DESPRENDIMENTOS Dourdil
DESPRENDIMENTOS Dourdil
DESPRENDIMENTOS Dourdil
Luís Dourdil é senhor de uma obra coerente ancorada num desenho ordenado de linha
contínua e fragmentada, de cor urdida em paletas que ora do vermelho e amarelo, se
fundem depois nas cores surdas dos cinzas e azuis negros.
Outros temas como os pescadores e barcos (“Olhão”) assim como as varinas, são
também trabalhados por Dourdil, não apenas como motivo plástico, mas ainda na
dimensão da condição humana que enraízava na consciência sócio-política que o
neorrealismo presente nas Gerais de Artes Plásticas (1946-1956, S.N.B.A.) integrava.
De facto a passagem de Dourdil pelas Gerais ainda em quarenta, confirma esta
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propensão partilhada por tantos outros artistas plásticos durante as duas décadas em
referência. Os pescadores, os mercados com as vendedeiras de Jorge Vieira, as
galinheiras de Alice Jorge e de Nuno San Payo, ecoavam esse espírito de arte
empenhada na realidade muito característica da década de cinquenta que Lagoa
Henriques corporizou nas suas Varinas em bronze.
“Década do Silêncio” foi como Rui-Mário l Gonçalves lhe chamou. E a acutilância desta
caracterização perpassa a obra de Luís Dourdil. A partir de 1942 o pintor aceitou
encomendas para a realização de pintura murais É aí que a figura humana atinge a
plena pujança, e o percurso é iniciado para a decoração das antigas instalações das
Companhias Reunidas do Gás e Electricidade (rua do Cruxifixo), à qual se segue a
pintura mural no hall do Laboratório Sanitas (1945), a decoração mural (esgrafito) no
foyer de honra do Cinema Império (1952) e finaliza três anos depois, na pintura mural
no café Império, a maior de todas com 48m2.
Em 1962 Dourdil desenha o "Café Chiado" a carvão sobre papel: figuras planificadas,
sentadas em grupo em volta das mesas, em fortes contrastes de luz e sombra, O
desenho é marcado por uma malha na qual as figuras se inscrevem, sem rosto e sem
identidade.
Por outro lado a identidade, era o segredo do retrato, que é outro modo do pintor
captar a condição humana individual. O retrato da mulher, exposto na exposição
homenagem na S.N.B.A. (2015), representa bem a captação da personalidade, a
dimensão psicológica do rosto. É um interessante retrato feminino marcando as linhas
da expressão, combinando o olhar inteligente com a sensibilidade O cabelo apanhado
na nuca, o olhar frontal, os lábios bem delineados. A ausência de jóias é colmatada
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pela cor exuberante do vestido onde o vermelho e o branco salientam em largas
pinceladas curvas as pregas do mesmo, numa modernidade sensível do gesto.
Abandonando esta realidade palpável, a obra de Dourdil caminha para uma diluição da
figura no espaço, quer na pintura, quer nos desenhos, que poderão atingir grandes
dimensões e nalguns caso receberão cor.
O facto de trabalhar no atelier dos Coruchéus onde via frequentemente nos jardins
envolvendo os edifícios, os jovens, alguns chegando ruidosamente de mota, sem
dúvida que constituía um desafio, aguçando o seu gosto de retratar. Certo é que dos
anos setenta em diante assiste-se a uma fragmentação propositada, acentuando-se o
jogo dos planos e a construção arquitectónica dos elementos.
Nesta malha que foi sendo construída ou reconstruída pelo pintor, como uma teia
infinita, em que o espaço e as figuras respiram do mesmo, já não há reconhecimento
dos rostos, mas apenas nalguns casos a sugestão. As obras de Dourdil revelam-nos
corpos jovens vestidos de jeans, deitados sobre a relva, lado a lado, dobrados,
sobrepostos, abraçados, abandonados, com o capacete pousado ao lado. O tempo
parece não passar por estas obras, já que se cristaliza invariavelmente nas poses dos
corpos que não sendo os mesmos ao longo dos anos, manifestamente se substituem.
Dourdil, ainda assim jogava com o factor acaso. Quem apareceria naquela tarde?
Quanto tempo estaria? Naquela posição? Seria suficiente? Na realidade era uma oferta
ritmada pelo suceder do imponderável que tão bem caracteriza a atitude artística, e a
aproxima da natureza da vida. É esta lição significativa, profunda que podemos retirar
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da obra de Luís Dourdil: uma pintura do desprendimento dissecando a figura até à
exaustão, pois o que é da ordem do acaso só pode ter lugar nestas condições.