O Cancioneiro Geral de Garcia de Resende

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O Cancioneiro Geral de Garcia de Resende (1470-1536): festa e teatralidade,

um espaço para a exaltação do “eu”


Garcia de Resende’s Cancioneiro Geral: feast and theatricality, a space for the
exaltation of the self
El Cancioneiro Geral de Garcia de Resende: Fiesta y teatralidad, un espacio
para la exaltación del “yo”
Geraldo Augusto FERNANDES1

Resumo: A poesia portuguesa dos séculos XV e XVI passou a ser denominada “poesia
palaciana” devido ao fato de que era no palácio que os nobres e cortesãos se reuniam
para deleitamento e trocas culturais – não só de Portugal, mas de seu vizinho, Castela.
Depois do advento da poesia trovadoresca, a poesia do Quatrocentos e do Quinhentos
portugueses vão retratar a cultura e a sociabilidade de um país em que as Descobertas
marítimas marcarão a riqueza e ostentação, fruto de uma economia em expansão. O
Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, reunião de 880 poemas de 1459 a 1516, é tido
como um documento histórico em versos, pois registra o início da grandeza de Portugal.

Abstract: The Portuguese poetry of the XVth and XVIth centuries is denominated
courtly poetry due to the fact that it was in the palace that nobles and courtesans got
together for rejoice and cultural changes – not only that of Portugal but also of its
neighbor, Castile. After the poetry composed by troubadours in the previous centuries,
the poetry of the Fourteenth and the Fifteenth will portrait the culture and sociability of
a country where the maritime Discoveries will point out the richness and ostentation,
because of an economy in expansion. Garcia de Resende’s Cancioneiro Geral, a
compilation of 880 poems from 1459 to 1516, is considered a historical document in
verses which registers the beginning of the greatness of Portugal.

Keywords: Cancioneiro Geral – Garcia de Resende – Poesia palaciana – Sociabilidade –


Exaltação do indivíduo – Sala e palácio.

Palavras-chave: Garcia de Resende’s songbook – Courtly poetry – Sociability –


Exaltation of the self – Room and palace.

1
Professor de Literatura Portuguesa da Universidade Federal do Ceará. E-mail:
[email protected].
COSTA, Ricardo da, SALVADOR GONZÁLEZ, José María (coords.). Mirabilia 21 (2015/2)
Medieval and early modern Iberian Peninsula Cultural History (XIII-XVII centuries)
Cultura en la Península Ibérica Medieval y Moderna (siglos XIII-XVII)
Cultura na Península Ibérica Medieval e Moderna (séculos XIII-XVII)
Jun-Dez 2015/ISSN 1676-5818

ENVIADO: 20.08.2015
ACEPTADO: 11.09.2015

***

Da mesma maneira que vários poetas dos


velhos cancioneiros tinham conseguido
instilar uma certa dose de verdadeira emoção
no árido convencionalismo da cantiga de
amor, também os do Cancioneiro Geral se
erguem de vez em quando a autêntica poesia.
Stephen Reckert

A ânsia de ser diferente e superior aos


restantes cortesãos no seu vestir parece que
levava à criação de novidades e à frequente
quebra dos padrões estabelecidos, daí a
sinonímia que se vem estabelecer nos textos
da colectânea entre trajo e envençam.
Maria Isabel Morán Cabanas

Um mar encapelado, feito de linho pintado; caravelas adentram a grande sala, simulando
os caminhos da navegação em direção às novas terras conquistadas; um verdadeiro
arsenal de máquinas ocultas faz tudo parecer real; animais são servidos inteiros durante
os banquetes faustosos e exóticos; trombetas, apitos e tiros anunciam e animam as
atrações: começam os momos2 e os entremezes3 – encenações típicas da última fase do
medievo europeu, que prenunciam já o teatro moderno.4 A dança e o canto são

2
Segundo Fidelino de Figueiredo: “Os momos eram simples efeitos cenográficos com artifícios
mágicos, mas como elementos literários só continham as letras ou cimeiras ou breves, isto é, pequenas
explicações que os atores e certos lugares do cenário ostentavam: eram dizeres da galanteria ou
aclarações indispensáveis à boa inteligência da representação” (Figueiredo, 1966, 107).
3
Também conforme Fidelino de Figueiredo: o “entremez teria um sentido mais compreensivo,
designaria todo o conjunto de representações cênicas de determinado momento e determinada
solenidade, equivaleria ao nosso moderno espetáculo; o momo significaria o episódio particular e a ação
cômica”. (Idem, ibidem, 108).
4
Em Festa, teatralidade e escrita. Esboços teatrais no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende. (2003), Maria
Isabel Morán Cabanas desenvolve um extenso estudo sobre o nascimento do teatro português, cujo
embrião se encontra na coleção de poemas de Garcia de Resende. Quanto à teatralidade na poética
da Idade Média, escreve Paul Zumthor: “A ritualidade – a ‘teatralidade’ – poética termina,
certamente, em longa duração, por atenuar-se, mas não em suas manifestações concretas, porque,
até o século XV e, principalmente, até o XVII, o corpo ficou aí totalmente comprometido. Foi seu
objeto que se deslocou pouco a pouco (na medida da difusão da escritura), ao ponto que, passado

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enriquecidos pelo acréscimo de novos instrumentos e modismos, frutos do intercâmbio


mercantilista; as roupas são ricas, exuberantes e suntuosas; jogos, torneios, justas5, uma
infinidade de entretenimentos assistidos e comparticipados pela família real, pelos
cortesãos e pelo povo. Tudo é fausto, brilho e ostentação, permeado pela etiqueta e
galanteria, nesses grandes espaços propícios a apresentações, que são as salas, adornadas
com pompa e exuberância.6

O que antes era feito a céu aberto, quando o espaço público conclamava ao gregarismo,
ao viver em coletividade, agora se desenvolve nos espaços fechados – amplos, mas
restritos à perscrutação do olhar individual. A vida social agora, no dealbar da Idade
Média se desenrola na sala (...) lugar reservado à vida coletiva; separada da rua, é o lugar
usual das reuniões, o lugar por excelência da sociabilidade (...) Ela é, em particular, o
espaço das grandes travessias espetaculares (...) É na sala que se reúnem os vassalos para
os assuntos importantes (...) a sala é também um lugar de divertimento, por ocasião das

1500, em todo o Ocidente, a poesia aparece como um empreendimento, a partir de então laicizado e
metaforizado, de teatralização do cotidiano” (Zumthor, 1993, 260). Em outra obra, afirma o mesmo
estudioso: “Le caractère général le plus pertinent peut-être de la poésie médievale est son aspect
dramatique. Tout au long du moyen âge les textes semblent avoir été, sauf exceptions, destinés à
fonctionner dans les conditions theâtrales: à titre de communication entre un chanteur ou récitant
ou lecteur, et un auditoire. Le texte a, littéralement, un ‘rôle à jouer’ sur une scène” (Zumthor, 1972,
37).
5
“Eram as justas e os torneios passatempos favoritos da nobreza, que por eles pretendia manifestar
a valentia e o denodo, a honra e brio dos cavaleiros, através de perfeita e destra agilidade no manejo
das armas, aliados a um aparato externo, que incidia fundamentalmente no porte e no vestuário.
Eram (...) as justas e os torneios um espetáculo deslumbrante para os olhos, onde cada um primava
por ser primus inter pares, tanto no espírito combativo como na galanteria e na elegância do traje. Com
origem nos antiquissimos jogos de gladiadores romanos, os torneios e as justas difundiram-se
largamente por toda a parte, com período de grande esplendor na Idade Média, em muitos casos
organizados para comprazer a príncipes e damas” (DIAS, 1998, 227).
6
Baseei-me nos seguintes estudos sobre esse a descrição do fausto e da suntuosidade dos reinados
portugueses do final do século XV e início do XVI: CIDADE, Hernâni. Os alvores do
Renascimento e do Humanisno. In: O conceito de poesia como expressão da cultura. Sua evolução através das
literaturas portuguesa e brasileira. 2 ed. Coimbra: Arménio Amado Ed., 1957. p. 55; DIAS, 1998b, 23-24;
ROCHA, Andrée Crabbé. Garcia de Resende e o Cancioneiro Geral. 2 ed. Lisboa: Instituto de Cultura e
Língua Portuguesa, 1987. Volume 31, p. 57; Saraiva e Lopes, s.d. p. 157; e SIMÕES, João Gaspar.
Lirismo Medieval. In: História da Poesia Portuguesa (Das origens aos nossos dias, acompanhada de uma
antologia). Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade, 1955. Volume I, p. 110. Também na revista da
Fundação Calouste Gulbenkian, História e Antologia da Literatura Portuguesa. Século XV, Rita Costa
Gomes dedica um longo artigo, “Os tempos da corte”, sobre o cotidiano da monarquia palaciana.
Lisboa, n. 5, março de 1998, p. 29-35.

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reuniões ligadas a uma data ritual em que se testa a coesão do grupo (Régnier-Bohler,
1990, 323-324).

Entretanto, mais do que simples espaço para apresentações coletivas, a sala é o espaço
propício à revelação do “eu”, no sentido de exacerbação de uma personalidade que
precisa aparecer ante uma sociedade, em que a aparência se revela mais importante.

Nesse espaço propício ao “eu” exterior, adentram cavaleiros que lutam por sua senhora,
durante as justas e os torneios; nele, esgrimam-se os poetas palacianos, que colocam em
palavras seu embate por aquela a quem dizem servir; poetas que, no entanto, usam essas
mesmas palavras, para atacar desde os mais chinfrins defeitos dos cortesãos até as mais
íntimas taras desse público ávido pela bisbilhotice. Mas também é aí que esse “eu”
precisa atingir a perfeição, que, segundo Johan Huzinga, “implica que esta seja mostrada
aos outros; para merecer o reconhecimento, o mérito tem que ser manifesto.

A competição serve para cada um dar provas de sua superioridade” (Huizinga, 1993, 72).
Se esta manifestação vem da era primeva do homem, já o nobre – aquele homem
sociabilizado – demonstra sua ‘virtude’ por meio de proezas de força, destreza, coragem,
engenho, sabedoria, riqueza ou generosidade. Na falta destas, pode ainda distinguir-se
numa competição de palavras, isto é, ou ele mesmo louva as virtudes nas quais deseja
superar seus rivais, ou manda que elas lhe sejam louvadas por um poeta ou um arauto.
Esta exaltação da própria virtude, como forma de competição, transforma-se muito
naturalmente em depreciação do adversário, o que, por sua vez, passa a ser um outro
tipo de competição (idem, ibidem, 74).

À época do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, fazendo uso da descrição de


Huizinga, percebe-se a supremacia da competição poética, não mais aquela de força e
destreza nas batalhas de campo, se bem que vários dos poetas do Paço participassem
ativamente das lides bélicas engendradas por um Portugal das conquistas e das
descobertas. Nas mais das vezes, é o próprio poeta que se louva, ao contrário do que
acontecia à época áurea do Trovadorismo. Mas muitas das vezes, trazem os poetas
palacianos para encenação uma espécie de competição poética em que a depreciação do
adversário se sobressai. Há de se ressaltar este fato: tanto na época anterior à sociedade
dos poetas quatrocentistas, quanto ao tempo destes, a depreciação sempre se deu pelos
embates entre dois ou mais poetas, que, com palavras escarninhas ou maldizentes,
montavam as “tenções” – no Trovadorismo – ou as ajudas, perguntas e respostas – no fim

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do medievo peninsular – descendentes, enfim, das “tensó”, dos “partimen”, dos “joc
parti” provençais.7

Quanto ao espaço físico das representações, a sala será o palco para a exaltação do “eu”
– como se disse atrás – e é projetada para fazer parte de um tipo arquitetônico
característico da Idade Média: o palácio. Espaço concentracional da nobreza, é nele que
se representam os grandes papéis sociais, é nesse espaço privado que circulam os
cortesãos, os grandes senhores, príncipes e reis. Mas também, como miniatura de uma
cidade, é nos palácios que se movimentam os cavaleiros, os servidores – mordomos,
tesoureiros, coletores, capelães, criados, servos, enfim, toda a máquina administrativo-
burocrática e militar do reino, transformando-se o habitat de convívio privado num
espaço público.

Como um dos representantes máximos desses servidores, circula com naturalidade e


imponência Fernão da Silveira, o coudel-mor8, que será, aqui neste estudo, uma
referência ao tipo de poesia desenvolvida à época do Cancioneiro de Resende. Para bem
atuar nesse espaço de teatralidade, é necessário referir-se, nesta altura, a uma composição
de Fernão da Silveira. O poema é emblemático da exaltação do “eu”, e um breve
comentário sobre isso cabe aqui, já que se está tratando da questão do “fingimento” –
aparentar em detrimento do ser com fins de se conseguir o apreço dos convivas do Paço
e, sem dúvida, uma posição mais alta na escala cortesã. Silveira compõe, de forma
epistolar, um verdadeiro manual de como se vestir e se comportar nos salões áulicos,
visando sempre à aparência – sabendo vestir-se e tratar cortesãos e damas, o sobrinho
do poeta, a quem é dirigida a composição, alcançará o sucesso que qualquer nobre
deseja.

7
“Nas cortes de amor, o habitual era a imitação mais aproximada possível dos julgamentos
verdadeiros, com demonstrações por analogia, o recurso a precedentes, etc. Muitos dos gêneros que
se encontram na poesia dos trovadores se relacionam estreitamente com as queixas de amor, como
por exemplo o castimen (reprimenda), a tenzone (disputa), o partimen (canção antifonal), o joc partit (jogo
de perguntas e respostas). O fundamento último de todos estes gêneros não é o julgamento
propriamente dito, nem um impulso poético espontâneo, nem sequer a pura e simples diversão
social, mas sim a luta imemorial pela honra em questões de amor” (Huizinga, 1993, 140). Se aqui
Huizinga se refere diretamente ao amor, o trecho serve bem para expandir o entendimento de que o
“eu” medieval se mostra através desses gêneros, num espaço físico propício à teatralidade, como se
procurou demonstrar.
8
Oficial da casa real que cuidava “da criação dos cavalos castiços e de marca. Também provia e
determinava as dúvidas sobre os acontecimentos e lançamentos dos cavalos aos que tinham contia
ou fazenda a que fossem obrigados a manter cavalo, para com ele servirem na guerra” (Dias, 2003,
208).

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O “manual” é composto por vinte e oito trovas em redondilho maior e, fato inovador, a
última estrofe vem com os seguintes dizeres: “Dezia o sobreescrito destas, porque iam
cerradas em forma de carta”.9 Garcia de Resende faz o leitor certificar-se de que se trata
de uma carta e Silveira desconstrói a forma dela dirigindo-se ao destinatário no final, na
verdade, formando uma imagem da carta em sentido reverso.10 Quanto à montagem do
poema, antecipe-se já a propensão de Silveira à inovação. Apenas como exemplo,
tomem-se as três primeiras estrofes do longo poema espistolar, para se considerar a
verve poética do Coudel-mor:

Pois vos tacham de cortês


sobrinho, gentil cunhado,
sobr’alto, alvo, delgado,
nam há mais em ũu frances.
E qu’a barba tenhaes pouca,
pois bem vestir vos alegra,
regê-vos por esta regra
que fundei vindo d’Arouca.

A qual, pois em si é boa


e geeralmente vem bem,
que fará ao que tem
bom corpo, boa pessoa?
E pois tendes estas ambas,
tendes quanto havês mester,
se o vaao d’amor vos der
per lugar que cubra as chambas.

Mas eu perdoado seja


se falar u me nam chamam,
pois que sam dos que vos amam
que mais vosso bem deseja.
Cunhado, nam duvideis
que isto trago por lei,
e por isso me fundei
d’escrever as que lereis.

9
Cf. Cancioneiro Geral, Volume I, poema 31, pp. 165-172.
10
Maria Isabel Morán Cabanas publicou um estudo minucioso dessas trovas em Iberia cantat: estudios
sobre poesía hispánica medieval. Santiago de Compostela, Universidad, Servicio de Publicacións e
Intercambio Científico, 2002, p. 459-472. O artigo intitula-se “Um curioso manual de etiqueta no
Cancioneiro Geral: as trovas o coudel-mor Fernão da Silveira”. A poesia a que se faz referência aqui e
no artigo é “Trovas de Fernam da Silveira, Coudel-moor, a seu sobrinho Garcia de Melo de Serpa,
dando-lhe regra pera se saber vestir e tratar o Paço.” (CG, I, 31).

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É para o palácio, então, que se voltam todas as atividades da realeza; é onde ela,
protegida pelo rei e por ele controlada, irá travar a batalha ainda silenciosa contra a
ascensão inexorável da burguesia. Mas é aí, nesse ambiente, que essa burguesia também
vai encontrar, na convivência com os costumes áulicos, os subsídios para sua
dominação; e essa virá aos poucos com o crescimento mercantilista engendrado pelas
grandes descobertas.

É em meio a essa sociabilidade cortesã, em que a etiqueta é minuciosa e polida, em que


os atos são mais artificiais do que naturais, pois o código da galanteria exige que a
espontaneidade seja reprimida em favor da mesura, é, afinal, nesse centro que nasce a
poesia palaciana. Denominação por si só explicativa, a poesia desenvolvida no
Quatrocentos português irá retratar, dessa forma e essencialmente, o modo de vida
aristocrático, requintado, protocolar e formalista, longe da realidade caótica que
atravessará o final da Idade Média, agora, abrindo as portas para uma renovação estética
e social que resultará no advento do Classicismo. Nas palavras de Jole Ruggieri, a
“cultura” palaciana nasce da combinação da nobreza com a realeza, preparando uma
nova sociedade:

La nobiltà che gradatamente era stata immobilizzata, si avvicinò al re facendosi palaciana,


tutta si rivolse alle galanterie cortesi, ed ebbe la sua letteratura, che naturalmente fu
letteratura di corte, in cui si continuava il libero canto cavalleresco dei secoli antichi, in
qualche misura però modificato dalla tradizione castigliana e dallo spirito nuovo della prima
Rinascenza (Ruggieri, 1931, 7).

É ainda nesse ambiente que Garcia de Resende, funcionário palaciano, compila quase
mil poemas na coletânea denominada Cancioneiro Geral, dedicada ao príncipe D. João,
futuro D. João III. Publicada em 1516, reúne poemas desde 1459. Provavelmente
baseou-se no Cancionero General, de Hernando del Castillo, na Espanha. Apresenta grande
parte dos poemas compostos por homens e mulheres e que eram criados no ambiente
ocioso das cortes do século XV. Os temas desenvolvidos eram os da vida simples e do
dia a dia da corte, mas também os de cunho religioso, amoroso, elegíaco, alguns com
apelo à epopeia. Já nele desenvolve-se uma poesia didático-moralizante que marca o
desconcerto do mundo próprio de momentos de transição. Nele, igualmente se
encontram ricas peças satíricas – de extenso número – burlescas e experimentais.

Da coleção, percebe-se claramente, flui a alma portuguesa. Quanto a ela, comenta Maria
Leonor Buescu: “Relevemos (...) alguns aspectos que nos parecem caracterizar o
sentimento do homem português da época, dividido entre o prazer e o desprazer, a
euforia e a disforia, de certo modo esmagado e perplexo perante o que Camões

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chamaria o ‘desconcerto do mundo’ e que fere o sentido ético de Sá de Miranda, entre


outros” (Buescu, 1990, 179). A esse comentário, acresça-se a questão da língua:

...constitui [o Cancioneiro Geral] um alargamento das possibilidades expressivas da língua,


utilizando sábia e subtilmente uma retórica já elaborada, instaurando os modelos de uma
versificação que vai dominar (se não predominar) o lirismo português do século XVI
(nomeadamente nas ‘Rimas’ de Luís de Camões) e do século XVII (pense-se em Rodrigues
Lobo e numa parte significativa dos cancioneiros barrocos) (idem, ibidem, 183-184).

Para além de registro histórico e ampliação de recursos linguísticos, a poesia é, para


Garcia de Resende, primordialmente social: é ela que faz reunir os poetas – homens e
mulheres – que, juntos, criam a sociabilidade necessária ao ambiente palaciano; é ela que
ameniza e traz harmonia e distração ao ambiente competitivo dos palácios. Fernão da
Silveira, por exemplo, virá a ser uma das figuras preeminentes desse tipo de poesia, pois,
pela reunião de poemas que se empreendeu de sua vasta produção, poder-se-á notar sua
desenvoltura no culto aos vários gêneros e subgêneros poéticos, com destaque para
aqueles poemas conclamatórios à participação dos convivas dos saraus cortesãos.

Nessa época, tendo a poesia se desligado do canto e da dança, próprios da criação


poética do Trovadorismo, foram os poetas palacianos instigados a escrever poemas cujo
ritmo se revelasse na própria linguagem. Isso possibilita novas composições. Toma a
poesia um caráter mais amplo e as peças têm maior elaboração poética, apesar da
predominância de um sentimentalismo mais pessoal – quase sempre influenciado por
Petrarca e Dante. Um dos poemas antológicos do Cancioneiro é a cantiga composta por J.
Rodriguez de Castel Branco, intitulada “Cantiga sua, partindo-se” – um exemplo de
poesia amorosa do dealbar da Idade Média, de cunho petrarquista, como se pode
apreciar na sua transcrição que segue:

Senhora, partem tam tristes


meus olhos por vós, meu bem,
que nunca tam tristes vistes
outros nenhũs por ninguem.

Tam tristes, tam saudosos,


tam doentes da partida,
tam cansados, tam chorosos,
da morte mais desejosos
cem mil vezes que da vida.
Partem tam tristes os tristes,
tam fora d'esperar bem
que nunca tam tristes vistes

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outros nenhũs por ninguem.

Além do mais, para o compilador do Cancioneiro, a poesia é um ato lúdico – daí nomear
de “cousas de folgar” aqueles poemas de cunho satírico, irônico e brincalhão. Na poesia
palaciana, poderá parecer que o menos interessante seja o tema: a diversão do torneio é
o que importa. Nas rimas, a intenção é mostrar ora virtuosismo, ora habilidade, ora alto
engenho, numa busca por brincadeiras com as palavras.

Essa questão do lúdico, diga-se de passagem, é assunto do capítulo “Lúcido Lúdico”, do


livro O próprio poético, de E. M. de Melo e Castro, quando o autor relativiza a questão da
modernidade desse ato: quando se afirma que “‘com coisas sérias não se brinca’ está-se a
exprimir o receio desse mesmo brincar, o receio de que pelo brincar se altere a ordem
estabelecida e a segurança que essa ordem representa. Entendida nesse sentido, a
atividade lúdica é uma força de vanguarda” (Melo e Castro, 1973, 111).

Mais à frente, afirma que movimentos como o Dada, o Neodadaísmo, o Maio de 1968
etc., tiveram por base a libertação lúdica, vista como sinônimo de “alegria”, e foram
fundamentais para a criatividade contestatória ou “desmi(s)tificadora”. Se é exagero ver
uma poesia de vanguarda em Silveira e seus contemporâneos – e também seria
desproposital enxergar no ato lúdico elementos de vanguardismo –, não seria irrelevante
ver na poesia palaciana experimentalista e lúdica ecos da modernidade.

Ainda a propósito da questão do lúdico como oposição às coisas sérias, Johan Huizinga
aponta que o oposto do jogo é a seriedade. Ao descrever o processo lúdico como um
jogo, o estudioso nota que “a antítese do jogo é a seriedade, e também num sentido muito
especial, o de trabalho, ao passo que à seriedade podem também opor-se a piada e a
brincadeira. Todavia, a mais importante é a parelha complementar de opostos jogo-
seriedade (Huizinga, 1993, 50). Não só na poesia de “folgar”, mas ainda naquela de cariz
mais espiritual ou moral, pode-se perceber que Fernão da Silveira e seus
contemporâneos optaram, majoritariamente, pelo ludismo na montagem de seus
poemas, confirmando o que alegam os estudiosos aqui mencionados.

Um exemplo de ludicidade nos poemas cancioneiris pode ser o acróstico de Jorge de


Resende “Outra esparça em que estaa o nome d’ũa senhora nas primeiras letras de cada
regra”. Observa-se a engenhosidade do poeta ao usar o nome da dama a que servia em
redondilhos maiores, à moda da coita amorosa dos antigos trovadores. Nele, o poeta
embute o nome de Dona Ilária, trocando o “i” inicial pelo “j”, como se usava então, em
que se mesclava o alfabeto antigo ao moderno. Leia-se a esparsa:

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De vós, senhora, e de mim


Ousarei de m’aqueixar
Nos males que nam têm fim,
Antes vam ò galarim
Jurando de m’acabar
Lastimado com rezam.
Amores bem me fizeram
Resestir minha paixam,
Inteira satisfaçam
Aa mester, pois me prenderam (CG, IV, 672).11

Já o tema do transcendentalismo não é de relevância na grande maioria das obras


compiladas no Cancioneiro, pois a sociedade austera escondida nos salões das cortes
medievais decadentes não era a preocupação dos poetas palacianos: querem mostrar o
lado prazeroso da palavra e do som, daí ser a poesia um jogo para eles. Quanto a isso,
comenta João Carlos Teixeira Gomes:

Já mostramos como é legítima a noção de fazer poético como um jogo, só não podendo
entendê-la os que se aferram à ideia da poesia como registro da contemplação
transcendente das coisas (...) a poesia é a linguagem que organiza o mundo (...) essa
organização é uma organização de linguagem (...) passa primeiro pela palavra (...) Não há
temas ‘inferiores’ ou ‘superiores’, não cabendo assim a ideia de que a produção reunida no
Cancioneiro Geral perde exatamente pela mesquinhez dos assuntos poéticos (Gomes, 1985,
309).

Quando se analisa os poemas de Silveira e dos de seus companheiros, pode-se notar a


preocupação deles com o “fazer poético” a que alude Teixeira Gomes. Alguns desses
poetas – ao relevarem a crise moral por que passava Portugal, perplexo ante as
descobertas – cantarão suas decepções, através do “registro da contemplação
transcendente das coisas”; não obstante, não era a preocupação da maioria. Essa, ao
poetar, tratará dos assuntos “inferiores” e “superiores” no mesmo nível, através da
palavra.

Frequentemente, a crítica especializada no Cancioneiro de Resende comenta, também,


sobre o distanciamento dos poetas palacianos da realidade a que assistiam, já que há falta
– ou exiguidade – de poemas que exaltem as grandes realizações portuguesas desde a
conquista de Ceuta, até a realização completa dessas na Índia, África e América. Há, sem
dúvida, poetas mais conscienciosos dos fatos reais; contudo, ao colocar em versos a saga
das Descobertas, fazem-no criticamente, como comentado no parágrafo antecedente,

11
As letras em destaque são grifos meus.

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COSTA, Ricardo da, SALVADOR GONZÁLEZ, José María (coords.). Mirabilia 21 (2015/2)
Medieval and early modern Iberian Peninsula Cultural History (XIII-XVII centuries)
Cultura en la Península Ibérica Medieval y Moderna (siglos XIII-XVII)
Cultura na Península Ibérica Medieval e Moderna (séculos XIII-XVII)
Jun-Dez 2015/ISSN 1676-5818

antevendo, de certa forma, a decadência do império português. No artigo “Sentimento


heroico e poesia elegíaca no Cancioneiro Geral”, Aida Fernanda Dias, quanto a isso,
comenta:

Os Portugueses, segurando bem firmes na mão o estandarte real e as espadas, haviam feito
surgir a matéria indispensável ao aparecimento da epopeia. (...) Desde a segunda década do
século XVI até 1572, surgem tentativas de fixar em metro as glórias pátrias, e o apelo de
alguns espíritos mais lúcidos, que procuravam despertar a inspiração dos poetas,
oferecendo-lhes, digamos assim, a matéria para as suas obras, acompanha tais tentativas ou
é-lhes em alguns casos anterior (Dias, 1982, 269, passim).

A epopeia lusitana iria surgir apenas com Camões; mas, no Cancioneiro, Dias antevê
alguns esboços rudimentares que chama de poesias heroicas. São elas um texto de Luís
Anriques dedicado à conquista de Azamor (CG, II, 390) e outro de João Rodrigues de Sá
de Menezes dedicado à mesma conquista (CG, II, 493). Fernão da Silveira, registre-se,
apesar do papel central nos relacionamentos políticos, tendo mesmo participado de
várias contendas engendradas pela monarquia avisina, não produziu nenhum poema que
exaltasse os grandes feitos ultramarinos dos portugueses.

Há, por outro lado, entre esses poetas do fim do medievo português, alguns que
expressam suas preocupações quanto à decadência dos costumes trazida pelas
conquistas. Duarte da Gama, por exemplo, critica a mania de seus conterrâneos em tudo
imitar quanto à vestimenta; Diogo Velho comparava Lisboa a uma mata onde tudo se
podia caçar; Sá de Miranda fazia apologia à vida do campo, pois execrava a metrópole
corrupta, assim como o faziam Álvaro de Brito Pestana e, sem dúvida, Gil Vicente em
seus autos moralizantes12. Fernão da Silveira, pelo contrário, nas composições em que
registra fatos históricos e de costumes, deteve-se a dar um panorama da sociedade,
enfocando esses poemas nos nobres seus pares.

Mais um pequeno comentário, nada insignificante, se se pensar na terminologia


“cancioneiro”. Nenhum estudioso encontrou a música que pudesse ter sido produzida
pelos poetas cortesãos, ainda que, entre eles, se encontrassem músicos como o próprio
organizador, Garcia de Resende, e D. João de Meneses (Dias, 1978a, 18). Entretanto, há
que se reforçar que, dissociadas da música de acompanhamento, os próprios textos
poéticos vêm eivados de musicalidade.13

12
Vejam-se exemplos e comentários sobre esses fatos em Carvalho, 1995, 76 passim.
13
Massaud Moisés anota sobre a questão música versus poesia: “é fácil compreender que a libertação
desejada acabou provocando uma verdadeira crise poética: que fazer com as palavras, subitamente
postas em liberdade, independentes da música? Alguns procuraram ou encontraram o ritmo que lhes

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Cultura en la Península Ibérica Medieval y Moderna (siglos XIII-XVII)
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O Cancioneiro tem sido criticado como um amontoado de poemas de autores


interessados apenas na promoção social, cuja criação literária deixa a desejar, já que
marcada pela repetição de temas e formas em miniatura14 levados à exaustão. Vistos no
seu conjunto, talvez os poemas reunidos de Resende poderão exaurir até o mais
resistente e audacioso leitor moderno – ao contrário do que ocorria à época de seu
lançamento, quando esse tipo de poemas era muito reverenciado. No entanto, se eles
forem apreciados com parcimônia e analisados pela sua literariedade, poderão ser
extraídas do Cancioneiro Geral criações que privilegiam o inusitado e a originalidade. E o
prazer da leitura e do conhecimento será, então, outro.

***

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p. 268-299, 1982.

era inerente, quer dizer, o ritmo especificamente poético, formado pela sugestão de ‘atmosferas’
líricas – e fizeram obra perdurável. Outros, constrangidos dentro da nova moda, faltos de talento, ou
equivocados com a revolução poética em processamento, entendiam que bastava juntar palavras
formando versos para criar poesia – e falharam” (Moisés, 1981, 47).
14
Quanto à miniaturização própria do fim do medievo, Andrée Crabbé Rocha, relatando o que
escreveu Julia Kristeva sobre o século XV, faz uma interessante analogia entre os palácios medievais
e as poesias do Cancioneiro. Comenta que as obras dessa coletânea são consideradas “miniaturas
poéticas”, dada a exaustão de formas e de conteúdos. Relata que para Julia Kristeva “’os grandes
conjuntos arquitecturais e literários já não são possíveis; a miniatura substitui a catedral (...). O século
XV será o século dos miniaturistas’. Aplica-se o conceito ao nosso Cancioneiro (...) estamos perante
uma vastísima colecção de miniaturas poéticas, o que acentua ainda as suas mútuas parecenças”.
(Rocha, 1987, 24-25).

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