Zé Fernando - Cidade Vodu 1 Parte
Zé Fernando - Cidade Vodu 1 Parte
Zé Fernando - Cidade Vodu 1 Parte
CIDADE VODU
PRIMEIRA PARTE
HISTÓRIA NATURAL
1.
APRESENTAÇÃO
DIRETOR
Boa noite. Antes de mais nada, sejam todos bem-vindos. CIDADE
VODU é o resultado de alguns encontros. Encontros difíceis, mas
ainda assim encontros. Os primeiros encontros se deram no bairro do
Glicério, ali onde a grande maioria aporta na cidade de Sã o Paulo, a
partir da Igreja Nossa Senhora da Paz, na Missã o Paz e o seu trabalho
com imigrantes. Ocorre que em Agosto de 2015, um grupo de...
pessoas, em plena avenida em frente ao pá tio daquela Igreja, passou
num automó vel gritando “Negros! Vocês devem ir embora! Você
estã o roubando nossos empregos” e atiram, com suas armas de
chumbo, atingindo seis pessoas. Num primeiro momento, nosso
impulso foi: vamos fazer o espetá culo aqui, comprar a briga e fazer da
cena um confronto. Mas logo nos demos conta de que levar o
senhores para lá , e construir lá as nossas cenas, significaria
reproduzir uma espécie de Zoo Humano: imigrantes em situaçã o de
espera sem horizonte, a forma por excelência da exceçã o. Decidimos
entã o levar o espetá culo para um lugar com feiçõ es oficiais.
Estabelecer outro confronto, entre a exceçã o e a fisionomia da vida
oficial entre nó s. O teatro Municipal, talvez! Mas entã o nos
deparamos com esse pequeno pedaço da Cidade. Um campo intenso
de vida, portanto luta. E era a nossa chance de devolver o espetá culo
para a escala da cidade, mas agora desenhando outros contornos,
outras alianças, considerando nas ruínas os vestígios de uma cidade
que nã o aceita simplesmente desaparecer.
Obrigado por estarem aqui essa noite.
Tenhamos todos, juntos, uma boa trajetó ria.
PLANETA TERRA
MUNDO
AMÉ RICA
SUL DA AMÉ RICA
BRASIL
2
SÃ O PAULO
DIA X, DE X, DE 2016.
TEATRO DE NARRADORES
CIDADE VODU
PRIMEIRA PARTE
HISTÓ RIA NATURAL
2.
PRIMEIRO PRÓLOGO
PATRICK
Boa noite. Meu nome é Patrick Dieudoné. Tenho 33 anos, sou
cineasta. Um de meus projetos é um filme sobre a trajetó ria de
haitianos na fronteira da Repú blica Dominicana. A trajetó ria começa
com o terremoto no Haiti. É uma cena de fuga. No Haiti a palavra fuga
é uma palavra que sempre ganha um sentido novo na histó ria. Por
exemplo: A fuga do escravo, ou a fuga do país. Quem foge imagina
cumprir um destino. Há duas maneiras bá sicas de se compreender
isso: há os que fogem e fogem de algo; e há os que fogem e fogem
para algo. Fazer a Histó ria é sempre um ir de encontro. Tenho
trabalhado em produzir trailers de filmes que quero fazer. Sã o
trailers de filmes que ainda nã o existem. De filmes que talvez nã o
venham a existir. De filmes que talvez eu consiga produzir. Trailers
que façam imaginar como um filme pode ser. Hoje é um dia muito
especial para mim. Eu quero mostrar aos senhores algumas cenas.
Sã o ensaios de cenas para alguns dos trailers desses filmes, filmes
que ainda nã o existem. Pedaços cujo encadeamento ainda será
preciso imaginar. Hoje, esse será o nosso trabalho. Muito obrigado.
3.
SEGUNDO PRÓLOGO
PATRICK
A primeira dessas histó rias é a histó ria de Manzu.
Os senhores receberam um pequeno aparelho, com um fone de
ouvido.
Sairemos até a entrada da vila, onde outras cenas serã o imaginadas.
Até lá , ouviremos Manzu contar sua histó ria. Eu lhes indicarei o
caminho. Se nã o há nenhuma dú vida, colocaremos nossos fones, eu
contarei até três e entã o apertaremos o play e começaremos a ouvir
nossa histó ria. Por favor.
3
MANZU
[Canta.]
Ê ! Ê ! Bomba! Heu! Heu!
Canga, bafio té!
Canga, mouné de lé!
Canga, do ki la!
Canga, li!
[Manzu narra.]
Fomos sequestrados, numa espécie de emboscada. Amarrados juntos
uns dos outros em colunas, devíamos carregar pedras de 20 a 25
quilos para evitar as tentativas de fuga. Entã o, marchamos uma longa
jornada até o mar, que, ficava a centenas de quilô metros e, esgotados
e doentes, caímos para nã o mais nos erguer em selva africana. Alguns
de nó s fomos levados até a costa em canoas, deitados no fundo dos
barcos por dias sem fim, com as mã os acorrentadas, as faces expostas
ao sol e à chuva tropical e com as costas na á gua que nunca era
retirada do fundo dos botes. Nos portos de escravos, permanecemos
amontoados em um cercado para a inspeçã o dos compradores. Dia e
noite, milhares de seres humanos eram apinhados em minú sculas
galerias nos ‘depó sitos de putrefaçã o’, onde nenhum europeu
conseguiria permanecer por mais de quinze minutos sem desmaiar.
Alguns de nó s desmaiavam e se recuperavam, outros desmaiavam e
morriam; a mortalidade naqueles ‘depó sitos’ era maior do que vinte
por cento. Do lado de fora, no porto, esperando para esvaziar os
‘depó sitos’ assim que eles enchiam, ficava o capitã o do navio
negreiro, com a consciência tã o limpa que um deles, enquanto
enriquecia o capitalismo britâ nico com os lucros de uma outra
remessa, enriquecia também a sua fé ao compor o hino ‘Como soa
doce o nome de Jesus!’ Nos navios, éramos espremidos nos porõ es
uns sobre os outros dentro de galerias. A cada um de nó s era dado de
um metro a um metro e meio apenas de comprimento e de meio
metro a um metro de altura, de tal maneira que nã o podíamos nem
deitar de comprido e nem sentar com a postura reta. Ao contrá rio das
mentiras que foram espalhadas tã o insistentemente sobre a nossa
docilidade, as revoltas nos portos de embarcaçõ es e a bordo eram
constantes. Por isso tínhamos de ser acorrentados: a mã o direita à
perna direita, a mã o esquerda à perna esquerda, e atrelados em
colunas a longas barras de ferro. Nessa posiçã o permanecíamos
durante a viagem, sendo levados ao tombadilho uma vez por dia para
4
4.
TERCEIRO PRÓLOGO
5.
OS NOMES
5
BARÃ O
Boa noite.
Antes de mais nada, eu gostaria de me apresentar.
Mas seria preciso um nome, para que esse ritual dos encontros se
completasse. Um nome... Mas o que sã o nomes, afinal? Para quê um
nome, se já estamos aqui, e se tanta coisa já está acontecendo, antes
mesmo que um de nó s precise dizer o nome.
6.
A ESPERA DOS NEGROS
MULHER BRANCA
Os negros estã o chegando. A paisagem está encarnada. Talvez
devêssemos atear fogo em volta, no que resta, e deixar que nossos
corpos se consumam nas chamas, para que de nó s só encontrem a
resistência das cinzas. E entã o, que eles mijem sobre o pó . A
liberdade é mesmo uma santa convertida, a menina que se deixou
encantar pelo má gico da feira. Mas quando o truque falha, resta o
gosto de sangue na boca. Mastigando a pró pria língua até que nã o
reste nenhuma palavra a ser dita. Esses pretos sabem de nó s o que
nã o ousamos dizer nem em pensamento. Esperar a morte por nã o ter
coragem de morrer. É essa a verdade de nossas ideias. Sempre
preferimos as ideias à vida. Por isso o cheiro de sangue nos é tã o
familiar e necessá rio. Gostamos de tudo aquilo que é interior, circula,
6
ferve, fede. Me fode, antes que um preto o faça. Que mais eu posso
suplicar aos meus iguais?
7.
BARÃ O
O senhores sabem, esse lugar nã o foi construído à beira de um rio,
mas sobre um rio. Uma ló gica muito pró pria de fazer nascer uma
cidade. Fui no Itororó, beber água não achei... Na minha cabeça, há
uma sobreposiçã o de fusos, tempos que acumulam, sobrepõ em... Eu
queria tanto nã o ver... Eu era feliz quando as primaveras eram cheias
de promessas, e eu podia ver as frutas maduras penduradas nas
á rvores. Mas isso foi até o dia da revanche. Nã o, nã o, nã o: nã o existe
vida depois apó s a morte. Pelo simples fato de que a morte nunca
vem depois. A vida é apenas um intervalo; um sonho, nem sempre
muito bom. Até que um dia você acorda, e os vivos gritam: Ele
morreu, ele morreu, ele morreu. Nó s já está vamos acostumados com
o cheiro do sangue dos pretos. Ao ponto de nã o distinguirmos mais o
cheiro na paisagem. Até que eles se levantaram, e nos degolaram, e
entã o um perfume novo tomou conta do ar. O sangue dos brancos
fede mais, apodrece mais rapidamente sob o sol. Cuidado com as
cabeças pelo chã o. É um há bito da guerra, enterrar vivo o inimigo,
lambuzar a cabeça e deixar que as aves e insetos cumpram seu
destino. A diferença, agora, é a palidez das faces.
8.
MANZU MORREU
9.
BRÉDA – LEGBA
10.
MULHER ENSANGUENTADA
MULHER BRANCA
Quando criança, o medo é como um brinquedo que quebra e a gente
nã o quer se desfazer. Depois, a brincadeira vira um conserto sempre
interrompido. Cortar cabeças ou fazer cabeças: eis o mistério de toda
conversã o. Como aceitar que a revolta desses pretos deveria ser
também a minha revolta? Porque deles só desejo o que levam entre
as pernas.
11.
BARÃ O
Primeiro, o bêbado Makandal, disfarçado entre as cabras, ensaiou o
envenenamento dos brancos. Depois o bruxo Bouckman, que fez do
sangue de um porco a armadura da ira negra. Até que Toussaint
trouxe poesia à guerra, tentando frear enquanto pô de a lucidez
sanguiná ria do cã o Dessalines. E nos restou o mulato Pétion e o
Imperador Christophe, que nã o descansaram até que um descarnasse
o outro. Mas o cozinheiro Christophe quis a sua corte com suas
limonadas e marmeladas. E pra quê? Para que os mulatos
esperassem até o momento oportuno, e nã o hesitassem no momento
da revanche. Revanche, senhores. Ela sempre vem, ainda que tarde.
Eu conheci um jovem soldado suíço, que embora fosse um homem de
paz, e de coraçã o neutro, era um soldado e serviu a Napoleã o. E eu
posso lhes jurar que eu o vi morrer de amor. Depois vieram os
poloneses, e os poloneses desertaram, porque acreditavam na
universalidade da liberdade entre os homens, e até hoje habitam a
cidade invisível. Depois eu conheci os alemã es, que cruzaram seus
olhos azuis com a pele avermelhada dos mulatos, e ficaram entre nó s:
sempre alemã es. Até que os americanos chegaram, para nos trazer
um pouquinho de paz, amor e fé. E trouxeram o seu deus crucificado,
esperneando na cruz contra os deuses pretos que insistiam em
dançar. E eles continuam dançando. Porque no inferno é preciso
dançar para nã o se confundir com a paisagem.
12.
JOGO DA PAZ
13.
A MULHER BRANCA É ASSASSINADA NA ESTRADA
14.
A DEMARCAÇÃO DOS MULATOS
Batuque.
15.
11
KI KOTE MINUSTAH
“A de amor
B de baixinho
C de coraçã o
D de deus
E de escola
F de feijã o
G de gente
H de humano
I de igualdade
J, juventude
L, liberdade
M, molecagem
N, natureza
O, obrigado
P, proteçã o
Q de quero-quero
R de riacho
S, saudade
T de terra
U de universo
V de vitó ria...”
MARIE – Le mte piti pandan mwen tap dó rmi mwen fé yon rèv.
M' sote, mwen kouri leve pou mal di manmanm' sa.
Mwen wé yon zanj blé devan pò t lá , mwen retounen al kouché.
16.
MISSÕES DE PAZ
PATRICK
Esse garoto que o senhor matou, ele é meu irmã o.
17.
TERREMOTO
ENTERRO DE MARIE
veye li . Mwen t’ap imite chen an kite kanpe devan kay li an, ak espwa
ke li t’ap retounen. Men mw te konnen ke li pa t’ap retounen.
18.
BARÃ O
Sabe o que mais assusta nos olhos desses negros? É que eles nã o
esquecem.
14
SEGUNDA PARTE
1.
FEIRA
2.
BRÉDA CANTA
3.
TRAILER
PAÍS VIZINHO