“Casa Grande & Senzala”, favoreceu o estabelecimento da ideia de uma harmonia
existente nas interações raciais no Brasil, entendimento rechaçado por Florestan
Fernandes, que denominou a teoria de Freyre de mito da democracia racial. Para
Fernandes 168 , a estrutura social racializada apenas desapareceria quando as
distorções da concentração racial de renda, privilégio e poder fossem suprimidas

165
Guimarães explica que atrocidades históricas foram cometidas fundamentadas em critérios
raciais, como a escravidão, o holocausto e as torturas disfarçadas de pesquisas médicas, sendo
que, após a Segunda Guerra Mundial, identifica-se um esforço dos cientistas para sepultar a noção
de raças humanas, rechaçando o uso de raça como categoria científica, embora o próprio termo
tenha sido concebido por cientistas eugenistas. (GUIMARÃES, Antônio Sergio. Cor e Raça. In:
SANSORE, Livio; PINHO, Osmundo (Orgs.) Raça: novas perspectivas antropológicas. 2. ed. rev.
Salvador: Associação Brasileira de Antropologia, EDUFBA, 2008).
166
GUIMARÃES, op. cit., 2008.
167
IPEA. [Perfil – Abdias Nascimento]. Rio de Janeiro, [2011]. Disponível em:
https://www.ipea.gov.br/desafios/index.php?option=com_content&view=article&id=2672:catid=2
8&Itemid=23. Acesso em: 20 fev. 2021.
168
FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes – o legado da “raça
branca”. 5. ed. São Paulo: Globo, 2008.
142 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

na ordem social competitiva ao ponto de negros alcançarem posições de classes


equivalentes àquelas ocupadas por brancos169. Todavia, os avanços da sociedade
capitalista, que viabilizaram o acesso de alguns negros às posições de prestígio,
infelizmente, não retiraram a raça da categoria de critério de hierarquização social.
No que se refere ao racismo explicitado no espaço urbano, Raquel Rolnik, já
em 1989, enunciava a existência de uma segregação racial nas cidades como
resultado da discriminação e dominação branca na sociedade brasileira, que
relegou a população negra à marginalização e à estigmatização 170 . Apropriado
salientar que, durante a vigência da escravidão, os negros escravizados sequer
eram concebidos enquanto sujeito de direitos171, sendo que tampouco a abolição
da escravatura promoveu igualação social e econômica, eis que não se tem notícia
de estruturação de estratégia pelo Poder Público direcionada a minimamente
preparar os recém libertos para a vida como homens e mulheres livres; assim, nem
mesmo a liberdade se traduziu em concretização da igualdade no tecido social 172.
O processo de abolição da escravatura representou uma reestruturação do
espaço urbano. O contingente de negros recém libertos, que anteriormente
habitavam as senzalas, a partir desse momento, buscou se estabelecer nas
cidades – de maneira independente, vez que não se constata a elaboração de
programas governamentais de inserção dos libertos na sociedade – onde
prospectava melhores condições de trabalho e moradia. Raquel Rolnik relata que
a população de negros libertos que habitava os centros urbanos, em sua maioria,
se acomodava em casarões velhos e abandonados pela classe dominante, que
iniciara sua peregrinação em direção à privacidade e exclusividade das zonas mais

169
Ibidem.
170
ROLNIK, Raquel. Territórios negros nas cidades brasileiras: etnicidade e cidade em São Paulo e
Rio de Janeiro, 1989. Disponível em:
https://raquelrolnik.files.wordpress.com/2013/04/territc3b3rios-negros.pdf. Acesso em 22 fev.
2021.
171
Teixeira de Freitas, na enunciação do seu critério de classificação das coisas, referia que os
escravos, como artigos de propriedade, eram equiparados aos semoventes. (FREITAS, Augusto
Teixeira de. Consolidação das leis civis. Ed fac. sim. de Rio de Janeiro, Garnier, 1876. Brasília:
Senado Federal, Conselho Editorial, 2003).
172
VIEIRA JÚNIOR, Ronaldo Jorge A. Rumo ao multiculturalismo: a adoção compulsória de ações
afirmativas pelo estado brasileiro como reparação dos danos atuais sofridos pela população negra.
In: SALES, Augusto dos Santos (Org.). Ações Afirmativas e Combate ao Racismo nas Américas.
Brasília: Ministério da Educação: UNESCO, 2005.
Eloísa Assis | 143

distantes dos centros173.


A ausência de um suporte estatal para integração do ex-escravo na
sociedade conduziu a população negra a uma dinâmica de trabalho, que, apesar
de ressignificada, ainda se baseava na exploração de sua força de trabalho, e para
o seu estabelecimento em habitações coletivas insalubres, e, mais tarde, em vilas
e favelas. Se para os imigrantes europeus fora estruturada uma rede de suporte
oficial, aos escravos recém libertos fora viabilizada apenas a marginalidade –
afirmação corroborada pela constatação de certo consenso na literatura
sociológica quanto ao preterimento dos recém libertos frente à chegada dos
imigrantes europeus no período pós-abolição, preterimento esse que implicou
inacessibilidade dos negros, dentre outras coisas, à propriedade174.
Observando a disposição racial dos indivíduos na capital baiana, em 1942,
Donald Pierson constatou que a cor da pele dos soteropolitanos variava a
depender da qualidade dos bairros, de forma que os negros retintos e mestiços de
pele mais escura geralmente habitavam as áreas mais pobres de Salvador
enquanto os brancos e os mestiços de pele mais clara desfrutavam de moradias
em áreas mais valorizadas e providas de infraestrutura da cidade175. Ao analisar a
composição territorial do Rio de Janeiro, Costa Pinto, em 1953, demonstrou a
existência de uma segregação racial expressiva, isso porque, segundo o autor,
enquanto nos demais bairros do Rio de Janeiro, a cada cem habitantes, vinte e sete
eram negros, na população das favelas, a cada cem habitantes, setenta e um eram
negros. A desproporção da distribuição de pessoas negras no território carioca, e
a concentração dessa população nas áreas mais deterioradas da cidade,
indicavam para Costa Pinto, manifestamente, a segregação étnica 176.

173
ROLNIK, op. cit., 1989.
174
MONSMA, Karl. Vantagens de imigrantes e desvantagens de negros: emprego, propriedade,
estrutura familiar e alfabetização depois da abolição no oeste paulista. Revista de Ciências Sociais,
Rio de Janeiro, vol. 53, n. 3, 2010, p. 509-543.
175
PIERSON, Donald. Brancos e pretos na Bahia – estudo de contacto racial. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1945. Disponível em:
https://bdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/327/1/241%20PDF%20-%20OCR%20-%20RED.pdf. Acesso
em: 23 fev. 2021.
176
COSTA PINTO, Luiz Aguiar. O Negro no Rio de Janeiro: relações de raças numa sociedade em
mudanças. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1998.
144 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

Das senzalas aos cortiços, dos cortiços insalubres às autoconstruções


precárias em bairros distantes ou nos morros; assim, das senzalas às favelas, a
trajetória do negro no espaço urbano brasileiro é marcada por uma constante
busca por acesso a direitos, sobretudo um dos mais urgentes, a moradia. O fato
de o negro ter iniciado sua história no Brasil no contexto da escravidão é condição
determinante para os atuais conflitos raciais. De força de trabalho apropriada pelo
senhor branco à cidadão – ainda que essa atribuição de direitos contemple um
número reduzido, muito embora sempre crescente – a comunidade negra há muito
reivindica a fruição do espaço urbano, que é distinguido pela estigmatização e
degradação de seus territórios. Se no Brasil Imperial o negro representava
subumanidade, na República, negro se tornou signo de marginalidade, sendo que
das severas punições dos senhores de engenho – passando pelas reprimendas
estéticas travestidas de normas sanitaristas para os cortiços – às violências
perpetradas nas favelas, a segregação territorial orientada por critérios raciais se
assenta como modelo de urbanização excludente tipicamente brasileiro177.
No ponto, o informativo Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil178,
elaborado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2019,
apresenta os indicadores contemplados no Programa de Atividades para a
Implementação da Década Internacional de Afrodescentes 179 (2015-2024), e,
voltando-se à análise do problema sistêmico e estrutural das desigualdades
raciais, dividiu os dados recolhidos em temáticas, sendo que se destaca a
referente à distribuição de rendimento e condições de moradia. A análise do IBGE
demonstrou que, embora a população negra (composta por indivíduos que se
autodeclaram pretos e pardos) corresponda à maioria numérica no Brasil (55,8%),
os negros representam apenas 27,7% da população com maiores rendimentos;
sendo que, por outro lado, dentre o contingente com os menores rendimentos,

177
ROLNIK, op. cit., 1989.
178
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Desigualdades sociais por cor ou raça
no Brasil. Estudos e Pesquisas – informação demográfica e socioeconômica, n. 41. 2019.
Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf.
Acesso em: 19 fev. 2021.
179
Programa aprovado pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 2013, que te como objetivo
a promoção de respeito, proteção a esse contingente populacional, cumprindo os compromissos
voltados ao alcance dos direitos fundamentais e humanos à comunidade negra.
Eloísa Assis | 145

75,2% dele são pessoas negras. No que se refere às condições de habitabilidade e


à distribuição espacial, o Censo Demográfico de 2010 apontou que, estabelecendo
Rio de Janeiro e São Paulo enquanto referências, a probabilidade de uma pessoa
preta ou parda residir em um aglomerado subnormal 180 era maior – equivalendo a
quase o dobro – que a apurada entre pessoas brancas181.
No que se refere às distorções territoriais assentadas em critérios raciais,
merece destaque a situação da capital baiana, eis que, a partir da análise da
dinâmica socioespacial na cidade de Salvador, é possível compreender e
demonstrar que os problemas raciais são estruturais e sistêmicos de tal forma que
mesmo numa cidade composta por uma população majoritariamente negra ainda
são identificados bairros predominantemente brancos e outros
preponderantemente negros, sendo significativos, inclusive, os contrastes
socioeconômicos entre eles. Segundo o Censo Demográfico, de 2010, do IBGE182,
Salvador assume a posição de capital negra do país, eis que cerca de 79% dos
soteropolitanos se autodeclararam negros (pretos e pardos) 183.
Com efeito, observa-se que a estruturação do espaço urbano soteropolitano
se ampara em três vetores de expansão da cidade: a Orla Marítima Norte, o Miolo
e o Subúrbio Ferroviário, sendo que o primeiro compreende a “área nobre” da
cidade, local onde são proporcionados moradia, saneamento, lazer e serviços
públicos de qualidade, bem como onde se concentram os investimentos públicos
e os interesses do mercado imobiliário; o segundo, por sua vez, corresponde ao
centro geográfico da cidade, inicialmente ocupado em razão dos programas
habitacionais do Governo, sendo locais marcados por loteamentos populares e
uma restrita disponibilidade de serviços e equipamentos públicos; e, por fim, o
Subúrbio, que se configura enquanto uma das áreas mais carentes da cidade,

180
Segundo o IBGE, aglomerados subnormais são formas de ocupação irregular de terrenos,
públicos ou privados, marcados pela carência de serviços públicos essenciais, sendo que as
populações dos aglomerados subnormais restam submetidas a condições socioeconômicas,
habitacionais e de saneamento precárias. São exemplos de aglomerados subnormais as favelas,
grotas, palafitas, mocambos etc.
181
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, op. cit., 2019.
182
Censo ainda utilizado como parâmetro considerando que, em razão do avanço da pandemia do
coronavírus, no censo demográfico que seria realizado no ano de 2020, foi adiado para 2021.
183
IBGE. Censo Demográfico 2010. Disponível em: https://sidra.ibge.gov.br/pesquisa/censo-
demografico/demografico-2010/inicial. Acesso em: 23 fev. 2021.
146 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

aglutinando uma população extremamente pobre, que resta submetida a


condições precárias de habitabilidade, saneamento e infraestrutura184.
Analisando a distribuição das classes sociais na malha urbana de Salvador,
foram elaboradas tipologias que as categorizam como i) Superior e ii) Média-
superior, correspondentes à elite de alta renda, composta por empresários, que
costuma habitar a Orla Marítima Norte; iii) Média, constituída pelos pequenos
empregadores, por técnicos, trabalhadores da educação, saúde e segurança
pública etc. – que, geralmente, ocupam a região do Miolo; e iv) Popular – inferior,
operário e agrícola – que contempla o contingente que está na base da pirâmide
social e que atua principalmente com prestação de serviços e habita no Miolo ou
no Subúrbio Ferroviário185. Adicionando a dimensão racial, verifica-se que, a partir
dos dados do Censo Demográfico de 2010, do IBGE, a tipologia socioespacial
Superior é composta por uma população 64,8% branca e 34% negra, enquanto a
tipologia Popular é constituída por uma minoria branca (13,7%) e uma maioria
negra (79,8%)186, o que demonstra a razoabilidade do entendimento que concebe
a cidade enquanto um espaço racialmente segregado, porquanto compreende-se
que o racismo explica o fato de, até mesmo numa cidade predominantemente
negra, aos negros reste a marginalização territorial e social.
A segregação socioterritorial não é problemática exclusiva do Brasil.
Reflexões sobre a exclusão territorial e sobre o fenômeno da gentrificação 187
emergem em todo o mundo. No livro Derecho a la ciudad: una evocación de las
transformaciones urbanas en América Latina, os autores discorrem sobre os
desafios da gestão urbana frente às desigualdades sociais, havendo, inclusive,
evidenciação de que a gentrificação é utilizada como estratégia urbana global, o
que demanda uma atuação estatal voltada à requalificação socioespacial que
proporcione uma inclusão econômica, social e cultural nos projetos

184
CARVALHO, IMM; BARRETO, VS. Segregação residencial, condição social e raça em Salvador.
Caderno Metrópole. São Paulo: EDUC. n. 18, 2º semestre de 2007, p. 251-273.
185
CARVALHO, IMM; BARRETO, VS., op. cit., 2007.
186
Ibidem.
187
Gentrificação é um fenômeno urbano que se caracteriza pelo enobrecimento e elitização de uma
área urbana.
Eloísa Assis | 147

habitacionais188.
Nesse rumo, constata-se que a garantia de cidades inclusivas ultrapassa
as reivindicações de cunho político-partidário e ideológico, refletindo
consequências multidimensionais. É nesse sentido, portanto, que se reforça o
entendimento de que a promoção de um espaço urbano inclusivo é uma das
funções da cidade, que se assenta, inclusive, em consonância com os objetivos
fundamentais – consagrados pela Constituição Federal, nos termos do seu artigo
3º189 – de redução das desigualdades sociais e regionais bem como de promoção
do bem-estar de todos, independentemente de fatores como origem, raça, sexo,
idade ou qualquer outra distinção que implique discriminação.

3.1.6.2 Cidades Seguras

A partir da análise das metas estabelecidas no âmbito do Objetivo de


Desenvolvimento Sustentável 11, que se compromete a tornar as cidades
inclusivas, seguras, resilientes e sustentáveis, depreende-se que a proposta das
Nações Unidas quanto à segurança nas cidades se subdivide em dois grandes
eixos, a saber: i) segurança viária e ii) acesso universal a espaços públicos
seguros, sobretudo para mulheres, crianças, pessoas idosas e pessoas com
deficiência.
A presença da segurança viária enquanto eixo da segurança urbana se
justifica em razão do crescente e preocupante número de pessoas que morrem a
cada ano em decorrência de acidentes no trânsito. Segundo a Organização Pan-
Americana da Saúde (OPAS), baseada no Global Status Report on Road Safety190,
elaborado pela Organização Mundial da Saúde em 2018, cerca de 1,35 milhão de

188
CARRIÓN, Fernando; DAMMERT-GUARDIA; Manuel (Orgs.). Derecho a la ciudad: una evocación
de las transformaciones urbanas en América Latina. Lima: CLACSO, IFEA, 2019. Disponível em:
https://biblio.flacsoandes.edu.ec/libros/151182-opac. Acesso em: 09 mar. 2021.
189
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma
sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza
e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos,
sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
(BRASIL, op. cit., 1988).
190
WORLD HEALTH ORGANIZATION. Global status report on road safety 2018. Disponível em:
https://www.who.int/publications/i/item/9789241565684. Acesso em: 22 fev. 2021.
148 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

pessoas morrem a cada ano devido a acidentes de trânsito, e, ainda, cerca de 50


milhões de pessoas sofrem lesões, que, por vezes, resultam em incapacidade191192.
Conquanto os números mencionados sejam recentes, a preocupação com a
magnitude dos acidentes de trânsito em todo mundo é antiga, tanto que, como
mencionado, a Agenda 2030 contempla a temática no ODS 11, sendo que, em 2010,
a Assembleia Geral das Nações Unidas instituiu o período de 2011-2020 como a
Década da Ação para a Segurança no Trânsito, e, em 2020, definiu os anos de 2021
a 2030 como a Segunda Década de Ação pela Segurança no Trânsito 193.
É válido assinalar que, da redação da meta 11.2 do ODS 11194, extrai-se o
entendimento de que a melhoria na segurança viária poderia ocorrer por meio da
expansão dos transportes públicos. No ponto, é oportuno salientar que o direito ao
transporte é um dos direitos que integra o conceito de direito à cidade, nos termos
do que enuncia o artigo 2º, do Estatuto da Cidade195, e, no âmbito constitucional, é
concebido como um direito social estabelecido no artigo 6º, da Constituição
Federal, incluído pela Emenda Constitucional nº 90, de 2015 196 . O transporte

191
Válido referir que os acidentes de trânsito, ainda quando não resultam em morte, provocam
graves consequências, vez que, por um lado, provocam uma grande carga econômica,
considerando a estimava de que os acidentes de trânsito custam aos governos cercam de 3% do
PIB (com esse valor, poderiam ser construídos vinte e dois mil novos hospitais, com 250 leitos de
UTI; 570 mil novas escolas; 105 quilômetros de novas rodovias etc.) e, por outro lado, os acidentes
de trânsito podem significar abalo emocional e perda da renda familiar. (OPAS. Segurança no
trânsito nas Américas. Washington, DC: OPAS, 2016. Disponível em:
https://iris.paho.org/bitstream/handle/10665.2/31315/9789275719121-
por.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 23 fev. 2021.)
192
OPAS BRASIL. [Folha Informativa - Acidentes de trânsito]. [2019]. Disponível em:
https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=5147:acidentes-de-
transito-folha-informativa&Itemid=779. Acesso em: 23 fev. 2021.
193
PORTAL DO TRÂNSITO. [Notícias – ONU define Segunda Década para Segurança no Trânsito].
[2021]. Disponível em: https://www.portaldotransito.com.br/noticias/onu-define-segunda-
decada-para-seguranca-no-
transito/#:~:text=A%20terceira%20Confer%C3%AAncia%20Global%20da,no%20tr%C3%A2nsito%2
0no%20mundo%20inteiro. Acesso em: 24 fev. 2021.
194
11.2 - Até 2030, proporcionar o acesso a sistemas de transporte seguros, acessíveis,
sustentáveis e a preço acessível para todos, melhorando a segurança rodoviária por meio da
expansão dos transportes públicos, com especial atenção para as necessidades das pessoas em
situação de vulnerabilidade, mulheres, crianças, pessoas com deficiência e idosos. (ONU.
Transformando Nosso Mundo: a Agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável. 2015.
Disponível em: https://www.undp.org/content/dam/brazil/docs/agenda2030/undp-br-
Agenda2030-completo-pt-br-2016.pdf. Acesso em 24 fev. 2021).
195
BRASIL, op. cit., 2001.
196
BRASIL. Emenda Constitucional nº 90, de 15 de setembro de 2015. Dá nova redação ao art. 6º
da Constituição Federal, para introduzir o transporte como direito social. Brasília: DF, 2015.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc90.htm.
Acesso em: 24 fev. 2021.
Eloísa Assis | 149

público coletivo urbano tem papel fundamental na estrutura das cidades, vez que
assegura aos cidadãos o acesso aos espaços e equipamentos urbanos, sendo que,
quando o transporte coletivo compõe um sistema viário desestruturado,
sobrecarregado e precário, sua atividade resulta – para além da acentuação da
segregação territorial urbana, ao limitar o acesso das populações de baixa renda
às demais áreas da cidade – em acidentes fatais. Entende-se, portanto, que, de
acordo com o primeiro eixo mencionado, uma cidade segura é aquela que
proporciona um sistema de transporte eficiente e seguro.
O segundo eixo corresponde ao acesso universal a espaços públicos
seguros, particularmente para as mulheres, crianças, pessoas idosas e pessoas
com deficiência, sendo que se aponta enquanto indicador da consistência desse
eixo a estimativa da população vítima de assédio 197 nas cidades. Dentre as
populações vulneráveis no que tange à segurança urbana, opta-se por abordar a
questão a partir de uma perspectiva de gênero, considerando que as mulheres
sofrem significativa violência em espaços públicos, conquanto não se ignore as
violências sofridas por crianças, idosos, pessoas com deficiência e até mesmo
pela não mencionada comunidade LGBTQIA+.
A cidade é uma estrutura na qual a vida social e seus conflitos se
reproduzem; assim, numa sociedade marcada por desigualdade de gênero, por
óbvio, as interações nos espaços públicos refletem essa dinâmica. Tal percepção
fora confirmada na pesquisa divulgada pela ActionAid, e realizada pelo instituto
YouGov, que, ao entrevistar mulheres das principais cidades do Brasil, constatou
que 86% das brasileiras já sofreram assédio – compreendido popularmente como
assobios, olhares insistentes, perseguições em ruas e avenidas, comentários de
cunho sexual, xingamentos e até mesmo estupro – em suas cidades 198 . Em
Montreal, no Canadá, uma pesquisa realizada nos anos 2000 revelou que cerca de

197
Relevante assinalar que assédio, em sua acepção jurídica, é crime que se configura quando o
agente constrange alguém com o intuito de obter favorecimento sexual, prevalecendo-se de sua
condição de superior hierárquico. O crime sexual que geralmente ocorre no espaço urbano, em
transportes coletivos e locais públicos, é a importunação sexual, que se traduz na realização de ato
libidinoso sem a anuência da vítima. Embora apresente conceito jurídico específico, o assédio
sexual possui outra significação no linguajar cotidiano.
198
ACTIONAID. [Mulheres e Meninas – Brasil lidera assédio de mulheres em espaço público].
[2016]. Disponível em: http://actionaid.org.br/noticia/brasil-lidera-assedio-de-mulheres-em-
espaco-publico/. Acesso em: 23 fev. 2021.
150 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

60% das mulheres entrevistadas tinham medo de caminhar sozinhas à noite em


seus bairros residenciais enquanto apenas 17% dos homens se sentiam da mesma
forma199.
Nessa mesma cidade canadense, o Comitê de Mulheres e Segurança
Urbana (Comité d’Action Femmes et Sécurité Urbaine – CAFSU), de 1992 a 2004,
estudou e desenvolveu ferramentas destinadas a melhorar a segurança e diminuir
o sentimento de insegurança das mulheres nos espaços públicos. Essas
ferramentas foram compiladas em um guia, intitulado Pour un environment urbain
sécuritaire, elaborado para promover discussões sobre a relação entre cidade,
igualdade de gênero e segurança urbana, bem como para orientar gestores
públicos quando do planejamento urbano. As estratégias de intervenção urbana
foram divididas em seis princípios do planejamento urbano para a segurança na
cidade, dentre os quais confere-se destaque aos dois primeiros, a saber: i)
sinalização, que indica a necessidade de melhoria urbana nos elementos visuais
de orientação e localização no espaço urbano, que, segundo o guia, devem ser
claros, precisos, estrategicamente situados e uniformes; ii) visibilidade, com o
objetivo de proporcionar maior controle acerca do espaço por onde se desloca e
aumentar a sensação de segurança, assim, no quesito visibilidade, espera-se que
as cidades tenham uma iluminação adequada e controlem as barreiras visuais que
permitem o isolamento de pessoas e favorecem situações de agressão, como
matagais, terrenos baldios, casas abandonadas etc., bem como construa saídas
para caminhos alternativos, facilitando eventuais desvios de rota dos pedestres
ante qualquer ameaça. Tais estratégias são urgentes, sobretudo quando se
verifica que mulheres e meninas alteram suas rotinas fundamentadas no medo de
circular pela cidade.
Em que pese tal abordagem não tenha sido referida na Agenda 2030,
considera-se imperioso mencionar a problemática da violência urbana quando se
fala em segurança nas cidades, sobretudo quando se identifica que, dentre as

199
MICHAUD, Anne (Coord.). Pour un environment urbain sécuritaire. Guide dáménagement.
Programme Femmes et Ville de la Ville de Montreal. Montreal. 2004. Disponível em:
http://ville.montreal.qc.ca/pls/portal/docs/page/femmes_ville_fr/media/documents/Guide_forma
teurs_environnement_urbain_securitaire.pdf. Acesso em: 23 fev. 2021.
Eloísa Assis | 151

cinquenta cidades mais violentas do mundo, quatorze são brasileiras200. Dados do


Atlas da Violência, elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
(Ipea), em 2020, revelam que as taxas de homicídios das unidades da federação
apresentam números preocupantes, especialmente quando se verifica que a
Organização Mundial da Saúde (OMS) considera uma taxa acima de dez
homicídios por cem mil habitantes como indicador de uma violência epidêmica201
e há estados, como Roraima e Pará, apresentando taxas de 71,8 e 53,2 homicídios
por cem mil habitantes, respectivamente202.
No ponto, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), ao analisar o
número de mortes verificadas em 2018, constatou que onze a cada cem mortes
violentas intencionais foram provocadas pela atuação das polícias, representando
um total de dezessete mortes por dia, o que justifica o fato de que mais da metade
dos jovens, negros e de baixa renda tem medo da atuação policial 203204. A atuação
policial nos Estados Unidos da América gerou forte onda de protestos,
especialmente em razão da morte de George Floyd, em 2020, no entanto, dados
apontam que a polícia carioca supera, sozinha, o número anual de casos
americanos, evidenciando a letalidade da atuação policial no Brasil, sobretudo
quando o alvo são jovens negros moradores das periferias 205 . Com efeito, a
violência e a criminalidade são, ao mesmo tempo, produtos e fatores geradores de

200
Dados obtidos em pesquisa realizada pela organização de sociedade civil mexicana Seguridad,
Justicia y Paz, que, em 2019, revelando dados de 2018, apresentou um ranking das cinquenta
cidades mais violentas do mundo, cuja classificação se baseou nas taxas de homicídio e no critério
de cidades com mais de trezentos mil habitantes. Os resultados e a metodologia da pesquisa
podem ser conferidos no site do Consejo Ciudadano para la Seguridad Pública y la Justicia Penal.
Disponível em: http://www.seguridadjusticiaypaz.org.mx. Acesso em 24 fev. 2021.
201
WORLD BANK. [Urban Violence: A challenge of epidemic proportions]. [2016]. Disponível em:
https://www.worldbank.org/pt/news/feature/2016/09/06/urban-violence-a-challenge-of-
epidemic-proportions. Acesso em: 24 fev. 2021.
202
IPEA. Atlas da Violência 2020. Brasília: Livraria Ipea, 2020. Disponível em:
https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/download/24/atlas-da-violencia-2020. Acesso em: 25
fev. 2021.
203
FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. [Estatísticas]. [2018]. Disponível em:
https://forumseguranca.org.br/estatisticas/. Acesso em: 24 fev. 2021.
204
BERGAMO, Mônica. Mais da metade dos jovens, negros e de baixa renda tem medo da polícia.
Folha de São Paulo, UOL, São Paulo, 12 de abril de 2019. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2019/04/mais-da-metade-dos-jovens-
negros-e-de-baixa-renda-tem-medo-da-policia.shtml. Acesso em: 24 fev. 2021.
205
SUPERINTERESSANTE. [Sociedade – Letalidade policial no Brasil é cinco vezes maior que nos
EUA]. [2020]. Disponível em: https://super.abril.com.br/sociedade/letalidade-policial-no-brasil-e-
cinco-vezes-maior-que-nos-eua/. Acesso em: 25 fev. 2021.
152 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

desigualdade e segregação, sendo que é possível identificar as principais causas


para a exacerbação dos índices de violência e criminalidade no Brasil nos últimos
anos, a saber: o crescimento desordenado das cidades, com uma urbanização sem
planejamento, que resultou numa distribuição desproporcional de riquezas e
oportunidades; a proliferação das armas de fogo e das organizações criminosas,
especialmente ligadas ao tráfico de drogas; uma enraizada cultura violenta de
resolução de conflito; a ineficiência das instituições de segurança pública e a
sedimentação, no imaginário social, do perfil dos criminosos no Brasil206.
A violência e a criminalidade são fenômenos multicausais que demandam
atuações articuladas e integradas do Poder Público com a sociedade civil e o setor
207
privado . O recorte da violência urbana proporciona uma performance
governamental mais apurada e condizente com as vicissitudes dos espaços
urbanos de onde emerge tal fenômeno multifacetado. Jane Jacobs, em Morte e
Vida de Grandes Cidades, enfatiza que a manutenção da segurança urbana é uma
função fundamental das cidades208, eis que, para a autora, o principal atributo de
uma região urbana é que os transeuntes se sintam seguros209.
Nesse sentido tem-se que a inibição de transitar pela cidade pelo medo da
violência promove a restrição ao acesso e uso de espaços, serviços e
equipamentos públicos, afetando sobretudo os grupos mais vulneráveis, como
mulheres, crianças, idosos, pessoas com deficiência, integrantes da comunidade
LGBTQIA+, negros e pobres. A insegurança acentua a segregação territorial e
limita a fruição do direito à cidade, de forma que garantir segurança no espaço
urbano – seja com a disponibilização de um sistema de transporte público seguro
ou com a garantia de utilização, ocupação e ressignificação do espaço público de
forma segura, especialmente para os grupos vulneráveis – é uma função social da
cidade, eis que, uma vez proporcionada a segurança, o cidadão poderá desfrutar
plenamente do seu direito à cidade, o que contribui para o seu próprio bem-estar,

206
CARBONARI, Flávia; LIMA, Renato Sérgio de. Cidades Seguras. In: COSTA, Marco Aurélio (Org.).
O Estatuto da Cidade e a Habitat III: um balanço de quinze anos da política urbana no Brasil e a
Nova Agenda Urbana. Brasília: Ipea, 2016.
207
CARBONARI, Flávia; LIMA, Renato Sérgio de., op. cit., 2016.
208
JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cidades. Carlos Rosa (trad.). São Paulo: Martins Fontes,
2014.
209
Ibidem.
Eloísa Assis | 153

em atenção ao que determina o artigo 182, da Constituição Federal210.

3.1.6.3 Cidades Resilientes

O vocábulo resiliência vem do latim resilire, que significa “voltar atrás”, e


corresponde à capacidade de resistir, se recuperar e se adaptar de forma eficiente
frente a situações adversas. As cidades contemporâneas são marcadas por
grande densidade populacional e construtiva bem como pelo desenfreado
consumo dos recursos naturais. Essas circunstâncias promovem impactos
sociais, econômicos e ambientais que se relacionam com i) o déficit habitacional;
ii) as mudanças climáticas; iii) a ocupação de encostas com riscos de
deslizamentos; iv) a ocorrência de enchentes, geralmente provenientes da
inadequada destinação do lixo e da derrubada indisciplinada das vegetações que
protegem os cursos d’água, para além da ausência de planejamento urbano nas
regiões que se localizam nas proximidades de rios e da impermeabilização do solo
provocada pelo aumento da densidade das populações urbanas e pelas invasões
de áreas de preservação ambiental; v) um sistema de transporte sobrecarregado
e ineficiente; vi) a violência urbana, dentre outros fenômenos de igual magnitude.
Os problemas ambientais das cidades, somados aos desafios associados
às desigualdades sociais, contornam a urgência pela elaboração de estratégias
para o controle dos riscos envolvidos nos fenômenos que ameaçam as estruturas
das cidades. Compreendendo que, por vezes, a ocorrência de tais fenômenos é
inevitável – ou, ainda que evitável, se demonstra como irreversível – a comunidade
internacional tem acentuado a imprescindibilidade de que as cidades sejam
capazes de absorver impactos e rapidamente retornar ao seu estado original,
sendo dotada do que se convencionou chamar de resiliência.
O Escritório das Nações Unidas para Redução dos Riscos de Desastres, em
2012, formulou e publicou uma guia para estruturação de cidades resilientes
intitulado “Como construir cidades mais resilientes: um guia para gestores

210
BRASIL, op. cit., 1988.
154 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

públicos locais”211, com o propósito de orientar a elaboração de políticas públicas


voltadas à redução de riscos e à resiliência nas cidades. No documento, restam
explicitados os benefícios do investimento em resiliência, são eles: i) a construção
de um legado de liderança, sobretudo a partir do fortalecimento da confiança e da
legitimidade dos governos locais que otimizam recursos e atuam em
conformidade com os padrões internacionais; ii) a obtenção de vantagens sociais
e humanas que se traduzem no salvamento de vidas, reduzindo fatalidades e
danos mais graves, bem como garantindo melhores condições de vida e bem-
estar, para além da proteção dos bens comunitários e da herança cultural local; e
iii) o crescimento econômico e a geração de emprego, isso porque cidades bem
governadas e com planos de mitigação de desastres atraem maior investimento,
que oportunizam o crescimento de negócios, que, por sua vez, confere oferta
crescente de empregos212.
Uma cidade resiliente, portanto, é um local onde os desastres, sejam eles
ambientais ou sociais, são atenuados porque i) a população possui moradias que
seguem os padrões de segurança e os códigos de construção, sem ocupações
irregulares por ausência de outras terras disponíveis; ii) o governo local atua na
prevenção e na contenção das adversidades, preocupando-se com uma
urbanização sustentável; iii) os cidadãos se percebem empoderados para
participar ativamente no planejamento da cidade em conjunto com as autoridades
locais; iv) as tecnologias de monitoramento auxiliam os governos locais na
antecipação e mitigação dos impactos e dos eventos adversos; e iv) as estratégias
elaboradas para minimizar os danos físicos e sociais dos eventos climáticos
extremos, causados naturalmente ou por indução humana, são condizentes com
os fenômenos e capazes de efetivamente contê-los213.
O documento também enfatiza a existência do Marco de Ação de Hyogo

211
ONU. Escritório das Nações unidas para Redução de Riscos de Desastres. Como construir
cidades mais resilientes: um guia para gestores públicos locais. Uma contribuição à Campanha
Global 2010-2015. Construindo cidades resilientes – minha cidade está se preparando. Genebra,
2012. Disponível em: https://www.unisdr.org/files/26462_guiagestorespublicosweb.pdf. Acesso
em: 20 fev. 2021.
212
Ibidem.
213
ONU, op. cit., 2012.
Eloísa Assis | 155

2005-2015214, um importante instrumento de implementação da redução de riscos


de desastres adotado pelos Estados-membros das Nações Unidas em 2005, que
guia as políticas públicas nacionais nas diligências voltadas à redução das perdas
decorrentes das ameaças naturais, estabelecendo cinco prioridades de ação, são
elas: i) tornar a redução de riscos de desastres uma prioridade nacional e local,
formando um sólida base institucional para sua implementação; ii) compreender
os riscos: identificar, avaliar e monitorar os riscos de desastres bem como
melhorar os alertas prévios; iii) empreender esforços para sensibilização e
conscientização ao efeito de que seja criada uma cultura de segurança e
resiliência em todos os níveis; iv) reduzir os fatores estruturais do risco; v)
fortalecer a preparação para oferecer respostas efetivas aos desastres215.
Em 2013, no centenário da Fundação Rockefeller – associação
estadunidense beneficente e não-governamental que utiliza recursos próprios
para efetuar ações em vários países do mundo, especialmente os
subdesenvolvidos – fora criado o Projeto 100 Cidades Resilientes 216 , com o
objetivo de destinar cerca de cem milhões de dólares para ajudar cem cidades a
se tornarem mais resilientes, ou seja, mais preparadas para lidar com os desafios
socioambientais e econômicos para uma urbanização sustentável. As cidades
brasileiras que fazem parte desse seleto grupo são Salvador, Rio de Janeiro e Porto
Alegre.
Primeira capital do Brasil, Salvador completará 500 anos em 2049, sendo tal
ano marcado enquanto meta para a efetivação de uma verdadeira cidade resiliente,
nos termos da Estratégia de Resiliência para Salvador217, documento elaborado no
âmbito do Projeto 100 Cidades Resilientes, da Fundação Rockefeller. A construção
da resiliência em Salvador objetiva atenuar os custos da desigualdade

214
ONU. Estratégia Internacional para Redução de Desastres. MAH. 2005. Disponível em:
http://urbanismo.mppr.mp.br/arquivos/File/MarcodeAcaodeHyogoCidadesResilientes20052015.
pdf. Acesso em 20 fev. 2021.
215
ONU, op. cit., 2012.
216
O programa se direciona a apoiar as cidades na incorporação de atuações resilientes, que
abrangem desastres naturais, como inundações, surtos epidemiológicos, deslizamentos de terra,
mas, também fenômenos que desgastam o tecido social urbano, como o desemprego, a violência
ou, ainda, um sistema de transporte público sobrecarregado e ineficiente.
217
PREFEITURA DE SALVADOR. Secretaria de Sustentabilidade, Inovação e Resiliência – SECIS.
Salvador Resiliente. Salvador, 2019. Disponível em:
http://salvadorresiliente.salvador.ba.gov.br/pdf/#p=229. Acesso em: 24 fev. 2021.
156 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

socioeconômica e envidar esforços para ela se desarticule. Para tal desiderato


foram realizados workshops, entrevistas qualitativas e projetos municipais 218 .
Oportuno salientar que a Estratégia de Resiliência para Salvador está estruturada
em cinco pilares, são eles: 1) Cultura e Múltiplas Identidades: a fim de i) valorizar
e requalificar o patrimônio histórico da cidade, ii) fortalecer a diversidade cultural
de Salvador, fomentando-a enquanto ativo para desenvolvimento socioeconômico
e iii) dar visibilidade e consolidar as múltiplas identidades territoriais
soteropolitanas; 2) Comunidade Saudável e Engajada: no sentido de i) ampliar o
acesso à educação pública de qualidade, ii) estimular a corresponsabilidade e a
cultura cidadã através do incentivo aos processos integrados e participativos, iii)
promover equidade, sobretudo racial e de gênero, iv) realizar uma gestão de saúde
de qualidade, prestando melhor atendimento à população; 3) Economia
Diversificada e Inclusiva: reforçando i) o apoio ao empreendedorismo de negócio
inovadores, inclusos e sustentáveis, ii) a valorização da cultura local e da
necessidade de o setor turístico atuar de forma integrada e sustentável, e iii) a
necessidade pela promoção de atividades de captação para fortalecimento e
diversificação da economia local; 4) Cidade Informada e Governança Inovadora:
ao efeito de i) adotar uma política forte e consistente em tecnologia, com
ferramentas que permitam conhecer a cidade e facilitem o planejamento integrado
e assertivo das ações futuras, bem como ii) proporcionar a prestação de serviços
de forma inclusiva, inovadora e integrada em razão de uma gestão de dados
transparente e eficiente; e 5) Transformação Urbana Sustentável: que corresponde
à i) preparação da cidade para as mudanças climáticas, munindo-a com
mecanismos de adaptação, ii) criação de formas inovadoras de desenvolvimento,
que valorizem os ativos ambientais da cidade, e iii) promoção da transformação
sustentável da cidade, por meio de um olhar multidisciplinar 219.
Das estratégias soteropolitanas para atribuição de resiliência à capital
baiana, depreende-se que as iniciativas voltadas à prevenção de riscos ambientais
estão inseridas em apenas um dos cinco pilares que estruturam as estratégias, de
forma que se assenta a compreensão de que a resiliência diz respeito a muito mais

218
PREFEITURA DE SALVADOR, op. cit., 2019.
219
Ibidem.
Eloísa Assis | 157

do que adaptação às alterações climáticas e superação dos episódios de


desastres naturais.
As Estratégias de Resiliência do município do Rio de Janeiro, denominada
Rio Resiliente, estão estruturadas em seis principais objetivos, a saber: i)
aprofundar o conhecimento sobre as mudanças climáticas e atenuar seus
impactos; ii) preparar o Rio para responder adequadamente aos eventos
climáticos extremos e outros fenômenos socioambientais; iii) desenvolver e
adaptar espaços urbanos verdes, seguros, frescos e flexíveis; iv) ofertar serviços
básicos de alta qualidade para todos os cidadãos; v) fomentar uma economia
inclusiva, diversificada, circular e de baixo carbono; bem como vi) aumentar a
resiliência dos cidadãos e viabilizar a coesão social220.
Para atingir tais objetivos, foram estabelecidos planos de ações, dentre os
quais se destacam: a) o Sistema Alerta Rio, que integra as informações geológicas,
meteorológicas e pluviométricas das áreas indicadas como vulneráveis, para
viabilizar a evacuação imediata sob ameaça de deslizamento devido às fortes
chuvas; b) o reforço do programa de atendimento psicossocial, com ampliação da
cobertura dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS); c) o Centro de Operações
Rio, que monitora permanentemente a cidade, por meio de mais de seiscentas
câmeras; d) o Morar Carioca, projeto de urbanização popular que abrange as áreas
de infraestrutura, paisagismo, implantação de áreas de lazer e equipamentos e
serviços públicos, proporcionando maior conforto e dignidade aos moradores das
áreas mais carentes da cidade, para além da regularização urbanística e fundiária
nas comunidades carentes; e) o Ágora Rio, programa que convoca a participação
dos cidadãos na construção de uma cidade mais inteligente, debatendo de forma
colaborativa e ordenada os desafios para a implementação de tecnologias no
contexto da cidade; f) o Auxílio Habitacional Temporário, para assistir famílias
desalojadas até o reassentamento destas pelo programa habitacional do Governo

220
PREFEITURA DO RIO DE JANEIRO. RioResiliente – Estratégias de resiliência da cidade do Rio de
Janeiro. Disponível em:
https://drive.google.com/file/d/0Bw6co0uZu4wlWGNGOGpmaHVGYnc/view. Acesso em: 25 fev.
2021.
158 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

Federal; e g) o Banco Carioca de Bolsa de Estudos, programa que concede bolsas


de estudos para pessoas de baixa renda221.
A cidade de Porto Alegre, a seu turno, entende que uma gestão resiliente é
aquela qualificada pelos seguintes adjetivos: i) inclusiva, para garantir a
prosperidade coletiva, envolvendo o mais diversificado conjunto de populações,
incluindo as mais vulneráveis, seja economicamente, socialmente ou
ambientalmente; ii) integrada, no sentido de articular as iniciativas voltadas à
resiliência com as atividades que já estavam em curso; iii) robusta, ou seja,
desenvolvida por meio de um processo rigoroso e detalhado, abrangendo
abordagens quantitativas e qualitativas; iv) engenhosa, a fim de apresentar opções
inovadoras para as limitações de recursos da cidade; v) reflexiva, no sentido de
viabilizar avaliações contínuas e estruturação de mecanismos mais adequados às
problemáticas verificadas; vi) redundante, eis que deve garantir um multiplicidade
de iniciativas para abranger as diferentes necessidades dos cidadãos e vii) flexível,
a fim de possibilitar a alteração das estratégias ante acontecimentos
imprevistos222.
Para assegurar uma gestão resiliente aos cidadãos, a Estratégia de
Resiliência de Porto Alegre prevê seis objetivos: a) estabelecimento de um
ecossistema dinâmico e inovador, fundamentado na integração orgânica entre as
universidades, as empresas, o Poder Público e as comunidades locais e na
economia da inovação, especialmente quanto à produção agrícola orgânica capaz
de contribuir significativamente para as necessidades de abastecimento da
cidade; b) consignação da cultura da paz em Porto Alegre, com a democratização
do acesso à educação de qualidade, à saúde preventiva e à segurança cidadã,
assegurada através da colaboração de todos os cidadãos e voltadas à redução
das desigualdades socioeconômicas; c) estruturação de atuações para prevenção
de riscos, sobretudo os de inundação, alagamento e deslizamento, protegendo as

221
PREFEITURA DO RIO DE JANEIRO. RioResiliente – Diagnóstico e áreas de foco. Disponível em:
https://drive.google.com/file/d/0Bw6co0uZu4wlREtDMW1uQ2pac3c/view. Acesso em: 25 fev.
2021.
222
PREFEITURA DE PORTO ALEGRE. Coordenadoria de Inovação. Guia Porto Alegre Resiliente.
Disponível em:
http://lproweb.procempa.com.br/pmpa/prefpoa/inovapoa/usu_doc/guia_poa_resiliente-final.pdf.
Acesso em: 24 fev. 2021.
Eloísa Assis | 159

famílias e seus pertences, evitando ao máximo o desalojamento; d) oferecimento


de um sistema de mobilidade de qualidade, com modais alternativos e integrados
a fim de atender as diferentes necessidades da população, com abertura para as
novas tecnologias que melhoram a mobilidade urbana e incentivo às práticas
solidárias e compartilhadas de mobilidade; e) instituir um adequado processo de
regularização fundiária capaz de eliminar as ocupações informais, fornecer
serviços de água, energia elétrica, saneamento básico e transporte a todos os
cidadãos, bem como incentivar a participação da população nos procedimentos
relativos aos processos de regularização fundiária, estruturando confiança,
colaboração e transparência; e f) articular um orçamento participativo qualificado
capaz de contribuir para o aumento da resiliência da cidade223.
Nesse sentido, considerando que a urbanização não se traduz,
necessariamente, em garantia de qualidade de vida, e, mais do que isso, que, por
vezes, a urbanização provoca e acentua problemas sociais, ambientais e
econômicos, a resiliência desponta como qualidade inarredável das cidades, a fim
de garantir a adaptabilidade às novas realidades e aos desafios que emergem no
contexto urbano. Assim, a capacidade de adaptar-se e recuperar-se de eventos
que desestruturam a ordem e a composição do espaço urbano é uma das funções
sociais da cidade, eis que cidades resilientes proporcionam bem-estar aos
cidadãos, cumprindo, portanto, a determinação estabelecida no caput do artigo
182, da Constituição Federal de 1988224.

3.1.6.4 Cidades Sustentáveis

Considerando que o tema da sustentabilidade fora detalhadamente


abordado quando da explicitação do princípio da sustentabilidade, ao efeito de
evitar desnecessária repetição, reporta-se ao item 3.1.1. Incumbe reforçar, no

223
PREFEITURA DE PORTO ALEGRE. Estratégia de Resiliência de Porto Alegre. 2016. Disponível em:
https://www.researchgate.net/publication/322084042_ESTRATEGIA_DE_RESILIENCIA_DE_PORTO
_ALEGRE. Acesso em: 24 fev. 2021.
224
Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal,
conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das
funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. (BRASIL, op. cit., 1988).
160 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

entanto, que a sustentabilidade é um dever fundamental que se dirige a


proporcionar bem-estar multidimensional e intergeracional, contemplando
elementos éticos, ambientais, jurídicos, políticos, sociais e econômicos que se
voltam à garantia do direito ao futuro. O direito às cidades sustentáveis, no
Estatuto da Cidade, é explicitado como um conceito guarda-chuva que contempla
direitos interdependentes, assim, vinculam-se a tal conceito os direitos à terra
urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura, ao transporte e aos
serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações.
Isso significa dizer que todos os direitos elencados no rol que integra o conceito
de direito à cidade devem ser analisados e implementados levando em
consideração abordagens ambientais, econômicas, jurídicas, políticas, éticas e
sociais, ao efeito de proporcionar bem-estar multidimensional aos habitantes das
cidades.
Explicitando o direito à cidade sustentável, Freitas identifica quatro vigas
mestras que sustentam o conteúdo de tal direito, a saber: i) o bem-estar
multidimensional e intergeracional; ii) a democracia direta em rede, superando a
estrutura analógica e piramidal, conformando um governo digital, includente e
interativo que tem no ideal de cidade inteligente sua expressão; iii) a inovação
sustentável, que oportuniza, através do desenvolvimento da tecnologia, a
elaboração de soluções multidimensionalmente sustentáveis para problemas que
se desenrolam no espaço urbano; e iv) a garantia de infraestruturas limpas e
adequadas à saúde pública, abrangendo temas como energias renováveis,
alimentação, água potável, saneamento e habitação 225 . É nesse sentido que se
estrutura a concepção de que os direitos integrantes ao conceito de direito à
cidade se condicionam à observância dessas quatro vigas estruturantes a fim de
corresponderem propriamente à qualificação atribuída quando são concebidos
enquanto direitos interdependentes ao direito a cidades sustentáveis.
Nessa ordem de coisas, o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento
ambiental, à infraestrutura, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao
lazer precisam estar inteiramente direcionados à garantia do bem-estar

225
FREITAS, Juarez. Direito à cidade sustentável: agenda positiva. Interesse Público – IP, Belo
Horizonte, ano 22, n. 119, p. 15-25, jan./fev. 2020.
Eloísa Assis | 161

multidimensional dos habitantes das cidades, proporcionando o exercício de uma


democracia direta, inclusiva, interativa e digital, conformando uma cidade
inteligente, que, inclusive, utiliza sua tecnologia para inovar de maneira
sustentável, contribuindo para o oferecimento de infraestruturas adequadas à
saúde pública nas mais variadas abordagens, de alimentação a habitação.
Sabe-se que o Constituinte estabeleceu o bem-estar dos habitantes das
cidades enquanto objetivo a ser alcançado por meio de políticas públicas urbanas.
Todavia, as mudanças nas estruturas e dinâmicas das relações sociais implicam
ressignificação do conteúdo do vocábulo bem-estar, eis que as demandas sociais
guardam relação de interdependência com o contexto histórico-social em que
estão inseridos os indivíduos que as reivindicam. Nesse rumo, oportuno assinalar
que o desenvolvimento das tecnologias – de automação e de inteligência artificial
– promoveu rearranjo da dinâmica social, ocasião em que se reestruturaram novas
demandas sociais, tais como o direito ao esquecimento, direito à conexão e à
desconexão, direito à informação, etc. A temática das smart cities – cidades
inteligentes – também é resultado do rearranjo social promovido pelo avanço
tecnológico, sendo que se apresenta enquanto resposta às atuais e complexas
necessidades socioeconômicas. Juarez Freitas, inclusive, apresenta as cidades
inteligentes como integradas ao conceito de cidades sustentáveis226.
Embora a temática das cidades inteligentes esteja consolidada enquanto
assunto fundamental nas agendas e discussões globais, fato é que, por se tratar
de um conceito de recente formulação227, identifica-se certa dificuldade em sua
plena definição. Inexiste definição universal e precisa do conceito de cidades
inteligentes; contudo, governos que se direcionam ao alcance de tal objetivo
recorrem aos padrões estabelecidos pelos países europeus, especialmente porque
é o continente que possui o maior número de cidades inteligentes, e também
porque foram os países-membros da União Europeia que assentaram a temática

226
FREITAS, op. cit., 2019.
227
A reivindicação por cidades inteligentes surgiu no final da década de 1990, quando a internet
despontava sua importância no tecido social. No início, falava-se em cidades digitais, mas o termo
foi substituído por cidades inteligentes a fim de demonstrar a amplitude da proposta de dinâmica
tecnológica nas cidades.
162 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

das cidades inteligentes na agenda internacional, definindo, inclusive, parâmetros


para a identificação de uma cidade inteligente.
Segundo a União Europeia, onze são as prioridades dos governos das
cidades inteligentes, no entanto, é possível condensar e classificar essas
prioridades em seis caraterísticas necessárias para uma cidade ser reconhecida
como uma smart city, sendo elas: (i) smart people, pessoas criativas, inovadoras
e engajadas com a vida pública; (ii) smart governance, identificada como uma
administração transparente e que disponibiliza serviços públicos adequados e
suficientes à população, incentivando, sempre que possível, a participação da
sociedade civil nos assuntos públicos; (iii) smart environment, que corresponde ao
viés ambiental e sustentável das cidades; (iv) smart living, que abrange não apenas
a preocupação habitacional, mas, também, as interações dos habitantes com o
espaço urbano no que se refere ao lazer, à cultura, à educação, ao trabalho etc.; (v)
smart mobility, que se traduz na preocupação com a garantia de acessibilidade e
infraestrutura adequada dos sistemas de transporte; e (vi) smart economy, no
âmbito interno, fomentando a inovação e desenvolvimento, e, no âmbito externo,
viabilizando integração internacional228.
Com efeito, das seis características explicitadas merecem destaque as duas
primeiras, a saber, smart people e smart governance, cidadãos inteligentes e
governos inteligentes, respectivamente, considerando que são dimensões que
fogem do que comumente se entende pela temática; isso porque, o geralmente
vem à tona, quando se reflete acerca das cidades inteligentes, está relacionado à
interatividade, inovação tecnológica, desafios das energias renováveis,
responsividade, demandas ambientais etc. Não se está a desconsiderar a
importância de tais reflexões, contudo, em verdade, quando o foco do investimento
direcionado à melhoria do bem-estar dos cidadãos leva em consideração tão-
somente expectativas de adoção e integração de novas tecnologias, as pessoas
passam a ser concebidas enquanto sujeitos secundários. Nesse rumo, Patrícia
Fanaya assevera que uma cidade pode ser concebida como inteligente quando os

228
COMMUNITIES, European Innovation Partnership on Smart Cities and. Market Place of the
European Innovation Partnership on Smart Cities and Communities. Disponível em: https://eu-
smartcities.eu. Acesso em: 23 fev. 2021.
Eloísa Assis | 163

investimentos no capital humano e social incentivam, para além do crescimento


econômico e sustentável, um governo participativo, eis que, para a autora, cidades
inteligentes atuam como ambientes cognitivos e catalisadores da formação de
cidadãos inteligentes229.
Assim, compreende-se que a manutenção de um ecossistema aberto à
cognição evita a naturalização das interações sociais, permitindo que os cidadãos
sejam capazes de perceber as ambivalências, quando existentes, das estruturas e
dinâmicas sociais, sobretudo em tempos de inclusão tecnológica e digital, ao
efeito de, viabilizando uma genuína cidade inteligente colaborativa, restar
assegurado o bem-estar dos moradores das cidades. Assim, evidencia-se que a
tecnologia apenas visa auxiliar governos inteligentes que saibam como incentivar
seus inteligentes cidadãos a serem sustentáveis, inovadores, resilientes e atentos
às implicações da inclusão de tecnologias nas cidades.
Assim, assenta-se que o conteúdo semântico do termo cidades inteligentes
repousa na capacidade dessas em proporcionar a formação de cidadãos, esses,
sim, inteligentes e engajados na vida pública, a fim de colaborarem na
estruturação de estratégias para a plena efetivação dos direitos enunciados pelo
Estatuto da Cidade como integrantes ao conceito de direito às cidades
sustentáveis. Entende-se, portanto, que as cidades inteligentes contribuem para o
desenvolvimento democrático de cidades sustentáveis, especialmente em razão
dos instrumentos jurídicos que formatam as políticas públicas de planejamento,
gestão e disciplina urbanística, conforme assinalam Janriê Reck e Fábio Vanin230.
Considerando a acepção multidimensional da sustentabilidade, entende-se
que as cidades sustentáveis atendem às projeções constitucionais de
desenvolvimento e de proteção à dignidade dos indivíduos no contexto urbano.
Assim, parte do ODS 11 restava contemplada no Estatuto da Cidade, que, ao
explicitar o direito à cidade, introduziu sua insuprimível qualificadora, a saber, a
sustentabilidade. O direito às cidades sustentáveis corresponde, portanto, à

229
FANAYA, Patrícia. Cidades como ambientes cognitivos. In: SANTAELLA, Lúcia (org.). Cidades
Inteligentes: por que, para quem? São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2016.
230
RECK, Janriê; VANIN, Fábio. O direito e as cidades inteligentes: desafios e possibilidades na
construção de políticas públicas de planejamento, gestão e disciplina urbanística. Revista de
Direito da Cidade, vol. 12, n. 1, p. 464-492. 2020.
164 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

garantia do bem-estar multidimensional aos indivíduos no contexto das cidades.


Por tal motivo, assenta-se como função social da cidade a promoção da
sustentabilidade.
O princípio da função social da cidade reforça a imprescindibilidade da
garantia de direitos capazes de proporcionar o bem-estar dos cidadãos,
conduzindo ao entendimento no sentido de que um município que atende às
funções sociais da cidade corresponde ao município que viabiliza a garantia do
bem-estar dos cidadãos no contexto urbano. E não há outro caminho para a
garantia desse bem-estar senão pela estruturação de cidades inclusivas, seguras,
resilientes e sustentáveis. Se a função social das cidades é assegurar o bem-estar
dos indivíduos, essa tarefa se demonstra mais próxima de seu adimplemento
quando a gestão municipal assegura a inclusão dos cidadãos; a segurança na
ocupação e fruição do espaço urbano; a perspectiva de absorção e contorno
eficiente das adversidades sociais e ambientais; e a efetivação da
sustentabilidade multidimensional. Enquanto outrora as funções sociais das
cidades correspondiam à atuação dessas para a viabilização de ações básicas
compreendidas enquanto indispensáveis para a vida – a saber, habitar, trabalhar,
divertir-se e mover-se – a complexidade da dinâmica social contemporânea
demanda uma acepção mais abrangente capaz de alcançar os múltiplos
fenômenos que se desenrolam nas cidades. Assim é que se assenta o
entendimento de que a função da cidade é incluir, promover segurança, ser
resiliente e sustentável, ao efeito de propiciar o livre desenvolvimento das
potencialidades dos cidadãos.
Os princípios que orientam o direito à cidade acentuam sua feição enquanto
garantia que objetiva promover o usufruto equitativo das cidades e dos direitos
interdependentes que a ela se vinculam. Nesse sentido, tem-se que aos direitos
enunciados no artigo 2º do Estatuto da Cidade é exigível a observância às
percepções trazidas pela constante formulação do conteúdo do direito à cidade,
que ressignificou a acepção de todos os direitos a ele interdependentes, dentre
eles, o direito à moradia. O próximo e último capítulo analisa especificamente a
ressignificação do direito à moradia promovida pela densificação do direito à
cidade e pela frequente alteração do conteúdo de seus princípios estruturantes –
Eloísa Assis | 165

já que fundamentados em preceitos filosóficos e sociológicos, que, por óbvio,


tendem à mutabilidade.
4. A IMPRESCINDIBILIDADE DA VINCULAÇÃO DO DIREITO À MORADIA AO
DIREITO À CIDADE: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS

Em um mundo em rápida mudança e urbanização, a provisão de habitação


se contorna enquanto prioridade fundamental para todos os governos. No entanto,
o conceito de habitação, atualmente, requer uma nova compreensão para efetiva
e sinergicamente contemplar as demandas atuais e cada vez mais urgentes. Mais
que um teto para se abrigar, a moradia desempenha papel crucial para alcançar
um desenvolvimento sustentável, resiliente e inclusivo, de sorte que sua definição
demonstra abranger os conteúdos que sustentam o direito à cidade, isso porque,
em verdade, o direito à moradia, apesar de ser um direito autônomo, é
interdependente ao direito à cidade e se insere no âmbito de seu conceito guarda-
chuva.
O presente capítulo se dirige a explicitar a nova conformação do direito à
moradia, que fora ressignificado a partir da consolidação do direito fundamental à
cidade. Apresentando as concepções não mais admissíveis no que se refere às
políticas públicas habitacionais – eis que, sob a nova configuração do direito à
moradia, são exigíveis atuações singulares e assertivas que observem as reflexões
conduzidas pela estruturação do direito à cidade – o quarto e último capítulo
revela os atuais desafios aos quais o direito à moradia fora submetido,
especialmente em razão da pandemia do coronavírus, que, desde 2020, quando
atingiu proporções catastróficas, representa uma adversidade a ser superada.

4.1 A CONTEXTUALIZAÇÃO DO DIREITO À MORADIA NO DIREITO À CIDADE: UMA


ANÁLISE A PARTIR DO PROGRAMA MINHA CASA, MINHA VIDA

Delimitados por ordenados processos patrimonialistas de divisão de


espaço urbano, os avanços da urbanização brasileira estão conectados a
dinâmicas que mantêm a desigualdade social. Contudo, em 2000, com a edição da
Emenda Constitucional nº 26 1 , a Constituição Federal brasileira consagrou o

1
BRASIL, op. cit., 2000.
168 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

direito à moradia como um direito fundamental, prospectando uma melhora no


cenário urbano brasileiro. Hodiernamente, cabe fazer valer esse direito, para o qual
contribui o direito à cidade. Em verdade, o direito à cidade torna o direito à moradia
mais robusto, vez que, mais do que um direito a um lugar para se abrigar, as noções
de direito à cidade inserem na perspectiva do direito à moradia a
imprescindibilidade de um olhar atento às interações das unidades habitacionais
com a estrutura urbana e com os serviços públicos lá disponibilizados. É a partir
da compreensão de que o direito à moradia, embora seja um direito autônomo,
está inserido à órbita conceitual do direito à cidade, que se consolida o
entendimento de que o direito à moradia não se perfectibiliza tão somente com o
fornecimento de um local de abrigo, antes, mais do que isso, abrange as reflexões
promovidas pelo desenvolvimento e sedimentação do conteúdo do direito à
cidade, que, como o capítulo anterior demonstrou, é preenchido por princípios
constitucionais que orientam a plena acessibilidade às cidades inclusivas,
seguras, resilientes, sustentáveis, justas e democráticas.
Um olhar desatento às fragilidades do raciocínio que ignora as premissas
do direito à cidade, quando da idealização de programas orientados à
concretização do direito à moradia, tende a projetar soluções inócuas. Um
exemplo disso é a discussão acerca dos resultados do Programa Minha Casa
Minha Vida – PMCMV2. Objetivando minimizar o déficit habitacional, a criação do
PMCMV consistiu em uma forma de intervenção do Governo Federal, que passou
a subsidiar a construção de moradias para as camadas menos favorecidas
economicamente. Entretanto, o que se observa é que a construção dessas
unidades habitacionais, per se, não atende integralmente as necessidades dos
indivíduos favorecidos, uma vez que as habitações, comumente, para além de
apresentarem baixa qualidade construtiva, são distantes dos centros urbanos e
dos serviços essenciais lá prestados, situação que impulsiona o questionamento
acerca da adequação do fornecimento de moradias da maneira como é operado
no Brasil.

2
Programa instituído pela Lei nº 11.977, de 7 de julho de 2009.
Eloísa Assis | 169

O programa MCMV se destina à facilitação da aquisição da casa própria


para as famílias de baixa renda, sendo as concessões de benefício realizadas por
faixa de renda, que foram divididas da seguinte forma: i) Faixa 1 – famílias com
renda mensal de até R$ 1.800,00, às quais previu-se 90% de subsídio do valor do
imóvel, a ser pago em até 120 prestações mensais de, no máximo, duzentos e
setenta reais, sem juros; ii) Faixa 1,5 – famílias com renda mensal de até R$
2.600,00 – cujo subsídio previsto era de R$47.500,00, sendo o restante financiado
pelo banco em até 30 anos, com 5% de juros ao ano; iii) Faixa 2 – composta por
famílias cuja renda mensal é de até R$ 4.000,00, subsidiando até R$ 29.000,00 com
6% a 7% de juros ao ano; e iv) Faixa 3 – integrada por famílias com renda mensal
de até R$ 9.000,00 (nove mil reais), às quais não é oferecido subsídio, mas, sim,
juros menores em relação ao comumente cobrado pelos bancos, pois a taxa é de
até 8,16% ao ano3.
Conforme já assinalado no segundo capítulo, a criação do PMCMV se
direcionava a solucionar duas problemáticas, a saber, o crescente déficit
habitacional e a acentuada crise financeira internacional. Prospectava-se que,
com a geração de empregos e o aquecimento do setor da construção civil
promovidos pelo PMCMV, a economia brasileira conseguiria se desvencilhar dos
impactos da crise financeira internacional, e, ao mesmo tempo, ofereceria resposta
satisfatória à questão do déficit habitacional. Sob a perspectiva econômica, o
Programa funcionou satisfatoriamente, eis que a geração de milhares de postos
de emprego manteve a economia brasileira aquecida, atenuando os efeitos
internos da crise financeira mundial. Contudo, o déficit habitacional não parece ter
sido solucionado com a implementação do PMCMV.
O conceito de déficit habitacional se vincula às deficiências nas moradias,
que se explicitam a partir de quatro indicadores, quais sejam: precariedade na
habitação, coabitação, ônus excessivo com aluguel urbano e adensamento
excessivo dos domicílios alugados. O primeiro deles se associa às moradias que
não possuem condições de habitabilidade, seja em razão da precariedade das

3
BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Regional. [Habitação – Programa Minha Casa, Minha
Vida]. [2020]. Disponível em: https://www.gov.br/mdr/pt-br/assuntos/habitacao/minha-casa-
minha-vida/programa-minha-casa-minha-vida-mcmv. Acesso em: 19 fev. 2021.
170 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

construções ou do extremo desgaste da estrutura física, o que proporciona risco


de contaminações por doenças devido à insalubridade. O segundo, também
denominado déficit por incremento de estoque, por sua vez, se refere aos
domicílios improvisados, geralmente em locais sem fins residenciais, sendo
caracterizados pela coabitação familiar. O terceiro corresponde ao número de
famílias com renda familiar de até três salários mínimos que despendem mais de
30% de sua renda com aluguel4. Por fim, o quarto indicador corresponde ao número
médio de moradores superior a três pessoas por dormitório5.
Segundo as últimas estimativas da Fundação João Pinheiro, divulgadas em
2020, o déficit habitacional em 2019 correspondeu a 5,87 milhões de domicílios,
do quais 85,9% (5,044 milhões) estão localizados nas áreas urbanas. Do total do
déficit habitacional apurado, 51,7% decorre do ônus excessivo com aluguel, 25,2%
das habitações precárias e 23,1% da coabitação familiar 6 . A Fundação aponta,
ainda, a contraditoriedade existente na constatação de um acentuado déficit
habitacional e, ao mesmo tempo, um significativo número de imóveis vagos7. É
importante assinalar que na apuração do déficit habitacional não são
contabilizados os domicílios inadequados, ou seja, não se inserem no cálculo do
déficit habitacional os domicílios com carência de infraestrutura, adensamento
excessivo de moradores em domicílios próprios, questões fundiárias, cobertura
inadequada e ausência de unidade sanitária domiciliar exclusiva ou altamente
depreciada.
É de se questionar o motivo pelo qual a implementação do PMCMV não
representou impacto significativo no déficit habitacional, eis que, em 2009, o
déficit habitacional estimado era de 5,89 milhões de domicílios, e, em 2019, dez
anos após a implementação do programa, o déficit habitacional correspondia a
5,87 milhões de domicílios. Em que pese o fato da alteração do cálculo do déficit

4
FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO. Déficit Habitacional no Brasil 2016-2019. Belo Horizonte: FJP, 2021.
Disponível em: http://novosite.fjp.mg.gov.br/wp-content/uploads/2020/12/04.03_Relatorio-
Deficit-Habitacional-no-Brasil-2016-2019-v1.0_compressed.pdf. Acesso em: 23 fev. 2021.
5
O adensamento excessivo de moradores era, até 2007, componente da inadequação de
domicílios, contudo, a partir desse mesmo ano, o adensamento excessivo de moradores em
imóveis alugados passou a compor o número de déficit habitacional enquanto o adensamento em
imóveis próprios permaneceu sendo considerado caso de inadequação de domicílios.
6
FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, op. cit., 2021.
7
Ibidem.
Eloísa Assis | 171

habitacional, que passou a contemplar outros indicadores, observa-se certa


inexpressividade do PMCMV para a atenuação do déficit habitacional.
A questão da localização dos conjuntos do Programa parece explicar a
problemática. Raquel Rolnik adverte que a construção das casas dos conjuntos
habitacionais do PMCMV fora marcada pela padronização e pela ausência de
aderências às especificidades locais; para além disso, para a autora, o Programa
reproduziu uma lógica de periferização8. Isso porque, em que pese o Programa
tenha beneficiado uma parcela da população historicamente negligenciada, não
houve alteração na disponibilização do espaço tradicionalmente ocupado por ela
nas cidades, eis que fora reforçado o padrão periférico 9. Não bastasse isso, as
famílias beneficiadas conviviam com o domínio das milícias e do tráfico de drogas
nos conjuntos habitacionais, sendo que, por vezes, as famílias eram expulsas de
seus próprios lares para que os milicianos e/ou traficantes pudessem alocar quem
lhes aprouvesse10.
Considerando que os preços e as dimensões das unidades eram
estabelecidos previamente, o empreendedor baseava seus lucros especialmente
na padronização dos conjuntos habitacionais e na compra de terrenos pelo menor
11
custo possível . Essa equação obtinha por resultado a construção de
megaconjuntos habitacionais padronizados e inseridos nas piores localizações
das cidades onde o preço do solo urbano era menor 12. Em razão da atribuição do
poder de decisão sobre a localização aos agentes privados, o critério orientador
dessas decisões, por óbvio, não poderia ser outro senão o da rentabilidade. Assim,
o que se observa é que os empreendimentos para a faixa 3 são os que mais se
aproximam das áreas centrais das cidades, enquanto aos empreendimentos para
a faixa 1, que contemplam a população de mais baixa renda, restaram as periferias
mais afastadas da cidade, onde a terra urbana possui menor valor 13.

8
ROLNIK, Raquel. Guerra dos lugares – a colonização da terra e da moradia na era das finanças.
São Paulo: Boitempo, 2019.
9
Ibidem.
10
Ibidem.
11
Ibidem
12
Ibidem.
13
ROLNIK, op. cit., 2019.
172 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

Observa-se que a escolha dos locais dos empreendimentos habitacionais


não obedece a nenhuma orientação política ou urbanística, mas, sim, é conduzida
por uma lógica de mercado. Disso se depreende a ausência de articulação da
política habitacional com a política urbana, vez que se verifica a reprodução de um
modelo de urbanização fundamentado em conjuntos habitacionais
monofuncionais, inseridos nas periferias das cidades, e, portanto, distantes do
tecido urbano, que assim se dinamizam, pois, essencialmente, voltados ao lucro
dos empreendedores. Assim, a produção massificada e padronizada de unidades
habitacionais não apenas reproduz como perpetua a segregação socioespacial.
Nesse sentido, considerando que a lógica imobiliária se sobrepõe à lógica
habitacional, conquanto os empreendedores soubessem os locais onde se
concentravam os maiores índices de déficit habitacional, o Programa, na maioria
das vezes, fora implementado onde a terra era mais barata, que, geralmente, por
não serem locais marcados por disputas territoriais, apresentavam baixo índice de
déficit habitacional 14 . Verifica-se, portanto, que a produção habitacional se
condicionou à viabilidade econômica, ignorando o déficit habitacional e as
dinâmicas urbanas. Para além disso, identifica-se limitação do Programa ao não
dispor de políticas específicas para o ônus excessivo, que, inclusive, atualmente,
representa mais do que 50% do valor total do déficit habitacional15.
A satisfação em se tornar proprietário de um imóvel é confrontada com o
acentuado descontentamento quanto às condições urbanísticas. Nesse sentido,
Martins e Lima16 realizaram um estudo à guisa de apreender os condicionantes da
questão da habitação no Brasil, ao final do qual concluíram que as políticas
habitacionais implementadas se demonstraram inócuas no que se refere ao
alcance do objetivo de solucionar a problemática do déficit habitacional no país 17.
Segundo os autores, enquanto permanecerem ignorados os fundamentos da

14
RUFINO, M. et al. A produção do Programa PMCMV na Baixada Santista: habitação de interesse
social ou negócio imobiliário? In: AMORE, Caio; SHIMBO, Lúcia; RUFINO, Maria. Minha casa...e a
cidade? Avaliação do Programa Minha Casa Minha Vida em Seis Estados Brasileiros. Rio de
Janeiro: Letra Capital, 2015.
15
FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, op. cit., 2021.
16
MARTINS, Raphael; LIMA, Caroline Magalhães. Por que o Programa Minha Casa Minha Vida não
resolveu o déficit habitacional?”: reflexões sobre a questão da habitação no Brasil. Anais do 16º
Encontro Nacional de Pesquisadores em Serviço Social. Vitória, Espírito Santo, 2018, p. 2.
17
Ibidem.
Eloísa Assis | 173

questão da habitação, como “as relações sociais de produção capitalista, o


processo de exploração do trabalho para a extração de mais valia e sua
incorporação à terra, e a distribuição do valor sob a forma de renda da terra”, o
déficit habitacional não será solucionado18.
No ponto, oportuno explicitar e destacar as considerações apresentadas no
livro “Minha casa... E a cidade? Avaliação do Programa Minha Casa Minha Vida em
Seis Estados Brasileiros”. A publicação é resultado de projetos de pesquisa
aprovados pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq) e pelo Ministério das Cidades, em edital lançado em 2012, sendo que as
equipes articuladas na Rede Cidade e Moradia são autoras dos relatórios
referentes aos impactos urbanísticos e sociais do PMCMV em seis estados da
federação. Analisando o processo de implementação dos empreendimentos do
PMCMV, os pesquisadores verificaram a predominância de unidades
habitacionais construídas em localizações periféricas, com comprometimento da
mobilidade dos indivíduos no espaço urbano – que resulta, por óbvio, na
dificuldade de acesso aos locais de prestação de serviços públicos, bem como aos
locais dos respectivos empregos dos moradores – para além das falhas
estruturais e arquitetônicas constatadas19. Dos estudos realizados, destacam-se
os executados em São Paulo e no Ceará, eis que são estados que representam as
regiões que receberam maiores investimentos no Programa MCMV 20.
Analisando os conjuntos habitacionais do PMCMV na Baixada Santista,
Maria Rufino narra que o crescimento urbano dos municípios dessa região se
vincula ao dinamismo econômico do litoral paulista, que provocou acentuada
concentração de investimentos na região, que, no entanto, culminou em
disparidades nas mais diversas áreas, de condições de infraestrutura a questões
ambientais, isso porque a distribuição de investimentos na região não se deu de

18
MARTINS; LIMA, op. cit., 2018.
19
AMORE, Caio; SHIMBO, Lúcia; RUFINO, Maria. Minha casa...e a cidade? Avaliação do Programa
Minha Casa Minha Vida em Seis Estados Brasileiros. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2015.
20
A região Sudeste do Brasil respondeu por 41,8% do valor total contratado, seguida do Nordeste,
cujo valor de contratação foi de 22,3% do total. (FIESP. Observatório da Construção. Disponível em:
https://www.fiesp.com.br/observatoriodaconstrucao/noticias/evolucao-das-contratacoes-e-
investimentos-do-
pmcmv/#:~:text=Em%20termos%20estaduais%2C%20as%20maiores,em%20R%24%20milh%C3%B
5es%2C%20Brasil. Acesso em 27 fev. 2021).
174 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

forma equânime, motivo pelo qual há municípios com economia robusta enquanto
outros possuem uma base econômica bastante fragilizada 21 . Fato relevante
observado é a presença de uma forte segregação socioterritorial, vez que a orla da
Baixada é ocupada, quase que totalmente, por domicílios de uso ocasional
enquanto as regiões mais interiorizadas dos municípios são ocupadas
preponderantemente por residências permanentes, assim, identifica-se que
quanto maior a proximidade com a orla marítima, maior a renda e maior o preço
dos imóveis, enquanto as regiões mais interiorizadas são marcadas por
assentamentos precários da população de renda mais baixa22.
Ao examinar a implementação do PMCMV na Baixada Santista, os
pesquisadores identificaram certa discrepância na concentração das unidades
habitacionais pelo território da região. Nos municípios com menor dinâmica e
integração econômica fora constatada uma significativa concentração de
unidades habitacionais produzidas para a Faixa 1 do Programa, que contemplam
famílias com as menores rendas, sendo que o cenário fica mais preocupante
quando os dados do déficit habitacional se cruzam com o número de unidades
produzido em cada município da Baixada, eis que se revela que, nos municípios
onde o déficit habitacional é maior, as unidades do PMCMV direcionadas para a
Faixa 1 são menores ou inexistentes, enquanto que, nos municípios onde o déficit
é menor, a implantação de unidades se deu em número significativo, fatos que
demonstram que a habitação é concebida enquanto mercadoria que se condiciona
aos interesses mercadológicos23.
Conduzida aos terrenos mais baratos da região, conquanto o déficit
habitacional nessas localidades não seja significativo, as famílias da faixa 1 têm a
qualidade de vida comprometida, especialmente quando se leva em consideração
as dificuldades de acesso aos equipamentos, espaços e serviços públicos bem
como aos empregos em razão da distância e de um sistema de transporte
ineficiente e sobrecarregado24. A produção massificada de unidades habitacionais
para as faixas compostas por famílias com menores rendas evidencia a exclusão

21
RUFINO, M. et al, op. cit., 2015.
22
RUFINO, M. et al, op. cit., 2015.
23
Ibidem.
24
Ibidem.
Eloísa Assis | 175

da população mais pobre para as margens das cidades. Para além da insatisfação
com a localização da moradia, em pesquisa realizada com os beneficiários do
Programa MCMV na Baixada Santista, apurou-se o descontentamento com o
acesso aos serviços públicos em comparação com a moradia anterior. Nesse
sentido, verifica-se os moradores consideram que houve piora no serviço de
correios (85%), na telefonia pública (71%), no policiamento (61%), no transporte
público (49%) e no acesso a serviços e equipamentos sociais (43%) 25.
Da experiência do sudeste, passa-se à análise da Região Metropolitana de
Fortaleza, oportunidade em que se destaca que a capital cearense teve seu
processo de metropolização diretamente vinculado à implantação dos conjuntos
habitacionais produzidos com recursos do Banco Nacional de Habitação (BNH) e
operacionalizados pela Companhia Estadual de Habitação (COHAB-CE) nas
décadas de 1970 e 1980 26 . Quanto à implementação dos empreendimentos do
PMCMV, observa-se que, semelhantemente ao identificado na Baixada Santista,
os conjuntos habitacionais, geralmente, são situados em locais distantes dos
centros urbanos e com infraestrutura, pavimentação, iluminação públicas – e
outros quesitos – classificados como ruim ou muito ruim, comprometendo, por
óbvio, a qualidade de vida dos beneficiários do Programa 27.
No que se refere à opinião dos moradores dos empreendimentos do PMCMV
quanto à piora na infraestrutura comparando-se à moradia anterior, observa-se
que, em um condomínio predominantemente composto por famílias da faixa 1,
86,7% do total de famílias entrevistadas considera que houve uma piora no acesso
ao transporte público, 84,1% considera uma piora na iluminação pública, 79,6%
identifica uma piora no acesso aos postos de saúde, 78,8% no acesso ao telefone
público, 77% no acesso a comércio e serviços, 69,9% no acesso à escola, 63,7% no
acesso ao trabalho e 55,8% no acesso ao lazer 28 . Avaliando a satisfação dos
moradores com a nova residência, nos conjuntos habitacionais do PMCMV em

25
Ibidem.
26
PEQUENO, Renato; ROSA, Sara Vieira. Inserção urbana e segregação espacial: análise do
Programa Minha Casa Minha Vida em Fortaleza. In: AMORE, Caio; SHIMBO, Lúcia; RUFINO, Maria.
Minha casa...e a cidade? Avaliação do Programa Minha Casa Minha Vida em Seis Estados
Brasileiros. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2015.
27
Ibidem.
28
Ibidem.
176 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

Fortaleza, constata-se que cerca de 20% dos moradores entrevistados afirmaram


preferir morar na casa anterior, e aproximadamente 40% dos chefes de domicílio
admitiram que cogitaram a possibilidade de mudança em razão da insegurança e
da distância no acesso aos serviços básicos29.
De maneira geral, em todos os estados da federação, inúmeras falhas são
identificadas: patologias construtivas, erros de execução, ausência de
atendimento às normas técnicas no que se refere aos confortos térmico, acústico
e visual, má qualidade, inclusive dos acabamentos, péssima localização –
problemas que se resumem na compreensão de que os conjuntos habitacionais
produzidos no âmbito do PMCMV são marcados pela baixa qualidade construtiva
e pela localização em áreas periféricas 30 . Não bastasse isso, reforça-se a
padronização massificada dos empreendimentos, que não se flexibilizam para
atender às necessidades regionais e às provenientes da diversidade de
conformações familiares existentes. A padronização inviabiliza arranjos, tornando
as unidades habitacionais inadequadas às múltiplas dinâmicas familiares,
impossibilitando, ainda, incorporação de atividades econômicas, que,
especialmente para a população de renda baixa, são essenciais para a
composição da renda familiar31.
As insatisfações com os empreendimentos do PMCMV se relacionam com
a identificação de violações dos direitos interdependentes que se vinculam ao
conceito de direito à cidade sustentável. Considerando que o direito à cidade e o
direito à moradia se vinculam ao conceito de mínimo existencial, conforme
assinalado anteriormente – vez que contribuem significativamente para o
desenvolvimento das potencialidades e para a proteção da dignidade dos
indivíduos – e que o direito do consumidor é instrumento de tutela do mínimo
existencial, assenta-se o entendimento pela possibilidade da tutela consumerista
do direito à moradia32.

29
Ibidem.
30
Ibidem.
31
PEQUENO; ROSA, op. cit., 2015.
32
PASQUALOTTO, Adalberto; ASSIS, Eloísa. A tutela consumerista do direito à moradia. RJLB, ano
7 (2021), n. 1. p. 1-27. 2021.
Eloísa Assis | 177

Pasqualotto identifica que o consumo, paulatinamente, sobretudo a partir


da experiência da comunidade internacional, assume contornos de essencialidade,
vinculando-se à noção de mínimo existencial, isso porque é justamente através
das dinâmicas de consumo que os indivíduos acessam os bens essenciais que se
integram à ideia de mínimo existencial, como a alimentação, a educação e a
moradia33. Assim, considerando tal cenário, sustenta-se como admissível a tutela
do direito à moradia e à cidade a partir de uma perspectiva consumerista, inclusive
quanto aos contratos celebrados no âmbito do PMCMV.
Com efeito, no Programa MCMV se identifica relação de consumo em tripla
dimensão – com o Estado, formulador da política habitacional, e, portanto,
corresponsável pelos resultados da obra; com o agente financeiro; e com o
construtor-vendedor – onde o cidadão participante é concebido enquanto
consumidor, especialmente em razão da exigência de que a participação no
Programa seja para o benefício do participante e de sua família, relacionando-se
com a concepção finalista do direito do consumidor, a partir da qual o
reconhecimento da figura do consumidor decorre da identificação desse como
destinatário final do produto, e, no caso do PMCMC, o produto seria a casa
construída34.
Não se está, contudo, a conceber a moradia enquanto mercadoria, reforça-
se, aqui, tão somente a viabilidade de o direito do consumidor, cuja base é pautada
no equilíbrio das relações entre consumidores e fornecedores, reequilibrar as
forças vetorialmente desproporcionais que se articulam nos contratos celebrados
pelo PMCMV, eis que a necessidade da moradia não deve justificar sua
dispensação descriteriosa, de modo que recorre-se ao direito do consumidor para,
de alguma forma, responsabilizar os que promoveram a acentuação de chagas
sociais a partir da execução imprudente de uma política habitacional
insatisfatória.

33
PASQUALOTTO, Adalberto. Fundamentalidade e efetividade da defesa do consumidor. Revista
Brasileira de Direitos Fundamentais & Justiça, v. 3, n. 9, out./dez., 2009.
34
PASQUALOTTO; ASSIS, op. cit., 2021.
178 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

A atuação do Estado no âmbito do PMCMV se fundamenta no artigo 6º,


inciso x e no artigo 22, do Código de Defesa do Consumidor (CDC)35, e se desdobra
especialmente em duas diretrizes, a saber: i) criação de mecanismos de incentivo
à produção e aquisição de novas unidades habitacionais; e ii) fiscalização, a fim
de zelar pela qualidade do empreendimento, em termos internos e externos, isto é,
em relação à qualidade construtiva da unidade habitacional e à integração do
conjunto habitacional com os centros urbanos e os serviços lá prestados. O agente
financeiro no PMCMV é a Caixa Econômica Federal, empresa pública dotada de
personalidade jurídica de direito privado, que atua no mercado financeiro em
igualdade de condições com os bancos privados, figurando como fornecedora de
crédito, nos termos do artigo 3º, §2º, do CDC36. O agente financeiro responde pelo
serviço de crédito, mas também pode ser solidariamente responsável por vícios
construtivos37, especialmente quando tenha participado da elaboração do projeto,
da execução ou da fiscalização da obra, conforme tem admitido a jurisprudência 38.
Por fim, a relação de consumo também se visualiza entre o construtor-vendedor e
o adquirente do imóvel, a teor do que explicita o artigo 3º, do CDC 39.
Assentada a compreensão de que os contratos celebrados no PMCMV têm
natureza consumerista, emergem os direitos do cidadão-consumidor participante
do Programa. Embora questões como patologia construtiva e inobservância às
recomendações técnicas quanto aos confortos térmico, acústico e visual não
enfrentem resistências quanto à identificação enquanto hipóteses que ensejam
responsabilização dos fornecedores, sustenta-se que a localização dos
empreendimentos integra os parâmetros de qualidade das unidades habitacionais,
de forma que a localização periférica dos conjuntos habitacionais, para além de
violação ao direito à cidade, representa vício qualitativo do produto, nos termos do

35
BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá
outras providências. 1990. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078compilado.htm. Acesso em: 10 fev. 2021.
36
Ibidem.
37
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Quarta Turma. Recurso Especial nº 738.071-SC. Relator:
Min. Luís Felipe Salomão. Julgamento: 9/8/2011.
38
Neste sentido: BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Quarta Turma. AgInt no Recurso Especial
nº 1.592.365-PR. Relator: Min. Luís Felipe Salomão. Julgamento: 7/3/2017.
39
BRASIL, op. cit., 1990.
Eloísa Assis | 179

artigo 18, do Código de Defesa do Consumidor4041.


Incumbe mencionar que, para além das insatisfações com a (má) qualidade
construtiva e com a localização periférica e estigmatizada das unidades
habitacionais, o acesso à casa própria promovido pelo PMCMV representou
agravamento na situação financeira dos beneficiários, que precisam custear as
parcelas do financiamento, as taxas condominiais, contas de luz e água (que,
muito provavelmente, nas antigas habitações eram obtidas via ligações
clandestinas), e, ainda, despesas com transporte, especialmente considerando
que esse último se fazia extremamente necessário devido à distância dos
empreendimentos habitacionais dos centros urbanos. Rolnik aponta que os
gastos mensais nas faixas inferiores chegavam a comprometer até 77% da renda
familiar42.
Em que pese as desvantagens do PMCMV, observa-se que a concepção do
Programa corresponde à compreensão sedimentada no imaginário dos brasileiros
no sentido de que os problemas habitacionais são solucionados a partir do acesso
à casa própria proporcionado pelo Estado, estruturando-se uma distorção que
favorece a construção de novas unidades em desprestígio da reforma das já
existentes bem como das demais ferramentas de concretização do direito à
moradia. Para Milton Santos, o direito à moradia há muito se confunde com o
direito de ser proprietário, contudo, a casa própria não é a real necessidade, mas,
sim, o morar dignamente43. Assim, conceber a moradia enquanto mercadoria cujo
acesso apenas se perfectibiliza mediante sua compra e financiamento conduz a
uma percepção distorcida da extensão e profundidade do direito à moradia, que,
além de não produzir impacto significativo na contenção do déficit habitacional,
gera novos problemas e desafios urbanos.
Importa salientar que a lei que regulamentou o PMCMV também
estabeleceu a regulamentação fundiária de assentamentos localizados em áreas
urbanas; ou seja, a atuação governamental se pautou em duas estratégias, a saber,
na disponibilização de subsídios públicos para a construção de novas unidades

40
Ibidem.
41
PASQUALOTTO; ASSIS, op. cit., 2021.
42
ROLNIK, op. cit., 2019.
43
SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. 5 ed. São Paulo: Studio Nobel, 2000.
180 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

habitacionais e no aprimoramento das ferramentas de regularização de moradias


construídas informalmente, conferindo-lhes título de propriedade a fim de
resguardar os direitos envolvidos. Embora existente menção à regularização
fundiária, não se tem notícia da efetivação significativa de tal frente de ação, de
forma que, quando se fala em PMCMV, associa-se imediatamente à provisão de
unidades habitacionais.
Reforçando que o fornecimento de unidades habitacionais é apenas uma
das muitas possibilidades de concretização do direito à moradia – sendo
exemplos de expressão de tal direito o bônus moradia e o aluguel social – Milton
Santos concebia o “sonho da casa própria” como resultado de uma lógica
capitalista que promove a fetichização do ato de compra e venda de uma
necessidade que passou a ser concebida enquanto mercadoria 44 . A lógica do
sonho da casa própria consolidou a percepção da moradia como um bem
individual que se adquire via mercado, cujo acesso se dá mediante crédito
financeiro; assim, a moradia deixa de ser concebida enquanto um bem universal
acessível via políticas estatais, enquanto direito humano e fundamental, para ser
compreendida como mercadoria.
Em janeiro de 2021, o Governo Federal, por meio da Lei nº 14.11845, instituiu
o Programa Casa Verde e Amarela (PCVA), com a finalidade de promover o direito
à moradia pela contratação de operações de financiamento habitacional e pela
melhoria do estoque existente de moradias, a fim de reparar as inadequações
habitacionais, incluídas aquelas de cunho fundiário, edilício, de saneamento, de
infraestrutura e de equipamentos públicos. Trata-se de Programa semelhante ao
PMCMV cujas principais diferenças entre os dois programas são a quantidade de
faixas de renda – enquanto o PMCMV possuía quatro, o PCVA contempla apenas
três, com a ausência de faixa de renda sem juros – e o discurso essencialmente
vinculado às implicações urbanísticas das disposições das moradias. No artigo
2º, inciso I46, resta explicitada a habitação “entendida em seu sentido amplo de

44
Ibidem.
45
BRASIL. Lei nº 14.118, de 12 de janeiro de 2021. Institui o Programa Casa Verde e Amarela [...]
2021. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-14.118-de-12-de-janeiro-de-
2021-298832993. Acesso em: 22 fev. 2021.
46
Ibidem.
Eloísa Assis | 181

moradia, com a integração das dimensões física, urbanística, fundiária,


econômica, social, cultural e ambiental do espaço em que a vida do cidadão
acontece” 47 , o que demonstra uma preocupação que ultrapassa a unidade
habitacional e abrange o entorno urbano e os equipamentos e serviços
disponibilizados. Embora não se possa prever o resultado da implementação do
novo programa habitacional – e em que pese a notável enunciação de uma
perspectiva habitacional que se vincula às diretrizes urbanísticas – aprecia-se
com certa preocupação a reprodução da lógica de oferta massificada de
propriedades, reduzindo, novamente, o direito à moradia ao acesso à casa própria.
Ora, um raciocínio que considera a perfectibilização do direito à moradia tão
somente com o fornecimento de unidades habitacionais tende a acentuar e
perpetuar desigualdades socioterritoriais, ao desconsiderar dinâmicas
urbanísticas. Assim, embora o direito à moradia seja um direito social autônomo,
sustenta-se sua contextualização a partir do conteúdo do direito à cidade, sendo
o direito à moradia considerado excerto do conceito guarda-chuva de direito à
cidade, que contempla particularidades, que, caso observadas, garantem o
cumprimento de um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil,
a saber, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Nesse sentido, uma
provisão de moradias contextualizada no acesso às cidades sustentáveis, pautada
nos princípios da justiça social, equidade, democracia, sustentabilidade, funções
sociais da propriedade e da cidade, assegura a efetivação do direito à moradia de
forma mais contundente, significativa e assertiva. É nesse sentido que se identifica
a ressignificação do direito à moradia a partir da trajetória conceitual do direito à
cidade, eis que a sedimentação do direito à cidade, e de seus princípios
estruturantes, consubstancia a exigibilidade da vinculação insuprimível das
políticas habitacionais às diretrizes urbanísticas. Assim, o direito à moradia é
concebido enquanto fragmento inseparável da doutrina do direito à cidade.
Com efeito, a imprescindibilidade da vinculação do direito à moradia às
reflexões urbanísticas não fora deduzida apenas do insucesso das políticas
habitacionais que desconsideraram as orientações da política urbana. A análise

47
Ibidem.
182 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

dos desafios promovidos pela pandemia do coronavírus também revela a urgência


pela consideração da moradia enquanto direito que se contextualiza no direito à
cidade.

4.2 A PANDEMIA DO CORONAVÍRUS E A URGÊNCIA PELA RESSIGNIFICAÇÃO DO


DIREITO À MORADIA

Em dezembro de 2019, o mundo fora notificado da transmissão de um novo


agente do coronavírus 48 , o SARS-CoV-2 (coronavírus da síndrome respiratória
aguda grave 2), que provoca a doença denominada COVID-19. Inicialmente, o foco
de transmissão se concentrava na cidade de Wuhan, província de Hubei, na China.
Espalhando-se por meio de viagens internacionais, a nova doença logo atingiu
outros países inclusive aqueles fora do continente asiático. A rápida difusão da
doença, somada à sua letalidade, que, com um mês já apresentava uma centena
de mortos e milhares de doentes, conduziu a Organização Mundial da Saúde (OMS)
à declaração de situação de emergência de saúde internacional, buscando
articular ações coordenadas de contenção do vírus. Em março de 2020, a OMS
declarou uma pandemia do coronavírus, revelando que a transmissão do vírus
estava ocorrendo em diferentes partes do mundo e de forma simultânea.
No cenário brasileiro, o Ministério da Saúde confirmou, em 26 de fevereiro
de 2020, o primeiro caso de coronavírus no Brasil 49 . Um ano após, em 27 de
fevereiro de 2021, contabiliza-se cerca de 10 milhões de brasileiros infectados,
desses, 9 milhões recuperados e cerca de 254.221 brasileiros vieram a óbito50. A
situação mundial revela um cenário preocupante com cerca de 113 milhões de

48
Os coronavírus humanos foram isolados pela primeira vez em 1937, sendo que apenas em 1965
o vírus foi descrito como coronavírus, devido ao seu perfil identificado na microscopia, que se
assemelhava a uma coroa.
49
OLIVEIRA, Elida; ORTIZ, Brenda. Ministério da Saúde confirma primeiro caso de coronavírus no
Brasil. G1. 26 de fevereiro de 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/ciencia-e-
saude/noticia/2020/02/26/ministerio-da-saude-fala-sobre-caso-possivel-paciente-com-
coronavirus.ghtml. Acesso em: 08 fev. 2021.
50
CORONAVÍRUS BRASIL. [Painel Coronavírus] [2021]. Disponível em: https://covid.saude.gov.br/.
Acesso em: 27 fev. 2021.
Eloísa Assis | 183

casos, sendo 64 milhões já recuperados e mais de 2,5 milhões de mortes 51. Ante a
ausência de tratamento específico para as infecções causadas pelo coronavírus,
intensificaram-se as medidas preventivas, como o reforço das práticas de higiene,
a exigibilidade do uso de máscaras e o incentivo ao distanciamento social.
A pandemia da Covid-19 escancarou as condições degradantes de vida de
grande parte da população brasileira. A orientação do distanciamento social como
estratégia de combate ao coronavírus, embora se reconheça sua adequação,
parece partir da presunção de que todas as pessoas possuem um local de
residência, e, que, inclusive, essas moradias possuem condições minimamente
adequadas para um período relativamente longo de isolamento, para além da
desconsideração das inúmeras situações de coabitação familiar e adensamento
excessivo que compõem o gráfico de déficit habitacional. Em verdade, significativa
parcela da população não possui condições mínimas necessárias para realizar o
distanciamento social sem ameaçar seu próprio bem-estar, isso porque muitos
domicílios do país sequer possuem os serviços urbanos mais elementares, como
a água tratada e a disponibilização de um banheiro de uso exclusivo da família.
Em pesquisa realizada pelo Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento
(SNIS) fora constatado que cerca de 16% da população – isto é, quase 35 milhões
de brasileiros – não têm acesso à água tratada, o que dificulta a realização da
orientação básica de constante higienização das mãos52.
Com efeito, estima-se que cerca de cinco milhões de domicílios se
constituem enquanto aglomerados subnormais 53 , que compreendem domicílios
em favelas, invasões, grotas, baixadas, comunidades, vilas, mocambos, palafitas e
outros assentamentos irregulares no país, que fogem ao padrão de urbanização.

51
ISTOÉ. [Economia – Covid já causou mais de 2,5 milhões de mortes no mundo (balanço AFP)].
[2021]. Disponível em: https://www.istoedinheiro.com.br/covid-ja-causou-mais-de-25-milhoes-
de-mortes-no-mundo-balanco-afp/. Acesso em: 27 fev. 2021.
52
BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Regional. Secretaria Nacional de Saneamento – SNS.
25º Diagnóstico dos Serviços de Água e Esgotos – 2019. Brasília: SNS/MDR, 2020. Disponível em:
http://www.snis.gov.br/downloads/diagnosticos/ae/2019/Diagn%C3%B3stico%20SNIS%20AE_20
19_Republicacao_04022021.pdf. Acesso em: 27 fev. 2021.
53
IBGE. Diretoria de Geociências. Coordenação de Geografia e Meio Ambiente. Aglomerados
subnormais 2019: classificação preliminar e informações de saúde para o enfrentamento à covid-
19. Rio de Janeiro, 2020. Disponível em:
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101717_apresentacao.pdf. Acesso em: 26 fev.
2021.
184 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

Considerando que a disponibilização de rede de água e esgoto exige comprovação


da regularidade do imóvel, e, sendo os aglomerados subnormais marcados pela
irregularidade dos assentamentos, compreende-se os motivos que resultam em
significativo número de domicílios enfrentando o desafio da ausência de acesso à
água, diante da falta de documentação que viabilize a instalação do serviço de
água tratada. Não bastasse isso, mesmo dentre os domicílios que possuem
acesso à água tratada, constata-se que cerca de 10% não recebe água todos os
dias da semana, identificando-se que parcela do país vive, permanentemente, em
regime de racionamento de água54. Aponta-se, ainda, que cerca de quatro milhões
55
de domicílios não possuem banheiros exclusivos , o que demonstra a
desarrazoabilidade da exigência do confinamento domiciliar desacompanhada de
implementação de medidas governamentais voltadas à melhoria das condições
de vida e à garantia de padrões mínimos de salubridade e bem-estar.
A pandemia evidenciou as assimetrias que caracterizam a estrutura
socioeconômica brasileira, explicitando que, embora o coronavírus possa atingir
potencialmente a todos indiscriminadamente, fato é que a distribuição da
incidência da Covid-19 parece coincidir com certas faixas de renda familiar.
Conquanto o vírus tenha chegado ao Brasil por conta das viagens internacionais
das populações mais privilegiadas, há indícios de que a propagação da doença se
relaciona com critérios que demarcam as diferenças entre pobres e ricos. Ora,
considerando a (má) qualidade das habitações no que se refere, especialmente, ao
acesso ao saneamento básico, para além da exposição à doença em razão da
dependência do transporte coletivo, seja em razão da distância das habitações dos
centros urbanos ou em razão da impossibilidade de home office para as atividades
braçais comumente desenvolvidas pelas populações de baixa renda e baixa

54
SILVEIRA, Daniel. Cerca de 18,4 milhões de brasileiros não recebem água encanada diariamente,
aponta IBGE. G1, Rio de Janeiro, 06 de maio de 2020. Disponível em:
https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/05/06/cerca-de-184-milhoes-de-brasileiros-nao-
recebem-agua-encanada-diariamente-aponta-ibge.ghtml. Acesso em: 26 fev. 2021.
55
IBGE. Censo Demográfico – 2010. Disponível em:
https://sidra.ibge.gov.br/tabela/3155#resultado. Acesso em: 27 fev. 2021. | CORREIO DO POVO.
[Notícias – Geral]. Mais de 5,7 milhões de brasileiros não têm acesso a banheiro, diz IBGE. [2020].
Disponível em: https://www.correiodopovo.com.br/not%C3%ADcias/geral/mais-de-5-7-
milh%C3%B5es-de-brasileiros-n%C3%A3o-t%C3%AAm-acesso-a-banheiro-diz-ibge-1.526449.
Acesso em: 27 fev. 2021.
Eloísa Assis | 185

escolaridade, identifica-se que a propagação da doença encontra solo fértil nas


habitações precárias e nos aglomerados subnormais, esboçando a adequação do
cruzamento de dados entre incidência do coronavírus e o grau de concretização
do direito fundamental à moradia e do direito à cidade.
Analisando a situação da cidade de Salvador frente à disseminação do
coronavírus, é possível identificar que os efeitos da pandemia repercutem
resultados que se vinculam à estrutura urbana da cidade e ao seu – maior ou
menor – grau de implementação das diretrizes da política urbana fundamentada
na garantia de acesso universal à cidade. Observando a Nota Técnica dos
pesquisadores do grupo GeoCombate 56 , da Universidade Federal da Bahia, que
examinou os bairros de Salvador em razão do risco de expansão da pandemia do
coronavírus, e, cruzando dados – i) de perigo potencial, que compreende a
probabilidade do perigo de contaminação em função do número de casos
confirmados nos bairros bem como os vetores que potencializam a transmissão,
como a densidade populacional; e ii) de vulnerabilidade, cujos principais
indicadores são: acesso à água, saneamento, renda e faixa etária – chegou-se à
conclusão de que as regiões mais vulneráveis ao contágio são aquelas
pertencentes ao Subúrbio Ferroviário e ao Miolo soteropolitano57, cujos residentes
dos bairros correspondem preponderantemente às faixas da tipologia
socioespacial Popular, e essa, por sua vez, é 79,8% composta por pessoas pobres
e negras 58 . Tais dados evidenciam a urgência pela formatação de cidades
verdadeiramente inclusivas, a fim de superar a situação denunciada no capítulo
anterior de fragmentação socioterritorial marcada por distinções raciais.
Partindo de uma abordagem probabilística para uma análise fatídica,
segundo o Boletim Epidemiológico, elaborado pelo Centro de Informações
Estratégicas em Vigilância em Saúde de Salvador (CIEVS SSA), a maioria dos

56
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA. GeoCombate. Risco dos bairros de Salvador ao
espalhamento do COVID-19 decorrente da circulação de pessoas e condições socioeconômicas.
Nota Técnica de pesquisadores do grupo GeoCombate COVID-19 BA. Salvador: 2020. Disponível
em: https://drive.google.com/file/d/1MD6yRtw2HzaXob2pSV-IL-4D9gjNOxbW/view. Acesso em:
27 fev. 2021.
57
Especialmente os bairros Tororó, Vila Canária, Santa Cruz, Pirajá, Nova Constituinte, Santa Luzia,
Boa Vista de São Caetano e Sussuarana. (UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA, op. cit., 2020).
58
CARVALHO, IMM; BARRETO, VS, op. cit., 2007.
186 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

soteropolitanos infectados pelo coronavírus, até 30/01/2021, é negra (72,76%)59,


sendo esse mesmo padrão verificado na análise dos óbitos, eis que pesquisas
apontam que 75% das pessoas que vieram a óbito em Salvador, em decorrência
do coronavírus, eram negras. Destaca-se, ainda, o indicativo de que o Distrito
Sanitário do Centro Histórico de Salvador 60 – composto por uma população
76,28% negra 61 e de baixa renda – apresenta as maiores taxas de incidência e
mortalidade comparadas às dos demais distritos62.
No mesmo sentido, o Observatório das Metrópoles, em parceria com o
Fórum Nacional de Reforma Urbana, apresentou o Dossiê Nacional: As Metrópoles
e a Covid-19, de onde se extrai o relatório “A Pandemia da Covid-19 em uma cidade
pobre e periférica: desigualdades e vulnerabilidades socioespaciais, governança e
políticas de enfrentamento em Salvador e sua Região Metropolitana” 63 que
evidencia que os bairros mais afetados pela pandemia são aqueles com menor
Índice de Desenvolvimento Humano Municipal6465. Para além disso, verifica-se que
o Hospital do Subúrbio (HS), em fevereiro de 2021, foi a unidade de saúde com

59
PREFEITURA DE SALVADOR. Secretaria Municipal de Saúde. Diretoria de Vigilância Sanitária.
Boletim Epidemiológico 04. 2021. Disponível em:
http://www.cievs.saude.salvador.ba.gov.br/download/boletim-04_2021-sms-cievs-ssa-covid-
19/?wpdmdl=3360&refresh=604acd1b9fb001615514907. Acesso em: 26 fev. 2021.
60
Distrito Sanitário que abrange os bairros: Água de Meninos, Aflitos, Ajuda, Alto da Esperança,
Aquidabã, Baixa dos Sapateiros, Barbalho, Barris, Barroquinha, Boulevard Suisso, Campo da
Pólvora, Campo Grande, Carmo, Centro, Comércio, Conceição da Praia, Curva Grande, Desterro,
Djalma Dutra, Faísca, Fonte Nova, Forte de São Pedro, Gamboa, Jardim Bahiano, Lapa, Largo Dois
de Julho, Loteamento Lanat, Macaúbas, Mercado do Ouro, Mercês, Misericórdia, Mouraria, Nazaré,
Paço, Palma, Pelourinho, Piedade, Pilar, Poeira, Politeama, Rosário, Santa Tereza, Santana, Santo
Antônio, São Bento, São Francisco, São Joaquim, São José, São Pedro, São Raimundo, Saúde, Sé,
Taboão, Tororó – bairros que integram a região territorial denominada Miolo soteropolitano, que,
segundo CARVALHO, IMM; BARRETO, VS, op. cit., 2007, possui, em sua maioria, residentes da
tipologia socioespacial Popular, que, em verdade, corresponde a um significativo contingente
negro.
61
SUPERINTENDÊNCIA DE ESTUDOS ECONÔMICOS E SOCIAIS DA BAHIA. CAS – Centro Antigo de
Salvador [livro eletrônico]: território de referência – Salvador: SEI, 2013.
62
PREFEITURA DE SALVADOR, op. cit., 2021.
63
OBSERVATÓRIO DAS METRÓPOLES; FÓRUM NACIONAL DE REFORMA URBANA. As metrópoles
e a Covid-19: Dossiê Nacional. A pandemia da covid-19 em uma cidade pobre e periférica –
desigualdades e vulnerabilidades socioespaciais, governança e políticas de enfrentamento em
Salvador e em sua Região Metropolitana. Salvador, 2020. Disponível em:
https://www.observatoriodasmetropoles.net.br/wp-content/uploads/2020/07/Dossi%C3%AA-
N%C3%BAcleo-Salvador_An%C3%A1lise-Local_Julho-2020.pdf.pdf. Acesso em: 27 fev. 2021.
64
Ibidem.
65
Os Índices de Desenvolvimento Humano Municipais contemplam três indicadores: média de
anos de estudo do chefe de família, taxa de alfabetização e renda média do chefe de família (em
salários mínimos). Assim, quanto mais próximo da nota 1,0 mais desenvolvido é o bairro.
Eloísa Assis | 187

maior número de pacientes com coronavírus 66 – constatação que se justifica,


aliás, na integração do HS na rede de referência no atendimento a pacientes com
o vírus pandêmico – seguido do Hospital São Rafael, localizado no Miolo na capital
baiana, externalizando as composições de classe e de raça assinaladas no
capítulo anterior.
Os resultados apurados na capital baiana recebem destaque considerando
que Salvador é uma cidade predominantemente negra, contudo, marcada por
bairros segregados racialmente, sendo que as regiões onde há preponderância da
população negra são as mais atingidas pelos efeitos da pandemia do coronavírus.
Tudo a demonstrar a urgência pela estruturação de cidades verdadeiramente
inclusivas e sustentáveis, capazes de atenuar as assimetrias sociais e contribuir
para a formação de uma sociedade livre, justa e solidária.
A precariedade das moradias e a ausência de acesso às condições mínimas
de saneamento são preocupantes, todavia, as pessoas em situação de rua
apresentam maior vulnerabilidade aos efeitos da pandemia, especialmente ante a
dificuldade de atendimento às necessidades de subsistência, saúde, higiene e
distanciamento social. A população em situação de rua agrega toda a sorte – e
azares – de demandas e dramas das grandes cidades, que se agravaram com o
surto pandêmico do novo coronavírus. Estima-se que cerca de 222 mil pessoas
estejam em situação de rua 67 , sendo que o avanço da pandemia representa
enorme desafio para tutelar esse contingente populacional desassistido e
vulnerável.
Como se o cenário já não fosse preocupante o suficiente, verifica-se que na
cidade de São Paulo, em janeiro de 2021, foram instalados blocos de
paralelepípedos nas partes inferiores de viadutos na zona leste da capital paulista,
com nítido objetivo higienista, a fim de expulsar a população em situação de rua –

66
PREFEITURA DE SALVADOR. [Indicadores - Indicadores COVID-19]. [2021]. Disponível em:
http://www.saude.salvador.ba.gov.br/covid/indicadorescovid/. Acesso em: 28 fev. 2021.
67
IPEA. [População em situação de rua cresce e fica mais exposta à Covid-19]. [2020]. Disponível
em:
https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=35811#:~:text=
Popula%C3%A7%C3%A3o%20em%20situa%C3%A7%C3%A3o%20de%20rua,mais%20exposta%20%
C3%A0%20Covid%2D19&text=A%20popula%C3%A7%C3%A3o%20em%20situa%C3%A7%C3%A3o%
20de,pela%20pandemia%20da%20Covid%2D19.. Acesso em: 28 fev. 2021.
188 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

que encontra nos viadutos a maior proximidade com as condições, ainda que
desumanas, de habitação – da região. A Prefeitura de São Paulo, contudo, alega
que a decisão de instalar os paralelepípedos foi realizada de forma isolada por um
funcionário, que já foi exonerado68, reforçando, ainda, que as pedras nos viadutos
já foram removidas e que houve oferecimento de serviços aos moradores em
situação de rua, serviços que incluíam hospedagem de idosos em hotéis durante
a pandemia69.
Contudo, a polêmica da atuação higienista de instalação de pedras nos
viadutos não representa caso isolado, eis que outras equipes da Prefeitura da
capital paulista já se envolveram em polêmicas por medidas semelhantes voltadas
à expulsão da população de rua, como a instalação de grades e floreiras nos
viadutos do centro da cidade, inviabilizando a permanência de pessoas 70 e a
instalação de bancos antimendigos 71 , que representam o reflexo de uma
arquitetura hostil voltada à expulsão da população em situação de rua,
impossibilitando o acesso e o exercício universal do direito à cidade.
Desprovidos de moradia e privados de usufruir da cidade, as pessoas em
situação de rua se encontram potencialmente desprotegidas e vulneráveis à
infecção pelo coronavírus. Comumente, quando se fala sobre os desafios e
impactos da pandemia, aborda-se apenas o viés médico-infectológico, dos
cuidados com a saúde e a higiene; contudo, de extrema relevância ressaltar as
consequências da negação de direitos básicos, como o direito à moradia, e seus
reflexos multidimensionais. Tudo a indicar que não é exagero considerar o direito
à moradia enquanto essencial para manutenção da vida, motivo pelo qual dos

68
G1 SP. [Gestão Covas instala pedras sob viadutos na Zona Leste de SP, mas retira após
acusações de higienismo]. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-
paulo/noticia/2021/02/02/gestao-covas-instala-pedras-sob-viadutos-na-zona-leste-de-sp-e-
retira-apos-acusacoes-de-higienismo.ghtml. Acesso em: 28 fev. 2021.
69
Ibidem.
70
SANTIAGO, Tatiana. Prefeitura de SP instala grades e plantas em calçadas embaixo de viadutos
no Centro. G1 São Paulo. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-
paulo/noticia/2020/11/12/prefeitura-de-sp-instala-grades-e-plantas-em-calcadas-embaixo-
de-viadutos-no-centro.ghtml. Acesso em: 28 fev. 2021.
71
Os bancos antimendigos são projetados de forma a impossibilitar que os moradores de rua se
deitem sobre eles, limitando os espaços para apenas o suficiente para acomodar uma pessoa não-
obesa sentada. (EXTRA. O Globo online. 2007. Disponível em:
https://extra.globo.com/noticias/brasil/sp-ja-tem-tres-pracas-com-banco-antimendigo-
741168.html. Acesso em: 28 fev. 2021.
Eloísa Assis | 189

gestores públicos é razoável exigir seriedade e contundência quando da


elaboração das políticas habitacionais.
Em um país marcado pela perversa naturalização da ausência de acesso
aos direitos, sobretudo à moradia e à cidade, as assimetrias urbanísticas e
socioeconômicas agravaram os prejuízos causados pela pandemia do
coronavírus. Se os primeiros casos da doença foram identificados nos bairros
nobres, em razão especialmente das viagens internacionais realizadas pelos
residentes dessas regiões, fato é que o coronavírus avançou exponencialmente
nas favelas brasileiras. No Rio de Janeiro, a estimativa é de que o número de
mortos nas favelas da Região Metropolitana superava a soma de óbitos de 142
países72.
O isolamento social, uma das principais recomendações para prevenção da
infecção pelo coronavírus, devido ao adensamento excessivo, por vezes, se torna
proposta inexequível nos domicílios das periferias brasileiras. A situação nas
favelas brasileiras evidencia, flagrantemente, as décadas de desprezo às diretrizes
de política urbana e de violação do direito à moradia e à cidade promovidos pelos
governantes de todos os entes da federação indistintamente. A pandemia do
coronavírus demonstrou a debilidade das atuações governamentais quanto às
questões habitacional e urbana, apontando a emergência pela reformulação dos
projetos de intervenção estatal direcionados à garantia do direito à moradia.
Betânia Alfonsin assinala que o Direito Urbanístico pode indicar respostas
eficientes à problemática habitacional frente à proliferação do coronavírus,
especialmente a partir do instrumento da requisição administrativa, que pode se
direcionar a imóveis abandonados bem como a quartos de hotel durante a
pandemia, como a iniciativa Quartos de Quarentena73, sobretudo considerando a

72
SALLES, Stéfano. Favelas da Região Metropolitana do RJ têm mais casos de Covid-19 que 142
países. CNN. 09 de dezembro de 2020. Disponível em:
https://www.cnnbrasil.com.br/saude/2020/12/09/favelas-da-regiao-metropolitana-do-rj-tem-
mais-casos-de-covid-19-que-142-paises. Acesso em: 28 fev. 2021.
73
Quartos de quarentena é uma campanha de mobilização, encabeçada pelo Instituto de Arquitetos
do Brasil, o Movimento Nossa BH, o Instituto Pólis, o Movimento Mineiro de Habitação, entre outros,
para que a cidade de Belo Horizonte utilize da rede hoteleira para criar abrigos dignos e seguros
para a população vulnerável, que reside em aglomerados, vilas e favelas, durante o período
pandêmico, de forma a garantir um efetivo isolamento social.
190 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

ociosidade hoteleira durante a crise sanitária74. Nesse sentido, visualiza-se que,


se muitos são os desafios, diversas também são as propostas de soluções para
superação de uma problemática, que, embora antiga, fora agravada com a
preocupante novidade da primeira pandemia deste século.
Válido assinalar que esse cenário pandêmico se tornou assustador
sobretudo em razão do processo de urbanização desordenado e desigual, que,
desde a abolição da escravatura, esboça e aprofunda a dinâmica social no
território marcada por níveis de hierarquia e privilégios, que se evidenciam na
divisão desigual do espaço. A provisão de moradias que desconsidera as diretrizes
de política urbana e a fundamentalidade do direito à cidade tende a reproduzir
discrepâncias urbanas, reforçando uma lógica territorial predominantemente
segregada, bem como a acentuar e agravar quadros epidemiológicos e
pandêmicos.
A contextualização do direito à moradia a partir da trajetória conceitual do
direito à cidade proporciona uma visão integrada das políticas habitacionais e
urbanas, o que garante aos cidadãos uma atuação mais abrangente e contundente
com as reais necessidades da vida no espaço urbano. Reconhecendo a
imprescindibilidade da imbricação das políticas habitacionais às diretrizes
urbanas, identifica-se a ocorrência de um processo de ressignificação do direito à
moradia, que passa a contemplar componentes conceituais do direito à cidade.
Conquanto o direito à moradia seja um direito social fundamental autônomo,
concebe-se enquanto fragmento do direito à cidade, cuja implementação não será
plena enquanto não forem garantidos os demais direitos interdependentes ao
direito à cidade, a saber, o direito à terra urbana, ao saneamento ambiental, à
infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer.
Para uma efetiva concretização do direito à moradia exige-se uma atuação
sistêmica, que compreenda a moradia enquanto excerto inafastável do direito às
cidades sustentáveis, sob risco de perpetuação de assimetrias socioterritoriais
que se expressam das mais variadas formas – dos investimentos em programas

74
ALFONSIN, Betânia. A tutela do Direito à cidade em tempos de COVID-19. Justificando –
questões urbanas. 12 de junho de 2020. Disponível em:
http://www.justificando.com/2020/06/12/a-tutela-do-direito-a-cidade-em-tempos-de-covid-
19/. Acesso em: 28 fev. 2021.
Eloísa Assis | 191

habitacionais inócuos, que não contemplam soluções eficientes para atenuar o


déficit habitacional, ao agravamento desenfreado de epidemias e pandemias,
acentuando as desigualdades existentes.
A situação dos habitantes de moradias precárias e das pessoas em
situação de rua, especialmente frente aos desafios decorrentes da pandemia do
coronavírus, demonstra a urgência pela conjugação do direito à moradia com os
demais direitos que garantem uma vida digna. Conquanto se contorne como
direito autônomo, o direito à moradia, a partir da promulgação do Estatuto da
Cidade, é compreendido enquanto fragmento do direito às cidades sustentáveis,
de sorte que ao seu conteúdo se integram as diretrizes urbanísticas que
contribuem para a garantia do bem-estar dos indivíduos. Assim, sobretudo a partir
da desenfreada proliferação do coronavírus e da inexpressividade do PMCMV para
a diminuição do déficit habitacional, restou evidenciada a fragilidade do raciocínio
que considera a concretização do direito social à moradia tão somente com o
fornecimento de uma edificação de alvenaria para abrigo dos indivíduos, eis que
os direitos contemplados no conceito guarda-chuva de direito à cidade promovem
a ressignificação do direito à moradia, cujo conteúdo, doravante, ultrapassa a
noção clássica de lugar para se abrigar, abrangendo o cluster de direitos inseridos
no âmbito do direito à cidade sustentável, como, por exemplo, o direito ao
saneamento, à infraestrutura, ao lazer e ao transporte. Nesse rumo é que se
assenta o entendimento de que o direito à moradia compreende a disponibilização
de equipamentos, infraestrutura e serviços públicos, e que, portanto, a moradia não
restará plenamente concretizada enquanto não houver diligências intensificadas
pela efetivação do direito à cidade.
CONCLUSÃO

A forma como as cidades brasileiras foram e vêm sendo estruturadas


abrange componentes econômicos, políticos e sociais; os elementos jurídicos da
equação, contudo, por vezes, passam despercebidos, conquanto se reconheça o
comprometimento de doutrinadores, que, na descrição das mazelas das cidades
brasileiras, reforçam o papel desempenhado pelo Direito nesse processo. A tutela
jurídica da moradia – e, mais tarde, da cidade – evidencia a contribuição do Direito
pela conformação das cidades brasileiras. O resgate histórico demonstra que as
políticas habitacionais elaboradas desde o início da República até os dias atuais
são fortemente responsáveis pela composição urbana marcada por favelas,
invasões, moradias precárias autoconstruídas, e, de maneira geral, pela evidente
segregação socioterritorial.
Tudo a indicar que as políticas habitacionais brasileiras partem de uma
concepção equivocada acerca do que se constitui o direito à moradia. Com efeito,
a tutela constitucional do direito à moradia no Brasil decorreu do constrangimento
ante a percepção do descompasso do país com a comunidade internacional, que
desde 1948 reconhece o direito à moradia enquanto um direito humano. Assim, no
ano de 2000, por força da Emenda Constitucional nº 26, a moradia foi alçada à
categoria de direito social fundamental. A identificação do direito à moradia
enquanto integrante do rol de direitos sociais indica sua vinculação às
expectativas por prestações positivas estatais, embora não se desconsidere a
dimensão negativa de tal direito. Contrapõe, todavia, a tutela do direito à moradia
a verificação de um crescente déficit habitacional no Brasil, que demonstra que a
urbanização brasileira é desordenada e as políticas habitacionais implementadas
são insuficientes e dotadas de fragilidade.
Nos primórdios da República, predominava a lógica liberal que rechaçava
intervenções diretas do Estado na atividade econômica, de forma que as iniciativas
estatais quanto à questão habitacional se limitavam às enunciações das
legislações sanitárias para repressão de insalubridade nas moradias, que, por
vezes, acabavam por coincidir com políticas higienistas de expulsão da população
pobre dos centros urbanos. Com o reconhecimento de que o acesso à moradia
194 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

dependente das livres forças do mercado se demonstrava insustentável, durante


a Era Vargas, significativas iniciativas estatais foram implementadas ao efeito
garantir o acesso da população à moradia. Em que pese possam ser apontadas
diligências estatais quanto à questão habitacional nos governos que sucederam a
Era Vargas, inclusive durante a Ditadura Militar, fato é que apenas com a
redemocratização a problemática habitacional assume a centralidade das
atuações estatais. A promulgação da Constituição de 1988, nesse sentido,
representa um marco para a questão habitacional, eis que, se antes as políticas
habitacionais ficavam condicionadas ao interesse dos governantes, com a
promulgação da Constituição Cidadã, a provisão de moradias deixa de ser uma
liberalidade estatal e passa a ser uma obrigação inafastável do Governo. A
Constituição Federal de 1988 – sobretudo após a promulgação da Emenda
Constitucional nº 26, de 2000, que incluiu a moradia no rol de direitos sociais, e do
Estatuto da Cidade, que regulamentou o capítulo constitucional da política urbana
– inaugurou uma nova dinâmica, vez que as reivindicações pelo acesso à moradia
adequada se tornaram juridicamente exigíveis.
O processo de concretização do direito à moradia demonstra uma evidente
dissociação entre os conceitos de habitat e habitar – diferenciação já advertida
por Henri Lefebvre em 1968. Analisando os programas habitacionais brasileiros,
visualiza-se o fornecimento tão somente do habitat, isto é, de casas padronizadas
de qualidade questionável, enquanto o habitar, que contempla em sua definição a
garantia de qualidade de vida no espaço urbano, é reiteradamente ignorado.
Anunciando a aproximação dos conceitos de habitat e habitar, desponta o direito
à cidade, que nasce a partir das reflexões de Lefebvre, que vislumbrava o direito à
cidade como um projeto político de luta anticapitalista, ou seja, como um
instrumento para ruptura da ordem socioespacial capitalista. Assim, conquanto o
direito à cidade não tenha sido concebido, originalmente, como um mecanismo
jurídico para garantia de dignidade no espaço urbano, atualmente, emerge
enquanto reivindicação jurídica à vida urbana com dignidade.
Nos termos do disciplinado no Estatuto da Cidade, o direito à cidade é um
cluster de direitos que contempla o direito à terra urbana, à moradia, ao
saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços
Eloísa Assis | 195

públicos, ao trabalho e ao lazer. O direito à moradia, portanto, embora seja um


direito social autônomo, está inserido no âmbito do conceito guarda-chuva do
direito à cidade, sendo, portanto, a moradia um direito interdependente ao direito
à cidade, o que dá indícios da confirmação da primeira hipótese que integra a linha
de premissa da presente dissertação. Com efeito, o direito à cidade encontra
fundamento filosófico-jurídico na lógica solidarista da justiça distributiva e
decorre diretamente do princípio da dignidade humana; assim, a partir dessa
compreensão, concebe-se o direito à cidade como direito fundamental, em razão
da cláusula de abertura instituída pelo §2º, do artigo 5º, da Constituição Federal,
que autoriza a identificação de direitos fundamentais fora do catálogo
expressamente reconhecido, o que confirma a segunda hipótese inicialmente
assentada.
Oportuno assinalar que o Estatuto da Cidade apresenta o direito à cidade
qualificado pela sustentabilidade, pois, quando enuncia as diretrizes gerais da
política urbana, assevera a garantia do direito a cidades sustentáveis, incluindo o
direito à moradia nesse conceito guarda-chuva. O direito à cidade se traduz na
exigibilidade pelo desfrute de uma cidade caracterizada i) pela sua feição
democrática; ii) pelo compromisso com a concretização dos mandamentos
constitucionais, instituindo a dignidade da pessoa humana como fio condutor; iii)
pela preocupação com a introdução da sustentabilidade urbano-ambiental na
pauta política municipal; iv) pela inegociável observância às funções
socioambientais da cidade e da propriedade designadas no Plano Diretor; v) pelo
respeito e proteção às diferenças, portanto, vi) pela sua pluralidade; e, ao
reconhecer as diferenças, vii) pela atuação voltada à atenuação das desigualdades
sociais, sejam elas fundamentadas em questões raciais, de gênero, de classe ou
qualquer outra variável.
Imperioso consignar que o direito à cidade ultrapassa a simples noção de
estar, permanecer ou utilizar os recursos e a estrutura da cidade, pois, esse direito,
em verdade, está aliado a um conjunto de conceitos que traduzem a necessidade
de acessar a vida urbana de forma ativa e transformadora. O que corrobora o
exposto por Harvey, quando esse autor explicita que o direito à cidade está para
além de um direito de acesso individual ou grupal aos recursos que a cidade
196 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

incorpora, mas, mais do que isso, é um direito de mudar e reinventar a cidade de


acordo com as necessidades dos seus habitantes.
A possibilidade de reinventar a cidade demanda a oportunidade de exercer
determinado poder enquanto ser individual e coletivo. Trata-se da liberdade de
fazer e refazer as cidades, conforme as demandas. Essas formulações acerca da
capacidade de reinventar as cidades – de lidar com a produção e a reprodução da
dinâmica urbana, segundo o que os seus habitantes desejam e necessitam, a
despeito da lógica de mercado e da especulação imobiliária – foram se traduzindo
de maneira cada vez mais forte enquanto uma bandeira política, transformando-
se numa pauta aglutinadora de diversas demandas individuais e coletivas na
reivindicação por uma nova realidade de produção social do espaço urbano.
No que se refere aos princípios orientadores e estruturantes do direito à
cidade, é possível concluir que os princípios da dignidade da pessoa humana, da
sustentabilidade, da justiça social, da equidade, da função social da propriedade e
da função social da cidade se constituem enquanto bússolas que guiam sua
aplicação – sem o prejuízo do reconhecimento da conexão a outros princípios do
Estado Socioambiental Democrático de Direito. O superprincípio constitucional da
dignidade da pessoa humana e sua vinculação à existência de um direito ao
mínimo existencial delineiam os contornos do direito à cidade, que, entendido
enquanto integrado ao conceito de mínimo existencial sociocultural, se orienta à
promoção do bem-estar e da dignidade de todos os indivíduos que habitam as
cidades.
Do princípio da sustentabilidade se extrai que o direito à cidade objetiva o
bem-estar multidimensional e intergeracional, contemplando preocupações
éticas, ambientais, jurídicas, políticas, sociais e econômicas, que se direcionam a
garantir o direito ao futuro. Corroborando a conveniente vinculação do direito à
cidade ao princípio da sustentabilidade, o Estatuto da Cidade enuncia, dentre as
diretrizes de política urbana, a garantia do direito às cidades sustentáveis. A
qualificação sustentável preenche o conteúdo do direito à cidade e conduz sua
aplicação, orientando-o à efetivação do bem-estar multidimensional quando da
concretização dos direitos interdependentes que se inserem no conceito guarda-
Eloísa Assis | 197

chuva de direito à cidade. Por tal razão, entende-se a sustentabilidade como


qualificadora insuprimível do direito à cidade.
A correlação entre direito à cidade e democracia se evidencia a partir da
assim chamada gestão democrática das cidades, que, ao assegurar deliberações
que contemplam a participação de todos os habitantes da cidade, inclusive as
classes desfavorecidas da comunidade, proporciona a redução das desigualdades
no espaço urbano. A equidade e a justiça social são identificadas especialmente
quando o Estatuto da Cidade assegura que as necessidades dos cidadãos quanto
à justiça social devem ser contempladas no Plano Diretor, para além da própria
compreensão do direito à cidade enquanto vetor do uso equitativo do espaço
urbano.
A partir do princípio da função social da propriedade é possível obstaculizar
a especulação imobiliária e assegurar a plena fruição do direito fundamental à
cidade, servindo enquanto instrumento de redistribuição e acesso equânime às
propriedades urbanas. A inobservância dos Planos Diretores pela clara
explicitação da função social da propriedade é preocupante, vez que a indefinição,
ou a frágil definição, das funções sociais da propriedade esvazia e desarticula as
políticas urbanas, pois é do conceito de função social da propriedade que se
extraem os parâmetros para a exigibilidade do uso adequado das propriedades e
para a autorização de desapropriação e redistribuição equânime das propriedades
urbanas.
O princípio da função social da cidade, por sua vez, após contemplar as
quatro funções básicas assinaladas pela Carta de Atenas – habitar, trabalhar,
recrear e circular – demonstra abranger, atualmente, dimensões mais amplas,
motivo pelo qual sustenta-se que, a partir dos Objetivos de Desenvolvimento
Sustentável, da Agenda 2030, da ONU, as funções das cidades restaram reveladas,
e se traduzem na garantia de espaços urbanos inclusivos, seguros, resilientes e
sustentáveis, eis que apenas ante o acesso a espaços urbanos inclusivos, seguros,
resilientes e sustentáveis que ao indivíduo é viabilizado o desenvolvimento de
suas potencialidades, que culmina na proteção de sua dignidade – mandamento
constitucional inafastável.
198 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

Devido à rápida e crescente urbanização, a provisão de habitação assenta


sua indispensabilidade, exigindo, inclusive, uma reformulação a fim de efetiva e
sinergicamente atender às atuais e cada vez mais urgentes demandas. Análises
dos resultados da implementação dos programas habitacionais brasileiros bem
como da correlação preocupante entre déficit habitacional e propagação
descontrolada do coronavírus evidenciam a fragilidade da acepção da tutela
jurídica da moradia que corresponde ao simples fornecimento de um local para
abrigo, desconsiderando os direitos interdependentes ao direito à cidade, que,
caso observados, asseguram uma moradia e uma vida dignas.
No Brasil, o programa habitacional de maior relevo foi o Programa Minha
Casa Minha Vida (PMCMV), todavia, estudos demonstram a fragilidade do PMCMV
e sua inexpressividade na contenção do crescente déficit habitacional, seja em
função da precariedade das construções, diante da ausência de constrangimento
pela utilização de materiais de baixa qualidade, até mesmo para os acabamentos,
seja em razão da distância dos empreendimentos em relação aos centros urbanos
e aos locais de disponibilização dos serviços públicos. O PMCMV fora marcado
pela massiva construção de casas monofuncionais padronizadas, que não
atendiam às especificidades locais e às múltiplas composições familiares,
reproduzindo, ainda, uma lógica de periferização, já que orientado pela lógica da
rentabilidade – que resultou na construção de megaconjuntos habitacionais
padronizados e inseridos nas piores localizações das cidades, onde o preço do
solo urbano era menor. A produção habitacional se submeteu à viabilidade
econômica, desconsiderando os gráficos de déficit habitacional e as dinâmicas
urbanas, obtendo como consequência a significativa insatisfação dos cidadãos.
A concepção do PMCMV evidencia que resta sedimentado no imaginário
dos brasileiros a compreensão de que os problemas habitacionais são
suficientemente solucionados com a viabilização pelo Estado do acesso à casa
própria, assentando-se uma distorção que favorece a construção de novas
unidades em desprestígio da reforma das já existentes ou, ainda, da utilização das
demais formas de concretização do direito à moradia, como o aluguel social.
Nesse sentido, conceber a moradia como mercadoria, cujo acesso apenas se
perfectibiliza mediante a compra, além de representar atuação inexpressiva frente
Eloísa Assis | 199

ao déficit habitacional, promove a acentuação de problemas urbanos, como a


segregação socioterritorial, por exemplo. Válido assinalar que, em 2021, fora
instituído o Programa Casa Verde e Amarela, e, apesar de se identificar a
disposição no sentido de que o programa habitacional se vincula às diretrizes
urbanísticas, aprecia-se com preocupação a reprodução da lógica de oferta
massificada de unidades habitacionais, reduzindo, novamente, o direito à moradia
ao acesso à casa própria.
A pandemia do coronavírus revelou as fatais consequências das
degradantes condições de vida de grande parte da população brasileira. As
orientações de contenção da propagação do vírus, embora contundentes,
desconsideram a existência de famílias que vivem em unidades habitacionais que
não possuem mínimas condições de salubridade, muitas sequer têm acesso à
água tratada ou a banheiros de uso exclusivo. Com a pandemia do covid-19, as
assimetrias que caracterizam a estrutura socioeconômica brasileira restaram
evidenciadas, eis que, se é certo que, potencialmente, o vírus pode atingir a todos
indiscriminadamente, também o é que a incidência do coronavírus parece coincidir
com determinadas faixas de renda. Isso porque, considerando a má qualidade das
habitações, especialmente quanto ao saneamento básico, e a exposição à doença
em razão da dependência do transporte coletivo – seja em razão da distância das
habitações dos centros urbanos, seja em razão da impossibilidade de home office
para atividades braçais comumente desempenhadas pelas populações de baixa
renda e baixa escolaridade – constata-se que a proliferação do vírus encontra solo
fértil nas habitações precárias e nos aglomerados subnormais, sem mencionar,
ainda, a deplorável situação das pessoas em situação de rua durante o período
pandêmico.
A situação dos moradores de habitações precárias, e das pessoas em
situação de rua, frente aos desafios decorrentes da pandemia do coronavírus,
evidencia a urgência pelo reconhecimento da ressignificação do conteúdo do
direito à moradia, que passa a ser conjugado com os demais direitos que garantem
uma vida urbana digna. Assim, embora seja um direito autônomo, o direito à
moradia, especialmente após a promulgação do Estatuto da Cidade, deve ser
concebido enquanto fragmento inarredável do direito às cidades sustentáveis, de
200 | Direito à moradia: desafios contemporâneos…

maneira que ao seu conteúdo se integram os direitos abrigados no conceito


guarda-chuva de direito à cidade. Ultrapassa-se, portanto, o raciocínio no sentido
de que o direito à moradia se concretiza inteiramente a partir do fornecimento de
uma edificação de alvenaria para abrigo dos indivíduos. Mais do que isso. O direito
à moradia se integra ao direito à cidade, de forma que compreende mais que o
local físico de abrigo, mas, também, a disponibilização de equipamentos,
infraestrutura e serviços públicos. Nessa ordem de coisas, tem-se que o direito
social à moradia não restará plenamente concretizado enquanto não houver
atuação estatal que suficientemente garanta a efetivação do direito à cidade. A
interdependência verificada entre o direito à moradia e o direito à cidade enuncia
a constatação no sentido de que as políticas habitacionais se vinculam,
inarredavelmente, às diretrizes urbanísticas, eis que não há concretização do
direito à moradia sem viabilização de fruição do direito à cidade.
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26, de 2000, o direito à moradia desponta enquanto direito fundamental dotado de
dupla dimensão, já que, embora corresponda a direito subjetivo a prestações
positivas, não se ignora a sua natureza negativa, que se explicita sobretudo na
vedação de remoções forçadas. Com efeito, resta sedimentado no imaginário
social a compreensão de que o direito à moradia apenas se perfectibiliza com a
promoção do acesso à casa própria, circunstância que revela o distanciamento da
concepção da moradia enquanto um bem universal acessível via políticas estatais
diversas – não apenas de compra e financiamento – e uma equivocada
aproximação à compreensão da moradia enquanto mercadoria. O Programa
Minha Casa Minha Vida (PMCMV), programa habitacional de maior relevo na
história brasileira, demonstra a imprecisão da atuação política que se orienta pelo
critério da rentabilidade, vez que, ao condicionar a aquisição de lotes para a
construção dos conjuntos habitacionais ao menor preço disponível, o PMCMV
reproduziu as desigualdades há muito articuladas no espaço urbano, marcado
sobretudo pela segregação socioterritorial. Os desafios pela propagação do
coronavírus – especialmente em decorrência da constatação das inúmeras
situações de coabitação e de adensamento excessivo, para além da ausência de
acesso ao saneamento básico, vez que muitas famílias sequer têm acesso à água
tratada e a banheiros de uso exclusivo – reforçam a urgência pela superação da
clássica compreensão do direito à moradia, que, apesar de se constituir enquanto
direito autônomo, a partir da promulgação do Estatuto da Cidade, deve ser
entendido como direito interdependente e contemplado no conceito guarda-chuva
de direito à cidade, que, atualmente, se contorna enquanto instrumento jurídico de
reivindicação de uma vida digna no espaço urbano, sendo que se reconhece que a
perspectiva urbanística é conteúdo insuprimível do conceito – ressignificado – de
direito à moradia.

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