Me Mori As Mulheres Liv Ro Reportage M
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MEMÓRIAS DE MULHERES:
LIVRO-REPORTAGEM COM PERFIS BIOGRÁFICOS DE FEMININOS MÚLTIPLOS
UBERLÂNDIA
2015
DIÉLEN DOS REIS BORGES ALMEIDA
MEMÓRIAS DE MULHERES:
LIVRO-REPORTAGEM COM PERFIS BIOGRÁFICOS DE FEMININOS MÚLTIPLOS
UBERLÂNDIA
2015
DIÉLEN DOS REIS BORGES ALMEIDA
MEMÓRIAS DE MULHERES:
LIVRO-REPORTAGEM COM PERFIS BIOGRÁFICOS DE FEMININOS MÚLTIPLOS
Desamparado o texto,
desamparado o autor,
se entreolham, em vão.
Órfão,
o texto aguarda alheia paternidade.
Órfão,
o autor considera
entre o texto e o leitor
- a desletrada solidão.
This paper reports the process to produce the non-fiction book Women's Memories:
biographical profiles of multiple feminine. It begins with the following problem: how the
female protagonism is constructed throughout history? It presents as epistemological
reference the historical materialism and as the theoretical reference the British cultural
studies. It adopts gender as a category of analysis and reviews the literature about feminism
and women's history, especially in relation to education, communication and technology. The
methodology includes techniques of oral history to research the memories of sources and
literary journalism to write the book. Four women with different characteristics and life
trajectories are interviewed: Zélia, 54 years old, victim of various forms of violence who held
herself and her daughters through hard manual work; Bruna, 20 years old, student and
feminist activist of the Slut Walk; Beatriz, 62 years old, teacher who is scared about the
retirement, which chose not to marry or have children and keeps dating for 32 years; Carol, 31
years old, who was adopted as a child, priestess who worships the Goddess and the sacred
feminine. The narrative of the four profiles is permeated by a fifth self-reflexive narrative of
the author. It concludes that the protagonism of women is built through a multiple feminine.
1 APRESENTAÇÃO ................................................................................................ 8
2 MATERIALISMO HISTÓRICO, ESTUDOS CULTURAIS E HISTÓRIAS DE
MULHERES .......................................................................................................... 11
2.1 Fundamentação epistemológica: o materialismo histórico .................................... 11
2.2 Fundamentação teórica: os estudos culturais ......................................................... 17
2.2.1 Estudos culturais e feminismo ............................................................................... 19
2.3 Gênero como categoria de análise ......................................................................... 21
2.4 A história das mulheres e as transformações da sociedade ................................... 23
2.4.1 Trajetória feminina em educação, comunicação e tecnologias ............................. 31
3 O LIVRO-REPORTAGEM MEMÓRIAS DE MULHERES................................. 43
3.1 Jornalismo literário ................................................................................................ 43
3.1.1 Perfis ...................................................................................................................... 45
3.2 História oral ........................................................................................................... 47
3.3 Relato do desenvolvimento do trabalho ................................................................ 49
3.4 Exequibilidade e aplicabilidade ............................................................................. 53
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................ 55
REFERÊNCIAS .................................................................................................... 57
APÊNDICE A - TRANSCRIÇÕES DAS ENTREVISTAS COM ZÉLIA ........... 62
APÊNDICE B - TRANSCRIÇÕES DAS ENTREVISTAS COM BRUNA ........ 63
APÊNDICE C - TRANSCRIÇÕES DAS ENTREVISTAS COM BEATRIZ ...... 64
APÊNDICE D - TRANSCRIÇÕES DAS ENTREVISTAS COM CAROL ......... 65
ANEXO A - TERMO DE AUTORIZAÇÃO DE USO DE IMAGEM E
DEPOIMENTOS DE ZÉLIA ................................................................................ 66
ANEXO B - TERMO DE AUTORIZAÇÃO DE USO DE IMAGEM E
DEPOIMENTOS DE BRUNA .............................................................................. 67
ANEXO C - TERMO DE AUTORIZAÇÃO DE USO DE IMAGEM E
DEPOIMENTOS DE BEATRIZ ........................................................................... 68
ANEXO D - TERMO DE AUTORIZAÇÃO DE USO DE IMAGEM E
DEPOIMENTOS DE CAROL .............................................................................. 69
8
1 APRESENTAÇÃO
A ideia sobre o que é ser mulher modificou-se ao longo do tempo e do espaço, embora
tenha pairado sobre as diferentes sociedades um discurso universal eurocêntrico que tipificou
um padrão feminino. Em uma mesma família, é possível observar diferenças significativas de
uma geração para outra no que se refere à relação da mulher com o cônjuge, os filhos, a casa,
a educação, o trabalho e a sociedade. A própria sociedade é um organismo vivo em mutação,
de modo que as transformações sociais envolvem tanto mulheres quanto seus contextos de
vida.
É fácil, porém, encontrar entre nossas mães, tias, avós ou vizinhas mulheres sem
diploma e sem profissão, embora se desdobrem em trabalhos que consomem o dia e
sustentam o lar, e que ao final da jornada urbana seguem para a prorrogação em casa, quando
cuidam do jantar do marido e dos filhos – cansados de trabalhar. Não raro, elas creem que o
ofício deles desgasta mais, que eles entendem mais de política, que são mais hábeis no
trânsito, que têm mais direitos, que são melhores que elas. Há mulheres que estudam, têm
profissão, quebram tabus sexuais, mas não deixam de crer que o homem com muitas mulheres
é conquistador e a mulher com muitos homens não vale nada. Se o último século trouxe a
revolução feminina, não foi capaz de apagar o ranço deixado por milênios de uma história
enviesadamente masculina, machista, patriarcal e, por vezes, misógina.
Nesse panorama, chegamos ao seguinte problema: como o protagonismo feminino se
constrói ao longo da história? Em palavras mais analíticas, a questão que norteia esta pesquisa
é: de que modo a mulher escreve sua própria história, em um contexto rançoso de valores
machistas e patriarcais?
A partir desses questionamentos, definimos que nosso objetivo geral é produzir um
livro-reportagem com perfis biográficos, ou seja, textos jornalísticos narrativos e descritivos
sobre a vida de mulheres. Nossos objetivos específicos são: contar histórias de mulheres
diversas; investigar a ocorrência de conflitos decorrentes da postura ativa da mulher no
contexto de uma sociedade em que predomina um discurso de hierarquização de gênero;
utilizar a história oral e o jornalismo literário como metodologias e técnicas para dar maior
visibilidade às fontes que pertencem às chamadas minorias sociais, neste caso, mulheres;
produzir uma obra jornalística em que se permita a subjetividade e o detalhamento, uma
alternativa ao jornalismo convencional, que prioriza a objetividade e a instantaneidade; levar
o leitor a uma reflexão sobre a questão de gênero; por meio do jornalismo, registrar a história
das mulheres em um passado recente e no presente, evidenciando o seu protagonismo.
9
Justificamos a relevância social deste trabalho por dar visibilidade a memórias de mulheres,
historicamente excluídas do protagonismo social e da narrativa histórica. O livro-reportagem
de perfis coloca no proscênio aquelas que são as protagonistas de suas próprias histórias, ao
expor as conquistas, os desafios a serem superados e toda a complexidade que compõe a vida
de mulheres comuns e igualmente diferentes. Ao cumprir a função primordial do jornalismo,
informar, o livro-reportagem Memórias de Mulheres almeja levar ao leitor o conhecimento de
perfis tão variados de mulheres e, consequentemente, possibilitar uma reflexão sobre questões
das mulheres na sociedade.
Cientificamente, o trabalho se justifica por contribuir com a linha de pesquisa
científico-tecnológica “Tecnologias e Interfaces da Comunicação”, uma vez que utiliza uma
tecnologia da comunicação, o livro-reportagem, para fazer uma comunicação como processo
problematizado, abordando a relação entre gênero e imprensa, e ainda se configura como um
exemplar de produção de Jornalismo Especializado, pois se baseia nas técnicas e conceitos de
Jornalismo Literário. Ao enveredar-se pelo campo da pesquisa sobre o feminino, este trabalho
aciona a chamada tecnologia de gênero, da qual trataremos no capítulo seguinte, e, por
conseguinte, amplia o conceito de tecnologia que nomeia a linha de pesquisa na qual se
insere.
Do ponto de vista mercadológico, reconhecemos que o cenário não é o mais otimista.
A última pesquisa Retratos da Leitura no Brasil revelou que a média de livros lidos pelo
brasileiro em um ano diminuiu: passou de 4,7 livros em 2007 para 4 em 2011. Quando
perguntados sobre o que gostam de fazer nas horas vagas, apenas 28% responderam que
gostam de ler – em 2007, o índice foi de 36%. Os números são mais animadores em relação às
leitoras, que leem 4,2 livros por ano contra 3,2 livros que são lidos, em média, por cada
homem. A mesma pesquisa revelou que, do público que se declara leitor, 57% são mulheres e
ainda, que 65% dos leitores escolhem um livro pelo tema. As mulheres são maioria, também,
entre o público frequentador de bibliotecas: 55%. Contudo, consideramos que os números
problemáticos referentes aos hábitos de leitura no Brasil não devem inibir a produção
editorial, e sim, motivar uma educação que incremente as experiências de leitura e desperte o
interesse das pessoas pelos livros. Nossa contribuição é colocar mais uma obra no acervo à
disposição dos potenciais leitores, na esperança de que a combinação entre o prazer da
linguagem literária e o apelo jornalístico da realidade seja atraente para o público. Afinal,
quem escreve deseja ser lido.
Na perspectiva de concretizar nossos objetivos, definimos os seguintes procedimentos
metodológicos: revisão bibliográfica sobre a questão de gênero na sociedade e a história das
10
Que raízes sustentam esta pesquisa? Em que terra plantamos nossas dúvidas? Onde
buscamos nossas respostas? Epistemologicamente, este estudo parte do materialismo histórico
e relaciona-se, do ponto de vista teórico, aos estudos culturais britânicos. Para contar a
história das mulheres e narrar as questões de gênero, recorremos a Simone de Beauvoir, Gilles
Lipovetsky, Michelle Perrot, Heleith Saffioti, Joan Scott, Judith Butler, Teresa de Lauretis e
outros.
1
O texto base deste item foi publicado na forma de artigo em anais de evento, conforme a referência:
ALMEIDA, Diélen dos Reis Borges. Materialismo histórico, estudos culturais e feminismo: fundamentações
para a pesquisa sobre gênero. In: Seminário Nacional de Teoria Marxista, 2014, Uberlândia-MG. Anais...
Uberlândia: Pueblo Editorial, Livraria Nepri-UFU, 2014. Disponível em <http://seminariomarx.com.br/eixo09/
Materialismo%20hist%C3%B3rico%20estudos%20culturais%20e%20feminismo.pdf>. Acesso em 20 jan. 2015.
12
Portanto, classe contra classe deve ser a linha mestra da luta pela libertação
da humanidade em geral, e da mulher em particular. Somente uma vitória
revolucionária sobre o capitalismo, dirigida pelos homens e mulheres
trabalhadoras e apoiadas por todos os oprimidos, pode resgatar as mulheres
de seu estado de opressão e garantir-lhes uma vida melhor numa nova
sociedade. (REED, 2008, p.86).
A sociedade de classes criou a luta entre homens por propriedade e riqueza e, entre
mulheres, a competição por homens ricos e poderosos, na concepção da autora acima. A
rivalidade feminina não é natural, mas sim, criada e condicionada historicamente para atender
ao “mercado” do sexo e do matrimônio, em que o padrão de beleza é almejado por meio dos
cosméticos, da moda, dos produtos para emagrecer, das joias, etc. “Quando a monogamia
substituiu a poligamia e as condições materiais se converteram na base do matrimônio, as
mulheres ricas tiveram, com relação às pobres, vantagens na concorrência sexual” (REED,
13
2008, p. 90). A historiadora francesa Michelle Perrot aborda essas diferenças sociais,
especialmente entre as mulheres aristocratas, as burguesas e as filhas de classes populares, em
sua obra Minha história das mulheres, de 2007:
A autora aborda a polêmica entre sexo e classe quando narra a história das mulheres
no sindicalismo, que, em certa medida, criou condições favoráveis às mulheres, uma vez que
o direito de se sindicalizar precedeu o de votar em muitos países. A relação, porém, foi e é
instável:
O feminismo age por suas alianças, muito diversas. [...] Com o socialismo,
pelo menos na primeira metade do século XIX, Saint-Simon, Fourier, Robert
Owen, Pierre Leroux sonhavam unir os proletários e as mulheres, gêmeos
oprimidos. Logo após, as coisas se complicam. Na teoria, que subordina a
luta dos sexos à luta de classe; na prática do poder, que se apóia nos partidos,
e mesmo na ditadura de um proletariado muito másculo. Entre a virilidade
do militante e a boa dona-de-casa, as mulheres comunistas não têm
escapatória. (PERROT, 2007, p.157).
14
A sociedade primitiva amplamente citada por Reed em Sexo contra sexo ou classe
contra classe é conceituada pela autora como a sociedade tribal, sem classes, em que os meios
de produção eram propriedade comum e não havia Estado. Reed cita o evolucionista Morgan,
que definiu sociedade primitiva como um sistema de “comunismo primitivo”. Morgan indicou
três estágios do suposto “progresso humano”: estágio selvagem, que seria o mais longo,
correspondente a 99% da vida humana; estágio de barbárie, que começou com a agricultura e
a criação de gado, há aproximadamente 8 mil anos; e estágio de civilização, iniciado há cerca
de 5 mil anos. Sabe-se que as transformações na sociedade não são uniformes nem podem ser
generalizadas de modo universal. Tanto Morgan quanto Reed desenvolveram seus estudos nos
Estados Unidos, país de colonização inglesa, e é desse contexto ocidental que partem para
elaborar seus conceitos.
Engels cita o livro O Direito Materno, de Bachofen, publicado em 1861, como marco
inicial do estudo da história da família, a partir das seguintes teses: na era primitiva, os seres
humanos viveram em promiscuidade sexual; com a impossibilidade de se estabelecer a
15
paternidade, contava-se a filiação a partir da linha feminina, segundo o direito materno; sendo
únicos progenitores conhecidos, as mulheres tinham grande apreço e respeito da jovem
geração, chegando ao domínio feminino absoluto (ginecocracia); a partir do surgimento de
novas concepções religiosas, instaura-se a monogamia e a mulher passa a pertencer a um
único homem. “Para Bachofen, não foi o desenvolvimento das condições reais de existência
dos homens, mas o reflexo religioso dessas condições no cérebro deles o que determinou as
transformações históricas na situação social recíproca do homem e da mulher” (ENGELS,
1984, p. 8).
Marx e Engels demonstram que todas as sociedades se fundamentam no trabalho.
Posteriormente, Reed (2008, p. 35) vem afirmar que, “para a espécie humana foi decisivo o
fato de que a maternidade impulsiona o trabalho, e sobre a fusão da maternidade com o
trabalho, fundou-se, na verdade, o primeiro sistema social”. Para a autora, as mães foram as
primeiras a trabalhar – descobriram a agricultura, domesticaram animais –, o que representou,
também, a emancipação dos homens. “A caça já não era socialmente indispensável, e esta
atividade se viu transformada, rapidamente, em um simples esporte. Os homens estavam
então livres para participar da vida cultural e industrial da comunidade” (REED, 2008, p. 50-
51). A partir do momento em que os homens se apropriam dos meios de produção, as
mulheres são relegadas a funções biológicas, especialmente a maternidade, sem participação
na vida social produtiva. Os trabalhos das mulheres são invisíveis:
2
No original: “Gramsci used the term “hegemony” to refer to the moment when a ruling class is able, not only to
coerce a subordinate class to conform to its interests, but to exert a “hegemony” or “total social authority” over
subordinate classes. This involves the exercise of a special kind of power—the power to frame alternatives and
contain opportunities, to win and shape consent, so that the granting of legitimacy to the dominant classes
appears not only ‘spontaneous’ but natural and normal.” (CLARKE, HALL et al., 1975, p. 38, tradução nossa).
17
Em seus Cadernos do Cárcere, volume 1, Gramsci (1999, p. 399) afirma que “toda
relação de ‘hegemonia’ é necessariamente uma relação pedagógica, que se verifica não apenas
no interior de uma nação, entre as diversas forças que a compõem, mas em todo o campo
internacional e mundial, entre conjuntos de civilizações nacionais e continentais”. No segundo
caderno, apresenta outros dois planos superestruturais:
3
Mais informações: ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado. Lisboa: Presença,
1974.
19
É fato que o feminismo encontrou espaço nos estudos culturais. Além de Women Take
Issue, de 1978, que deu maior visibilidade à questão feminista, outras obras do CCCS
abordaram a temática, como demonstra a autora Charlotte Brunsdon na obra A Thief in the
night: stories of feminism in the 1970’s at CCCS. Um desses trabalhos, intitulado Images of
Women, de 1974, apresentava produções das feministas Helen Butcher, Rosalind Coward,
Marcella Evaristi, Jenny Garber, Rachel Harrison e Janice Winship (MESSA, 2008, p. 39-40).
20
A relação entre feminismo e estudos culturais, porém, é tensa. Messa (2008, p. 40) cita
Ann Gray, para quem o potencial dos estudos feministas foi subestimado pelos estudos
culturais. As feministas “precisaram batalhar e insistir pela inserção de discussões como
política e poder na esfera doméstica”. Gray afirma que a parceria já havia sido posta em
dúvida na publicação Off Centre: Feminism and Cultural Studies, de 1991. Na década de
1970, Sheila Rowbotham denunciou o preconceito dos estudos culturais com o “novo
continente” (o feminismo). Em Woman’s Consciousness, Man’s World, de 1973, a autora
afirma que inclusive a reflexão feminista era dominada pelos homens (MESSA, 2008, p. 40).
A seguinte metáfora de Stuart Hall é uma das mais criticadas pelo feminismo:
A questão do feminismo foi muito difícil de levar por duas razões. Uma é
que se eu tivesse me oposto ao feminismo, teria sido uma coisa diferente,
mas eu estava a favor. Ser alvejado como "inimigo", como a figura patriarcal
principal, me colocava numa posição contraditória insuportável. É claro que
as mulheres tiveram que fazer isso. Elas tinham toda razão em fazer isso.
Tinham que me calar, essa era a agenda política do feminismo. Se eu tivesse
sido calado pela direita, tudo bem, nós todos teríamos lutado até a morte
contra isso. Mas eu não podia lutar contra minhas alunas feministas. Outra
forma de pensar essa contradição seria vê-la como uma contradição entre
4
No original: “When I first read this account, I immediately wanted to unread it. To deny it, to skip over it, to
not know - to not acknowledge the aggression therein. Not so much to deny that feminists at CCCS in the 1970s
had made a strong challenge to cultural studies as it was constituted then and there, but to deny that it had
happened the way here described.” (BRUNSDON, 1996, p. 279, tradução nossa).
21
teoria e prática. A gente pode apoiar uma prática, mas é muito diferente de
ter uma feminista de verdade na sua frente dizendo: "Vamos tirar o
Raymond Williams do programa do mestrado e colocar a Julia Kristeva em
seu lugar." Viver a política é diferente de ser abstratamente a favor dela. As
feministas me deram um xeque-mate; eu não poderia me conciliar com isso,
trabalhando no Centro. Não foi nada pessoal. Sou amigo de muitas das
feministas daquele período. Foi uma coisa estrutural. Eu não poderia
produzir nada de útil no Centro, ocupando aquela posição. Era hora de partir.
(HALL, 2003, p. 429-430).
Narrar histórias de mulheres é enveredar-se pela pesquisa de gênero, que está mais
para um lugar de intenso debate – político, inclusive – do que de certezas, como atesta Joan
Scott:
É esta luta política que eu penso que deve comandar nossa atenção, porque
gênero é a lente de percepção através do qual nós ensinamos os significados
de macho/fêmea, masculino/feminino. Uma “análise de gênero” constitui
nosso compromisso crítico com estes significados e nossa tentativa de
revelar suas contradições e instabilidades como se manifestam nas vidas
daqueles que estudamos. (SCOTT, 2012, p. 332).
A autora argumenta que, embora gênero, como categoria de análise, esteja diretamente
ligado à esfera social, o objeto de análise desse campo de pesquisa, que são as relações
históricas das relações entre os sexos, está conectado à esfera psicossexual. Assim, gênero
seria “sempre uma tentativa de amenizar as ansiedades coletivas sobre os significados da
diferença sexual” (SCOTT, 2012, p. 346). Portanto, em nosso trabalho com o feminino
múltiplo, mais importante que definições precisas sobre gênero é a concepção de uma
experiência plural:
22
Scott, nesse texto recente, nos alerta que gênero é uma questão eternamente aberta e
que, se a considerarmos resolvida, é porque estamos no caminho errado. Todavia, temos
algumas propostas de direcionamento. Judith Butler, no livro Gender Trouble: Feminism and
the Subversion of Identity, desarticula o binômio sexo/gênero e indica que o gênero tem um
significado flutuante:
5
No original: “Originally intended to dispute the biology-is-destiny formulation, the distinction between sex and
gender serves the argument that whatever biological intractability sex appears to have, gender is culturally
constructed: hence, gender is neither the causal result of sex nor as seemingly fixed sex. The unity of the subject
is thus already potentially contested by the distinction that permits of gender as a multiple interpretation of sex.”
(BUTLER, 1990, s.p., tradução nossa).
23
Tudo contribui para confirmar essa hierarquia aos olhos da menina. Sua
cultura histórica, literária, as canções, as lendas com que a embalam são uma
exaltação do homem. São os homens que fizeram a Grécia, o Império
Romano, a França e todas as nações, que descobriram a terra e inventaram os
instrumentos que permitem explorá-la, que a governaram, que a povoaram
de estátuas, de quadros e de livros. (BEAUVOIR, 1949, p.30).
Piora a situação a invisibilidade feminina: elas não eram vistas no espaço público, não
deveriam falar em público, e é desse espaço que foi feito o registro. “O relato da história
constituído pelos primeiros historiadores gregos ou romanos diz respeito ao espaço público:
as guerras, os reinados, os homens ‘ilustres’, ou então os ‘homens públicos’. [...] É preciso ser
piedosa ou escandalosa para existir” (PERROT, 2007, p. 17-18). Nos séculos XVIII e XIX, a
história torna-se mais científica e profissional, mas o espaço destinado às mulheres é apenas
um pouco maior. Foram (e alguns ainda são) exemplos de confinamento de mulheres o
gineceu, o harém e o quarto das mulheres do castelo feudal. Perrot (2007) lembra ainda os
filósofos que postularam em prol da clausura feminina, como Pitágoras – “uma mulher em
público está sempre fora de lugar” – e Rousseau – “toda mulher que se mostra se desonra”.
O sexo das mulheres é um mistério, sobre o qual pouco de fala. As que não freiam a
sexualidade são consideradas perigosas. A maternidade, porém, é o grande caso das mulheres,
fonte de identidade, fundamento da diferença reconhecida, mesmo não vivida. Celebra-se o
Dia das Mães, venera-se a Virgem Maria, mãe de Deus, e pune-se o aborto. “A sociedade
ocidental promove a assunção da maternidade. [...] Um dos traços mais marcantes da época
contemporânea reside na politização da maternidade, tanto nos Estados totalitários quanto na
República” (PERROT, 2007, p. 69). Tal é a relevância da maternidade como definidora do
que é ser mulher que Perrot (2007) considera a livre contracepção como o acontecimento mais
importante e que mais abalou a relação entre os sexos, começando a dissolver a hierarquia
entre eles.
O dever de ser mãe repercutiu nas relações trabalhistas. Saffioti (2013) aborda as
justificativas que vêm sendo dadas historicamente para as mulheres ocuparem posições
desvantajosas no trabalho formal: a redução da capacidade de trabalho nos últimos meses da
gestação e no pós-parto, a necessidade de aleitamento, o absenteísmo por motivo de doença,
mas não apenas quando a própria mulher está doente, mas também para cuidar do marido e
dos filhos quando eles estão doentes. A autora propõe que as medidas para contemplarem a
questão da maternidade no âmbito do trabalho deixem de tratar a maternidade apenas como
carga exclusivamente feminina:
(como era chamado o Ensino Superior na época) no Brasil. Desses, 19.480 homens e 16.323
mulheres tinham mestrado ou doutorado. A média de anos de estudo da população de 10 anos
ou mais de idade, em 1999, indicou vantagem para as mulheres: a média delas era de 5,9 anos
de estudo contra 5,6 anos para os homens (IBGE, 2013a). A vantagem permaneceu em 2009:
média de 7,4 anos de estudo para elas; 7 anos de estudo para eles (IBGE, 2013b). O Censo de
2010 revelou que o percentual de homens na faixa etária de 25 anos com nível superior
completo de graduação era de 9,9%, enquanto o de mulheres na mesma idade era de 12,5%
(IBGE, 2012a).
As mulheres se fizeram estudantes e a docência configurou-se como profissão
predominantemente feminina, na contramão de um processo histórico que negava a elas
qualquer tipo de profissionalismo. Assim, o estudo da relação entre a vida das mulheres e a
educação é importante para compreender as transformações ocorridas ao longo da história:
Um olhar atento perceberá que a história das mulheres nas salas de aula é
constituída e constituinte de relações sociais de poder envolvidas, nessa e em
outras histórias, como imbricadas em todo o tecido social, de tal forma que
os diversos sujeitos sociais exercitam e sofrem efeitos de poder. Todos são,
ainda que de modos diversos e desiguais, controlados e controladores,
capazes de resistir e de se submeter. (LOURO, 2001, p. 478).
Toda educação das mulheres deve ser relativa aos homens. Agradá-los, ser-
lhes úteis, fazer-se amar e honrar por eles, criá-los, cuidar deles depois de
crescidos, aconselhá-los, consolá-los, tornar-lhes a vida agradável e suave:
eis os deveres das mulheres em todos os tempos, e o que se deve ensinar-lhes
desde a infância.
6
O texto base deste item foi publicado na forma de artigo em anais de evento, conforme a referência:
ALMEIDA, Diélen dos Reis Borges; SPANNENBERG, Ana Cristina Menegotto. A trajetória da mulher e as
transformações na educação, na comunicação e na tecnologia. In: II Encontro Nacional de Pesquisadores(as) em
Educação e Culturas Populares, 2013, Uberlândia. Anais... Uberlândia: UFU, 2013. Disponível em
<http://enpecpop.espacohibrido.com/bib/trabalhos/eixo3/resumo/A%20TRAJET%C3%93RIA%20DA%20MUL
HER%20E%20AS%20TRANSFORMA%C3%87%C3%95ES%20NA%20EDUCA%C3%87%C3%83O_resum
o.pdf>. Acesso em 20 jan. 2015.
32
Assim, a educação das mulheres concebida até o final do século XIX vinculou-se às
necessidades de modernização da sociedade, higienização da família e construção da
cidadania das novas gerações. “A definição predominante da mulher brasileira até o início do
34
século vinte correspondia ao ideal vitoriano de esposa, mãe e dona de casa” (SILVA, 1998, p.
29) e a imprensa feminina se guiava na mesma linha. A revista ilustrada A Mãe de Família
(1879-1888), por exemplo, abordava educação da infância e higiene da família. Até mesmo o
semanário O Sexo Feminino (1875-1877, 1887-1889), mais engajado politicamente e defensor
dos direitos das mulheres, chegou a publicar: “Queremos a educação verdadeira que não se
nos tem dado a fim de que possamos educar também nossos filhos”. Também o jornal literário
A Família (1888-1889) era dedicado à educação das mães de família (BUITONI, 2009, p.41-
44).
No contexto de uma economia urbano-industrial, as mulheres se viram diante de duas
influências antagônicas: de um lado, a imigração europeia e algumas revistas femininas que
traziam novas ideologias de esquerda, especialmente, o feminismo; de outro, uma
contrainfluência também de origem europeia, a “eugenia”, que pregava a necessidade das
mulheres no lar para garantir a formação de uma boa geração. “A essência do ser feminino –
reiterando os ideais vitorianos – encontrava-se em ser mãe e em se dedicar ao lar (‘o ninho
sagrado’), ao marido e aos filhos. O trabalho da mulher fora de casa era visto como fonte de
caos moral e gerador de crise na família” (SILVA, 1998, p. 30).
Também de forma paradoxal, a educação das mulheres baseou-se na formação cristã,
mais especificamente católica, e nas ideias positivistas e cientificistas do momento, que
propunham a incorporação das novidades da ciência à vida, como a puericultura, a psicologia
ou a economia doméstica (LOURO, 2001, p. 447-448). Embora os valores religiosos
predominassem, especialmente, na formação das mulheres, o conhecimento científico
representava o progresso, o avanço da sociedade, enfim, a modernidade.
Faltavam mestres e mestras bem preparados, por isso, ainda no século XIX, foram
fundadas as primeiras escolas normais para formação de professores, abertas a moças e
rapazes, embora devessem estudar separadamente. Quando as vagas no ensino primário ainda
eram poucas, as mestras recém-formadas eram contratadas também como preceptoras ou
professoras particulares, para atuarem em casas ou fazendas de famílias ricas (BRUSCHINI;
AMADO, 1988, p.5). A prática dos cursos normais revelou que, a cada ano, aumentava o
número de mulheres e diminuía o de homens. Eles estavam sendo atraídos por oportunidades
de trabalho criadas no processo de urbanização e industrialização, de modo que ocorreu um
fenômeno chamado de “feminização do magistério”. Essa identificação das mulheres com a
docência foi criticada por alguns, que as consideravam intelectualmente incapazes para
desempenhar a tarefa de ensinar, mas apoiada por outros, que enxergavam as mulheres como
35
“educadoras naturais” (LOURO, 2001, p. 448-450). Ser professora era uma extensão de ser
mãe:
A docência passou a ser representada mais como um “sacerdócio” que como uma
profissão, que requeria características “tipicamente femininas”, como “paciência,
minuciosidade, afetividade, doação”. Paralelamente, passou a ocorrer maior intervenção e
controle do Estado sobre a educação (LOURO, 2001, p. 450). Esse vínculo criado entre as
características femininas e a vocação para ensinar baseou-se em um antigo clichê:
destrezas manuais e estéticas”, situação que permaneceu por décadas. Disciplinas como
psicologia, puericultura, higiene e economia doméstica conferiam aos cursos normais mais do
que o status de preparatórios para a docência; eram também preparatórios para o casamento e
a maternidade – também chamados popularmente de “curso de espera marido” –, num
processo de “escolarização do doméstico” e constitui-se de forma ambígua: ao mesmo tempo
em que a escola rompia com o aprendizado ocorrido no âmbito do lar, por ser mais legítima,
mantinha uma ligação com a casa, com referências à maternidade e ao afeto (LOURO, 2001,
p. 457-458).
As funções de diretores e inspetores das escolas normais eram sempre exercidas por
homens (com exceção das escolas religiosas em que as madres assumiam esses papéis).
Reproduzia-se a hierarquia doméstica, em que as mulheres executam funções mais imediatas
e os homens assumem o controle e o poder.
Enquanto, para muitas mulheres, a escola normal era uma preparação para o
casamento, para outras representava uma alternativa ou mesmo uma renúncia ao matrimônio.
Daí vem a imagem da professora solteirona, retraída, mulher de poucos encantos. Embora
controladas, essas mulheres representavam uma ruptura, pois se lançavam para um espaço
fora do lar, com alguma autonomia (LOURO, 2001, p. 464-465).
variando entre mais e menos caros (SILVA, 1998, p. 32-33). Os eletrodomésticos representam
uma das categorias de tecnologias domésticas, as quais influenciaram (e influenciam) a
organização das atividades nos lares. Podendo contar com o trabalho das máquinas, as
mulheres passaram a ter maior tempo livre para se dedicar a outras tarefas, inclusive ao
trabalho remunerado fora de casa.
O ingresso na universidade também foi tardio e teve características específicas.
Segundo Bruschini e Amado (1988), apenas na década de 1940 as normalistas puderam
ingressar nos cursos de Filosofia e, a partir de 1953, nos demais cursos. E a tendência de
feminização da docência permaneceu: a maioria das universitárias estava nos cursos de
licenciatura, preparatórios para o magistério na escola secundária. Esses cursos se
expandiram, pois seus custos de instalação são menores que o de outras carreiras, e, ao
mesmo tempo, a profissão docente foi perdendo prestígio.
As décadas mais recentes consolidaram a maioria feminina na educação como
profissão. O Recenseamento Demográfico de 1980 revelou que 86,6% dos docentes
brasileiros eram mulheres. No chamado ensino pré-primário, elas eram quase totalidade, 99%
do total, e constituíam 96,2% do professorado do ensino de primeiro grau de 1ª a 4ª série
(atual Ensino Fundamental 1). Nos níveis seguintes, o número de mulheres diminuía
(BRUSCHINI; AMADO, 1988, p.5).
A escola, então, passa a se assemelhar a um trabalho fabril, ocorrendo um processo de
“proletarização da categoria docente”. Os salários, que já eram baixos, caíram ainda mais. E
assim, trabalhadores e trabalhadoras da educação passaram a se organizar, como já faziam os
operários, em associações e sindicatos que promoviam greves e outras formas de
manifestação.
mulheres. Também na Europa o sindicalismo das professoras primárias, que Perrot (2007, p.
127) chama de “as primeiras intelectuais”, foi um dos mais fortes:
mudou foi a chancela do casamento. Pois a mulher continua tendo de ser bonita, bem-vestida,
bem maquiada, compreensiva, alegre, boa cozinheira [...] para segurar o seu homem.
Continuam os preceitos de como a mulher deve ser”.
A imprensa feminina apresenta constantemente a ideia do “novo”. Buitoni, em sua
pesquisa sobre revistas femininas, obsevou que a ideia do “novo” perpassou todo o século
XX:
7
O texto base deste item tem origem no trabalho de conclusão de curso de graduação em Comunicação Social:
habilitação em Jornalismo e foi publicado na forma de artigo em anais de evento, conforme a referência:
ALMEIDA, Diélen dos Reis Borges; SOUSA, Gerson de. Os invisíveis n’O olho da rua: o jornalismo literário e
a visibilidade midiática dos socioeconomicamente excluídos. In: XXXVII Congresso Brasileiro de Ciências da
Comunicação, 2014, Foz do Iguaçu. Anais... São Paulo: Intercom, 2014. Disponível em
<http://www.intercom.org.br/sis/2014/resumos/R9-1286-1.pdf >. Acesso em 20 jan. 2015.
44
O jornalismo literário é uma forma especializada de se fazer jornalismo que agrada aos
escritores de livros-reportagens. Esse gênero jornalístico rompe os limites do jornalismo
diário e mergulha profundamente em fatos, personagens e situações, por vezes, com
abordagens criativas e originais (BELO, 2006). Conforme Lima (1995), “o livro-reportagem é
o veículo de comunicação impressa não-periódico que apresenta reportagens em grau de
amplitude superior ao tratamento costumeiro nos meios de comunicação jornalística
periódicos”.
O livro-reportagem é, ao mesmo tempo, uma reportagem grande e uma grande
reportagem. Como reportagem grande, precisa fisgar o leitor nas primeiras linhas e fidelizá-lo
até a página final, tarefa árdua para jornalistas padronizados, mas que os escritores de
literatura tiram de letra. Como grande reportagem, precisa ser profunda como almeja o
jornalismo literário. Assim, a ousadia em misturar jornalismo e literatura tem sido bem
sucedida. Nosso livro-reportagem é composto por quatro reportagens, escritas na forma do
gênero jornalístico-literário perfil, sobre o qual falaremos a seguir.
3.1.1 Perfis
humano de uma personagem pública ou de uma personagem anônima que, por algum motivo,
torna-se de interesse”. O autor comenta que, no segundo caso, as características e
circunstâncias de vida fazem com que a pessoa represente um determinado grupo social e
personifique a realidade desse grupo. É o que ocorre em Memórias de Mulheres: perfis
biográficos de femininos múltiplos.
No perfil humanizado escrito para livro-reportagem, a entrevista tem a possibilidade
de alcançar dimensão superior ao que é praticado nos veículos periódicos, espacialmente
limitados. Ainda que exista a pauta, é possível abandoná-la em algum momento em prol da
empatia com o entrevistado e da emoção. Contar histórias de vida em um livro-reportagem é
tarefa que pode ser feita na forma de diálogo entre entrevistador e entrevistado, ou de
depoimento direto, ou de uma mescla em que se combinam primeira e terceira pessoas, como
estamos fazendo em nossa obra. As entrevistas biográficas resgatam a oralidade e contribuem
para reproduzir idiossincrasias de algumas culturas e relações sociais (LIMA, 1995).
A produção de um perfil requer a interação com o personagem, a pesquisa sobre seu
contexto sociocultural e movimento pelo lugar do perfilado. Observa-se sua linguagem verbal
e não verbal e examinam-se suas reflexões. A principal regra é humanizar, evitando-se os
pensamentos binários, como “santo ou demônio”, “algoz ou vítima”. Entrar no mundo do
personagem sem hipóteses nem preconceitos. Privilegiar a expressão, não os dados. Jamais
idealizar (informação verbal)8.
Sergio Vilas Boas, no livro Perfis e como escrevê-los, alerta sobre a falta de perfis no
jornalismo contemporâneo e faz uma crítica ao modelo vigente: “Os raros perfis que tenho
visto em publicações nacionais representam uma quase-negação dos valores humanistas que
pautavam as reportagens de quarenta anos atrás. O que aparece nas revistas de hoje são
sutilezas do encontro, a pessoa por trás do mito ou a capacidade de observação do autor.”
(VILAS BOAS, 2003, p. 28).
Na obra Gêneros jornalísticos no Brasil, organizada por José Marques de Melo e
Francisco de Assis e publicada em 2010, o perfil é classificado como um gênero
interpretativo, pois a apresentação descritiva do personagem possibilita a interpretação de seu
comportamento diante da sociedade (COSTA; LUCHT, 2010). Em nosso livro Memórias de
Mulheres, os perfis que estão sendo construídos são do tipo “personagem-indivíduo”, em que
“o retrato é mais psicológico do que referencial – o interesse recai sobre a atitude do
8
Informações fornecidas pela professora Ana Cristina Menegotto Spannenberg, na oficina A arte de contar
histórias na produção de perfis, na III Semana de Comunicação (III SEMACOM), promovida pelo curso de
Comunicação Social: habilitação em Jornalismo da UFU (Uberlândia), em 28 de janeiro de 2014.
47
A história oral “é uma história construída em torno de pessoas. Ela lança a vida para
dentro da própria história e isso alarga seu campo de ação. Admite heróis vindos não só dentre
os líderes, mas dentre a maioria desconhecida do povo” (THOMPSON, 1992, p. 44). Essa
metodologia é adequada aos nossos objetivos, uma vez que propicia o trabalho com a
memória e foco no sujeito, fundamentais para a construção dos perfis de femininos múltiplos.
A história oral, segundo Michael Pollak, evidencia uma memória coletiva subterrânea
da sociedade civil dominada, que se distingue de uma memória coletiva organizada imposta
por uma sociedade majoritária ou pelo Estado:
Karam (199-) propõe uma abordagem jornalística da memória coletiva. “De acordo
com Halbwachs, a memória coletiva supõe uma multiplicidade de tempos coletivos, à medida
em que grupos separados ou culturas específicas contêm um ritmo e espacialidade próprios,
particulares” (KARAM, 199-, p. 5). O jornalismo, contudo, busca a memória do presente:
Sabemos que, para os historiadores, a história oral requer uma série de procedimentos
que devem ser rigorosamente seguidos para que se reconstitua o passado por meio da
oralidade. Para nós jornalistas, contudo, a história oral convém como metodologia que
permite contar uma história do tempo presente, combinada com critérios editoriais. Thompson
(1992, p. 104) cita os jornalistas, os sociólogos e os antropólogos como estudiosos que
adotam a história oral e afirma: “todos eles podem estar escrevendo história; e, sem dúvida,
estão provendo à história”. O autor cita um tipo de obra jornalística, a biografia, que faz essa
apropriação metodológica: “a utilização da evidência oral continuou a ser, naturalmente, um
método tido por certo. A popularidade cada vez maior das memórias trouxe interessantes
ampliações de seu campo de ação” (THOMPSON, 1992, p. 59). A história das mulheres
também é lembrada pelo autor como assunto pouco explorado pela história documental e
caracterizada como tema a ser desvelado pela história oral:
Fizemos, também, a opção editorial de trabalhar com a história oral narrada por cada
mulher perfilada, sem depoimentos complementares de outras fontes que pudessem narrar e
descrever a protagonista de cada história (apenas no primeiro perfil, a filha de Zélia nos
auxiliou a entender a linha cronológica de alguns acontecimentos, pois a mãe tem lapsos
como sequelas do acidente vascular cerebral; um comentário que essa filha fez durante a
entrevista foi registrado na narrativa). Segundo Maurice Halbwachs (1990, p. 27), “para
confirmar ou recordar uma lembrança, as testemunhas, no sentido comum do termo, isto é,
indivíduos presentes sob uma forma material e sensível, não são necessárias”. Além disso,
para o autor, a memória individual não é inteiramente isolada:
a) Zélia: Cinco anos atrás, meu marido chegou em casa admirado, contando que havia
parado numa borracharia para consertar o pneu de sua moto e, para sua surpresa, quem
fez o serviço foi uma mulher, que trabalhava com duas filhas. Ele me contou o que
havia conversado com ela durante os minutos em que aguardou o conserto e pensamos
que era uma história interessante: borracheira, havia trabalhado a vida toda em
serviços tipicamente masculinos e criado as filhas sozinha. Cheguei a dizer a ele que,
quando eu fosse jornalista, a procuraria. Dias depois, passamos na borracharia e eu a
conheci, mas ela estava ocupada e conversamos pouco. Quando comecei este projeto,
Zélia foi a primeira lembrança que me veio. Voltei à borracharia, mas ela não estava
mais lá. Havia se mudado da casa e o ponto estava fechado. Falei com um rapaz que
entrava no comércio ao lado e ele me disse que um conhecido dele sabia onde Zélia
estava morando. Ele me passou o seu telefone e, na segunda vez em que liguei, ele
havia conseguido o endereço – não preciso, mas as coordenadas e as características do
local. Com a ajuda de meu marido, que conhecia o bairro, encontrei a casa de Zélia,
apresentei minha ideia e ela aceitou gravar as entrevistas.
9
Disponíveis em CD que acompanha este trabalho.
51
b) Bruna: Em 2013, ano em que ingressei no mestrado, foi realizada a primeira Marcha
das Vadias de Uberlândia. Não fui à manifestação, mas acompanhei as informações
pelas redes sociais e pela mídia. Refletindo sobre a trajetória do movimento feminista,
as bandeiras levantadas ao longo de cada época e o contexto atual envolvendo as
mulheres, formulei a hipótese de que a grande causa do feminismo contemporâneo é a
luta pelo direito ao corpo (não à violência, especialmente doméstica; não à
responsabilização da vítima em casos de estupro; garantia de vestir-se e comportar-se
conforme as próprias escolhas e não seguindo valores moralistas; aborto etc.). O perfil
de uma mulher que se autointitulasse “vadia” e militasse por essas causas convergia
com meu projeto, de modo que entrei em contato com uma das militantes que eu
conhecia, do curso de Jornalismo, apresentei brevemente a pauta e pedi que me
indicasse alguns contatos. Ela me passou as redes sociais de duas moças: a primeira
não me deu retorno; a segunda era Bruna, que disse sim à proposta de ter suas
memórias contadas no livro-reportagem.10
d) Carol: A colaboradora do meu projeto, Letícia França, que fez as fotografias do livro,
comentou durante uma de nossas apurações que conheceu uma sacerdotisa Wicca
10
A pesquisa sobre a Marcha das Vadias resultou em um artigo publicado em anais de evento e em um capítulo
de livro, conforme as referências:
ALMEIDA, Diélen dos Reis Borges; SPANNENBERG, Ana Cristina Menegotto. O discurso de internautas em
comentários sobre a Marcha das Vadias em Uberlândia. In: Pensacom Brasil 2014: XVIII Colóquio Internacional
da Escola Latino-Americana de Comunicação, I Fórum Brasileiro das Tendências da Pesquisa em Comunicação,
2014, São Paulo - SP. Anais... São Paulo - SP: Intercom, 2014. Disponível em <http://www2.metodista.br/
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%20em%20coment%C3%A1rios.pdf >. Acesso em 20 jan. 2015.
______. O discurso dos internautas em comentários sobre a Marcha das Vadias em Uberlândia. In: REINO,
Lucas Santiago Arraes; BUENO, Thaísa. (Org.). Comentários na internet. Imperatriz: Edufma, 2014, p. 93-
107. Disponível em <http://gmidia.ufma.br/?page_id=630>. Acesso em 20 jan. 2015.
52
A princípio, o projeto previa que seriam cinco perfis e tínhamos, inclusive, o quinto
contato: Norma, uma mulher evangélica, que não se casou nem teve filhos, negra, servidora
pública municipal e com grande engajamento político. Entretanto, devido às limitações do
tempo em que deveria ser concluído o trabalho de mestrado para submissão à banca
examinadora, não fizemos o perfil de Norma para inclusão no livro. Pretendemos, porém,
ainda fazer esse e outros perfis, como falaremos mais adiante nas considerações finais.
Definidas as fontes, procedemos à apuração. Foram três encontros com Zélia (um de
apresentação da proposta e dois com gravação de entrevista); quatro encontros com Bruna
(dois com gravação de entrevista, um de participação na reunião da Marcha das Vadias e um
durante um evento acadêmico); dois encontros com Beatriz (ambos com gravação de
entrevistas) e três encontros com Carol (dois com gravação de entrevista e um de participação
no Ritual de Lua Nova). Fizemos cada perfil de uma vez, seguindo a sequência: contato e
convite, elaboração do primeiro roteiro de entrevista, primeiro encontro com a fonte,
transcrição da primeira entrevista, análise das informações apuradas, elaboração do segundo
roteiro de entrevista, transcrição da segunda entrevista, análise das informações apuradas,
novos encontros (conforme a necessidade) e redação do perfil. Nessas fases, utilizamos
métodos e técnicas da história oral e do jornalismo literário, conforme apresentado
anteriormente.
Pensamos na necessidade de se fazer o registro fotográfico das entrevistas e/ou de
momentos como a segunda Marcha das Vadias (que estava marcada para agosto de 2014, mas
foi cancelada) e o Ritual de Lua Nova. Todavia, é difícil para o jornalista fazer a entrevista e,
ao mesmo tempo, fotografar o entrevistado, pois as duas atividades ficam prejudicadas. Por
53
para apuração e redação e, à medida que ganhamos maior experiência e familiaridade com o
tema, o trabalho jornalístico passou a ser feito com maior facilidade e em menos tempo.
Além do texto que compõe o livro-reportagem Memórias de Mulheres, que configura
o produto desenvolvido e apresentado ao programa de pós-graduação, havíamos projetado a
construção da obra esteticamente, com fotografias e diagramação – que, para além da estética,
também conferem significados ao livro. Uma vez que a contratação de todos os profissionais e
serviços demandaria um investimento alto e que cabe ao próprio estudante de pós-graduação o
custeio de seu trabalho, optamos por contratar apenas o serviço de diagramação – pelo qual
foram cobrados R$ 800,00 – e contar com a colaboração voluntária da estudante Letícia
França, do curso de Comunicação Social: habilitação em Jornalismo (Faced/UFU), para o
serviço de fotografias. Participamos, com Letícia e Elisa, da construção de ideias que
resultaram na parte visual da obra.
Quanto à impressão do livro, se fôssemos fazer uma impressão padrão desse tipo de
publicação, teríamos que encomendar a quantidade mínima de 100 cópias para que alguma
gráfica aceitasse o pedido. Consideramos essa possibilidade inviável porque custaria alguns
milhares de reais e, ainda, por supormos que a banca examinadora apresentará considerações
sobre a obra que podem implicar alterações no seu conteúdo. Assim, fizemos apenas cinco
cópias para a submissão à banca, em gráfica rápida e com encadernação em espiral, a fim de
baratear os custos de impressão, que totalizaram R$ 150,00.
Após a defesa do produto, nossa perspectiva é de publicar a obra, com grandes
quantidades de exemplares, por meio de algum edital de apoio cultural; financiamento
coletivo, como o Catarse (http://catarse.me/); ou premiações que ofereçam a publicação, como
o Prêmio Autêntica de Livro-Reportagem (http://grupoautentica.com.br/premio-autentica-de-
livro-reportagem) e a seleção para a Coleção Jornalismo Literário da Editora Zouk
(http://brasileiros.com.br/2014/12/colecao-de-jornalismo-literario-seleciona-escritores/).
55
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Companhia das Letras, 2005.
62
11
Nos termos de autorização, o título do trabalho aparece como Subversões: histórias de mulheres que
protagonizam a própria vida porque esse foi o primeiro nome que escolhemos e, inclusive, apresentamos à
banca de qualificação, como foi anteriormente explicado neste relatório.
67