Lugar de Mulher - SilvanaRubino

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LUGAR DE MULHER

ARQUITETURA E DESIGN MODERNOS, GÊNERO E DOMESTICIDADE

SILVANA RUBINO

TESE APRESENTADA COMO PARTE DA DOCUMENTAÇÃO REQUERIDA NO


CONCURSO PARA OBTENÇÃO DO TÍTULO DE LIVRE DOCENTE NA ÁREA DE
PATRIMÔNIO HISTÓRICO/ARQUITETURA E URBANISMO, NA DISCIPLINA HH805 –
HISTÓRIA DA ARQUITETURA E URBANISMO MODERNO, DO DEPARTAMENTO DE
HISTÓRIA, DA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS, DA
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS.
EM MEMÓRIA DE:
MARIA ANTONIETA, ZILLAH E MARIA ZÉLIA.
SÓ PORQUE NADA DEVE TER SIDO FÁCIL.

PARA DIANA, LAURA E HELENA: O FUTURO.

  2  
RESUMO/ABSTRACT
ÍNDICE

INTRODUÇÃO.................................................................................................................................
.........3

Os usos da imagem na pesquisa.................................................................................................8

Estrutura da
tese.............................................................................................................................16

CAPÍTULO I

Os lugares da mulher na história da arquitetura moderna...........................................17

Tudo começou na
Bauhaus..........................................................................................................21

O debate blbliográfico: uma “virada” feminista?................................................................30

CAPÍTULO II

Charlotte Perriand e a cilada dos gêneros: metal, madeira, arquitetura e artes


decorativas....................................................................................................................................
.......37

Formação em tempos de transição...........................................................................................39

Em busca da
profissionalização..................................................................................................48

Desumana e
coquette.......................................................................................................................56

O ateliê da rue de
Sèvres................................................................................................................61

1929: de artistas decorativos a artistas modernos............................................................72

O Salon des arts


ménagèrs............................................................................................................83

As amarras dos
gêneros.................................................................................................................86

  3  
CAPÍTULO III

Modernidade: Modos de usar, ou a casa moderna e a vida cotidiana........................88

As artes do
morar..............................................................................................................................90

Quase um século de “livros de conselho”...............................................................................94

Charlotte Perriand: o Habitat na “época das realidades”..............................................102

A arte de
morar...............................................................................................................................108

Lina Bo Bardi em são Paulo: um casal moderno...............................................................112

Lina
conselheira..............................................................................................................................123

Frankfurt no Morumbi: a cozinha...........................................................................................127

CAPÍTULO IV

Carmen Portinho, a engenheira feminista...........................................................................133

Uma cidade para a vida moderna............................................................................................138

Pedregulho e o
DHP.......................................................................................................................147

As casas do
casal.............................................................................................................................155

CAPÍTULO V

Fordismo doméstico
...................................................................................................................163

O problema dos
empregados....................................................................................................165

A cozinha-
laboratório...................................................................................................................170

A cozinha de
Frankfurt................................................................................................................175

  4  
Vida doméstica em
exposição...................................................................................................177

Paulette
Bernege............................................................................................................................183

A máquina e o “gosto
moderno”..............................................................................................191

A cozinha americana, ou a “’cozinha gorda”.......................................................................193

PALAVRAS
FINAIS.................................................................................................................................201

AGRADECIMENTOS........................................................................................................................
......205

  5  
INTRODUÇÃO
CORPOS E CADEIRAS, IMAGENS GENERIFICADAS

Começo esta tese por com duas imagens, pois foram elas que deram origem a
esta pesquisa (Fig. 1 e 2). A inquietação, ou a perplexidade ocasionada pela
semelhança de postura corporal, e da relação entre corpo e objeto – no caso, duas
cadeiras – em duas fotografias provocou uma reflexão que deu início a uma novo
projeto e a esta tese. Posadas, estudadas e controladas, as imagens mostram duas
mulheres sentadas em cadeiras por elas desenhadas. Nas respectivas fotografias, estas
mulheres vinculadas ao modernismo arquitetônico usam seus corpos como medida
ergonométrica para suas obras. Embora ocultem os rostos, como se quisessem se
tornar anônimas, sabemos de quem se trata e em diversas ocasiões as fotografias
foram utilizadas como assinaturas, como imagem-símbolo que remetia a autoria.
Estas semelhanças aparentes começam a se dissipar se notamos a indumentária das
mulheres retratadas, certamente um primeiro sinal da distância que separa 1929, com
a jovem Charlotte Perriand (1903-1999) de vestido e sapatos femininos posando para
mostrar sua cadeira em uma exposição, do ano de 1951 com a arquiteta Lina Bo Bardi
(1914-1992) aos 37 anos, casada com Pietro Maria Bardi e já em vias de
reconhecimento, de calça comprida e sapatos fechados, mostrando em diversas poses
a versatilidade de sua cadeira (fig 3 e 4). De qualquer modo, vemos nas imagens uma
relação corporal que remete a repouso e feminilidade, além de um lembrete de autoria
que assina as fotos e coloca duas cadeiras como obras únicas: pontos de similitude
que nos convidam a ensaiar uma aproximação que trazendo momentos das trajetórias
das duas artistas, aliadas à cultura material e visual, nos permite especular a respeito
de relações entre gênero e produção cultural.

Não são fotografias “espontâneas”, tiradas sem a conivência do retratado. Ao


contrário, são fotografias intencionais, posadas, imagens negociadas, como bem
definiu Sergio Miceli para retratos feitos por Candido Portinari e outros pintores

  6  
brasileiros do século XX1. Imagens que exigem serem lidas no contexto de uma
cultura visual que na primeira foto estava em tensão e na segunda, consagrada. A
busca em se entender o que levou a estas foros, para além de suas semelhanças,
conduziu à proposta de analisar estes dois casos de trajetórias bem-sucedidas, com
carreira, obra, nome e visibilidade no sentido de argumentar que, mais do que as
mulheres que ficaram à margem, aquelas que – como Lina e Charlotte –
freqüentaram o centro de seus respectivos campos podem dizer algo de novo a
respeito da silenciosa divisão de trabalho por gênero no interior da prática
arquitetônica do século XX, assim como revelar um modernismo no feminino. Afinal,
quando nos perguntamos sobre a participação feminina nos grupos de arquitetos
modernos, seus nomes se impõem ao lado de outros como Eileen Gray (1878-1976),
Ray Eames (1912-1988) e Alison Smithson (1928-1993), dente outras, como se suas
meras presenças e o sucesso que granjearam não pudessem indicar e indiciar formas
sutis de sujeição e auto-sujeição, cujas tensões aparecem inclusive em suas obras e no
modo como elas foram exibidas – por isso a centralidade das fotos.

A história da arquitetura é comumente surda a indagações de gênero. Ainda


assim, é possível se perguntar se há algo a mais a ser dito a respeito do conhecido
aforismo de Walter Gropius “da colher à cidade” que se tornou uma auto-
representação do campo: da colher à cidade tudo pode ser tarefa do arquiteto... ou da
arquiteta? Nesse espectro do objeto mínimo a uma grande metrópole, ou seja, um jogo
de grandezas, talvez algumas escalas tenham ficado a cargo de arquitetas, no
feminino, ou de mulheres cuja formação complementava as realizações dos arquitetos
do assim chamado movimento moderno. O slogan do fundador da Bauhaus, sobre
escalas que parecem equivalentes em importância, oculta uma hierarquia de gêneros,
nos dois sentidos, que era praticada nos ateliês da escola desde sua fundação em
Weimar em 1919, como veremos.

                                                                                                                         
1 . O que podemos extrair de uma imagem? A última passagem do livro de Miceli é notável: “Pulsões e
pretensões amorosas, ideais de beleza e espiritualidade, fabulações de idade e gênero, projetos de afirmação
econômica, expectativas de prestígio e distinção, ambições políticas, impulsos de liderança cultural,
arroubos de vanguardismo artístico, recados doutrinários, comemorações e contenciosos familiares,
tensões conjugais, lances de patriotismo, rivalidades profissionais, uma trama intrincada de desejos,
emoções, projeções, ressentimentos, alegrias e decepções, a mescla diversificada de energias de todo tipo
que constituem a matéria-prima sociologicamente disponível a ser transmutada em composição plástica.”
Miceli, Sergio. Imagens negociadas. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, pp. 142-3.

  7  
Lina Bo Bardi e Charlotte Perriand lograram construir um nome reconhecido,
mas por isso mesmo é preciso desmistificar o sucesso dessas “heroínas solitárias” –
não foram nem uma coisa nem outra – e observar como de certo modo trajetórias e
obras se articulam a saberes e práticas que tiveram lugar no século XIX e começo do
XX. O registro da excepcionalidade só faz sentido se a situarmos numa exceção mais
ampla do que suas qualidades singulares: em um conjunto de circunstâncias que se
combinaram de modo pouco comum. Nessas posições, é imperativo levarmos a sério
alguns momentos de demarcação de fronteiras de gênero nas trajetórias de Bardi e
Perriand. Quando Lina, ao se formar em arquitetura recebeu de seu professor
Marcello Piacentini (1881-1960) o veredicto de que se casaria, bella ragazza, para
não exercer a profissão, temos um momento simétrico à recepção que Le Corbusier
deu à jovem Charlotte que batia à porta de seu ateliê em busca de trabalho: “aqui não
bordamos almofadas”. Nesses rituais de não investimento o mundo doméstico em
oposição ao profissional – casamento, almofadas – aparece como o destino feminino
ao mesmo tempo que estabelece uma hierarquia: o lugar para onde elas deveriam
retornar não era dos mais desejados pelo mundo dessas profissões masculinas. Talvez
o mundo doméstico cotidiano e seus pequenos ritos nunca tivessem constituído o
cerne da reflexão da arquitetura; a habitação, contudo o foi. Segundo Beatriz
Colomina nada distinguiu mais a arquitetura do século XX do que o papel crucial da
casa privada, com idéias importantes de Adolf Loos, Le Corbusier e outros sendo
elaboradas por meio dos projetos de residência – casas que os tornaram conhecidos,
tenham ou não sido construídas, especialmente aquelas que foram projetadas para
mostras, publicações e concursos. Exemplos disso vão de statements, casas-manifesto,
como algumas dos arquitetos consagrados, parte delas desabitadas há décadas, às
casas projetadas sobretudo por seu efeito demonstrativo, como o Siedlung Werkbund
de Stuttgart de 1927, o evento nos mesmos moldes e com o mesmo nome em Viena,
dois anos mais tarde e, algumas décadas depois do outro lado no Atlântico Norte, as
Case Studies House californianas.

Carmen Portinho apareceu na pesquisa por conta do desejo de desarrumar os


arranjos acima expostos. Engenheira, começou sua carreira no trabalho pesado das
intervenções urbanas e só no final de sua carreira, já muito consagrada, foi se dedicar
ao design com a fundação da Escola Superior de Desenho Industrial o que, apesar da
sugestão da escala do objeto não era uma opção pelo objeto a ser usado no espaço

  8  
doméstico e sim um projeto de ensino2. Qual minha surpresa ao começar a lidar com
o escasso material sobre Carmen, não apenas com uma revisita às suas posturas
feministas quando de sua participação na concepção de Pedregulho, como sobretudo
com suas descrições do espaço da casa em um projeto urbanístico para uma capital!
Ainda assim, Carmen é um contraponto e é nesse sentido sua trajetória e algo de sua
obra comparecem nesta pesquisa.

Como não poderia deixar de ser, as personagens desta trama dedicaram boa
parte do seu tempo, talento e energia a refletir sobre a casa, desde o projeto de uma
com paredes envidraçadas – um statement que deveria ter se espraiado pelo Jardim
Morumby, como ansiou e propôs Pietro Maria Bardi a respeito da casa projetada por
sua esposa Lina – até preocupações “menores”, no sentido de mais ligada às pequenas
astúcias do cotidiano como onde guardar objetos, como manter a casa arrumada, onde
comer etc. , o que pode incluir as cozinhas pensadas em algum momento por Lina (na
Casa de Vidro), Charlotte (em 1929) e na tensão gerada pelas propostas de Carmen
Portinho para as áreas de trabalho do conjunto residencial Pedregulho, no Rio de
Janeiro.

Os possíveis pontos de aproximação remetem à trajetória e obra, assim como a


construção historiográfica destes nomes. Não se trata de sobrepor ou contrapor um
relato a outro, de escrever um relato alternativo com sinais trocados, mas sobretudo de
enfrentar tarefa de rever alguns cânones da história da arquitetura moderna, assim
como o papel crucial dos grandes nomes, o que não diz respeito apenas à presença
feminina. Nesta direção, o papel dos ateliês, cooperativas, grupos, escolas,
agremiações etc. é crucial. Charlotte Perriand não foi a única figura nublada do ateliê
de Le Corbusier, e recuperar seu papel é trazer à luz nomes como Pierre Jeanneret e
Alfred Roth, para citar apenas alguns. Lina Bo Bardi, por sua vez, pode ter em sua
condição feminina apenas uma parte da explicação de seus vôos solo – afinal, era uma
italiana trabalhando em São Paulo no período pós-1946, momento em que a
arquitetura moderna brasileira se concentrava no Rio de Janeiro e ainda elaborava e
diversos tons um discurso de brasilidade – Brasília já estava em pauta. Ainda assim,
tanto no Museu de Arte de São Paulo (MASP) como no Museu de Arte Moderna da

                                                                                                                         
2. A Escola Superior de Desenho Industrial (ESDI) foi fundada em 1961. Carmen foi sua diretora entre
1967 e 1988.

  9  
Bahia (MAMB), Lina trabalhava em grupo, e as nuances de sua parceria com Pietro
Maria Bardi ainda não foram suficientemente avaliadas. Carmen Portinho recebeu
pouco estudo a seu respeito – o livro de Ana Luiza Nobre é uma bela exceção – e
quando aparece em textos e livros é com freqüência com menção ao seu companheiro
Affonfo Eduardo Reidy. A longa entrevista que ela concedeu a Nabil Bonduki pouco
antes de falecer é quase que inteiramente voltada à atuação de Reidy.

Contudo, não se trata apenas de tirar estas trajetórias da sombra dos grandes
homens. Por um lado, atendendo ao que Griselda Pollock reivindicou para a pintura, a
recuperação histórica de mulheres que eram arquitetas – nesta tese isso inclui
engenheiras civis e designers – é uma necessidade primordial por conta da constante
obliteração de suas atividades na história dessa atividade3, uma vez que todos os
precursores canonizados dos movimentos artísticos reconhecidos como modernos são
homens. Se a recuperação de seus nomes não é o mais essencial nessa pesquisa e para
as trajetórias escolhidas, pois as três tem seu nome reconhecido, ainda assim, restam
outros desafios como, a partir delas repensar alguns marcos temporais deste campo.

Um nome subsumido a uma obra, a um momento ou a uma parceria: se já


mencionamos Grete Schütte-Lihotzky, também é este o caso de Charlotte Perriand
que já era uma artista-decoradora antes de se juntar a Le Corbusier e Pierre Jeanneret
e continuou a sê-lo depois dos dez anos – apenas dez anos para uma carreira que se
desenrolou de 1925 até o final dos anos 1990. Minimizar a importância de uma
cozinha apresentada no CIAM de 1927, um protótipo que foi fabricado para equipar
11 mil unidades de apartamento em Frankfurt4, assim como atenuar o caráter icônico
das cadeiras em metal que Charlotte concebeu na circunstância da parceria com
Corbusier seria um desserviço. A indagação aqui é a respeito do que o foco nesses
momentos instauradores da modernidade proposta pode nublar outros fatos e feitos.
Por isso, o moderno e suas inflexões, modernismo e modernidade serão tratados nessa
tese como termo êmicos, não cabendo nada parecido como uma avaliação, um
“gradiente de modernidade” dos eventos e objetos analisados.

Se o moderno é êmico, gênero é um termo quase nunca enunciado é um dos


condicionantes da ação dessas arquitetas, designers, engenheiras, e é imperativo
                                                                                                                         
3 . Pollock, G. Vision and difference. Feminism, feminity and the history of art, London: Routledge, 2003, p. 77.
4 . Refiro-me à Cozinha de Frankfurt, que será tratada nos capítulos I e, especialmente, V,

  10  
pensar de modo relacional, confrontando duas ordens de hierarquias: gênero e gênero
artístico. Em outras palavras: colocar essas personagens em relações onde essas
demarcações podem aparecer, ainda que de modo subliminar. Não se trata apenas da
glamurosa Charlotte num ateliê masculino ou de Pietro Maria Bardi adjetivando o
conhecido museu projetado por sua esposa como “um sonho de mulher”. É preciso
lembrar como a literatura tratou Sonia Delaunay e sua presumida relação maternal e
instintiva com as cores (recordando que ela evidenciou sua pesquisa numa colcha para
com filho recém-nascido) se comparada à abordagem intelectual e lógica de seu
marido Robert5; a relação de Anni Albers (1889-1994) com a tapeçaria enquanto
Joseph (1888-1976) dedicava-se à teoria das cores6; a bem formada e vanguardista
Ray (Kaiser) Eames passando a ser tratada como braço direito de Charles (1907-
1978)7 em uma atitude de quase auto-sujeição. Os exemplos são inúmeros e
interessam especialmente por remeterem a divisões culturalmente constituídas que,
repetidas e reiteradas na longa duração, ganharam quase um caráter de dualidade
universal8.

                                                                                                                         
5 . A ucraniana Sonia Terk chegou em Paris em 1905 aos vinte anos e conheceu Robert Delaunay em 1908,
iniciando uma intensa parceria pessoal e artística. A partir de 1910 o trabalho de cada um deles começou a
tender à abstração, que Robert denominava “desconstrução” enquanto Sonia a experimentava em
superfícies têxteis. Sonia tornou-se particularmente conhecida pelas roupas que desenhou e quando a obra
de Robert tornou-se mais consistente em relação aos debates estéticos dos anos 1910, a obra de Sonia
voltou-se para colagens, pastéis, tecidos e objetos domésticos. A respeito do trabalho do casal Delaunay,
ver Chadwick & Courtivon, op. cit., pp. 30-49.
6 . O casal Albers se conheceu em 1922 na Bauhaus. Ele foi um dos mais influentes professores de pintura

da escola, autor de uma teoria das cores enquanto ela, cujo nome de solteira era Annelise Fleischmann.
dedicou-se à tecelagem e a escritos sobre design. Em 1933 – Anni era judia – o casal migrou para os
Estados Unidos, de onde empreenderam uma série de viagens pela América Latina.
7 . Charles Eames abandonou o curso de arquitetura no segundo ano, trabalhando como fotógrafo e

também com diversas modalidades de artesanato como cerâmica e impressão. Sua adesão ao design
moderno deu-se em grande medida por sua proximidade com o designer Eliel Saarinen e sua esposa Loja, e
posteriormente seu filho Eero. Em 1941 casou-se com Ray Kaiser, pintora e escultora formada em Nova
York e militante do grupo AAA (American Abstracts Artists). Pat Kirkham observa o quanto a comum
dualidade que em parcerias artísticas vincula a mulher ao universo do artesanato e o homem ao da
abstração era justamente o inverso no momento em que o casal iniciou sua parceria amorosa e artística.
Kirkham, Pat. “Humanizing modernism: the crafts, ‘functioning decoration’ and the Eameses’. Journal of
Design History Vol 11, nº 1, Design History Society, 1998.

8 . A própria pedagogia da Bauhaus trabalhava nessa dualidade. A herança história européia, vista como
opressora era vista como “feminina” e “maternal”, enquanto que a admirada indústria norte-americana era
percebida como masculina. Herbert Bayer(1900-1985) trabalhava com esses opostos: os gostos da cultura
popular e de massa, irracionais e femininos deveriam ser disciplinados pela tipografia e pelo desenho,
equivalentes ao pai racional e regulador da teoria freudiana. “Esses limites são ecoados na dicotomia
estabelecida por Bayer entre a cultura popular e o design ‘funcional’, entre a história (regressiva) o futuro
(progressista) e entre o estilo (feminino) e sua rejeição (masculina).” Mills, Mike. “O Universal Type de

  11  
OS USOS DA IMAGEM NA PESQUISA

Há uma hierarquia nas artes: a arte decorativa está embaixo, a


figura humana, no topo. Ozenfant e Jeanneret (Le
Corbusier”), Depois do cubismo.

As memórias, escritas de si, e alguns relatos nos contam que a preocupação


com a imagem, especialmente a imagem fotografada dessas mulheres era um gesto
bastante estudado. Ray Eames desenhou roupas para ela e seu marido Charles que
eram bastante despojadas e rígidas para o padrão feminino glamurizado dos anos
1950, e ambos usavam os mesmos trajes em situações rotineiras e sociais. Quando a
situação exigia, como vernissages, palestras etc., usavam versões um pouco mais
formais das mesmas roupas: Charles podia colocar uma gravata, Ray usava sua
melhor blusa e talvez alguma jóia. Audrey Wilder, esposa do cineasta lembra que
quando ela, Billy e os Eames saíam pra jantar, Charles acrescentava uma gravata ou
uma bandana e Ray uma echarpe, extremamente artística como ela, sempre bonita, às
vezes com alguns fios de ouro9. Ray sempre trajava um pinafore (vestido sem
mangas, que se veste sobre uma camisa), como usava Judy Garland em O Mágico de
Oz. um laço, geralmente em veludo arrematando o colarinho.

Segundo Pat Kirkham, a imagem de Ray era complexa e contraditória:


sensível e doce, moderna e nostálgica. O pinafore trazia associações com uniformes
que as adolescentes descartam quando crescem, roupas de trabalho utilitárias do final
do século XIX, uma escolha curiosa para uma mulher de tão baixa estatura. Ela
evitava os saltos altos, preferindo sapatilhas. E nunca usava calças compridas. Suas
roupas eram todas feitas por alfaiate.

Sabe-se que também Lina (Fig. 9) desenhava suas roupas e mas mandava
confeccionar por alfaiates (jamais costureiras), e nas memórias de Charlotte consta
com ênfase os momentos em que ela desenhou e montou seus próprios colares – de

                                                                                                                         

Herbert Bayer em seus contextos históricos. Lupton, E. & Abbott Miller, J. (orgs) ABC da Bauhaus: a
Bauhaus e a teoria do design. São Paulo: Cosac & Naify, 2008, p. 50.
9 . Pat Kirkham. Charles and Ray Eames. Designers of the twentieth century. Cambridge, MA e London, England:

The MIT Press, 2001, p. 63.

  12  
metal, de conchas. Por que era importante para estas mulheres que sua aparência
corporal remetesse ao seu trabalho, e vice-versa? Aparentemente, para alem de casas-
manifesto e fotos-manifesto, a própria indumentária era um gesto consciente e
deliberado de expressar algo que remetia ao trabalho, uma mensagem silenciosa. É
também possível que uma visão que equivale luxo e decorativismo a um pensamento
retrógrado e produção da máquina a um progressista tivesse migrado para as roupas.

Voltemos às fotografias que deflagraram este trabalho de tese. Dificilmente as


fotos de arquitetura desse período mostram pessoas nos projetos construídos, e com os
ocupantes, seus usos. Mesmo nos espaços domésticos, salas e cozinhas parecem
passíveis de ocupação, ainda que dificilmente uma figura humana apareça sugerido
como fazê-lo. Nos desenhos técnicos o elemento humano é totalmente ausente, e nos
croquis aparecem para dar sentido de proporção, a conhecida “escala humana”. Vale a
pena nos determos um pouco nesse ponto, não apenas porque nos desenhos de Lina,
posteriores ao seu repouso na Bardi’s Bowl há sempre uma idéia dos usos e
ocupações (Fig. 5), mas também porque a própria noção de escala, de corpo como
medida é particularmente interessante, pois no século XX foi parte de um “retorno à
ordem” nas artes maiores e menores européias, de uma adaptação das artes funcionais
à indústria e à chamada vida moderna.

Lina e Charlotte usaram corpos, seus corpos, como medida para um móvel que
elas projetaram e que até então era classificado como um móvel masculino. A
poltrona Surrepos que pode ter servido de modelo para a chaise-longue tinha seu uso
demonstrado por um homem e as primeiras cadeiras de Charlotte, como foram
inspiradas em cadeiras de escritório. Vania Carneiro de Carvalho mostra como
poltronas são parte dos espaços masculinos da casa, em oposição aos sofás,
exatamente porque as primeiras permitiam apenas uma pessoa sentada, o homem da
casa, compenetrado ou se recuperando do trabalho no ambiente exterior, em oposição
ao sofá, cujas qualidades eram mostradas com uma mulher ali sentada com sua prole.
Lina Bo Bardi jamais desenhou um sofá e não havia um na Casa de Vidro, embora um
croqui mostrasse um móvel ou um degrau na sala onde estão sentados ela – de calças
compridas –, Bardi, uma terceira figura masculina e um gato (Figura 8). Estariam
nessas fotos, Lina e Charlotte tomando posse do móvel destinado ao homem, o
repouso que remete ao trabalho no espaço público, revertendo a teatralidade do
espaço doméstico, propondo uma nova?

  13  
O termo teatralidade é intencional. A divulgação da Bardi‘s Bowl mostrava
uma atriz reconhecidamente bela, Odete Lara com as pernas cruzadas, elegantemente
trajada e calçada, usando jóias e com o rosto ligeiramente virado, de olhos cerrados. A
cadeira foi capa da revista norte-americana Interiors e traz duas imagens de Lina, uma
como figura e outra como fundo, como marca d’agua: nas duas imagens Lina está
lendo. A de fundo esconde o rosto e tem os pés no cão; na que sobressai, temos suas
mãos, pernas e um livro, em cor contrastante.

Sentar-se, lembra Carvalho, mais do que mera prática corriqueira, é um “gesto


socialmente significativo e, por isso mesmo, sexualmente ativo”10. Os manuais de
etiqueta que a autora analisa em um período um pouco anterior ao de nossa primeira
foto dão especial atenção à posição de pernas e pés femininos. Nas fotos aqui em
questão, elas se deixaram/fizeram fotografar entregues ao conforto repousante de suas
cadeiras, ou ao enredo de um livro em uma foto onde não temos sequer seus rostos –
em uma as imagens, Lina chega a ocultar o rosto com a mão. Não há rigidez muscular
nas pernas de Lina e Charlotte, como convinha (convém?) às mulheres. E ao contrário
das conhecidas cadeiras desenhadas pela Bauhaus, estas fazem mais pensar em
repouso do que em trabalho11. As cadeiras eram inusitadas para o momento, assim
como as que nela sentavam, mostrando-se de corpo inteiro e ocultando o rosto. Mas,
ao posar em suas cadeiras, a quem dirigiam as respectivas imagens? Ao futuro
comprador, usuário ou ao interlocutor eu também era um produtor de objetos para
vida moderna? Se esse último interlocutor esteve em jogo, é preciso lembrar que,
assim como quadros, fotos devem muito à observação de outras fotos, e estas
certamente estão informadas por uma longa série de imagens em circulação, que
desde os anos 1920 mostravam, em revistas e outras publicações, o que era a mulher
moderna – um espectro que vai das imagens dos manequins de Poiret até as fotos que
o surrealista Man Ray fez da modelo Lee Miller.

E o rosto oculto pode remeter às mulheres deitadas fitando o público, como


Georges Duby ressaltou a respeito da pintura de prostitutas, cujo exemplo moderno
mais emblemático é a Oympia de Edouard Manet. Por isso corpos e cadeiras, corpos e

                                                                                                                         
10 . Carvalho, Vânia C. Gênero e artefato. O sistema doméstico na perspectiva da cultura material – São Paulo, 1870-
1920. São Paulo: Edusp/FAPESP, 2008, p. 195.
11 . Como notou Mary McLeod, as cadeiras de Charlotte não freqüentam tanto os espaços corporativos

como suas equivalentes da escola alemã.

  14  
projetos. Não se trata apenas de ergonomia. Charlotte era uma mulher de baixa
estatura, o que causava reclamações de Le Corbusier, que a acusava de fazer projetos
pensando em um usuário com suas dimensões – nada mais distante do homem
universal! – e se observarmos com atenção a fotografia veremos que a cadeira se
ajusta bem à moça que nela repousa.

Assim, para chegarmos à fotografia da designer italiana Cini Boeri (nascida


em 1924) que posa em sua cadeira transparente com um cigarro entre os dedos e
fitando a câmera em foto desde século, foi preciso algumas décadas de debate
feminista e mais, foi preciso também que a crença na gute form começasse a sofrer
seus primeiros abalos12. Boeri está confortável em sua autoria e também com o caráter
de mercadoria de sua cadeira – o que Lina, principalmente e em alguma medida
Charlotte pareciam querer evitar ou escamotear – e olha a câmera, o fotografo e o
espectador nos olhos (Figura 6).

Em 1930, a seção alemã do salão anual da Société des Artistes Décorateurs –


seção que passou a ser conhecida como exposição do Werkbund – promoveu o
trabalho de Waltr Gropius e o mobiliário de Marcel Breuer. Embora as conhecidas
cadeiras que Breuer desenhou na Bauhaus tenham tido uma apreensão mais
“masculina” do que os móveis de Perriand, como bem notou Mary Mc Leod, a
arrumação dos móveis alemães nos ensembles exibidos em Paris sugeria uma divisão
dos espaços da casa – lembremos que Bauhaus tem “casa” em seu sufixo – com fortes
marcas de gênero. De certo modo, alguns críticos franceses, cuja má recepção à
exposição pode ser creditada a uma tensão política entre os dois países, prestaram
atenção a isso. O periódico L’architecture descreveu os ambientes como “a casa sem
alegria”, com maridos que comem sozinhos em seus quartos enquanto suas esposas
descansam em seus aposentos. Irônico, o artigo sugere que eles convidem uns aos
outros para jantar, sem tantas regras. Essa observação cáustica remetia aos ambientes
concebidos por Gropius e Breuer, que tinham espaços comuns mas também aposentos
individuais, que possibilitavam momentos de privacidade – sutilmente ligados uns aos

                                                                                                                         
12 . Refiro-me aqui especialmente à critica de Adrian Forty à impregnação da noção de gute form, para ele
uma ideologia, nos estudos de design. Sua resposta a ela passa pelo reconhecimento da vida dos objetos, da
sociologia de Pierre Bourdieu, estudos de gênero e outras contribuições que esta tese corrobora. Adrian
Forty, Objetos de desejo. Design e sociedade desde 1750. São Paulo: Cosac & Naify, 2007, especialmente a
introdução.

  15  
outros.13 Examinando as fotografias da exposição, Paul Overy observa que o aposento
feminino tem uma cama de casal, enquanto o masculino tem um divã; a escrivaninha
masculina tem um fichário, a feminina uma série de gavetas estreitas para se guardar
artigos de toucador ou roupa de baixo. Na mesa do homem o telefone era preto e
havia três livros grossos; na mesa da mulher o telefone era branco e havia uma pilha
de revistas. No quarto da mulher havia um gramofone enquanto que no do homem
encontrávamos um globo: se ambos remetiam à comunicação internacional, o
feminino sugeria um espaço doméstico enquanto o masculino fazia pensar em
explorar o mundo. O quarto masculino tinha mais prateleiras, o feminino mais
armários. E o espelho da mulher era bem maior.14

Overy, apoiado pelas pesquisas do historiador da arte britânico Tim Benton,


observa que nas fotográficas do cotidiano da Bauhaus sempre víamos homens e
mulheres sentados lado a lado. Contudo, com os móveis havia marcas de “gênero por
associação”, assim como trinta anos depois a cadeira Butterfly de Arne Jacobsen seria
generificada na chave do escândalo – com a modelo, esta sim, olhando fixo para a
câmara (fig. 10).15.

A décima conferência proferida no Brasil por Le Corbusier – curiosamente,


enquanto Charlotte se fazia fotografar na chaise-longue – versou sobre “A aventura
do mobiliário”. Ao enumerar o que seria necessário para uma casa, mencionou
“cadeiras para comer e trabalhar, poltronas de diversas formas para descansar de
diversas maneiras”16. E mais adiante: “os assentos servem para descansar”. A
centralidade de seus aforismos para nosso argumento justifica a citação mais longa:

Observo que existem muitas maneiras de nos sentar, que variam de acordo
com a hora do dia, a ordem de nossas preocupações, a atitude que tomamos
num salão (...). Para trabalhar sentamos de maneira “ativa”. A cadeira é um
instrumento de suplício que nos mantém admiravelmente despertos. Quando
trabalho preciso de uma cadeira.
Sento-me para conversar: determinada poltrona proporciona-me uma postura
decente e elegante. Sento-me “ativo” para argumentar, demonstrar uma tese,

                                                                                                                         
13 . Paul Overy. “The Werkbund Exhibition, Paris, 1930”. Journal of Design History no. 17 (4), 2004, p. 341.
14 . Idem, p. 350.
15 O autor se refere à Christine Keele, protagonista do caso Profumo, que foi fotografa nua na cadeira em

1963, lembrando que sua imagem tornou-se icônica, o que não surpreende.
16 . Le Corbusier. Precisões sobre um estado presente da arquitetura e do urbanismo. São Paulo: Cosac & Naify, 2004,

p. 113.

  16  
propor minha maneira de ver: como este tamborete alto convém à minha
atitude! Sento-me tranqüilo, descontraído: este tamborete turco dos “cavedjis”
de Istambul, com 35 cm de altura e 30 cm de diâmetro é uma maravilha: nele
ficaria horas sem me cansar, sentado sobre meu traseiro. (...) Mas eis aí a
máquina de descansar? Nós a construímos com tubos de bicicleta e a cobrimos
com uma magnífica pele de potro. (...) Pensei num caubói do faroeste,
fumando o cachimbo, com os pés erguidos mais altos do que a cabeça,
apoiados na borda da lareira.17
Certamente ele descrevia a chaise-longue, assim como os outroa móveir
realizados com intensa participação de Charlotte. A engenheira Carmen Portinho lá
estava, atenta às palestras do arquiteto.

Há sugestões, indícios de que Lina, Charlotte e Carmen se conheceram em


algum momento no Rio de Janeiro dos anos 1950 (Fig. 11); em sua autobiografia a
segunda declara sua admiração pela primeira, ao conhecer o Solar do Unhão em
Salvador. Trabalhando distantes no espaço, mas circulando nas mesmas redes,
enfrentando os dilemas do mesmo campo, elas partilhavam do contato com figuras
centrais nas tramas do chamado movimento moderno. Charlotte estava no navio no
qual se realizou o CIAM de 1933, assim como Pietro Maria Bardi, que também era
amigo de Le Corbusier. Em algum momento ambas tiveram contato com Lucio Costa,
amigo de Carmen Portinho; esta tinha uma relação direta, sem muitos mediadores,
com Le Corbusier. No segundo pós-guerra, as já consagradas Charlotte e Lina
manifestavam mais interesse pela cultura popular e pela madeira do que pela
industrialização e por cadeiras de metal – resultado, mas não apenas do contato com o
Japão e Indochina, no primeiro, e da Bahia e Nordeste brasileiro, no segundo. Nesse
momento Carmen, menos preocupada com o racionalismo arquitetônico ou em
defender uma arquitetura que já se defendia muito bem, volta-se para o espaço da casa
e de certo modo preocupa-se mais com a leitura de Catherine Bauer Wurst do que os
pioneiros do movimento moderno.

As trajetórias se encontram, se interceptam em pontos, atando nós delicados e


sólidos. Seus lugares no campo da arquitetura moderna e das chamadas vanguardas
era pré-determinado, assim como para outras. Determinação explícita como na
Bauhaus de Weimar, onde e quando as mulheres eram diretamente conduzidas para
as oficinas de tecelagem e de cerâmica. Ou sutil, silenciosa, incorporada, o que nos

                                                                                                                         
17 . Idem, p. 125.

  17  
convida a observar as obras, a procurar nelas as tensões de gênero que marcaram suas
trajetórias, que, tudo parece indicar, conferiu às mulheres um lugar no menos
valorizado espaço doméstico e no âmbito das chamadas artes menores. Seria,
contudo, forçar demais a premissa da pesquisa afirmar que cadeiras, móveis e
cozinhas foram definidos, internamente ao mundo dos arquitetos modernos como
assunto de mulher. Bastaria mencionarmos as conhecidas cadeiras produzidas pela
Bahuaus, como a Wassily, do arquiteto Marcel Breuer, para derrubarmos tal
argumento. E sabemos que, confinadas às oficinas de têxtil e louça, Anni Alpers,
Marianne Brandt e outras contribuíram para borrar as fronteiras entre gêneros
artísticos. Por enquanto, encerramos com uma imagem da cadeira de Breuer, na qual a
modelo, possivelmente aluna da Bauhaus, empresta seu corpo feminino para exibir as
qualidades da cadeira (Fig. 7). Não olha para a parede, como Charlotte, nem se oculta
atrás de um livro como Lina. Usa, sim, uma máscara, como modo de se tornar
anônima. Sabemos apenas quem projetou a cadeira – Marcel Breuer – e a máscara –
Oskar Schlemer – mas não quem é a modelo. Por outro lado, o nome de Charlotte
esmaeceu por trás de uma denominação – LC4 – atribuída a Corbusier ou, quando
muito, a ele, Jeanneret e Perriand.

O recorte cronológico desde trabalho respeita – talvez para se divertir num


jogo de desconstrução e reconstrução – algumas balizas do campo da arquitetura
moderna. Começamos nos anos 1920, entreguerras europeu, com ênfase no
modernismo épico e o início da atuação de Charlotte Perriand. Terminamos no Brasil
dos anos 1950 com Lina, sua cadeira e sua reflexão sobre a casa; e com Carmen e sua
preocupação com a “mão cansada” da mulher trabalhadora. E no panorama
internacional, digamos assim, nossas cozinhas que atravessam décadas e mares,
culminando no kitchen debate, enquanto Charlotte redigia sua quase cândida arte de
morar e Lina se preparava para passar uma temporada em Salvador, Bahia. Em alguns
momentos os recuos temporais serão necessários para se conferir historicidade às
cenas analisadas.

A partir dos anos 1960, quando interrompemos nossas análises, já


precisaríamos incluir uma reflexão sobre as idéias pós-modernas de espaço e sua
reverberação para noções de domesticidade. Embora Denise Scott-Brown, co-autora
do influente Aprendendo com Las Vegas, parceira e esposa de Robert Venturi pudesse
ser a “quarta mulher” dessa tese, não é o caso para o momento. Além disso, nos anos

  18  
1960 também a idéia de design se altera, migrando um pouco do discurso épico e do
homem universal para as múltiplas narrativas de um mercado em expansão com um
imenso apoio na visualidade. Circunscrever trajetórias, espaços e objetos no
modernismo foi, desde o início, uma opção bastante clara desta pesquisa. E, nessa
perspectiva, modernismo é um termo êmico, mas é também o limite inicial e final de
nossa cronologia.

Briony Fer observa, em seu trabalho sobre os construtivistas russos, a presença


feminina numa arte “útil”. Mulheres como Varvara Stepanova trabalhavam em
construções que ficavam entre a indústria, universo masculino, e certos aspectos da
arte popular, como o bordado, que implicavam o feminino. Além de participar das
chamadas artes menores, o trabalho feminino, naquele espectro advogado por
Gropius, redesenhou a casa, o interior, a vida doméstica, que nunca mais foi a mesma.

Como objetos que são, cadeiras, colares e cozinhas possuem agência e são
bem mais do que meras representações ou material inerte esperando que um uso lhes
confira sentido: eles existem e merecem nossa análise com boas ferramentas
metodológicas. São objetos materiais que têm autoria – e segundo Adrian Forty tudo
que está no mundo foi desenhado por alguém – e a hipótese dessa tese é que espaços e
objetos pensados por mulheres, sobretudo para a casa, revelam uma simbiose entre
suas identidades sociais e profissionais femininas – mesmo que elas reiteradamente
neguem tal lugar – e o resultado de seu trabalhos. São objetos que, ao fim e ao cabo
nos convidam a visitar os lugares de mulher. São os lugares de mulher que nos
permitem renovar novas perguntas aos objetos por elas pensados.

Por fim uma explicação quase telegráfica do título da tese: lugar de mulher é,
claro, um duplo que lugar social e dos lugares projetados por elas. Poderia ser espaço
de mulher se tomássemos a divisão entre espaço e lugar proposta por Michel de
Certeau. Nessa tese, optou-se pelo lugar como um lugar de mulher por sua força
semântica e por ele remeter tanto aos lugares interditados, um subtendido da
expressão, como, no caso dos objetos eleitos, à casa como lugar da mulher: a dona da
casa, de casa, a autora do projeto. Sim, na arquitetura moderna não foram muitos os
lugares de mulher, mas o espaço domestico certamente foi um deles.

  19  
ESTRUTURA DA TESE

A tese se estrutura em cinco capítulos bem delineadas, que se complementam,


embora possam até ser lidos separademente . O primeiro é um dialogo com meu
primeiro artigo sobre o tema, “Corpos, cadeiras e colares”, publicado nos Cadernos
Pagu em 2010. Retomo algumas questões do artigo, colocando algumas questões
gerais sobre corpos generificados, imagens e objetos que depois perpassam toda a
tese.

O segundo capítulo aborda a designer francesa Charlotte Perriand, discutindo


as difíceis e tênues fronteiras entre arquitetura e artes decorativas na França na
primeira metade do século XX. Embora se utilize dados biográficos, não é uma
biografia da designer, especialmente porque analisa um pequeno período de sua
longeva e profícua carreira.

Charlotte retorna no terceiro capítulo, que é uma comparação entre dois


manuais de aconselhamento domestico, escritos, respectivamente, por Chartlotte
Perriand e Lina Bo Bardi. O argumento desse capítulo é que elas escreveram esses
artigos numa tensão entre o manual de aconselhamento e perspectiva de arquiteta e
designer moderna. Por conta de uma longa tradição desse tipo de literatura, este
termina sendo o tom a prevalecer e elas falam para a dona de casa, não para os
especialistas.

O quarto capítulo é sobre Carmen Portinho, seus anos de formação,


feminismo, seu plano para uma cidade capital e suas contribuições para o conjunto
habitacional Pedregulho. O quinto, bibliográfico e bastante calcado em pesquisa sobre
as arts ménagèrs (economia doméstica) discute a entrada da máquina nos lares, como
estética, política e atribuição de lugares de gênero.

Ao longo dos cinco capítulos, uma tensão entre propostas, intenções e os


constrangimentos que fazem com que a arquitetura seja o que é, também em seus usos
e apropriações, relações com clientes e Estado, possibilidades e limitações: em outras
palavras, como as mulheres participaram dessa revolução simbólica?

  20  
CAPÍTULO I
OS LUGARES DA MULHER NA HISTÓRIA DA ARQUITETURA MODERNA

Ich bin keine Küche, eu não sou uma cozinha, costumava dizer a arquiteta
Margarete Schütte-Lihotzky (Viena, 1897-2000), reivindicando que se levasse em
conta sua longa e profícua carreira e não apenas a conhecida Cozinha de Frankfurt.
Com razão: seu arquivo em Viena guarda realizações na Áustria, Bulgária, União
Soviética, Turquia, escritos e desenhos de escolas, mobiliário, casas, decoração,
cozinhas burguesas e, claro, a cozinha de 1926-7.

Esta tese não é sobre a arquiteta austríaca, mas sobre o lugar da mulher
arquiteta na arquitetura moderna, seus feitos e suas limitações, seus deslocamentos
nesse campo e suas contribuições para noções de domesticidade moderna. Isso será
feito por um exame das trajetórias de Charlotte Perriand (Paris, 1903-1999), Lina Bo
Bardi (Roma, 1914 – São Paulo 1992) e Carmen Portinho (Corumbá, 1903 – Rio de
Janeiro, 2001). Se a primeira, oriunda do mundo das artes decorativas só conseguiu
praticar arquitetura no final da vida, Lina foi arquiteta na ampla definição do termo e
Carmen, engenheira, foi a que propiciou grandes projetos com dimensão urbanística.
A pesquisa nasceu com um artigo de 2010 que comparava as trajetórias de Lina e
Charlotte e a intenção de introduzir Carmen foi a princípio como um contraponto,
pois as primeiras partiram do desenho, ilustração, decoração para a arquitetura e
Carmen começou pelo urbanismo, como veremos. Mais do que um jogo de escalas,
essas passagens são também um deslocamento em circuitos hierárquicos nos quais a
decoração do espaço interno certamente aufere menos prestigio do que um grande
plano urbanístico – tanto que os arquitetos modernos evitam a palavra “decoração”,
embora a pratiquem.

O exame de tais trajetórias exige uma apreciação das narrativas canônicas nas
quais arquitetas comparecem comumente limitadas ao momento ou movimento que
confere sentido a uma história oficial (em que pesem as variações do cânone) que,
como outras dimensões do exercício dessa profissão, é masculina. A participação

  21  
feminina no auto-denominado Movimento Moderno18 demanda investigações no
âmbito da sociologia da cultura, história social, cultura visual, história da arquitetura e
cultura material tendo como foco o papel das relações de gênero na produção de
objetos como mobiliário, projetos arquitetônicos e planos de cidade. Gênero aqui
remete menos a um estudo das mulheres, suas trajetórias e obras e mais a uma
concepção de organização da diferença sexual, do conhecimento relativo sobre tal
diferença – conhecimento, nos termos foucaultianos colocados por Joan Scott,
ordenando o mundo sem ser anterior à organização social e inseparável desta19.

Se a presença feminina na profissão é reduzida e a lacuna historiográfica pode


ser lida como constitutiva do próprio campo, temos a oportunidade de revisão de
fontes, trajetórias, análise de obras e de formular novas indagações que permitam
recuperar indícios referentes ao estatuto, papel e significado na sociedade, por
exemplo, de obras e autoras “menores”, em outras palavras, de sólidas e não
nomeadas hierarquias internas de gênero – no duplo sentido, incluindo gêneros
artísticos. Na direção do que Griselda Pollock20 reivindicou para a pintura, a
recuperação histórica de mulheres arquitetas é uma necessidade primordial por conta
da constante obliteração de suas atividades na história dessa atividade, uma vez que
todos os precursores canonizados dos movimentos artísticos reconhecidos como
modernos são homens.

Trata-se mais do que fazer um inventário de nomes21, tirá-las da invisibilidade.


Não é objetivo dessa tese a reiteração de premissas de “genialidade”, tampouco
conferir uma excessiva ênfase a “heroínas solitárias”. O desafio é observar algumas
mulheres arquitetas no interior de seus grupos e redes de sociabilidade, concordando
                                                                                                                         
18 . O auto-denominado aqui remete a uma adesão aos argumentos de Giogio Ciucci e Eric Mumford, da
construção de um movimento que não nasceu ou prosperou como tal. Esse foi um dos trabalhos dos
CIAMs. Ver a respeito Mumford, Eric. The Ciam discourse on urbanism, 1928-1960. Cambridge, MA &
London, UK, The MIT Press, 2000.
19 . Em suas primeiras formulações, ainda na década de 1990, Joan Scott, equivale gênero a saber no

sentido atribuído a este por Michel Foucault. Saber sempre relativo, de produção complexa, cujos usos e
significados nas apenas nascem de disputas políticas como eles próprios constituem meios de construção
de relações de poder. Em outras palavras, modos de ordenar o mundo. Scott, Joan W. Gender and the politics
of History. New York: Columbia University Press, 1999.
20. Pollock, G. Vision and difference. Feminism, feminity and the history of art. London & New York, Routledge,

2003.
21 . Há vários grupos de pesquisadoras feministas realizando um grande inventário de arquitetas. Cito,

apenas como um exemplo, o coletivo espanhol (que reúne pesquisadoras de Barcelona, Valencia, Madri e
outras universidades) Un dia una arquitecta, que publica a cada dia uma pequena biografia de uma arquiteta,
conhecidas ou não. https://undiaunaarquitecta.wordpress.com/, última consulta em 10 de janeiro de 2017.

  22  
com Raymond Williams que um grupo de amigos pode ser bem mais do que isso – ou
seja, levando-se em conta tanto o ethos interno a um grupo – por exemplo, um grupo
de vanguarda – como suas posições de classe.

Pretendo discutir essas premissas a partir das trajetórias comparadas de Lina


Bo Bardi (para além da Lina canonizada por parte da bibliografia da última década),
Charlotte Perriand (para além dos dez anos de parceria com Le Corbusier) e Carmen
Portinho (para além de sua “colaboração” com Affonso Eduardo Reidy). As duas
últimas são designer e engenheira, respectivamente, e a primeira é arquiteta. Contudo,
é quase impossível pensarmos nos debates sobre a casa moderna, o habitar, sem suas
contribuições – se não são arquitetas, foram parceiras da arquitetura moderna tal
como esta foi se definindo ao longo do século XX. Em comum às três escolhidas, não
são nomes silenciados a serem recuperados, mas é possível e desejável que as
observemos de uma perspectiva renovada. O exame do lugar da mulher na
historiografia pode ser um estímulo à renovação da mesma.

Quando do início da pesquisa, não havia indícios de um possível encontro


entre as três. Charlotte Perriand menciona Lina Bo Bardi em seu livro de memórias;
no arquivo do Museu de Arte Moderna da Bahia (MAMB) há uma carta de Carmen
Portinho para Lina, uma troca de informações entre diretoras de museu; há fotos de
Charlotte ao lado de Carmen, de Lina examinando a maquete do Museu de Arte
Moderna do Rio de Janeiro. Em algum momento, todas tiveram contato com Le
Corbusier e Lucio Costa. Ainda que com origens diferentes, atuação em contextos
nacionais distintos, elas fazem parte de uma rede transnacional de trocas intelectuais e
circulação de ideias, de uma comunidade de discurso22. Não deixa de ser uma apelo à
imaginação uma conversa das três em algum bar do Rio de Janeiro nos anos 1950.

Lina Bo Bardi mereceu uma breve citação no volume de Yves Bruand23 sobre
arquitetura moderna brasileira, mas devemos considerar que o livro é quase

                                                                                                                         
22 . Transnacional não é o mesmo que internacional e não se trata de negar a importância de contextos
nacionais e/ou locais, mas de considerar intercâmbios culturais, zonas de contato – que podem ser físicas
como também comunidades de discurso) e levar em consideração que tais relações são sempre de mão
dupla. Ver Weinstein, B. “Pensando a história fora da nação: a historiografia da América Latina e o viés
transnacional”. Revista Eletrônica da ANPHLAC. N. 14, jan – jun de 2013.
http://revistas.fflch.usp.br/anphlac/article/view/2331, último acesso em 18 de janeiro de 2017.
23. Bruand, Yves. Arquitetura contemporânea no Brasil. São Paulo, Editora Perspectiva, 1981. A tese de
Bruand, defendida na França, é de 1975.

  23  
contemporâneo de sua obra mais conhecida, o edifício do Museu de Arte de São
Paulo na Avenida Paulista. O fluxo de teses, livros e artigos a respeito de sua atuação
é posterior ao seu falecimento em 1992. Contudo, ao contrário da designer e arquiteta
irlandesa Eileen Gray (1878-1976)24, Lina morreu no auge de sua consagração, após o
projeto do SESC Pompéia e no momento em que projetava a prefeitura da cidade de
São Paulo.

Atualmente temos alguns livros sobre Charlotte Perriand. A maioria deles, de


responsabilidade de seu genro, o editor de arquitetura e pesquisador Jacques Barsac,
que com a filha de Perriand, controlam o acesso ao acervo da designer em Paris.
Ainda que Barsac reúna um conjunto considerável de informações, para os fins desta
tese os trabalhos mais relevantes são os de Mary McLeod, pioneiro, Tim Benton e
especialmente Arthur Rüegg, como ficará claro no segundo capítulo.

A engenheira Carmen Portinho ainda não teve um livro à altura de sua


importância. Há uma publicação de trechos de entrevistas, um belo depoimento oral
que ela deu a um jornalista. E uma longa entrevista sua aparece bastante editada em
um livro de Nabil Bonduki sobre seu parceiro de vida e obra, Affonso Eduardo Reidy.
O livro de Ana Luiza Nobre é uma excelente introdução, mas não encontrou
seqüência entre os acadêmicos da área de arquitetura. Esperemos, então por um bom
estudo monográfico a respeito de Carmen.

A demanda aqui lançada de um reexame dessas três trajetórias levando gênero


em consideração não tem assim qualquer pleito de (re)valorizá-las ou tirá-las da
invisibilidade. Todos os nomes citados são figuras prestigiadas, ainda que muitas
vezes postumamente e são mulheres que lograram construir suas carreiras no campo
da arquitetura moderna. Por outro lado, de volta à cozinha de Frankfurt como um bom
exemplo, há em parte da bibliografia um superestimar de alguns feitos. Em seu
Mechanization takes command, de 1948, Siegfried Gideon chegou a afirmar que a
organização da cozinha teve seu inicio com o novo movimento arquitetônico europeu

                                                                                                                         
24 . A escolha das três personagens foi tarefa difícil. Lina, Charlotte e Carmen poderiam ser Eileen Gray,
Ray Eames e Janete Costa, por exemplo. Ou várias outras, desde que tivessem conseguido construir uma
sólida carreira. A escolha pelo trio estudado remete a um jogo de escalas, hierarquias sutis incluídas. De
qualquer modo, Gray, Eames e no último capítulo, Schütte-Lihotzky comparecem para elucidar pontos de
vista, permitir melhores argumentos por efeito de comparação.

  24  
em 192725, quando veremos nos dois últimos capítulos que antes dessa data muitas
mulheres de formação dicersa já pensaram na modernização organização e mesmo
taylorização da cozinha.

TUDO COMEÇOU NA BAUHAUS?

“The results were very different.The girls produced small, delicate


objects about the size of a hand. Some of the chaps came in with
great three-foot-high scraps.”26

Não há qualquer consenso a respeito do “quando” teve início a arquitetura


chamada de moderna Kenneth Frampton começa seu livro remontando a 1750 e
examina a partir desse momentos as transformações estilísticas, técnicas e os
desenvolvimentos urbanos; Tafuri e Dal Co tomam como marco as transformações
urbanas do século XIX e a emergência do urbanismo moderno; William Curtis, para
falar da arquitetura moderna do século XX retrocede ao nascimento dessa ideia no
século XIX27.

Assim, se a periodização diz muito das premissas e dos argumentos de cada


autor, para os fins dessa tese proponho com convicção que o nascedouro de uma tácita
e silenciosa divisão sexual de trabalho na arquitetura moderna remete à primeira
formação da escola Bauhaus em Weimar, Alemanha, 1919 e ao seu primeiro diretor
Walter Gropius. Uma das primeiras professoras da escola de Weimar, Helène Börner,
foi contratada por Gropius – depois de trabalhar com Henri van de Velde na Bélgica –
para ensinar artesanato e assim começou o trabalho do ateliê de tecelagem e ali
permaneceu até 1925; também do ateliê de van de Velde veio Dora Wibiral para
lecionar impressão. Após dois anos de funcionamento, o conselho da escola tomou
uma decisão em relação ao crescente número de mulheres estudantes. Na primeira
estimativa, Gropius esperava 100 homens e 50 mulheres, mas a constituição de
                                                                                                                         
25 . Gideon, Siegfried. Mechanization takes command. A contribution to anonymous history. New York: Oxford
University Press, 1970 [1948]
26 . Depoimento do aluno Alfred Arndt, citado por Madalena Droste. Droste, M./Bauhaus-Archiv für

Gestaltung. Bauhaus 1919-1933, Cologne, Taschen, 1990.


27 . Frampton, K. Modern architecture. A critical history. London: Thames and Hudson, 1992 [1980]; Tafuri, M.

& Dal Co, Francesco. Modern Architecture. Milano: Electra Editrice, 1986 [1976]; Curtis, William. Arquitetura
moderna desde 1900. Porto Alegre: Bockman, 2008.

  25  
Weimar garantia às mulheres liberdade irrestrita de estudo, ou seja, nenhuma
academia poderia barrar seu ingresso. Assim, em setembro de 1920, Walter Gropius
sugeriu ao conselho da escola que a seleção fosse mais rigorosa, dede o início,
especialmente no caso do sexo feminino, sobre-representado em termos numéricos, e
recomendou que não se fizesse com elas nenhuma (atividade experimental, que elas
fossem conduzidas diretamente para as oficinas de têxteis, com cerâmica e
encadernação (mas a oficina de encadernação de livros foi fechada em seguida) e em
1923 a decisão da escola era, em relação à cerâmica, de não admitir mulheres, “para
seu próprio bem e para o bem do ateliê”. E a nenhuma mulher deveria ser permitido
estudar arquitetura.

Temos assim um ponto de tensão e violência simbólica explícita: a produção


dessas mulheres era (des)valorizada como “feminina” ou “trabalhos manuais”
enquanto os homens temiam que essa tendência artesanal viesse a se fortalecer,
ameaçando aquele que era o objetivo final da escola – a produção arquitetônica, a
nova arquitetura, o grande edifício28. Ao aproximar as mulheres das técnicas têxteis e
da decoração, a Bauhaus estava mais próxima do mundo das academias de arte
tradicionais do que talvez fosse condizente com sua auto-representação de escola
renovadora, ou seja, levava por demais a sério sua illusio. E a agenda de atividades
das oficinas têxteis, impressa em 1921 pela professora Helene Börner incluía bordado,
crochê, acabamentos (como debruns, rendas e passamanarias) e macramê. Pouca
teoria, muito “ensaio e erro” e quando as aulas de têxteis cresceram a ponto de se
tornar oficinas, o professor de teatro, Oskar Schlemmer as atingiu com ironia: “Onde
houver lã encontraremos as mulheres, tecendo para passar o tempo”29. Mas há algo
além da visível – e nada improvável – misoginia de Schlemmer, uma vez que homens
e mulheres viam o trabalho de tecelagem como uma atividade naturalmente adequada
às mulheres, perpetuando assim uma divisão de trabalho característica das academias
no século XIX. Assim, ganha um especial sentido o discurso de Günta Stölzl,
professora de tecelagem que veio a se tornar uma importante artista nesse ramo:

A tecelagem é antes de tudo um campo feminino. Jogar com forma e cor, uma
acentuada sensibilidade com o material, a habilidade de sentir e adaptar
fortemente, mais rítmica do que pensamento lógico, tudo isso são
                                                                                                                         
28 . Droste, M. op. cit. pp. 38-40.
29. Droste, M. op. cit. p. 72

  26  
predisposições com as quais o caráter feminino é genericamente equipado, o
que tona as mulheres particularmente aptas a atingir grande criatividade no
campo da tecelagem. 30

Este texto, publicado no periódico Offset em 1926 não impediu que no mesmo
ano ela escrevesse ao governo de Dessau, para onde a escola havia se transferido,
condicionando sua permanência na Bauhaus a uma condição na qual sua posição de
líder do departamento de tecelagem fosse igual, em termos salariais, a dos condutores
dos outros departamentos. 31

Estes homens e mulheres trabalhavam imersos em uma compreensível


naturalização dos papéis de gênero, procurando ora reiterá-los, ora escapar aos seus
constrangimentos. Recentemente temos publicações de grande interesse sobre as
mulheres da Bauhaus e seu papel nos trabalhos da conhecida escola. Mas até então
valia muito da auto-representação esboçada por Walter Gropius e pelos outros
professores da emblemática escola.

Tudo que foi assinalado até agora poderia ser atribuído também a outros
arquitetos, seus grupos e seus parceiros. É pouco estudado o papel de Pierre Jeanneret
no ateliê de Le Corbusier, para não mencionarmos os tantos arquitetos do mundo todo
que por ali passaram. A estrutura de ateliê, aceita por grande parte dos pesquisadores
sem maiores perguntas, obscurece a participação dos colaboradores; a centralidade do
líder é visão êmica que migra para a bibliografia canônica32. Se Margarette Schütte-
Lihotzky é pouco conhecida além de sua cozinha, seu marido o arquiteto Wilheim
Schütte também é pouco ou nada estudado. Assim, a procura de nomes femininos
revela a premência da busca de outros nomes, dos arquitetos que muito construíram,

                                                                                                                         
30 . “Waving is primarily a woman’s Field. Play with form and color, and enhanced sensitivity to material,
the ability to feel and adapt strongly, more rhythmic than logical thinking are all predispositions with which
the female character is generally equipped, which makes women particularly able to achieve great creativity
in the field of textiles”. Stadler, M. & Aloni, Y. (Ed.) Gunta Stolz Bauhaus Master. Ostfilern, Alemanha: Hatje
Cantz Verlag, 2009, p. 87.
31 . Idem, p. 91.
32 . Assumo aqui a perspectiva do sociólogo norteamericano Howard Becker, para quem o trabalho

artístico, como toda atividade humana envolve cooperação e um grande numero de pessoas, sendo que o
trabalho dá mostras dessa cooperação. Contudo, se, no caso da arquitetura moderna (como para outros
casos, mas vamos ficar no que interessa) as avaliações repetem as visões dos praticantes, é preciso lembrar
que aquele que escreve e quando escreve afeta nosso julgamento a respeito do que é o trabalho em questão
e do que ele releva a respeito de quem o fez. Isso é importante na medida em que apreciamos e mesmo
julgamos o trabalho de modos diversos, mas também porque as reputações dos artistas são a soma dos
valores que atribuímos à sua obra. Ver Becker, H. S. Art worlds, Berkeley & Los Angeles: University of
Califórnia Press, 1982, p. 23.

  27  
daqueles que tiveram carreiras pouco analisadas e do que isso quer dizer para o
mundo do arquiteto e do ensino da arquitetura.

Onde chegamos com tais observações? No caráter de panteão da bibliografia


mais conhecida. Do “papel dos mestres”33 atribuído por Tafuri e Dal Co aos “mesmos
de sempre” a autores, guardadas as diferenças como Leonardo Benévolo, Kenneth
Frampton, William Curtis e Alan Colquhoun dentre outros que, ignorando debates
historiográficos externos à arquitetura – o feminismo, dentre outros –, elaboram as
estruturas narrativas de seus livros, muitas vezes hagiográficas, a partir de nomes,
enquanto as possibilidades – redes, obras, grupos etc. – são inúmeras. Não vamos
passar por todos eles, mas vale sublinhar, como exemplo, uma breve passagem do
Modern Architecture de Colquhoun:

The design of the individual apartments reflected the influence of new


concepts of domestic management, strongly promotes by the women’s
movement, which drew their inspiration largely from America (...). Erna
Meyer’s highly successful Der Heue Haushalt (the New Household, 1926) and
Grete Schütte-Lihotzky/s Frankfurt Kitchen design were based on Christine
Frederick’s Scientific Management in the Home of 1915. (...)34

Para além dos inúmeros méritos do livro citado35, temos um parágrafo para
três mulheres importantes no debate sobre a habitação moderna, funcionalista e
mínima. A mesma obra menciona de passagem a artista Varvara Stepanova no
capítulo sobre os construtivistas soviéticos e a inglesa Alison Smithson merece umas
poucas páginas, porém sempre referida como o casal Smithson, the Smithsons.

Talvez se possa atribuir à historia da arquitetura o que Pollock assinalou para a


história da arte:

Gender ideology was always-already at work in art history and its sustained
mythologies. Far from being gender-neutral and indifferent, museological art history
has been a powerful inscription of a self-reflecting, narcissistic, masculinist vision in
which men act and create and ‘woman’ is positioned as other, a resource for art, a
part of the world of nature, reproduction, and matter which masculine creativity
                                                                                                                         
33. No capítulo “The role of the masters” do Modern Architecture estes são Le Corbusier, Mies van der Rohe
e Frank Lloyd Wright.

34 Coulquhoun, Alan. Modern architecture. Oxford & New York: Oxford University Press, 2002, p. 165.
35 . As observações aqui apresentadas não representam uma ressalva historiográfica tout court aos autores
mencionados, mas a constatação da cegueira relativa dos mesmos ao que é externo ao debate arquitetônico,
com exceções pontuais. Uma análise da historiografia mais utilizada (em aulas, artigos e pesquisa em geral)
é tarefa necessária, mas não é o objetivo desta tese.

  28  
strives to master and reform in an activity – artistic creation – that makes (the) man.
Such processes occur at levels beyond individual consciousness, intent, or even
36
purposeful understanding.

William Curtis, em seu Arquitetura moderna desde 1900, dedica uma linha a
Schütte-Lihotzky, outra a Charlotte Perriand e algumas ao casal Smithson. A casa
californiana do casal Eames aparece como de Charles Eames – Ray Eames, co-autora
da casa e de tudo que é subsumido na expressão eameses, sequer é mencionada – e há
uma breve passagem sobre a casa de Eileen Gray no sul da França. No compêndio
Arte Moderna, de Giulio Carlo Argan, que dedica parte significativa de sua reflexão à
arquitetura, não há sequer uma citação às mulheres da Bauhaus, mas nos verbetes do
final do livro temos Walter Gropius, Lazlo Moholy-Nagy, Oskar Schlemmer e Paul
Klee. Em uma ilustração consta o nome de Aino Marsio ao lado do marido Alvar
Aalto – este sim que ganhou um verbete – e a única mulher, não arquiteta a receber
uma ficha foi Sonia Delaunay Terk: “Casou-se com [Robert] Delaunay em 1910,
criando com ele uma aliança indissociável de trabalho e vida. Sua pesquisa é paralela
à de Delaunay, mesmo que seu trabalho estenda-se além da pintura (...) para as artes
aplicadas. (...)”37.

Tais menções “em casal” nos conduzem a um subtema que é a parceria


amorosa e de trabalho em muitos desses casos: Varvara Stepanova e Alexander
Rodchenko, Alison e Peter Smithson, Lina Bo e Pietro Maria Bardi, Eileen Gray e
Jean Baldovici, Carmen Portinho e Affonso Eduardo Reidy, Grete Schütte Lihotzky e
Wilheim Schütte, Charles e Ray Eames, Louis Kahn e Anne Tyng, Aino Marsio e
Alvar Aalto, Janete Costa e Acácio Borsoy – a lista é quase incontrolável de tão
extensa. Tema tratado por Whitney Chadwick e Isabelle de Courtivron38 em relação
às artes plásticas e literatura, essas relações são ainda mais centrais na arquitetura,
visto que freqüentemente se realizam materialmente em um projeto de casa – e casa,
como já afirmou Beatriz Colomina é um lugar de experimentalismo e de
demonstração para o arquiteto. É preciso, contudo, lembrar que em numa divisão
casa-rua, a primeira é o domínio do privado e do feminino, daí a importância

                                                                                                                         
36. Pollock, Griselda. “The Missing future: MoMA and Modern Women”. Butler, C. & Schwartz, A. (Ed.)
Modern Women. Women artists at the Museum of Modern Art. New York, MoMA, 2010, p. 39.
37 . Argan, Giulio Carlo. Arte moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 660. O verbete dedicado a

Sonia é dois terços menos do que o anterior, dedicado a Robert Delaunay.


38 . Chadweick, W. & Courtivron, I. (eds.)Significant others. Creativity & Intimate Partnership. London: Thames

& Hudson, 1993.

  29  
crescente do tema da domesticidade nesta tese. Colomina fala em colaboração, tema
denegado pela ênfase na autoria, a seu (e meu) ver uma espécie de caixa preta da
história da arquitetura: colaboração é a história secreta dos arquitetos, a vida
doméstica da arquitetura.39

Se a mulher pode ser vista, nas sociedades urbanas, burguesas e ocidentais


como a responsável por um certo “processo civilizacional familiar”, a casa não deixa
de ser seu discurso, seja de adesão a esse papel, seja de uma retórica silenciosa. Se
isso faz sentido, temos uma trilha a perseguir quando temos a mulher profissional –
que nem por isso deixa de ser dona de e da casa – a projetar seus interiores, objetos a
interferir na organização e gestão desse espaço doméstico que é também um espaço,
digamos, formador.

São diversas as casas-manifesto resultantes de tais parcerias: além da Casa de


Vidro, residência do casal Bardi podemos mencionar a Casa Eames na Califórnia,
projetada e habitada por Charles e Ray Eames, mas duas delas merecem uma atenção
mais detida. A casa E1027 que a arquiteta e designer Eileen Gray projetou para ela e
seu amante, o arquiteto Jean Baldovici, e a Casa Schröder, resultado da parceria entre
o arquiteto holandês – do movimento neoplasticista – Gerrit Rietvelt projetou
atendendo a uma encomenda de Truus Schröder. No primeiro caso, a própria
denominação da casa propunha um jogo com os nomes de Gray e Baldovici e ele foi
um dos possibilitadores da interferência que Le Corbusier realizou na obra de Gray,
rejeitada pela autora e dona da casa40. O segundo é ainda mais interessante uma vez
que a comitente, viúva e irmã de uma das fundadoras do movimento feminista
holandês antecipou um programa de necessidades para uma casa onde viveria com
seus filhos, sem marido. As idéias montessorianas41 a respeito da educação das
crianças e sua relação com o espaço fizeram parte do projeto a ponto de Rietvelt

                                                                                                                         
39 . Colomina, Beatriz. “With or without you,” Butler, C. & Schwartz, A. (Ed.) Modern Women. Women artists
at the Museum of Modern Art. New York: MoMA, 2010, p. 218.
40 . Colomina, B. “Battle lines: E 1027. Renaissance and modern studies, volume 39, Issue 1: Space and Gender,

2009, PP. 95-105.


Disponível em http://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/14735789609366597?journalCode=rctc19,
última consulta em 15 de dezembro de 2016. Há diversas outras republicações deste artigo inspirador, em
coletâneas e uma versão em espanhol, idioma de origem da autora.
41 . De forma sintética, as ideias da médica e educadora italiana Maria Montessori (1870-1952) preconizam

liberdade e estímulo para o desenvolvimento das crianças. Seu princípio mais conhecido é o da auto-
educação, no qual a criança tem a interferência mínima e necessária dos professores, mesmo estando
sempre sob supervisão.

  30  
registrar o nome de Truus Schröder como co-autora e de posteriormente passar a ali
viver, com ela. Quando escreveu seu manifesto “Novo funcionalismo na arquitetura
holandesa”, Rietvelt já vivia com Truus42.

Dos trabalhos e trajetórias de Lina, Charlotte e Carmen, o objetivo inicial da


tese, desdobrou-se um tema inevitável: a domesticidade e o papel das usuárias de tais
propostas feitas por homens e/ou mulheres, o lugar da casa e suas marcas de gênero.
Além dos lugares das mulheres no campo da arquitetura, os lugares generificados no
interior das casas, e lugares generificados na estrutura da cidade. Redes, grupos,
parcerias, casas-manifesto onde também se vive: a própria ideia de movimento
moderno obscurece estas dimensões constitutivas de identidades, trajetórias e obras.
Houve (talvez ainda exista) uma divisão silenciosa e tácita na qual coube às mulheres
a revolução simbólica do espaço doméstico. Nas primeiras décadas do século XX o
espaço interior ainda herdava seus condicionantes das diversas modalidades de casa
do XIX e agenciar esse espaço, especialmente em casas e edifícios já construídos era
entrar no terreno das artes decorativas. Não por acaso, quando o trio Le Corbusier,
Charlotte Perriand e Pierre Jeanneret fazia projetos para o interior de suas casas –
como a Villa La Roche – chamavam esse trabalho de equipamentos da habitação.
Certamente esta distinção é bem mais do que mera minúcia semântica, se
consideramos que em 1925 Le Corbusier publicou seu L’art décoratif aujourd’hui
atacando a exposição art déco de Paris da qual havia timidamente participado com
seu pavilhão Esprit Nouveau. Não é mero detalhe terminológico – nunca é –se
sabemos que ele próprio no começo de sua carreira fez alguns projetos de decoração
dos interiores de casas do cantão suíço onde nasceu, assim como Walter Gropius
decorou – a palavra é esta – sua casa Sommerfeld projeto com Adolf Meyer de 1920-
2. A própria Unión des Artistes Modernes (UAM), cizânia dos salões de artes
decorativas de Paris, foi criada em 1929 por nomes como Corbusier e Jeanneret ao
lado do onipresente Robert Mallet-Stevens – este sim, o arquiteto moderno bem
sucedido na exposição de 1925 – , Eileen Grey, Charlotte Perriand e nomes mais
ligados aos salões de decoração como George Djo-Bourgeois e René Herbst. Daí em

                                                                                                                         
42. Friedman, Alice. Women and the making of the modern house. A social and architectural history. New Haven:
Yale University Press, 2006.

  31  
diante a decoração perdia seu nome, subsumido no adjetivo “moderno”, se
masculinizava de vez, deixando o passado no passado e, talvez, para as mulheres.

Lina Bo Bardi escreveu e muito sobre casa e decoração, mesmo sem usar este
termo. Em seus primeiros anos de formada em Milão, publicou diversos artigos sobre
arredamento, espaços internos, geralmente voltados a demandas práticas como “de
que modo usar móveis modernos em uma casa antiga”. Lina foi trabalhar, sem
remuneração, com o polivalente arquiteto Giò Ponti: editor, autor de edifícios
importantes, designer e promotor do artesanato italiano, seu escritório dedicava-se,
dentre tantas tarefas, à organização das Trienais de Artes Decorativas. Um projeto de
decoração de interiores, realizado em parceria com Carlo Pagani chegou a ser
executada em 1942. A revista Quaderni di Domus, que Lina fundou – também com
Pagani – em 1945, dedicava-se aos problemas da casa moderna – da porta para
dentro, ao que tudo indica – e nela eram publicado os melhores exemplos, italianos ou
não, de mobiliário e equipamento doméstico43. Em 1946, Lina viajou por toda a Itália
pesquisando artesanato com a finalidade de organizar uma exposição de têxteis para
cortinas e estofamentos para uma empresa italiana, a Rima e instalada na São Paulo
dos anos 1950 fez muitos projetos de decoração de interiores, alguns para completar,
“vestir” os espaços modernos projetados por seus colegas arquitetos, como Vilanova
Artigas e Rino Levi.44

Em uma revista que fundou na Itália em 1945 com Bruno Zevi – A, ou Cultura
della Vitta – Lina propunha um jogo que ensinava o leitor a usar a casa e os objetos
modernos. Tratava-se sempre da escolha de um copo, um relógio doméstico, um
adorno. A resposta “errada” era severamente criticada como falta de visão funcional e
estética. No mesmo periódico, que durou apenas nove meses, ela editou um artigo a
respeito da liberdade feminina no século XX, liberdade solucionada por meio de
equipamento doméstico e de uma cozinha americana. E em 1958, já radicada no
Brasil, escreveu um interessante verbete sobre a casa, publicado em uma
convencional Enciclopédia da Mulher, do qual trataremos no terceiro capítulo.

                                                                                                                         
43 . Campello, Maria de Fátima M. B. As moradas da alma. Dissertação de mestrado. EESC-USP São Carlos,
1997, p. 22.
44 . Rosatti, Camila G. Casas burguesas, arquitetos modernos: condições sociais de produção da arquitetura paulista entre

os anos 1950 e 1970. Tese de doutorado em Sociologia, FFLCH-USP, 2016.

  32  
A trajetória de Charlotte foi inteiramente nas artes decorativas, ainda que
culminando em sua participação em um projeto arquitetônico e urbanístico para uma
estação de esqui, Les Arcs, já no final de sua vida. Durante os dez anos em que
trabalhou com Le Corbusier e Pierre Jeanneret, foi responsável pelo equipamento
interior de todas as construções da dupla de arquitetos. Em 1937 foi convidada a se
retirar do ateliê, por sua presença disruptiva, um elemento perturbador – foi esta a
justificativa de Le Corbusier. Até que ponto suas opções políticas, a proximidade
afetiva que ela, divorciada de seu primeiro casamento, mantinha com Jeanneret teriam
prevalecido nessa decisão? O que interessa aqui é que ela atuou nos anos de conflito
simbólico entre o campo da art-déco para o da arquitetura moderna e seus
equipamentos de habitação, e sua trajetória testemunha um esforço para migrar de um
ambiente mais acadêmico e comercial para uma vanguarda aparentemente
desinteressada, mas quando lá chegou esta já havia decretado o rappel à l’ordre e
talvez tais fronteiras não fizessem mais tanto sentido. Voltou a trabalhar com Le
Corbusier depois da guerra, respondendo pelos interiores de diversos projetos, como a
Unidade de Habitação de Marselha e casas da Cidade Universitária de Paris.

Carmem Portinho foi a primeira mulher a se formar em urbanismo no Brasil,


na Universidade do Distrito Federal em 1939 apresentando uma monografia intitulada
A construção da nova capital do Brasil no Planalto Central, uma cidade exatamente
onde anos depois foi instalada a capital Brasília.Trata-se de um texto complexo e
elaborado que em determinado momento chega a minúcias dos edifícios e dos
apartamentos da cidade, pensando no abastecimento de alimentos e mesmo na
limpeza da casa. Curiosamente conclui que no apartamento da futura capital a dona de
casa poderá se arranjar com apenas uma empregada doméstica. Prestou imensa
atenção ao espaço do apartamento brasiliense, chegando a falar da dona de casa, de
empregados domésticos, do “problema dos empregados”. A chave, claro, estaria em
um projeto funcional, uma cozinha equipada e serviços de lavanderia realizados por
profissionais.

Em 1944, Carmen se candidatou a uma bolsa de estudos do Conselho


Britânico. Presente no Reino Unido no Dia da Vitória, passou ali uma temporada
dedicada ao estudo da habitação social, tema caro aos ingleses nesse período de
reconstrução. Das reflexões dessa virada do pós-guerra, assim como da experiência
acumulada no estudo para uma cidade, mas dessa feita em parceria com seu

  33  
companheiro, o arquiteto Affonso Eduardo Reidy resultou no conjunto habitacional
conhecido como Pedregulho, no Rio de Janeiro. É dessa pioneira do feminismo no
Brasil a interferência que fez com que o conjunto tivesse uma lavanderia coletiva,
para resguardar o trabalho feminino de uma dupla jornada. Pedregulho tinha uma
dimensão urbanística, com escola, lavanderia, área de esporte, piscina, assim como
por sua densidade populacional.

Finalizando, o que é possível pensar a partir de tudo isso? Mais uma vez, não
se trata apenas, embora essa seja uma tarefa incontornável, de catalogar as mulheres
presentes em ateliês, escritórios, parcerias, as esposas silenciosas, as amantes
obscurecidas. Trata-se, a meu ver, de fazermos perguntas renovadas à documentação
conhecida e àquela que as novas indagações podem demandar. Trata-se também de
não tomarmos como resposta e explicação as falas dos próprios arquitetos, de não
deixarmos migrar para os estudos suas idiossincrasias, visões de mundo, disputas por
hegemonia no campo. Trata-se de rever hierarquias entre artes menores e maiores,
entre escalas mais e menos relevantes.

Podemos talvez usar o conhecido slogan de Gropius, “da colher à cidade”


contra ele e a nosso favor. Se tudo pode ser tarefa do arquiteto, talvez devamos
examinar todas as nuances e espaços intersticiais entre a escala da colher, o design
onde tão bem Charlotte atuou, e a escala da cidade, onde Carmen começou e, mesmo
em um lugar “secundário”, prosseguiu. Afinal, sabemos que as cidades ficaram para
os arquitetos e as colheres, xícaras, tapetes, colares e cadeiras para as arquitetas.

O que significa, no limite, a ambição de contribuir para uma revisão de parte


da história canônica da arquitetura moderna, masculina, ocidental e centrada em
“mestres” – jamais em grupos, campo, comunidades de sentido. E se abrimos a
pesquisa, na contramão do consenso e em sintonia com trabalhos recentes, se saímos
do domínio quase renascentista (que é uma potente construção do campo, mas nem
por isso menos constructo) do gênio e seus satélites, podemos chegar a todas as
pontas desse processo, inclusive o cliente e o usuário final e os usos e significados
que este confere ao projeto arquitetônico.

Mas para tal, é preciso retroceder um pouco e verificar um debate paralelo à


construção dos cânones com o qual nos debatemos. Debate que coincide
temporalmente com a voga pós-moderna na arquitetura sendo que esta, curiosamente

  34  
atacava seus princípios (racionalismo, funcionalismo), preconizava uma maior
liberdade de escolha, mas pouco incidiu na construção discursiva do cânone. Ainda
assim, é sempre bom lembrar que uma das primeiras censuras contundentes do
urbanismo funcionalista, veio de uma mulher, a jornalista canadense Jane Jacobs, que
curiosamente não menciona gênero ou mulheres em suas análises. E o impactante
livro Aprendendo com Las Vegas foi escrito a três vozes, sendo uma delas a da
arquiteta sulafricana Denise Scott-Browm. As revisões que trataremos a seguir pouco
ou nada tem a ver com essa liberdade estilística mercadológica que caracterizou esse
pós-modernismo que hoje parece datado, mais do que aqueles que foram seus alvos.
Mas é preciso reconhecer que talvez as brechas por eles criadas, especialmente a
critica ao grande relato ou grande narrativa, tenham aberto brechas, sendas para
estudos que miraram personagens “secundários”e realizações do modernismo
arquitetônico sob uma ótica generificada.

O DEBATE BIBLIOGRÁFICO: UMA “’VIRADA” FEMINISTA?

“Imagine a classless society run by men? MS, Heresies 1, p. 3

Se do que denominei bibliografia canônica – é o cânone por escrito e reproduz


o cânone do campo – não se pode extrair, como vimos pelos parcos exemplos acima,
menções a mulheres arquitetas (assim como outros temas e subtemas com potencial
de subversão do cânone), uma série de debates, com freqüência conduzidos por
mulheres, fora dos grandes manuais aspirantes a grandes sínteses, todos escritos por
homens, começou a emergir nos anos 1970.

O exame de tais debates conduziu a pesquisa a dois outros domínios: as


mudanças estruturais na esfera da domesticidade e, dentro disso, a constituição de um
olhar moderno, um gosto moderno, uma perspectiva na qual móveis retos e máquinas
metálicas passaram a fazer sentido equipando qualquer casa contemporânea de classe
média pra cima em qualquer lugar do mundo. O que remete a uma certa colonização
da vida cotidiana. A preocupação de fundo que conduz esta pesquisa, pode-se dizer
que nasceu com o trabalho de Henri Lefebvre, especialmente La Critique de La Vie
Quotidienne, de 1958. De certo modo, essa perspectiva marxista sobre o cotidiano
como lugar (também) de radicalismo precedeu os tipos de feminismo que emergiriam

  35  
a partir dos anos 1970 e é onde nossa conversa começa, com a publicação da revista
norteamericana Heresies, apreciada dentro do debate de uma arquitetura feminista, ou
ao menos uma história que considere as mulheres, um marco fundador.

Escrita e editada pelo coletivo feminista Heresies Collective, criado em 1976


em Nova York, publicada de modo semelhante a tantos jornais alternativos do
momento, a revista Heresies: a feminist publication on art and politics ( Fig. 13) foi
criada em 1977 e se apresentou como devotada ao exame da arte e da política a partir
de uma perspectiva feminista, desejando que a publicação fosse um estímulo ao
diálogo entre a política radical e a teoria estética, que encorajasse a história da femina
sapiens e gerasse energias criativas entre as mulheres. Nesse coletivo escreviam
feministas, sendo algumas delas socialistas, lésbicas ou anarquistas. O primeiro
número trazia questões sobre feminismo e socialismo, ou a possibilidade de um
marxismo feminista, poesias, um conto bilíngue (inglês-espanhol), ensaios,
fotografias, um artigo da historiadora da arte Carol Duncan sobre arte erótica. Havia
também indicações bibliográficas ao final da revista, das inequívocas Simone de
Beauvoir e Alexandra Kollontai até Angela Davis e, mais especificamente vinculada
ao tema da revista, a indicação do texto pioneiro de Linda Nochlin.

Publicado em 1971 na ArtNews o artigo “Why have there been no great


women artists?”45 é fundador desse debate. Faz uma pergunta direta – ou melhor, uma
constatação em forma de pergunta – que a autora sugere interessar não apenas às
mulheres, mas ao momento auto-consciente de diversas disciplinas: “A feminist
critique of the discipline of art history is needed which can pierce cultural-ideological
limitations, to reveal biases and inadequacies not merely in regard to the question os
women artists, but in formulation of the crucial question of the discipline as a
whole.”46 Uma primeira reação a esta percepção foi listar exemplos de mulheres
artistas, a reabilitação de alguns nomes (em alguma medida todo trabalho de arte e
gênero reabilita, busca fazer algum tipo de “justiça” e esta tese não escapa desta
armadilha), a redescoberta de artistas mulheres.

                                                                                                                         
45 . Disponível em http://deyoung.famsf.org/files/whynogreatwomenartists_4.pdf, acessado pela última
vez em 18 de setembro de 2016.
46 . P. 3. Grifos do original.

  36  
Contudo, pergunta-se Nochlin, por que não ocorreu o mesmo na literatura? Se
não temos notícia de um Shakespeare no feminino – como não temos um
Michelangelo – há um numero expressivo de escritoras notáveis sem que sua obra
revele traços essenciais de “feminilidade”, ao menos não necessariamente. Nochlin
assume que arte pouco ou nada tem com expressão subjetiva de emoções. Assim, a
questão que importa recai nas condições de produção, assim como de transmissão dos
saberes artísticos, nas academias, o que conduz inevitavelmente às técnicas de ensino
de desenho e as tabus que cercam as aulas com modelo vivo, tema que para a arte
brasileira do século XIX foi magistralmente tratado pela socióloga Ana Paula
Simioni.47

O número 4 da revista Heresies tratou da política da estética e da relação


feminina com artes tradicionais. Dos diversos artigos e ensaios, vale destacar um da
italiana Teresa de Lauretis, menos por falar das mulheres importantes (e pouco
mencionadas) da vida de Antonio Gramsci e mais por lançar aquela que se tornou um
nome conhecido na área de estudos de gênero. Também um artigo sobre trabalhos
têxteis, tradicional domínio feminino, comparando contextos diversos e se
perguntando de onde vem a definição do que é grande arte e artes menores, tema de
uma política da estética. E Linda Nochlin, com um artigo sobe mulheres e artes
decorativas. É possível que este tenha sido um dos primeiros artigos a falar do papel
das artes têxteis em uma pesquisa formal rumo à abstração, tocando na divisão de
trabalho que colocou as artistas da Bauhaus – Anni Albers, Gunta Stölz, Otti Berger e
Benita Koch-Otte, dentre outras – assim como Varvara Stepanova, Sophie Taeuber-
Arp e especialmente Sonia Delauany em comparação a outros artistas, todos homens,
que faziam experimentações comparáveis, mas utilizando a tela como suporte. Em
suas palavras, a tentativa de se avaliar as contribuições das mulheres artistas às artes
decorativas depende muito da importância relativa da grande arte versus as artes
aplicadas. Se considerássemos a pintura como uma forma mais avançada de expressão
artística, chegaríamos à conclusão precipitada de que Sonia Delaunay se sacrificou ao
deixar suas telas monumentais para produzir tecidos e moda enquanto a seu marido

                                                                                                                         
47 . Simioni, Ana P. Profissão Artista. Pintoras e escultoras acadêmicas brasileiras. São Paulo: EDUSP, 2008.

  37  
Robert Delaunay foi permitido continuar se apresentando como um pintor e, talvez
mais importante, como um teórico da arte abstrata.48

O número trouxe também um artigo sobre o edifício das mulheres na


Exposição Universal de Chicago de 1892 e outro sobre as irmãs Frances e Margaret
McDonalds, designer escocesas – a última, casada com Charles Rennie Mackintosh. E
um artigo também pioneiro sobre as mulheres da Bauhaus, escrito pela artista plástica
Martha Keller49.

O numero 11 da revista se intitulou “Making room: women and architecture” e


é quase um marco zero no debate dessa relação. Abrindo espaço, lançou perguntas
que aparentemente ficaram sem resposta adequada por pelo menos duas décadas. O
próprio editorial da revista lança pistas para esse silêncio ao relatar que o tema gerou
dúvidas no próprio coletivo, ceticismo entre feministas e a constatação de que
arquitetura interessava apenas aos que podiam pagar por ela fizeram parte dos óbices.
Contudo, a idéia de “outro”, tal como entendida por Simone de Beauvoir podia ser
pensada para a arquitetura, cuja história e prática ignorou “as vidas, necessidades,
aspirações, trabalho e criatividade da mulher.”50 O mesmo editorial admitia não
conseguir enfrentar a questão a respeito (ou não) de possíveis diferenças na
abordagem feminina em relação ao projeto e à carreira. Contudo, ao falar de Lilly
Reich e Eileen Grey, sugere que elas tinham em seus trabalhos uma preocupação com
o conforto e com os possíveis usos que superava as características formais dominantes
do chamado Estilo Internacional. Em outras palavras, uma atitude diferente no
processo projetual. Como nos números anteriores, pesquisadoras que se tornariam
importantes para o tema aparecem bastante jovens na revista, como Gwendolyn
Wright, que nesse numero ainda não tinha defendido seu doutorado e publicado seus
primeiros livros. Na revista, Wright publicou um artigo, “The woman’s
Commonwealth, a nineteenth-century experiment”, uma certa utopia que mais tarde
Dolores Hayden classificaria como entre o comunitarismo socialista e o feminismo

                                                                                                                         
48 . “Excerpts from women and decorative arts”. Heresies n. 4, 1978. Trata-se de uma versão condensada de
texto publicado em Ann Sutherland Harris e Linda Nochlin, Women Artists: 1550-1950.
49 . Por pioneirismo quero dizer que entre essa publicação dos anos 1970 e algumas publicações sobre as

mulheres da Bauhaus quando do centenário da criação da escola alemã, aparentemente houve um silêncio a
esse respeito, com publicações enfatizando sobretudo o papel dos arquitetos e pintores.
50 . Editorial, Heresies 11, p. 2.

  38  
doméstico51. Dolores Hayden, nascida em 1945 e já professora da universidade da
Califórnia em Los Angeles (UCLA), participou desse numero com o artigo “The
feminist paradise palace”, sobre a ativista política Charlotte Perkins Gilman (1860-
1935), cujo artigo “The passing of the home in great American cities”, de 1904, foi
também republicado na revista.

Ou seja, de Linda Nochlin a Wright e Hayden, a revista alternativa fez parte


da construção de uma preocupação feminista interdisplinar que posteriormente viria a
florescem em vertentes diversas, mas que naquele momento já articulava gênero e
domesticidade, carreiras femininas, lugares de mulher em mundos profissionais etc.
Cozinhas e sua história, assim como eletrificação da casa são também temas. Há uma
tradução de uma entrevista com Eileen Gray de 1929 (publicada originalmente na
revista L’Architecture Vivante) e um artigo, certamente um dos primeiros sobre a
designer alemã Lilly Reich, de autoria de Deborah Dietsch, que toca nas parcerias nas
quais o crédito das obras foi para o parceiro masculino, a personalidade dominante –
no caso, o arquiteto Mies van der Rohe.

Duas coletâneas importantes foram publicadas, nos Estados Unidos e na


Inglaterra, em 1989. A primeira, organizada por Ellen Perry Berkeley e Matilda
McQuaid (que mais tarde viria a ser a autora da primeira monografia conhecida sobre
Lilly Reich) recupera mulheres arquitetas desde a que é tida como a pioneira, Louise
Blanchard Bethune, que em 1888 se tornou membro do American Institute of
Architects, até um depoimento de Denise Scott-Brown (Zâmbia, 1931) sobre os
impasses e as dificuldades de ser casada com um arquiteto do star-system, Robert
Venturi: um star-system que tem o escritório como uma pirâmide e o arquiteto em seu
topo, e cujo sexismo a descreve como a escriba, datilógrafa e fotografa de seu marido.
Em suma: “The architectural prima donnas are all male.”52 A presença de Denise
Scott-Brown (Fig. 14) na coletânea é relevante se sabemos que em 1991 seu marido e
sócio Robert Venturi ganhou o Premio Pritzker, que os arquitetos julgam o Nobel da
arquitetura (eu diria que é mais um Oscar). Curiosamente, o prêmio para o escritório
Venturi, Scott-Brown and Associates foi para ele que, ao receber a notícia por
                                                                                                                         
51 . Hayden, Dolores. The grand domestic revolution. London, England & Cambridge, MA: The MIT Press,
1981, p. 49.
52 . Scott-Brown, Denise. “Room at the top? Sexism and the Star System in Architecture”. Ellen Perry

Berkeley e Matilda McQuaid (Ed) Architecture. A place for women. Washington & London: Smithsonian
Institute Press, 1989.

  39  
telefone teria dito: “What about Denise?”. Em 2013 um grupo de estudantes da escola
de arquitetura de Harvard iniciou uma petição pela correção do prêmio, que resultou
em nada e esse tema tornou-se um ponto sensível a cada nominação do Pritzker.53

A segunda coletânea do mesmo ano, organizada por Judy Attfield e Pat


Kirkham se intitula A view from the interior. Feminism, women and design. Traz
artigos menos centrados nas trajetórias de arquitetas e designers e levanta questões
como maternidade, divisão sexual do trabalho, eletrificação da casa e arquivos de
mulheres arquitetas.

Fundado em 1986 e editado pela MIT Press, Assemblage: a critical Journal of


architecture and design culture contou com autoras como Françoise Choay e Beatriz
Colomina, dentre scholar da chamada Ivy League. Totalmente diferente de Heresies,
apor ser muito institucional e publicada pelo MIT, ainda assim tinha a intenção de ser
um espaço para discursos contrários ao maistream. Foi encerrada em 2000. Em texto
publicado em 1996, Mary McLeod recupera o papel de revistas como ANY (que
funcionou entre 1993 e 2000) e Assemblage, e mais, assinala de que modo a noção de
heterotopia de Michel Foucault impactou os estudos da arquitetura. Foucault lançou
esta noção em conferencia proferida no Cercle d’Études architecturales em 1967,
mas autorizou sua publicação apenas em 1984. O artigo “Des espaces autres”54 versa
sobre espaços como feixes de relações, como os lugares de passagem ou de repouso,
mas tem seu foco em dois tipos de espaço: as utopias e as heterotopias. Irreais, utopias
são a própria sociedade aperfeiçoada, geralmente por meio de analogia direta ou
invertida. Há contudo espaços, lugares reais e efetivos, espécies de utopias realizadas,
“alocações absolutamente outras”, espelhos que o filósofo denominou heterotopias.
Bordeis, colônias, barcos, prisões: esses “outros” espaços impactaram autores como
Anthny Vidler. Segundo McLeod, à conferência de 1967 falta o rigor costumeiro de
Foucault e aponta que na listagem os possíveis espaços outros – como prisão ou asilo
– faltou o lugar de trabalho, a casa, o shopping center, o parque de diversões, a loja de
departamento e outros espaços nos quais mulheres encontraram não apenas opressão
como também conforto, autonomia, segurança e em alguns casos, liberdade. De todo

                                                                                                                         
53 . Em 2015, no congresso Matrices. Gender and Architecture, a arquiteta Martha Thorne, do conselho diretivo
do Pritzker, foi duramente inquirida pelas participantes do encontro.
54 . “De espaços outros”, disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-

40142013000300008, última consulta em 26/09/2016.

  40  
modo, ela sugere que o impacto da obra de Foucault (assim como de Derrida) nos
meio acadêmicos norteamericanos pode ter encorajado arquitetos e seus teóricos a
pouco explorar outros interstícios entre espaço e poder, como tudo que diz respeito à
vida cotidiana, tema que como já notamos foi desenvolvido por Henri Lefebvre. E
como ainda não tivemos a oportunidade de assinalar, retomado por Michel de Certeau
nos anos 1980. Lefebvre e Certeau pouco exploraram a tirania e o controle dos
espaços cotidianos, e sim sua possibilidade de liberdade e diversidade. Na leitura que
feministas norteamericanas fizeram de Certeau, “outro” conduz ao que fica fora da
vida cotidiana e potencialmente também ao que nela cabe.

Mary McLeod é uma autora central para esta tese, o que justifica a atenção
conferida a seu ensaio, publicado na coletânea The sex of architecture55. O mesmo
volume republicou o disruptivo ensaio “Battle Linas: E 1027” de Beatriz Colomina e
uma resposta ao mesmo por Sylvia Lavin. Dentre outros subtemas, como a
colonização, o norte da África e a idéia antropológica de troca de presentes, Colomina
explorou a agência masculina de Le Corbusier (sim, um dos mestres da bibliografia
canônica) e sua desconsideração ciumenta, que não deixava de ser uma consideração
excessiva às avessas pelo trabalho de Eileen Gray.

Os dilemas recentes do premio Pritzker apos a premiação da arquiteta iraniana


Zaha Hadid (Bagdá, 1950 – Miami, 2016) em 2004 e os protestos tardios pela não
premiação de Denise Scott-Brown mostram que, quatro décadas apos a publicação da
primeira Heresies, o lugar da mulher na arquitetura ainda é um tema candente.
Certamente, guardadas as distinções disciplinares, posa valer para a arquitetura o que
Mariza Correa observou para a antropologia:

O debate sobre as relações difíceis entre o feminismo e a antropologia não e, assim,


apenas uma atualização das lutas femininas da década de 70 pela conquista de
direitos iguais: trata-se agora de por em questão a própria tradição da disciplina ,
constituída como um corpo canônico (masculino) de textos, cuja autoridade e
56
precedência vem sendo assegurada através do ensino há algumas gerações .

                                                                                                                         
55 . Agrest, D., Conway, P. & Weisman, L. K (eds). The sex of architeture. New York: Harry N Abrams, 1996.
56 . Correa, M. Antropólogas e antropologia. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2003, p. 186.

  41  
CAPÍTULO II

CHARLOTTE PERRIAND E A CILADA DOS GÊNEROS: METAL, MADEIRA, ARQUITETURA E


ARTES DECORATIVAS.

De certo modo, a designer Charlotte Perriand vem sendo redescoberta nas três
últimas décadas. Mary Mc Leod, uma das responsáveis pelo interesse acadêmico
atual, comenta que até o final dos anos 1970 ela só era conhecida por um pequeno
círculo de arquitetos franceses e pesquisadores de Le Corbusier. Nesse momento não
havia tanta atenção – jornalística, acadêmica e comercial – para o mobiliário dos anos
1950, tampouco publicações sobre seu colega arquiteto e colaborador Jean Prouvé.
Em 1985 sua trajetória e obra foram tema de uma grande retrospectiva no Musée des
Arts-Décoratifs de Paris, intitulada Charlotte Perriand un art de vivre e em 1998
tivemos uma exposição no Design Museum de Londres. Seria exagero falarmos em
um reconhecimento tardio, mas esta voga coincidiu com a publicação de sua
autobiografia Une vie de création57, de 1998 e seu falecimento em 1999. Em 2005,
foi a vez do Centre Georges Pompidou realizar uma extensa retrospectiva de sua obra
que ocupou boa parte do Musée National d’Art Moderne, no sexto andar do edifício,
por quatro meses de intensa visitação. Em 2010 o Museu do Design de Zurique
realizou uma exposição mais recortada, enfatizando seu ativismo e suas fotografias,
além de seus projetos de mobiliário.

As razões dessa relativa invisibilidade ao longo de sua carreira, assim como da


evidência posteriormente construída podem ser de ordem diversa, mas defendo que
tenha estreita relação com o crescente culto à domesticidade que o ocidente
globalizado experimenta há pelo menos duas décadas, talvez o outro lado da
propalado declínio do espaço público. De qualquer modo há no momento um olhar
mais acurado – não apenas dos pesquisadores, mas de revistas comuns e do mercado –
para os objetos domésticos classificados como “de design”. Além disso, nos anos

                                                                                                                         
57 . Ver resenha 089.1 de março de 2009, Resenhas Online, Vitruvius. Disponível em
http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/08.089/3040, última consulta em 01 de
fevereiro de 2017.

  42  
1990 os projetos de diversos móveis dos anos 1920/30 tornaram-se de domínio
público, podendo ser comercializados por qualquer fabricante. Não por acaso tais
temas vieram à tona nesse momento, quando debates sobre autoria, trabalho conjunto
em ateliê e temas correlatos já não mais diziam respeito a royalties – embora
comercialmente ainda exista uma bizarra discussão a respeito do objeto industrial
“autêntico”, o que pode inclusive sugerir um conluio de posturas acadêmicas e
interesses do mercado. Coincidência ou não, foi nessa circunstância que Charlotte
Perriand escreveu sua autobiografia, tornando pública sua versão de alguns fatos, sua
participação de diversos episódios que são parte da história, ou melhor, das histórias
da arquitetura e do design modernos. Da perspectiva da história intelectual, a atual
notoriedade remete também a uma movimentação no debate entre feminismo e artes
de modo geral, já tratado na apresentação desta tese: designers e parceiras de notórios
arquitetos designers ganharam visibilidade acadêmica.

Não se trata de uma visibilidade tardia peculiar. A irlandesa Eileen Gray


(1878-1976) também logrou seu maior reconhecimento pouco tempo antes de seu
falecimento. Nas palavras de um estudioso de sua obra e trajetória, “quatre ans avant
sa mort, Eileen Gray devint célèbre”58. Os últimos anos dessas vidas de artista
coincidiram com revisões diversas, inclusive do legado modernista. No caso de Gray,
sua evidência alcançou não apenas seu mobiliários – que como o de Perriand, é
vendido em “réplicas” e “originais” no mundo todo – mas incluiu sua arquitetura. A
década de 1970 assistiu a uma revisão feminista da história da arquitetura,
especialmente nos Estados Unidos e Inglaterra. Contudo, mais do acrescentar novos
nomes femininos ao panteão – masculino – da história da arquitetura, é preciso propor
uma história levando em conta uma perspectiva de gênero. Tratar algumas dessas
mulheres como outsiders, se sua obra em menos de um século tornou-se o que há de
estabelecido, tampouco avança. Ao contrário de Perriand, que teve trabalho entre
1938, quando deixou o ateliê de Le Corbusier,59 e sua descoberta na virada dos 1960

                                                                                                                         
58Michel Raynaud, citado por vários autores que estudam a designer.
59 . Em 1940 ela foi convidada pelo Ministério da Indústria e Comércio do Japão para trabalhar como
conselheira para assuntos de artes industriais. Entre 1943 e 1946, morou na Indochina. De volta à França,
teve um recomeço difícil mas refez aos poucos sua rede de relações e em 1950 trabalhou novamente com
Le Corbusier no protótipo da cozinha da Unité d’Habitation de Marselha e no ano seguinte criou a seção
Formes Utiles para o Salon des Arts Menagers, decorou um quarto de estudante na Casa da Tunísia da Cidade
Universitária parisiense em 1952. Entre 1955 e 91974, trabalhou com Jean Prouve e o mobiliário criado a
quatro mãos foi representado pela Galerie Steph Simon, que ficava em Saint German des Prés. Residiu de

  43  
para os 1970, Eileen Gray não teve clientes, tampouco reconhecimento por seu
trabalho anterior senão às vésperas de sua morte.60

Em comum, a irlandesa Eileen Gray e a francesa Charlotte Perriand não


possuíam habilitação formal em arquitetura. Gray, que estudou sozinha, aprendeu
com dois amigos-professores: seu namorado Jean Baldovici e a arquiteta polonesa (ou
russa) Adrienne Górska (1899-1969), que foi membro da Union des Artistes
Modernes (UAM), era amiga do influente arquiteto Robert Mallet-Stevens e, last but
not least, irmã da conhecida pintora Tamara de Lempicka (nascida Maria Górska).
Diferente de Gray, o aprendizado de Perriand foi formal e informal, como veremos:
formal e prático no que tange as artes decorativas, e com as ambíguas relações de
prática e aprendizado no ateliê de Le Corbusier, no que diz respeito à arquitetura.

Neste capítulo trataremos apenas dos primeiros anos da carreira de Charlotte


Perriand. Embora ela tenha trabalhado até o final de sua vida, estes primeiros anos
parecem especialmente interessantes por permitirem capturar tensões internas aos
campos da arquitetura moderna e artes decorativas. São também os anos em que cela
trabalhou com Le Corbusier e Pierre Jeanneret.

FORMAÇÃO EM TEMPOS DE TRANSIÇÃO

Comme toutes les filles, ma tante brodait les mouchoirs, les


tourchons, les draps de lit, les foulards, les vêtements – tout – et
même les números qui tenaient lieu d’inentaire.61

Charlotte Perriand nasceu em Paris em 1903, filha única de um alfaiate e uma


modista, e cresceu nas redondezas do Marché Saint-Honoré, lado direito do rio Sena,
onde seus pais residiam e trabalhavam, absorvendo o espaço social da alta-costura da

                                                                                                                         

modo intermitente no Brasil na década de 1960. Entre 1967 e 1982, participou da equipe que construiu a
estação de inverno Les Arcs, na Savoia.
60 . Segundo Walker, a arquitetura de Gray foi exibida pela primeira vem na Inglaterra em 1972-3. Walker,

Lynne. “Women architects”. Attfield, J & Kirkham, P. (Eds) A view from the interior. Feminism, women and
design. London: The Woman’s Press, 1989, p. 90.
61 . Perriand, C. Une vie de creátion, Paris : Odile Jacob, 1998, p.9.

  44  
perspectiva do pequeno artesão.62 Em cada andar do prédio onde foi criada, que ela
revelou/recordou em suas memórias, trabalhava e morava um artesão: costureiro,
chapeleiro, artífices que lidavam com plumas e couro, modistas e aprendizes. Seu pai
cortava tecidos para a respeitada alfaiataria masculina Cumberland; sua mãe era
especialista na confecção de coletes de piquê branco que eram usados por homens em
recepções de gala. Essas evocações de Charlotte, aliadas a visitas ao mercado Les
Halles para pedir as frutas não vendidas para fazer geleia63, testemunham a posição
social remediada de sua família, assim como a presença de pequenos trabalhadores
sem muitos recursos no centro de Paris, que ali permaneceram mesmo depois da
reforma do barão Haussmann. O início do século XX foi, nesse sentido, um período
de transição tanto da cidade e seus usos como dos pequenos ofícios que ela abrigava.
Já nas últimas décadas do século XIX, notou T.J. Clark, apesar de todas as alterações
oriundas do “bota abaixo” que deu lugar aos elegantes bulevares, Paris ainda era uma
cidade de trabalhadores, com mais homens ganhando a vida na pequena indústria do
que no comércio. Isso nos remete ao universo desses pequenos artesãos, a atividades
feitas em forjas e oficinas com poucos trabalhadores, a gráficos, cortadores de vidro,
alfaiates, cinzeladores, sapateiros etc, em suma, a atividades tradicionais. O contexto
da indústria era o quartier.64

Ao mesmo tempo que a Paris haussmaniana resguardou parte do espaço social


das manufaturas e do pequeno comércio no centro, havia outros conflitos em curso: o
consumo acentuado de bens de decoração e vestimenta reservava à mulher, como
testemunham os populares escritos dos irmãos Edmond e Jules de Goncourt, um papel
de guardiã da graça, estilo e da beleza. No final do século XIX, o escritor e
colecionador Octave Uzanne denunciava a simplicidade das femmes nouvelles como
prejudicial para as artes decorativas francesas, que careciam da forma e do adorno
femininos. Uzanne, pioneiro em uma escrita que reintegrava artes maiores e menores,
arte e artesanato, afirmava haver, desde o século XVIII, uma aliança entre a graça
feminina, o espaço interior das residências e o refinamento artesanal, vínculos que
pareciam em perigo. Seu trabalho La femme à Paris, nos contemporaines, de 1894

                                                                                                                         
62 . McLeod, Mary, « Introduction : Charlotte Perriand’s Art de vivre »2003, p. 11. MCcLeod, Mary (ed)
Charlotte Perriand. An art of living. New York : Harry N. Abrams/ The Architectural League of New York,
2003.
63 . Perriand, C. Une vie de creátion, op. cit.,pp. 12-13.
64 . Clark, T.J. O pintor da vida moderna. São Paulo : Companhia das Letras, 2004, p. 95.

  45  
rezava que a sobriedade a “nova mulher” minava um tipo de mulher parisiense
orgânica, decorativa, e discutia as implicações dessa nova postura às ordens urbana e
doméstica. Ele celebrava a habilidade feminina de adornar seu próprio corpo e os
espaços interiores aos quais ela naturalmente pertencia, alinhavando em seu
argumento mulheres decorativas e decoradoras, que tinham como modelo a mulher
aristocrática afeita aos trabalhos manuais, e delegando às esposas burguesas a
decoração não apenas das paredes de suas casas, como também o cultivo do luxo e do
caráter artístico em suas “roupas de baixo”. Uzanne e os Goncourts eram ávidos
colecionadores de objetos da tradição manual feminina da era aristocrática e, em sua
cruzada contra a femme nouvelle, Uzanne exalava um lamento: a loja de departamento
tornava impossível o caráter único da moda do século XVIII; ainda assim as mulheres
burguesas poderiam obter neste espaço algo equivalente em distinção.65

Nesse mesmo período, mais precisamente em 1892, teve lugar em Paris a


Exposition des Arts de la femme, que ocupou três salas no Museu de Artes
Decorativas, que funcionava no Palácio da Indústria. Um dos espaços era dedicado às
mulheres que estudavam em escolas femininas, mas o mais eloquente dessa mostra, se
observada aos olhos de hoje, era a classificação das artes femininas já na chamada
para a inscrição de trabalhos a serem exibidos. Seriam aceitos trabalhos de pintura em
suportes diversos: faiança, porcelana, vidro, esmalte, tecidos, panos decorativos,
papéis decorados e outros, além de modelos para as indústrias decorativas. Outra
seção, ouvrage des dames, dividia os trabalhos em bordado, crochê, tricô, tapeçaria,
lingerie, renda, passamanaria e moda66.

Nessa Paris fin-de-siècle os pais e, em especial a mãe de Charlotte Perriand,


situavam-se no polo do pequeno produtor da moda e decoração, vivenciando a
transformação entre a abundância de oficinas e pequenos ateliês do centro de Paris e a
movimentação ascendente dos grands magasins de nouveautés que arrebatou a
produção de mercadorias nos ateliês dos bairros, lançando-as nesses novos espaços
que eram também lugares de entretenimento. Lojas de departamentos, como Au Bon

                                                                                                                         
65. Silverman, Deborah L. Art nouveau in fin-de-siècle France. Politics, psychology and style. Berkeley, Los
Angeles & Oxford, University of California Press 1989, pp. 71-2.
66 . Exposition des Arts de la Femme. Paris, Imprimerie de A. Warmont, 1895. Disponível em

http://archive.org/stream/expositiondesart00expo Um equivalente brasileiro dessa exposição aconteceu


no Rio de Janeiro em 1929, promovida pela primeira dama, esposa de Epitácio Pessoa, uma Exposição de
Arte Feminina de alcance nacional. Ver Gênero e Artefato, op. cit., p. 77.

  46  
Marché, Grands Magasins du Louvre, Galleries Lafayette e Au Printemps, tornaram o
ato de comprar menos pessoal: nelas, qualquer burguês podia entrar, procurar
pechinchas, distinguir e decidir o que comprar, entre roupas que não foram cortadas
sob medida. Isso causou um forte efeito sobre a economia dos ateliês, que deixaram
de folgar em feriados e dias santos, e passaram a segmentar as tarefas em estágios e a
produzir com maior velocidade para atender os lojistas. Havia, claro, uma troca: ao
mesmo tempo que a oficina se desintegrava, a costureira lidava diretamente com o
capitalista e, nesse contato, ficava sabendo, o que não era de pouca relevância, o que
seria a moda daquela estação.67

A transformação gradativa destes espaços de consumo destinados sobretudo à


mulher é aqui relevante. Se tomamos como exemplo o magazine Au Bon Marché, a
variedade de mercadorias destinadas à casa só fez aumentar desde a abertura, em
1869, de sua nova loja em Paris. Desde os anos 1850, a loja vendia camas, e em 1860
passou a comercializar tapetes; na década seguinte começou a vender mesas, cadeiras
e estofados e eventualmente mostrava ambientes simulados em arranjos ali exibidos,
o que os franceses denominam ensemble. Itens para a cozinha chegaram à loja em
1900 e na década seguinte já era possível comprar uma cozinha completa ali68.

Da comercialização à concepção e produção, não demorou muito. Em 1912 a


loja Au Printemps inaugurou seu ateliê Primavera, dirigido por Mme. Chaucet-
Guilleré69. Em 1921, a Galleries Lafayette estabeleceu sua contrapartida, o ateliê
Maîtrise, sob o comando de Maurice Dufrène; o Au Bon Marché criou o Atelier
Pomone em 1923, sob a coordenação de Paul Follot (1877-1941) e René Prou (1899-
1947); e o departamento de lojas do Louvre fundou o Studium sob a direção de
George Djo-Bourgeois (1898-1937), Etienne Kohlmann (1903-1988) e Maurice
Mallet – todos eles nomes importantes nas artes decorativas francesas. Essa intensa
movimentação criativa e comercial se dava em aliança com as conhecidas exibições
francesas: já a Exposição Universal de 1900 contou com pavilhões do Au Bon
Marché, do Grand Magasins du Louvre e da Au Printemps, que em conjunto exibiram
um expressivo leque de novas mercadorias e possibilidades de consumo. Tais

                                                                                                                         
67 . T.J. Clark, op. cit, pp. 101-3.
68 . Sparke, Penny. The Modern Interior, London: Reaktion books, 2008, p. 88
69 . Charlotte Chaucé, uma mulher na condução do ateliê de uma loja importante! Até o momento não

obtive nenhuma informação a seu respeito.

  47  
iniciativas não deixavam de ser respostas proativas a uma nomeada crise do gosto e
do mercado de luxo francês e de uma percepção da classe média como novo grupo
consumidor. Tratava-se de uma reação a uma visão propalada pelo comércio, pela
imprensade que o artista francês era engenhoso para produzir um objeto único mas
não dava conta da produção de séries ilimitadas70. Duas décadas mais tarde, em pleno
acirramento dessa discussão, os magasins tiveram lugar de destaque na Exposition
Internationale des Arts Décoratifs et Industriels Modernes de 1925, que reuniu os
principais decoradores do momento71.

Filha única do casal de trabalhadores do vestuário, a jovem Charlotte Perriand


deu prosseguimento, de maneira mais formal, institucional e escolarizada, ao ramo de
atividades dos pais, e completou com sua formação e carreira a transição do ateliê
para a grande loja72. Deu também passos em outra transformação: sua mãe era uma
trabalhadora modesta, de origem rural na Borgonha -- “uma vida rude mas
harmoniosa, diversificada”73 – que se orgulhava de trabalhar seu ofício à perfeição,
mas não era necessariamente o exemplo da femme nouvelle, modelo que a filha viria a
perseguir e a nele se encaixar. Charlotte estudou em uma escola laica na infância,
segundo suas recordações, sem estímulo ou convicção. Em 1921, com dezessete anos,
foi admitida – sem paixão pelos estudos, segundo ela mesma, inconsciente quanto ao
seu futuro74 – como bolsista, graças a uma tia materna que havia estudado na mesma
instituição, no programa de quatro anos da École de l`Union Centrale des Arts
Decoratifs, uma escola feminina e de orientação feminista75, embora muitas das

                                                                                                                         
70 . Benton, C., “The international exhibition”. Benton, C., Benton, T. & Wood, G. Art Deco 1910-1939.
Boston: New York & London, Bulfinch Press 2003 p. 142.
71 . The modern interior, op. cit., p 89; Costa Meyer, Esther. “Simulated Domesticities. Perriand before Le

Corbusier”, McLeod (ed). Charlotte Perriand. An art of living. New York : Harry N. Abrams/ The
Architectural League of New York2003, p. 33.
72 Pat Kirkham observa que a manufatura de móveis tem tradicionalmente na Europa seu escopo de

carreira e oportunidades reservados aos meninos, mas abre possibilidades ocasionais para moças quando
estas não têm irmãos para prosseguir com o trabalho de seus pais. Ver Kirkham, P. “If you have no sons:
furniture-making in Britain”. Attfield, J & Kirkham, P. (Eds). A view from the interior, London: The Women’s
Press Limited, 1989, p. 109.
73 . Une vie de création, op. cit., p. 31.
74 . Idem, p. 16.
75 . A Union Centrale des Arts Decoratifs foi fundada em 1864 como União Central das Belas Artes aplicadas à

Indústria. Ficava na Place Royale (hoje Place des Vosges), bem no bairro de artesãos que era o Marais. Seus
membros incluíam manufatureiros de papel de parede, tapetes, pianos, ourives etc. A mudança de nome
veio com outras alterações em 1890. O termo “indústria” foi suprimido e os objetivos transformados: por
volta de 1889, a idéia de vulgarizar o senso de beleza e democratizar a arte foi substituída por uma busca de
purificação da beleza e aristocratização do artesanato, cf. Silverman, op. cit., pp 111-3..

  48  
moças tivessem origem nas elites parisienses e a expectativa de um bom casamento76.
Seus pais queriam que ela estudasse na prestigiosa École Polythechnique77, a exemplo
do filho de um conhecido, que se tornou engenheiro de pontes e calçadas (ponts et
chaussées), mas faltava a ela a paixão pelos estudos78. A escola de artes decorativas a
apresentou a dois mundos então desconhecidos: o das moças que vinham do interior
da França e moravam em alojamentos para estudantes; e o das abastadas alunas
pagantes, destinadas a casamentos ricos, moças que “sonhavam com bailes”.

Nesses anos 1920, o entendimento dos irmãos Goncourt, que vinculava a


mulher ao consumo e à modelação do interior doméstico ainda tinha seu lugar na
imprensa, e mesmo que muitas jovens tenham se juntado à força de trabalho
masculina durante a Primeira Guerra Mundial, a imagem de guardiã do lar – guardiã
inclusive dos princípios estéticos, só se intensificou na França no clima conservador
que se seguiu ao final do conflito. Revistas femininas enfatizavam uma visão de arts
ménagers que integrava conforto e bom gosto, qualidades também enfatizadas pelo
ensino da Union Centrale.79

Ela era bolsista, não por mérito ou desempenho e sim graças à sua tia materna,
e sua necessidade de profissionalização nunca foi colocada em dúvida por sua família:
a cada manhã sua mãe a acordava, para no final do dia repetir que o trabalho libertava
– le travail, c’est la liberté. Quando da passagem de Charlotte pela École, sua direção
estava a cargo de mulheres, exceto por, Henri Rapin (1873-1939) que ocupava o
cargo de diretor artístico. Mas essa aparente particularidade teve origem nas
reformulações que a instituição sofreu por volta de 1890, dentre as quais ecoava a
visão desenvolvida em círculos oficiais, de que haveria um papel à mulher na
regeneração das artes aplicadas nacionais, e a partir de então essa escola envolveu-se
em campanhas para a liderança das mulheres na produção e consumo de um
artesanato de luxo. No começo do século XX, mulheres artistas como as já
                                                                                                                         
76 . Silverman, Débora. Op. cit., p. 111
77 . Como se trata de memórias, com nomes grafados erroneamente, como seu professor Dufrène e mesmo
seu primeiro marido Scholefield, é possível que o tal conhecido tenha estudado na École de Ponts et
Chaussés e não na École Polythecnic.
78 . Curiosamente, em suas memórias ela não se pergunta se como mulher, poderia freqüentar as

prestigiosas (e masculinas) École des ponts et chaussés e École Polythecnic.


79 . (...) “The difference between the words ‘home economics’ and the more appealing phrase arts

ménagers, with its connotations of comfort and good taste, should be noted. These qualities associated
with traditional French artistry were also emphasized at the women’s school Perriand attended, the Ecole de
l’Union centrale des Arts Décoratifs.” Mary Mc Leod. “Charlotte Perriand’s Art de Vivre”. op. cit., p. 11.

  49  
mencionadas Eileen Grey e Sonia Delaunay, mas também Hélène Henry (1891–
1965), Charlotte Alix (1897–1987), Lucie Holt Le Son (1899- ?), dentre outras
ganhavam proeminência crescente no panorama das artes decorativas francesas80.
Charlotte não teve uma passagem cintilante ou destacada na École; percorreu
um caminho errático, com aulas cabuladas para passeios no Jardim do Luxemburgo, o
que criou problemas com sua condição de bolsista, chegando-se à uma quase expulsão
no segundo ano. Desejando trabalhar com a mãe, o que lhe foi negado, ela decidiu
apresentar novos desenhos ao professor Rapin, uma tentativa de permanecer no curso.
Quando a escola se mudou para as dependências do Musée des Arts Décoratifs, no
Louvre, ela passou a frequentar as aulas dos pintores Bernard Boutet de Montvel
(1881-1949)81 e Andrè Lhote (1985-1962). Desistiu logo das aulas com Lhote e
passou a complementar sua formação, inscrevendo-se no ateliê Pomone, da loja Au
Bon Marché e, o que foi mais decisivo, nas aulas vespertinas de Maurice Dufrène82, o
presidente do Salon des Artistes Décorateurs, responsável pelo desenho de mobiliário
das Galleries Lafayette. As demandas de Dufrène às alunas eram estritamente ligadas
ao universo da decoração, a partir de clientes imaginados, como “o quarto para uma
americana rica”83. Ao mesmo tempo, demandava projetos de protótipos como
estamparia para tecidos de estofamento, o que parecia a ela parte da vida real. Foi essa
formação complementar – que incluía concursos promovidos pela revista Art et
Industrie e cenários de teatro – que reintegrou Charlotte à escola – “eu não era mais
vista como marginal”, recordou84 – e ela foi uma das escolhidas para a Exposição de
Artes Decorativas de 192585. Em meio à imensidão do evento, passou desapercebida,
mesmo auxiliando seu mestre Dufrène.

                                                                                                                         
80 . Esther da Costa Meyer, op. cit., p. 22, Mary McLeod, op. cit., p. 59.
81 . Bernard Boutet de Montvel era, alem de pintor, escultor, gravador, ilustrador de moda e decorador de
interiores. Nada distante do universo no qual Charlotte tentava se inserir.
82 . Maurice Dufrène (1876-1855) freqüentou e École Nationale des Arts Décoratifs e foi, em 1902, um dos

fundadores do Salon des Arts Décoratifs. Em 1921 assumiu a direção do ateliê La Maitrise, das Galleries
Lafayette.
83 . “Dans mon imaginaire, que pouvai bien faire une rich Américaine? Se cuiter la nuit dans les boîtes pour

rentrer au petit matin rejoinder sa couche. Mon projet s’exprima par une pente douce qui la dirigeait
directement -- plouf! – sur l’objet de son désir, le lit, dans une décor de star américaine.” Une vie de creation,
op. cit., p. 19.
84 . Une vie de création, op. cit., p. 19.
85 . A Exposition Internationale des Arts Décoratifs et Industriels Modernes, muitas vezes denominada apenas Art

Déco teve lugar em Paris de abril a outubro de 1925 e tinha como um de seus objetivos promover a
indústria francesa que perdia seu protagonismo na Europa posterior à Primeira Guerra.

  50  
A PARIS DA ART DÉCO

A Torre Eifell (...) entrou na arquitetura.

Em 1889 ela era a expressão agressiva do cálculo.

Em 1900, os estetas queriam demoli-la.

Em 1925, ela domina a Exposição Universal de Artes Decorativas


Modernas. Acima dos palácios de gesso, nos quais se retorce a
decoração, aparece ela pura como um cristal.86

A Exposição de Artes Decorativas de 1925 não foi mais uma exposição no


molde das feiras mundiais como a de Paris em 1900 e outras do mesmo gênero, cuja
ênfase estava na produção, na maquinaria e na tecnologia que cada país podia
conceber. Inspirada na Prima esposizione internazionale d’arte decorativa de Turim
de 1902, tinha sua ênfase na promoção e exibição de artefatos, o que se evidenciava
no destaque conferido às vitrines. A mostra de Turim abriu um novo precedente para
este tipo de exposição: dedicada às artes aplicadas, conseguiu se beneficiar da
saturação das feiras universais focalizadas principalmente no crescimento da
produção e explorou o consumo87. Mas ao contrário dessa, a exposição de 1925 não
tinha como meta promover um internacionalismo e sim construir, para uma platéia
internacional, uma noção de supremacia da França como árbitro do gosto, de nação
produtora de bens luxuosos e, sem dúvida, uma imagem renovada de Paris como
centro da moda. Até a virada do século, a capacidade francesa de produzir objetos de
luxo – como vidraria Lalique, por exemplo – não tinha rival na Europa, mas a
Alemanha recém-unificada criou museus de artes decorativas em diversas cidades e
começou a encorajar vínculos entre artistas, designers, industriais e comerciantes,
propiciando a emergência de organizações de ensino e criação como a Deutscher
Werkbund e a Bauhaus. Na exposição de 1900, a Alemanha se destacou no ramos das
artes, e segundo o arquiteto-diplomata Hermann Muthesius, na mostra de 1904 em St.
Louis, mostrou o triunfo de suas artes aplicadas. Ainda que Muthesius falasse
enquanto parte interessada, era perceptível que a indústria alemã começava a ancorar
em território dominado pela França. Em 1910, o tradicional Salon d’Automne abrigou

                                                                                                                         

. Le Corbusier. A arte decorative. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. IX


86
87. Laurent, Stéphane. “The Artist –Decorator”, Benton, C., Benton, T. & Wood, G. Art Deco 1910-1939.
Boston, New York & London: Bulfinch Press 2003, p. 166.

  51  
uma exposição dos “Decoradores de Munique”, que provocou reação hostil por parte
da imprensa parisiense, o que não impediu que em 1913 a exportação alemã de artes
industriais e produtos artísticos ultrapassasse a francesa, pois já havia chamado a
atenção em 190088. Cabia à França, na Exposição de 1925, reavivar a produção de
bens de luxo como signo de continuidade de seu lugar nos austeros anos do pós-
guerra o que, combinado ao temor da agressividade econômica que vinha da
Alemanha, adversária no conflito de 1914-18, enfatizou a importância da mostra.

A Exposition Internationale des Arts Décoratifs et Industriels Modernes se


localizou no mesmo lugar da Exposition Universelle de 1900, com a ponte Alexandre
III ligando os recintos nas duas margens do rio Sena. Mas, ao contrário das mostras
anteriores, os edifícios e jardins foram todos temporários. Foi nessa ponte Maurice
Dufrène instalou uma rua de lojas em parceria com arquiteto armênio Gabriel
Guévrékian (1892-1970), do arquiteto-decorador René Herbst (1891-1992) e do
pintor e artista decorativo Francis Jourdain (1876-1958).

A exposição de 1925 exibia edifícios e objetos em ensambles, modelo de


exposição que as mostras de Art Nouveau já praticavam e que os decoradores de
Munique fixaram para si, seu detratores e imitadores. Ainda que nada ali estivesse à
venda, os ensembles e todos os aspectos decorativos eram importantes para que a
audiência pudesse perceber como seria o arranjo dos interiores dos edifícios. Parte
fundadora da ideia de consumo visual, esta mostra também reforçava a visão de que
em Paris o consumo de massas adquiria uma escala espetacular, algo estabelecido
desde as exposições universais do século XIX. Segundo Walter Benjamin, essas
mostras se convertiam em lugares de peregrinação nas quais o fetiche da mercadoria
entretinha as massas, espaços nos quais as mercadorias eram o mote do deslocamento
dos europeus de diversos países. As precisas observações do filósofo alemão dizem
muito a respeito desse universo no qual o valor de uso passou para o segundo plano,
especialmente ao sequenciar em sua análise a cidade – as passagens, os panoramas –,
as exposições e os interiores domésticos, a casa como expressão da personalidade do
individuo.

                                                                                                                         
88. Charlotte Benton, “The international Exhibition”, Benton, C., Benton, T. & Wood, G. Art Deco 1910-
1939. Boston, New York & London: Bulfinch Press 2003, p. 141-2.

  52  
Se as grandes lojas parisienses expuseram na Exposição de 1925, a partir de
então começaram a investir mais nas vitrinas, nos conjuntos de mobiliário
(ensembles) e a configurar uma certa partilha do perfil da clientela. Todas
reconheciam o valor comercial de um estilo para seus respectivos estúdios e os
folhetos de propaganda evidenciavam suas peculiaridades e os nomes de seus artistas.
Paul Follot (1887-1941) e seu grupo do Studio Pomone visavam uma clientela
conservadora e sua produção luxuosa ecoava aspectos das residências do passado,
enquanto George Bourgeois – conhecido como Djo Bourgeois(1898-1937) –, ao lado
de Maurice Matet e outros artistas do Studium Louvre, se dirigiam a uma clientela não
menos abastada, mas que se apresentava como mais arrojada89.

Essa virada artística dos templos do comércio não se deu apenas na França.
Em Nova York, a Macy’s, que funcionava desde 1851, começou a exibir peças de
design e o presidente do Metropolitan Museum, Robert W. De Forest, passou a ser do
conselho consultivo da loja, dando validação cultural a tais projetos de exibição de
mercadorias90.

A exposição de 1925 logrou fixar as artes decorativas como modernas. A rue


des boutiques foi atualização de uma ideia que remontava ao Segundo Império, a
saber, Paris como uma cidade feminina, nessa classificação oposta à masculina
Londres, e como capital do consumo de luxo. Quarenta lojas sob a responsabilidade
de Dufrène, que coordenava um grupo que ensembliers que incluía Gabriel

                                                                                                                         
89 . Charlotte Benton, op. cit. P. 146-7. A Encyclopédie des arts décoratifs et industriels modernes deu espaço a estas
manifestações artísticas-comerciais : « Chacun des principaux magasins de nouveautés de Paris possède
aujourd’hui un atelier d’art moderne dirigé par un artiste décorateur éminent. Cette innovation récente a
déjà amélioré & enrichie la production des objets de céramique, de verrerie, d’orfèvrerie, celle des papiers,
des étoffes de tenture, de l’ameublement en général. Il y a là, pour l’art moderne, un moyen de propagande
efficace. Les Grands Magasins ont tenu à présenter à l’exposition de 1925 les travaux de leurs ateliers ; ils
l’ont fait d’une façon qui témoigne à la fois du sérieux de leur tentative & de l’ampleur qu’ils entendent lui
donner. Cette adhésion résolue du commerce & de l’industrie constitue une grande victoire pour les
décorateurs contemporains. » Encyclopédie des arts décoratifs et industriels modernes au XX ème siécle, en douze
volumes. Paris, 1925, , p. 31. (foi consultada a enciclopédia pertencente à Fundação Gulbenkian em Lisboa
em 2010.
90 . “By the end of the 1920s the furniture sections of American department stores had fully embraced the
modern interior design style, known as Art Deco, that become popular in Europe following the 1925
Exposition Internationales des Arts Décoratifs et industriels Modernes, and they had begun to display complete
modern room sets, sometimes in partnership with museums. A mixture of modern France and American
designs in room settings were shown at both John Wanamaker and Macy’s in New York in 1927. Macy’s
cleared its floor of traditional pieces and showed only modern designs at that time. The president of New
York’s Metropolitan Museum of Art, Robert W. De Forest, became the chairman of the store advisory
committee, Thereby giving that commercial Project a level of cultural validation.” Sparke, P. Modern Interior,
op. cit.., pp. 62-3.

  53  
Guevrekian e Francis Jourdain além do decorador e desenhista de móveis Jacques-
Emmile Ruhlmann (1879-1933), formavam um catálogo vivo da moda e das artes
decorativas. Em meio a tamanha efervescência, discretamente, quase desapercebida –
pois a menção à sua participação é sempre retrospectiva – Charlotte Perriand
debutou.

EM BUSCA DA PROFISSIONALIZAÇÃO

Charlotte, então com vinte e dois anos, mostrou três trabalhos na vitrine da
Union Centrale des Arts Decoratifs: um conjunto de nove painéis para uma sala de
música representando as nove musas (Fig. 15), uma grade de ferro forjado e uma capa
de couro para o livro Eupalinos, de Paul Valéry. Para o pavilhão das Galleries
Lafayette, também coordenado por seu professor, Dufrène, ela desenhou um suporte
para quadros, que depois foi produzido e comercializado. Como participante e
consumidora visual, visitante dessa mostra, sua atenção foi voltada para os pavilhões
de prestígio e das grandes lojas de departamento e não para os da União Soviética,
sob responsabilidade do arquiteto Konstantin Melnikov, tampouco para o pavilhão do
Esprit Nouveau, de Charles Édouard Jeanneret, ambos arquitetos modernos que em
pouco tempo fariam parte das suas futuras redes de trabalho e sociabilidade:91

À l’Exposition, après avoir longé les pavillons de prestige et ceux des grands
magasins, dont celui de la maîtrise des Galleries Lafayette décoré par Dufresne92, je
passai devant le pavillon de l’URSS, qui tranchait dans tous ces décors, et le pavillon
de l’Esprit Nouveau de Le Corbusier et Pierre Jeanneret, si dépouillé, rélegué avec
mepris dans un coin. Il m’avait surprise mais pas atteinte93.

                                                                                                                         
91 . Há uma homologia entre esse olhar que não se fixa nos pavilhões de proposta modernista e a atitude de
Lucio Costa em 1929, que praticamente ignorou a passagem de Le Corbusier no Rio de Janeiro. De
qualquer modo, devemos nos perguntar até que ponto o impacto dos dois pavilhões modernistas – o
soviético de Konstantin Melnikov e o de Le Corbusier – não é uma construção posterior ao evento, ditada
mais pela bibliografia defensora do Movimento Moderno do que pela visibilidade nos mesmos na ocasião.
Mas é preciso notar que a própria enciclopédia da exposição de 1925 dá pouquíssimo espaço a estas
inovações. O pavilhão soviético foi descrito como de uma simplicidade um tanto rudimentar. E a mesma
publicação perguntou, a respeito do pavilhão do Esprit Nouveau, se seria mesmo necessário se reduzir os
móveis ao estritamente necessário, como pareciam sustentar Le Corbusier e Pierre Jeanneret. Se Charlotte
estava afinada com o espírito dominante da mostra e com seus mestres, não seriam esses eventos
episódicos a chamar sua atenção.
92 . Como já foi assinalado, em sua autobiografia Une vie de création, Charlotte invariavelmente grafou errado

o nome de seu professor Dufrène. Curiosamente, isso escapou aos possíveis revisores, mas foi corrigido na
tradução para o inglês.
93 . Une vie de création, p. 20

  54  
A escolha de uma capa para Eupalinos, de Valery, é reveladora desse
desinteresse pelos dois únicos pavilhões vanguardistas. Pode remeter tanto a um flerte
com a arquitetura como a um retorno à ordem, tal como proposto nesse livro, que
defendia um retorno às variáveis estáveis da geometria para além de contingências
temporais e espaciais, como assinalou Costa Meyer94. O tema do retorno à ordem não
é fortuito se lembramos que outro grande manifesto nessa direção foi aquele
publicado por Le Corbusier e Ameedé Ozenfant em 1918. O historiador Carlo
Ginzburg chama a atenção para a relação entre ergonomia, fordismo e eurocentrismo
presente nesse opúsculo chamado Après Le Cubisme. Mas.... não era esta a proposta
do desenho industrial? Fordista, produtivista e utilitário, talvez seja essa a tensão com
os mundos das artes e do cotidiano, que do design – de objetos, de mobiliário –
buscava estetizar. E a jovem Charlotte, circulando entre os pavilhões declaradamente
comerciais e passando ao largo dos ditos vanguardistas não deixava de expressar essa
tensão nesse momento de mudança de espectro classificatório entre a decoração e o
modernismo.

Uma vez formada, ela recebeu de Dufrène e Rapin o conselho de que buscasse
a todo custo expor – afinal, ninguém a conhecia. Ela tinha trabalho nos ateliês das
grandes lojas, mas este, embora vendável, não trazia a marca da autoria. Ao apoio de
seus mestres veio a juntar-se o apoio de Henri Clouzot (1865-1941), diretor do Musée
Galliéra, figura importante que congregava os desenhistas de mobiliário na Paris
desses anos. O aconselhamento profissional nesse momento abaliza o perfil distinto
de suas colegas de curso, evidenciando que ela não havia frequentado a Union por
diletantismo ou à espera de um bom casamento, mas em busca de uma qualificação
para o trabalho – o que não impediu algumas amizades com as alunas mais ricas,
como Marianne, a filha de Clouzot. Em 1926, ela se dedicou, com ajuda financeira de
seus pais e de marceneiros indicados por Dufrène, a projetar o canto de uma sala,
Coin de Salon, (Fig. 16) sua primeira obra em mobiliário, exibida no salão anual da
Société des Artistes Décorateurs (SAD)95, em Paris. No conjunto, bastante

                                                                                                                         
94 .”A call to order, Eupalinos advocated the return of architecture to the stable verities of geometry, beyond
contingencies of time and place. By casting his text in the form of dialogue between Socrates and
Phaedrus, Valéry elevated the architect to the same lofty status as the philosopher.”Costa Meyer, E. Op.
cit., p. 24.
95 . A Société des Artistes Décorateurs (SAD) foi fundada em 1901 como parte da elevação do status to

trabalhador artesão que em alguns casos passou a ser chamado de artista-decorador. A sociedade

  55  
impregnado pela sua inserção no meio art déco, destacava-se uma mesa e uma
estante-aparador, sendo o papel de parede também um padrão criado por Charlotte.

A perspectiva de Dufrène, em plena consonância com os planos das lojas


Lafayette e Printemps, era criar um mobiliário para o “francês médio” e para o espaço
reduzido dos apartamentos parisienses modestos. A recepção ao trabalho de Perriand,
ainda na linguagem observada na grande exposição do ano anterior, foi ambivalente:
de um lado sua estante-escrivaninha foi elogiada, sua presença feminina foi notada e
de outro o inusitado de se juntar madeira e vidro foi também observado, assim como o
desenho limpo que contrastava com as obras de seus mestres Maurice Dufrène e Paul
Follot96, ainda que não se saiba se uma certa economia de recursos consistia então em
uma escolha ou a um ajuste às dificuldades econômicas de uma obra financiada pela
família.97 De qualquer modo, um artigo na revista Comoedia notava que sua estante
era engenhosa e bem pensada para os apartamentos contemporâneos, cujo espaço era
limitado98. Nesse mesmo ano, a poltrona do conjunto foi exibida no Musée Galliera,
na exposição anual que este espaço fazia de artes aplicadas99 e sua amiga Marianne
Clouzot, que como já vimos era filha do diretor do museu, desenhou os tecidos usados
no móvel100. O conjunto recebeu uma crítica que viria a ecoar nos trabalhos
posteriores de Charlotte: a eleição entre materiais classificados, por uma leitura
simbólica de suas qualidades – calor ou frio, maleabilidade ou rigidez como opostos.
A revista Art et décoration, bastante prestigiosa, postulou que o vidro pede uma base
de metal enquanto que a madeira requer um melhor acabamento – e sua mesa juntava
justamente madeira e vidro, razão pela qual foi censurada por sua ausência de sentido
de completude.

O conjunto Coin de Salon foi adquirido por um inglês, comerciante de tecidos


finos, amigo de seus pais, Percy Kilner Scholefield, para mobiliar sua garçonnière. E

                                                                                                                         

trabalhava muito em assuntos relativos à propriedade artística e legislação, e em sua definição o artista-
decorador deveria ser reconhecido como autor.
96 . Como já assinalamos Paul Follot foi o diretor artístico do estúdio Pomone, o ateliê de arte dos

armazéns Bon Marché entre 1923 e 1928. Produzia mobiliário e objetos em séries limitadas, usando materiais
como madeira machetada, marfim e bronze.
97 . Esther da Costa Meyer, op. cit. P 25.
98 . “Le 16e Salon des artistes décorateurs, coup d’oeil general”, Comoedia, 12 de maio de 1926. Apud

Barsac, op. Cit., p 474 nota 24.


99 . Jacques Barsac. Charlotte Perriand, un art d’habiter., p. 24.
100 Arthur Ruegg, Libre de bord, Basel, Boston & Berlin : Birkhäuser Publishers for Architecture, 2004, p.

10.

  56  
eles se casaram no final de 1926. Se este capítulo dependesse apenas das memórias de
Perriand, pouco saberíamos desse enlace, apenas que ele era inglês, Percy, mais
velho, protestante e que ela se casou contra a vontade do pai e vestida de vermelho:
“Pensando da perspectiva de agora, eu penso que o casamento naquela época era o
único caminho possível para que a crisálida virasse borboleta. E a borboleta, ela
voa.”101 Contudo, é expressiva a recordação de sua amiga Marianne Clouzot:
Sholefield exibindo uma pequena Charlotte de vestido de renda e capa azul, ela
acuada como um gato molhado, ele lhe apresentando um mundo novo ao qual ela
reagia ora com encantamento ora com fastio. Ela encontrou no marido seu mecenas:
Scholefield patrocinou sua participação nos salões seguintes, ao mesmo tempo que
ofereceu atividades que poderiam aprimorar sua atuação: matemática e arquitetura
para superar sua defasagem cultural, e também aulas de condução de automóveis e de
inglês102, além do alpinismo, que veio a se tornar uma marca registrada103. As
transformações propiciadas pelo casamento são de ordem diversa: ela deixou a Rive
Droite e seus ofícios artesanais, mudou-se para o boêmio Quartier Latin, iniciou-se na
literatura inglesa, no jazz, aprendeu a dançar charleston, cortou os cabelos à la
garçonne e se tornou admiradora de Josephine Baker. Passou a encarnar a nouvelle
femme, que na geração de sua mãe era banida em todos os discursos como sinônimo
da degenerescência da França. Desenhou e mandou executar um colar de “bolotas”,
esferas de metal como se essa peça, de um modo um tanto metonímico, contivesse
toda mudança e modernidade que sua trajetória futura parecia anunciar. O casal não
viajou de lua de mel para que ela pudesse cuidar da concepção do novo apartamento,
um estúdio de um fotógrafo na Place St. Sulpice. A viagem de núpcias realizou-se em
1927, de automóvel pela França, em companhia da amiga Marianne Clousot.

Seu comportamento não necessita ser lido na chave da rebeldia individual,


tampouco apenas pelo charme e graça impresso na recordação com a qual reconstruiu
os fatos em sua autobiografia. As narrativas ficcionais e os atores sociais que
encarnavam a nova mulher francesa só poderiam prosperar numa cultura de massa e
de imprensa, em um mundo urbano teatralizado e espetacularizado que borrasse a

                                                                                                                         
101 . “En y reflechissant aujourd’hui, je pense que Le mariage à cette époque était le seul passage possible
pour que La chrysalide devint papillon. Et un papillon, ça vole.” Une vie de creátion, p. 22.
102 . Jacques Barsac, op. cit., p 24.
103 . Depoimento de Judi Dwight, sobrinha de Scholefield à autora em janeiro de 2013 em Portsmouth,

Reino Unido.

  57  
distinção entre fantasia e realidade e permitisse que o leitor passasse da tradução da
ficção para sua vida cotidiana. Esta era a Paris fin-de-siècle, cuja renovação urbana e
crise econômica transformaram a face da cidade permitindo a emergência de uma
cultura de consumo, de imprensa de massa, de uma rua espetacular pelos bulevares
haussmanianos. Foi o mercado dos sonhos de massa que deu lugar a uma geração de
femmes nouvelles, conectada não apenas com a Terceira República, mas sobretudo
com a mercantilização da cultura urbana francesa104.

Se tais mudanças podem à primeira vista parecer pouco definidoras de


identidades, experiência social e, subsidiárias da obra futura, é preciso examiná-las
em detalhe. A Rive Gauche podia ser uma ambientação propícia a experimentações e
mesmo à solidariedade entre mulheres “novas”, conforme explorado por Shari
Benstock em seu estudo sobre as mulheres da margem esquerda do rio105. Mais do
que a literatura inglesa, a literatura no idioma do marido remetia aos Estados Unidos
da América, os concertos de jazz comuns em Paris e sobretudo as apresentações de
Josephine Baker: havia uma certa presença de uma cultura afroamericana em uma
cidade branca. Tal voga de negritude com pitadas de colonialismo tão forte na frança
do entreguerras trazia um tom fortemente sensual para uma cidade que queria se
apresentar como tolerante, em contraste com o conservadorismo norteamericano do
momento. E, além disso, cortar os cabelos remetia ao par garçonne=femme moderne,
que suscitava resistência e protestos nesse momento de uma proclamada crise du
foyer e de queda da natalidade, com mulheres denunciadas por sua magreza, sua
ausência de adornos, por se distanciarem, queda da também corporalmente, da
imagem da mãe de família.

De certo modo, a vinculação que Octave Uzanne prescrevia entre a decoração


de um espaço e a decoração do corpo não tinha deixado de ter lugar nesse universo
social, que se apresentava como industrial e moderno. Se cabia à dona de casa da
vidada do século cuidar de suas idumentária co mesmo modo que cuidava da casa,
vemos cuidados corporais, atividades esportivas, elaboração de roupas e de imagem,
como já foi adiantado na introdução desta tese, adquirindo novos contornos. Assim,
não causa surpresa saber que Charlotte vendeu também uma luminária e mesas em
                                                                                                                         
104 . Roberts, Mary-Louse. Disruptive acts: the new women in fin-de-siècle France, Chicago: University of Chicago
Press, p. 7.
105 . Benstock, Shari. Women of the left bank 1900-1940. Austin: University of Texas Press, 1987.

  58  
cobre niquelado para a modista Jeanne Lanvin106. São fronteiras sutis entre dois
aspectos da indústria francesa do luxo; também no trabalho de Sonia Delaunay na
Exposição de 1925 moda, vitrine, arquitetura, automóveis, programação visual, tudo
parecia parte da mesma aposta na indústria, no artesanato de luxo e em sua renovação.

A própria noção de design, desenho industrial, enquanto divisão de trabalho


entre quem projeta e quem executa, conduz a uma indagação a respeito do lugar da
mulher nessa hierarquia. O autor e o executor, que em sistemas mais artesanais
poderiam ser uma única agência, se separam em uma hierarquia pouco questionada. O
design prosperou em importância à medida em que foi se tornando um elemento
importante para a venda de objetos, processo que era desejável na França dos anos
1920, mas que tem seu nascedouro na Inglaterra pós Revolução Industrial.

MULHERES NAS ARTES E OFÍCIOS

Enquanto especialidade que exigia um treinamento, não havia mulheres


envolvidas na prática social do artesanato na Inglaterra do século XVIII. O
movimento Arts and Crafts, difundido a partir de 1860, trouxe enorme popularidade
ao trabalho artesanal, o que encorajou mulheres a frequentarem escolas de design;
ainda assim não temos registro de nomes femininos importantes nesse movimento, ao
menos nenhum com a visibilidade de Ernst Gimson ou Sydney Barnsley, que se
tornaram praticamente sinônimos de mobiliário Arts and Crafts107.

Por outro lado, as escolas e associações de artes aplicadas e artesanato eram


lugares “respeitáveis”, passíveis de serem frequentados por mulheres. Mas mesmo
que, no caso inglês, houvesse uma proliferação de cursos de artesanato para mulheres,
poucas delas se envolviam com mobiliário, no que Ray Hille e Doris Young
constituíram honrosas exceções108. No período vitoriano, o trabalho artístico era

                                                                                                                         
106 . Tanto Jacques Barsac como Arthur Ruegg são cautelosos com esta venda, pois não há documentação
apenas a mesma, apenas a recordação de Marianne Clouzot. De qualquer modo é interessante notar que
Jeanne Lanvin (1867-1946) também tinha origem modesta e firmou seu nome, primeiro no ramo da
chapelaria e posteriormente em sua Maison que em 1925, ano da exposição art-déco, empregava mais de
oitocentas operárias.
107 . Kirkham, P. “ ‘If you have no sons’: furniture-making in England”., p. 124.
108 . Ray Hille foi pintora em laca e em 1918, aos 19 anos de idade começou a desenhar mobiliário. Não

trabalhou em tempo integral na empresa de sua família por ser mulher. Mas em 1932 seu pai Salomon Hille
se aposentou e decidiu legar à filha a continuidade de seus negócios – Ray trabalhou até 1980. Doris

  59  
considerado adequado para as mulheres de classe média, uma vez que era apreciado
quase como uma extensão das habilidades femininas tradicionais. Assim, o papel
naturalmente atribuído à mulher, comumente descrito em termos de “gosto instintivo
e graça natural” não era colocado em questão, ao contrário. Este “gosto natural”
deveria se refletir na harmonia das cores escolhidas para papel de parede, cortinas,
tapetes, em todas as formas de conforto e elegância.109 Mais do que isso, o que as
mulheres produziam em termos artísticos passou a ser denominado artesanato ao
invés de arte, uma hierarquia pouco inocente, posto que as belas-artes constituíam
uma atividade pública, profissional. Essa divisão, ou hierarquia, altera todos circuitos
de apreciação e não tem necessariamente a ver com as qualidades intrínsecas daquilo
que se produzia, como analisaram Parker e Pollok110 . Mais uma vez a ênfase nas artes
têxteis, antecipando o destino social das mulheres da Bauhaus, enquanto marcenaria,
serralheria e a lida co outros materiais permaneceu a cargo dos homens – artesanato.

Segundo Callen, havia uma hierarquia das mulheres presentes no movimento


Arts and Crafts, da operária ou trabalhadora agrícola até a mulher de elite, esposa de
algum personagem chave da vanguarda do movimento. O que as mulheres deveriam
fazer eram atividades que constituíam uma extensão das atribuições femininas
vitorianas, admitidas por sua pequena escala e não exigência de força física. De resto,
bordado, rendas, pintura em porcelana, ilustração de livros, aquarela eram vistos
como adequados, assim como encadernação de livros, joalheria e trabalhos em metal,
por seu grau elevado de detalhamento. Mobiliário permanecia sendo um reduto
masculino.. Claro que havia exceções, como William Morris, que sabia e ensinava
bordado, embora enquadrando essa atividade como uma exploração de técnicas
antigas, o que reforçava seu papel de pioneiro do movimento. Embora fosse um dos
seus objetivos, o Arts and Crafts não logrou eliminar a hierarquia entre o desenhar e o
realizar e, em alguns casos, a divisão entre o designer e o executante traduziu-se
como uma ruptura entre homens e mulheres. Nada disso era explícito. Parker observa
que o bordado, à medida que a sociedade “progredia”, tornou-se atividade
                                                                                                                         

Young também assumiu o ramo dos negócios familiares em 1943, apos a morte de seu pai. Em seus
projetos, ela prestou especial atenção às necessidades femininas, desenhando uma cadeira especial para
amamentação para uma maternidade de Londres – cadeira depois transformada em cadeira para se assistir
televisão. Kirkham, op.cit.p. 125-7.
109 . Assim era descrito o papel da mulher no mundo das artes domesticas no artigo “Art-work for women

” publicado no Art Journal em 1872. Callen, Anthea. “Sexual division of labour in the Arts and Crafts
Movement”, A view from the interior. Feminism, women and design. London: The Woman’s Press, 1989, p. 153.
110 . Idem, p. 154.

  60  
exclusivamente feminina, e como tal padeceu com essa caracterização: como as
mulheres, os bordados eram vistos como delicados, decorativos e sem conteúdo. Os
homens elaboravam os riscos, suas mulheres e filhas os executavam. Jane Burden,
esposa de William Morris, foi iniciada no bordado pelo marido em 1859, após o
casamento, e quando suas filhas cresceram também entraram para o trabalho coletivo
à maneira medieval, como Morris tanto admirava. Sua filha May Morris rompeu um
pouco esse destino social das mulheres artesãs, assumindo a direção das oficinas de
bordados da empresa Morris, Marshall, Faulkner & Co em 1885, aos vinte e três
anos.

As atividades mais comuns às mulheres nessa circunstância eram aquelas que


poderiam ser praticadas em casa, sem a necessidade de um ateliê ou oficina especial:
bordado, renda, pintura em porcelana, joalheira, encadernação, ilustração e mesmo
entalhe em pequena escala poderiam ser realizados tanto em casa como fora dela. Isso
capacitou as mulheres a se dedicarem ao artesanato, mas reforçou, por outro lado a
distinção entre mundos privado/feminino e público/masculino e, no mesmo pacote
artesanato/natureza e belas-artes/cultura. De qualquer modo, as oficinas ligadas ao
Arts and Crafts proporcionavam às mulheres um trabalho pago que em alguns casos
conduziu à independência financeira e a uma elevação simbólica de seu papel na
sociedade. Por volta de 1890, o movimento estava em seu auge e, por exemplo, a
Guild of Women Binders [Guilda das mulheres encadernadoras] vendia seu trabalho
em um depósito na Charing Cross Road, cujas clientes eram mulheres de toda Grã
Bretanha.

Uma segunda divisão entre o homem designer e a mulher executante estava


ainda em operação. A exposição da Arts and Crafts Exibition Society de 1888
mostrou que a atividade feminina essencial era o bordado e a maioria das mulheres
expositoras eram casadas com os líderes do movimento: Sra. Walter Crane, Sra.
Henry Holiday, Sra. Reginald Hallward e Sra. William Morris, por exemplo, são
alguns dos nomes presentes no catálogo. Havia contudo também um número
significativo de mulheres bordadeiras que se apresentavam como autoras dos
desenhos, como Agnes e Rhoda Garret111, que eram também membros ativos da causa
Women’s Emancipation and the Arts and Crafts Movement. As Garret desenharam
                                                                                                                         
111 . Falaremos a respeito delas, no próximo capítulo.

  61  
um ambiente completo com mobília, tapetes, trabalho em madeira e papel de parede
que foi também mostrado em 1988 – e isso não incluía bordado.

A exposição seguinte, de 1896 ficou conhecida por introduzir os projetistas de


Glasgow ao Arts and Crafs inglês. As irmãs Margareth (1864-1933) e Frances
McDonald (1874-1921) se destacavam no panorama da cidade mesmo antes de seus
casamentos com Charles Rennie Mackintosh e Herbert MacNair, respectivamente.
Depois de casados, eles passaram a agir como um grupo, o Glasgow Four, ainda que
mantivessem seu estúdio de irmãs. A carreira de Margareth teve mais êxito do que a
de Frances, mas em ambos os casso, pesam as duvidas a respeito da autoria de
algumas obras atribuídas a seus maridos. Segundo Rozsika Parker, as professoras da
Glasgow School of Art, como Jessie Newbery, que também expuseram em 1896,
transformaram a concepção e prática dos bordados112. Nas mãos de Newbery, bordar
não era mais uma extensão dos atributos femininos, pois foi redefinido em termos do
Arts and Crafts, com ênfase para o desenho, a simplicidade, os materiais escolhidos.
Nessa exposição, as praticantes da Glasgow School demonstraram como algumas
mulheres tomavam parte ativa na reconfiguração e profissionalização de um saber
feminino tradicional.

Quando chegou a exposição de 1910 o papel feminino já estava redefinido


tanto em número como na divisão de tarefas – joalheria, por exemplo, tinha se
tornado um trabalho feminino, com destaque para o trabalho de Phoebe Traquair. O
mesmo para o vitral, com destaque para a sufragista Mary Lowndes, que fazia vitrais
para a firma Arts and Crafts Britten & Gilson.

DESUMANA E COQUETTE

Na França posterior à Primeira Guerra, as grandes lojas de departamento


criaram seus próprios estúdios de design de mobiliário, como já vimos, novidade
vinculada à passagem de uma economia de guerra para um consumo de massas. O
alvo dessas iniciativas era a burguesia urbana, que mudava de casa – e mudava a casa
– com mais frequência do que as famílias ligadas à aristocracia – visto que a nova

                                                                                                                         
112 . APUD Walker, Lynne. “The Arts and Crafts Alternative”, p. 169.

  62  
classe triunfante não herdava propriedades nem alfaias ancestrais que limitassem suas
decisões decorativas. Nesse mesmo panorama, os papéis de mulher e a mãe eram
ligadas discursivamente à segurança nacional e, no campo artístico, a ideia de um
“retorno à ordem” casava bem com a proposta de um possível fordismo na vida
doméstica, que chegava dos Estados Unidos e da Alemanha.

Na Rive Gauche, a banda boêmia em que viviam artistas e escritores e


sobretudo mulheres artistas como Gertrude Stein, munida de melhores recursos
materiais e simbólicos pelo matrimônio, Charlotte pôde fazer de seu apartamento de
mulher casada um laboratório de inventividade: “Pour l’amenagér, je me sentais
délivrée des constraintes de mon enseignement, probablement parce que cette fois
j’allais créer pour moi. Et mon “moi” baignait dans l’expression de la rue.”113

Essa liberdade de criação em seu apartamento recém adquirido, favorecida


pela ausência de um cliente, se traduziu em transformações em relação ao seu
trabalho anterior. A ausência de cliente era relativa, pois se tratava do apartamento do
casal, o que em alguma medida colocava Scholefield em posição de cliente114. Uma
marca desse apartamento-laboratório foi a substituição da madeira pelo metal, o que
significava assumir um material frio no tato, associado a ambientes hospitalares ou de
trabalho, e, no imite, masculino. De algum modo, ela estabeleceu uma relação curiosa
entre espaço domestico e corpo, condizente com suas novas marcas corporais que,
olhadas retrospectivamente, parecem. À la garçonne, ela passou a usar com
freqüência o já citado colar de esferas de metal, “um símbolo e uma provocação, que
marcavam meu pertencimento à época mecânica do século XX” (Fig. 17)115. Segundo
seu relato autobiográfico, quando usava o colar, era chamada de “desumana”, em
referência ao filme de Marcel L’Herbier, L’Inhumaine. Curiosamente, este filme de
inspiração futurista teve seus cenários desenhados por Robert Mallet-Stevens,
arquiteto talvez com maior impacto na exposição de 1925116. E o metal que Charlotte

                                                                                                                         
113 . Charlotte Perriand, Une vie de création, op. cit., p . 23.
114 . Foi para mim uma curiosa experiência de pesquisa folhear o álbum de família de Percy Scholegield em
visita à sua sobrinha em janeiro de 2013. O que até então eu conhecia pela bibliografia e exposições como
“apartamento de Charlotte”, me foi mostrado como apartamento de Percy Scholefield, projeto de sua
esposa francesa Charlotte Perriand.
115 . Une vie de création, p. 23.
116 . Segundo Tag Gronberg, muitos consideram o filme de 1924 uma espécie de ensaio para a mostra de

1925. O filme incorporava diversos nomes que estariam presentes na exposição e evidenciava que, como
uma loja, podia funcionar como um mostruário das artes decorativas modernas da França. Tag Gronberg,

  63  
portava junto ao colo já parecia indiciar, de certo modo, uma convivência com um
tipo de trabalhador manual que já não era o artesão tradicional.

Em contato com os serralheiros do Marais, recomendados por Maurice


Dufrène, ela pretendia aplicar aos móveis as técnicas de carroceria de automóveis –
lembrando o fascínio que o automóvel exercia então, especialmente em tudo o que
significava simbolicamente enquanto estética. A Citroën teve forte participação na
exposição de 1925; a pintora Tamara de Lemplika fez um auto-retrato dirigindo um
automóvel em 1929 e Charlotte aprendeu a dirigir com seu marido. O carro, além de
tudo, sinalizava o movimento, o oposto de uma casa. Sua relação de troca com o
serralheiro Labadie era semelhante à dos artesãos da geração de seus pais com as
grandes lojas: ele tinha o conhecimento, ela sugeria as novas tendências. Ele ensinava
a ela as possibilidades do metal enquanto material; ela lhe mostrava seus projetos um
tanto distantes das madeiras e papéis de parede então em voga. Ao mesmo tempo, ela
buscava nas mostras de automóveis suas soluções de iluminação. O objetivo era
decorar seu apartamento de maneira radical, com uma sala de jantar que não receberia
toalhas de mesa e sim uma cobertura de borracha. Seu apartamento, onde o metal
começou a ser introduzido em sua criação pessoal, era enfaticamente art-déco. Para
seu quarto, ela projetou uma luminária em triângulos que era um modo de aproveitar
o teto inclinado da mansarda onde viviam, e o sofá tinha uma estampa também de sua
autoria. Mas o modo mais instigante de aproveitar o espaço reduzido de um último
andar de edifício haussmaninano foi situado logo na entrada do apartamento, com um
bar, lugar simbolicamente oposto ao salão burguês117.

Casada, Rive Gauche e com novas proposições técnicas, em 1927 ela


submeteu ao Salon d’Automne o bar de sua residência e foi aceita; sua reconstituição
em um pequeno espaço do Grand Palais, onde aconteceu o evento, foi financiada por
seu marido. Um bar, que na mostra ou em seu apartamento, segundo sua lembrança,
não foi feito por amor à bebida, mas porque ela não conseguia se imaginar recebendo

                                                                                                                         

“Paris 1925: consuming modernity”, Benton, C., Benton, T. & Wood, G. Art Deco 1910-1939. Boston,
New York & London, Bulfinch Press 2003.p. 161.
117 . Jacques Barsac, Charlotte Perriand, un art d’habiter. Paris, Norma Éditions, 2005, p. 27.

  64  
em um salão, e nos diários de Marrianne Clouzot há referências a tais reuniões, com
cocktails preparados por Percy118.

No mesmo ano de 1927, começou a conceber sua sala de jantar, com cadeiras
giratórias em couro e metal tubular. Uma mesa, que fechada podia acolher cinco
pessoas, era extensível para receber onze e tinha uma cobertura em borracha. Para
sentar, ela redesenhou cadeiras de madeira que havia projetado um ano antes, desta
vez em metal e couro.(Fig. 18) Seu apartamento, visitado por um crítico, Marcel
Zahar, teve a sala de jantar descrita em La Revue de La Femme como um espaço que
seduz por sua coqueteria, o que era uma maneira de ressaltar a leveza, alegria e
feminilidade do espaço .119.

Bar sous le toit (Fig 19 e 20) e a sala de jantar, projetados em situação de


maior autonomia em relação a seus mestres, foram as obras de transição e afirmação
em uma carreira que se iniciava. Segundo Costa Meyer, foi o momento em que
Charlotte Perriand agregou uma idéia de espaço exterior, de rua ao espaço de um
apartamento e abandonou noções de genius loci.120 Podemos argumentar que, mais do
que isso, nesse momento ela interpelou a noção de domesticidade burguesa tão
propalada na exposição de 1925, nos trabalhos dos estúdios das grandes lojas, na
imprensa especializada, uma domesticidade que dividia a casa por gênero, espaços
masculinos e femininos – afinal, uma jovem senhora projetou um bar, lugar
masculino por excelência. Por outro lado, como bem assinalou Arthur Rüegg, se com
um bar ela se distanciou de seus colegas mais conservadores ao exibir um espaço
jovial, na lógica da forma obtida ela ainda mostrava seus vínculos com o estilo art-
déco, por seu uso da geometria.121 Além disso, cadeiras giratórias que ela usou na
mesa de jantar eram um item de escritório norte-americano, nada comum nos espaços
domésticos europeus.

                                                                                                                         
118 . Une vie de création, p. 24. O salon era a parte feminina da casa burguesa, o lugar de receber e mostrar
status e savoir-faire. Ao que tudo indica, os colaboradores mais jovens de Le Corbusier, como André
Roth, posteriormente freqüentaram as reuniões que Charlotte promovia em seu pequeno apartamento.
119 . “En préface joyeuse, se développe l’installation du bar: harmonies vives, chatoyantes des tubulures

d’acier chromé, coulées brillants des larges surfaces courbes; accords endiablés des notations crues des
cuirs; aus murs se rassemblent, comme un affiche, les accessoires du parfait inventeur de cocktail. La salle à
manger séduit par son caractère de coquetterie. (....) Apud Jacques Barsac, op. cit., p. 32. Ver também Tim
Benton, “Charlotte Perriand: Les années Le Corbusier”. Centre Pompidou, Charlotte Perriand. Catálogo de
exposição. Paris, Centre Pompidou, 2005, p. 12.
120 . Esther da Costa Meyer, p. 30.
121 . Ruegg, A. Libre de bord, p. 17.

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Se o bar era um ambiente masculino, o metal era (e é) um material também
sexuado. Em 1929, Ernst Tisserand, um crítico de decoração, escreveu que o medo do
móvel tubular ou de todo tipo de móvel de metal era partilhado por senhoras da
aristocracia, pequenas burguesas e mesmo pelas famosas cocottes. Estas senhoras não
se dão conta de que vivem em meio a antigas mobílias carcomidas ou a peças
modernas que fazem lembrar túmulos ou mesmo caixões. O cemitério não as
incomoda; é a clínica que elas abominam.”122 Assim, pode-se dizer que o apartamento
de Perriand foi uma obra de ruptura, mais do que as que desenharia já no contexto do
ateliê de Le Corbusier: esse ambiente não tinha tapetes, tecidos, texturas macias ou
itens que feminizassem o interior doméstico em concordância com estereótipos
vigentes (então e mesmo ainda hoje). E as cadeiras pivotantes em metal tinham seu
assento forrado em couro, também um material associado aos espaços masculinos.

O nome era “bar sob o teto” e o teto era de uma mansarda parisiense e não de
um apartamento luxuoso; no mesmo artigo, Marcel Zahar observou que nesse
apartamento, a dona da casa podia prescindir de uma empregada doméstica, o que
remete a um debate intenso promovido em Paris por meio dos Salons des Arts
Ménagers, pela revista Mon chez moi e sobretudo pela atuação de Paulette Bernége:
como transformar o lar em um espaço que possa ser cuidado com menos empregados?
Como veremos, a resposta passava por arranjos mais funcionais123.

Se a partir de seu apartamento, que se tornou seu cartão de visitas, ela


começou a delinear uma ruptura em relação a seus mestres – mas é preciso lembrar
que, longe de qualquer modernismo militante, Dufrène já pensava em produção em
série, comercial, ou seja, era relativamente mais “moderno” do que Rapin e Follot –
em 1927 ela também esboçou outras articulações em termos de redes e grupos de
trabalho. Sob o impacto da exposição Die Wohnung em Stuttgart, um grupo formado
por René Herbst, Georges Djo-Bourgeois e Charlotte Perriand se autodenominou
unidade de choque (unité de choc) e apresentou um trabalho conjunto, o interior de
um apartamento no Salon des Artistes Décorateurs de 1927. No mesmo ano – embora
Jacques Barsac tenha certa dúvida quanto à data exata – ela elaborou um projeto
batizado de Travail et Sport, um conjunto de móveis tubulares publicados
                                                                                                                         
122 . « Le meuble de métal et son avenir », L’amour de l’art 11, novembro de 1929, citado por Esther da
Costa Meyer, op. cit., p. 30.
123 . Paulette Bernège será um tos tópicos do quinto capítulo.

  66  
posteriormente na série de livros Repertoire du goût moderne. Nessa publicação, ela
estava em companhia de nomes importantes das artes decorativas como Djo-
Bourgeois , Francis Jourdain, E. Kohlmann, René Herbst e de arquitetos como André
Lurçat e Robert Mallet-Stevens, em uma publicação que pretendia, como o nome
indica, fornecer repertório moderno aos possíveis interessados :

Qu’il existe un gout proprement moderne, cela personne ne songe plus aujourd’hui le
contester. En peu d’années, grâce à l’œuvre de quelques artistes, le goût qui s’imposa
d’abord à une élite, a gagné une partie importante du public – dans tous les pays. Ce
qui crée, pour l’édition d’art documentaire, des nouvelles obligations.

Il est moins urgent, en effet, de présenter désormais des photographies des


réalisations existantes le plus caractéristiques dans le domaine de l’habitation – ce qui
fit l’objet d’une précédente collection – que de fournir en des dessins et aquarelles les
mille aspects de l’intérieur moderne tek que le souhaitent tous ceux qui veulent vivre
en accord avec les temps. I s’agit, en somme, de fourni des solutions logiques,
pratiques, expressives aux problèmes que soulèvent l’organisation, l’aménagement, la
décoration d’un appartement.124

Travail et Sport foi um concurso de iniciativa da loja Galleries Lafayette e de


seu ateliê, e visava incentivar projetos para mobiliário em metal tubular125. Se não
podemos tratar o apartamento Perriand-Shcolefield como uma casa-manifesto, ele
certamente conferiu à jovem decoradora uma primeira experiência com o uso do
metal no mobiliário. Como os arquitetos e designers alemães, e talvez ela conhecesse
as cadeiras tubulares apresentadas por Marcel Breuer no Die Wohung de Sttutgart no
mesmo ano, ela já usava metal. Imaginava ambientes despojados de excessos
ornamentais, articulava redes de artistas modernos e propunha corpos atléticos em
ambientes renovados. Já havia feito de sua casa, um exemplo, uma proposta de como
se viver, um lugar a ser exibido. Apresentava-se no anuário dos artistas decoradores
como “Perriand-Scholefiel Meubles, 74, rue Bonaparte”126. Enfim, já era moderna e já
experimentara algum sucesso antes de conhecer o arquiteto que então já havia
provocado a cidade com suas casas, escritos e planos de cidade e com textos que ele
mesmo posteriormente chamaria de seus “sermões da montanha”. Ela já tinha

                                                                                                                         
124 . Répertoire du goût moderne, Éditions Albert Lévy, 1929. O trabalho de Charlotte Perriand foi publicado
nas pranchas 18 a 22 do segundo volume.
125 Barsac não tem muita certeza desta informação, considerando que pode ter sido iniciativa de Dufrène

para La Maîtrise, mas pode ter sido outra grande loja. Charlotte Perriand, un art d’habiter. Paris, Norma
Éditions, 2005, p. 34.
126 . Barsac, Jacques. Charlotte Perriand. Un art d’habiter. 1903-1959. Paris: Éditions Norma, 2005, p. 27.

  67  
existência profissional quando, aos vinte e três anos, conheceu Charles Édouard
Jeanneret, que poucos anos antes havia se rebatizado como Le Corbusier.

O ATELIÊ DA RUE DE SÈVRES

“Je ne puis me décider à dessiner une chaise; une chaise se fait avec
des outils et des expériences superposées; or je ne connais que mal
les outils et je n’ai pas d’expérience.” Le Corbusier, 1924127

Charlotte Perriand é sobretudo conhecida pelo trabalho que realizou com Le


Corbusier e Pierre Jeanneret. Isso consumiu apenas uma década de sua trajetória, mas
como vimos no primeiro capitulo, foi assim que seu trabalho foi (mal) enquadrado na
historiografia canônica. Cabe avaliar em que medida esses “anos Le Corbusier”
significaram uma mudança ou um desdobramento de seu trabalho. De qualquer
maneira, a partir dessa parceria assimétrica, ele se tornou uma designer moderna.

A mudança que desse encontro se segue tem seu mito de origem pessoal. Bem
sucedida, moderna e na moda, Charlotte teria achado tudo um tanto limitado. Recebeu
de um amigo dois livros de Le Corbusier que fizeram com que ela olhasse as artes
decorativas de outra perspectiva. Reside aqui parte da cilada classificatória que
nomeia este capítulo. No livro em questão, As artes decorativas hoje Le Corbusier,
como já o fizeram em Depois do Cubismo, volta sua verve contra as artes decorativas
e ela era.... nada mais do que uma artista decoradora moderna em ascensão. Os passos
seguintes, e a década em que trabalhou no atelier do arquiteto são marcados por
recusas e adesões a posições que foram se definindo como opostas, embora
mantivessem diversos pontos de proximidade: arquitetura moderna ou artes
decorativas?

Segundo seu relato, os tais livros eram Vers une Architecture e L’art décoratif
d’aujourd’hui. Ela já tinha obtido algum reconhecimento e tudo indicava uma
carreira de designer independente. “Aqui não bordamos almofadas”, foi a resposta
                                                                                                                         
127. Artigo intitulado “Un tournant”, publicado pela primeira vez em 1924 na revista Europa. Autores como
Barsac e Ruegg notam a inconsistência de tal afirmação, uma vez que desde os anos 1910 ele desenhava
móveis refinados. Eu tomaria contudo, tal afirmação no sentido de mais uma blague, às vésperas da
exposição art-déco de 1925.

  68  
que ouviu do já conhecido arquiteto suíço quando bateu à sua porta e tentou mostrar
seus desenhos. Le Corbusier e seu primo e braço-direito Pierre Jeanneret, contudo,
visitaram a ambientação Bar sous le toit e a convidaram a juntar-se a eles e outros
companheiros no ateliê que Cobu chefiava, não sem a “não-benção”, uma fala de
altercação de Dufrène, que predicou que ali ela “secaria por dentro”. As prédicas de
Corbusier e Dufrène, profissionais situados em pólos opostos no campo da arte
decorativa de então, indicam diversos níveis de contenciosos. De um lado,
conhecendo o ensino de artes decorativas – em que pese toda a misoginia de sua fala
– Le Corbusier talvez não pudesse esperar muito mais de uma jovem com tal
formação. Ainda assim, “não bordamos almofadas” é uma fala de não-investidura, de
desclassificação, desqualificação. Contudo, não foi certamente para defendê-la dessa
atitude que Dufrène não apostou em seu futuro no novo ateliê, e sim para explicitar as
dificuldades que viriam: não necessariamente por ela ser mulher, mas sobretudo por
se tratar de um ateliê que era quase uma corporação de ofício, onde jovens de várias
origens abrigavam-se à sombra daquele que consideravam um mestre, algo diferente
da experiência comercial que Charlotte vinha adquirindo. De qualquer modo, Le
Corbusier não foi apenas seduzido pelo mobiliário que viu: notou que ela tinha boa
formação – aluna de Dufrène e Rapin – e que aceitaria trabalhar como voluntária 128.

A recusa de Corbusier merece atenção, antes de sucumbirmos à tentação


barata de explicá-la apenas por aversão às mulheres ou algo semelhante. De um lado,
o estado do ensino de arte decorativas incluía o bordado com destaque. De outro, é
preciso lembrar que Charles-Edouard Jeanneret trabalhou como decorador antes de se
tornar Le Corbusier e assim como seus pares modernistas, rejeitava este trabalho.129 A
partir dos anos 1920 passou a repudiar as chamadas artes decorativas e publicou uma
série de artigos a quatro mãos com Amedée Ozenfant nos quais atacavam a decoração
e sua tendência a se apegar a estilos “pseudo-históricos”. Foram estes artigos,
publicados pela revista Esprit Nouveau e reimpressos no livro L’art décoratif

                                                                                                                         
128 . O que a meu ver só era possível por se tratar de uma mulher casada. A informação do trabalho sem
vencimentos está em Arthur Ruegg, Libre de bord, p. 15.
129 . O salão que ele criou para a Villa Jeanneret-Perret, por exemplo, em 1912 era bastante vinculado a

uma linguagem do século XIX. Não estava sozinho: Walter Gropius também trabalhou em projetos de
interiores no início de sua carreira, como o escritório de um advogado em Berlim em 1910. Penny Sparke,
The Modern Interior, p. 93.

  69  
d’aujourd’hui que, em um momento de crise pessoal130 tanto surpreenderam
Charlotte. Contudo, ele nunca abandonou totalmente sua atividade de decorador de
interiores diante de alguns clientes abonados de Chaux-de-Fonds, sua cidade natal,
como assinalou Tim Benton.131 Charles Édouard Jeanneret – ou seja, antes de ser Le
Corbusier – se ocupou do interior da casa de diversos amigos em La Chaux-des-
Fonds, o que lhe permitia o papel de comprador de móveis e objetos em Paris, ou seja,
propiciava que ele entrasse em contado – e os mantivesse – com eventos artísticos,
assim como com um universo da indústria e do comércio que, como vimos, estava em
plena renovação. Foi desse modo que ele adquiriu objetos e obras de arte para o
banqueiro Raul de La Roche – para quem projetou a casa homônima e para Marcel
Levaillant, industrial suíço da área de relojoaria: arte negra, poltronas da Maison
Maple, bens que deveriam compor o mundo particular do cliente. Renomeado como
Le Corbusier, passou a tentar construir uma certa teoria sobre os mecanismos de
escolha dos objetos da casa.132

Em suas Mémoires, o pintor Amedée Ozenfant falou de um “período de


aspirador de pó”, de depuração da arquitetura pelo vazio. Desse “aspirador
enlouquecido” – é desta tese a formulação jocosa – sobrariam uns poucos objetos:
armários, mesas, cadeiras e camas. Coerentemente, Le Corbusier deu especial atenção
aos armários, seus reiterados casiers standard. Na revista Esprit Nouveau de junho de
1921, Corbusier e Ozenfant133 publicaram um primeiro catálogo de móveis-tipo:

Il existe des chaises à paille à cinq francs, les faulteuils Maple à mille francs et les
Morris-chair à inclination graduée avec tablette móbile pour le lévre en lecture,
tablette pour la tasse de café, rallonge pour étendre ses pieds, dossier basculant avec
manivelle pour prendre les positions les plus parfaites depuis la sieste jusq’au travail,
hygiéniquement, confortablement, correctement. Vos bergères, vos caseuses Louis
XVI avec Aubisson ou Salon d’Automne à positions, son-elles des machines à
s’assessoir?

                                                                                                                         
130 . Segundo suas memórias por não querer projetar para a burguesia e freqüentar os salões; segundo
depoimento de Marianne Clouzot a Jacques Barsac, por não desejar iniciar uma família. De qualquer modo,
há narrativas de que ela por um momento pensou em deixar tudo e se refugiar no campo, na cidade de
seus avós.
131 . Benton, Tim. “Charlotte Perriand: les années Le Corbusier”, ”. Centre Pompidou, Charlotte Perriand.

Catálogo de exposição. Paris, Centre Pompidou, 2005, p. 12.


132 . Lina Bo Bardi e Charlotte Perriand também, como veremos no próximo capítulo.
133 . “Manuel d’habitation”, L’Esprit Nouveau no. 9, 1924, apud Arthur Ruegg,”Les contributions de Le

Corbusier à l’art d’habiter, 1912-1937: de La décotation interiéure à l’equipment” , Le Corbusier Encyclopédie,


pp. 124-135.

  70  
Certamente nessa querela contra os estilos, ele não considerava o que
realizava nesse sentido como ensemble ou decoração e sim como arquitetura,
equipamento de interiores, distinção lexical que ao invés de atenuar os conflitos
latentes apenas os encobre134. Assim, Charlotte, como Eileen Gray, veio a se tornar
uma figura importante no modernismo vanguardista, masculino, com e contra seu
background de desenhista de interiores135: era por isso que elas estavam nesse meio e
era contra isso que elas talvez precisassem se rebelar para nesse novo meio se manter.

O ateliê de Le Corbusier nesse momento contava com poucas pessoas. Além


dele e de seu primo e parceiro de trabalho Pierre Jeanneret, contava com o arquiteto
suíço Alfred Roth e com dois japoneses, Junzo Sakakura e Kunio Maejawa, além do
iugoslavo Ernst Weissmann136. Uma Torre de Babel onde se falava todos os idiomas
mas a mesma língua, como ela assinalou em suas memórias137.

Ao que tudo indica, a visita frustrada de Perriand, então com 24 anos, ao ateliê
ocorreu alguns dias após o encerramento da já mencionada exposição de Stuttgart138.
Nessa mostra de habitações a cozinha foi o centro das atenções, com as regras gerais
definidas por uma Associação de Donas de Casa de Stuttgart e pelo livro Der neue
Haushaut, livro de 1926 da feminista Erna Meyer sobre a “nova casa” que vendeu
vinte e nove edições em dois anos, e que vinha ilustrado com casas construídas por
arquitetos ligados ao Neues Bauen e com equipamento projetado pela Bauhaus. As
casas apresentadas pelo arquiteto J.J.P. Oud era um exemplo desse novo ideal de casa
eficiente (21). Por outro lado, os interiores das casas de Le Corbusier, desenhados por
                                                                                                                         
134 . Florence Knoll, responsável pelo mobiliário e pelo uso do espaço dos showrooms dos móveis Knoll,
declarou em 1964: “I am not a decorator... the only house I decorate was mine”. E em uma entrevists:
“People ask me IF I AM a furniture designer. I am not.” Sobre Florence Knoww, ver Bobbye Tigerman. “
‘I am not a decotator’: Florence Knoll the Knoll Planning Unit and the Making of the Modern Office.
Journal of Design History, Vol. 20, no. 1.
135 . Sparke, Penny. “Elsie de Wolfe and her female clients, 1905-1915: gender, class and the Professional

interior decorator.”, Martin, B. & Sparke, P. Woman’s place: architecture and design 1860-1960. London & New
York: Routledge, 2003, p. 48.
136 . McLeod, Mary. “New Designs for Living. Domestic equipment os Charlotte Perriand, Le Corbusier,

and Pierre Jeanneret, 1928-29”. McLedo, op. cit., p. 36.


137 . “Dans cette tour de Babel, on parlait toutes les langues, mals le français, mas on parlait le meme

langage. “ Une vie de création, p. 27.


138 . Exposição dirigida por Mies van der Rohe que consistia em trinta e uma edificações profetadas por

dezessete arquitetos, incluindo blocos de apartamentos do próprio Mies, de J.J.P. Oud e de Mart Stam, e
diversas casas, o que incluía duas de Le Corbusier e Pierre Jeanneret. Segundo Mary McLeod (2003:37), os
interiores das casas alemãs eram elegantes, enquanto Le Corbusier não dava conta de equipar suas casas à
altura de seus projetos arquitetônicos. Nesse caso, no último momento, seu parceiro Alfred Roth desistiu
de esperar os projeto de equipamento que não chegava e improvisou, com um resultado que contrastava
muito com o interior do apartamento de Mies, projetado em parceria com Lilly Reich. Le Corbusier foi
severamente criticado pelos alemães.

  71  
Alfred Roth sem qualquer ajuda do mestre, foram mal recebidos, considerados mal
acabados e aquém do arrojo da proposta arquitetônica. A própria reformadora social
Erna Meyer criticou os interiores da casa de Corbusier em carta a Mies Van der Rohe.
As ressalvas eram específicas e endereçadas, mas traduziam uma visão mais ou
menos corrente segundo a qual os interiores austríacos e alemães eram o resultado de
atividade intelectual enquanto os franceses eram instintivos e intuitivos, como
publicou de modo caricatural e esquemático a revista International Studio em 1915.
Alem disso, nessa mostra ficou evidente que Le Corbusier não projetava mobiliário, o
que seus concorrentes alemães faziam muito bem.

No ateliê, sem remuneração139 e com o status de associada para o equipamento


interior, Charlotte pôde oferecer expertise naquilo que faltava ao grupo de Le
Corbusier: a desprezada arte decorativa, e ela colaborou com os interiores da Villa La
Roche (1923-25) e da Villa Church (1927), que até então não tinham recebido
projetos para seus interiores. Mas os livros de Corbusier que a seduziram pouco
ajudavam em suas escolhas formais e foi preciso recorrer a outros designers cujas
soluções eram então mais avançadas do que a do mestre suíço. René Herbst era um
deles e já havia apresentado móveis em tubos de metal no Salon d’Automne de 1926.
Charlotte talvez estivesse presa em uma cilada: Corbusier não dera atenção a
mobiliário até então e seus antigos professores não poderiam mais ajudá-la. Por outro
lado, estar no ateliê que funcionava em um antigo convento era inspirador e uma fonte
de novas descobertas. Le Corbusier a presenteou com o livro Le Nombre d’or, de
Matila Ghyka, sobre proporção, e sua primeira tarefa foi refazer os interiores da Villa
La Roche, a casa do banqueiro e colecionador homônimo. Em suas memórias ela
lembra de entrar nessa casa como uma experiência de choque: o espaço todo branco,
com paredes em cores fortes, uma opressão de felicidade140. Ela recorda os tempos do
ateliê como não motivados por dinheiro, circunstância que ela compartilhava com
jovens de várias origens no mesmo espaço de trabalho, e talvez por isso tenha
preservado alguma autonomia: continuou a receber suas próprias encomendas e
manteve seu círculo de amigos.

                                                                                                                         
139 . Segundo seu “curriculum literário”, quando Lina Bo foi trabalhar com o conhecido Giò Ponti em
Milão, também foi aceita sem remuneração.
140 . “C’était en 1927, ma première visite à La Roche. Quel choc, comme une oppression de bonheur.” Une

vie de création, p. 28.

  72  
A participação no ateliê de Le Corbusier não a afastou de seus parceiros das
artes decorativas. Como já vimos, no final de 1927, Rebé Herbst, Djo-Bourgeois e
Charlotte decidiram projetar o interior de um apartamento modelo e, associados aos
joalheiros Jean Fouquet – o responsável pela leitura dos textos de Le Corbusier e
Gérard Sandoz, se autodenominaram uma “unidade de choque”(Fig. 22). Ao lado de
um salão e uma cozinha de Djo-Bourgeois com ares de clínica médica141 e um fumoir
– espaço eminentemente masculino – de Herbst, Charlotte exibiu, mais uma vez, sua
própria sala de jantar. Cara, a instalação foi mais uma vez financiada por seu marido,
segundo Jacques Barsac, Scholefield teria pago a mesa extensível, cadeiras e bancos
pivotantes. Segundo Tim Benton, a cadeira pivotante foi produzida com ajuda
financeira de sua mãe142. De qualquer modo, o financiamento era familiar e seis
meses depois de começar a trabalhar com Le Corbusier, foi elogiada por seu trabalho
com outros parceiros. Suas cadeiras pivotantes começaram a fazer parte dos projetos
em grupo do ateliê da rue de Sèvres; em outras palavras, alguns móveis de desenhou
para seu apartamento tornaram-se protótipos para o mobiliário do ateliê de Le
Corbusier143.

Não é possível até o momento se falar com segurança das condições de


produção das outras cadeiras que passou a fazer parte repertório de móveis assinados
em conjunto com Corbusier e Jeanneret144. A “unidade de choque” era ainda era parte
de uma estratégia mais ampla, não em parceria com os primos Jeanneret, mas com
seus colegas mais modernos das artes decorativas: o trio deliberou mostrar seus
ambientes próximos uns dos outros de modo a criar um “choque unificado”. A sala de
jantar de Perriand apresentava móveis idênticos aos de seu apartamento e uma mesa
posta na qual o serviço de louças, talheres e copos aparecia sobre o tampo de
borracha, sem toalha. Mc Leod observa que se o uso do metal era importante no
manifesto – ou choque – do grupo, existia também o objetivo mais rarefeito de se

                                                                                                                         
141 . Mary Mc Leod, p. 39.
142 Benton, T. ”Charlotte Perriand. Catálogo de exposição. Paris, Centre Pompidou, 2005p. 12.
143 . O livro de Vincent A. Masucci Le Corbusier Machines for living. Furniture: a critical history foi editado pelo

Centre Le Corbusier de Zurique, que por sua vez é mantido por Heidi Weber, a detentora dos direitos
autorais do mobiliário a que nos referimos neste capítulo. Seu livro (e a exposição que o acompanhou) é
uma resposta à reivindicação de Perriand quando à autoria e participação em alguns projetos
posteriormente patenteados como Le Corbusier. Ainda assim, ele admite que a cadeira e o banco pivotante
são de 1927 e de Charlotte.
144 . Segundo Mary Mc Leod que a entrevistou, ela não demonstrava desconforto por estes móveis terem

entrado para o repertório compartilhado no ateliê. McLeod, op. cit., p. 268 n. 16.

  73  
criar um ambiente jovial, voltado para a vida moderna: essa era a razão da mesa sem
toalha, da louça branca comum, dos copos simples, tudo isso aludindo a uma
sociabilidade afastada das formalidades burguesas, em espaços que não requeriam
serviço domestico145. Vistos em conjunto, o salão, o fumoir e a sala de jantar
formavam um ambiente austero, distante da nonchalance do bar sob o teto146.

Houve quem chamasse o trio Perriand, Djo-Bourgeois e Herbst de “extrema


esquerda”. Outros críticos os classificaram como vanguarda e a prestigiosa revista
inglesa The Studio escreveu que ao entrar no conjunto era possível experimentar “o
sentimento de se entrar em um mundo novo, de se quebrar com tradições estreitas”. E
as revistas femininas enfatizaram a superfície emborrachada, entre outros aspectos de
uma sala projetada por uma mulher jovem, que usava roupas ousadas e cabelo à la
garçonne – em suma, um novo estilo de vida que nada tinha a ver com a sala de jantar
da dona de casa tradicional. Embora os ambientes mostrando partes da casa ainda se
dirigissem à dona de/da casa, à mulher consumidora, havia algo nesses ambientes que
sugeria que ela podia ser esportista, ter outros interesses e uma vida ativa.147

Contudo, é preciso enfatizar: ao lado de seus novos parceiros do ateliê de


vanguarda, ou com aqueles que se situavam próximos ao pólo da decoração de
interiores, como Herbst e Djo-Bourgeois – e não dá pra não notarmos as situações
homologamente triangulares dessas parcerias – tratava-se de uma mulher em um meio
bastante masculino. Em poucos momentos essa circunstância – uma mulher
trabalhando com homens foi tão destacada como quando, em 1928 ou 1929, Charlotte
convidou Corbusier e Jeanneret para testemunhar, em seu apartamento, três protótipos
de cadeiras em aço tubular. Pressionada a terminar logo os projetos para os móveis –
o mestre do ateliê repetia um provérbio da região do Jura, “Ce que tu fais, fais-le” –
ela se ausentou do ateliê para procurar os artesãos de sua confiança, para procurar o
couro inglês, “o mais bonito do mundo”, para que um tapeceiro pudesse fazer a
poltrona grand confort, recheada de plumas por uma técnica tradicional e
estofamento.

                                                                                                                         
145 . Mary Mc Leod, op. cit, p.40.
146 . Libre de Bord, op. cit., p. 23.
147 . Mary Mc Leod, op. cit, pp. 43-4.

  74  
Cadeiras e poltronas constituíam um programa importante para o ateliê. Os
alemães já haviam feito várias delas. O mobiliário era parte dessa proposição de um
modo de vida ativo, com poucos objetos móveis – a cadeira é assim o elemento
irredutível. Quando os arquitetos não desenhavam cadeiras, apelavam para as de
Thonet, de madeira vergada, que eram baratas e industrializadas. O projeto da cadeira
tubular tornou-se assim uma “alegoria exemplar do modernismo”148. Uma cadeira
podia ser vendida em qualquer loja, aceita mesmo em ambientes refratários a uma
casa funcionalista, vista por muitos nos anos 1920 como algo um tanto bolchevique.

O resultado do empenho de Charlotte foi reunido em seu apartamento em


Saint-Sulpice: a chaise longue, a cadeira pivotante, e a poltrona confort em dois
tamanhos. Quando eles chegaram sem saber que os protótipos seriam exibidos, Le
Corbusier resumiu sua impressão: “Ils sont coquets”.149

Choque, esquerda e coqueteria: tais termos, mais do que qualificar o trabalho


de Charlotte e seus parceiros, aponta para os dilemas das artes decorativas em sua
fricção com uma arquitetura que ao fazer interiores as renomeava como
equipamentos, em um tom mais maquinista: afinal, a casa era uma máquina. E um
dilema em relação à indústria, às condições de produção. Financiados por Percy
Scholefield, tais móveis tubulares não haviam ainda despertado interesse na indústria
francesa, e uma decoração de gauche, ao menos mais democratizada, popular,
massificada parece uma contradição nos termos se levamos em conta o contexto
francês que enfatizava a produção de artigos de luxo. O luxo como partícipe da
identidade francesa foi certamente uma das razões de ser da exposição de 1925. Quem
pensava em prover soluções para o francês médio eram as lojas de departamentos,
especialmente as iniciativas coordenadas por Maurice Dufrène, e o oposto do luxo era
também resolvido pelo comércio, pelo mobiliário que não tinha nenhum pudor em ser
apresentado como mercadoria.

Não era o caso alemão se lembramos que em 1927 a arquiteta austríaca Grete
Schütte-Lihotzky “inventou” a cozinha moderna, denominada cozinha de Frankfurt,
pensada para um conjunto habitacional nesta cidade, o que demandou a construção de

                                                                                                                         
148 . Charlotte Benton, “Le Corbusier: Furniture and the interior” Journal of Design History Vol. 3, nos. 2-3,
1990, p. 104
149 .Tim Benton, op. cit., p. 12.

  75  
11 mil cozinhas idênticas, salvo variações de cor. O debate a respeito da habitação
mínima, central nas primeiras reuniões dos CIAMs, era dominado por alemães e
suíços. Talvez a cozinha de Frankfurt não possa ser enquadrada na rubrica “artes
decorativas”, mas não era esse o caso das cadeiras produzidas no contesto do ateliê de
Le Corbusier. Quanto à Cozinha de Frankfurt, a sugestão de um baquinho pivotante
para a dona de casa se mover enquanto trabalhava sentada – como já vimos, as
cadeiras giratórias vêm dos ambientes de trabalho – pode nos autorizar a pensar que,
além de prestar atenção em trabalhos de diversos arquitetos e decoradores, estas
mulheres prestavam especial atenção nos trabalhos umas das outras. A cozinha de
Frankfurt foi pensada para famílias de operários, e naquele momento, Charlotte
reconhecia que suas cadeiras eram elitistas, como talvez não pudessem ser de outro
modo na menos industrializada França. Por isso, em programas coletivos como
conjuntos habitacionais, ela, Jeanneret e Corbusier continuaram a usar os móveis
Thonet de madeira vergada, “honestos e econômicos”; nos ensembles de prestígio,
empregavam as cadeiras de metal criadas em 1928150: a vida moderna jovial,
esportista e sem empregados domésticos tornou-se uma proposição para as elites, se
não estritamente econômicas, mas culturais, cultivadas. Embora para Charlotte isso
constituísse um certo dilema, a opção não era só dela: também Le Corbusier concebeu
e exibiu armários em duas modalidades: para a classe operária, por meio das casas
Loucheur;151 e para a burguesia, para quem eles eram exibidos nos populares salões
de decoração, pintura, escultura e arquitetura como o Salon d’Automne – que era
anual – de 1929. À fascinação pela “era maquinista” não correspondia um
empresariado, um cliente ou uma indústria interessada em móveis de metal.

O luxo, como assinalou Vânia Carvalho, apoiada nas análises de Philippe


Perrot, pressupõe o evidente desequilíbrio da hierarquia social, manifesta
desigualdades, expõe contradições entre valores igualitários e aqueles alimentados
pela competição, diferenciação e desejo de exibir a ascensão social. A análise precisa
de Carvalho nos propõe que encontrávamos no século XIX uma produção de objetos
que tomava como repertório de referência o Antigo Regime que ressurgia, o que é

                                                                                                                         
150. Une vie de création, p. 33.
151 . A lei Loucheur, de iniciativa do Ministro do Trabalho e da Previdência Social Louis Loucheur, de
1928, previa a interferência do estado na habitação popular deu origem aos HBM (Habitation à Bon
Marché). Em resposta à lei, Le Corbusier concebeu casas com o uso de pré-fabricação destinada aos
trabalhadores.

  76  
espantoso, como exaltação do trabalho produtivo, racional e funcional. Mas esse
caminho sinuoso do luxo burguês terminaria por desembocar num “hedonismo
privado” (termo da autora) que viria aos poucos a substituir a noção de luxo pela de
conforto – um luxo burguês merecido e laborioso152.

Se é assim, como pensar em proposições que abriam deliberadamente mão da


noção de conforto, sobrepujada pela de racionalidade, limpeza visual? Como ler,
diante disso, afirmações peremptórias como as de Adolf Loos contra os ornamentos?
Quantos descaminhos foram necessários até que tais proposições vingassem, não
como a antítese do luxo burguês, mas talvez como parte da identidade do burguês
boêmio que não se apresenta como tal?153 Talvez aqui, escusando a arbitrariedade da
comparação entre objetos e temporalidades tão distintas, caiba a análise de Michael
Baxandall. Em O olhar renascente, o historiador da arte interpreta o declínio
gradativo, ao longo do século XV, da exibição dos pigmentos caros na pintura
religiosa feita sob encomenda: “Tem-se a impressão de que os clientes se tornaram
menos preocupados do que antes em ostentar em público a pura opulência do
material”154. O autor evita explicar tal mudança exclusivamente em termos da história
da arte e identifica outros sinais de recusa ao comportamento ostentatório, como a
substituição dos trajes espalhafatosos em brocados por roupas pretas sóbrias.
Atribuindo origens variadas à ruptura com o esplendor dourado, Baxandall assinala
que não se tratou, contudo do fim da extravagância: os tecidos pretos mais finos eram
cortados em viés, o que o desperdiça. Em suma, a ostentação continuava, mas de
outras formas; na pintura, os materiais caros foram substituídos por técnica e
habilidade: o pincel de Botticelli chegou a constar de um contrato155. A “mão” do
pintor era o que mais importava.

Quando o chamado movimento moderno lança sua guerra santa contra


ornamentos, brocados e ostentações evidentes talvez não estivesse substituindo,
digamos, o mármore pelo betão com a “mão” de um arquiteto mas, posto que entrava
nos termos da negociação a estandartização e o papel da indústria, o “pincel”, aqui
entendido como o “pulo do gato” passava a ser o projeto. O deslocamento se dava na
                                                                                                                         
152 . Carvalho, V. Gênero e artefato, pp. 25-6.
153 . Segundo Tim Benton, Le Corbusier escreveu uma vez a um cliente justificando a falta de pintura nas
paredes de concreto: “Nós não somos burgueses”. Aula de Benton na Unicamp, 2011.
154 . O olhar renascente. Pintura e experiência social na Itália da Renascença, São Paulo: Paz e Terra, 1998, p. 24.
155 . Idem, p. 27.

  77  
concepção: a maestria de um edifício de concreto ou de uma cadeira em aço, materiais
pouco “nobres”, passava para o projeto e seu autor.

Contudo, nos anos 1920-30 essa “magia da grife” ainda não tinha sido
reconhecida. Os problemas de fabricação eram muitos e os móveis eram de fato
dispendiosos. Mesmo o colecionador Raoul La Roche, dono da Villa homônima,
reclamou do preço do protótipo de uma poltrona. Uma chaise-longue em lona era
vendida no catálogo de 1930 da Thonet por mais do que uma espreguiçadeira de
madeira de William Morris. O dedo na ferida veio da crítica do arquiteto italiano
Edoardo Pérsico (1900-1936), que afirmou não ver nenhuma diferença entre a
vanguarda e os decoradores mais tradicionais, ou melhor, sim, ele via: a diferença é
que Corbusier poderia atender a burguesia de toda a Europa, não apenas da França.
Mas o que afastava as classes mais baixas dos projetos e cadeiras não era apenas seu
custo. O desdém iconoclasta que o trio Corbusier-Perriand-Jeanneret demonstrava
quanto às pretensões burguesas de domesticidade não atingia classe nenhuma, apenas
uma pequena fração dominante, intelectual e artística.

Talvez a iconoclastia fizesse nesse momento parte da construção do carisma.


E as indagações de Charlotte podem ser lidas hoje como politicamente corretas e até
mesmo um tanto pueris: no pólo erudito do objeto decorativo de luxo encontrava-se o
equipamento da habitação, os móveis limpos e gelados. E como conceber um “design
de oposição” não apenas em um país menos industrializado do que a Alemanha mas,
sobretudo, quando ela trabalhava com um dos proponentes do chamado “retorno à
ordem”, que preconizava o fim de uma arte de protesto. Oposição a que, seria a
pergunta. Aos ateliês das grandes lojas nas quais eles talvez almejassem entrar, mas
eram dominados pelos outros parceiros de Charlotte Perriand? Oposição a uma
clientela assim denominada, que agia segundo seus gostos e preferências, e a
decorrente busca de um cliente desinteressado e comprometido com a vanguarda, que
no limite fechasse os olhos para o projeto e desse carta branca? A simpatia pela
industrialização e fordismo se aliava à aura do objeto especial e assim eles sequer
cumpriam o que prometiam em seus manifestos redigidos sempre na terceira pessoa.

  78  
O design, o espaço fordista, a ergonomia, tudo isso adaptava-ser perfeitamente a essa
nova onda156.

Para além destes dilemas, da adaptação dos meios e materiais de expressão aos
possíveis usuários ou comitentes, um episódio de 1929 demanda nossa atenção
minuciosa: o Salon d’Automne. Nesse espaço diversas tensões se explicitaram; e ali
foi tirada o icônico clichê de Charlotte Perriand na coquette cadeira de repouso – a
imagem que originou esta tese, tratada no capitulo anterior. Contudo, antes da
abertura desse salão houve uma explicitação dos dilemas das artes decorativas frente à
arquitetura moderna.

1929: DE ARTISTAS DECORATIVOS A ARTISTAS MODERNOS

Se havia algo de ardil nesse campo tenso prestes a cindir, este se faria evidente
em 1929. Dilemas como produção em massa para todos versus produção de luxo para
clientes, assim como decoração versus outros nomes para dizer a mesma atividade,
ainda que em outra chave, tudo foi posto na mesa. E a foto da cadeira que esta tese
persegue é talvez a culminação desse ano. Havia a possibilidade dos móveis
nomeados como de Corbusier, Jeanneret e Perriand serem fabricados pela empresa
Thonet-Mundus157 e para tanto era preciso que eles fossem exibidos em ensembles,
indicando modos de usar. Eram cadeiras: a pivotante que Charlotte projetou para sua
casa, uma espreguiçadeira (chaise-longue), uma poltrona em dois tamanhos e uma
cadeira poltrona leve cujo encosto se movia. Rüegg nota que a mesa extensível com
tampo de borracha que Charlotte também desenhou para seu apartamento de casada
ficou de fora. Cadeiras eram importantes, cadeiras os aproximariam dos pares alemães
como Marcel Breuer e Mies van de Rohe.

Charlotte Perriand seguiu as formalidades de praxe, que já dominava, e


solicitou um espaço no Salon des artistes décorateurs daquele ano. Foram recusados e
apos um mês de troca de cartas entre Le Corbusier e organização do salão finalmente

                                                                                                                         
156 . A melhor análise sobre esse momento de embate entre o Purismo e o Cubismo está, a meu ver no
livro de Carlo Ginzburg, Relações de força. São Paulo, Companhia das Letras.
157 . Gebrüder Thonet e Mundus AG eram empresas separdas que em 1921 se uniram para formar a maior

manufatura de móveis do mundo. A Thonet-Mundus durou até 1938, quando a família Thonet conseguiu
comprar sua parte de volta.

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foram aceitos, mas uma carta de Charlotte declinou na proposta. Dois meses depois,
um grupo formado pelos protagonistas do conflito ao lado dos parceiros e colegas do
campo da decoração, enfim, um time que juntou Robert Mallet-Stevens, Helène
Henry, Sonia Delaunay e outros, rompeu com o SAD e criou a Union des Artistes
Modenes (UAM)158. O manifesto, lançado em 1934 afirmava que a vitalidade de uma
arte pode ser mensurada pelo grau de oposição que encontra: “Les attaques contre
l’art moderne, c’est-à-dire l’art le plus représentatif du temps et le plus conditionné
par l’époque, se font de plus en plus vives.159

A quem se dirigia o manifesto de fundação da UAM : a outros artistas


decoradores, a quem ficou do lado de fora, ao mercado, clientes, a lojas como as que
tinham seus ateliês de decoração ? De qualquer modo, a UAM preconizava uma « arte
útil », incluía as artes aplicadas e os objetos que se destinam à venda. Le Corbusier e
Pierre Jeanneret assinam o manifesto como arquitetos e Charlotte se apresenta como
decoradora. A partir de 1930 a UAM começou a promover as próprias exposições. O
manifesto da UAM, lançado em 1934 deixa claro que toda a disputa pelas artes
menores era também uma querela contra a « arte pela arte ». Diante disso, pouco
espanta o nome das exposições posteriores da UAM : formes utiles. Apesar da ênfase
na recusa ao trabalho do trio Corbusier-Jeanneret-Perriand para a criação da nova
associação, não coube a eles a primeira diretoria da UAM e sim a Hélène Henry, René
Herbst, Francis Jourdan, Robert Mallet-Stevens, Raymond Templier (joalheiro, 1891-
1968). A criação da UAM pode ser comparada à dos CIAMs em 1927: a partir de
uma “derrota” de um movimento que ainda não operava como tal, cria-se um novo
grupo, de combate, uma frente para influenciar governos e empresários. No caso da
UAM, a quem se dirigiam? Talvez a eles mesmos ou às lojas de departamentos,
naquele momento talvez um pouco mais sensíveis a novas linguagens. Se assim é,

                                                                                                                         
158 . Curiosamente, na criação da UAM, Charlotte apareceu como decoradora e Eileen Grey como
arquiteta. Em 1934 os membros ativos eram: Rose Adler, Pierre Barbe, Louis Barillet, Georges Bastard,
Francis Bernard, Jean Burkhalter, Carlo Rim, Jean Carlu, A.M. Cassandra, Pierre Chareau, Paul Colin,
Etienne Cournault, Joseph Csaky, Jean Dourgnon, Jean Fouquet, Marcel Gascoin, Adrienne Gorska,
Gabriel Guevrekain, Helene Henry, René Herbst, Lucie Holt-le-Son, Francis Jourdain, Frantz_Phillippe
Jourdain, Robert L’Ellemant, Jean Lambert-Rucki, Jacques Le Chevallier, Le Corbusier et Pierre Jeanneret,
Claude Lemeunier, Charles Loupor, Andé Luçart, Robert Mallet-Stevens, Jan et Joel Martel, Gustave
Miklos, Charles Moreux, Nelson, Charles Peignot, Charlotte Perriand, G.H. Pingusson, Jean Prouvé, Jean
Puiforcat, André Salomon, Gérard Sandoz, Louis Sognot et Charlotte Alix, Raymond Templier,
Maximilien Vox. Ver René Herbst, 25 années UAM. Paris, Éditions du Salon des Arts Ménagers, 1956.
159 . René Herbst, 25 années UAM, Paris: Éditions du Salon des Arts Ménagers, 1956, p. 17.

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temos a volta do dilema experimentado por Charlotte a respeito de um design para
todos, de esquerda, de choque, da divisão entre o móvel para um cliente genérico e
aquele para um cliente com rosto.

Mas antes disso, é preciso indagar os possíveis motivos de sua


desclassificação como decoradora no momento em que fez parte de uma ruptura com
as artes decorativas. Nunca saberemos se foi uma escolha ou uma imposição. Eileen
Gray é apresentada como arquiteta e arquitetura aparecia no espectro classificatório
do trio com quem trabalhava – mas não necessariamente da UAM, como vimos pela
composição da diretoria – como acima das outras formas de expressão que eles
realizavam, como a decoração. É a reencenação do mantra da Bauhaus, ou a
atualização do esquema classificatório. Pois o trio fazia trabalhos de decoração, ainda
que usassem outros termos, e que mesmo a melhor bibliografia sucumba ao seu
encanto. Ruegg, autor de excelentes trabalhos sobre Le Corbusier, Perriand e
mobiliário, ao mencionar os trabalhos do trio na Villa La Roche e na Villa Church –
respectivamente uma galeria de obras de arte entre 1927 e 1928 e uma biblioteca entre
1927 e 1929 – usa os termos remodelação e mobiliário, mas jamais decoração, mesmo
com uma descrição pormenorizada do chão , do mármore da mesa, da estante em
vidro e metal e da luz indireta na galeria da primeira casa. Nessa Villa os protótipos
das cadeiras foram instalados e, mesmo sem apreciar especialmente a chaise-longue,
Raoul La Roche terminou adquirindo o conjunto como uma forma de ajudar a
financiar sua exibição no Salon d’Automne no mesmo ano de 1929.

Charlotte fez tanto esforço para migrar de um ambiente mais acadêmico e


comercial para a vanguarda, que quando lá chegou esta última já estava mais
estabelecida, como mostra a própria UAM e suas formas úteis, prestes a entrar no
mercado que antes fora dos objetos ditos de estilo. Por outro lado, vemos pela
documentação da exposição de 1925 o desejo do campo das artes decorativas de ser
moderno, e mesmo sem ser modernista, de proclamar uma vida regida pela
velocidade vertiginosa. Mais do que pode parecer à luz da bibliografia consolidada, o
recurso às fontes originais revela dois pólos do mesmo campo muito mais próximos,
amalgamados mesmo do que talvez ambos os lados – especialmente o da vanguarda –
gostaria de admitir.

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Em setembro de 1929 Le Corbusier realizou a viagem à America do Sul que
viria a se tornar um marco para a arquitetura moderna brasileira, assim como para sua
historiografia. Quando o Salon d’Automne foi inaugurado ele se encontrava em alto
mar, segundo as lendas, em pleno flerte com a dançarina Josephine Baker que
Charlotte tanto admirava. Antes disso, em junho, ele recebeu a confirmação de aceite
por parte do salão e aprimorou seus contatos com a empresa Thonet-Mundus: desta
feita, os móveis contariam com o apoio financeiro do braço parisiense da fábrica de
móveis austríaca Thonet, que fabricou os móveis em metal em troca do direito de
produzi-los160. O salão abriu suas portas no início de novembro, mas o stand de
Corbusier, Jeanneret e Perriand veio à público doze dias antes do encerramento da
exposição. Objetos pessoais e do ateliê fizeram parte do décor, junto ao mobiliários: o
colar de bolotas de Charlotte, o cachimbo de Jeanneret, exemplares do livro Vers une
architecture e mesmo, em um dos quartos um vestido de Charlotte ao lado de um
casaco de Jeanneret, além de uma pedra polida que fazia parte de sua coleção de
objets trouvés. Ela deixou sua impressão digital, sua marca no trabalho coletivo do
ateliê161, o que culminou no seu gesto de se fazer fotografar em várias poses na chaise
longue. Ou talvez, para além do desespero de precisar montar um ensemble em pouco
tempo e na ausência do mestre, ela desse continuidade ao caráter experimental e
demonstrativo do seu cotidiano moderno, como já o fizera ao expor seu apartamento e
seu bar. Contudo, aqui temos uma mudança, no mínimo, de escala: os móveis já
tinham o estatuto discursivo (ainda que não a prática) de móvel industrial para
qualquer usuário, e o que ela trouxe tinha uma certa carga de subjetividade, como a
pedra polida e seu próprio traje – isso para não mencionar o fato de colocá-lo ao lado
do paletó de Jeanneret com quem anos depois, já divorciada de Percy Scholenfield,
ela iniciaria uma relação amorosa.

Mas antes do Salon d’Automne, segundo a detalhada pesquisa de Arthur


Rüegg, Charlotte Perriand já tinha tomado para si a tarefa de promover novas idéias e
projetos. Em 1928, logo apos o SAD ela enviou, em seu nome, a cadeira pivotantes (e

                                                                                                                         
160 . Ao financiar as peças do Salon d’Automne, a Thonet Frères adquiriu o direito das peças que os designer
apresentaram na mostra. Em maio de 1930 publicaram uma pequena brochura com a mobília de Le
Corbusier, Pierre Jeanneret e Charlotte Perriand – nesta ordem – e passaram a colocar nos móveis
pequenas placas metálicas identificando os autores do projeto. De qualquer modo, Arthur Ruegg assinala
que até 1932 a correspondência com a empresa Thonet era enviada para seu apartamento, e não pra o
ateliê de Le Corbusier.
161 . Benton, op. Cit., p. 21 e Rubino, S. “Corpo, imagem, objeto”.

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talvez também o banquinho da mesma série) para a exposição Der Stuhl, que teve
lugar em Stuttgart entre outubro e dezembro. Quando os protótipos das outras
cadeiras – “máquinas de sentar” – foram concluídos, ela os fez fotografar
individualmente em seu estúdio e em conjunto na galeria da Vila La Roche, onde
fizeram parte do trabalho de interiores que ela realizou com seus companheiros de
ateliê. Em setembro de 1929 ela patenteou dois móveis – a grand confort e a chaise
longue – no nome do trio do ateliê: “Mme Scholenfield, née Charlotte Perriand,
Charles Édouard Jeanneret di Le Corbusier et André-Pierre Jeanneret”(Fig. 25).162

Logo depois ela escreveu um artigo para a revista britânica, The Studio,
advogando o uso do metal no mobiliário. Esportes, azuis e vermelhos, transparências,
espaço, luz, alegria, “The joy of creating and of living (...) in this century of ours”: o
metal era em suas palavras uma metáfora para um novo estilo de vida. Para ilustrar o
texto, duas imagens, a dos móveis que ela patenteou em com seu nome encabeçando a
lista de autores. Em um deles, a espreguiçadeira, ou chaise-longue, a máquina de
repousar, ela aparece deitada, ocultando seu rosto. Esta foto, ao que tudo indica, foi
aquela tirada no Salon d’Automne de 1929, clichê reproduzidao no segundo volume
das obras de Le Corbusier dedicadas ao salão: a cadeira vazia, Charlotte deitada e
uma maquete do ensemble com uma colagem de uma das três fotografias dela na
cadeira. Um texto breve explicava serem equipement d’un logis feitos em colaboração
com Charlotte Perriand, uma manifestação que exprime teses totalmente novas em
matéria de mobiliário, para concluir exaltando uma industria que se encarregue de
realizar os casiers em série, sob um formato estandartizado163.

Mary Mc Leod, autora de uma detalhada descrição da participação do trio no


Salon d’Autnomne de 1929, confere especial atenção à cozinha que foi mostrada, pois
representava um passo no funcionalismo de Le Corbusier. Além do uso da
eletricidade, máquina de fazer gelo, havia passa-pratos – o que não era usual em casas
urbanas – e uma misto de eficiência e lirismo, uma promessa de que cozinhar poderia
fazer parte de um cotidiano agradável. Quanto aos objetos, eles usaram louça comum
e utensílios cotidianos. Em seu “manual da habitação”, Le Corbusier apenas havia
sugerido que a cozinha ficasse no alto da casa para evitar odores. Em outros projetos

                                                                                                                         
162 . Arthur Ruegg, Charlotte Perriand. Libre de Bord, p. 282, n. 57.
163 . Le Corbusier et Pierre Jeanneret, Oeuvre complete de 1929-1934, pp. 42-3.

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ele parecia assumir que a cozinha era um lugar de empregados, logo sem importância;
em casas como as de 1922 ele propôs salas coletivas que substituiriam uma área para
se cozinhar bem projetada. Ou seja, por mais de uma década, a cozinha não foi
assunto. Nas palavras da autora: “O que causou a mudança de atitude de Le
Corbusier? A resposta imediata é, claro, Perriand. Como já foi mencionado, não
apenas seu treinamento na Union Centrale enfatizara os aspectos práticos da vida
cotidiana, mas, como uma mulher que adorava se divertir, era sociável e tinha
acabado de montar seu apartamento, ela estava sintonizada com as exigências
funcionais do espaço doméstico.”164 E, se supomos que ao desenhar a cadeira
pivotante ela conhecia tanto os exemplares norteamericanos masculinos, usados em
escritórios, como a cadeira usada na cozinha de Frankfurt, certamente, ligada ao
núcleo francês dos CIAMs como era nesse comento, tomou o conhecimento da
cozinha projetada pela austríaca Grete Schütte-Lihotzky.

Charlotte recordou esse salão como o momento em que ela e Jeanneret, ao


levar seus próprios objetos – e não podemos ignorar um guarda-roupa com a
vestimenta de ambos e seu colar de bolotas – deram as costas para a produção das
artes decorativas. No lugar de lustres, grandes spots emprestados pela Kodak. E uma
ausência: os óculos e o chapéu de Corbusier sobre alguma mesa – ele não chegou a
ver a exposição: “Il ne manqueait plus que le principal pour conclure: Corbu. Sacré
Corbu! “165

Em meio a essa movimentação ela se deixou – ou se fez – fotografar na


chaise-longue. Trata-se de uma espreguiçadeira – ou seja, não é uma cadeira de
trabalho – com estrutura metálica e vedação em lona (hoje é comumente feita em
couro ou pele de vaca), que possibilita várias posições a serem fixadas pelo peso do
corpo de quem a ocupa. Tem como precedentes as cadeiras de balanço em madeira e
palhinha patenteadas por Thonet, as espreguiçadeiras que William Morris desenhou
no contexto do arts & crafts e uma cadeira de repouso para fins terapêuticos
conhecida como Surrepos, assinada por alguém identificado como Dr. Pascaud, em
um móvel de seu mestra Maurice Dufrène, assim como em uma cadeira de duquesa,
móvel de descanso feminino do século anterior. Curiosamente, em Precisões, Le
                                                                                                                         
164 . « New designs for living : domestic equipment of Charlotte Perriand, Le Corbusier and Pierre
Jeanneret, 1928-29 » . McLeod, (ed), op. cit., p. 58.
165 . Charlotte Perriand, Une vie de création, p. 38.

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Corbusier evocou qualidades masculinas para a chaise-longue, descrita como uma
“máquina de sentar” feita de tubos de bicicleta, e publicou a mesma em suas obras
completas usando as icônicas fotos que mostram Charlotte em repouso e ocultando
seu rosto.

A referência a uma possível máquina de sentar é crucial. Os interiores


domésticos vinham sendo tratados como tema feminino, de e para mulheres, desde as
últimas décadas do século XIX, e não apenas na França. Nos Estados Unidos a
designer e tecelã Candace Wheeler publicou em 1895 artigos influentes intitulados
“Interior Decoration as a Profession for Women”, nos quais defendia um aprendizado
profissional e desencorajava o amadorismo. As profissionais mulheres buscavam
alinhar os gostos de seus clientes com seus interiores por meio de estilos,
especialmente da França do século XVIII, com ênfase para intervenções femininas
nesses interiores. Era a estratégia feminina para abraçar a modernidade, em contraste
com a inspiração racionalista e maquinista preconizada pelos modernistas –
modernistas no masculino. Segundo Sparke166, enquanto a estética maquinista
oferecia uma solução masculina para os espaços, o retorno aos estilos franceses dos
séculos anteriores representava seu equivalente feminino, e isso envolvia, muitas
vezes a reprodução de peças antigas.

Em 1929 Charlotte Perriand optou publicamente pelo metal, como o fez Eileen
Gray. Possivelmente um demarcador de posição, uma escolha pelo lado masculino e
mais profissional da profissão ou também – pois uma possibilidade não elimina a
outra – uma escolha clara, nesse ano movimentado do ponto de vista das alianças e
das classificações, pelas premissas modernistas. De qualquer modo é preciso lembrar
que os espaços, móveis e sua disposição eram assumidamente marcados por atributos
de gênero no final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX. Vânia
Carvalho mostrou essas tensões com precisão e farta documentação para a casa
paulista. Eleb e Debarre apontam na casa burguesa francesa do século XIX essa
distinção de espaços, objetos e materiais com que estes eram feitos. Para as autoras, a
distinção entre um espaço masculino e um feminino é marcada por uma escolha
precisa da localização, relações de proximidade e contigüidade entre as peças, assim
como das relações entre os cômodos da casa. O papel feminino associado à
                                                                                                                         
166 . Sparke, P. The modern interior, p. 107.

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maternidade ligava o quarto da mulher ao das crianças; o quarto masculino podia ser
próximo do escritório na residência burguesa do século XIX.

Como continuidade do caráter cindido por gênero da casa e de tudo que esta
abrigava, até 1927 Le Corbusier ainda distinguia modos de sentar masculinos e
femininos, mas deixou essa separação de lado em 1929, como parte do repertório
modernista: moveis pouco figurativos, sem gênero. Contudo, os móveis da Bauhaus,
igualmente de metal tubular – mas desenhados quase sempre por homens, à exceção
da conhecida cadeira Barcelona, de Mies Van der Rohe e Lilly Reich167 – adquiriram
por seus usos sociais uma conotação masculina na antiga acepção que dava atributos
de gênero aos espaços e atividades, pois tornaram-se sobretudo, até recentemente,
mobiliário corporativo. As cadeiras projetadas no ateliê de Le Corbusier continuam
sendo móveis domésticos, e se ainda há algo das rígidas divisões em questão, nesse
sentido, com sua idéia de repouso são móveis femininos, domésticos.

Alem disso, como assinalou Daniel Naegele ao resenhar a edição


norteamericana da autobiografia de Perriand, ela era uma mulher pequena e assim são
os móveis que projetou ou ajudou a projetar – pequenos, segundo o autor, a ponto de
se tornares disfuncionais168. A imagem revela que o corpo de Charlotte, que media
menos de 1,60 se ajusta perfeitamente à espreguiçadeira. De um bar masculino e
boêmio à uma espreguiçadeira feminina e coquete, ela usou o masculino aço tubular a
seu modo. Se ao fazer uma sala de jantar simples e fácil de se manter, pensava na
mulher dona de casa, certamente trazia algo de suas crescentes convicções
esquerdistas ao propor uma casa que, se não era para todos – não para a burguesia das
casas decoradas por Henri Rapin, por exemplo – era culturalmente distante ainda que
economicamente acessível a um número razoável de apartamentos como o seu, nas
mansardas parisienses.

Enquanto Le Corbusier proferia suas conhecidas palestras em Buenos Aires e


Rio de Janeiro, Charlotte encenou e Pierre Jeanneret fotografou. Há três versões
dessa imagem, que depois foram utilizadas pelo ateliê em diversas fotocolagens para
                                                                                                                         
167. E ainda objeto de dúvida entre pesquisadores a participação ou não de Lilly Reich na conhecida
cadeira Barcelona de Mies. Cabe lembrar, contudo, que ela foi diretora artística da parte alemã da exposição
universal para a qual a cadeira foi concebida. A respwito de Lilly Reich, ver Mc Quaid, Mathilda. Lilly Reich
Designer and architect. New York: The Museum of Modern Art, 1996.
168 . http://gsd.harvard.edu/research/publications/hdm/back/24_Naegele.html. Último acesso em

06/02/2011.

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mostrar ambientes modernos. Charlotte sempre explicou sua posição na cadeira como
uma sugestão de qualquer usuário possível, sem rosto, mas como observou Mary
McLeod, com suas pernas estendidas e à mostra, a roupa junto ao corpo, há algo de
coquete na imagem. Em suas palavras, a “foto, como a cadeira, tem um charme
sedutor, que revela a presumida neutralidade da estética da máquina”169 . Eu prestaria
ainda mais atenção ao termo “coquete”, lembrando que o trabalho da designer foi
assim recebido já no início da carreira e que foram estas as palavras de Le Corbusier
ao ver pela primeira vez algumas cadeiras prontas: “ils sont coquets”. Coqueteria que
fazia parte da cultura feminina francesa e do ofício: a conhecida decoradora
americana Elsie de Wolfe (que iniciou sua carreira como atriz) vinculava moda e
decoração de interiores: uma vestimenta na moda era para ela mais do que um
marcador de identidade pessoal, era também um sinal decorativo de riqueza e status
social. Wolfe transferiu estas ideias para seu trabalho com interiores que formara, a
seu ver, um segundo container, depois da roupa, para o corpo170. Não há como negar
uma certa dose de teatralidade nesta imagem de Charlotte na qual a cadeira consegue
parecer uma segunda roupa. Suas roupas sem adereços, o vestido quase infantil,
semelhante aos usados posteriormente por Ray Eames, o colar de bolas metálicas,
seus cabelos curtos: as linhas limpas e curvas da espreguiçadeira acompanham seu
repouso ou vice-versa: tamanha simbiose entre corpo feminino e objeto acompanhava
essa afinidade já bastante aceita nas artes decorativas desde o século XIX. Não por a
acaso, a imagem de Charlotte na cadeira foi depois recortada e usada pelo ateliê de Le
Corbusier em diversas montagens em que esta peça foi exibida.

Em um instigante ensaio que Georg Simmel publicou em 1923 – “Die


Koketterie” – em seu livro Philosophische Kultur esse termo é levado a sério. Simmel
parte da formulação platônica segundo a qual o amor consiste num jogo entre ser e
não ser, para definir a coqueteria como um exemplo de jogo e sociabilidade, de
relação, uma arte entre o aproximar-se e o afastar-se, dar e negar – arte na qual os
protagonistas jogam uns com os outros. Nesse jogo, a coqueteria remete ao olhar de
soslaio, à cabeça um pouco reclinada. A descrição de Simmel, mais complexa do que
aqui nos interessa, poderia ser a mais perfeita legenda à imagem de Charlotte em sua
cadeira.
                                                                                                                         
169 . McLeod, Mary, p. 48.
170 . Sparke, P., 2003, op. cit. p. 50.

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Charlotte ao deitar em sua cadeira, fazendo-se ali eternizar, não se afirmou por
seu marido, sua prole ou sua origem social. Afirmou-se por sua obra: uma cadeira de
repouso, pequena como sua autora – ou co-autora?171. Segundo os padrões pictóricos
do final do século XIX, e o exemplo máximo é a Olympia de Edouard Manet, só
poderia mesmo ocultar seu rosto: uma mulher deitada mirando o observador era um
atributo das prostitutas. Se virou o rosto contra a câmera, ainda assim é plausível que
ela “assinou” ao mesmo tempo texto e objeto ao publicar esta imagem no já
mencionado “Wood or metal?”, manifesto que em termos lexicais e de conteúdo não
difere muito de outros publicados no mesmo período, mas que permaneceu, assim
como o nome de Charlotte Perriand, um tanto esmaecido até sua recente
“redescoberta”. Este artigo saiu na importante revista britânica The Studio, fundada
em 1893 e que mostrava interiores, embora com menos ênfase em moda do que
outras, como a Vogue.

É preciso analisar a imagem à luz do texto-manifesto, do que ele preconizava,


do tanto que as qualidades táteis (metal, gelado, encontrava resistência) do material
estão contrastadas com a languidez do corpo da jovem garçonne. Se metal era a o
material da torre Eifell, retratada por Robert Delaunay, era também dos automóveis
Citroën que usavam mulheres modernes/garçonnes em suas propagandas.

Como foi assinalado na introdução desta tese, retomando o achado da


historiadora Vania Carvalho, mais do que mera prática corriqueira, é um “gesto
socialmente significativo e, por isso mesmo, sexualmente ativo”. E se uma casa é
parte de uma objetivação da “ordem das coisas”, com suas partes todas “sexuadas”, o
corpo é não apenas realidade sexuada como “depositário de princípios de visão e de
divisão sexualizantes.” Repousando, com os olhos cerrados, ela praticava – prestes a
se divorciar, iniciando seu flerte com a esquerda francesa, uma duradoura amizade
com o pintor Ferdinand Léger – aquela resistência silenciosa que, segundo Diane

                                                                                                                         
171. Não e a intenção desde capítulo, ou desta tese, atribuir autoria. É preciso, no entanto, assinalar que Le
Corbusier publicou a cadeira no primeiro volume de suas obras completas. Le Corbusier et Pierre
Jeanneret, Oeuvre complete 1910-1929, p. 157. A ordem da exposição no volume é capciosa, pois nas páginas
anteriores temos desenhos e fotografias de seus projetos na exposição Weissenhof de Stuttgart. Em
seguida, três imagens da espreguiçadeira, sendo que em uma ela está já na ambientação da casa La Roche.
Claramente a edição, feita depois de 1929, induz o leitor a crer que a cadeira é de sua autoria e um projeto
de 1927. Mais adiante, no mesmo volume, três cadeiras aparecem em fotografia da ambientação da Ville
D’Avray, 1928/9, desta vez com a explicação: “Les sièges, fauteuils, tables, etc. sont des mobiliers standars,
créés par Le Corbusier, Pierre Jeanneret et Mme Charlotte Perriand. Idem, p. 201-3.F

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Crane, as mulheres realizam com sua vestimenta172 e que, no caso que aqui nos
interessa, transportamos para uma possível análise dessa relação entre corpo, objeto e
autoria evidenciada pela foto em questão.

Já no final de sua vida, alguns depoimentos de Charlotte Perriand são


significativos. A Arthur Rüegg ela disse que depois de sua morte o porão poderia ser
vasculhado. E reagindo a uma observação de Beatriz Colomina sobre a fotografia da
cadeira espreguiçadeira, ela reafirmou que ocultou seu rosto para se passar por
homem-tipo, por qualquer um – o que parece desmentido pela própria imagem, a
postura estudada, os sapatos, o colar.

De qualquer modo, é interessante observarmos que, se Charlotte Perriand,


quando redescoberta ou reinventada, o foi sobretudo por conta de seus dez anos no
ateliê de Le Corbusier, em suas memórias esta narrativa ocupa, se tanto, uma quarta
parte dos acontecimentos. Em sua vida de quase centenária, uma década. Charlotte
desempenhou um papel central no ateliê da 35 rue de Sèvres, especialmente nos
períodos em que Le Corbusier se ausentava em razão de suas viagens – como as
conhecidas para o Brasil, em 1929 e 1936. Nessas ocasiões, cabia a ela e a Jeanneret a
responsabilidade por projetos, como por exemplo o pavilhão Temps Nouveaux de
1937. Na mesma mostra ela construiu com Ferdinand Léger o Pavillon de
l’Agriculture, totalmente afinado com a esquerda francesa e o Front Populaire.
Durante os dez anos em que trabalhou com Le Corbusier e Pierre Jeanneret, foi
responsável pelo equipamento interior de todas as construções da dupla de arquitetos,
decorando-os mesmo sem assim nomear173. Em 1937 ela seria convidada, por uma
carta endereçada a ela e Pierre Jeanneret, a se retirar do ateliê, por sua presença
disruptiva, um elemento perturbador – foi a justificativa que recebeu de Corbu. Até
que ponto suas opções políticas, a proximidade afetiva que ela, já divorciada de
Scholefield, mantinha com Pierre Jeanneret teriam prevalecido nessa decisão? O fato
é que Le Corbusier nesse momento parecia ideologicamente mais próximo de quem
trabalharia em Vichy, enquanto Jeanneret se lançaria resistência francesa e Charlotte
viajaria para o oriente, como veremos. No Japão ela redesenhou para uma exposição a

                                                                                                                         
172 . Crane, D. A moda e seu papel social. São Paulo: Editora SENAC, 2006, capítulo 4.
173 . Bentom, Tim. “Charlotte Perriand: les années le Corbusier”, p. 15.

  89  
chaise em bambu – aparentemente sem pedir autorização a ninguém, como se ela
fosse sua obra

Se ela deixou o ateliê a pedido do próprio Le Corbusier suas carreiras, que no


segundo pós-guerra viriam a se juntar novamente – Charlotte projetou os interiores de
diversos projetos, inclusive a Unidade de Habitação de Marselha e a Casa do Brasil,
na cidade universitária – se afastam espacial e simbolicamente. Em plena
proximidade ideológica com a esquerda francesa e o front populaire, Charlotte foi
convidada a passar uma temporada, que com a guerra se revelou longa, no Japão e
posteriormente na Indochina. No Japão em 1942, ela redesenhou sua espreguiçadeira
em bambu e palha de arroz e a mostrou singelamente, sem precisar tomar posse com
seu corpo, uma vez que estava longe dos contenciosos que a fotografia pode permitir
entrever. No mesmo ano Le Corbusier passou a colaborar com o governo de Vichy,
enquanto seu primo Pierre Jeanneret se juntava à resistência francesa. O governo de
Vichy sob as ordens de Philippe Pétain significou um retrocesso em relação às
aspirações da tal nouvelle femme174, antes admirada por Corbu que assim a descreveu
em Precisões, como se falasse de sua colaboradora Charlotte:

A mulher nos precede. Ela realizou a reforma de seu traje. Ela encontrava-se num
impasse: seguir a moda e então renunciar à contribuição das técnicas modernas, à
vida moderna. Renunciar ao esporte e, problema mais material, não poder aceitar
empregos que lhe permitiriam ter uma participação fecunda na atividade
contemporânea e ganhar sua vida. Seguir a moda: ela não podia pensar em guiar; não
podia nem o metrô, nem o ônibus, não podia sequer agir com desenvoltura em seu
escritório ou na loja. Para poder realizar a construção cotidiana de sua toalete –
pentear-se, calçar o sapato, abotoar o vestido – ela não tinha mais tempo para dormir.
Então a mulher cortou seus cabelos, suas saias e suas mangas. Agora está com a
cabeça descoberta, os braços de fora e as pernas livres. Veste-se em cinco minutos. E
é bela, seduz com o encanto de suas graças, das quais os modistas resolveram tirar
partido.” 175.

Prédica de Le Corbusier que se torna ainda mais decisiva à medida que


constatamos o quanto é o oposto simétrico de discursos no mesmo momento. Em um
conto de 1924 o escritor Drieu La Rochelle (1893-1945) descrevia com desprezo a
personagem feminina Gwen:

                                                                                                                         
174 . Ver o belo livro de Muel-Dreyfus, Vichy et l’eternel feminin, sobre o trabalho ideológico em relação às
mulheres e seu lugar na sociedade francesa.
175 . Precisões, op. cit, p. 112.

  90  
“Ela é muito magra, apenas pele e ossos... As mulheres estão cortando seus cabelos
como um sinal de esterilidade. Partes de seu cabelo se escondem sob um lenço. Ela
anda com as mão vazias; não usa jóias; ela está completamente descoberta.”176 ()

O SALON DES ARTS MENAGERS

Em 1924, teve lugar no Champ de Mars, em Paris um Salon des Appareils


Menagers, iniciativa de Jules-Louis Breton, que havia sido ministro da higiene,
assistência e previdência social. Foi rebatizado de Salon des Arts Menagers (SAM). A
própria Charlotte Perriand, que participou ativamente do salão, assinala seu caráter
pedagógico e mesmo formador – eu diria, as exposições deste tipo quase constituíam
revistas em escala 1/1 para o público– os salões visavam sensibilizar o grande
público, educá-lo quanto ao uso de equipamento doméstico. Chegava mesmo a
promover um concurso de melhor dona de casa da França, sob os auspícios da
Presidência da República e do Ministério da Saúde. A fronteira entre os vários salões
– este, o SAD e o Salon d’Automne – também neste caso se revela tênue: em 1934 o
engenheiro André Bloc fundou a conceituada revista Archictecture d’aujourd’hui e
esta e o SAM foram parceiros, como lembrou Charlotte, uma combinação judiciosa: a
revista dava aos artistas os meios para se expressar, o salão para torná-los conhecidos
na França e no exterior: “J’en ai moi-même, des 1936, largement bénéficié.”177
A participação de Charlotte do salão de 1936 ilumina tanto os conflitos
políticos do final de sua colaboração no ateliê de Le Corbusier – ele teria afirmado
que ela atrapalhava o trabalho do grupo – quanto sua guinada política mais à
esquerda. A ambigüidade das posições políticas do arquiteto são conhecidas – seus
estudiosos defensores podem argumentar que essa “neutralidade” e fé na indústria e
no Estado eram um pressuposto moderno.... mas Charlotte se mostrou quase uma
ativista quanto à pobreza e ao sofrimento dos habitantes da cidade: em 1935 ela
publicou na Architecture d’aujourd’hui uma crítica de inspiração marxista sobre o
estado da habitação.
Para a 3a. Exposition Internationale d’Habitation promovida em 1936 pelo
Salon des Arts Ménagers ela preparou uma imensa fotomontagem intitulada La
Misère de Paris, que instalou em meio aos ensembles que mostravam ambientes
                                                                                                                         
176 . Citado por Roberts, Mary-Louse. Disruptive acts: the new women in fin-de-siècle France op. cit., pp. 75-6.
177 . Une vie de création, p. 82.

  91  
decorados. O Salon era uma vitrine, um show-room, uma exibição de gosto, vida
moderna e distinção. As imagens não chegam a dar a dimensão do gesto, mas o leitor
atual pode imaginar uma mostra da miséria urbana em meio a exposições nos moldes
das atuais Casa Cor... A colagem que ela fez em parceria com o pintor Fernand Léger,
seu vizinho depois da separação de Scholenfield, chegava a ter duzentos metros.
O texto de Perriand contrastava com o restante da revista que mostrava
projetos de villas e maisons de weekend. A linguagem visual da mostra La Misère de
Paris era a do Agitprop soviético dos anos 1920, das fotomontagens de Alexandre
Rodchenk. Pouco depois ela deixou o ateliê. O momento de ruptura com Corbu
merece atenção, não apenas pela tensão política que tendia a afastar designer
franceses e alemães, Charlotte e seu mestre moderno, e tantos outros grupos e
indivíduos. Ë no final da década de 1930 que as tensões latentes e manifestas entre
arquitetos e decoradores de interiores chega ao seu ponto máximo. Os primeiros não
desejavam a feminização de sua profissão, tampouco ligar suas carreiras ao comércio
das lojas e fábricas. Eles buscavam soluções universais e viam as lady decorators
como intuitivas. O projeto de interiores – e não a decoração – passou a ser
profissionalizado e colonizado pelos arquitetos e pelo emergente desenho
industrial.178
Voltemos então à imagem da cadeira em 1929: um doce, sutil e possivelmente
pouco consciente manifesto. Se a cadeira tornou-se indissociável da imagem de sua
autora nela repousada, ela foi registrada em nome do trio Corbusier-Jeanneret-
Perriand, para hoje ser conhecida apenas como LC 4. De certo modo, como as
relações de gênero e hierarquias artísticas (homem e mulher, arquitetura e design, arte
e decoração, entre outras) já estavam postas em questão, podemos ler essa foto sem as
amarras da sujeição, como quis Colomina (Perriand olhava para a parede, para o
nada), mas tampouco sem a singeleza do gesto pretendido por Charlotte. Se em retrato
de 1929 a pintora Tâmara de Lempicka – outra mulher da margem esquerda –
escolheu se representar como a motorista de um carro esporte (metal!), dando vida à
representação da garçonne, essa categoria nova criada pela literatura e promovida
pelas mídias, estabelecendo o elo entre uma imagem elitista de garçonne e a nova

                                                                                                                         
178 . Sparke, P., The Modern Interior, p. 109.

  92  
cultura de consumo179, há um movimento análogo na imagem que fundiu Charlotte à
cadeira. Temos metal, indústria, produção... e corpo, cabelos curtos, colar, coqueteria.
Uma garçonne num ateliê masculino. Se não conseguimos observar a participação
feminina no Movimento Moderno em arquitetura sem marcas de sujeição e auto-
sujeição, tampouco temos apenas essa possibilidade de leitura. Perriand, como as
mulheres da Bauhaus e outras designers do seu tempo, construiu sua carreira nas
brechas estipuladas por uma dominação masculina no campo, mas não sem deixar as
marcas de uma sutil revolução simbólica. As casas que hoje conhecemos tem aspectos
pensados de dentro pra fora, característica marcante do trabalho feminino nessa área.
Designer que em diversos momentos buscou se tornar arquiteta, Perriand legou
transformações importantes no espaço doméstico e na produção de seus parceiros de
trabalho, como Corbusier e posteriormente Jean Prouvé.
Contudo é preciso atentar para as convenções presentes na foto. Como
imaghem que perdurou, resultado da negociação entre Charlotte e Jeanneret – e com
todos os condicionantes no meio desta – com que fotos ela podia dialogar. Tag
Gronberg em seu estudo sobre manequins de lojas chama a atenção para o caráter de
abstração e desfamiliarização do corpo feminino identificado com os estilos artísticos
de vanguarda como o cubismo e assinala que na década de 1920 eram exatamente tais
corpos que chamava a atenção das mulheres reais que compravam mercadorias, e
também que enfatizavam a ligação tanto do manequim como da modernidade que
centravam-se justamente em Paris180.
Manequim vivo de cabelo curto, colar de metal, corpo livre se espartilhos – a
foto mostra o móvel moderno e a mulher moderna. Não apenas podemos buscar
pontos de homologia entre a foto de Charlotte e outra fotos femininas do período –
notadamente aquelas de algum modo vinculadas às vanguardas – como podemos
tomar Lee Miller como um exemplo de “narrativa de aspiração feminina, liberação
sexual e subordinação profissional a um artista masculino estabelecido.”181. Mas
Charlotte não operava como musa do ateliê, embora Miller não se reduzisse a modelo
de Man Ray, como mostra sua carreira subseqüente do outro lado da câmera. Sem

                                                                                                                         
179 . Birnbaum, Paula. “Tamara de Lempicka and the Modern Artist”. Chadwick, W. & Latimer. T. T.
(Eds). Modern women revisited. Paris Between the wars. New Brunswick & London, Rutgers University Press,
2003, p. 96.
180 . Chadwick, W. “Lee Miller’s two bodies.” Chadwick, W. & Latimer. T. T. (Eds). Modern women revisited.

Paris Between the wars. New Brunswick & London, Rutgers University Press, 2003, p. 201.
181 . Idem, p. 210.

  93  
cairmos no radicalismo de Colomina, precisamos notar, com ajuda de Chadwick, uma
dinâmica no ateliê que assumiu a forma de uma agência masculina e uma
objetificação feminina. Contra a objetificação, a delicada foto de 1929 pode ser
interpretada como uma potente reivindicação de visibilidade, nome, existência e
autoria, ainda que a hexis corporal indique uma resistência e um clamor que só podia
se apresentar desse modo: um pouco enviesado, quase de soslaio, como para uma
moça bem comportada, havia de ser: em estudado repouso. Bem lembrado por Vânia
Carvalho, a respeito de outras série fotográfica: “Fotografar-se era um gesto
socialmente significativo e, portanto, sexualmente ativo”182.

AS AMARRAS DOS GÊNEROS


Resta a indagação a respeito da clientela de Charlotte, em suas diversas
parcerias profissionais. Diferente da negociação pela casa mostrada por Alice
Friedman ou das clientes mulheres de Elsie de Wolfe estudadas por Penny Sparke,
Charlotte realizou alguns projetos por encomenda – e aqui cabem bem a premissa de
Baxandall para a pintura – mas seus projetos mais conhecidos, ou melhor, suas
cadeiras mais conhecidas foram feitas por uma demanda interna ao ateliê. A relação
social entre comitente e realizador fica assim comprometida, pois há uma auto-
encomenda para um usuário-cliente – o homem moderno? – abstrato, ainda que num
primeiro momento utilizadas para equipar as villas corbuseanas. De certo modo, como
bem lembrou Sparke, o modernismo foi hegemônico em suas definições do que seria
bom ou mau gosto – e o próximo capítulo que aborda a a casa de Lina Bo Bardi é a
prova disso. Mas, como também nos sugere Sparke, o período imediatamente anterior
foi aquele no qual as mulheres negociavam sua entrada na modernidade, um momento
quando o interior doméstico era um importante marcador de diferenças de classe e
gênero. O presumido despojamento e o gesto simbólico de se abraçar indústria e
modernidade eram, tanto quanto os estilos mesclados, uma forma de demonstração de
capital social e cultural.
Nossa moça nem tão bem comportada fez a transição entre os dois momentos
e, com sua longa, embora nem sempre nomeada carreira, pode transcender a ambos.
Prendeu-se às ciladas das hierarquias de gêneros aos mesmo tempo que, se olharmos
sua trajetória como um todo, as transcendeu e ressignificou.
                                                                                                                         
182 . Gênero e artefato, p. 225.

  94  
As hierarquias silenciosas talvez sejam as mais eficazes. Já no final da vida, a
bauhasiana radicada nos Estados Unidos, Anni Albers, costumava repetir com ironia o
dito que marcou sua trajetória, sempre comparada à do marido Josef Albers: “Se está
no papel, é arte”. Contudo, embora se ressentisse que suas investigações cromáticas,
ao serem realizadas em fios e fibras não tivesse o mesmo estatuto, enfatizava que era
preciso, em design, deixar o material falar. Encontramos um sarcasmo análogo em um
comentário de Sonia Delaunay, já com noventa e três anos: “Robert [Delaunay, seu
marido] atirou foguetes para todo lado. De volta à terra eu recolhia as fagulhas que
caíam dos fogos de artifício. Eu tendia os fogos mais íntimos e transitórios da vida
cotidiana, enquanto continuava silenciosamente a fazer um trabalho importante.”183
Marianne Brandt, também do time da Bauhaus, deixou sua carreira de pintora
expressionista para integrar a oficina de metais da escola. Escapou assim do destino
das mulheres tecelãs e nessa condição produziu projetos para cinzeiros, bules de chá.
O material “falou”: uma mulher foi admitida na siderurgia da Bauhaus, mas o
resultado de seu trabalho ainda se vinculava ao objeto de pequena escala e ao mundo
doméstico.
A lista seria longa.
As disputas, artimanhas e ciladas entre gêneros aqui expostas terminaram por
encontrar suas soluções provisórias, com a hegemonia oficial e intelectual da
arquitetura moderna e um lugar incômodo, feminino e minorado para a decoração –
em que pese a crescente profissionalização dessa atividade. A outra cilada de gênero,
que enredou a carreira de Charlotte como mulher, com seus constrangimentos e
possibilidades, se não permanece na mesma, caminhou a passos curtos e lentos. Basta
ver a única nominação de uma mulher ao maior prêmio da arquitetura internacional.
A iraniana Zaha Hadid permanece como uma exceção nesse panteão, certamente não
pela deconstruitivismo de seus projetos – pois há outros homens dessa vertente nesse
star-system – mas porque a arquitetura pública, a edificação, os museus continuam a
não ser bem, tanto tempo depois, lugares de mulher. E a pergunta “what about
Denise?”184 talvez passe ainda alguns anos sem resposta.

                                                                                                                         

. Hauptman, Jodi. “Sonia Delaunay”, Butler, C. & Schwartz, A. (Eds) Modern Women. Women Artists en the
183

Museum of Modern Art. New York, MoMA, 2010, p. 85.


184 . Capítulo I, p. 34 desta tese.

  95  
CAPÍTULO III
MODERNIDADE: MODOS DE USAR, OU A CASA MODERNA E A VIDA COTIDIANA

“Decorators may be compared to doctors. It is useless to put yourself under


their directions unless you mean to carry out their regime”. Rhoda e Agnes
Garret. Suggestions for House decoration in Painting, Woodwork and
Furniture.

Charlotte Perriand se tornou mais conhecida por seus móveis do que pelo
pouco que escreveu. Lina Bo Bardi escreveu proficuamente e tem algumas de suas
ideias repetidas à exaustão. Curiosamente, as duas praticantes do modernismo
lavraram textos que podemos classificar como de aconselhamento doméstico,
voltados para o público feminino, leitoras de revistas comuns. E o que é um tanto
desconcertante, não são textos muito divulgados, especialmente o de Lina, sobre o
qual pesa quase um interdito, pela modalidade de escrita, o público e o veículo no
qual se inseriu. Trata-se de “L’art d’habiter”, de Charlotte, 1951 e “A casa. Sua
organização e arranjo”, de Lina, 1958.

O aconselhamento é um gênero de escrita, geralmente conduzido por mulheres


e para mulheres. Ele nos convida a refletir sobre a reflexividade na modernidade,
como Giddens, sobre discursividade, como Foucault e a respeito dos tabus e escolhas
de um processo civilizatório, como Elias. O aconselhamento se assemelha a uma
propaganda de produto, mas, nos casos que examinaremos, o produto é um modo de
vida: seja como eu, cara leitora. No limite, em se considerando quem são algumas
dessas autoras, o conselho pode reverter em encomendas, mas talvez o aspecto
persuasivo seja mais importante do que suas conseqüências. Além disso, outro
aspecto a ser considerado, é que a escrita do aconselhamento pode ser uma das raras
chances de profissionalização dos saberes femininos ligados à domesticidade.

É disso que trata este capítulo: de dois textos que, considerando a trajetória e a
consagração de suas autoras, podem ser lidos como textos de arquitetura e design.
Minha proposta, contudo, é lê-los como inscritos na tradição e no gênero do
aconselhamento, ainda que eles tenham algo em comum com os escritos dos

  96  
arquitetos modernos, especialmente um certo tom de manifesto. Uma literatura
divulgadora e formatadora de novos padrões de gosto, escrita por e endereçada a
mulheres. Se na França um texto como o de Charlotte se fazia acompanhar de
exposições, como algumas apresentadas no capítulo anterior, no Brasil, onde Lina
publicou “A casa” não havia essa profusão de ensembles a serem visitados, o que
exacerba o potencial de revistas e textos dessa natureza, especialmente por suas
ilustrações e legendas das mesmas.

Em 1951, Charlotte Perriand publicou “L’art d’habiter”, seu texto mais longo
até então: sessenta e três páginas fartamente ilustradas compondo um número especial
da revista Architecture et Techniques (Fig. 26). Antes, havia escrito um manifesto a
favor dos móveis de metal, dois artigos para o veículo comunista Vendredi e alguns
textos sobre habitação publicados na revista Architeture d’aujourd’hui. O habitat,
segundo este novo escrito de Perriand, deveria criar as condições de um equilíbrio
humano e de equilíbrio do espírito. O trabalho vinha dividido em tópicos como :
“células vitais”, “alimentação”, “higiene”, “manutenção”, “armazenamento”,
“relaxamento”, “gesto forma técnica”, “ambiente” e “área da criança”. O texto era
finalizado por um escrito intitulado “Reflexões”, assinado por A. Hermant, que no
corpo editorial da revista era o responsável pela seção de “teoria”da revista.185.

No Brasil sete anos depois, uma Enciclopédia da Mulher apresentava um


verbete aparentemente integrado à tradução brasileira da obra francesa, ainda que algo
insuspeito, meio de contrabando. O texto “A casa. Sua organização e arranjo” foi
escrito por Lina Bo Bardi, no mesmo momento em que ela começava a desenhar os
primeiros esboços do MASP da Avenida Paulista e iniciava seu profícuo promissor
com a Bahia. O que o texto oferecia, sob a forma de receituário, de manual de
instruções, era o encontro de preocupações que ela já manifestava em seu trabalho
editorial na Itália, em textos que versavam sobre a casa, seus pequenos problemas e
soluções já antes de migrar para o Brasil.

                                                                                                                         
185. Do conselho de redação da Architecture et Technique, que era uma publicação bimestral, faziam parte,
dentre outros, Le Corbusier, o antropólogo George Henri Rivière (que respondia pela seção de artes
populares) e Jean Prouve, todos sob a supervisão de Auguste Perret.

  97  
Os dois escritos sugerem alguns diálogos. Seria arriscado – embora um tanto
provável – afirmar que Lina conhecia este trabalho escrito de Charlotte186. Os
diálogos mais evidentes são outros: com o repertório conceitual e imagético da
arquitetura moderna; com a industrialização crescente do pós-guerra que inundava as
casas com novos produtos a serem decifrados; e, tão ou mais importante, com a
literatura de aconselhamento feminino.

Embora as duas profissionais já estivessem em um momento de consagração e


renome, especialmente Perriand – e sua presença na revista de certo modo é a
comprovação disso – e dialogarem com o repertório da arquitetura moderna, tais
trabalhos se inscrevem também em uma linhagem de literatura de conselhos
femininos, de resguardar a casa em todas suas dimensões como um assunto de
mulher. Escritos por mulheres para mulheres, mesmo que haja uma palavra ocultando
– ou evitando – o tom de manual feminino de civilidade: modernidade, termo que
encobre atributos de gênero. Neste gênero de escrita, conselhos aparentemente
inocentes e triviais vêm carregados de atributos morais, juízos de valor, noções
estéticas e em alguns casos constituem lanças vigorosas em querelas sobre o gosto.

A escrita e publicação de aconselhamentos por parte de Bo Bardi e Perriand


não era uma novidade. Lina iniciou sua carreira nas revistas editadas por Giò Ponti
em Milão e nelas publicou artigos e projetos em revistas “menores”, cotidianas e
muitas vezes destinadas às mulheres. Artigos como “o novo na casa de hoje”, “casa
no campo” e outros de seu início de carreira ensinavam novos modos de se lidar com
os limites e constrangimentos do espaço a ser habitado. Mas foi na revista A- Cultura
della Vita que Lina passou a usar como estratégia discursiva um jogo de “certo” e
“errado” que era uma afirmação da modernidade no cotidiano, não sem a dose de
virulência e violência simbólica nela implicada. O jogo era simples: diante de um
grupo de objetos – copos, móveis, relógios – a revista indagava “qual o leitor
escolheria”. A cada opção uma lição, um cumprimento por estar no “caminho certo”
ou uma reprimenda, muitas vezes agressiva por ter escolhido o objeto de mau gosto
ou pouco funcional.

                                                                                                                         
186. O Instituto Lina Bo e P. M. Bardi interrompeu por parte do período de redação deste capitulo, as
consultas públicas a seu acervo, para reestruturação. Assim, a idéia de verificar se Lina tinha a revista
francesa não se realizou.

  98  
Resta indagar por que a casa, o espaço doméstico. Lembrando que para G.
Semper a casa amplificava a função protetora de um vestido, associando necessidades
e expectativas culturais. Assim, é da razão cultural que elas estão falando, ainda que,
como é corriqueiro nos textos manifesto dos arquitetos modernos um tom na terceira
pessoa, como se houvesse imperativos categóricos – a sociedade pede, a era da
máquina clama, os novos tempos exigem etc. Como no vestido, na casa, na
arquitetura moderna ou outra, a razão prática, o programa pode ser pouco mais que
um pretexto. Especialmente porque a casa, ou o edifício (ou a cadeira) prontos são
sempre e a um só tempo, materialidade e representações sociais. Em uma casa ou na
idéia de casa se decantam várias dimensões.

AS ARTES DO MORAR

Quanto a Charlotte, publicou em 1936, a pedido de Henriette Nizan187 um


artigo no jornal comunista Vendredi, l’organe des hommes libres. Ela “atacou”,
segundo suas memórias, escrevendo um artigo sobre o armazenamento na casa, um
sistema de estocagem incorporado à arquitetura, com desenhos indicando o que ficava
à mão da dona-de-casa e o que ficava à vista. Com um tom, mais delicado do que
talvez Lina o faria, de certo e errado: “Parallèlement à ces dessins, je placai la
publicité d’un buffet du Faubourg Saint-Antoine que je barrai d’une croix. Si l’oeil
‘perverti’ le trouvai beau, le besoin de rangement n’était pás satisfait. Je comparait les
capacites de rangement des deux systèmes.”188

Logo no início, Charlotte adverte o leitor – afinal, como Lina em A- Cultura


della Vita189, se dirigia a um leitor de esquerda – que a dona de casa, assim como o
homem, participa das tarefas de lavar, cozinhar, limpar a casa, sem o benefício dos
progressos técnicos contemporâneos. E atacava os imóveis de aluguel antigos nos
quais as famílias residiam sem qualquer segurança quanto à sua desinfecção: imóveis
sem banheiros, sem chuveiros. Já os novos que surgiam por toda a parte eram
                                                                                                                         
187 . Paul e Henriette Nizan eram intelectuais comunistas ligados ao círculo de Jean-Paul Sartre e Simone de
Beauvoir. Certamente faziam parte dos círculos de esquerda que Charlotte freqüentou nos anos 1930 e é
possível que a relação venha também de suas visitas a Moscou, onde o casal viveu em 1934.
188 . “Paralelamente a estes desenhos, coloquei o anúncio de um buffet do Faubourg Saint-Antoine e o

marquei com uma cruz. Se o olho 'pervertido' o achou bonito, a necessidade de armazenamento não foi
satisfeita. Eu comparei as capacidades de armazenamento de ambos os sistemas”. Une vie de création, p. 80.
189 . Revista editada Por Lina Bo e Bruno Zevi que durou menos que o ano de 1945.

  99  
barulhentos, pois o repouso do trabalhador não estava em questão, além de serem
construídos unicamente para dar lucro, para entregar o mínimo pelo máximo preço.
Segundo Jacques Barsac, a proposta de Charlotte era informar o público proletário
para que eles pudessem demandar dos fabricantes uma adesão, uma adaptação ao
“mundo moderno”, em “uma visão dialética da criação, do público e da produção”.

Antes de publicar o artigo, Charlotte afirmou ter sondado suas leitoras a


respeito de gostos e necessidades: qual o aposento mais usado, quais peças devem ser
em madeira e quais em metal, qual o estilo preferido, papel de parede ou pintura,
carpete ou madeira no piso, tecidos, cortinas, iluminação. A partir das respostas
redigiu um artigo irônico na forma de um diálogo no qual uma secretária respondia as
perguntas (dela, talvez); a secretária imaginária não gostava de nada moderno,
preferia o estilo Luis XV e considerava a arte moderna decadente. A outra voz (a dela,
claro) explicava pacientemente que há beleza no móvel antigo, mas que as cópias não
são a mesma coisa e que a imitação de séculos passados, esta sim era a prova de
decadência da sociedade atual. Quando a secretária afirmava gostar de armário
grandes, ela propunha uma parede com unidades para se guardar de tudo, o que era
rejeitado por parecer um escritório e pelo armário embutido ficar na casa. A reposta,
um tanto zangada, era que armários portáteis seriam possíveis e que seriam instalados
nos espaços vazios da casa. Diante do argumento de que a mobília velha ficaria
chocante no novo ambiente, a resposta do diálogo imaginário foi longa:

Não, guarde as peças bonitas e que funcionam bem para você. As unidades de
armazenamento vão ajudá-la a manter a ordem, e seus exteriores vão se fundir com a
arquitetura do aposento. Elas não vão se impor como móvel “moderno”, ao mesmo
tempo que seu desenho limpo vai dar certo com outros móveis concebidos de outras
maneiras. O que geralmente é denominado estilo moderno é de fato uma moda criada
por interesses comerciais para se vender bens ... e assim tornar a última moda do ano
passado fora de moda no dia de hoje. O comércio oferece a ilusão de riqueza com
“cópias” e “imitações”de mobília antiga... e desde a Exposição de 1925 também
produziu móveis em “estilo moderno”. Mas a tradição de falsificação continua, com
“funcionalismo subordinado à forma representativa do móvel”. Um modo adequado
de guardar nossos pertences, de modo a tomar um espaço mínimo em nossos
apartamentos já seria um passo. Precisamos de unidades de armazenamento com
portas de correr, gavetas nas quais tudo possa ser guardado no lugar conveniente
(para não termos de procurar uma pilha de pratos atrás de uma pilha de xícaras)190 .

                                                                                                                         
190. Tradução livre a partir da versão inglesa do artigo, reproduzida no livro de Mary Mc Leod. Charlotte
Perriand, an art of living, p. 260.

  100  
Aparentemente, a “secretária tipo” se convenceu.

Voltemos aos manuais de etiqueta e cuidados da casa e sua longa linhagem em


diversos países. No Brasil, é de Vera Cleser o manual O Lar Doméstico: Conselhos
Práticos sobre a Boa Direçção de uma Casa, publicado em São Paulo em 1898. Se
considerarmos que em 1913 já estava em sua 4ª edição poderemos avaliar não apenas
a expansão de um público feminino leitor como a importância desse tipo de bula
doméstica191. Com a cidade se urbanizando, criando novos bairros, trata-se de uma
adaptação a esta nova vida urbana e à modernidade, um processo civilizador nos
termos de Norbert Elias, ou seja essa noção de civilização pelo comportamento, de
padrões especiais de relações humanas e estruturas de sentimentos192. Em suma, era
preciso aprender a suar a casa, a cidade, a ser uma mulher moderna.

T.J. Clarke mostrou, em sua análise sobre a pintura na Paris de Manet, que
quando, na cidade remodelada por Haussmann, os restaurantes se proliferaram e
passaram a exibir seus cardápios, todos (especialmente aqueles que não tinham acesso
a tais novidades) puderam descobrir, finalmente, o que e como os ricos comiam e em
muitos casos, imitá-los193. De modo análogo, quando revistas e livros passaram a não
apenas dizer o que fazer, como ordenar casas, mas a exibir desenhos e fotografias,
todos – especialmente os menos providos de recursos materiais e simbólicos –
puderam aferir para que serviam e como usar os novos produtos que o crescente
mercado não cessava de jorrar. Como códigos de etiquetas, manuais de bons
costumes, tais publicações incutiam novos padrões de gosto, de uso dos espaços, das
marcações do tempo – uma cruzada pouco inocente.

Antes de passarmos, contudo, aos documentos de Bo Bardi e Perriand,


apresentaremos livros semelhantes, de modo a situá-los não apenas nos tão
masculinos debates acerca da arquitetura moderna, como também – pois não se
excluem – em uma tradição, de livros de aconselhamento escritos por mulheres para
mulheres e da reflexão a respeito da casa “moderna”. Livros muito diferentes entre si,
diferenças que remetem a circunstâncias diversas como pais de origem, trajetória da
autora e momento em que foi escrito, mas que em conjunto podem ser reveladores. O

                                                                                                                         
191 . Sobre Vera Cleser, ver Gênero e Artefato, pp. 44-5.
192 . Norbert Elias, O processo civilizador, Rio de Janeiro: Zahar, 1993, pp. 80-1.
193 . T, J. Clark. A Pintura da Vida Moderna, op. cit. pp 117-8.

  101  
que os textos a seguir debatem e divulgam, que linhas demarcatórias estabelecem, eis
o que interessa perscrutar: estilos de vida no sentido mais amplo do termo, o que
inclui dimensões estéticas e visuais e podem suscitar demarcações de classe, assim
como divisões intra-casse. Além disso, a apresentação em ordem mais ou menos
cronológica, do século XIX até meados do XX pode indicar alguma mudança social a
respeito do lugar da mulher, suas relações com a casa, com o corpo e sua posição
nessa escrita (amadora, diletante, profissional).

Se os textos de Lina e Charlotte serão apresentados a partir dos próprios


documentos originais, com destaque para ilustrações, legendas e diagramação, os
outros trabalhos foram, salvo exceções, estudados por meio de trabalhos de terceiros.

QUASE UM SÉCULO DE “LIVROS DE CONSELHO”

Curiosamente, o primeiro livro de história da arquitetura escrito nos Estados


Unidos foi de autoria de uma mulher, Louisa Caroline Tuthill (1788-1879), e pode
também ser considerado um precedente para este tipo de literatura de mulher pra
mulher. A casa era vista como o lugar mais eficiente na doutrinação silenciosa quanto
a valores e ela escrevia para as mulheres de classe média, conforme sua dedicatória:
“To the Ladies of United States of America, the aknowledge arbiters of taste, this
work is respectfully inscribed”.194 Tuthill era viúva, mãe de quatro filhos e autora de
livros infantis, publicou o livro Ancient Architects em 1830 e posteriormente
organizou uma coletânea dedicada aos escritos de John Ruskin que teve vinte e três
reedições. Em 1841 escreveu a uma editora propondo um trabalho que pudesse ajudar
a aprimorar o gosto do publico em matéria de arquitetura e mobiliário, o que resultou
no livro History of Architecture from the Earliest Times, publicado em 1848.

Contemporânea de Tuthill, a também norteamericana Catherine Beecher


(1800-1878) foi uma precursora de uma idéia que daria frutos no século XX: a casa
mecanizada. Seu Treatise of Domestic Economy, For the Use of Young Ladies at
Home and at School (1841) é um livro de 396 paginas que exibe projetos de um
cottage pleno de engenhocas, um novo ambiente doméstico que ela julgava necessário
                                                                                                                         
194. Citado por Doumato, Lamia. “Louisa Tuthill`s Unique Achievement” in Berkeley, Ellen P. (Ed)
Architecture. A place for women. Wahsington and London, Smithsonian Institution Press, 1989, p. 11.

  102  
para o novo papel da mulher na sociedade industrial. Se de um lado Beecher aceitava
uma definição convencional do mundo doméstico como esfera feminina, de outro ela
se colocava como uma defensora de algo como um feminismo doméstico ao evocar a
capacidade da mulher para o auto-sacrifício, característica que a habilitaria para guiar
o lar. Seu livro foi um sucesso imediato, com edições anuais, adotado em escolas195.
Beecher considerava a economia doméstica tão importante quanto a matemática, as
ciências naturais e a filosofia e por isso deveria fazer parte do currículo escolar. Ela
sugeria que as mulheres recebessem treino em economia doméstica, química
doméstica, assim como as melhores disposições e conveniências para
196
acondicionamento econômico de armazenamento e despensa . Em The American
Woman’s Home, de 1869, escrito a quatro mãos com sua irmã, a abolicionista e
escritora Harriet Beecher Stowe197, ela projetou uma cozinha moderna, longitudinal,
uma estação de trabalho com água encanada e equipamento de calefação e
ventilação.198 A mulher, apresentada como “ministra da casa” – as irmãs Beecher
eram filhas de um ministro congregacionalista e se voltavam tanto contra as idéias de
Fourier quanto da igreja católica – mas, quando sem empregados, deveria usar das
mais avançadas tecnologias pois estas eram o fator de profissionalização do trabalho
doméstico da mulher isolada em sua casa no subúrbio. Neste livro ela declarou sua
crença na idéia de que um modo de trabalhar mais racional daria às mulheres cristãs
(grifo meu) orgulho e satisfação na criação de uma casa eficiente.199 O livro, contudo,
incluía recomendações para habitações coletivas, uma vez que nem toda mulher
norteamericana poderia viver no subúrbio ou mesmo encontrar um marido.

Encontramos do outro lado do Atlântico Norte a publicação redigida e


ilustrada pelas primas inglesas Rhoda e Agnes Garret (Fig. 27), Suggestions for
House Decoration in Painting, Woodwork and Furniture, de 1876. Trata-se de um
texto que ao mesmo tempo defende e define o estilo “Queen Anne” enquanto fornece
conselhos para uma classe média de meios moderados e desejosa de adquirir

                                                                                                                         
195 . Hayden, Dolores. The Great Domestic Revolution. Cambridge, MA & London: The MIT Press 1982, p. 55.
196 , Bicester, Charlotte E. “Catharine Beecher’s view of Home Economics”, History of Education Journal Vol.
3, No. 3 (Spring), 1952.
p. 89.
197 . Harriet Beecher Stowe (1811-1896) é conhecida por seu romance anti-escravagista A cabana do Pai

Tomás, de 1852.
198 . Hayden, Dolores. The grand domestic revolution. Cambridge & London, The MIT Press, 1982.
199 . Penny Sparke, The Modern Interior, p. 132.

  103  
refinamento estético, que precisava, segundo elas, da ajuda de um decorador não
extravagante200. Sufragistas ativas, Rhoda (1841-1882) e Agnes Garret (1845-1935)
foram as primeiras inglesas a receber treinamento em um escritório de arquitetura e a
trabalhar como decoradoras (home decorators). Pouco sabemos de suas trajetórias,
mas o pai de Agnes era fabricante de cerveja e tinha a expectativa de que uma de suas
filhas se tornasse produtora de malte, mas em 1867 Rhoda e Agnes decidiram se
profissionalizar como decoradoras, uma vez que o plano inicial que era obter
treinamento como arquitetas não encontrou nenhum escritório disposto a abrigar uma
pupila. Iniciaram então seu aprendizado no escritório de Daniel Cottier, que
trabalhava com vitral e decoração. Após um período de aprendizado, as duas viajaram
pela Inglaterra, registrando informações das “melhores” casas, que facilmente se
abriram para elas201. De acordo com a análise de Emma Ferry, o livro não é um
apanhado de “o que e onde comprar, tampouco se alimenta da experiência das autoras
em gerenciar uma casa, pois elas queriam se apresentar como decoradoras e não como
autoras de conselhos domésticos – tanto que não entram, em seu livro, na cozinha, na
área de limpeza ou no berçário; não ensinam a limpar, não dão receitas e não falam de
crianças”202.

Dois capítulos são particularmente sugestivos: “Casas como elas são” e


“Casas como elas deviam ser”. No primeiro apresentam uma análise de todos os
aposentos, expondo os horrores de uma casa comum inglesa, censurando a decoração
sem princípios e chegando a tecer comentários sobre aposentos masculinos e
femininos, ao criticar a noção que o homem inglês tinha de sua casa como seu castelo,
conferindo isolamento e um aspecto sombrio à sala de jantar, “the especially
masculine department of the household”203. Já a sala de estar, feminina, era

                                                                                                                         
200 . Suggestions for House Decoration in Painting, Woodwork and Furniture, p7. Disponível em
https://ia601406.us.archive.org/7/items/suggestionsforh00garrgoog/suggestionsforh00garrgoog.pdf.
Última consulta em 01/11/2016.
201 .Os dados biográficos e a análise do livro das Garret estão no texto de Emma Ferry“ ‘Decorators may

be compared to doctors’. An Analysis of Rhoda and Agnes Garret’s Suggestions for House Decoration in
Painting, Woodworking and Furniture (1876)”. Journal of Design History Vol,. 16, No. 1, 2003.
202 . Emma Ferry, op. cit., p. 22.
203 . Apud Garret, p. 27. Na Inglaterra vitoriana, a separação das áreas da casa era profundamente marcada

por divisões de gênero. A mulher era responsável por sua aparência e pelas atividades que ali ocorriam. As
diferenças de Gênero eram materializadas na escolha do móveis e dos detalhes decorativos. As salas de
jantar, vistas como masculinas recebiam móveis grandes, que se impunham e de madeira escura, e com
freqüência um retrato do dono da casa na parece reforçava a masculinidade dominante do aposento. Em
contraste, o salão e os boudoirs recebiam cores claras e a mobília era mais elegante. Os usos também eram

  104  
recriminada pelas autoras por ser o trabalho de algum estofador empregado por uma
dona de casa ansiosa por ter nesse aposento sua voz ouvida e seu gosto acatado. O
capítulo seguinte, mais propositivo, traz ilustrações de seus próprios projetos,
advogando a favor de tons claros e mobiliário simples e bem construído, inspirado
nos modelos do século XVIII. Ao eleger como modelo o mobiliário dos anos da
Rainha Anne, elas criticavam a deterioração dos saberes artesanais, a alienação do
trabalhador na era vitoriana e a falta de discernimento do consumidor204. O tom é
prescritivo: “decorators may be compared to doctors”!

Em 1913 na França, Alice de Linières lançou seu Savoir-vivre. Usages


mondains. Faites ceci, dites cela. No mesmo ano o volume de conselhos da
decoradora e ex-atriz da Broadway Elsie de Wolfe (1865-1960) (Fig. 28), The House
in Good Taste tornou-se bastante popular. Em seu livro, a decoradora pontificava:
“You will express yourself in your home whether you want it or not”.205 Livros de
etiqueta com estes cumpriam um papel importante na codificação e incorporação dos
bons modos e de como se comportar em cada meio. Definiam o dever feminino de se
ocupar da casa, de se identificar com a mesma, com seu lar, mas este em particular
lança questões interessantes a principiar por seu título, com menção explícita ao
gosto, atributo que ela julgava devesse fazer parte do cotidiano de suas leitoras. Outra
questão curiosa do livro é, de um lado, uma noção de que a mulher deveria ter
possibilidades de se expressar no século XX – e a decoração era uma forma de
expressão — ao mesmo tempo que, avessa ao estilo da Inglaterra Vitoriana, defendia
o estilo aristocrático da França do século XVIII, assim como outros revivals do
passado – para de Wolfe isso era moderno206.

                                                                                                                         

divididos: os homens podiam receber na sala de fumar ou de bilhar, as mulheres no salão ou no boudoir.
Ver Sparke, Modern Interior, p. 25
204 . “The public themselves are mainly to blame. They demand cheap and showy furniture, and the only

way to make furniture at once cheap and showy is to make it by machinery, and to turn the men Who
mnake it as nearly as one can into de machines.” Apud. Garret., p. 29.
205 . Apud Spark, The Modern Interior, p. 91.
206 . Pode parecer bizarro ou pouco coerente essa afirmação de modernidade a partir de objetos de um

passado eleito. Adrian Forty chama a atenção para esse aparente paradoxo ao mencionar as escolhas dos
ingleses do século XVII, sua fascinação por Roma e pela arqueologia: “O estudo das ruínas gregas e
romanas proporcionava inspiração para como deveria ser o presente. O paradoxo do gosto setecentista –
uma época tão fascinada pelo progresso e ao mesmo tempo devotada ao estudo de um passado distante –
expressou-se em todos os produtos artísticos do neoclassicismo. Não se tratava de reproduções servis da
Antiguidade: eles usavam imagens e formas do passado, mas pretendiam expressar sentimentos
modernos.” Objetos de desejo. Design e sociedade desde 1750. São Paulo: Cosac & Naify, 2007, p. 25.

  105  
The House in Good Taste se distingue de outros manuais anteriores – como o
de Beecher – e posteriores por não mencionar as chamadas áreas funcionais de uma
casa, como cozinha e banheiro. Não há qualquer menção a higiene e limpeza, menos
ainda ao fato de que se cozinha numa casa. Sua ênfase repousa na personalidade,
crenças e visibilidade dela mesma como autora, em um livro totalmente escrito na
primeira pessoa, ainda que com a ajuda de uma ghost writer. Segundo Sparke207
artigos reunidos por Wolfe nos periódicos Delineator e The good housekeeping, entre
1911 e 913 foram editados por Ruby Ross Wood, que no ano seguinte publicaria seu
The Honest House. Nesses artigos e no livro, Wolfe usava o expediente de mostrar
suas casas, mesmo falseando a informação. Em artigo sobre como decorar
apartamentos pequenos, a ilustração foi do boudoir de seu próprio apartamento na
Midtown de Nova York, exibido como se fosse a sala de estar de um apartamento
pequeno. A sala de estar do mesmo apartamento apareceu em outro artigo em seu
fausto: lareira, quadros, lustre de cristal208.

Os espectro dos livros de aconselhamento inclui temas e linguagens diversos.


Uma perspectiva estetizada e glamurizada da relação entre a mulher e sua casa
convivia com outra, de abordagem mais profissionalizada e com forte apelo
tecnológico e científico. Em 1914, nos Estados Unidos Mary Pettinson (1869-1951) –
membro da New Jorsey State Federation of Women’s Club, organização de mulheres
de classe média ligada ao Partido progressista – publicou Principles of Domestic
Engineering, citando o titulo do livro de Frederick Taylor que a autora leu em 1911,
Principles of Scientific Engineering. Em 1912 a Christine Frederick(Fig. 29) – até
então mãe e dona-de-casa – reuniu os artigos que escreveu para o Ladie’s Home
Journal, nos quais defendia que a nova ciência do trabalho poderia ser aplicada na
casa, no livro The New Housekeeping, seguido por outro, Household Engineering:
Scientific Management in the Home, de 1915. Este último baseava-se nos “Doze
princípios do gerenciamento científico” definido pela engenheira Lillian Gilbreth para
a mulher que trabalhava em sua própria residência. A idéia era um seqüencia de
atividades na ordem correta, mas central a ela estava a proposta de que a cozinha
deveria ser um espaço apenas para se cozinhar, e portanto poderia diminuir de
tamanho. Menor, a cozinha exigiria menos movimentos, menos passos para a
                                                                                                                         
207 . “The ‘Ideal’ and the ‘Real’Interior in Elsie de Wolfe’s “The House on Good Taste” of 1913”, p. 65.
208 . Idem. As imagens estão nas páginas 68 e 71.

  106  
execução das mesmas tarefas e toda atenção era dada aos materiais, que deveriam ser
laváveis. Seu livro não se voltava para a mulher pobre, que já vinha da classe dos
empregados domésticos, mas à classe média à qual Frederick pertencia.209 Na década
seguinte ela criou e dirigiu o Applecroft Home Experiment Station (Fig. 30) em sua
casa no estado de Nova York, um laboratório onde fazia testes de como economizar
passos no preparo da comida, alem de experimentar 1800 produtos, de
eletrodomésticos a gêneros alimentícios210.

Espaço de trabalho e vista como mais “funcional” do que decorativa:


arquitetos europeus logo identificaram essa cozinha pequena e lavável como a marca
registrada dos cuidados científicos com o lar – isso em um momento no qual a
arquitetura moderna propunha uma nova casa, uma máquina, um novo modo de se
morar. É preciso lembrar, contudo, que o debate a respeito das cozinhas ganhou uma
surpreendente realidade, da cozinha bem planejada para cada casa até a casa sem
cozinha, passando pela cozinha coletiva proposta e popularizada por Charlotte Perkins
Gilman. Ao que parece, a redefinição do morar moderno passou pelo redesenho da
cozinha, o que implica necessariamente uma atenção aos usos do espaço doméstico,
não apenas à sua forma renovada. Não era um tema exclusivo da arquitetura moderna
funcionalista. Em 1909 Ebenezer Howard envolveu-se com a construção de
Homesgarth, um conjunto de trinta e dois apartamentos sem cozinha em uma
Cooperative Quadrangle em Lechtworth, a emblemática primeira cidade jardim
construída na Inglaterra. Howard enfatizou tal inovação como uma resposta ao
recorrente “problema dos empregados”, assim como ao “problema da mulher” ao se
dirigir aos seus clientes de classe média. Em 1913 ele se mudou para Homesgarth
com sua esposa e se congratulou por libertá-la do trabalho doméstico. Foi um projeto
experimental dentro de um conjunto de casas convencionais e houve quem
aproximasse a teoria de Gilman ao esforço prático de Howard: “O apartamento
feminista é revolucionário, ataca a raiz do sistema econômico, deve envolver o vasto
rearranjo da posse da terra, edifício comunal e impostos. Mas não temos medo da
revolução, pois somos pioneiros da revolução sexual”.211 Curiosamente, Howard é
comumente visto na bibliografia mais afeita ao modernismo como um urbanista
                                                                                                                         
209 “This middle-class – to which I belong”. Ver Banta, Martha. Taylored Lives. Narrative productions in the age
os Taylor, Veblen and Ford. Chicago & London, The University os Chicago Press, 1993, p. 240.
210 . Counterspace, op. cit., p. 9.
211 . Dolores Hayden, The Great Domestic Revolution, p. 231.

  107  
conservador, mas Hayden destaca sua sensibilidade, assim como a dos arquitetos que
com ele colaboravam, para as necessidades especial de grupos como mulheres
solteiras, velhos, viúvos e viúvas, casais sem filhos e casais nos quais os dois
trabalham212. E nunca é demais lembrar que os quadrangles de Howard permanecem
habitados até hoje.

A idéia de Neue Wohnung, novo morar da Alemanha foi apresentada como um


revigorado padrão familiar da nova era republicana nos anos vinte do século passado.
Seu alvo era a dona de casa, colaboradora do arquiteto moderno (nas palavras de
Bruno Taut, o arquiteto deveria projetar e a dona de casa conduzir) e seu papel era
criativo. Em 1924 o arquiteto Bruno Taut (1880-1938) publicou Die Neue Wohnung:
Die Frau als Schöpferin (A casa nova: a mulher como criadora), respondendo de
certo modo ao encolhimento severo da mão de obra disponível para o serviço
doméstico, uma vez que as mulheres jovens preferiam trabalhar em fábricas do que
em casas burguesas.213 Além disso, um pouco à moda do guia para um bom
comportamento era um manual para a dona de casa, mais uma vez com regras sobre o
que – e, principalmente o que não – fazer. A mulher deveria ser criativa, Schöpferin e
se livrar dos móveis herdados da tia, tentar não colocar foto fotos de crianças e
parentes na mesinha lateral (para não parecer sentimental), se livrar da bagagem
emocional, Gefühlsballast que era parte da socialização da mulher. Em suas palavras,
“A influência vital que a mudança da mentalidade da mulher exerce sobre a condição
coletiva não pode ser subestimada. Para que possamos até mesmo começar a construir
casas melhores, a mulher precisa demandá-las enfaticamente”.214

Não por acaso, um texto de Marie-Elizabeth Lüders (1878-1966), membro da


organização de mulheres Bund Deutscher Frauen (Federação das Mulheres Alemãs),
clamava que a casa deveria ser projetada de dentro para fora: “primeiro a cozinha,
então a fachada”215. De qualquer modo, vinha dos Estados Unidos esta noção de
scientific management ligado ao lar, esse fordismo doméstico (tema do último

                                                                                                                         
212 . Dolores Hayden, p. 237.
213 . Este tema será melhor desenvolvido no Capítulo V.
214 . Citado por Schönfield, Christine & Finnan, Carmel. Practicing modernity. Female Criativity in the Weimar

Republic. Leipizig: Königshausen & Neumann, 2006, p. 52.


215 . Bullock, Nicholas. “First the kitchen – then the façade”. Journal of Design History. Vol 1, nº 3-4, 1988, p.

177.

  108  
capítulo desta tese capítulo) e a idéia de uma dona de casa em parte desobrigada do
fardo dos afazeres tornou-se nesse país um culto que unia esquerda e direita.

Ao final dos anos 1920 na Alemanha, a divulgação das ideias do novo modo
de se gerenciar uma casa, aliada à atuação de arquitetos como Bruno Taut gerou como
solução a proposta da casa para uma subsistência, ou existência mínima (Die
Wohnung für das Existezminimum). E a culminação, do ponto de vista da mudança no
âmbito da domesticidade, disso tudo foi o projeto da conhecida Cozinha de Frankfurt,
pela arquiteta austríaca Grette Schütte-Lihotsky, exibida na Die neue Wohnung und
ihr Innenausbau ( A casa nova e o novo design interior) em 1925 e logo incorporada
em diversos projetos residenciais construídos nessa cidade pelo arquiteto Ernst May
(1886-1970). Trata-se de uma Kochküche, cozinha para se cozinhar, pequena e com
uma aura de modernidade que vinha do uso da eletricidade. A muito referenciada
cozinha de Frankfurt tornou-se um modelo, foi reproduzida em diferentes cores e
materiais e quase um sinônimo da longa trajetória de sua autora, como vimos na
introdução desta tese.

O livro (Fig. 31) Der neuer Haushalt, de Erna Meyer, de 1926 vendeu 40 mil
exemplares até 1932 e incorporava as idéias de Catherine Frederick – cujo New
Housekeeping havia sido traduzido para o alemão por Irene M. Witte (1894-1976) em
1921216 – adaptando as mesmas à necessidade alemã de profissionalizar a dona de
casa. Tais novidades atravessaram de volta o Atlântico e em 1934 o livro Modern
Housing, da norteamericana Caherine Bauer, editado em Nova York saudava a
cozinha de Schütte-Lihotsky como uma das grandes conquistas da nova arquitetura.217

As propostas tayloristas de Catherine Frederik encontraram eco na França na


atuação de Paulette Bernège (1896-1973). Escolarizada, com formação em filosofia,
foi diretora da École de Haut Enseignement Ménager e presidente da Ligue de
l’Organization Ménager, que ajudou a fundar. Em 1928 publicou de La methode
ménagère, reeditado em 1934. Já na apresentação do livro, Bernège advertia sua
leitora de que se tratava de um livro de reflexão e de trabalho, para ser lido com o
                                                                                                                         
216 . Mary Mc Leod. “Domestic Reform and European modern architecture: Charlotte Perriand, Grete
Lihotzky, and Elizabeth Denby”. P. 181. A pesquisa não descobriu muito sobre Irene M. Witte, mas
sabemos que ela teve contato com o casal Gilbreth e tornou-se uma especialista em Scientific Management na
Alemanha, tendo mesmo escrito um livro no qual repetia as ideias de Frederick e advogava uma cozinha
racionalmente planejada e produzida industrialmente para consumo popular.
217 . Bullock, op cit, p. 188.

  109  
lápis na mão, anotando tudo, e não mais de um capítulo de cada vez218. Este trabalho
ménager, da dona de casa que podia ou não contar com empregadas para auxiliá-la,
era definido como de grande complexidade, um conjunto variado de tarefas que
ocupam partes diferentes do corpo e exigem qualidades diferentes da inteligência.
Trabalho que exige mãos que passam da água muito quente à muito fria, dos produtos
cáusticos para a lavagem de roupa aos pontos delicados da costura. Uma mesma
mulher que deveria ter o bom gosto para ornar sua casa, vestir sua família, deveria
suportar o peso da lavagem da louça e os cuidados com os velhos e os doentes. E para
agravar sua situação, em todas as tarefas ela de certo modo competia com um
profissional – a cozinheira, o chef, a costureira, o tintureiro, a professora de crianças –
que poderia desempenhar melhor suas tarefas por ser especializado219. Para propor
seu método, ela apresenta à sua leitora Frederick Taylor e Henri Fayol, enfatizando as
regras que o primeiro estabeleceu para a indústria e que poderiam ser aplicáveis ao
trabalho doméstico. E menciona diversas vezes o trabalho de Christine Frederik,
traduzido em diversas línguas, assim como sua colega alemã Erna Meyer e o casal
Frank e Lilian Gilbreth.

Ainda na Itália, quando começou sua carreira em Milão trabalhando com Giò
Ponti, a arquiteta Lina Bo escreveu com seu colega Carlo Pagani diversos artigos
cujos títulos indicam uma preocupação e um o cuidado com o arranjo interno de
diversas modalidades de casa: “A casa pequena”, “A casa na cidade”, “A casa na
periferia”, “Sistematização de interiores” são alguns dos títulos que visavam ensinar a
montar e a conceber uma casa simples e moderna, sem qualquer excesso herdado de
outros tempos. Mas o artigo mais radical não foi por ela assinado. No primeiro
número da revista A, que ela editou com Bruno Zevi, um artigo intitulado “Come può
essere Il uomo libero si la donna è schiava” argumentava que a civilização moderna
tendia a libertar a mulher, lançá-la na vida social, civil e política da nação e para tanto
era necessário facilitar o trabalho doméstico. Este era um problema de método, de
tornar a casa eficiente, e a resposta estava no artigo seguinte, “La cucina
dell’avenire”, uma cozinha projetada nos Estados Unidos e tão diferente das cozinhas
italianas de então como a abóbora da carruagem de Cinderela, declarava o texto.

                                                                                                                         
218 . Bernege, Paulette. De la methode ménagère, Paris: La Ligue de l’organization ménagère, 1934, p. 3.
219 . Bernege, Paulette. De la methode ménagère, p. 7.

  110  
Esta publicação ainda na Itália dá a dimensão do quanto a casa, seus
problemas, escolhas e dilemas, tudo isso fazia parte da preocupação de Lina Bo Bardi,
ainda que permaneça um aspecto nada explorado de seu trabalho – talvez pela
historiografia corrente ter tomado para si a blague de quem se apresentava como
arquiteto. Não é possível averiguar se Lina e Charlotte conheciam alguns dos livros
de conselhos expostos. Mas é possível propor que isso não chega a fazer muita
diferença, se pensamos um pouco como Baxandall propôs em sua análise de um
quadro de Chardin. Nesse texto, o historiador inglês propões uma ligação entre certos
tipos de pintura do século XVIII, como a de Chardin e o empiricismo filosófico que
se propagava por toda a Europa, especialmente em suas versões, vulgarizadas,
simplificadas e destinadas à divulgação. O pintor Chardin teria lido Locke? Até certo
ponto, tanto faz: “ele já vivia numa sociedade lockeana. Somos nós que, de fora dessa
cultura, precisamos de Locke para compreender os padrões do pensamento do século
XVIII.”220

Não estamos tão distantes hoje, temporal e culturalmente, desse universo de


conselhos femininos a ponto de tomarmos a conclusão de Baxandall ao pé da letra.
Mas se Charlotte e Lina leram ou não tais livros, ou parte deles, se suas mães leram
algo parecido, o que importa reter é que essa conversa – pois talvez não seja o caso
sequer de chamarmos de um debate – a respeito da casa, conversa que ia do fordismo
aplicado ao cotidiano até cruzadas pelo bom gosto, tudo isso era a vulgarização dos
debates das artes decorativas, da arquitetura e de outros ramos da cultura erudita que
lidava com o espaço, especialmente o doméstico, e com a tênue fronteira entre arte,
artesanato, decoração. Postulantes de um lugar no pólo erudito e moderno disso tudo,
Charlotte Perriand e Lina Bo Bardi eram, como não podiam deixar de ser, sujeitos em
uma sociedade urbana onde tais temas estiveram presentes desde o final do século
XIX. Desejosas de ser Le Corbusier, elas não deixavam de descender culturalmente
dessas donas de casa profissionalizadas nos legaram uma idéia de lugar de mulher.

CHARLOTTE PERRIAND: O HABITAT NA “ÉPOCA DAS REALIDADES”

                                                                                                                         
220 . Baxandall, Michael. Padrões de intenção, São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 155.

  111  
No capítulo anterior vimos o início da carreira de Charlotte Perriand, quando
sua atuação esteve constrangida entre os dilemas e querelas das artistas decoradores e
dos arquitetos modernos. Ela deixou o ateliê de Le Corbusier em 1937, mas continuou
a se relacionar com Pierre Jeanneret e Fernand Léger, e não ficou sem trabalho, pois
desde 1934 manteve alguma independência em relação à vida do ateliê, mesmo
porque precisava de trabalho remunerado. Nos anos seguintes desenhou e mandou
executar móveis mais orgânicos, usou mais madeira em seus projetos e, com Jean
Prouvé e Jeanneret chegou a esboçar um estudo para móveis pré-fabricados221.

Em abril de 1940, Josep lluis Sert escreveu à designer, indagando por que ela
não escolhera viajar para a América, o que, a seu ver seria perfeito, e afirmou ainda
esperar que eles pudessem fazer coisas juntas. “Ainda somos jovens.... a arquitetura é
um vício difícil de ser erradicado, e hélas! Seremos arquitetos por toda a vida, bons ou
maus, pois a rua de Sèvres nos envenenou bem, para sempre...”222. A carta do
arquiteto catalão torna evidente que, ainda que o lugar pudesse ser repensado, deixar a
Europa não era um mais tema de debate para eles: America ou outros destino, mas as
condições de possibilidade de permanência não eram sentidas como reais. Dois meses
depois Charlotte Perriand embarcava, do porto de Marselha, no navio Hakusan Maru.
Depois de mais dois meses, desembarcou em Tóquio.

Mesmo com trabalho, 1939 tinha sido um ano politicamente difícil para ela, e
deixar a França, como antes dela fizeram o casal Sert e Moncha223, assim como
Fernand Léger, parecia inevitável. Em fevereiro de 1940 ela recebeu um telegrama de
Junzo Sakakura, que tinha sido seu companheiro de trabalho no ateliê de Le
Corbusier, convidando-a para trabalhar como conselheira desenhista de arte
decorativa para o Ministério do Comércio do Japão. Era um convite oficial, mas
segundo Yasushi Zeno pouco antes ela havia recebido uma carta de seus amigos,
escrita no rolo de papel finíssimo tradicional do país, com um envelope do mesmo
material – e isso ajudava a tornar o convite irresistível224. Lembremos que no
momento o Japão ainda não tinha se tornado aliado da Alemanha, não fazia parte do

                                                                                                                         
221 . Barsac, Jacques. Charlotte Perriand, Art de vivre, p. 34.
222 . Idem, p. 231.
223
. No livro Une vie de création, está grafado Muncha Sert.
224 . Zeno, Y. “Fortuitous Encounters: Charlotte Perriand in Japan”, McLeod, M. Charlotte Perriand, an art of

living, op. cit., p 90.

  112  
eixo. E o pagamento era bastante alto.225 Por outro lado, o Japão estava em guerra
com a China, situação grave da qual ela só se daria conta uma vez lá. Esta experiência
de trabalho deveria durar apenas um ano, uma vez que seu contrato expiraria em
março de 1941.

Saka, como ela o chamava, trabalhou com Le Corbusier entre 1930 e 1936 e
foi o arquiteto do pavilhão japonês da Exposition Internationale de Paris em 1937.
Outro amigo do mesmo período era Kunio Maekawa, que chegou ao ateliê de Corbu
em 1928 e partiu em 1930. Este pavilhão teve um papel importante no debate
arquitetônico de então, O primeiro projeto foi de Maekawa, recusado por não ser
“suficientemente japonês” e substituído por um de Sakakura, saudado pela imprensa
como uma manifestação bem-sucedida de regionalismo, enquadrado por uma moldura
moderna. Este pavilhão dividiu o prêmio com o de Alvar Aalto e o de seu amigo Sert.
Há, contudo dois outros nomes importantes na reconstituição da rede de relações que
levou a designer a rumar para o oriente. Soetsu e Sori Yanagi, pai e filho. O primeiro,
conhecido fundador do movimento Mingei de arte popular, que tinha como missão
evitar que o conhecimento do artesanato popular japonês desaparecesse e para tanto
ele coletava objetos que pudessem inspirar a criação por parte de designers. O
movimento Mingei defendia também que o Japão olhasse para a produção de outros
países do oriente, como a Coréia, a China e Taiwan como fonte de inspiração estética,
do mesmo modo que no final do século XIX a Europa havia mirado o Japão.

As poucas pesquisas a respeito desse importante deslocamento divergem:


enquanto Zeno dá um papel importante ao filho de Soetsu Yanagi, o jovem designer
Sori na eleição de Charlotte para essa atividade de colaboração, Charlotte Benton
sugere um certo exagero nessa interpretação, uma vez que ele ainda não tinha a
importância obtida depois da convivência com Charlotte. Ainda assim, segundo Zeno,
quando um importante funcionário do departamento de comércio pediu um nome para
a função de revitalizar o artesanato com vistas a um incremento no design japonês e
Sori Yanagi sugeriu o nome de Le Corbusier, cujos livros ele conhecia e admirava,
mas ao consultar Sakakura, este argumentou que dificilmente Corbu deixaria a França
pelo Japão nesse momento. Perriand teria assim surgido como um segundo nome.

                                                                                                                         
225 . Benton, C., “Rencontre avec le Japon”, Catálogo de exposição. Paris, Centre Pompidou, 2005, p. 84.

  113  
Ainda assim: por que o convite para Charlotte e não para os outros membros,
talvez mais conhecidos e notórios do que ela? Por que a assunção de que Le
Corbusier, notório viajante, que nesse momento pedia e aceitava trabalho mundo
afora rejeitaria o Japão? Certamente porque a demanda não era pela arquitetura, mas
pelo seu pólo “menos importante”: certamente porque tratava-se de uma expertise em
artes decorativas, estas artes “menores” que Corbusier parecia um pouco desdenhar. E
porque a carreira de Charlotte nos anos anteriores ao período da rue de Sèvres
apontava justamente para o que eles precisavam: uma experiência com lojas,
magasins de nouvautés, design para o comércio. Charlotte era formada por Maurice
Dufrène, que sempre acompanhou sua carreira, e floresceu no período de parceria
com Le Corbusier e Pierre Jeanneret, ainda que, como pudemos ver no capítulo
anterior, não apenas a partir desse contato, mas de outros como seus colegas da UAM
e o trabalho de Mallet-Stevens, Djo Bourgeois e René Herbst.

É preciso interpelar as razões de um convite como este naquele momento. Mas


desde o início de sua abertura ao ocidente em meados do século XIX, havia no Japão
uma forte demanda por objetos artesanais, e a imitação medíocre de objetos ocidentais
era duramente criticada por muitos desde o começo da década de 1920. Malgrado
umas tantas iniciativas de se preservar o saber fazer do artesanato japonês e de
adaptá-lo em alguma medida aos mercados ocidentais, os produtos de exportação
japoneses mantinham sua má reputação. Junte-se a isso a queda do movimento no
comércio mundial, os custos de importação, o terremoto de 1923 e o resultado foi
uma forte demanda para que o Japão aprimorasse seus produtos manufaturados
destinados à exportação. Notemos que o convite veio de uma divisão do governo
japonês dedicada ao comércio, não às artes, cultura, educação ou museus.

No Japão houve uma série de iniciativas nesse sentido, e a mais importante


delas foi a criação, em 1928, de um instituto de pesquisa em artes industriais,
abrigado no Ministério da Industria e Comércio do país, com escritórios em Sendai e
em Osaka, voltado ao desenvolvimento de novas possibilidades de exportação. Este
instituto estava associado a uma rede nacional de grupos artesanais e técnicos, e tinha
como missão verificar de que modo métodos “científicos” poderiam auxiliar , junto
com materiais, técnicas e um saber propriamente japonês, a criar mercadorias e a
produzir protótipos.

  114  
Neste contexto, Charlotte foi bem recebida por Sakakura, seu antigo
companheiro do ateliê de Le Corbusier e se hospedou, de início, no Hotel Imperial,
projetado por Frank Lloyd Wright. Desde o início, teve como assistente o estudante
de artes industriais Sori Yanagi, filho do historiador de arte, especialista em artes
populares, Soetsu Yanagi. Charlotte Perriand chegou ao Japão para substituir o
arquiteto alemão Bruno Taut, que após fugir do nazismo em 1933, dirigiu o Instituto
de Arte Industrial de Sendaï, e de Madame Shermann226, que o sucedeu. Assim,
segundo Barsac, um de seus desafios ao suceder essa dupla alemã era lutar contra uma
certa tendência ao formalismo, herança da Bauhaus.

Ao fim dessas visitas, ela assinalou que o que aprendeu foi tão útil quanto o
que ensinou. A produção destinava-se à exportação, mas também ao mercado
nacional. A primeira era desprovida de interesse, mas a segunda, ao contrário, era
deliciosa.227 Ela encontrou objetos perfeitos, que não necessitavam de qualquer
modificação. As recomendações de Perriand foram agregadas em uma exposição
intitulada “Tradição, seleção, criação”(Fig. 33), exibida na primavera de 1941,
apresentada em Tóquio com a ajuda de seu amigo Sakakura e do magazine
Takashimaya, e foi bem acolhida pelos mecenas. “Seleção” remetia a bons objetos de
uso cotidiano; “tradição” trazia fotografias dos usos dos objetos, mostrando sua
continuidade; e “criação”significava “criar no seu século”, sem nunca copiar.228 De
“criação” fazia parte sua chaise-longue, dessa vez projetada para ser executada em
bambu e madeira.

As redes de apoio no Japao foram fundamentais para que ela pudesse explorar
um território nada familiar; contudo, do ponto de vista institucional há que se ressaltar
seu encontro com um instituto governamental chamado Seccho na região de Tohoku.
Em uma carta a um de seus companheiros Mingei, Yanagi pai pedia que ele fosse
solícito com uma pessoa da França que visitava a área em trabalho de pesquisa. Esta
instituição, um centro de pesquisa fundado em 1933 pelo Ministério da Agricultura e
Silvicultura, compartilhava como o movimento Mingei a preocupação com o
artesanato regional. Ela esteve duas vezes em Seccho, em novembro de 1940 e em

                                                                                                                         
226 . Até o momento, a pesquisa não descobriu de quem se trata.
227 . Benton, Charlotte. “Rencontre avec Le Japon”. Centre Pompidou, Charlotte Perriand, op. cit., p. 78.
228 . Barsac, J. Charlotte Perriand et Le Japon. Paris: Norma Éditions, 2008, p. 134.

  115  
abril de 1941 – nessa segunda visita acompanhada por Yanagi pai e pelo designer de
tecidos Mingei, Keisuke Serisawa.

O Japão é, por tradição, o país mais próximo da arte moderna, afirmou em


uma conferencia em Hanói em 1942. Essa descoberta, ou formulação, deixaria marcas
em sua produção posterior, mais orgânica, menos preocupada em ser ou parecer
vanguardista, usando madeira sem fazer manifestos, assim como no elogio ao espaço
vazio que, de resto, não deixa de ser um reencontro com a limpeza da arquitetura
moderna.

Um ano depois de chegar, seu contrato expirava o contexto não apontava para
uma renovação. O Japão entrou na guerra e os planos de Charlotte eram insanos:
encontrar Jeanneret no Himalaia, nas estepes da Ásia central ou em Pequim. Jeanneret
sugeriu o Chile, enquanto Sert voltou a insistir que ela fosse encontrá-lo e a Léger na
América. Como não havia transporte viável para a América, seus amigos japoneses a
convidaram para uma conferência em Hanói, na Indochina. Ela estava nesta cidade
quando do ataque de Pearl Harbour e o Japão entrou no conflito mundial. De volta ao
Japão, ela se refugiou com a família de Sakakura, onde ficaria por seis meses. A única
maneira de deixar o Japão, naquelas circunstâncias, foi por um convite oficial do
governo da Indochina, e com a intermediação da embaixada francesa em Tóquio ela
partiu para Hanói.

A Indochina era uma colônia francesa e com a ajuda de colaboradores ela


organizou um pavilhão destinado a acolher as manifestações de artes aplicadas que
organizou, um pavilhão para uma exposição permanente de artesanato que foi
inaugurado em abril de 1942. O diretor dos assuntos econômicos em Hanói era o
francês Jacques Martin, com quem ela se casou em maio de 1943, aos quarenta anos;
na Indochina nasceu sua única filha. Mas as circunstâncias políticas nesse país
também se tornaram tensas: seu marido foi preso. Em março de 1945, a rendição
japonesa chegou junto com a declaração de independência de Ho Chi Min. Em 1946
ela foi repatriada: para um tempo-lugar que em sua autobiografia denominou “época
das realidades”.

Cinco anos depois, na difícil readaptação à França ela publicou L’art


d’Habiter, não sem antes ter retomado o contato com Le Corbusier, em outras bases e
de com ele realizar o projeto da cozinha-protótipo da Unidade de Habitação de

  116  
Marselha. De qualquer modo, um recomeço difícil: casada e com uma filha, mas
recomeçando o trabalho na França, ela se viu “só na luta, sem meio”, mas com um
capital simbólico de uma experiência duradoura de dez anos no ateliê de Le Corbusier
– então mais consagrado então do que quando trabalharam juntos – mais seis anos no
extremo Oriente. Nessa circunstância recebeu o convite para escrever um número
especial da Architecture et Techniques, que foi, ente outras coisas, um sopro delicado
de autonomização profissional em seu pais. De volta, ela escrevia como Perriand, não
como uma decoradora do grupo de Dufrène, tampouco como uma colaboradora de Le
Corbusier. O convite foi, em suas palavras, uma dádiva, que lhe permitiu aprofundar
algumas idéias.229

A ARTE DE MORAR

“Corbu avait remplacé les mots ‘Árt décoratif’ par ‘Équipement de


l’habitation’, je les remplaçai par ‘Art d’habiter’, qui est devenu plus tard un
‘Art de vivre’, titre de mon exposition au musée des arts décoratifs en 1985.
En tète de cette revue de 1950, j’avais placé ma définition de ‘Art d’habiter’
“230

O longo texto abre com uma ilustração de um jardim da Villa Imperiale de


Kyoto e algumas indagações sobre cheios e vazios: o vazio que para alguns é a
indigência, para outros é a possibilidade de pensar e de se mover. Charlotte citou o
Livro do chá para afirmar que é no vazio que reside verdadeiramente o essencial. O
jardim japonês da fotografia é um lugar de meditação. Mas o vazio era em seu texto
uma tomada de posição contra os excessos a que a dona de casa se submetia: melhor
passar um dia tomando sol do que a tirar o pó, com ou sem aspirador, de objetos
inúteis e bibelôs. O ócio, o lazer, a ocupação sem finalidade surgia nesse trecho numa
chave bem distinta da visão canônica do modernismo arquitetônico, do trabalho, do
lazer organizado, tal como encontramos em documentos como a Carta de Atenas.
                                                                                                                         
229 . Une vie de création, p. 248.
230 . Une vie de création, p. 248.

  117  
Outra tomada de posição remetia ao elemento primordial do equipamento doméstico:
armazenar bem objetos parecia a ela o elemento primordial. Sem bons armários, não
há vida possível no habitat, tema que como veremos logo, foi retomado por Lina em
seu texto de aconselhamento.

Mas nesse artigo, era a arquiteta não diplomada que conviveu com Sert e Le
Corbusier quem afirmava, modernista, que o habitat tem células vitais que respondem
às necessidades do organismo. São elas, duas funções que constituem o nervo da
construção: alimentação (e sua preparação) e higiene do corpo.

Temos então em seu argumento uma retrospectiva do papel do nômade na


montanha, do camponês solitário, da família que se reúne ao redor do fogo para
comer. E uma observação que nos permite pensar a quem este texto se endereçava:

“Dans certaines provinces, une petite pièce servant uniquement à nettoyer la


vaisselle, s’ajoute à la salle de séjour (gratouille en Provence). Parallèlement,
l’emploi de domestiques dans les classes aisées, amène la séparation de la cuisine de
la salle des maitres. Avec la disparition progressive des gens de maison, la
préparation de la nourriture reprend naturellement sa place dans la communauté
familiale.231 ”

Assim como no trabalho de Paulette Bernège que ela bem conhecia, a solução
para a falta de empregados remetia à planta da casa, quando ela propôs uma nova
distribuição para unir a cozinha e sala de estar – a fala é de uma ex-sala de jantar –
por um passa-pratos; ou quando propõe uma reabilitação da dona de casa que faça
seus gestos culinários com a “harmonia do nosso pastor nas montanhas” 232.

A condenação à sala de jantar dá o que pensar. De um lado, essa junção de


cozinha e sala de convívio faz pensar em apartamentos menores, sem empregados,
com a dona de casa fazendo menos gestos tal como já fora preconizado pelas cozinhas
americanas, alemãs, assim como pelos escrito de Bernège. De outro, convém lembrar
que, espaço masculino, a sala de jantar carregava consigo uma série de símbolos
agregados. Algumas ilustrações interessantes acompanham este trecho de sua arte de
                                                                                                                         
231 . Em algumas províncias, uma pequena sala apenas para a limpeza dos pratos, além de sala de estar
(gatouille na Provence). Da mesma forma, o emprego de empregadas domésticas nas classes superiores,
leva a separação da cozinha da sala. Com o desaparecimento gradual dos funcionários, a preparação dos
alimentos naturalmente toma o seu lugar na comunidade familiar ".
232 . L’art d’habiter, p. 36.

  118  
morar. Destacamos duas: um projeto de Pierre Jeanneret com uma cozinha-sala na
qual a mesa é de sua autoria (mas isso não é mencionado na legenda) (Fig.34) e um
pequeno desenho mostrando a escotilha que liga sala e cozinha. O homem está na sala
em posição mais repousada do que a mulher que, na cozinha parece fazer alguns
gestos do trabalho cotidiano. De qualquer modo o desenho, mais do que o texto
parece interpelar uma consagrada divisão de lugares na casa ao propor ao menos uma
certa porosidade entre estes. Outra imagem mostra uma mulher de avental passando
os pratos pelo passa-pratos da cozinha da Unidade de Habitação de Marselha, com a
explicação: “contato da dona de casa com seus convidados”. O que parece em jogo,
nesses casos é o isolamento da dona de casa relegada ao lugar de trabalho que
permanece seu, e que demandava mudanças espaciais para ser minimizado. Claro que
tudo isso se fazia acompanhar de detalhes técnicos como ventilação, materiais
laváveis, fogão elétrico e um sistema de evacuação do lixo.

A casa burguesa francesa do princípio do século XX se afirmava como tal pela


sala de estar (salon), um signo eficaz de pertencimento a esta classe. Na classe
trabalhadora havia uma sala comum, síntese de cozinha e sala de jantar e era esta a
proposta: um lugar para se receber estava fora de questão.233 Assim como o estar, a
sala de jantar era objeto de atenção constante por parte dos arquitetos, que buscavam
sua melhor forma, sua ligação com os outros cômodos. Nas casas mais modestas esta
sala tinha vários papéis: se preciso virava sala de estar ou quarto; a depender da
dimensão do apartamento era uma espécie de antecâmara, de onde se distribuíam
todas as peças234.

Esta não era a casa que Charlotte enfrentava na reconstrução das cidades
francesas, nem a de suas leitoras: mas era cada casa onde ela viveu, a casa que
conheceu, a casa urbana de seus pais. Visto sob esta perspectiva, o que ela indica
quando abre uma janela unindo sala de estar e cozinha com um desenho jovial? Se
podemos ver ecos de sua própria experiência quando exibia seu apartamento
experimental, sua mansarda de recém casada com um bar235, era nesse momento,
pós-guerra francês, um apelo à virtude de um lugar diminuto que não necessariamente
                                                                                                                         
233 . Eleb, M. e Debarre, A. L’invention de l’habitation moderne. Paris 1880-1914. Paris: Hazan, 1995, p. 31.
Curiosamente, em seu apartamento de casada, que tinha dimensões reduzidas, Charlotte optou por um bar
para poder receber, cf. capítulo 2.
234 . L’invention de l’habitation moderne. Paris 1880-1914, p. 114.
235 . Bar sous Le toit, capítulo II.

  119  
precisaria ser lido na chave da falta de espaço, de aposentos chancelados pelos usos e
pela cultura etc.

Como era de se esperar se comparamos o texto de 1951 com os conselhos que


ela mesma já havia publicado, o ponto alto é mesmo o armazenamento. Logo de
início, o texto lembra que os franceses guardavam o costume da “grande limpeza da
Páscoa”, mas que não tinham coragem de eliminar objetos que os serviam mal para
experimentarem o vazio e evitar viver em uma contínua aglomeração236.

O que se decidiu guardar deveria, segundo o artigo, se classificar em duas


categorias: os objetos cotidianos e aqueles ocasionais (casacos, cobertores, objetos
para a prática de esporte, malas). Em 1950, Le Corbusier já havia publicado a
primeira versão de seu Modulor, um sistema de medidas que utilizava a proporção
áurea e um homem imaginário de 1,75m (mais tarde ele reformulou para um homem
universal de 1,83m). Charlotte conhecia o sistema, especialmente por ter trabalhado
com Corbusier na Unidade de Habitação de Marselha, que consagrou o método.
237
Concebeu assim, termo meu, algo como um “modulor utilitário, útil” (Fig. 35) :a
divisão se dá entre objetos que não se alcança com as mãos – guardados a mais de
1,83m – e aqueles de fácil acesso, guardados a 43cm do solo. Nessa lógica, criam-se
duas zonas de armazenamento: a que as mãos podem atingir e a que os olhos podem
ver. Isso tudo incorporado à arquitetura com a idéia de “paredes utilitárias” (nada
mais do que nossos armários embutidos ou estantes fixas) ou não, com os armários
móveis.

Essa classificação de gestos e possibilidades, que tomava o Modulor como


base, mas certamente fazia pensar nos esquemas fordistas alemães, austríacos e
norteamericanos que mediam e contavam os movimentos da dona-de-casa no sentido
de diminuí-los, lançava também um apelo aos fabricantes para que fabricassem
armários e estantes:

Alors, au 20eme siècle, pourquoi ne pas standartiser, le produire en grande série avec
des procédés, des matériaux nouveaux, selon une nouvelle conception? J’ai proposé
des bacs coulissants en tôle d’aluminium, de forme légèrement conique (...) Un étude
approfondie déterminera les matériaux et les procédés de fabrication le plus

                                                                                                                         

. L’art d’habiter, p. 57.


236
237. Nesse momento ela estava envolvida com um projeto da UAM denominado Formes Utiles, Formas
Úteis.

  120  
économiques, selon le cas. Il nous reste à lui donner les dimensions à l’image des
objets qu’il doit contenir.238

Um chamamento mais público do que o que cabe a um manual de etiqueta


doméstica, e por isso um esquema das medidas dos objetos mais ordinários a serem
armazenados: roupas, panelas, louça, livros, envelopes de carta. Mas, dirigido
novamente ao leitor/leitora, morador comum, o texto manteve uma ressalva ao “falso
moderno”, aos móveis de exterior moderno e, internamente, a eterna prateleira de
pinhão e cremalheira, quaisquer que sejam os objetos a serem guardados. “Je préfère,
dans ces cas, les meubles de nos grands-pères.239

Ou seja, em sua perspectiva a forma tinha mesmo de ser útil. Por isso
certamente a atenção aos objetos produzidos em um país no qual até então ela nunca
havia pisado, e que recebeu fortes ressalvas de seu antigo mentor Le Corbusier240.
Mas era nos Estados Unidos que designers como George Nelson e o casal Charles e
Ray Eames estavam se lançando ao desafio de produzir mobiliário de qualidade
reconhecida em grande escala com bom preço; era lá que uma empresa como a
Hermann Miller patenteava armários e prateleiras (Fig. 36). A contrapartida européia
vinha do próprio trabalho, dos companheiros da UAM e dos móveis do arquiteto
finlandês Alvar Aalto241. Os Estados Unidos eram admirados pelo grande numero de
máquinas de lavar nos lares, e o arquiteto precisava aprender a reservar um lugar para
este equipamento.

Charlotte propunha que toda casa tivesse uma área ventilada para os trabalhos
domésticos. Caso contrário, onde limpar os sapatos depois de um passeio no campo
em um domingo? Onde deixar os objetos que precisavam ser limpos? Há nesse trecho
de seu texto um sentido de realidade cotidiana que aconselha o arquiteto a fazer o
espaço para funções realmente existentes e necessárias, e não o contrário, quase um

                                                                                                                         
238 . “Então, no século XX, por que não estandartizá-los, produzir em série com processos e materiais
novos, segundo uma concepção nova? Eu propus tabuleiros deslizantes em folha de alumínio, com forma
ligeiramente cônica (...) Um estudo aprofundado vai determinar os materiais e procedimentos de fabricação
mais econômicos, caso a caso. Resta a nós darmos as dimensões segundo os objetos que este deva conter.
“L’art d’habiter, p. 58.
239 . L’art d’habiter, p. 58.
240 . No livro Quand les cathédrales étaient blanches, de 1935.
241 . O papel de sua esposa Aino Aalto na produção de móveis e objetos vem sendo pesquisado na última

década.

  121  
exemplo dos escritos de Bernège.242. Nessa peça, contígua à cozinha, deveria haver
espaço para a lavagem, secagem e passagem de roupa e seu texto termina com
diversas ilustrações de lavadoras, tábuas e ferros de passar.

Mas é no capítulo “Ambiance” que ela exprime sua visão de bem morar pouco
burguês, ao assumir que a arte de morar não custa caro. Esta “arte” volta-se para a
calma, o relaxamento, a harmonia. Um quarto pobre no 6o andar podia ser um
ambiente: uma vedação leve nas janelas para isolar os vizinhos, um chão pintado de
vermelho, paredes caiadas de branco, uma cama metálica pintada de amarelo, uma
mesa de pinho, uma bandeja de vime, flores, uma pele de carneiro para pisar, fotos
bonitas... e temos um quarto digno para uma jovem charmosa do século XX – como
não pensar nela mesma poucas décadas antes? Semelhante localização à mansarda
onde viveu logo que se casou com Scholefield, e ainda mais próximo ao apartamento
que alugou logo que dele se separou: o viver ao mesmo tempo monástico e
estimulante de uma jovem moderna. Nesse aspecto de seu livro de aconselhamento
sua experiência de morar contaminou sua perspectiva: viver podia custar pouco, caber
dentro de um pequeno orçamento. “L’ambiance ne coûte rien, on n’habite pas dans les
musées”.243 O oposto da Casa de Vidro.

Nenhum manifesto a favor do metal ou da madeira, nenhum compromisso


com os escritos de Le Corbusier e, mais importante, um rompimento também com sua
própria experiência de montar uma casa para ser exibida em salões. A casa hipotética,
abstrata era para alguém que trabalhava e precisava de um abrigo sereno naqueles
anos realistas de pós-guerra.

LINA BO BARDI EM SÃO PAULO: UM CASAL MODERNO

Quando Lina colaborou com a Enciclopédia da Mulher, já havia projetado e


concluído sua Casa de Vidro, trabalhava no Museu de Arte de São Paulo com seu
marido Pietro Maria Bardi, mas ainda não tinha enfrentado dois grandes desafios que
mudariam radicalmente sua atuação, assim como sua posição no campo da

                                                                                                                         
242 . Nesse sentido, ela caminha em uma direção contraria à de Carmen Portinho (capitulo IV) que sugeriu
a retirada da área de serviço do conjunto residencial Pedregulho, no Rio de Janeiro, projeto de 1947.
243 . L’art d’habiter, p. 86.

  122  
arquitetura: os cinco anos que viveu na Bahia e a construção do MASP da avenida
Paulista. Um dos condicionantes de sua atuação nesse momento é a parceria com o
marido, que convém examinar, o que é também um modo de equilibrar a tese,
conferindo à Lina, como foi feito à Charlotte, uma pequena abordagem biográfica que
muito auxilia a compreensão de suas opções e constrangimentos.

Em algum momento de 1946, em Roma ou Milão, deu-se o encontro de Lina


Bo (Roma, 1914 – São Paulo, 1992) e Pietro Maria Bardi (La Spezia, 1900 – São
Paulo, 1999), em circunstâncias nunca bem esclarecidas em seus relatos posteriores.
O jornalista e crítico Bardi colaborou com a revista Lo Stile, na qual Lina escrevia
além de conceber a capa e ilustrações; em algum momento desse pós-guerra, Bardi
aproximou-se do arquiteto e designer Giò Ponti, com quem Lina trabalhava nos
periódicos de sua editora Domus, e em exposições como a Triennalle de Milão;
parece ter havido um empréstimo de um quadro de Bardi a Ponti, e Lina teria sido
enviada a devolvê-lo. Seja qual a versão escolhida, o encontro, lembrado de diversos
modos foi sintetizado por Lina simplesmente como “Pietro era moderno” e por ela
admirado desde menina. E o encontro caminhou rapidamente para o matrimônio,
apesar de Bardi ser casado, pai de duas meninas e da católica Itália só ter aprovado o
divórcio na década de 1970.

Lina Bo Bardi: como assinalou Mariza Correa em seu trabalho sobre as


antropólogas: renomeada, a mulher torna-se esposa.244 Ao casamento e mudança de
nome245 seguiu-se um deslocamento de continente e de hemisfério; por um curto
período para o Rio de Janeiro e em caráter permanente para São Paulo onde, ao longo
dos anos Lina e Pietro Maria Bardi foram assimilados como personagens
fundamentais para a imagem da cidade. Uma arquiteta formada pela Università degli
Studi di Roma e um autodidata sem educação formal, um self-made man que vivia do
comércio de objetos de arte, desempenhando também um importante papel de crítico
e editor: o casal desembarcou na capital paulista com a encomenda precisa de criar
um museu de arte para o proprietário de um império de imprensa escrita e radiofônica,
e também fundador da televisão no Brasil – Assis Chateaubriand.

                                                                                                                         
244. Antropólogas e Antropologia, p. 22.
245 . Não é, para nossa análise, irrelevante que ao longo de sua carreira, Lina tenha alternado –
aparentemente do modo aleatório – sua assinatura em desenhos e projetos: Lina Bo, Lina Bo Bardi, LB,
BB.

  123  
A recente valorização do trabalho de Lina, que faz parte de uma
movimentação do campo da historiografia da arquitetura moderna brasileira, de certo
modo esmaeceu o papel de Bardi; é preciso recuperarmos a dimensão dessa parceria
em seus lugares, redes de relações, naquilo que realizaram juntos e separados246. Lina
e Bardi: estamos diante de um Künstlerehepaar, uma dupla, parceria ligada às artes
que é do mesmo modo uma manifestação do casamento modernizado. Este termo,
utilizado na Alemanha dos anos 1920, invoca uma projeção auto-consciente do casal
de artistas, ligada à movimentos de gênero e a uma parceria entre iguais. Segundo a
análise de Tag Gronberg, a idéia de um casal de artistas permite que a artista mulher
apresente seu perfil profissional para um universo mais amplo. Nesse caso, mesmo a
esfera doméstica “privada” (as aspas são da autora) se torna um palco público, uma
vitrine para a vida a dois dos artistas. A residência dos Bardi, projeto de Lina
chamado de Casa de Vidro já tem no nome – ao remeter à transparência e exposição –
a evidência dessa publicidade: um mix de casa e galeria, foi desde sua inauguração
apresentada como a possibilidade de um morar moderno247.

Parceria que nos remete também ao Museu de Arte de São Paulo (MASP) em
suas duas versões – na rua 7 de abril e na avenida Paulista – e à complexidade de seu
alcance: o projeto museológico, os debates que suas publicações desencadearam, a
escola de artes que o museu abrigou. Lina no agenciamento do espaço, Bardi na
direção de museus e crítica de arte; o casal em incisiva atuação na revista Habitat,
publicada pelo museu, em editoriais assinados, sem assinatura ou ocultos sob o
pseudônimo Alencastro. O período entre 1946 e 1968 marca o auge de uma parceria
pessoal e de trabalho que legou a São Paulo aquele que ainda é seu museu mais
importante, e um indiscutível marco urbano. Mas mesmo antes do MASP, esta caixa

                                                                                                                         
246 . Parceria aqui é um termo que remete à coletânea de Whitney Chadwick e Isabelle de Courtivon,
Significant others, traduzido em português como Amor e Arte. Autores diversos analisam treze casais como
Sonia e Robert Delaunay, Frida Kahlo e Diego Rivera entre outros, enfatizando “os confitos de duas
pessoas que têm uma vida criativa dentro de um contexto de vínculo sexual/afetivo e que, portanto, estão
sempre confrontando o prazer e o terror de ‘juntos serem gênios’ “, p. 11.
247 . São diversas as casas-manifesto resultantes de parcerias conjugais e artísticas: além da Casa de Vidro,

residência do casal Bardi podemos mencionar a Casa Eames na Califórnia, onde viveu o casal de designers
Charles e Ray Eames; a Casa E1027 que a arquiteta e designer Eileen Gray projetou para ela e seu amante,
o arquiteto Jean Baldovici; e a Casa Schröder, resultado da parceria entre o arquiteto holandês – do
movimento neoplasticista – Gerrit Rietvelt e sua cliente Truus Schröder. Rietvelt registrou o nome de
Schröder como co-autora e de posteriormente passou a ali viver com ela. Ver, a respeito, Alice. T.
Friedman, Women and the making of modern house.

  124  
suspensa de concreto protendido248 abrir suas portas na Avenida Paulista com uma
exposição de arte popular brasileira, a parceria deixou marcas na cidade. Assim, é
preciso examinarmos os termos desta aliança que incidiu de modo pleno na São Paulo
dos anos 1950 e 1960, exatamente o período no qual ela escreveu sobre casas
tornando a sua, a do casal Künstlerehepaar um exemplo do viver moderno e de bom
gosto.

No final dos anos 1930, antes que o fascismo se tornasse sinônimo de aliança
com o nazismo, havia basicamente dois caminhos para um aspirante a arquiteto na
Itália. A já mencionada Universidade de Roma, sob a batuta de Marcello Piacentini e
Gustavo Giovannonni e o Instituto Politécnico de Milão. Se Roma era a capital a
Itália reunificada desde 1871, Milão era politicamente. Ainda que menos
industrializada e sindicalizada do que a Torino Rossa associada aos conselhos de
fábrica e à atuação de Antonio Gramsci, Milão possuía indústrias e do ponto de vista
da agitação cultural, era a cidade onde Tommaso Marinetti e seus companheiros
futuristas viviam e atuavam. Era também a cidade do Gruppo 7, de jovens arquitetos
modernos249, do qual Giuseppe Terragni se tornaria o mais conhecido, especialmente
por obras como a Casa Del Fascio e o Novocomum. Contrastava fortemente com
Roma, que desde que se tornou a capital expressava-se com referências a um passado
glorioso, representado em seu espaço físico: na construção de um monumento a
Vittorio Emmanuele em 1911 ou na criação de um percurso arqueológico em 1913.
Em Roma se delineavam dois mundos opostos: o centro da cidade e da nação,
monumental, fragmento isolado de antiguidade e ruínas que deveriam testemunhar o
passado imperial – revivido pelo fascismo – enquanto que sua crescente periferia
pobre, que abrigava aqueles que haviam sido expulsos pelas demolições na área
central – medida que visava dar mais relevo e evidência aos monumentos nacionais –
parecia abandonada à sua própria sorte. Entre o centro histórico remodelado e a
periferia abandonada havia uma faixa intermediária onde se situavam os serviços, o
clero, os serviços públicos e, claro, a especulação imobiliária.250

                                                                                                                         
248 . A protensão do concreto visa aumentar sua resistência, permitindo vãos maiores do que o concreto
armado convencional, razão pela qual é um procedimento utilizado em pontes.
249 . O grupo se formou em 1926 e os sete arquitetos eram Ubaldo Castagnoli, Luigi Figini, Guido Frette,

Sebastiano Larco, Gino Pollini, Carlo Enrico Rava e Giuseppe Terragni. Posteriormente Adalberto Libera
substituiu Castagnoli.
250 ; Gli architetti e il fascismo, pp. 79-80.

  125  
Tanto Marcello Piacentoini em Roma como Giuseppe Terragni e seu Gruppo
7 em Milão disputavam a primazia na representação que o fascismo deveria promover
de si por meio da arquitetura e da cidade, imagem que deveria abranger edifícios
públicos e privados, casas burguesas e populares, além das “cidades de fundação”,
como eram chamados os empreendimentos urbanísticos de grande escala que
marcaram a empreitada colonial fascista na Líbia e Tunísia251. Ainda que Lina tenha
posteriormente se referido ao seu professor Marcello Piacentini e ao ensino que
recebeu na universidade ressaltando sua ênfase na cultura clássica e em uma nostalgia
áulica, ele tinha uma posição proeminente entre os arquitetos e buscava uma
conciliação entre a herança clássica e a demanda moderna. Curiosamente, embora
tenha permanecido fiel à forma clássica e à retórica monumental e cívica, ele fez parte
da formação de importantes arquitetos modernos – e imigrantes – que viriam a atuar
em São Paulo – além de Lina, Gregori Warchavchik e Rino Levi.252

Em 1926, por ocasião da abertura de uma mostra de arte do século XX,


Mussolini discorreu brevemente sobre relação entre arte e política; no mesmo ano, em
um discurso público, se indagou sobre o que seria uma “arte fascista”. Nesse ano foi
criada a revista Critica Fascista253, ao mesmo tempo em que Pietro Maria Bardi se
filiava ao Partido Nacional Fascista em Milão. Em 1931, na Mostra dei Razionalisti.
Il MIAR, na Galleria d’Arte di Roma foi exposta a Tavolo degli orrori (mesa dos
horrores), colagem de Bardi endereçada a Mussolini. Embora fosse uma fotocolagem
relativamente pequena, literalmente sobre uma mesa, gerou protesto do sindicato dos
arquitetos e foi retirada da exposição. A polêmica foi imediata pois, além de
exemplares de arquitetura de outros séculos havia nela detalhes de obras de Gustavo
Giovannonni e Marcello Piacentini, arquitetos influentes e bastante vinculados ao
regime de Benito Mussolini. Bardi era tão comprometido quanto eles, mas do outro
pólo desse campo de conflitos e adesões: como editor da revista Quadrante, fazia o
possível para que o Duce abraçasse ao modernismo arquitetônico como estilo oficial
da moderna Itália fascista. A referida mostra teve lugar no Palazzo Coppedé, que

                                                                                                                         
251 . Nessa modalidade de “racionalismo colonialista”destacou-se Carlo Rava, do Gruppo 7.
252 . Apenas esse papel na formação de arquitetos que seguiriam outro caminho já justificaria uma revisão
da trajetória do arquiteto. A respeito de Marcello Piacentini, ver Arquitetura italiana no Brasil: a obra de
Marcello Piacentini : história, catálogo, documentos. O autor realizou uma pesquisa minuciosa, que diz mais do que
o epíteto de “arquiteto fascista” sob o qual sua vida e obra foram avaliados pela historiografia até os anos
1990.
253 . Ritrato di un’idea. Arte e Architettura nel Fascismo. (Guida breve alla mostra), p. 6.

  126  
Bardi reputava como o edifício mais feio de Roma, algo de criticas posteriores de
Lina em texto de 1943254. Em 1933 Bardi realizou outras fotomontagens, desta feita
expressando mais motivação de continuidade e proposição do que repúdio, painéis
para serem exibidos nos círculos culturais italianos na América Latina, e foram
efetivamente mostrados por ele em Buenos Aires em 1933.

Nessa viagem, durante uma escala do navio, Bardi conheceu São Paulo, a
Avenida Paulista e o Conde Matarazzo além, de fora e de longe, a sua mansão,
projeto do arquiteto italianoTomaso Buzzi, que ele atribuiu a Marcello Piacentini.
Quando os Bardi chegaram ao Brasil, uma contenda semelhante à italiana era travada
a respeito do estilo dos edifícios oficiais, com Lucio Costa e seus companheiros da
“escola carioca” preconizando o chamado funcionalismo arquitetônico, enquanto
outros arquitetos voltavam-se para as linhas mais clássicas e ecléticas, numa disputa
pela “verdadeira” arquitetura nacional. Como Mussolini, o Estado Novo de Getulio
Vargas fez uma aposta múltipla, construindo edifícios modernos como o já citado
Ministério da Educação, ou mais “passadistas” como o Ministério da Fazenda255. Se
em São Paulo, onde havia um contingente maior de imigrantes e de uma arquitetura
promovida não pelo Estado mas por empreendedores, o debate a respeito da
“brasilidade” da arquitetura fazia menos sentido, intelectuais e escritores como Mario
de Andrade e Alcântara Machado também investiam contra a miríade de estilos que
identificavam na paisagem urbana em mutação.

Ao ancorar no Brasil os Bardi exibiram sua coleção no edifício do Ministério


da Educação e no Copacabana Palace, uma jogada que aglutinava redes da política
cultural e potenciais compradores das obras. As imagens da exposição no salão do
ministério atestam a seriedade do empreendimento: não apenas havia um acervo
relevante como eles já apresentaram a opção museológica de retirar os quadros da
parede, colocando-os em cavaletes. Essa maneira de expor obras de arte, inédita entre
nós foi posteriormente ensaiada no MASP da 7 de abril para ser depois consagrada e
criticada no MASP da avenida Paulista. Essa chegada “por cima” nos autoriza a
propor que além de quadros e livros houvesse contatos e acordos prévios – um certo

                                                                                                                         
254 . “Case a nuclei abitativi in Roma”. Lo Stile, Milão, no. 31, 1943. Traduzido e reproduzido em Lina por
escrito.
255 . Os debates e querelas relativos aos edifícios do governo Vargas foram tratados no livro As Preocupações

do Belo, de Lauro Cavalcanti.

  127  
capital social na valise do casal Bardi. Redes traçadas a partir da Itália, tecidas no
navio Patris II onde se realizou o emblemático CIAM256 de 1933, quando Bardi se
aproximou de Le Corbusier257, que por sua vez já havia estado no Rio de Janeiro e em
São Paulo em 1929. Em entrevista de 1981258, Bardi chegou a afirmar que custeou a
passagem de Le Corbusier no navio que transportou os arquitetos de Marselha a
Atenas, e vive-versa – onde teve lugar o famoso encontro que discutiu a cidade
funcional – mas isso parece pouco provável. De qualquer modo, seu papel nessa
reunião não foi irrelevante: havia quatro representantes da Itália nesse navio, e Bardi
era um deles259. E nos meios da arquitetura moderna, tanto na Itália como no Brasil,
ser próximo de Le Corbusier constituía um trunfo.

O casal Bardi viajou para o Brasil seguindo o conselho do crítico de arte


brasileiro Mário da Silva Brito, que tinha sido colaborador, junto com Bardi, do
Crítica Fascista260. Segundo Brito, havia no país um jornalista e empresário, Assis
Chateaubriand, que almejava criar um museu no Rio de Janeiro. Com a ajuda de
amigos na Embaixada Brasileira em Roma, do embaixador brasileiro Pedro de
Moraes Barros, Bardi organizou três exibições de sua coleção no Rio de Janeiro onde
residia Chateaubriand. Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Melo, que era
um personagem extremamente polêmico na vida política e cultural do país, foi se
encontrar com o casal Bardi na abertura da mostra – reunião marcada, embora
diversas narrativas posteriores atribuam a parceria nascente a um encontro casual.
Como não havia espaço político no Rio de Janeiro para um novo museu a ser criado
                                                                                                                         
256 . Os Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna começaram a se reunir em 1927 na Suíça e
fizeram seu último encontro em Dubrovnick, na então Iugoslávia em 1959. Destas reuniões fizeram parte,
entre outros, Walter Gropius, Le Corbusier, Giuseppe Terragni e os CIAMs de certo modo pautaram a
agenda da arquitetura moderna nesse período. O encontro em que Bardi esteve presente tornou-se o mais
conhecido, especialmente após a publicação de seu documento “Carta de Atenas”.
257 . “Estretei relações com o Mestre quando tornei-me correspondente na Itália de L’Architecture

d’Aujourd’hui de Paris, estabelecendo então boas amizades com os grupos que se andavam afiliando aos
“CIAM” (…) fundados por Le Corbusier em ’28 em La Sarraz, na Suíça. Lembranças de Le Corbusier. Atenas,
Itália, Brasil, São Paulo: Nobel, 1984, p. 15.
258 . Harris, E. Le Corbusier: riscos brasileiros, ao Paulo: Studio Nobel, 2002, p. 39.
259 . A Itália foi representada por Piero Bottoni, Gino Pollini, Giuseppe Terragni e pelo galerista e editor da

Quadrante, Pietro Maria Bardi. The CIAM Discourse on Urbanism, pp. 77-8. Piero Bottoni (1903-1973),
arquiteto formado em Milão, participou da fundação da Quadrante, com Bardi e Bontempelli; Gino Pollini
(1903-1991) também era um arquiteto atuante e Giuseppe Terragni, como já vimos era o mais importante
arquiteto racionallista do período.
260 . Brito publicou também um artigo na revista Quadrante, editada por Bardi. Curiosamente, em artigo de

1955, publicado no Brasil, Brito tentou aproximar o fascismo dos movimentos artísticos italianos de modo
simplista: “Em 1919, Mussolini já redigira a plataforma do fascismo, cujas origens estão no Manifesto
Futurista, de Marinetti, ao qual, alias, o líder político apôs sua assinatura”. Depoimento de uma geração, pp. 26-
7.

  128  
por um empresário como Chateaubriand261, o casal veio inventar seu museu de arte
em São Paulo. Bardi como diretor, Lina como responsável pelo espaço, pelo projeto
museológico que deve em grande medida à experiência anterior de Bardi como dono
de galeria em Roma e Milão.

Achilina di Enrico Bo era a filha mais velha um engenheiro profissional e


pintor de domingo. Bardi era um renome que, somado ao aprendizado de desenho
com seu pai e à formação no liceu artístico e na universidade, lhe permitia tornar-se
arquiteta. Foi aqui que ao desembarcar renomeada tornou-se arquiteta a partir de
encomendas feitas por e para o próprio casal: a Casa de Vidro e o museu de arte em
suas duas versões, a primeira no centro de São Paulo e a segunda na Avenida Paulista.
De família burguesa e católica – foi criada em um bairro-jardim de Roma, era neta de
médico e foi batizada no Vaticano – Lina aprendeu a desenhar com seu pai Enrico Bo
mas depois de cursar o Liceu Artístico começou a se afastar do que parecia um
destino natural de moça burguesa talentosa: no lugar de cursar Belas-Artes, ingressou
no masculino curso de arquitetura da Universidade de Roma, projetada e dirigida por
Marcello Piacentini. Eram apenas duas mulheres no curso, que ela freqüentou
enquanto a arquitetura moderna na Itália se confundia com a instauração do fascismo;
no momento em que, em Roma, Marcello Piacentini convivia em grandes obras com o
milanês Giò Ponti, mais moderno embora bastante conciliador; anos em que Pietro
Maria Bardi lançava sua Quadrante; período em que o debate arquitetônico era
dominado pelas revistas Casabella e Domus. A culminação dessa movimentação toda
viria em 1935 com a Esposizione Universale di Roma (EUR), uma cidade construída
perto de Roma, no caminho do mar, com plano geral de Piacentini.

Ao se formar, Lina deixou Roma por Milão e na cidade industrial lombarda,


começou sua trajetória profissional trabalhando com Giò Ponti. Mais tarde esta
decisão seria lembrada como: “Fugi das antigas ruínas recuperadas pelos fascistas.
Roma era uma cidade meio parada, lá estava o fascismo. A Itália toda era meio
parada. Mas Milão não.“262 Foi redatora e ilustradora da Stile, editora da Domus e
Quaderni de Domus, e fundou com o importante arquiteto e crítico Bruno Zevi a
revista A - Cultura della vita em 1945. Foi nessa revista barata, popular, dirigida à
                                                                                                                         
261. Alguns desenhos de Lina para um museu na rua do Ouvidor, Rio de Janeiro, revelem que essa
possibilidade foi pelo menos aventada.
262 . “Curriculum literário.” Lina Bo Bardi, p. 9

  129  
dona de casa comum, que Lina começou a exercitar intensamente a cruzada pelo
gosto moderno. O periódico exprimia uma sedução pela possibilidade de uma vida
cotidiana moderna, identificada com aspectos do American way of life, expresso
especialmente em objetos cotidianos como os eletrodomésticos. E esse fascínio dizia
respeito à mulher dona de casa: se a civilização moderna tendia a libertá-la, a lançá-la
na vida social, civil e política da nação, era preciso facilitar o trabalho doméstico, o
que era visto como um problema de método: uma casa eficiente.263 A resposta estava
na “cozinha do amanhã”, projetada nos Estados Unidos, tão diferente da cozinha
italiana do momento como a abóbora da carruagem de Cinderela264. Era visível a
simpatia pelo new deal no meio dos arquitetos modernos265 e a retomada da questão
feminina no discurso arquitetônico não deixa de remeter a todo um debate sobre a
casa dentro e fora do campo da arquitetura, como já vimos.

In the general enthusiasm about rationalization, the way things looked was important.
By proclaiming the unification of the life of work and the life of leisure under the sign
of rationality and ever-increasing productivity, the appeance of houses and objects
symbolized modern technology266.

O uso cotidiano dos objetos era também tema de A, em jogos que propunha a
escolha de itens como copos, vasos, móveis. O comentário, ao final das respostas de
múltipla escolha, era jocoso, quando a escolha recaía em um objeto artesanal ou
industrial remetendo a uma aparência do século XIX e elogioso quando o leitor
evidenciava uma escolha por objetos modernos e industriais. Assim, a revista editada
por Lina Bo operava como um certo guia, um “modo de usar” para modernidade
traduzida na vida cotidiana. A carreira editorial de Lina Bo caminhou até que aos
trinta e um anos – ou seja, um casamento tardio para sua geração – ela se tornou a
signora Bardi. A autonomia relativa de Lina como arquiteta nos primeiros vinte anos
no Brasil se deve e muito ao seu casamento. Sua primeira obra construída, a Casa de
Vidro era a residência do casal e com esta obra ela se tornou arquiteta. Malgrado a
dúvida que ainda paira sobre a Casa de Vidro ter sido pensada como extensão do
MASP, é preciso assinalar que de qualquer modo ela é uma casa-manifesto, uma casa
feita para ser exibida, uma casa exemplar, o que foi explicitado tanto em alguns
                                                                                                                         
263 “Come può esse il uomo libero si la donna”, A, n.1.
264 “La cucina dell’venir”, A, n. 1.
265 O biógrafo de Bardi, Francesco Tentori, se refere à A como “um boletim de informações patrocinado

pelo United States Information Service”. P. M. Bardi, p. 167, nota 6.


266 Larson, Magali Sarfatti. Behind the postmodern facade: architectural change in late twentieth-century

America. Berkeley & Los Angeles: University of Califórnia Press, 1995, p. 33.

  130  
artigos para arquitetos como em seu verbete para a Enciclopédia da Mulher. Museu
ou não, a dimensão expositiva atravessa o espaço e os discursos de domesticidade
nesta casa.

São Paulo nos final da década de 1940 já era uma metrópole e foi nela que a
parceria Bo-Bardi aconteceu. Cidade que procurava viver a modernidade como uma
sina, com sinal positivo, em contraste, sob diversos ângulos, com a capital federal.
Penso caber aqui o argumento de Carl Schorske a respeito de uma modernidade que
se pensa com, sem ou contra a história267, remetendo a pista para o ambiente
construído e para os grupos dominantes no campo da arquitetura moderna. Os anos
posteriores à Segunda Guerra Mundial modernizaram o ambiente construído de
cidades diversas por razões distintas. Se na Europa o esforço de reconstrução das
cidades arrasadas pelo conflito bélico legou conjuntos habitacionais, new towns e
novos edifícios ao tecido urbano destruído, o caso paulistano aproxima-se mais da
metrópole norteamericana, que se reinventou na prosperidade, no crescimento
industrial e de serviços. No que diz respeito ao espaço urbano, a hegemonia
modernista era clara e dela fez bom uso o capital corporativo estadunidense,
marcando o espaço com edifícios projetados por arquitetos que migraram na guerra,
como, em Nova York o Seagram’s Building de Mies van der Rohe e o Panam
Building de Walter Gropius. Guardadas as proporções, temos o Edifício Itália (1965)
projetado por um arquiteto alemão, Adolf Franz Heep – que havia trabalhado em
Paris com o nome de François Heep – o Edifício CBI Esplanada (1948), do polonês
Lucjan Korngold, o Conjunto Nacional (1952-6) na avenida Paulista, projeto do
também alemão Daniel Liebskind, além de um número significativo de edifícios
residenciais na área central e proximidades, em grande maioria projetados sob
princípios modernistas e por arquitetos estrangeiros.

Destarte, São Paulo perdeu o ar acanhado da cidade dos anos 1920. Mas se a
urbe era já colossal, era no centro que a vida mundana, cultural e cosmopolita
acontecia, num trajeto que ia do teatro Municipal à avenida São João, passando pelo
largo do Arouche, pelas paralelas 7 de abril e Barão de Itapetininga, voltando à
Biblioteca Mário de Andrade e desta pela Consolação até a rua Maria Antonia, onde
estavam os cursos da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo – que
                                                                                                                         
267 . Schorske, Carl. Pensando com a História. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

  131  
ainda não era isolada e autossuficiente, no modelo suburbano norteamericano, como
veio a ser posteriormente. Ao lado, o Mackenzie, uma universidade prebisteriana, e a
duas ruas dali a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP na Rua Maranhão.
Nesse centro novo – em oposição ao centro velho, nas cercanias da Praça da Sé –
instalou-se o Museu de Arte de São Paulo. Nessa cidade o casal foi bem e mal
recebido. De um lado circulavam por festas e eventos, Lina sempre chamando a
atenção por suas maneiras e modo de vestir, deliberadamente procurando mostrar que
era européia e não provinciana como ela via as senhoras paulistanas. Seu desejo, ou o
desejo do casal de exalar modernidade (ou mundanidade?) estendia-se, no caso de
Lina, às jóias e ao vestuário com que aparecia publicamente. Era uma mulher
moderna, que exercia uma profissão masculina. Pensava no artesanato, escrevia a
respeito mas não o exercia de modo manual. Sua relação com a cultura material era
técnica, artística, pública e, nesse sentido, masculina. Nada mais moderno do que isso
na São Paulo do pós-guerra.

A má recepção que o casal recebeu remete à sua condição de italianos e


ligados ao fascismo – a faceta esquerdista de Lina só se manifestaria mais tarde. Mas
o casal, com a cobertura que lhes conferia a ligação com Assis Chateaubriand,
exercitava sua verve nos textos da Habitat, em entrevistas à imprensa e especialmente
quando se ocultavam – se é que é possível que os editores de uma revista se escondam
– sob o pseudônimo de Alencastro, nas páginas finais da Habitat. Neste lugar, o casal
não fazia o possível para ser uma unanimidade, ao contrário: em 1951 criticaram o
Edifício Martinelli, arranha-céu no centro de São Paulo, orgulho da colônia italiana;
em 1954 chamaram a catedral de São Paulo, que estava em construção, de “causa
perdida”, por sua concepção neogótica e não perdiam a oportunidade de censurar a
arquitetura dos bairros-jardim da cidade, para onde a elite migrara depois de deixar a
área central. O lugar de debate do casal era a revista do museu.

A intervenção do MASP na vida da cidade tinha outro importante


componente: o Instituto de Arte Contemporânea (IAC). Essa escola de desenho
industrial, fotografia, publicidade etc. desempenhava papel importante naquilo que
muitos autores identificam como uma “cruzada do gosto” empreendida pelo museu na
figura de seus dirigentes.

  132  
Em 1949, quando procurava, em companhia do arquiteto Gregori
Warchavchik, um terreno para construir oficinas para o IAC, Lina conheceu um novo
loteamento, onde era antes uma fazenda de chá, o Jardim Morumbi. A revista Habitat
lançou-se numa cruzada pelo gosto para evitar que o bairro tivesse destino semelhante
aos outros bairros-jardim de São Paulo com suas casas ecléticas e enfeitadas, e
Alencastro, o “duplo” do casal na revista chegou a lançar ao prefeito a pergunta se
seria possível instituir uma comissão para salvaguardar o decoro arquitetônico da
cidade. O casal comprou dois lotes e no bairro também havia projetos em andamento
de Oswaldo Bratke e de Warchavchik, o que dá suporte à sugestão de Zeuler Lima, de
que a intenção em algum momento foi tornar o novo bairro um equivalente à
experiência californiana das Case Study Houses268.

Em 1951 a casa do casal, chamada de “Casa de vidro” foi concluída e em


artigo publicado na revista Habitat, Lina já havia situado esse seu primeiro projeto
edificado no pólo da produção pura, aquele em que o produtor tem como comitente
outros produtores, em oposição ao pólo da produção comercial, no qual o arquiteto
negocia com as expectativas do cliente. Em suma, a residência do Künstlerehepaar
era uma casa manifesto, na mesma linhagem de outras, como a Ville Savoye de Le
Corbusier. Como assinalou Lina: “Se um arquiteto da nova geração erra, isso se deve
quase sempre à interferência do comitente. Neste caso, a situação foi outra: o
comitente era o próprio arquiteto”269. Ali, na casa projetada com um evidente grau de
autonomia, na casa que, com uma sala envidraçada com poucas divisões já antecipava
o MASP da avenida Paulista – e talvez possamos pensar nos móveis soltos, em
paredes para encostarem como um diálogo com as obras em cavaletes, ou seja, os
objetos e móveis da sala um tanto pensados como objetos expositivos ou mesmo
obras de arte – ela redigiu seus conselhos a mulheres comuns, cuja sala,
definitivamente, dificilmente remeteria a um museu moderno.

                                                                                                                         
268 . Essa sugestão veio do pesquisador Zeuler Lima em um debate sobre a presença dos italianos nas
cidades brasileiras, realizado no Rio de Janeiro em 21 de novembro de 2011, no Seminário Interlocuções
Brasil-Itália. As Case Study Houses foram um experimento patrocinado pela revista Arts and Architecture que
entre 1948 e 1966 construiu mais de 30 casas, de arquitetos proeminentes como Richard Neutra, William
Wurster, Eeno Saarinen e do Casal Charles e Ray Eames, dentre outros. A maioria foi publicada na revista
com imagens do fotógrafo de Julius Schuman. O papel de formadores de opinião e de gosto que o casal
assumiu na Habitat nos autoriza a incorporar essa interessante sugestão de Lima.
269 . Habitat no. 10, 1953. pp. 31-40.

  133  
LINA CONSELHEIRA

A Enciclopédia da Mulher é de um volume de trezentos e trinta páginas em


formato grande. Os textos são todos traduzidos do original francês, Encyclopédie de
La Femme, editado por Fernand Nathan em Paris, à exceção de dois: o já mencionado
verbete de autoria de Lina e uma colaboração de Maria Eugênia Celso, duas páginas a
respeito das escritoras sul americanas e portuguesas, como Gabriela Mistral, senhora
Leandro Dupré, e as irmãs Clarice e Ellisa Lispector, dentre outras – poucas. De resto,
os artigos são sobre beleza, moda, tecidos e peles, trabalhos manuais, conservação da
casa e trabalhos domésticos, arte culinária, a mãe e a criança, a mulher e a vida social,
os direitos da mulher, horas de folga, a sociedade e seus costumes, a mulher e o
esporte, na literatura, nas artes.

Como Charlotte em seu trabalho com o mesmo escopo, Lina partiu da noção
de habitat, em seu significado biológico. Na casa, além de morar, o homem adquire
seus hábitos de vida e “forma a própria personalidade”270. Nesse habitat, a arquiteta-
museógrafa que se empenhou em tirar as obras de arte de seu lugar sacralizado no
museu (se isso nunca foi conseguido, ela tirou os quadros das paredes), quis fazer o
mesmo nesse texto ao afirmar que o adágio segundo o qual “a casa é o santuário da
família” muitas vezes reduziu a dona da casa à escravidão271. Por esta razão, habitat
em seu significado biológico e acrescido de poesia:

Poesia não quer dizer cantos e recantos, adornos e sentimentalismo a baixo preço;
quer dizer continuo refazer-se de acordo com o sentido da natureza e da ingenuidade
das coisas; quer dizer ar luz flores, plantas e sobretudo o banimento da mesquinhez
moral que se percebe numa casa, do porão às grades da janela, graças à aus6encia
absoluta de uma planta viva ou de um livro; incluindo-se nessa mesquinhez moral o
abrir-se a sala da visitas uma vez por ano e o hábito de comer-se na cozinha quando
se tem uma sala de jantar.272

Seria essa a impressão guardada por Lina da casa burguesa paulistana que, de
fato, nos anos 1950 tinha uma sala de visitas trancada e uma sala de jantar reservada
às ocasiões especiais? Aparentemente, essa passagem era endereçada às mesmas
“madames” para quem ela se vestia de modo extravagante, o que torna essa passagem
um tanto identitária, uma fala de demarcação de fronteira. Talvez também para
demarcar novas e antigas visões do espaço burguês, seu texto apresenta várias opções
                                                                                                                         
270 . Enciclopédia da Mulher, p. 73.
271 . Idem, p. 77.
272 . Idem, ibidem, p. 73.

  134  
do morar para se ocupar da casa nova. Ainda assim, dá conselhos para a necessária
adaptação da casa velha: criar ou refazer os serviços (banheiros e cozinha); classificar
os móveis em antigos com valor artístico e aqueles com valor meramente sentimental.
No primeiro caso, móveis e objetos passariam a integrar o ambiente da casa; no
segundo seria preciso esclarecer que a condição de objeto de recordação nada tem a
ver com seu valor físico. A “cruzada do gosto” se justificava: “A evolução do gosto, a
contínua simplificação das coisas, o constante referir-se às origens ou, melhor
dizendo, às coisas autênticas, com o que se eliminam as copias e as coisas refeitas,
ajudam na formação de uma mentalidade aberta, livre de preconceitos e
limitações”273. Prosseguindo, o texto afirmava ser a arte uma especialização, como a
medicina e a presunção de compreender a arte constituiria um erro. Assim, seria
melhor na casa se usar fotografias na parede. Em relação ao texto de Charlotte
Perriand, que também carregava suas tintas em erros e acertos, “A casa” apostou em
uma série de interdições, censuras e nesse exemplo diferenciava muito bem a dona de
casa comum inculta do conhecedor de arte. Não se tratava, pedagogicamente de
ensinar escolhas à primeira (o que é no mínimo curioso para quem trabalhava em um
museu de arte com forte ênfase padagógica), mas sim de adverti-la para, consciente
do seu desconhecimento, evitar o erro, presente nos quadros e nos móveis de estilo.

Duas casas, principalmente, ilustram o longo texto. A casa do Dr. B, de


Vilanova Artigas (Dr. Bittencourt, projeto muito semelhante à própria casa do
arquiteto) e a Casa de Vidro, não corretamente identificada, apresentada como a “casa
de um colecionador”. Nessas casas, e na das leitoras,

A sala de estar é o ambiente onde por excelência se vive, e que mais contribui para
dar caráter à casa e mais influi sobe os indivíduos que a habitam. (...) nada de quadros
de ínfima categoria nas paredes. (...) também entre os móveis considerados
“modernos”há imitações de mau gosto, de péssimo desenho e de mau acabamento
(...).274

É provável que Lina conhecesse o trabalho de sua colega francesa. Lina


também manifestou em seu texto uma quase obsessão por armários e arrumação dos
mesmos, também elaborando um “modulor útil”, porém mais detalhado onde tudo que

                                                                                                                         
273. Enciclopédia da Mulher, p. 76. Grifos adicionais.
274Enciclopédia da Mulher, p. 84. É possível que ela estivesse se referindo aos móveis da fábrica de Zanine
Caldas em São José dos Campos, que ela costumava veladamente criticar em suas colunas na Habitat. Ver
Camila Gui Rossatti, 2016.

  135  
cabia numa casa – e, claro, em seus armários embutidos – era medido, de panelas a
sapatos.

Nessa casa a sala é o lugar de se viver (certamente por isso não deveria nunca
ser fechada). Deveria sim ser clara, contemporânea e seguir uma “idéia otimista de
vida”275. Os materiais sugeridos para a sala: madeiras, tecidos com cor lisa, riscos ou
quadros – pois segundo ela as estampas raramente têm bom desenho; as almofadas
dos estofados devem ser removíveis para facilitar a limpeza e evitar o mofo. Um bar
balcão deveria ser evitado – por ser de mau gosto—mas um único móvel poderia
aglutinar rádio, televisão, vitrola, bar e biblioteca (no caso da casa não tem um espaço
dedicado aos livros). Tapetes também lisos em cores sóbrias: persas e gobelins só se
autênticos. Critérios severos transferidos também para outros objetos:

A escolha de objetos de adorno também é capital: nada de mulheres, coelhinhos,


animaizinhos de péssimos gosto. É muito melhor terem-se cerâmicas populares,
esculturas de madeira ou vasos de barro. A produção popular tem caráter artístico, e
vale muito mais uma vaca pintada de vermelho, de Pernambuco, do que uma dama
vestida de rendas, das fabricadas em série pelas manufaturas européias, cuja produção
não tem mais valor há um século. (...) Se não tiver meios para comprar uma cerâmica
de Picasso, recorra a um vaso de barro daqueles em que o povo guarda gordura, ou
uma bilha em que se guarda leite. Como valor estético, estarão no mesmo plano da
primeira, enquanto isso não acontecerá com o cachorro, ou o elefante de porcelana
276
alemã ou da Tchecoslováquia cujo preço atingirá quase o da cerâmica de Picasso .

Se o critério de organização da sala é a clareza, o da sala de jantar é uma


função: comer. Sua organização e disposição depende de certo modo da dimensão da
casa, pois nas medias e grandes existe a copa, ambiente intermediário, enquanto que
nas pequenas a cozinha se comunica diretamente com a sala. Mas em qualquer
dimensão, o elemento é a mesa, e é preciso uma mesa auxiliar, especialmente se a
dona de casa não tiver empregados para ajudá-la a servir. E a mesa deve ser protegida
por um material que não queime ou risque: mármore com veios ou fórmica – ela não
hierarquiza, reduzindo os diferentes materiais à mesma função.

E espelhos na sala de jantar são de mau gosto.

                                                                                                                         
275 . Idem, p. 84.
276 . Idem, ibidem, p. 86.

  136  
No estúdio, o primeiro elemento é a estante de livros, e mais um impedimento:
gravuras antigas com passe-partout em celeste e ouro277: “O, é que é preciso,
sobretudo, é ter sempre presente a simplicidade, que deve ser levada na maior
consideração, porquanto em um estúdio ‘pensa-se’ e, por isso, se é extremamente
suscetível à influência do ambiente”278. Em uma casa pequena, o conselho é que o
estúdio se resumisse a um canto da sala e uma escrivaninha.

No quarto se deve respirar. Deve-se ter só o leito, mesa de cabeceira e guarda-roupa.


Leitos simples de metal ou madeira, sem almofadas. Se houver espaço uma cadeira
ou poltrona. Cortinas brancas. Contudo, se a casa não tiver quarto de vestir, o
“toucador da senhora”deverá estar no quarto, e também nesse caso a simplicidade
acompanha o bom gosto: um toucador moderno terá a parte superior de cristal ou
matéria plástica, gavetas e um espelho fixo ou situado em uma parede do móvel, de
forma a poder ser escamoteado. O toucador moderno pode ser mais um aspecto de
um pequeno móvel científico do que um utensílio feminino desajeitado, estar mais
próximo da ética da mulher contemporânea – ética que não exclui absolutamente a
feminilidade e a poesia da mulher, que se põe em evidência, em seu justo valor, sem
necessidade de aparatos de pasta de cartão279 .

FRANKFURT NO MORUMBI: A COZINHA

“A cozinha deve ser considerada hoje como um laboratório científico, uma


espécie de gabinete racional apto a suavizar o mais possível o trabalho da dona de
casa, torná-lo mais agradável, bem longe do ‘trabalho forçado’ de alguns anos
atrás”280. Com essa abertura, o capítulo sobre “Copa e cozinha” é o que mais
evidencia tensões de gênero, do papel da dona de casa, da presença ou não de
empregados e da racionalização do espaço como possível solução reformista para tais
dificuldades. Além dos confortos já aclimatados em São Paulo como aquecimento de
água, o texto propões triturador de lixo – que a indústria brasileira não fabricava e
hoje, mais de cinqüenta anos depois ainda é um item raro nas residências – e exaustor.

                                                                                                                         
277 . A Enciclopédia da Mulher, p. 92.
278 . Idem, p. 96.
279 . Ibidem, p. 99.
280 . A Enciclopédia da Mulher, p. 99.

  137  
Uma certa ambigüidade no discurso quanto ao item “lixo” acusa o costume de lixeiras
em casa e nas ruas de ausência de higiene. À modernidade dos aparelhos domésticos
ainda pouco acessíveis no Brasil e a uma cozinha em “série” – ou seja, uma bancada
seguida de pia e de fogão, claramente informada pela cozinha de Frankfurt e outras
cozinhas tayloristas – a cozinha da casa moderna tem alguns itens que ainda remetem
a um trabalho bastante artesanal, como uma mesa para se fazer massas ou doces. Mas,
afirmada a necessidade de uma cozinha-laboratório de trabalho, a autora se volta para
os usos, as práticas neste espaço dirigindo sua critica à copa:

A copa é um elemento útil, mas não indispensável; nela lava-se a louça, colocam-se
os armários para o serviços de mesa e preparam-se os pratos de serviço. É costume
ter-se na copa uma mesa para tomarem-se refeições inteiramente à vontade, em
pijama ou roupa de dormir. Somos contrários a esses hábitos; quem tem a sala de
jantar deve usá-la sempre e em qualquer momento, ou então aboli-la usando, para
comer, a copa. Esse uso tem um quê de burguês e recorda o hábito de fechar a sala de
visitas (...). Para quem não tem a sala de jantar, a copa não é mais uma copa, mas
transforma-se automaticamente na sala de jantar que, nesse caso, é anexa à cozinha,
critério moderníssimo e que facilita as refeições, especialmente para quem não tem
copeiras.

A copa pode servir também para as refeições dos empregados, mas se a casa é
grande e se tem recursos, é bom fazer para os domésticos uma saleta à parte, onde
eles possam descansar e tomar suas refeições.”281

“Se a casa é grande e tem recursos”: esta passagem no texto de Lina remete ao
espanto de dois colegas italianos ao conhecerem a Casa de Vidro. Francesco Tentori,
biógrafo de Pietro Maria Bardi lembra com ironia seu espanto ao vislumbrar os
aposentos de empregados. Com ironia, assume que se trata de uma apropriação, por
parte da arquiteta, da memória do Brasil colonial, ao incorporar um esquema de “casa
grande e senzala”. Na casa, que é usada no texto da Enciclopédia da Mulher como
exemplo do viver moderno, a área de serviço é rigorosamente apartada do corpo da
casa por um pátio e uma porta. Entre esta e o bloco onde vivia o casal, a cozinha faz a
transição, o que não é muito diferente de qualquer casa ou apartamento burgueses
construídos naquela década e ainda hoje. Além disso, como bem mostrou Campello,
os empregados possuem uma habitação mínima, independente do resto da casa.
Também Giò Ponti, com quem Lina trabalhara em Milão antes de migrar para o Brasil
referiu-se a esta situação do lugar do trabalho e dos trabalhadores da casa,

                                                                                                                         
281 . Idem, pp.101-2. Grifos adicionais.

  138  
denominando essa parte de viscere, assinalando que esta casa tinha dois setores: um
desnudado para os visitantes e outro opaco, resguardado, segreto282.

Com este texto enciclopédico a Casa de Vidro passou a constituir um duplo


manifesto – quando publicada nas revistas especializadas, como a Habitat, uma
tomada de posição para o campo dos arquitetos modernos, quando exibida em um
texto voltado à dona de casa, um exemplo de “como viver uma vida moderna”. Lina
realizou uma leitura, malgrado ela mesma, bastante aburguesada dos feitos do CIAM
de 1929 que em Frankfurt dedicou-se a debater a habitação dos trabalhadores, a
chamada habitação mínima. Foi nesse momento que a Cozinha de Frankfurt se deu a
conhecer como espaço prático e taylorista para a mulher moderna que trabalhava e
cuidava da casa. Esta cozinha foi concebida para as habitações mínimas, conjuntos
habitacionais projetados para a classe trabalhadora alemã. Eis que os dois objetos de
discussão de 1929 ressurgem na casa moderna de Lina Bo Bardi: a cozinha funcional,
embora espaçosa e utilizada por empregadas domésticas, e um pequeno apartamento
operário dentro do mesmo terreno, como se reproduzisse não apenas um esquema de
casa grande e senzala – e poder-se-ia argumentar que o apartamento de serviço tem
qualidades espaciais que o colocam muito acima não apenas das senzalas coloniais
como os aposentos de empregados em outras residências – como de certo modo
espelha também uma disposição urbana, um efeito de lugar equivalente à habitação
burguesa em um bairro privilegiado e a habitação do trabalhador em uma periferia ou
arrabalde da cidade283.

Assim, nota-se que ser ou não burguês na São Paulo dos anos 1950-60 por
parte de uma intelectualidade que era uma fracção de classe no sentido usado por
Raymond Williams, mais do que um discurso esvaziado ou uma saída espacial, era
uma tensão quase insolúvel284. Tensão semelhante àquela explicitada por Le
Corbusier em carta a um cliente: “nós não somos burgueses”285.

A imagem 37 faz parte das ilustrações do texto em análise neste capíitulo. A


legenda assinala que “a casa é espaçosa, especialmente no que se refere às
                                                                                                                         
282 . Maria de Fátima M. B. Campello. As moradas da alma, p. 91.
283 . Pierre Bourdieu, “Efeito de lugar”.
284 . Ver Raymond Williams, “The Bloomsbury Fraction”, em português “A fração Bloomsbury”,

disponíivel em http://www.revistas.usp.br/plural/article/viewFile/77127/80996.
285 . Carta de Le Corbusier a um cliente, Fueter, explicando porque a casa não poderia ser pintada e deveria

ter o concreto aparente. Citado em aula por Tim Benton, Unicamp, 30 de maio de 2011.

  139  
dependências de serviço”, e que estes apartamentos pertencem ao tipo de
“apartamentos mínimos, espécies de cálulas – para uma ou duas pessuas no máximo”.
É o segredo que causou espécie aos italianos Tentori e Ponti, e uma evidência na fé
cega que o modernismo depositava em seus ganhos e na aposta de um homem
universal. Pensados em uma condição democrática e progressista da Alemanha dos
anos 1920, por arquitetos – como os já mencionados Bruno Taut e Ernst May – é
como se o apartamento mínimo pudesse transferir suas qualidades, que eram
evidentes quando comparados às mietkasernen que mal abrigavam os trabalhadores
no século XIX, para qualquer lugar. Progressistas como um bairro em Frankfurt na
República de Weimar, os apartamentos mínimos eram, sim, uma marca senhoral em
uma casa burguesa no Morumbi na São Paulo dos anos 50-60, não obstante as
intensões e pretensões de que o bairro pudesse vir a se tornar um mostruário de boa
arquitetura, como casas-manifesto como a Casa de Vidro e uma casa projetada por
Orwaldo Bratke nas imediações286.

Lina não faz qualquer menção a gênero em seu verbete e aparece em diversas
imagens manipulando eletrodomésticos sem mostrar o rosto, como nas imagens
analisadas no primeiro capítulo desta tese. Mostrar-se, contudo, como uma mulher
anônima é um discurso que tem papéis sexuais em destaque e a não menção de que é
à mulher que os conselhos modernizadores são endereçados é significativa. Diferente
de algumas de suas antecessoras de quase um século, como Beecher ou Zina Peirce,
Lina não precisava bater na tecla da importância do trabalho remunerado como fator
de independência pessoal feminina. Como Charlotte, era uma mulher com profissão,
distante do modelo de esposa protagonizado por Doris Day nos filmes da década de
1950 e igualmente distantes da mulher operária, auxiliar do comércio ou outras que
caberiam na rubrica do trabalho necessário para fechar as contas do lar. Se no que se
refere ao seu trabalho, Charlotte Perriand levou “uma vida de criação”, no momento
da escrita do verbete, meados dos anos 1950, ela era uma arquiteta em vias de
consagração: trabalhava na direção do MASP e editava a Habitat, além de projetar e
produzir mobiliário que ilustra o texto ( que não deixava de ser uma propaganda
disfarçada dos feitos do Studio Palma). Ao leitor – ou leitora! – que de algum modo
conhecia sua persona pública, sua mera presença nas fotografias não deixava de ser,

                                                                                                                         
286 . Casa Oscar Americano, onde hoje funciona a fundação com o mesmo nome.

  140  
de algum modo, uma propaganda a favor da mulher que tem parte de suas realizações
fora dos limites da casa. E é preciso destacarmos a postura corporal de Lina nas
fotografias: embora usando o equipamento, ela não olha a câmera (mais uma vez),
menos ainda com o ar triunfal da dona de casa suburbana norte americana, vitoriosa
em seu lar equipado e com um avental adornado cobrindo o vestido new look. Lina
está de calças compridas, sapato baixo, cabelo solto, sem adornos mas com as unhas
feitas, em uma postura que indubitavelmente a coloca como a dona daquele espaço
por tais sinais de distinção visual – mais uma vez a indumentária em conformidade
com a arquitetura e a decoração (Figuras 38, 39 e 40.

Por isso, certamente, a vestimenta despojada, ainda de que unhas cuidadas, as


calças no lugar dos saiotes, volumes godês e aventais embabadados das fotos que os
Estados Unidos divulgavam nesses anos de Kitchen Debate287. Uma cozinha
americana-frankfurtiana sem necessariamente o way of life a elas agregado – nem o
socialista-assistencialista, tampouco o da americana dos subúrbios do pós-guerra.
Todavia, mais uma vez as legendas são reveladores: para a foto à esquerda, Lina
lembra que o trabalho doméstico é extremamente facilitado pela mecanização do lar, e
acrescente: “A máquina para lavar pratos elimina tudo quanto de humilhante existe
nesse tipo de trabalho: a gordura e os restos não são tocados pelas mãos, pois uma
espátula especial de borracha ajuda a remover esses últimos para o triturador, que os
elimina”288. Esta passagem nos remete a todas as noções de impureza, perigo,
sujidade, poluição e tabus a estes relacionados, tal como tratados por Mary Douglas
em seu clássico Pureza e Perigo. A cozinha é o lugar dos detritos da casa, mas a
sujeira está também nos olhos de quem a vê e mais: "Quando refletimos honestamente
sobre nossas escovações e faxinas", escreveu a antropóloga britânica-, "percebemos
que não estamos principalmente procurando evitar doenças" e sim "separando,
demarcando fronteiras, fazendo afirmações visíveis sobre o lar que pretendemos criar
a partir da casa material.289"

Vânia Carvalho interpreta de modo muito pertinente a passagem, no Brasil, do


fogão antigo, à lenha para o moderno à gás. Pautado pelo problema da rotatividade

                                                                                                                         
287 . As transformações da cozinha que culminaram com o Kitchen Debate, uma discussão entre os políticos
norteamericanos e soviéticos, serão tratados no capítulo V desta tese.
288 . Enciclopédia da Mulher, p. 94.
289 . Mary Douglas, Purity and danger: an analysis of the concepts of pollution and taboo, p. 69.

  141  
das empregadas – trataremos disso posteriormente na tese – o novo equipamento
doméstico, o fogão a gás também poderia contribuir para atar a criada ao trabalho.
Como nos anos 1950 a classe media paulistana continuava a contar com a
trabalhadora doméstica, não era exatamente a libertação da dona de casa que estava
em pauta. O resultado, contudo, dessa nova tecnologia, do ponto de vista da delicada
relação entre a dona de/da casa e sua empregada foi o desprestígio do saber
tradicional desta última, que resistia à inovação. Assim, a “mecanização do trabalho
braçal da criada na cozinha oferece uma saída ‘de classe’ para o dilema da dona de
casa. Ela permite o usufruto da modernidade tecnológica sem comprometer o
universo artístico e artesanal (com sentidos de negação do trabalho manual) ao qual
estava associada”.290 Ou como observou o arquiteto Carlos Comas, em análise sobre a
Casa de Vidro, nesse momento no Brasil os eletrodomésticos começavam a aparecer
enquanto os empregados permaneciam nas casas: a burguesia iluminada gozava
assim, do melhor de dois mundos291.

Isso ficou bastante claro quando, em visita à Casa de Vidro em 2010 pedi para
examinar os equipamentos domésticos que ilustravam, com Lina em ação
demonstrativa, o texto da Enciclopédia da Mulher. Encontrei-os intactos, intocados.
Ao comentar com os funcionários que cuidam da casa tal fato, a resposta veio célere:
“os empregados não sabiam como usar”. Se tal observação que não minimiza sua
proposta de uma cozinha distante da tradicional e próxima do consultório médico –
limpa, higiênica – certamente é reveladora de seus constrangimentos de gênero e
classe que, talvez malgrado seus esforços e intenções, terminam por se revelar no
texto, contrastando visivelmente com a noção de ambiente propalada por Charlotte
Perriand, o quarto da moça solteira que vivia em uma mansarda parisiense. No caso
da casa de Lina, tenha ou não sido pensada como anexo do MASP, a casa era um
museu. Um museu moderno para se viver ou o museu de uma proposta de vida
moderna.

Não nos esqueçamos que a mulher-leitora era também a mulher-consumidora


e nesse caso, ensinava-se também a consumir – mas vimos que o texto não é só isso.
Para quem Lina e Charlotte escreveram seus textos, para que mulher? Certamente não

                                                                                                                         
290 . Gênero e artefato, p. 256.
291 . Carlos Comas. “Lina 3x1” Arqtexto (UFRGS) vol. 2009, p. 150

  142  
a uma mulher genérica, qualquer mulher ou pior, mulher universal. Estaria Lina
propondo uma casa moderna brasileira em oposição ao palacete burguês para a
mulher, pois em momento algum seu texto se dirige ao homem, casada e com casa?
Por que o silêncio sobre os apartamentos que, em projetos de arquitetos em sua
maioria imigrantes, começavam a pontuar o espaço de São Paulo? Estaria se opondo,
ao propor potes de barro populares à europeização dos objetos da casa burguesa
paulistana ou apenas acompanhando as premissas das exposições do MASP? A
pergunta que subjaz a isso tudo remete às motivações mais amplas de tais escritos,
desse aconselhamento de mulher escolarizada e de classe média para outra mulher
com a mesma ancoragem social. Trataremos disso no próximo capítulo. Afinal, se
parte desta tese tem como fundo teórico a noção de campo, é preciso lembrar que este
é marcado por uma autonomia relativa. Assim, se parte da movimentação da
arquitetura moderna – estendida ao design e à engenharia – pode ser atribuída às
regras do campo, há parte que nos convida a olhar o que acontecia nos conflitos da
modernidade, para além dos CIAMs e das revistas especializadas e exposições, mas
em relação com isto tudo. E parte dos conflitos dessa modernidade e de seu
entendimento êmico dizia respeito na Europa do início do século e no Brasil mais
recentemente, ao lugar do serviço doméstico, este sim um lugar de mulher.

  143  
CAPÍTULO IV

CARMEN PORTINHO, A ENGENHEIRA FEMINISTA

O ano de 1926 deve ter sido intenso, um ano e tanto para a jovem Carmen
Velasco Portinho. Marie Curie, a cientista laureada com dois prêmios Nobel proferiu
uma série de palestras na Escola Politécnica do Rio de Janeiro, onde Carmen estudava
e já ligada ao sufragismo, foi assistir. No mesmo ano, ao se formar como a terceira
engenheira do Brasil292 em 1926 na Escola Politécnica do Rio de Janeiro, recebeu um
destaque do jornal A noite que notou a graça comunicativa da senhorita que leu os
juramentos dos recém formados. Engenharia e um olhar para questões feministas
pareciam compor o universo presente e futuro da jovem de 23 anos que logo em
seguida à sua formatura deu início à carreira de praticante técnica na Prefeitura do
Distrito Federal293, função na qual fiscalizava o patrimônio público, supervisionava a
derrubada de “velhos pardieiros que impediam a expansão urbana do Rio de Janeiro”,
chegando a dirigir seiscentos operários294.

O que não quer dizer que foi uma entrada fácil em um meio masculino. Em
seu depoimento/livro de memórias Carmen relatou que sua primeira tarefa foi
inspecionar o para-raios instalado no alto do edifício da prefeitura. “O velho
engenheiro queria a todo custo me ver em cima do telhado e eu não podia decepcioná-
lo de forma alguma”.A solução foi estudar o tema em livros técnicos, mas restava o
dilema de uma moça subir no telhado, o que foi resolvido com calças cáqui, o
uniforme que Carmen usava para seu esporte de final de semana, o alpinismo, de
modo que para quem já havia escalado a Pedra da Gávea foi possível subir no telhado:

                                                                                                                         
292 . Desde 1875 as mulheres tinham acesso aos escassos cursos superiores do Brasil, o que não significa
que os ocupassem. As primeiras engenheiras formadas foram Edwiges Becker e Maria Ester Correia
Ramalho.
293 . Carmen Portinho foi nomeada pelo prefeito Alaor Prata para a Diretoria de Obras e Viação. Um artigo

não assinado em O Globo considerou isso um passo para o triunfo do feminismo: “É mais uma vitória,
mais uma compensação, mais um prêmio à vontade forte de nossas gentis patrícias.” Ver Portinho,
Carmen. Por toda a minha vida. Depoimento a Geraldo Edson de Andrade. Rio de Janeiro, Editora da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1999, p. 33.
294 .Portinho, Carmen. Por toda a minha vida. Depoimento a Geraldo Edson de Andrade. Rio de Janeiro, Editora

da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1999, p. 35.

  144  
“a discriminação machista não vingou”.295 Esse episódio, simétrico à desqualificação
sofrida por Charlotte Perriand ao se apresentar a Le Corbusier chama a nossa atenção
para dois aspectos: a violência simbólica dos pequenos ritos de não investimento, de
desqualificação; e, lembrados posteriormente, o relato no registro anedótico, como se
aquilo pouco tivesse significado na ocasião.296

Após uma promoção para engenheira de segunda classe, construiu uma


carreira e uma reflexão a respeito de temas entrecruzados, da técnica construtiva ao
feminismo, do urbanismo aos detalhes do equipamento doméstico, participando de
projetos importantes como o conjunto residencial Prefeito Mendes de Morais –
conhecido como Pedregulho –, o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e a
Escola Superior de Desenho Industrial.

Carmen Velasco Portinho nasceu no mesmo ano que Charlotte Perriand, 1903,
em Corumbá, Mato Grosso, filha do gaúcho Francisco Sertório Portinho e da
boliviana, Maria Velasco Blanco. Matogrossense vivendo na Capital desde os 5 anos,
cresceu no Rio da belle époque da Primeira República, na cidade remodelada pelas
afrancesadas reformas urbanas conduzidas por Pereira Passos, de modo que a idéia de
se derrubar cortiços não deveria parecer inadequada. Mais do que a cidade renovada
pelo “bota abaixo”, era a capital do pais.

No Rio de Janeiro, seu pai foi superintendente da limpeza urbana e Carmen,


que falava espanhol em casa com sua mãe e com as empregadas bolivianas que a
criaram, estou no Sacre Coeur da capital federal tornando-se muito cedo fluente em
três idiomas297. Segundo suas memórias, um aluno com destaque nos exames
preparatório podia se matricular na Escola de Belas-artes e ela a freqüentou por dois
anos mesmo desejando ser engenheira, pois pensava nas possibilidades de obter um
bom emprego. Lá conheceu Lucio Costa e Candido Portinari, ou seja, se aproximou
de figuras centrais do que hoje denominamos “constelação Capanema”.

A urgência em obter uma colocação como engenheira se explica pelo


falecimento do pai e ela, primogênita de nove irmãos, teve de assumir o posto de
                                                                                                                         
295 . Por toda a minha vida, op cit., pp34-5.
296 . Outra semelhança inusitada: Charlotte, Carmen e Catherine Bauer, de quem falaremos no final deste
capítulo, praticavam o alpinismo.
297 . “A França tornou-se um pais-referência para mim, tanto que durante muitos anos jamais deixei de

visitá-la nas minhas feias. Considero o francês minha segunda língua.”Por toda minha vida, op.cit. p. 26.

  145  
provedora da família. O capitão Delso Mendes da Fonseca, com quem Carmen havia
convivido na Politécnica, foi secretário de obras da prefeitura entre 1931 e 1934. Com
essa proximidade, Carmen encontrou espaço para a criação de uma revista cujo copo
editorial era formado pelo redator Armando de Godoy, pelo diretor Everardo
Backhauses, pelo engenheiro Manoel Santos Dias e por ela como secretária. Assim,
em 1932, durante o mandato de Pedro Ernesto, a prefeitura do Distrito Federal
começou a editar o periódico de caráter técnico, a Revista da Diretoria de
Engenharia298. A revista funcionava como um espaço para textos técnicos de temas
ligados à construção, mas também como um lugar de debate a respeito dos rumos da
Capital Federal, e a presença da engenheira tornou-se um fator para que o periódico
assumisse também um papel de divulgação da arquitetura moderna que se realizava
na Europa e nos Estados Unidos. Já no primeiro número, Carmen apresentou um texto
absolutamente elogioso da arquitetura naqueles anos realizada na Holanda –
arquitetura moderna em um país tradicionalista – e celebrava o feito de que o clássico
tijolo nacional começava a ser abandonado, abrindo caminho para o uso do cimento
armado. No mesmo número, em artigo a respeito da influência do clima na construção
de prisões, a engenheira alterou o foco, trazendo os desafios construtivos para o
Brasil, país de clima tropical que precisava enfrentar questões de insolação e
ventilação: “não podemos esperar que nossos problemas sejam resolvidos no
estrangeiro”.299

Eram diversos os problemas a serem resolvidos no Brasil por um profissional


que ainda não existia formalmente: o urbanista. No número de 1934 da revista,
Carmen Portinho começou a esboçar sua preocupação com tal lacuna e a esboçar sua
futura formação. No artigo “O critério científico do urbanismo”, buscou delinear os
contornos de uma ciência nova, contestada por muitos quando ao estatuto científico,
assinalando a necessidade de um consórcio de diversos saberes:

o urbanista que desejar dedicar-se conscientemente ao estudo de seu projeto,


não poderá dispensar os conhecimentos gerais de sociologia e psicologia que
lhe são exigidos, nem a investigação minuciosa acerca da história e da
geografia da cidade cujo plano de organização e extensão lhe foi confiado, a

                                                                                                                         
298 . Ana Luiza Nobre, Carmen Portinho. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999, p. 34
299 . Revista da Diretoria de Engenharia, ano 1, nº 1, p.14.

  146  
não ser que deseje interromper criminosamente a continuidade que deverá
existir entre a vida passada e o desenvolvimento futuro da cidade em questão.

E mais adiante:

Os hábitos de vida da população, as tradições da cidade, são pontos que


precisam ser conhecidos por seu remodelador. (....) Um urbanista pode ter
fama universal e ser perito na sua profissão, entretanto, se por acaso for
chamado para urbanizar uma cidade latina, por exemplo, e se pertencer à raça
germânica ou anglo-saxônica, não haverá dúvida nenhuma que para a
execução do seu trabalho entrará o urbanista com um fator negativo, com uma
desvantagem que não teria o técnico natural da localidade.”

Só a partir dessa “escuta” à cidade, seu modo de vida, poderia o urbanista, esse
praticante de uma ciência nova, proceder ao seu plano, seu ante-projeto. A cidade
remodelada não deveria perder a “cor local”, um de seus maiores atrativos. Da
explicação do escopo da nova ciência ela passou à demanda por formação no Rio de
Janeiro, atrasado se comparado a São Paulo onde graças à competência de Luiz de
Anhaia Melo300 que lecionava a cadeira no curso de engenharia, o debate estava,
segundo ela, mais avançado.301 Seus textos evidenciam uma atualização bibliográfica,
com menções aos CIAMs, CIRPAC, GATEPAC, MARS302 e outras associações de
arquitetos e urbanistas menos conhecidas. Por outro lado, no mesmo texto, finaliza
citando um pensamento do papa das cidades-jardim, Raymond Unwin, para quem o
“Urbanismo é a ciência de estabelecer relações entre as coisas”.

No número 19 da revista, em 1935, Carmen passou a redatora-chefe e nesse


número publicou “Razões da nova arquitetura”, de Lúcio Costa texto escrito para o
programa do curso de arquitetura e urbanismo que então se criava no Instituto de
Artes da Universidade do Distrito Federal (UDF). O número seguinte trouxe o curioso
                                                                                                                         
300 . Luis Inácio de Anhaia Melo (1891-1974) foi engenheiro, professor universitário da Escola Politécnica,
um dos fundadores da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de São Paulo e prefeito de São Paulo por
dois cursos períodos entre 1930 e 1931.
301 . Revista da Diretoria de Engenharia, ano 3, nº 11, julho de 1934, p. 52.
302 . O CIRPAC era o comitê executivo dos CIAMS: Comité International pour la Résolution des Problèmes de

l’Architecture Contemporaine; o GATEPAC (Grupo de Artistas y Técnicos Españoles Para la Arquitectura


Contemporánea), fundado em 1930, era seu seu braço na Espanha, com forte atuação de Josep Lluis Sert; o
MARS GROUP (Modern Architectural Research Group) foi criado em 1933 e era a representação dos CIAMs na
Inglaterra.

  147  
artigo de Le Corbusier em francês, “Le prefét Passos”, no qual o arquiteto franco-
suíço demandava um novo Pereira Passos, para que o Rio de Janeiro voltasse a
brilhar. Em suma, o pleito era de urbanismo, intervenções, reformas urbanas, e como
redatora ela se tornava uma porta-voz de tais tendências hoje vista como no mínimo
controversas, mas talvez não nesse período e pelo referido grupo.

Nesse momento a confusão terminológica a respeito do urbanismo era


perceptível, como mostra o texto de Carmen. Ela afirmou que Agache dizia-se o autor
do termo, cunhado quando da formação da Sociedade Francesa de Urbanismo em
1912303. Nos mesmos anos 1930, Gilberto Freyre, em seu curso de sociologia na
Universidade do Distrito Federal (UDF) tinha como um dos seus temas o urbanismo
(e não a sociologia urbana) e com isso queria discutir as mudanças espaciais ocorridas
em Recife, muitas inclusive por ele criticadas304. Um conhecido texto da escola de
Chicago é “Urbanismo como modo de vida”, de Louis Wirth – ou seja, o próprio
termo e seus usos, mesmo os eruditos, não eram lugar de consenso.

Se a engenheira Carmen buscava uma possibilidade para colocar em prática a


arquitetura e urbanismo modernos que preconizava, a chance chegou quando ela
realizou sua especialização em Urbanismo na Universidade do Distrito Federal.
Criada por Anísio Teixeira, a UDF foi uma instituição do ensino superior que teve
vida breve, funcionando entre 1935 e 1939. Nesta jovem universidade foi criado um
instituto de artes305, concorrente e uma alternativa à ENBA. Foi ali que houve a
terceira experiência de institucionalização de um curso superior de Ciências Sociais;

                                                                                                                         
303 . Françoise Choay atribui a cunhagem do termo à mesma sociedade, sem no entanto mencionar
nominalmente Agache e dando como data 1911.
304 Meucci, Simone, Gilberto Freyre e Sociologia no Brasil: da sistematização à construção do campo científico. Tese de

doutorado em Sociologia, IFCH/UNICAMP, 2006, p. 72


305 . Foram professores do Instituto de Artes quando de sua fundação: Lúcio Costa e Carlos de Azevedo

Leão, de arquitetura; Nestor de Figueiredo, de urbanismo; Cândido Portinari, de pintura mural e cavalete;
Celso Antonio de Menezes, de escultura monumental e de salão; Georgina de Albuquerque, de artes
decorativas; F. Valentim do Nascimento, Gilberto Trompowsky e Sylvia Meyer, de artes plásticas e
industriais; Heitor Villa-Lobos e Lorenzo Fernandes, de música e canto orfeônico; J. C. Andrade Muricy,
Arnaldo Estrella e Albuquerque Costa, de história e música, harmonia prática instrumental, teoria musical e
prática orfeônica. Pouco depois vieram Edmundo da Luz Pinto, Prudente de Morais neto, Cornélio Penna,
Josué de Castro, Heloísa Alberto Torres, Afonso Pena Jr. Roberto Accioly, Tavares Barros, José Maria
Bello, Arthur Ramos, Nelson Romero, João Capistrano Raja Gabaglia, João Baptista Mello e Souza, Sérgio
Buarque de Holanda, Cecília Meirelles, Luís de Barros Freire, Mario Casassanta, Mário de Andrade,
Joaquim Costa Ribeiro e Othon Leonardos. As informações estão na página
http://www.bvanisioteixeira.ufba.br/artigos/federal.html, última consulta em 8 de fevereiro de 2017.

  148  
ali, Lucio Costa lecionou em 1935; ali, Gilberto Freyre teve sua única passagem, com
alguma estabilidade, pelo ensino superior brasileiro.306 Em 1935 foi criado o curso de
Urbanismo em 1936, uma pós-graduação que funcionou por três anos no Instituto de
Artes, e que tinha como professores, entre outros, Mário de Andrade e Candido
Portinari e Heitor Vila-Lobos.307 Ali, em uma turma de apenas oito alunos (Paulo
Camargo de Almeida308 e João Lourenço309 da Silva, arquitetos, e outros não
localizados), no curso que funcionava da rua do Catete, Carmen se tornou a primeira
pós-graduada em urbanismo no Brasil. Em que pese já haver praticantes, como
Anhaia Mello e a despeito de desde 1933 Atílio Correia Lima ensinar urbanismo no
curso de arquitetura da ENBA, foi a primeira diplomada como tal.

UMA CIDADE PARA A VIDA MODERNA

“O avião está explicando o Brasil Seu desenvolvimento cimentará e


humanizará a unidade desta vasta terra.

O brasileiro está compreendendo seu destino”

                                                                                                                         
306. Meucci, Simone, op. Cit, p. 13.
307 . Tal constelação poderia sugerir uma extensão das atividades do Ministério da Educação e Saúde
Pública na gestão de Gustavo Capanema. Contudo, foi este o ministro a destruir o projeto de uma
universidade municipal. Liderada pelo então diretor do Departamento de Educação do Distrito Federal
Anísio Teixeira, a Universidade do Distrito Federal foi fundada em junho de 1935 com a presença de
Capanema e do prefeito Pedro Ernesto. A vocação liberal da nova universidade desafiava uma parte do
projeto educacional do ministério, a saber a parcela liderada por Alceu Amoroso Lima que via ali uma
pregação comunista. Com a saída, ainda em 1935 de Anísio Teixeira do cargo (substituído por Francisco
Campos), as atividades não foram interrompidas. Mas no ano seguinte Capanema começou uma campanha
argumentando que cabia à União dar o padrão do ensino superior no país. Com a instituição do Estado
Novo, Capanema pôde propor a extinção da UDF e a incorporação de seus cursos pela Universidade do
Brasil, o que não incluiu o curso de Urbanismo. Sobre a querela entre a UDF e o ministério, ver.
Schartzamann, S., Bomeny, H. e Costa, V. Tempos de Capanema, Editora da Universidade de São Paulo e
Editora Paz e Terra, 1984, pp. 210-4.

308 . Paulo Camargo de Almeida (Rio de Janeiro, 1906-1973) era engenheiro-arquiteto pela ENBA, onde foi
contemporâneo de Affonso Eduardo Reidy e ao se formar ganhou a grande Medalha de Ouro e o Prémio
de Viagem ao Estrangeiro, com o que foi estagiar em Paris. Sua tese em urbanismo na UDF foi a respeito
da remodelação da área central do Rio de Janeiro, após o desmonte do morro de Santo Antonio, trabalho
apresentado em 1938. Como Carmen, publicou seu trabalho em duas partes na Revista Municipal de
Engenharia. A seu respeito, ver Cerávolo, Ana Lúcia. Paulo de Camargo Almeida. Arquitetura total na
trajetória de um arquiteto brasileiro. Dissertação de mestrado, EESC/USP, 2000.
309 . João Lourenço da Silva era ligado a arquitetos modernos como Gregori Warchavchik (em sua

temporada carioca) e Alcides da Rocha Miranda. Com este último coordenou um I Salão de Arquitetura
Tropical.

  149  
Marcelo e Milton Roberto, “O edifício central do aeroporto Santos
Dumont”. PDF nº 4, julho de 1938.

Quando se formou como a primeira urbanista do Brasil, Carmen já era


conhecida por sua atuação feminista. Muito próxima da cientista Bertha Lutz, com
cujo irmão Gualter Aphonso veio a se casar310, Carmen participou da diretoria da
Federação Brasileira pelo progresso feminino que, dentre outros feitos promoveu um I
Salão Feminino de Belas-artes em 1931. Carmen e Berta sobrevoavam o Rio de
Janeiro lançando panfletos que reivindicavam o voto feminino311. Como feminista
conhecida, representou o Brasil em congressos internacionais no Uruguai e na França.

Fontes e bibliografia são pouco claras a respeito de como se deu o encontro de


Carmen com a família Lutz. Gualther era catedrático de medicina legal e,
especialmente, filho de Adoplpho Lutz. Carmen se referiu à bettha por seu discurso
veemente e a Adolpho Luz como o cientista suíço que juntamente com Emílio Ribas
foi um dos responsáveis pelo extermínio da febre amarela. Nenhuma palavra sobre o
marido, mas há documentação, cartas, artigos de imprensa se dirigindo à engenheira
como Carmen Portinho Lutz. De qualquer modo, talvez essa inserção familiar nos
ajude a entender a circulação tranqüila de Carmen por meios intelectuais e políticos,
assim como a facilidade com que ela dizia remover pardieiros infectos.

Em 1930, antes mesmo de conhecer a cidade, colaborou com o urbanista


greco-italiano Giacomo Palumbo para um plano de remodelação de Natal312, elogiado
por Anhaia Melo. Carmen escreveu ao conhecido urbanista que havia sido prefeito de
São Paulo, pedindo um tema de investigação. Na primeira parte de sua reposta,
                                                                                                                         
310 . Conhecida por sua ligação longeva com o arquiteto Affonso Eduardo Reidy, esse primeiro casamento
de Carmen é um tabu e uma lacuna. No arquivo de Carmen Portinho na Universidade Federal do Rio de
Janeiro há uma carta do gabinete do prefeito da Capital Federal dirigida à engenheira Carmen Portinho
Lutz. As poucas fontes indicam que o casamento durou poucos anos. Curiosamente, Carmen fez parte do
movimento que tirou da mulher a obrigatoriedade do uso do nome do marido, que ela disse nunca ter
adotado como forma de resist6encia e demonstração de independência. “Muitas companheiras
intelectualmente brilhantes agregam o sobrenome do marido ao seu, e quando se tornam conhecidas,
ninguém sabe se é por cmpetência própria ou por causa do consorte”. Por toda minha vida, p. 59.
311 . O jornal, Rio de Janeiro, 13 de maio de 1928.
312 . Concebido em 1929, o Plano de Sistematização de Natal, mais conhecido como Plano Palumbo, foi

elaborado pelo arquiteto grego de origem italiana, egresso da Escola de Belas-artes de Paris. Foi um plano
de embelezamento e expansão para uma cidade que deveria chegar a 100 mil habitantes e Carmen Portinho
colaborou como engenheira. No IV Congesso Panamericano de Arquitetura realizado no Rio de Janeiro
em 1930, ela apsentou as linhas mestras do plano. Ver file:///Users/silvana/Downloads/618-1229-1-
SM.pdf, última consulta em 5 de fevereiro de 2017.

  150  
Anhaia elogiou um artigo de Carmen, e completou: “Não há sciencia que melhor que
o Urbanismo se adapte a um espírito feminino, faz mais trabalhar o coração que a
intelligencia, é sciencia mais sentida que pensada, não acha? Embora o cérebro
feminino nada fique a dever ao masculino, o coração é muito mais rico”. Admitindo
assim uma mulher que pleiteia um lugar em um campo em construção no Brasil, ele
sugeriu que se dedicasse ao conceito e aplicação do zoning: “a cada dia mais me
convenço de que o Zoning é a base do urbanismo. É um problema tão interessante
como técnica, como legislação, como economia. E nós quase que o desconhecemos e
porisso estamos estragando nossas cidades. Não acha que seria um belo assumpto de
these? O Prof. Agache incluirá o ‘zoning’ no seu projeto?”313 (Fig

O elogio às avessas de Anhaia encobria a postura algo misógina típica de um


homem de sua geração e posição social. Não difere muito das falas de Oskar
Schlemer e Le Corbusier, citadas anteriormente nesta tese. Tal noção de mulher
emotiva, mas do que racional, esteve presente também na fala do deputado Aarão
Rebelo quando da discussão do voto feminino em 1934: “(...) o voto extensivo à
mulher é o primeiro passo para o feminismo. A mulher, quando vence, vence pelo
coração, sua bússola, nunca pelo cérebro. A mulher vive a vida do sentimento, por
isso sabe chorar, sabe comover-se (...)”.314

Quando participou do IV Congresso Panamericano de Arquitetura, Carmen


chamou a atenção da imprensa por representar o Rio Grande no Norte, com o projeto
em questão, a convite do governador. Em matéria do Jornal do Brasil, foi chamada de
Embaixatriz do Rio Grande do Norte e ela mesma em entrevista declarou em primeiro
lugar, seu interesse no congresso, que mesmo sendo engenheira era uma estudiosa
“com carinho e prazer” da arquitetura e que o Rio Grande do Norte era o único estado
a acolher a contribuição de uma mulher315. O ativismo feminista de Carmen antecedeu
sua atuação como engenheira e nela se embrenhou, como veremos. Em 1922 foi
criada no Rio de Janeiro a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF), da
qual Carmen, com menos e 20 anos, já participou. Em teve lugar no Rio de Janeiro o
II Congresso Internacional Feminista, ao final do qual foi enviado ao presidente
                                                                                                                         
313 . Carta de Luis de Anhaia Mello a Carmen Portinho, 06 de julho de 1929. Arquivo Carmen Portinho,
Universidade Federal do Rio de Janeiro. A dúvida de Anhaia era a respeito do plano que Agache elaborou
com sua equipe, entre 1926 e 1930 a convite da Prefeitura do Distrito Federal.
314 . Atas da Assembléia Nacional Constituinte, 4 de abril de 1934, apud Ana Luiza Nobre, op. cit., p. 15.
315 . Jornal do Brasil, 10 de junho de 1930.

  151  
Getúlio Vargas uma carta com as declarações conclusivas do encontro, assinada por
Bertha Lutz e Carmen Portinho, respectivamente presidente e vice-presidente da
FBPF:

1. A mulher não é em nada, inferior ao homem. À igualdade de deveres


entre os dois sexos deve corresponder uma verdadeira igualdade de
direitos.
2. As democracias se orientam e vivem pelos sentimentos e pelas ideias
e, se ninguém pode negar essa atividade subjetiva à mulher, não há
como privá-la da atividade objetiva.
3. A mulher tem o direito e o dever de exercer atividade política como
degrau, amparo ou instrumento para a atividade social que já vem
exercendo, e que deve alargar-se pelas maiores e mais belas
realizações humanas.316

A carta ao presidente pareceu uma resposta ao deputado Rabelo e de certo


modo a Anhaia. Mas se o conhecido urbanista recomendou o uso do zoning, Carmen
terminou elegendo uma capital, uma cidade ex-ninhilo no Planalto Central – o que
não deixava de contemplar algum princípio de zoneamento, mas em outra perpectiva;
não mais aplicar o zoneamento a uma cidade existente, mas a uma nova. Se a idéia de
uma cidade para três milhões de habitantes, proposta por Le Corbusier em 1921 era de
um plano moderno a ser instalado em qualquer lugar, proposta melhor desenvolvida
por ele em La ville radieuse, de 1935, Carmen foi a primeira a experimentar e
exercitar essa novidade no Brasil, enfrentando com pioneirismo o problema de uma
nova cidade, uma capital projetada a partir do zero. Se os propósitos de urbanismo no
país até o momento estavam restritos aos chamados planos de melhoramentos, como o
que Agache fez para o Rio de Janeiro, uma variação do urbanismo de regularização, a
cidade de Carmen, era uma nova postura: pensada como um grande parque onde seria
possível morar é certamente a mais vinculada aos CIAMs de todas as propostas para

                                                                                                                         
316 . Citado por Ana Luiza Nobre, op. cit., p. 19.

  152  
Brasília, se a alinhamos com aquelas que quase vinte anos depois se submeteriam ao
concurso para a nova capital.

É conhecida a passagem de Le Corbusier pelo Brasil em 1929, a primeira de


suas três viagens ao país. Se Lucio Costa, naquele momento ainda vinculado ao
movimento neocolonial não prestou muita atenção às palestras proferidas na Escola
Nacional de Música, Carmen Portinho ali esteve, assistindo a todas e os artigos que
publicou na revista PDF, como era conhecida a revista de engenharia, pela abreviação
de Prefietura do Distrito Federal) vão gradativamente atestando sua filiação a esta
vertente do modernismo arquitetônico. Em sua proposta para a capital suas
referências estão explícitas, oferecendo ao leitor uma cidade corbuseana para os
novos tempos.

A pesquisa bibliográfica realizada por Carmen sobre o local a receber o


projeto durou um ano, e teve como base os estudos de 1892, o conhecido Relatório
Cruls concebido por uma equipe coordenada pelo diretor do Observatório Nacional,
Luís Cruls, que demarcou 14.400 km2 para a escolha do ponto exato para a futura
capital. A postulante a urbanista justificou a escolha do local pelo artigo
constitucional317 e pelo referido relatório, elegendo no Planalto Central, sua parte
mais central em relação ao centro do território brasileiro: a região compreendida entre
os rios Gama e Torto, enfatizando como qualidades a existência de duas estações – a
seca e a chuva – e a facilidade de se criar parques e jardins com a flora local, pois o
desejo era construir:

(...) a mais pitoresca e aprazível cidade do mundo construída, como previmos,


no meio da calma serena e majestosa do vale do Rio Torto, entre exuberante e
rica vegetação, banhada por rios de águas puras e tendo como vista
panorâmica colinas que a circundam num raio de 30 km.

E, mais adiante, uma leitura da ocupação territorial brasileira, suas


possibilidades e dificuldades:
                                                                                                                         
317. Em seu trabalho há uma transcrição do trecho em questão, o artigo 4º das ”Disposições transitórias”:
“Será transferida a Capital da União para um ponto central do Brasil”, com ênfase do próprio texto de
Portinho.

  153  
Essa imensa região não poderá ficar eternamente abandonada. Localizada aí a
Capital Federal, para ela convergiriam certamente as nossas mais importantes
rodovias, caminhos aéreos e estradas de ferro, ligando-a ao litoral e ás capitais
dos Estados e assegurando, dessa forma, o desenvolvimento e o progresso da
Nação. Contra a idéia da mudança da Capital da República para o Planalto
central, nem o fator distância se poderá alegar, pois que, segundo L. Cruls,
presidente da comissão, a “vol d’oiseau” entre a cidade o Rio de Janeiro e a
zona demarcada é de cerca de 970 kms.

Percurso que segundo Portinho, poderia ser percorrido em vinte horas num
trem lento, de velocidade média de 60 km/hora.

Carmen decida a segunda parte do seu estudo – ou seja, o projeto


propriamente dito – a explicar o que seria uma capital de um país novo de grandes
possibilidades, cujas cidades existentes não correspondiam às quatro funções do
urbanismo – habitação, circulação, trabalho e recreação – “na época do motor”. Nesse
memorial, Carmen assumiu uma orientação declaradamente corbuseana, ou seja, uma
cidade do tipo Ville Radieuse, projetada sobre um imenso parque e na qual a
habitação seja o elemento primordial. Uma cidade para ser vista de cima, cuja prova
dos nove não estava no uso e no andar, mas o olho do pássaro mecânico:

Na execução do projeto da futura Capital do Brasil procuramos obedecer aos


princípios fundamentais do Urbanismo moderno. Se erramos, o avião estará aí
para assinalar nossos erros. Ele nos mostrará a cidade com os seus defeitos;
antes dele podíamos sentir apenas, mas não vê-los”.318

Não seria, assim, endereçada ao pedestre, que com seus passos contrasta a
experiência corporal com o vôo do pássaro, como quis Michel de Certeau ao lembrar
que os praticantes comuns da cidade moram “lá embaixo” e caminham, com seus
corpos acompanhando um texto que não podem ler, praticando espaços que não

                                                                                                                         
318 . Revista Municipal de Engenharia, maio de 1939, p. 287.

  154  
podem ser vistos.319 Localizada às margens do rio Torto, onde seria possível erigir
esta cidade arborizada, bela e pitoresca, seu projeto previa uma população de 2
milhões de habitantes, funções separadas no espaço, auto-estradas, um trem que
ligasse a nova Capital à antiga e um Brasil que investisse fortemente no transporte
aéreo. Como na “Cidade de três milhões de habitantes” que Le Corbusier apresentou
em Paris em 1922, o centro da cidade, uma grande esplanada, seria destinado ao
pouso de pequenos aviões, enquanto o aeroporto ficaria um pouco afastado do centro.

Um centro de negócios (Fig. 43) teria arranha-céus climatizados, blocos de


150 metros de altura – ou seja, quarenta andares – e em cada bloco mais de 18 mil
pessoas poderiam trabalhar, medida a favor da densidade proposta de 1000 hab/Ha e
contrária às grandes distâncias. Os edifícios ficariam a 400m uns dos outros. Um
centro cívico previa que, além de Câmara, Senado, ministérios etc., todos em meio a
jardins, cafés e confeitarias, seria construído um Palácio do Povo, destinado a
manifestações, e um Museu do Conhecimento do Brasil. Uma cidade verde, na qual o
esporte ficaria ao pé das casas, como os “prolongamentos da habitação” previstos pela
Carta de Atenas. “O tipo escolhido para a cidade – o de “Ville Radieuse” – indica que
ela foi projetada segundo um imenso parque, onde a habitação representa o elemento
primordial; (...)”. E o mesmo ponto de partida que gerou tantas críticas a Brasília: “A
‘rua’, na acepção comum da palavra (caminho ladeado de casas) foi suprimida”.

A descrição minuciosa do projeto para a nova Capital, com seus esquemas


para a circulação de automóveis e sua comparação com os problemas enfrentados
pelos novaiorquinos nesse quesito não será feita nesta tese, pois é preciso examinar a
proposta de modernização prevista para a habitação, segundo sua autora, o elemento
primordial do projeto de cidade. Notemos que nesse item ela adentra a discussão da
domesticidade, ausente nos escritos de Le Corbusier, mas não do panorama da
arquitetura moderna e sua ênfase, nos primeiros anos, em temas ligados à habitação,
especialmente na segunda reunião dos CIAM.

Na residência encontramos a visão de vida moderna proposta por Carmen


Portinho, a função da habitação que nunca é restrita apenas às funções práticas da
vida doméstica. Citando o projeto:
                                                                                                                         
319. Certeau, Michel de, “Andando na cidade”. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Rio de
Janeiro: IPHAN/Ministério da Cultura, 1995, p. 23.

  155  
Acima dos ‘pilotis’ um andar foi exclusivamente reservado para os serviços
comuns. A organização desses serviços será o único meio de evitar fadigas
improdutivas e perdas de tempo infrutíferas à dona de casa. Nesse pavimento,
ficará localizada uma grande usina de serviços domésticos. Organizações
corporativas assumirão a responsabilidade desses serviços. Os gêneros
alimentícios, carnes, legumes, frutas, etc, vindos diretamente dos mercados
(entrepostos), situados na zona industrial, serão recolhidos aos frigoríficos,
construídos nos pavimentos destinados aos serviços comuns. Cozinhas bem
instaladas e equipadas fornecerão refeições a qualquer hora. A limpeza dos
apartamentos será também feita por profissionais; a lavagem da roupa, idem, e
assim todos os demais serviços necessários ao lar. Uma empregada para tomar
conta das crianças e fazer outros serviços pequenos, será o suficiente para cada
habitação. O problema das empregadas domésticas, de tão difícil solução,
poderá ser resolvido dessa forma.320

Onde moraria essa “uma empregada”? Isso não está claro no texto do projeto,
tampouco há desenhos. A cidade da engenheira feminista não previa uma periferia,
não indicava uma supressão de diferenças sócias, tampouco indicava bairros “nobres”
e para as classes baixas. O tema da empregada doméstica, contudo, foi parte da
discussão do encontro do CIAM de 1929, o mesmo que apresentou aos arquitetos a
cozinha de Frankfurt da arquiteta austríaca Grete Schütte-Lihotzky, e foi de Walter
Gropius a fala que abordou o problema dos empregados:

A constatação da inferioridade do trabalho doméstico individual deu origem à


de grandes empresas concepção para serviços domésticos que desincumbem
cada mulher de uma parta de suas obrigações domésticas. Isso se dá graças a
uma organização central que funciona melhor e de modo mais econômico do
que poderia fazer uma dona de casa, mesmo dedicando a isso todos os seus
recursos. O desafio sempre imenso é encontrar empregados domésticos
favoráveis a tal concepção.321

                                                                                                                         
320 . Revista Municipal de Engenharia, maio de 1939, p. 292.
321 . No original, ““La constatation de l’infériorité du travail ménager individual a fait naître la conception
de vastes enterprises ménagères que déchargeant chaque femme d’une partie de ses obligations ménageres.
Ceci se fait grace à une organization centrale qui travaille mieux et plus économiquement que ne pourrait le
faire une ménagère, meme si elle consacrait tous ses moyens. La difficulté est toujours gradissante de
trouver des domestiques favorise celle conception.”Die Wohnung für Existenzeminimum, II Internationalen
Kongresses für Neues Bauen in Frankfurt am Main 1930, Verlag, englet & Schlosser, Frankfurt AM Main
Cópia em francês feita pela revista Techné. Arquivo dos CIAMs, ETH Zurique.

  156  
A preocupação com o problema dos empregados era uma constante na Europa
e nos Estados Unidos nas primeiras décadas do século XX (O assunto retornará no
capítulo V). Mas a preocupação com o chamado problema dos empregados pode
também ser analisada na perspectiva de uma profissional que foi criada por
empregadas bolivianas, o que talvez criasse uma sintonia com o debate que acontecia
no hemisfério norte, inclusive nos CIAMs e especialmente em todas as práticas e
propostas de economia domestica, com seu feminismo e to tema reaparece em
projetos posteriores.

Na capital projetada por Carmen Portinho, sobre os edifícios com seus tetos
horizontais seriam projetadas praias de areia para banhos de sol e esportes, tornando a
cobertura o pavimento mais atraente. Um Centro Cívico próximo ao Centro de
Negócios, mas dele separado por uma zona verde deveria incluir um Museu do
Conhecimento do Brasil, uma “expressão sintética da vida brasileira”, um precioso
instrumento de propaganda do país.

Se Le Corbusier ao apresentar sua cidade para três milhões de habitantes


(lembremos que as cidades-jardim, agrovilas soviéticas e outros planos do início do
século XX apreciavam uma cifra entre 30 e 60 mil habitantes) declarou que seu
principal objetivo era lançar um manifesto, estamos, com o anteprojeto de Carmen
Portinho, diante de outro pleito: pela necessidade de um urbanismo, por cidades
maiores e bem planejadas, por uma adesão aos princípios dos CIAMs e, claro, pela
sua admissão nesse debate. A bibliografia ao final da proposta incluía, o que não
surpreende, praticamente tudo que Le Corbusier publicou até então, um relatório do 5º
CIAM de autoria de Josep Lluis Sert322, um texto de Prestes Maia, o plano de
embelezamento do Rio de Janeiro de Agache, e uma referência ao engenheiro
sanitarista Saturnino de Brito, dentre outros.

Não há qualquer indício de que houvesse a intenção de se construir essa


cidade-capital, embora ela tivesse sido pensada, vinculada a toda a preparação que
ocorria desde a Primeira República, para o mesmo local onde em 1960 Brasília foi
enfim e tardiamente inaugurada. De qualquer modo, a engenheira que em seus textos
e nos que editava clamava por um urbanismo com critérios científicos, que apresentou
                                                                                                                         
322. Sert foi o autor de Can our cities survive?, a versão em inglês por ele organizada do documento coletivo
do IV CIAM, que teve como redação mais conhecida a Carta de Atenas, redigida por Le Corbusier.

  157  
ao Brasil um planos de cidade nova de feição modernista-coebuseana, tornou-se com
esta, uma urbanista, urbanista com essa filiação. Quando essa vertente se vincula à
sua dicção feminista, não sem uma pitada de arts ménagèrs, é como se uma equação
bizarra se fechasse nos projetos que ela realizou posteriormente com outros arquitetos
como Francisco Bolonha e, principalmente, com seu companheiro Affono Eduardo
Reidy.

Em 1956, quando foi lançado o edital para o concurso de Brasília, Carmen


estava ocupada com a construção do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, mas
isso não cala a pergunta dos motivos de Carmen, com um estudo e plano já prontos,
não ter participado. Nesse momento Reidy havia se tornado um antagonista de Oscar
Niemeyer, o que também explica porque críticos, para antagonizar o formalismo deste
último tenham recorrido ao primeiro como exemplo de arquitetura plástica e social a
um só tempo. Em 1954 Reidy chegou a participar ao lado de Burle Marx de um grupo
de trabalho com o objetivo de demarcar a área no Planalto Central, Goiás, onde
Brasília seria edificada. Segundo Yves Bruand, Reidy e Burle Marx teriam sugerido
um convite a Le Corbusier para que concebesse o plano, reeditando de certo modo o
episódio do projeto do Ministério da Educação e Saúde, mas os tempos eram
outros.323 Certamente uma parte dessa inexplicável recusa remete a uma presença
desde logo anunciada: a escolha, por parte de Juscelino Kubitschek, de Oscar
Niemeyer para desenvolver rapidamente uma proposta causou descontentamento a
muitos arquitetos. Reidy tomou a dianteira criticando publicamente o edital, desde o
exíguo prazo de quatro meses até a carência de um plano político administrativo que
deveria fornecer bases para os concorrentes e o júri. Entrevistada em 1997, Carmen
Portinho declarou: “ele [Reidy] nunca me disse nada, mas nós de casa não
precisávamos dizer as coisas, a gente sabia: ele não queria participar. [...] Ele não
queria saber de uma coisa que sabia como ia acabar.”324

De qualquer modo, Brasília foi projetada, construída e lá está. Impossível, ao


olhar o resultado da parceria Costa-Niemeyer, não lembrar que Carmen já havia

                                                                                                                         
323. Bruand, Yves. Arquitetura contemporânea no Brasil. São Paulo: Editora Perspectiva, 1981, p. 354.
324. Bonduki, Nabil, Affonso Eduardo Reidy. São Paulo e Lisboa: Instituto Lina Bo e P.M. Bardi e editorial
Balu, 2000, p 24.

  158  
pensado na capital no meio do Brasil como um “imenso parque verde”. A Brasília que
conhecemos não deixa de sê-lo325.

PEDREGULHO E O DHP

Em 1944, Carmen se candidatou a uma bolsa de estudos do Conselho


Britânico. Presente no Reino unido no Dia da Vitória, passou ali uma temporada
dedicada ao estudo da habitação social, tema caro aos ingleses nesse período de
reconstrução, na dupla acepção do termo. Das reflexões dessa virada do pós-guerra,
assim como da experiência acumulada no estudo que poderia indicar uma possível
Brasília, sua parceria com seu companheiro, o arquiteto Affonso Eduardo Reidy
resultou em um conjunto habitacional, Pedregulho. Na segunda metade da década de
1950, Reidy usufruía de um notável prestígio que esse conjunto lhe conferiu e sua
parceria com Carmen estava mais estreita do que nunca. É dessa pioneira do
feminismo no Brasil a interferência que fez com que o conjunto tivesse uma
lavanderia coletiva, para poupar o trabalho feminino em dupla jornada. Pedregulho
tinha uma dimensão urbanística, com usa escola, lavanderia, área de esporte, piscina,
por sua densidade populacional.

Sua visita ao Reino Unido se deu graças a uma bolsa do British Council
recebida em 1945 para estudar as new towns e ela visitou não apenas Londres como
Cardiff, Liverpool e Bath. Convite, partida, permanência e regresso foram
amplamente noticiados pela imprensa carioca. Ao voltar, disse a que vinha, relatando
sua experiência em um longo artigo, “Habitat popular”, publicado com destaque no
Correio da Manhã. De certo modo, esse artigo lançava uma base para projetos futuros
nos quais se destaca o conjunto habitacional conhecido como Pedregulho. Carmen
criticou a cidade-jardim inglesa, que viu se transformar numa cidade-dormitório: “De
que serve então a casinha em ‘centro de jardim’ se o homem não pode tratar desse
jardim de tão cansado que se acha ao fim do dia?”, perguntava retoricamente ao leitor

                                                                                                                         
325. Sobre o concurso de Brasília de 1956 os planos apresentados, todos de algum modo dialogando com
os debates dos CIAMs ainda que com variações que iam de torres de 400m até uma versão atualizada da
cidade-jardim, ver Braga, Aline M.C. (Im)Possíveis Brasílias. São Paulo, Alameda, 2011.

  159  
para apresentar sua solução: “Falamos em ‘conjuntos residenciais’ localizados em
áreas próximas dos locais de trabalho. Esses conjuntos deverão compreender , não só
os blocos de habitação como também os edifícios para comércio local e ainda, outras
edificações de creches, escolas maternais e primárias, clínicas, bibliotecas, clubes
etc.”326 Essa tarefa, segundo a autora, seria competência da prefeitura.

Em abril de 1946 a prefeitura criou o Departamento de Habitação Popular por


um decreto, tendo como primeiro diretor o engenheiro Antônio Arlindo Laviolla, que
ficou no cargo dois anos. Carmen o sucedeu como diretora. Laviolla era contrário à
construção de Pedregulho, como afirmou anos depois, já fora do cargo:

Resolveram fazer o Conjunto Residencial Pedregulho, que é um dos mais


caros do Distrito Federal. No início, fui muito contra o Conjunto Residencial
Pedregulho. Naquela ocasião foi feito muito esforço para que fosse construído
o núcleo contra minha vontade. Tinha lajes duplas para que não aparecessem
as vigas, paredes finas para não aparecerem ressaltos e montantes nas salas.
Em todo caso, naquela ocasião, não queriam que se fizesse a estrutura
aparecer e o operário tenha que morar em casas de paredes e tetos lisos. O
Conjunto começou-se a fazer e ainda não está terminado. Em todo caso, foi
uma realização. Eu fui contra.327

Mas Carmen, favorável, mobilizou seus recursos, especialmente seu bom


contato com a imprensa. Cada movimento seu, como na viagem à Inglaterra, era
noticiado. Seu irmão José Velasco Portinho, que já havia trabalhado com Assis
Chateaubriand em O Jornal era seu diretor superintendente do jornal O Correio da
Manhã. O espaço às ações de Carmen estava assim garantido e ela bem o usava para
bem defender suas concepções, como explica o depoimento de Francisco Bolonha a
Nabil Bonduki:

O Correio da Manhã sustentava politicamente a Carmen. Mudava o prefeito e


ela continuava na prefeitura, como diretora do Departamento de Habitação;
não ligava, não dava bola para o Secretário de Obras (seu chefe imediato),
                                                                                                                         
326 . Correio da Manhã, 10 de março de 1946. Carmen era presença constante na imprensa, de notícias e atas
ligadas à engenharia até as colunas sociais. O Correio da Manhã, contudo era o periódico que mais lhe
conferia sustentação política.
327 . Anais do Conselho Técnico da Fundação Casa Popular, 55a. Sessão, 1953, citado por Brito do Nascimento,

op. cit. p. 110.

  160  
nem despachava com ele. Fazia por conta própria porque tinha o apoio do
Correio.328

Para ela a habitação deveria ser um “serviço de utilidade pública, com a


principal função de reeducação completa do operário brasileiro que (...) deveria ser
incluída entre os serviços obrigatórios que o governo deve oferecer, como água, luz,
gás, esgoto etc.”329 Mesmo sendo política pública, ou talvez por isso mesmo,
habitação incluía uma perspectiva de domesticidade, voltada especialmente para sua
principal usuária, prioridade nessa perspectiva quase de redenção das classes
populares: “Habitações que fizeram da mulher uma escrava domestica, sempre
preocupada com sua limpeza e conservação, e onde o luxo, num desperdício chocante,
substitui frequentemente o conforto”.330

Em 1948 Carmen, até então chefe de seção do DHP, posto no qual licenciava
e fiscalizava habitações populares, foi nomeada diretora. O fato foi comemorado
pelos movimentos feministas, que realizaram festas331, o que mostra de um lado a
centralidade de Carmen nesse meio e de outro a conquista que representava uma
mulher em posição de chefia. Mas o DHP não era uma criação totalmente nova por
parte da prefeitura da capital e remete a iniciativas anteriores como a Divisão de
Construções Proletárias, órgão da Secretaria Geral de Viação e Obras Públicas,
transformada em Sérico em 1940, em Departamento em 1942 e então, no período que
nos interessa de perto, no DHP. Foi mais do que uma mera alteração de nomenclatura,
pois ao DHP caberia dar conta da habitação para os funcionários mais baixos da
própria prefeitura, que habitavam em condições indesejáveis. A primeira obra do
novo departamento foi esse grande e exemplar grande conjunto habitacional e a
Carmen, como diretora, cabia a escolha do arquiteto que projetaria o conjunto, e ela
chamou Affonso Eduardo Reidy, como ela funcionário de carreira da prefeitura, a
partir de 1948 diretor do Departamento de urbanismo da Prefeitura e seu
                                                                                                                         
328 . Bonduki, Nabil. Os pioneiros da habitação social, volume 1. São Paulo, SESC e Editora da UNESP, 2014,
p. 301.
329 . Cavalcanti, Lauro. Casas para o povo. Dissertação de mestrado em Antropologia, Rio de Janeiro, Museu

Nacional, 1987. Apud Nobre, Ana Luiza, op. cit., p 43.


330 . Revista Municipal de Engenharia, janeiro de 1942, citado por Ana Luiza Nobre, op. cit., p. 44
331 . Brito do Nascimento, Flavia. “A casa privada e o conjunto público de Carmen Portinho e Affonso

Reidy. Rubino, S., Lira, J., Nascimento de Brito, F. E Mello, J. Domesticidade, gênero e cultura material. São
Paulo: EDUSP, 2017, p. 179.

  161  
companheiro.332 Com o nome do prefeito Mendes de Moraes, conhecido por
Pedregulho devido ao morro no qual o conjunto se assenta, é uma iniciativa
habitacional contemporânea à Unité d’Habitation que Le Corbusier projetou para
Marselha (mobiliada por Charlotte Perriand, nunca é demais lembrar), mas com um
grau muito superior de complexidade, a começar pela topografia. No limite, ambos
responderam duas décadas depois, às colocações do emblemático CIAM de Frankfurt.

Contudo, a arquitetura moderna das melhores intenções não se comunicava


com seu usuário. Se para as casas modernas, como foi tratado no capítulo anterior, era
preciso uma série de textos ensinando como usar e como apreciar, uma bula, um
manual de instruções, a tentativa de se atingir as camadas mais pobres das grandes
cidades exigiu mais do que isso. Em 1950 Carmen criou o Serviço Social do Conjunto
Residencial Mendes de Moraes, no qual assistentes sociais diplomadas, educadoras
familiares e técnicos de recreação atendiam aos moradores, ouviam suas queixas,
identificavam possíveis inobservâncias ao regulamento, a fim de “orientar o espírito
critico para o bom gosto e a excelência nas artes plásticas, na musica e no cinema,
promover cursos de economia doméstica.”333

Em suma, ensinar a morar. Os moradores de Pedregulho eram baixos


funcionários do município como serventes, vigilantes, garagistas e em raros casos,
professores, que vinham de habitações precárias ou casas simples em vilas operárias.
Embora a bibliografia assinale que não conheciam formas de morar em coletividade,
quero crer que não conheciam formas de morar coletivamente como esta proposta dos
conjuntos habitacionais e que claramente tinham seus laços vicinais, suas relações de
sociabilidades e seus conflitos. Carmen reconhecia a pertinência das assistentes
sociais. No mesmo texto já mencionado que publicou no Correio da Manhã ao
retornar da Inglaterra, afirmou que os núcleos residenciais deveriam sempre ser
acompanhados de assistência social: “O trabalhador precisa, antes de mais nada de ser
educado para a vida em sociedade, o que será relativamente fácil, desde que se lhes
ofereçam os meios de educação necessários ao lado de condições de vida

                                                                                                                         
332 . Segundo diversas fontes orais, Carmen teria dito : “Só assumo se tiver liberdade de entregar o projeto
do Pedregulho ao Reidy”, Ver entrevista de Francisco Bolonha em Capítulos da memória do urbanismo carioca.,
p. 50.
333 . Ana Luiza Nobre, p. 57.

  162  
condigna.”334 Assim, fazia parte do programa ensinar a usar os espaços de uso
coletivo, às crianças a não brincarem nos corredores dos prédios, aos banhistas que
era preciso um chuveiro antes de se entrar na piscina – a entrada se fazia por dentro
do vestiário.

A cozinha do conjunto também recebeu atenção. Embora Reidy afirmasse que


a ação do arquiteto deveria abranger do utensílio domestico ao urbanismo – o que
nada mais era do que o dogma da Bauhaus – uma vez que Carmen já havia detalhado
aspectos da vida cotidiana, especialmente feminina em seu projeto para uma capital, é
possível que haja aí também um dialogo entre os dois. Se cada morador deveria
comprar seus próprios móveis, a cozinha vinha com móveis planejados e uma tabua
de passar embutida, tudo desenhado para se adequar à exigüidade do espaço. Cozinha,
como já vimos, foi um lugar onde a mulher arquiteta/engenheira/designer atuou,
depois de séculos ignorada pela arquitetura, vista como mero espaço utilitário para
uso de empregados e mulheres.335

Se a primeira união matrimonial de Carmen oscila entre o silêncio e o tabu,


inclusive por parte dela mesma, com Reidy, com quem nunca se uniu legalmente (por
princípio ou porque não havia divorcio no Brasil, nunca saberemos), ela formou um
casal que colaborava intensamente no trabalho, parceria que podemos comparar a
outras como Janete Costa e Acácio Borsoy, Lina Bo e Pietro Maria Bardi ou Charles e
Ray Eames. Parceria onde a ordem de importância dos papeis sociais é a todo
momento negociada e que, frequentemente coloca a mulher em um segundo plano.
Tema tratado por Whitney Chadwick e Isabelle de Courtivon336 em relação às artes
plásticas e literatura, essas relações são ainda mais centrais na arquitetura, visto que
freqüentemente se realizam materialmente em um projeto de casa – e casa, como já
afirmou Beatriz Colomina é um lugar de experimentalismo e de demonstração para o
arquiteto, mas é preciso lembrar que em numa divisão casa-rua, a primeira é o
domínio do privado e do feminino. No caso, valeria uma nova pesquisa o cotejamento
dos planos e desenhos de cada um como medida de aferição da estatura da troca que
                                                                                                                         
334 . “Habitação popular”. Correio da Manhã, 17 de março de 1946.
335 . “There was probably no arena in which women had as much influence in modern architecture as
kitchen.”Mary Mc Leod. “Domestic reform and european modern architecture: Charlotte Perriand, grete
Lihotzky and Elizabeth Denby.”MoMA, Modern Women. Women artists at the museum of modern art. New York,
MoMA, 2010, p. 180.
336 . Chadwick, W. e Courtivoun, Isabelle de. Significant others: Creativity and Intimate Partnership. London abd

New York, Thames and Hudson, 1996,

  163  
realizavam; apenas como exemplo, o plano de Reidy para a urbanização da Esplanada
de Santo Antonio parece conversar, com mais sofisticação, com as imagens das
quadras da “Brasília de Carmen”, a cidade-capital que ela planejou duas décadas
antes. A mesma autora fala em colaboração, tema denegado pela ênfase na autoria, a
uma espécie de caixa preta da história da arquitetura: colaboração é a história secreta
dos arquitetos, a vida doméstica da arquitetura.337

No caso da parceria entre a engenheira feminista e o mais elegante e discreto


dos nossos arquitetos modernos, como bem lembrou Lucio Costa, há uma quase
inversão dos papeis esperados. Se Ray Eames teve de esperar o falecimento do esposo
para ser reconhecida como participante do processo de criação, a posição de Carmen é
ambivalente. De um lado, ela negociava, tinha circulação entre políticos e imprensa,
era figura conhecida no Rio de Janeiro e, sobretudo, era hierarquicamente superior ao
companheiro. De outro, sempre que entrevistada a respeito de suas realizações em
dupla, delegou a autoria a ele, como se no tocante à criação a arquitetura lograsse um
lugar privilegiado em relação à engenharia, ou, talvez, como uma compensação que
buscasse reaver um equilíbrio na relação.

Sobre Pedregulho há farta bibliografia. Inovador, não era mais uma


Zeilenhaus, modelo alemão de edifícios paralelos comum no Brasil nas iniciativas de
moradira popular dos anos 193, menos ainda uma mera cópia dos Siedlungen que se
espalhavam por todo lado. Era único, original e modelar – modelo que, adaptado ao
terreno deveria ser sido seguido e replicado – mas não foi. Por iniciativa de Carmen,
seus contato na imprensa carioca e, desde seus tempos de editora de uma revista
técnica, com as revistas especializadas, Pedregulho foi muito bem divulgado. Recebeu
matérias nas revistas Architectural Fórum, The Architectural Review, L’Architecture
d’aujourd’hui, Domus e Zodiac, dentre muitas. O conjunto foi sensação internacional
em um momento em que o flerte encantado com a arquitetura brasileira arrefecia.
Max Bill o elogiou para criticar o formalismo de Oscar Niemeyer, que chamou de
academicismo antissocial” para o qual Pedregulho contituía algo como um antidoto
(celeuma que se deu sob o olhar contrariado de Lucio Costa, mas com o apoio da
revista Habitat, então dirigida por Lina Bo Bardi, nunca é demais recordar) e o

                                                                                                                         

. Colomina, Beatriz. “With or without you, Modern Women. Women artists at the museum of modern art. New
337

York, MoMA 2010, p. 218.

  164  
projeto foi destaque da 1a. Bienal de São Paulo em 1953, assim como do encontro do
CIAM em Bergamo, Itália em 1949, mesmo sem a presença de Reidy ou Carmen338.

Resta quanto a esse conjunto a questão da autoria: Reidy, Carmen, DHP ou


tudo isso junto em uma divisão social de trabalho que elege o nome do arquiteto para
figurar como último e único autor? Faço minhas as palavras da pesquisadora Flávia
Brito do Nascimento, em seu trabalho pioneiro sobre o DPH:

Divulgado à exaustão, o Pedregulho foi quase sempre relacionado diretamente


com seu autor, o arquiteto e urbanista Affonso Reidy. O Departamento de
Habitação Popular da prefeitura, órgão realizador, é mencionado lateralmente.
Quando há uma concessão, é citada a engenheira Carmen Portinho, diretora do
DPH durante praticamente toda sua existência e responsável em grande parte
pela execução dos projetos. Não se trata aqui de tirar o foco da obra e da
genialidade de Reidy, mas sim de incluí-las e problematizá-las como parte de
um projeto maior de habitação para o Rio de Janeiro, fruto de um processo
histórico do qual participaram muitos outros personagens.339

Mas o que nos interessa nesta tese é postular a presença de Carmen em


algumas decisões de projeto. Nesse aspecto a trajetória feminista de Carmen incidiu,
fazendo com que – e isso é Carmen, não Reidy – a “mão cansada” da mulher
trabalhadora que viria a habitar o conjunto não encontrasse um tanque em cada
unidade e sim uma lavanderia coletiva. Alem da visão feminista, contou a
possibilidade das usuárias pendurarem as roupas na janela, o que macularia a beleza
da fachada. Não foi uma proposta bem sucedida, por mais que assistentes sociais se
dedicassem a ensinar o bom uso das máquinas de lavar importadas dos Estados
Unidos: as pessoas improvisavam em baldes, bacias e em alguns casos chegaram a
usar a piscina para a lavagem da roupa da família.

                                                                                                                         
338 . Apesar dos esforços de Siegfried Giedion para que Reidy, que pediu em telegrama a Henrique Mindlin
que o autor de Pedregulho e de Santo Antonio conduzisse os debates sobre a arquitetura brasileira em
Bergamo. Aparentemente, Reidy não respondeu, mas no encontro seguinte dos CIAMs a prefeitura do Rio
de Janeiro enviou alguns engenheiros e técnicos. Munford, Eric. The CIAM discourse on urbanism, p. 320, n.
257,
339 . Brito do Nascimento, Flavia. Entre a estética e o hábito. O Departamento de Habitação Popular (Rio

de Janeiro, 1946-1960) Rio de Janeiro: Secretaria Municipal das Culturas, 2008, p. 104.

  165  
Houve outros conjuntos realizados pelo Departamento de Habitação Popular,
ainda que nenhum tão emblemático. Mas é relevante o depoimento de Francisco
Bolonha, que dentre outros feitos, como o projeto para os conjuntos residenciais de
Paquetá (1952) e Vila Isabel (1948) foi colaborador de Pedregulho:

Em Vila Isabel houve um caso engraçado: eu projetei áreas de serviço com


tanque, e a Carmen pulou, porque queria lavanderias coletivas. Eu insisti:
‘preciso de uma área de serviço com tanque de lavar roupa! As pessoas não
vão lavar um ano de chão na máquina de lavar roupa!’E ela: ‘só permito que
você coloque o tanque na cozinha”. Tive de concordar. Tanto assim que, se
vocês visitarem o conjunto, verão apartamentos excelentes, mas com esse
problema: Não possuem área de serviço.340

No capítulo anterior foi abordada presença de uma tecnologia ainda não


acessível no Brasil ao mostrar a casa de Lina e seu discurso visual de uma dona de
casa moderna. Tal descompasso entre o aceso ao eletrodoméstico no Brasil do pós-
guerra é reeditada nas propostas de Carmen. Curiosamente, ela talvez não encontrasse
modelos, ou bons exemplos a serem seguidos na literatura da arquitetura moderna.
Cozinha sim, havia várias, embora a cozinha de Frankfurt tivesse ganho proeminência
nas publicações. Mas área de serviço, local de lavar roupa... tradicionalmente foi a
área fora da casa, longe desta, nos quintais e mesmo nos rios. Em outras palavras, do
ponto de vista simbólico, a área de serviço é inferior à cozinha; o lugar do alimento é
hierarquicamente superior ao lugar da sujeira, do dejeto. Talvez por isso, alem de se
poupar as mãos que já trabalharam o dia todo, além de se preservar a beleza da
fachada que ganharia ares de favela vertical com varais, fosse importante para o
projeto o afastamento da lavanderia.

O exemplo dos modos de usar chegou a incluir um apartamento, o das


assistentes sociais mobiliados com móveis modernos e cadeiras BKF341. Foi esta a
imagem que circulou o mundo em periódicos, não correspondendo nem de longe à
apropriação do espaço pelo morador a quem o conjunto se dirigia.

                                                                                                                         
340 . Freire, Américo e Lippi Oliveira, Lucia (org). Capítulos da Memória do Urbanismo Carioca, Rio de Janeiro,
Edições Folha Seca, 2002, p. 51.
341 . Também chamada de Butterfly, a cadeira BKF tem as iniciais de seus criadores, Antonio Bonet, Juan

Kurchan e Jorge Ferrari-Hardoy, do grupo argentino Austral, que reunia arquitetos e designers. É um
projeto de 1938.

  166  
AS CASAS DO CASAL

A parceria do casal ainda renderia duas outras casas: a residência Carmen


Portinho, em Jacarepaguá e a casa para finais de semana em Itaipava.

A casa Carmen Portinho é de 1950, momento em que Pedregulho começava a


ficar pronto, e foi aprovada pela Prefeitura na rubrica “Habitação popular”, ou seja,
não podia ultrapassar 70 m2 de área construída. A própria Carmen fiscalizava essa
categoria que rendeu muitas casas populares no Rio de Janeiro mas curiosamente o
fato da casa ter tido um projeto elaborado para o DHP nunca foi mencionado pelas
publicações especializadas. Henrique Mindlin em seu Modern Architecture in Brazil
descreve a casa como de “residência permanente e refúgio de uma jovem engenheira,
ativamente interessada em arte moderna, que dirige atualmente o Museu de Arte
Moderna do Rio de Janeiro e que, como chefe do Departamento de Habitação Popular
da Prefeitura do Rio de Janeiro, foi a principal responsável pela construção do projeto
de Pedregulho.”342 Carmen foi assim nomeada, em um dos primeiros livros sobre
arquitetura brasileira, como cliente, ainda que apontando suas realizações. O arquiteto
Reidy fez para a cliente Carmen.

No mesmo livro, Mindlin chama a atenção para uma rede no terraço, algo
“de uso muito comum ainda no Brasil” e menciona as dependências de empregada343.
Ao contrário da casa do casal Gregori e Mina Warchavchik e mesmo da casa de vidro
do casão Bardi, esta não era uma casa-manifesto, era apenas casa, embora de
moradores muito particulares. Em comum, apenas o fato de se situarem em bairros
física e simbolicamente longe do centro, como a Vila Mariana no final dos anos 1920,
o Morumbi nos anos 1950 e Jacarepaguá, ainda hoje. Carmen conheceu a casa do
casal Warchavchik em 1930 e segundo Flávia Nascimento, a visita despertou ideias
de domesticidade, relatadas em artigo para o Correio da Manhã:
                                                                                                                         
342 . Mindlin, H. Arquitetura Moderna no Brasil. Rio de Janeiro: Aeroplano, IPHAN/MINC, 2000 [1956], p
76.
343 . Idem, p. 76.

  167  
Dificilmente poderei esquecer a sensação esquisita e extraordinária que senti
ao visitar aquele recanto pitoresco e ultra moderno. Invejei, por momentos, a
felicidade e o bem estar daquele casal ditoso, que construindo para si tal
habitação, conseguira realizar um dos mais belos sonhos arquitetônicos. E
pus-me a pensar, no meu colonial espanhol, projetado por mim, quando
apenas deixava os bancos escolares. E revi na minha imaginação aquela casa
ideal que nunca construí e que não pretendo , jamais construir. Prefiro vê-la
em sonho, incomparavelmente bela, do que destruída pela realização desse
sonho.344

Carmen escreveu estas notas pouco antes de, por meio da Revista de
Engenharia, encabeçar sua ampla divulgação da arquitetura moderna européia. Sua
casa ainda demoraria duas décadas. Seu manifesto foi Pedregulho, sua casa era
refúgio e moradia, longe do centro o bastante para uma engenheira separada que vivia
com seu parceiro (o divórcio no Brasil foi promulgado por emenda em 1977, depois
do falecimento de Reidy). Era a casa de um casal que se encontrava discretamente
depois do expediente e seguia junto para longe do local de trabalho. Ainda assim, era
um modelo de habitação popular, mesmo que a metragem do terreno e a inserção
social do casal não fossem compatíveis com tal classificação. Não sendo um
manifesto, tinha ainda assim um curioso caráter exemplar. A casa era um projeto de
habitação popular do DHP. O bairro onde esta se situa, na zona oeste do Rio de
Janeiro cabia perfeitamente nessa rubrica, ainda que o terreno tenha 9 mil m2 –
curiosamente, a mesma metragem do terreno da Casa de Vidro do casal Bardi345.

Curiosamente, a bibliografia pouco menciona esse fato ou, quando o


menciona, é com uma incômoda naturalidade, como o fez Alfredo Britto em 1999 a se
referir à casa:

O programa mínimo: estar-refeições, quarto, estúdio, cozinha, banheiro e


dependências de serviço deveria ter menos de 70 m2 para se beneficiar do
incentivo à “habitação popular”, com o qual ficava garantido as proprietários
isenção da taxa de licença de obra e o financiamento de quatro sacos de
                                                                                                                         
344 . Correio da Manhã, 24 de agosto de 1930. Citado por Nascimento, F. B. “A casa privada e o conjunto
público de Carmen Portinho e Affonso Reidy.” Lira, J., Mello, J. Nascimento, F. e Rubino, S. (orgs)
Domesticidade, gênero e cultura material. São Paulo, EDUS, 2017, PP. 174-5
345 . Para termos uma escala das dimensões do lote, o terreno de Pedregulho é aproximadamente 5,8 vezes

maior.

  168  
cimento por mês. Para dois funcionários públicos significava um diferencial
imperdível. Um artifício fez com que a varanda, indicada no anteprojeto
aprovado e por suas características não acrescida no total da área, se
transformasse na deliciosa sala que penetra pelo alto na mata, solta, apoiada
nos pilotis e é por aquela área totalmente envolvida. A casa terminou com 95
m2346.

Ainda é uma metragem pequena para a casa de uma diretora de museu, para
um casal de funcionários altamente especializados e ocupantes de cargos de mando. A
observação acima grifada de Brito, arquiteto, urbanista e professor apenas evidencia a
simbiose que se dá (e isto não diz respeito apenas a Carmen, Reidy ou ao Brasil) entre
o analista, o comentador, o proponente, o cliente, todos do mesmo círculo, da uma
fração de elite, no limite de um grupo de amigos. Um expediente, tal como todos os
que envolveram a construção do edifícios do Ministério da Educação e Saúde Pública,
narrado exaustivamente entre a naturalidade e o elogio. Contudo, um recurso, uma
burla.

Desde 1937 o decreto no. 6000 designava áreas para habitação popular na
capital do país e Jacarepaguá estava nessa área. O Departamento de Construções
Proletárias, antecessor do DHP, podia doar o projeto, desde que as casas não
ultrapassassem 70 m2, excluindo-se garagem e varanda. Carmen, em seu artigo já
mencionado, no qual ao voltar de Londres lançou as bases de sua futura atuação no
DHP, mostrou ser contraria à idéia de cidade jardim, casa com jardim para o
trabalhador, apontando a solução de conjuntos multifamiliares. Contudo, assinala
Flavia Nascimento, ao assumir o DHP, manteve o programa de concessão de casas
populares, apenas mudando o estilos das plantas aprovadas a partir de 1937; Carmen
solicitou aos arquitetos do DHP novos tipos, modernos. Francisco Bolonha e outros
arquitetos do DHP atenderam ao pedido, estabelecendo uma tipologia por letras,
subdivididas em soluções: o tipo e solução I, projeto de Reidy, era a própria casa do
casal, ou seja, eles procederam a uma institucionalização o projeto da própria

                                                                                                                         
346 . Depoimento de Alfredo Britto para Toda minha vida, op. cit. p. 80. Grifos adicionais.

  169  
moradia. Ou realizaram um inexplicável expediente que mesclou atuação pública e
interesse privado.

Na construção, algumas pequenas modificações foram feitas. A varanda foi


envidraçada e incorporada à sala. Um aposento que na primeira planta apresentada era
apenas “quarto” tornou-se “dependências de empregada”: na segunda versão da planta
vê-se duas camas e uma tábua de passar roupa. Uma laje sobre a casa não constava do
projeto, mas uma vez feita convinha para festas ou tarefas domésticas. Muito depois
da conclusão da residência, uma reportagem sobre mulheres engenheiras dizia que na
casa de Carmen não havia problemas, pois seu marido era arquiteto e como tal se
interessava por sua profissão. Era um casal sem filhos e o trabalho doméstico era feito
por boas empregadas.347 No Departamento de Construções Proletárias o setor de
serviço era colocado fora da casa, nos fundos, quase um espaço independente. Em
Pedregulho, como já foi assinalado, a lavanderia ficava em um espaço separado,
distante das unidades habitacionais e tudo era mecanizado, mesmo na incipiente
indústria nacional de eletrodomésticos nacional, pois as máquinas de lavar eram
importadas dos Estados Unidos.

A decoração interior das casas merece nossa atenção. A mesma cadeira


Butterfly, a BKF que encontramos no apartamento do DHP em Pedregulho. Obras de
arte moderna adquiridas apos o período de bolsista de Carmen348. Uma decoração
com móveis modernos de Alvar Aalto, Florence Knoll, Charles e Ray Eames, dentre
outros; na sala de jantar, cadeiras Thonet, a mesma que Le Corbusier utilizava em
seus projetos antes de contratar Charlotte Perriand349. E uma rede, que chamou a
atenção de Mindlin, que possivelmente era uma memória de sua casa de
matogrossense, criada por índias cholas. Um elemento da cultura popular em meio a
móveis modernos e gravuras originais: uma casa que cabia em todos os termos do
                                                                                                                         
347 . Nascimento, F. 2017, p. 189.
348 . “(...) estava com dinheiro sobrando, trazido da Inglaterra e não havia como gastá-lo, já que não se
podia comprar absolutamente nada porque faltava tudo. Resolvi então empregá-lo de modo diferente:
comecei a visitar lojinhas especializadas em gravuras na Rive Gauche. Obras gráficas de Picasso, Matisse,
Roualt, Léger, estavam sendo vendidas a preço de banana porque ninguém podia comprar nem comida,
imagine arte. Não tive Duvida, adquiri alguns trabalhos desses artistas. (...) Como lembrança daquele
tempo, fiquei com uma gravura de Picasso de que gosto imensamente e dela não pretendo me desfazer
enquanto viver”. Por toda minha vida, p. 97.
349 . O livro de Henrique Mindlin nos permite notar que quase todas as casas assinadas do período tinham

a mesma mobília: móveis do Studio Palma de Lina Bo Bardi e Giancarlo Palanti, cadeiras Butterfly,
espreguiçadeiras, sofás de Florence Knoll, cadeiras Eames e em alguns casos, um móbile de Alexander
Calder.

  170  
texto que Lina Bo Bardi escreveu posteriomente, talvez sem conhecer a moradia do
casal Portinho-Reidy: em suma, uma casa moderna350.

E sim, a casa tinha não apenas um, mas dois tanques.

A casa de Itaipava (Fig. 44) foi concretada pela própria Carmen com pedras de
um rio nas proximidades. Com cerca de 100 m2, tem um arranjo de interiores
equivalente ao da casa de Jacarepaguá. Tem sala, quarto, cozinha, escritório e
banheiro no pavimento superior. No inferio, a escada que dá acesso a casa, um quarto
e banheiro de empregada e na saída destes, um imenso tanque de lavagem de roupas.

Carmen e Reidy conviveram por quase trinta anos e pouco se sabe dessa
relação sempre marcada pela discrição. Não se casaram, ela nunca usou seu nome.
Embora assinasse tudo como Carmen Portinho e fizesse disso um ponto de honra, em
sua documentação burocrática veio a falecer como Carmen Portinho Lutz.

As duas casas são projetos de parceiros. A Casa de Vidro, comumente pensada


como a residência de Lina, obscurece que foi feita para um cliente diretor de museu
que era o marido da arquiteta. Aqui, a equação parece se inverter, a casa por um
arquiteto feita para a esposa diretora de museu. As casas de Jacarepaguá e Itapava são
casa cujos termos de discussão entre ciente e arquiteto no que diz respeito a dimensão,
programa, acabamento, localização etc., desconhecemos. Exemplos que podem
remeter a uma outra casa de casal, um pouco anterior, construída na Holanda. A casa
Schröder, projeto de 1923-4 de Gerrit Rietveld (1888-1964) foi pensada com tamanha
participação da cliente Truus Schröder- Schräder, que o arquiteto assinou o projeto
junto com ela – isso antes de se mudar para a casa e com ela viver até seu
falecimento. Alice Friedman chama nossa atenção para a especial circunstância
quando a cliente é uma mulher., no caso, Truus era uma jovem viúva, irmã de uma
das primeiras feministas da Holanda351, mãe de três filhos e estudiosa da pedagogia
montessoriana. A casa que realizaram junto era mais que um manifesto – também o
era – constituindo um laboratório no qual eles estudavam os efeitos do espaço neles
mesmos e nas crianças. Se va casa veio a ser reconhecida como emblemática para a
arquitetura holandesa e o modernismo de modo geral é porque os objetivos sociais e
                                                                                                                         
350 . “A casa”. Ver capítulo III.
351 . Johanna Gerarda Antonia Schräder (1887-1951), conhecida como An Schräder.

  171  
intelectuais de Truus fizeram parte do processo: “Enquanto cliente, assim como
designer, assim como feminista, Schröder ajudou a delinear e a definir os caminhos da
arquitetura moderna352.

Enquanto parceira, cliente, engenheira, urbanista e feminista, Carmen também,


de modo ainda mais intenso.

Gwendolyn Wright traz o exemplo do casal Catherine Bauer e William


Wuster, ela uma reformadora social, ele um arquiteto moderno filiado aos CIAM.
Apos o casamento em 1940 ela de certo modo politizou o marido, apresentando suas
idéias sociais e políticas sobre habitação, enquanto ele a tornou mais atenta às
expectativas da classe media norteamericana, tanto em relação aos apartamentos
urbanos quanto às casas de subúrbio. Por outro lado, Bauer também foi contaminada
por uma relação anterior, de discípula com forte envolvimento amoroso, com Lewis
Mumford, a partir da qual passou a prestar moais atenção em aspectos do projeto que
não podiam ser quantificados, ampliando sua visão da reforma habitacional; e
Mumford, então já reconhecido, trouxe desse intenso caso nunca assumido
publicamente, um olhar para a tecnologia e a vida em comunidade que se tornou
basilar em boa parte de sua obra.353

Modern Housing, que Bauer publicou em 1934, é reconhecido como uma das
bases para a política habitacional que Carmen implantou apos seu retorno da
Inglaterra.Desafiando os nortamericanos a não imitarem exemplos europeus, Bauer
afirmava não haver uma fórmula simples – ela achava que o modernismo alemão nos
EUA poderia vir a se tornar um “novo realismo” – e preconizava que a necessária
reforma urbana deveria necessariamente envolver mudanças nas políticas municipais
e nas modalidades de financiamento, tanto quanto na forma arquitetônica354.

As parcerias sombreadas, por circunstância, exclusão ou auto-exclusão não


são prerrogativa dos arranjos amorosos e matrimoniais. Abordá-las, mais do que um
novo voyerismo, como adverte Beatriz Colomina com uma certa dose de auto-ironia,
                                                                                                                         
352 . Firedman, Alice e Casciatto, Maristella. “Family matters: The Schröder House, by Gerrit Rietvelt and
Truus Schröder”. Fiedman, Alice. Women and the making of the Modern House. A social and architectural history.
New Haven and London, Yale University Press, 2006.
353 . Wright, G. “A partnership: Caherine Bauer and William Wuster”.Terib, Marc (Ed). An everyday

modernism. The Houses of William Wurster. Berkeley, Los Angeles, London: San Francisco Museum of Modern
Art/ University of Califórnia Press,1999, p. 188.
354 . Idem, p. 189.

  172  
pode ser um dos atalho possíveis para a necessária tarefa de se arranhar o cânone, não
apenas pelo seu já mencionado sexismo, mas pelo esmaecimento do trabalho em
duplas, trios, grupos, escritórios e ateliês. Talvez, nesse sentido, a maior parceria a ser
investigada seja a de primos: Le Corbusier e Pierre Jeanneret. Parceiras com algum
grau de assimetria – um significant e um other – não acontecem apenas na arquitetura.
O casal Carmen-Reidy nos convida a desarranjar um pouco a freqyencia com a qual a
mulher fica na sombra do marido, uma vez que ela era a coordenadora dos projetos, a
que possibilitou, inclusive a participação do companheiro – ainda que ela seja vista
como “participante” em grande parte da bibliografia, talvez por ela ter permitido ser
colocada neste lugar. Talvez um pouco semelhante à situações analisadas pela
antropóloga Heloísa Pontes quanto às atrizes brasileiras na época do Teatro Brasileiro
de Comédia, quando as mulheres cuparam uma posição central como intérpretes,
mesmo quando tendo parceiras amorosas e de trabalho com os diretores da
companhia355. Não se trata de presucrtar as questões íntimas do casal, como nal se
tratava disso ao falar de Charlotte e seus parceiros, ou do casal Lina-Bardi. Tatá-se de
não pretender que essa circunstância de trabalho a ois não existe e nal term
reverberações não apenas no universo de escolhas Possíveis, como também no
resiultado, na obra. São muitas as parcerias a merecerem análise detida,356 mas no
caso da arquitetura, como já foi assinalado à exaustão, elas ganham peculiar
materialidade em uma casa, e uma casa autoral, muitas vezes com o nome de seu
(sua) morador (a)

Mas é tempo de voltarmos às casas do casal Carmen-Reidy e seus tanques


para interpelarmos a impossibilidade sociológica da crença no homem universal, nos
projetos que visavam atender um cliente sem rosto, nas cadeiras que poderiam servir
para qualquer um se sentar. Com isso não me refiro a possíveis desvios causados por
uma adaptação ao mercado, estado ou cliente, desvios que, se assinalados mantém
intactas e imaculadas as cartilhas de boas intenções. Carmen e Reidy evidenciam que,
sujeitos situados socialmente, projetavam espetacularmente para um outro ao qual não
se preocupavam – não apenas eles, mas quase uma totalidade de profissionais – em
indagar e escutar. Ao fazerem as próprias casas, um programa de escolhas foi
                                                                                                                         
355Pontes, Heloisa. Intérpretes da metrópole. São Paulo: EDUSP/FAPESP, 2010, especialmente o capítulo 6.
356. Um notável esforço de analisar temas como autoria a partir da partilha e da colaboração – conflitos
incluídos – está na coletânea organizada por Velloso, M, Simioni, A.P., Rouchou, J. e Oliveira, C. Criações
compartilhadas. Artes, literatura e ciências sociais. Rio de Janeiro, FAPERJ E Mauad Editora, 2014.

  173  
conduzido com base em componentes identitários e a arquitetura moderna vista como
uma causa foi seguramente parte dessa identidade paulatinamente construída. Assim
as casas de Jacarepaguá e Itaipava, belas, econômicas e modernas, apontam os limites
de projetos para um cliente coletivo que, de tão abstrato e idealizado, por melhores
que possam ser as intenções, não foi considerado. As casas habitadas pelo casal
Carmen-Reidy, essas sim, tinham tanque. Aparentemente a resolução do “problema
dos empregados”, enunciada no plano para uma capital e executada em Pedregulho,
não se aplicava a qualquer grupo social. Mas o problema dos empregados é basilar
para entendermos a expansão de uma arquitetura moderna, não a das casas-manifesto,
mas de suas versões palatáveis, aplicadas ou mesmo vulgarizadas.

Essa distância entre o que se projeta para um coletivo e o que se pratica não
era (ou é) uma questão tão somente brasileira, pois até projetar a conhecida Cozinha
de Frankfurt, a arquiteta austríaca Margarete Schütte Lihotzky também não tinha sido
usuária de uma cozinha sequer: “The truth of the matter was, I’d never run a
household before designing the Frankfurt Kitchen, I’d never cooked and had no idea
about cooking”.357

Como a cozinha de Pablo Picasso que ilustra a capa desta tese: uma bela e
plástica abstração. A cozinha de Picasso é um quadro, mas as cozinhas modernas
foram um lugar de mulher – usuária e em muitos casos projetista – que ao longo do
século XX se tornou algo entre a quimera e um espaço praticado, como veremos no
capítulo final.

                                                                                                                         
357. Margarete Schütte-Lihotzky, citado em Kinchin, Julia e O’Connor Aidan. Counterspace. Design and the
modern kitchen. New York, MoMA, 2011, p. 20

  174  
CAPÍTULO V

FORDISMO DOMÉSTICO

Si on compare la vie domestique de ces années-là à celle d’aujourd’hui,


quelle évolution!

Pour faire la lessive, me mère, comme la majorité des femmes, faisait


chauffer l’eau sur le gaz; elle la déversait dans une bassine posée sur un évier
en pierre; elle faisait bouillir la ligne dans une grande lessiveuse, le
surveillait, le touillait et l’essorait à la main. (...) Gestes répétés
quotidiennement, nous n’avions pas le sentiment que ça pouvait changer.358

Enfin l’outillage sera mécanisé. C’est la grande règle des temps modernes. Si
le bien-être, la richesse, le confort pénétrant de plus en plus dans toutes
classes de la société, c’est Grace à La mécanisation de toute l’industrie
moderne. La machine permet de produire davantage, plus rapidement, à un
moindre coût; la machine est le complément indispensable de tout
démocratie.”359

Mais de grace, Messieurs les architectes, consultez des femmes de ménages


360
avant de faire vos plans!

Quando o arquiteto Giò Ponti visitou a Casa de Vidro, residência de Lina Bo


e Pietro Maria Bardi em 1953, observou as características espaciais das dependências
de serviço. Esta área havia sido projetada rigorosamente separada do corpo da casa,
formando uma habitação mínima praticamente independente de toda o resto. A
ligação entre os dois domínios era feita pela cozinha. Ponti, com quem Lina havia
trabalhado no início de sua trajetória profissional em Milão, chamou essas
dependências de viscere della casa. Estranhamento semelhante exprimiu Francesco
Tentori, o biógrafo de Pietro Maria Bardi, que sugeriu que havia em Lina uma
apropriação da memória do Brasil colonial, que se manifestava pela incorporação de
um esquema “casa grande e senzala”, e sua observação não era exatamente um elogio.
Assim, a Casa de Vidro causava espanto nos amigos europeus de seus proprietários
                                                                                                                         
358 . Une vie de création, p. 81.
359 . Paulette Bernège. La methode ménagere, Paris, La ligue de l’organization ménagère, 1934 [1928] p. 47.
360 Angéline Japsenne. “A propos de l’habitation minimum”, 1930. Apud Coudenberg e Heynen, 2004.

  175  
por apresentar setores distintos: aquele que por projeto e nome se revelava
transparente para os moradores e visitantes e a parte resguardada, segreto nas palavras
espantadas de Ponti, os quartos de empregada361.

Mais do que uma visível distância, por parte da autora do projeto da casa,
entre o que se propõe – pensemos na Enciclopédia da Mulher, analisada
anteriormente – e o que a experiência cotidiana demanda, este conflito revela que para
um visitante europeu – e homem, é bom lembrar – como Ponti, a questão do
empregado doméstico era um tema cujo debate já havia acontecido. No Brasil, como
bem lembra um artigo de Carlos Comas, a dona de casa de classe media vivia o
melhor dos mundos, com empregados mal remunerados à mancheia e o novo mundo
do equipamento doméstico362.

Ao mesmo tempo, como vimos no terceiro capítulo, Lina Bo Bardi exibia as


imagens de sua casa moderna e dela própria como mulher moderna usando a cozinha:
uma grande e espaçosa cozinha racionalista povoada pelos eletrodomésticos
importados que a princípio deveriam substituir as mãos da dona de casa ou de sua
empregada.

É disso que trata esse capítulo final: das mudanças do espaço de trabalho no
interior da casa, incluindo suas hierarquias espaciais e simbólicas, sua dimensão
tecnológica e de ordenamento das tarefas, os sujeitos pertencentes a este espaço de
trabalho, e os debates a respeito disso tudo. Debates que passam por publicações,
indústria, comércio, propaganda e exposições. Se o debate das artes decorativas
versus arquitetura moderna e seu mobiliário dizia respeito especialmente à sala de
visitas, de jantar e escritório do homem, chegando até os quartos, o tema da
mecanização e tecnificação fala sobretudo de cozinha e área de trabalho, os “serviços”
da casa.
                                                                                                                         
361 . Acompanho aqui a leitura da Casa de Vidro feita por Campello em sua dissertação de mestrado Lina
Bo Bardi: as moradas da alma, 1997, pp. 90-92.
362 . Ao mesmo tempo, o recuo e a maior altura da cozinha de cobertura plana afirma sua independência

volumétrica tanto quanto a da ala externa, e propõe, para efeito de retórica, como muitos eletrodomésticos
à vista também fazem, a dispensabilidade dos empregados residentes. No entanto, o teto de uma água só
dessa senzala retoma e completa a inclinação do teto da casa grande, reiterando sua conexão. Duas
organizações se imbricam, uma definida por privacidade, outra por autoridade. Fora de vista, a casa do
caseiro se ergue à parte. A burguesia iluminada sempre foi capaz de gozar do melhor de muitos mundos.
Comas, Carlos. “Lina 3x1” Arqtexto (UFRGS) vol. 2009, p. 150.

  176  
O que nos conduz a leituras impregnadas de otimismo no progresso, como
Gideon em 1947 que, de um lado espelhava os compromissos e tomadas de posição
de sua geração e grupo e de outro gerava um certo efeito teoria ou, em outra
linguagem, um mito a ser repetido estruturalmente, sem levar em conta que é uma
peculiaridade do capitalismo que a cada inovação venha junto – não como um efeito
colateral, mas como parte constitutiva – mudanças nem sempre desejadas que em
nome do progresso ou do lucro muitos terminam por aceitar363. Como antes dele
Nikolaus Pevsner fez para o design em Pioneers of Modern Design, de 1936, Gideon
em Mechanization takes command seguiu de perto, ao lado e como um porta-voz os
sentimentos e as visões de quem estava vivenciando esse processo com seus olhos
mãos e pensamentos e ao fazê-lo, parte do fenômeno que buscava relatar e analisar,
contribui para a cristalização da doxa e da construção da legitimidade do grupo.
Assim, mais do que uma contribuição pioneira, o que certamente é, o trabalho de
Gideon a meu ver não mantém seu vigor, a menos que, como ele, embarquemos em
uma visão quase cega de fé no futuro e na máquina – que no entanto nos ilumina e
ajuda a enxergar o discurso dos arquitetos de sua geração.

Inés Pérez sustenta que a partir da metade da década de 1940 se popularizou


um modelo de domesticidade que mesmo dando continuidade a imperativos
anteriores, introduziu novidades, como a força da imagem da casa como espaço
confortável (isso é uma dimensão importante a meu ver) para o consumo de novas
tecnologias e artefatos. Discursos estereotipados de gênero acompanharam o modelo
da casa cômoda que abrigava uma família nuclear, reeditando a imagem da mulher do
lar e para o homem, da casa como objeto de práticas que ela subsume sob a idéia do
ócio criativo364.

O PROBLEMA DOS EMPREGADOS

Se, como salienta Adrian Forty, a relação entre criados domésticos e seus
patrões não fosse a única modalidade de relação hierárquica existente no século XIX,
era das mais complexas e embaraçosas. Já em meados do século era referida como um
                                                                                                                         

. Forty, Adrian. Objetos do desejo. Design e sociedade desde 1750. São Paulo: Cosac & Naify, 2007, p. 19.
363
364. Pérez, Inês. El hogar tecnificado. Famílias, gênero y vida cotidiana 1940-1970. Buenos Aires: Editorial Bibios,
2012, p. 27.

  177  
“problema”, já havia sinais de estar se tornando uma forma arcaica de emprego,
especialmente pela circunstância do trabalhador morar na casa do patrão, comer sua
comida e estar sob sua responsabilidade. Além disso, as queixas quanto a criados
insubordinados eram freqüente. Uniformes de copeira, toucas e aventais brancos
faziam parte da diferenciação dentro do ambiente da casa, assim como estratégias
como o uso de bandejas, evitando que as criadas oferecessem algo aos patrões ou às
suas visitas com as próprias mãos365.

A “crise dos empregados” era assunto comum na França, Inglaterra e Estados


Unidos, onde na virada do século XIX pro XX era comum na imprensa a menção ao
que foi chamado “the servant problem”366. Em 1915, a norteamericana Clara Hélène
Barker publicou o livro Wanted. A Young woman to do housework e logo no início
advertia não se tratar de uma obra da direção do gerenciamento doméstico:

This little book is not a treatise on Domestic Science. The vaccum


cleaner and the fireless cooker are not even mentioned. The efficient
kitchen devised in such an interesting and clever way has no place in
it. Its exclusive object is to suggest a satisfactory and workable
solution along modern lines of how to get one’s housework efficiently
performed without doing it one’s self367.

De acordo com Barker, uma dona de casa digna de tal nome deveria saber não
apenas escolher – e eram raros os bons empregados – mas saberia exigir um trabalho
bem feito. “Não há uma só dona de casa hoje que não tenha muitas experiências
amargas” em relação à sua empregada ou cozinheira. Fazia-se urgente uma reforma
em prol da dona de casa, mais do que da empregada, pois esta sempre poderia arrumar
outro tipo de emprego enquanto a primeira permaneceria com seus problemas
domésticos. Barker identificava diversos problemas a prejudicar esta difícil relação, e
o salário era o menor deles. As vantagens comparativas de outro tipo de trabalho –
como no comércio ou na indústria era várias e visíveis: a hora do trabalho doméstico
era mais longa, a empregada ficava sempre à disposição da patroa, não havia

                                                                                                                         
365 . Forty, Adrian. Objetos de desejo. Design e sociedade desde 1750. São Paulo, Cosac & Naify, 2007, PP. 111-2.
366 . The Modern Interior, p. 37.
367 . Barker, Clara Hélène. Wanted, a Young women to do housework, business principles applied to

housework. New York: Moffat, Yard & Company, 1915. Disponível em


https://archive.org/details/wantedayoungwom00barkgoog, última consulta em 13 de janeiro de 2017.

  178  
liberdade, vida social e a empregada era chamada pelo seu primeiro nome e não por
“senhorita” como nos outros empregos. Além disso, o termo “empregada” era
estigmatizado, portando um sentido de degradação368.

E empregada então vivia na casa de seus patrões, sob estrita vigilância. Por
que então, perguntava-se a autora, a dona de casa não adotava métodos empresariais
nesta questão? Por que permitia que suas empregadas domésticas vivessem em sua
casa? Por que consentia em abrigá-las às suas custas, a ter para elas um quarto,
banheiro, lugar para sentar e comer? Por que as deixava usar sua cozinha – com seu
gás – e sua lavanderia? Só por que suas mães, avós e bisavós assim o fizeram?369
Morando em sua própria casa, a empregada doméstica, segundo os conselhos de
Barker, deveria trabalhar oito horas por dia e seis dias por semana. Ao terminar seu
trabalho, deveria ir embora. As tarefas deveriam ser claramente definidas. O trabalho
doméstico não deveria constituir uma exceção a outras formas de trabalho. Feriados
deveriam ser observados, assim como o pagamento de horas extras. Esta era a dona de
casa moderna e seu modo de solucionar “a questão dos empregados”: praticando em
sua própria casa, sem a necessidade de qualquer legislação a respeito370.

Embora pareça diferente em conteúdo e abordagem, o manual de Barker


dialoga com aqueles expostos no terceiro capítulo. Em comum, o diagnóstico que
preconizava ser necessária uma força tarefa de modernização no espaço doméstico; de
distinto, as diversas ênfases: modernizar o espaço, exibir um gosto moderno ou
modernizar as relações de trabalho que aconteciam na casa? Assim, a depender de
quem enuncia e do contexto de recepção, os discursos a respeito do problema dos
empregados variou de uma relação fordista-trabalhista com a auxiliar a ser contratada
– e isso era visto como moderno – a uma mudança do espaço de modo a permitir à
dona de casa de classe média do hemisfério norte a viver sem ela, passando pelos
ganhos que só a tecnologia poderia propiciar – e isso também era moderno. Qual
fosse a escolha, isso demandava medidas de natureza diversa e uma reelaboração da
identidade da dona de casa. Se os manuais – incluindo os de profissionais
reconhecidas como Lina Bo Bardi e Charlotte Perriand fizeram parte desse
movimento – a própria arquitetura moderna buscou desenhar esse novo espaço, não
                                                                                                                         
368 . Clara H. Barker. pp. 14-15.
369 . Barker, pp. 37-8.
370 . Barker, p. 71.

  179  
apenas moderno mas sobretudo um cenário para uma vida moderna – qualquer que
fosse sua acepção.

Le Corbusier chegou a fazer uma charge a respeito das empregadas. Gropius a


mencionou em uma fala nos CIAM ao falar da mudança do papel feminino na casa e
na sociedade:

L’asserviement de la femme par l’homme disparaît. Les lois de la société lui


assignent les memes droits qu’à l’homme. Avec la disparition de nombreuses
fonctions domestiques, cédés par la famille à la production collective, la tâche
qui incombe à la femme se rétrécit. Aussi cherche-t-elle à trouver
l’accomplissement de son besoin naturel d’activité hors de la famille. Elle
prend pied dans le monde professionnel.”

“L’économie sociale, transformée de fond en comble par la machine, montre à


la femme combine les menus travaux de ménage sont irrationnels.”371

Na França, o tema dos empregados résidentes foi solucionado logo após a


Primeira Guerra Mundial, pois eles vão deixando de existir e mesmo para as famílias
abastadas o que se tinha era a figura da empregada doméstica que não mais reside na
casa dos patrões, o que tem impacto na planta das casas. Se doravante, a dona de casa
précisa se ocupar das tarefas, a cozinha, antes lugar da sujeira e das « pessoas sujas »,
pode se tornar um lugar higiênico e de higiene, e sair dos fundos da casa.372

Segundo Inês Perez, que se apóia no trabalho de Roger-Henri Guerrand, as


cozinhas hoje tão familiares são recentes. Durante todo o século XIX a cozinha mal
chegava a fazer parte dos projetos dos arquitetos para uma clientela burguesa. Era um
ambiente quente e inóspito. Na habitação operária e camponesa, por outro lado, a
cozinha era central, por ser o único espaço aquecido. Contudo, junto com o banheiro
(e não falaremos dele nesta tese) a cozinha foi o lugar onde se praticou (eu diria se
dramatizou) os ideais de modernização tecnificação e padronização da casa
moderna373. A transformação do espaço doméstico tem uma imensidão de dimensões
e uma delas é a mudança no modo de se projetar e construir. Nesse sentido, e
                                                                                                                         
371 . “Les bases sociologiques de l’habitation minimum à destination de la population industrielle des
villes”, tradução francesa da palestra proferida por Walter Gropius na reunião dos CIAM em Frankfurt,
1928. Arquivo CIAM, Zurique, consultado em julho de 2010.

372 Eleb, Monique. “Conforto, bem-estar e cultura material na França”. Lira, J. et alli, Domesticidade, gênero e
cultura material, 2017, op.cit, p. 162.
373 . El hogar tecnificado, op. cit. p. 72.

  180  
acompanho a autora, a cozinha foi o epicentro das transformações do espaço
doméstico. De qualquer modo, se a casa do século XX seguiu a do XIX em alguns
aspectos, não parece ter sido na cozinha, que passou a receber mais atenção. Segundo
Forty, a noção de que o lar deveria expressar beleza e virtude passou à idéia de que a
casa precisava ser fonte de saúde e bem-estar físico e a higiene trouxe a cozinha como
centro das atenções dos dois lados do Atlântico (Norte)374.

Assim, há uma ligação estreita entre a estandardização e massificação da


construção e novas propostas para novos espaços o que inclui, claro, os espaços de
trabalho, como cozinha e lavanderia dentro da casa. Os novos métodos de
gerenciamento da indústria na construção – nos países em que havia indústria
desenvolvida, o que não era absolutamente então o caso do Brasil – estimulou
arquitetos a novos experimentos. Foi o caso de Frank Lloyd Wright que a partir de
1911 investigou as possibilidades da pré-fabricação, incluindo os componentes de
uma cozinha.

As cozinhas econômicas já foram apresentadas na Exposição Universal de


1851 em Londres, com sucesso. Nos Estados Unidos, a primeira patente de uma
cozinha pronta e econômica foi apresentada como cozinha Oberlin, em 1833375.

Do lado das mulheres de classe média, representadas por Christine Frederick,


Lilian Gilbreth e Georgie Child376, dentre outras nos Estados Unidos, a proposta era
aplicar aos espaços de trabalho doméstico os mesmos princípios desenvolvidos pelo
engenheiro Frederick Taylor. Delas, aquela cuja influência atravessou o Atlântico foi
Christine Frederick. Não apenas ela escreveu o já mencionado The new housekeeping
(1912) como criou o que denominou “estação experimental”em sua própria casa no
estado de Nova York. Nessa Apple-croft Home Experiment Station ela fazia testes de
processos de preparo de comida e chegou a testar 1800 produtos diferentes. Seu livro
era chamado de “bíblia” por Margarete Schütte-Lihotzky, era leitura fundamental para
Erna Meyer e foi o grande divisor de águas para a taylorista francesa Paulette
Bernège. Se Lihotzky, como veremos, criou e produziu uma cozinha que se tornou

                                                                                                                         
374 . Objetos de desejo, op. cit. pp. 156-7.
375 . Ballent , A. & Liernur, F. La casa y la multitud. Vivienda, política y cultura en la Argentina moderna. Buenos
Aires, Fondo de Cultura Económica, 2014, p. 163.
376 . Georgie Child escreveu The efficient kitchen em 1914.

  181  
emblemática, Frederick e Bernège criaram esquemas de circulação do espaço de
trabalho da casa que visavam dar a este a mesma eficiência de uma fábrica.

Do outro lado da admiração pelo fordismo e por métodos racionais, também


na jovem União Soviética se discutia o lugar na cozinha na casa – no caso, fora da
casa, coletivizada. Na tradição marxista, a origem do atraso no mundo feminino era
seu confinamento na casa e no trabalho doméstico. Como Lênin escreveu, as
mulheres continuariam a ser escravas domésticas apesar de todas as leis, caso o
trabalho doméstico continuasse sendo feito em casa. A solução para ele e para
Alexandra Kollontai, assim como para diversas feministas e socialistas, estava na
abolição da cozinha individual. Foram feitos experimentos com cozinhas coletivas
como no Edifício Narkomfim, de Moiseï Ginzbourg e algumas hipóteses
desurbanistas, mas depois de 1930 a seção feminina (feminista?) do partido
comunista, Zhenotdel, foi extinta e sob o stalinismo, até mesmo por demandas
demográficas, se expandiu a idéia de que à mulher cabia não apenas a produção,
como a reprodução. Em suma, o retorno a uma noção naturalizada e essencializada do
feminino, não muito diferente da exarada em outros contextos totalitários377.

Em 1923 em Weimar, Alemanha, Benitta Otte e Ernst Gebhardt, da Bauhaus,


foram responsáveis pela cozinha da exposição Haus am Horn378. O livro de Frederick
havia sido traduzido para o alemão em 1922 e esta exposição, parte de uma mostra
maior organizada pela Bauhaus, foi uma das primeiras manifestações de planejamento
racional para espaços domésticos na Alemanha. O objetivo para Gropius era mostrar
ser possível obter o maior grau de conforto com a maior economia por meio das
melhores técnicas e da melhor distribuição do espaço379.

A COZINHA-LABORATÓRIO

                                                                                                                         
377 . Reid, Susan E. “The Krushchev Kitchen: domesticating the Scientific-technological Revolution.”
Journal of Contemporary History, SAGE Publications, London and New Delhi, Vol 40 (2), p. 292.
378 . A exposição Haus am Horn foi financiada pelo empresário Adolf Sommerland, o mesmo que já havia

encomendado uma casa a Walter Gropius, e seus objetivos eram apresentar os trabalhos da Bauhaus no
contexto de uma casa moderna, cujo objetivo era facilitar a vida de seus habitantes.
379 Les Arts Décoratifs, L’esprit Du Bauhaus. (catálogo da exposição homônima). Paris: Les Arts
Décoratifs/Fondation d’entreprises Hermes, 2016, p. 201.  

  182  
Ao enunciar o problema dos empregados, Walter Gropius, como já foi visto,
mencionou a inferioridade do trabalho individual da dona de casa, em meio a um
congresso no qual se debatia os desafios da habitação. A bibliografia sobre os CIAMs
tem o problema de ficar presa às falas dos arquitetos, ou melhor, às falas de alguns
arquitetos, ou aos textos conhecidos como “cartas”, geralmente fruto de debates e
querelas mascaradas sob a forma de um consenso. Quem ali concordou com Gropius?
Quem discordou? E, talvez mais importante, quem o ouviu? O CIAM se dirigia a um
público mais amplo do que os pares arquitetos? Essa reunião do CIAM, cuja abertura
foi no dia do crash da bolsa de valores de Nova York, teve especialistas não
arquitetos pela primeira vez, em um evento não aberto ao público em geral.380

Provavelmente foi nessa condição de especialista que a belga Angeline


Japsenne, secretária geral das Ligues ouvriéres féminines chrétiennes compareceu ao
referido congresso de Frankfurt. No mesmo ano ela publicou o artigo “La Maison
minimum” na revista La femme Belge, mostrando o quanto ficou impactada pelo
discurso dos arquitetos e enfatizando a necessidade de se introduzir em seu país novas
habitações racionais e confortáveis. A habitação mínima pareceu então uma boa
proposta para a liga, cujo objetivo era treinar mulheres trabalhadoras nos afazeres
domésticos. “Il s’agit d’abord d’aménager une cuisine, où les travaux menagers
puissent s’acomplir d’une façon higyenique, amenant une fatigue normale de la
femme ménagere, mais non un émuissement que leur nature ne justifie pas.”381

Em seu artigo publicado no ano seguinte, fazia um apelo: que os arquitetos


consultassem a dona de casa antes de fazerem seus projetos. A experiência do usuário,
no caso a usuária, de quem de fato estabeleceria relações de ordem prática e simbólica
com aquele espaço, para diversas mulheres, como veremos, parecia uma parceria
profícua.

Segundo Gwendolyn Wright, entre as décadas e 1910 e 1920 nos Estados


Unidos a dona de casa passou a trabalhar sozinha em sua cozinha. O número de
empregados domésticos caiu pela metade e em sua maioria passaram a ser diaristas,
geralmente mulheres negras casadas e não mais “criadas” que dormiam na casa.
Ainda assim, nenhum construtor cogitou abrir a cozinha para a casa e terminar com o
                                                                                                                         
380 . Mumford, Eric. The CIAM discourse on urbanism, p. 34.
381 . apud Coudenberg e Heynen, p. 42.

  183  
isolamento da dona de casa neste recinto. Ao contrário, a cozinha foi remodelada:
menor, bem equipada, planejada para uma vida doméstica científica que prescindia do
uso das empregadas, a cozinha não era mais um lugar para folguedos com as crianças
ou para se receber visitas dos vizinhos: era um laboratório doméstico382.

Para Mary Mc Leod, em nenhum domínio da arquitetura moderna a mulher foi


influente como na cozinha. Por muito tempo os arquitetos ignoraram esse espaço
como passível de projeto: era considerado utilitário, lugar para esposas e empregados.
Isso começou a mudar na virada de 1920/30, quando as exposições de arquitetura
começaram a exibir cozinhas-modelo e as revistas a publicar artigos a respeito de
projetos de cozinha383. Para além de ter sido o espaço onde as mulheres –
profissionais ou não, arquitetas, designers, reformadoras sociais – opinaram e agiram,
o que mais a cozinha pode dizer de dinâmicas sociais mais ampliadas? A cozinha
urbana, moderna, nada mais é do que um espaço separado da casa, com materiais
unificados, tudo num quadrado ou outra forma retangular, medidas padrão e alguns
equipamentos elétricos. Se assim é, por que então dirigentes russos e soviéticos
perderiam seu precioso tempo em plena guerra fria para falar de ... cozinhas, como
veremos adiante? Por que motivo os Salons d’arts ménagèrs de Paris eram assunto de
governo? Concordo aqui com Oldenziel e Zachmann, quando afirmam que o foco no
domínio doméstico ajudou a ancorar hierarquias tradicionais de gênero nas junções
históricas com a ideologia socialista, o movimento feminista e as emergências da
guerra que mudaram fundamentalmente os papéis das mulheres. Assim,
especialmente durante a guerra fria, a cozinha se tornou uma arena política das mais
candentes384.

Com o século XXI já em sua segunda década, estamos tão habituados a uma
casa com energia elétrica e água encanada – para não falarmos em outras facilidades
eletrônicas – que corremos o risco de perder a medida desse impacto e sua incidência
no mundo doméstico. Na Inglaterra, pela primeira vez se gerou eletricidade para
venda em 1881 e a Electrical Development Association foi criada em 1919; na década
seguinte suas campanhas publicitárias tinham como alvo as mulheres. Primeiro as

                                                                                                                         
382 . Building the dream, p. 172.
383 .”Domestic reform and European Modern Architecture: Charlotte Perriand, Grete Lihotzky, and
Elizabeth Denby” in Modern women, p. 180.
384 . Ruth Oldenziel & Karin Zachman, Kitchens as Techonology and Politics: an introdution.” P. 3.

  184  
donas de casa de classe média, mas a partir de 1930 também as mulheres das classes
trabalhadoras passaram a ser vistas como consumidoras em potencial. As novidades
propagandeadas eram água quente e iluminação. Ao reconhecerem as possibilidades
da energia elétrica para a casa, grupos de mulheres passaram a debater seus usos,
especialmente as possibilidades que esta trazia de diminuição de trabalho. Mulheres
de classe media fundaram a Women’s Engineering Society (WES) em 1919 e logo
depois uma dissidência, a Electrical Association for Women (EAW), em 1924385.
Como se fosse o início de uma nova era, eram freqüentes descrições prenhes de
otimismo, quase uma milenarismo:

Assim como nossas fábricas se organizaram para produzir com rapidez e


eficiência mediante o uso de máquinas controladas pelo homem, nossos lares
se transformarão para funcionar suavemente com a ajuda da eletricidade, de
tal forma que o trabalho envolvido em limpar, aquecer, cozinhar, lavar e
outras tarefas domesticas será realizado por um auxiliar elétrico. A energia
assim liberada pode ser devotada ao gozo da vida familiar à educação, ao
cultivo da musica, das artes e das outras recreações benéficas para as quais um
grau de liberdade é essencial. O lazer deixará de ser um monopólio dos
abastados e se estenderá, até tornar-se um bem de todos386.

Susan Worden aborda o impacto da intervenção dessas mulheres organizadas


no processo de se projetar os usos da eletricidade, sugerindo que, além de olharmos –
como foi feito ao longo desta tese – as mulheres pioneiras, prestemos também atenção
nos grupos “anônimos” e na participação coletiva de mulheres nesse tema, mesmo
quando pareciam agir pressionadas apenas pela esfera doméstica. A WES foi fundada
pela militante sufragista Lady Parsons, cujo marido era o inventor da turbina a vapor
utilizada para gerar eletricidade387. Como ela, as primeiras associadas eram de classe
média alta, com pais, irmãos ou maridos engenheiros. Algumas delas haviam
trabalhado como supervisoras de fábricas de munição durante a guerra e perderam
seus postos a partir de 1920. Outras chegaram a estudar engenharia e a WES ganhou

                                                                                                                         
385 . Suzette Worden, “Powerful women: Electricity in the home, 1919-40”, p. 131.
386 A. G. White, The all Electric Age, apud Forty, op. cit., p. 357.
387. A primeira-secretária e depois presidente da WES assim descreveu as primeiras interessadas: “women

for whom the Great War had meant emancipation, women for the most part who by the 1920 thought
they were now better fitted for life outise the home, and they could no longer be convinced that their
sphere should be so restricted.”Apud Worden, op. cit., p. 134.

  185  
algum reconhecimento em 1925 ao organizar a conferência “Women in Science,
Industry and Commerce” em Wembley em 1925.

A dissidente EAW publicou uma brochura, Electrical Age for Women, que se
tornou bastante popular. Contudo, o mais interessante são os momentos em que a
EAW agiu como mediadora entre a indústria e o consumidor. E 1927 organizaram
uma discussão sobre os fogões elétricos por meio de questionários que avaliavam
onze tipos de fogão. As mulheres que responderam aos questionários pediram grelhas
maiores, placas de aquecimento e outras sugestões que chegaram a ser incorporadas
em 1934. Cinco anos depois um panfleto intitulado The Design and Performance of
Domestic Electrical Appliances, publicado pela EAW, sugeria que os fogões tivessem
cantos arredondados, alguns itens de segurança que ajudassem a prevenir incêndios
em casas acarpetadas, e pediam que os aspiradores de pó não fizessem tanto
barulho388. A partir de então as associações e empresas passaram a prestar muita
atenção no planejamento das cozinhas, e a observar exemplos norteamericanos,
especialmente o trabalho da engenheira e psicóloga Lilian Gilbreth; em 1932
publicaram um relatório intitulado The Kitchen Practical e para popularizar suas
demandas financiaram o filme Motion Study in the Home em 1936. Certamente
inspirado pelos trabalhos do casal Gilbreth389, o filme mostrava uma família
preparando seu café da manhã pelos métodos tradicionais e pelos métodos dos
estudos de movimentos, que mostrava uma economia de energia por meio de três
funções interligadas: a comida guardada na geladeira e em armários, os alimentos
preparados em um fogão, uma bancada e um lugar onde era servido, e uma área de
limpeza com água quente e corrente390. Mas o passo mais ousado da EAW foi
planejar e equipar uma casa modelo projetada pelo arquiteto Adrian Powell, dirigida a
uma família de classe média. A casa, em estilo modernista com teto plano, foi
construída em Bristol em 1935 e em um mês foi visitada por vinte mil pessoas. Suas
novidades incluíam aquecimento, água quente e frigorífico. Além disso, foi admirada

                                                                                                                         
388 . Idem, p. 44.
389 . Lilian Gilbreth chegou a protagonizar filmes onde exibia sua rotina doméstica organizada, em uma
família com doze filhos.
390 . Worden, op. Cit., p. 144.

  186  
por ser fácil de limpar, pela ausência de janelas emolduradas, balaustrada e outros
detalhes que juntam pó391.

Na América do Norte, já em 1902 os leitores de The House Beautiful leram


um artigo de Isabell McDougall, “An Ideal Kitchen”, que também comparava a
cozinha a um laboratório: “Tudo em seu templo está limpo, com a limpeza científica
de uma cirurgia, que sabemos estar muito além do mero asseio da dona de casa392.

O livro de Christine Frederick insistia que as cozinhas fossem usadas


estritamente para o preparo de refeições, dai a importância de superfícies contínuas,
altura correta, luz e ventilação adequada. Ela chegou a propor uma cozinha nos
fundos, separada da casa, um laboratório no qual a dona de casa, vestida de branco e
sentada em um banco do qual poderia ter tudo à mão, deveria passar a maior parte do
seu tempo. Ao separar a cozinha do resto da casa ela comparava aos espaços não
domésticos, como hotéis e clubes masculinos, que há muito tinham afastado as
cozinhas dos outros aposentos393.

A abordagem de Frederick visava elevar o status da mulher, que poderia ser


um trabalhador eficiente, o equivalente a um cientista em seu laboratório, com
responsabilidades gerenciais. Sua defesa do gerenciamento científico na casa teve
forte impacto no desenvolvimento dos interiores modernos, como vimos no terceiro
capítulo, especialmente nas cozinhas: proposta que confirmava a idéia da casa como
uma arena dominada pela racionalidade, o que abria espaço para um novo modo de se
pensar o equipamento doméstico, os móveis e os arranjos espaciais domésticos.
Diversas designers mulheres, incluindo Aino Aalto, Lilly Reich e Salme Setäla
abraçaram tais idéias e propuseram cozinhas modelo394. Uma cozinha organizada,
escreveu Setäla em seu livro sobre mobiliário para cozinha, “é como um pequeno
laboratório, que poupa trabalho e assim proporciona mais tempo de lazer para se usar
de acordo com o desejo de cada um, e dá o prazer do trabalho. Uma cozinha-
                                                                                                                         
391 . Idem,p. 145.
392 . Citado por Gwendolyn Wright em Building the Dream. The social history of housing in America, p. 169-70.
393 . Gwendolyn Wrigh. Building the dream: a social history of housing in America. p. 129. Claro que não podemos

colocar no mesmo contexto a tradicional separação da cozinha na casa colonial brasileira.


394 . Mary Mc Leod. “Domestic Reform and European modern architecture: Charlotte Perriand, Grete

Lihotzky, and Elizabeth Denby”. P. 181. Aino Aalto (nascida Marsio) (1894-1949) foi uma arquiteta e
designer finlandesa que foi trabalhar com Alvar Aalto e com ele se casou, tornando-se sua colaboradora;
seu trabalho mais conhecido é em vidro, especialmente copos. Salme Setälä (1894-1980) trabalhou como
arquiteta do estado na Finlândia.

  187  
laboratório racionalizada não é um capricho da moda, mas a demanda de uma era”.395
A fala de Setälä estava sintonizada com a do arquiteto tchecoslovaco Karel Teige
(1900-1951), para quem a cozinha deveria se tornar um laboratório químico, uma
oficina modelo, o aposento da casa mais racionalizado e melhor projetado.396

A COZINHA DE FRANKFURT

Segundo Mary Mc Leod, o interesse de Grete Lihotzky por projeto de cozinha


começou nos anos 1920, quando ela foi trabalhar com Adolf Loos397. Nessa
circunstância ela estudou cozinhas como parte da proposta de uma residência de baixo
custo e propôs uma cozinha concreta, a ser montada numa fábrica e suspensa por uma
grua. Impressionado por sua pesquisa, Ernst May, assim que nomeado arquiteto em
Frankfurt em 1925, a convidou para trabalhar com ele. Em Frankfurt, como em Viena,
sua preocupação era com uma casa barata para os trabalhadores. Assim como May,
ela tinha a ambição de criar uma nova Wohnkultur, que incluía lazer e atividades
esportivas: sua cozinha, como sua arquitetura, refletia a respeito de uma vida
igualitária.398

A cozinha de Frankfurt (Fig. 45), produzida industrialmente e instalada em 11


mil apartamentos de trabalhadores, revelava uma cisão, que em outras reformadoras
sociais aparecia de maneira mais matizada: a cozinha era apenas para o trabalho, visto
como um fardo para a dona de casa. Outros lugares da habitação poderiam oferecer
conforto e relaxamento – e a segregação dos odores e ruídos do lugar de trabalho
deveria garantir a qualidade dos espaços para se relaxar. Segregação em termos, pois
a sala e a cozinha dos apartamentos de que May projetou e construiu em Frankfurt
eram separadas por uma porta de correr. Lihotzky buscou os espaços de eficiência em
                                                                                                                         
395. Keittio¨n sisustus [Furnishing the Kitchen ] in 1931 (pp. 13–14). Apud Kirsi Saarikangas, “Displays of
the Everyday. Relations between gender and the visibility of domestic work in the modern Finnish kitchen
from the 1930s to the 1950s”. p. 161.

396 . Kinchin, J. E O’Connor, A. Counterspace, New York: MoMA, 2011, p. 11.


397 . É possível que McLeod se refira aos conjuntos Leopold-Winarsky-Hof e Otto-Haas-Hof, construídos
em Viena entre 1924 e 1926, projetos para a conhecida “Viena Vermelha”, realizado por um grupo que
incluía Peter Behrens, Josef Hoffmann, Oskar Wlach, Loos e Grete Lihotsky (que ainda era solteira).
Zednicek, Walter. Arkitektur des Roten Wien. Wien, Grasls Drick & Neue Medien, 2009, PP. 180-181.
398 . Mary McLeod, op. cit, p. 181. A Cozinha de Frankfurt, assim como seus métodos de elaboração de

projeto, foi citada por Catherine Bauer em seu Modern Housing, que tanto inspirou o trabalho de Carmen
Portinho.

  188  
cozinhas profissionais pensadas para homens, como as de navios e estações de trem,
espaços compactos onde duas ou três pessoas poderiam cozinhar para centenas. E
além disso, o livro de Frederick, New Housekeeping, traduzido para o alemão nos
anos 1920399 foi descrito como sua “bíblia”, como já vimos400. Contudo, ao contrário
de Frederick, Grete Lihotzky estendia a racionalização para a construção – afinal era
uma arquiteta – e concebeu uma cozinha pensando em custos reduzidos, ao alcance de
tantos quanto possível e, para atingir esse objetivo, trabalhou com industriais e grupos
de mulheres.

Ela projetou três modelos de cozinhas: dois maiores que acomodavam


empregados – um ou dois – e a pequena, a conhecida Cozinha de Frankfurt, a
princípio denominada Tipo 1, a mais barata e popular delas. Esta media 1,9m por
3,44m, tão pequena que, sentada num banco pivotante (lembremos que Charlotte fez
cadeiras e bancos pivotantes e que a inspiração para os mesmos vem dos escritórios
norteamericanos) uma pessoa poderia realizar uma série de tarefas apenas estendendo
as mãos401. A casa de Walter Gropius em Dessau, mobiliada por Marcel Breuer, já
apresentara uma cozinha organizada de acordo com os princípios da fábrica402. Cada
cozinha vinha completa com a banqueta giratória, fogão a gás, uma tabua de passar
retrátil, luminária de teto com altura regulável e uma gaveta de lixo removível403. Por
incrível que pareça aos olhos de quem escreve e lê hoje, esta era a cozinha moderna.

Como era de se esperar, a maioria dos arquitetos modernos apreciou o


trabalho. Mas a reformadora Erna Meyer o criticou por ser rígida demais e pequena
para duas pessoas. Mas Ernst May sabia promover seu trabalho. Na conferência de
1929 em Frankfurt ela foi exibida como que a resumir a idéia de habitação mínima.
Em 1930, atendendo a um pedido do governo soviético, May levou uma “brigada”
para implementar os resultados do CIAM de Frankfurt nas novas cidades industriais
da União Soviética, e Schütte-Lihotzky fez parte do grupo. Também Lilly Reich
abraçou as idéias de Frederick e Meyer. Em 1931, na mostra Die Wohnung unserer
Zeit (Morar em nosso tempo), ela apresentou um “apartamento para uma pessoa” cuja
                                                                                                                         
399 . Ver capítulo III.
400 . A leitura a convenceu de que a luta da mulher pela independência econômica e pelo desenvolvimento
pessoal queria dizer que a racionalização do trabalho domestico era uma necessidade absoluta. Counterspace,
p. 20
401 . Mc Leod, op. Cit., p. 182
402 . Penny Sparke, Modern Interior, p. 11.
403 . Counterspace, p. 20.

  189  
cozinha, de tamanho reduzido, ficava dentro de um armário – ou seja, desaparecia de
este fosse fechado. Essa cozinha-gabinete foi produzida na Alemanha pelo empresário
Otto Kahn404.

Na França este debate foi parte das atividades do Salon des arts menagers, ou
Salão de Arts Domésticas.

VIDA DOMÉSTICA EM EXPOSIÇÃO

Paris, 1925. Em meio a debates políticos e econômicos, rescaldo da Primeira


Guerra, da figura feminina emergindo como garçonne e outras novidades, havia em
intenso debate a respeito da domesticidade, incluindo nela o papel da mulher na casa,
seu uso e seus arranjos, debate que ia do funcional ao decorativo, passando pela
discussão do gosto – e do que seria um gosto moderno.

Em 28 de abril desse ano foi inaugurada a Exposition des Arts Décoratifs et


Industriels Modernes que, dentre outros feitos, evidenciava uma tensão entre os
“ismos” das vanguardas – depois do retorno à ordem – e o comércio de objetos
industriais. Um dos volumes de sua enciclopédia começa salientando que as artes
decorativas deveriam ser modernas por seu programa, mas suas fontes de inspiração
não se encontravam no modernismo – afinal, argumentavam, a geometria não era
exatamente uma novidade. E mais: que o estilo de uma época era marcado por todas
as suas produções. Assim, seria excessivo pretender que, para ser moderna, a arte
devesse se limitar às visões atuais405. Talvez este contencioso não se apresentasse com
esta retórica se o evento tivesse ocorrido na data esperada, 1915. Se a exposição de
1900, também em Paris, consagrou o Art Nouveau, foi um bazar onde se viu poucos
objetos industriais e pouco espaço para a modernidade representada, por exemplo, por
Francis Jourdain, tampouco para as artes industriais modernas, pouco representadas
na Esplanada dos Invalides. Em 1925, ainda que a bibliografia da arquitetura moderna
enfatize o oposto, o pavilhão do Esprit Nouveau, de Le Corbusier, Pierre Jeanneret e

                                                                                                                         
404 . Counterpace, p. 24.
405 . Encyclopédie de l’Exposition, op. cit., pp.. 10-11.

  190  
Amnedé Ozenfant foi ignorado pelas entidades oficiais, por boa parte do público,
cumprindo no entanto sua missão de fazer representar as vanguardas modernas: “Com
o teatro de Perret, os dois pavilhões de Robert Mallet-Stevens e o Pavilhão Soviético,
a villa do L’Esprit Nouveau é o único edifício da exposição que poderá ser
qualificado de moderno, isto é, que cumpre a sua missão, tanto do ponto de vista
406
prático como estético”, escreveu um crítico na revista L’Art Vivant . Ao mesmo
tempo, Auguste Perret afirmava que onde existia arquitetura não havia lugar para a
decoração; Perret, mestre de Le Corbusier, assim como os colegas soviéticos,
autodenominados construtivistas, pareciam ser o ruído que na ocasião pouco
incomodou.

A exposição de 1925 exclusivamente exibia edifícios diversos e objetos em


conjuntos (ensembles), e embora nada ali estivesse à venda, os interiores eram
importantes para que a audiência visitasse os edifícios por dentro. De certo modo
parte do nascedouro do consumo visual, esta mostra também reforçava a idéia de que
em Paris o consumo de massas adquiria uma escala espetacular. Na visão de Walter
Benjamin, estas mostras se convertiam em lugares de peregrinação nas quais o fetiche
da mercadoria se convertia em entretenimento das massas. Se era uma vitrine para
artistas e comerciantes, era para a cidade e o pais. “Convidamos todas as nações”,
avisava seu catálogo, enfatizando que um dos objetivos da mostra era defender a
identidade e a supremacia dos bens de consumo produzidos na França diante de um
mercado internacional. O contexto era do consumo, menos do que da produção: ali
não eram exibidas as máquinas e os aparatos tecnológicos, como em exposições
anteriores, mas o que o visitante percorria era uma rua de lojas. A ser celebrado,
poucos anos depois do fim da guerra, era o renascimento cultural e comercial da
nação.407

Por essa feira, grande bazar, passaram quinze milhões de visitantes. O papel de
Maurice Dufrène, da Société des Artistes Décorateurs, na exposição foi relevante: era
seu projeto uma fileira de pequenas lojas de jóias e ornatos que transformou a ponte
Alexandre III em uma espécie de Ponte Vecchio florentina. Não apenas essa ponte

                                                                                                                         
406 . Brunhammer, Yvonne. “1925, ‘a maratona das artes da casa’ “. ArtDéco 1925. Fundação Calouste
Gilbenkian, 2009, p. 25.
407. Gronberg, Tag. “Paris 1925: consuming modernity”. Benton, C., Benton, T. e Wood, G. (eds). Art deco

1910-1939. New York, Boston e Londres, Bulfinch Press, 2003, p. 157.

  191  
conectava os dois lados da exposição como enfatizava o caráter de consumo efêmero
e da relevância das butiques de luxo naquele cenário. Se a exposição de 1989 teve
como ícone a Torre Eiffel, esta teve os efêmeros bens de luxo. Em 1925 as lojas
parisienses eram tão importantes para o comércio como para o planejamento da
cidade, era uma manifestação da reconstrução do pós-guerra408. Além disso essa rua
de lojas na ponte trazia a produção artística de algumas mulheres, como a artista
plástica Sonia Delaunay, cuja loja Simultanée ali exibia seus casacos409. Havia na
mostra um forte destaque para os bens de luxo – ourivesaria Christofle, cristais
Baccarat e Lalique – que tinham suas lojas na Esplanade des Invalides. Mas nessa
disputa comercial, de visibilidade o destaque foi para o quarteto das grandes lojas de
departamentos já mencionadas, que desde a belle époque recrutava estudantes
talentosos de artes decorativas.

Contudo, as mostras de decoração e o consumo de objetos luxuosos não dão


conta da cena. Nessas décadas do entreguerras o debate que acontecia nos manuais
femininos – um gênero em ascensão – e posteriormente nas revistas especializadas
desenhava uma dona de casa ambígua, com e sem empregados, moderna mas muitas
vezes tradicional a respeito do lugar na mulher e seus deveres. Tais embates foram
espetacularizados no mundo das exposições, que depois da emblemática Art-déco
de1925, tornou-se a arena para o debate a respeito do espaço da casa e para as
divisões de gênero dentro desta.

No pólo menos artístico e mais voltado ao cotidiano da mulher comum, temos


as mostras de Artes Domésticas, que no Brasil acontecem bem mais tarde com a feira
Utilidades Domésticas (UD) que tinham lugar em São Paulo nas décadas de 1960-70.
Na França das primeiras décadas do século XX, a noção de arts ménagers era mais do
que a expressão local de um taylorismo doméstico. Inscrevia-se em um contexto
artístico e expositivos que, com a fundação do Musée National des Arts et Traditions
Populaires em 1937410, procurava elevar não apenas objetos como práticas cotidianas
antes excluídos do mundo das artes. Como um saber, artes domésticas e tradições
populares aproximavam-se, especialmente devido ao interesse dos estudiosos dessas

                                                                                                                         
408 . Idem, pp. 157-8,
409 . Idem, ibidem. p. 163.
410 . O museu foi criado em 1937 pelo etnólogo Georges Henri Rivière, (1877-1985) que o dirigiu até 1967.

Funcionou até 2005.

  192  
últimas pelos objetos domésticos franceses. A influência americana e alemã no
redesenho da casa, especialmente da cozinha, foi limitada.

O Salon des Arts Ménagers, criado em 1923 (funcionou até 1983) pretendia
dar às classes populares instruções e regras quanto ao manejo da casa, normas que
iam das virtudes morais do lar ao gosto – ou melhor, ao que seria bom gosto.

Jules-Louis Breton (1872-1940), ministro da higiene em 1920, foi o criador


do salão. De origem burguesa, mas simpatizante comunista, definia-se como um
homem da ciência, mas voltado à vida cotidiana, familiar, à higiene – preocupações
presentes na fundação do salão em 1923. A primeira mostra foi intitulada Salon des
Appareils Ménagers, o que queria dizer todos os aparelhos eletrodomésticos de
limpeza, aquecimento, lavagem de roupa, cozinha, em suma tudo que pudesse
simplificar, facilitar e mesmo tornar mais agradável os múltiplos trabalhos da vida
domestica.411 Havia nesse primeiro salão uma dimensão de espetáculo, segundo os
relatos de que sobre um fundo musical os aspiradores funcionavam, os motores
estavam em rotação, a água fervia, havia gás nos radiadores – algo quase
coreográfico. E nem era preciso para tanto viajar até os Estados Unidos! Disputando
as vantagens comparativas da tecnificação do lar estavam a Société du gás de Paris,
exibindo sua cozinha moderna com forno e fogão movidos a gás, e de outro a Société
pour le dévelopement des applications de l’electricité, com aparelhos de pequeno
porte. Todavia, o que mais chamou a atenção do público foram as máquinas de lavar
roupa.412

O interlocutor oculto era os Estados Unidos: antes se acreditava que seria


preciso viajar à America para ver as máquinas mais engenhosas a serem introduzidas
no lar, dizia o catálogo, esses aparelhos que parecem ter surgido de um outro mundo,
ou de um sonho. As lavadoras que tanta atenção atraíram eram de todo tipo: pequenas
para a casa, grandes para hospitais e hotéis, com ou sem aquecimento, com
acabamento em madeira ou metal, com motor ou com manivela, de todos os preços.

Depois do sucesso dos salões de 1923 e 1924, o salão dos eletrodomésticos


mudou para Salon des arts ménagers, termo que foi definido como um conjunto de
                                                                                                                         
411 . Jacques Rouaud. 60 ans d’arts ménagers. Tome 1: 1923-1939, le confort. Paris, Éditions Syros Alternatives,
1989, p. 16.
412 . Rouaud, op. cit. pp 20-22.

  193  
conhecimentos que permitem manter a casa de modo adequado. Em 1925, a proposta
de Breton era de transferir o salão para o Grand-Palais, mas havia a concorrência da
exposição art-déco, e o salão veio a se realizar no ano seguinte. Houve ênfase no
termo “arte”: arte no sentido de conjunto, do bom emprego dos recursos, arte como o
conjunto de pratos, panelas e utensílios necessários à casa; arte como método e
ordem, como um estilo de vida cotidiana em uma sociedade em mudança. Para
Breton, a art ménager ganhou uma dimensão inédita: “diz respeito não só à
organização da casa, mas de toda célula de habitação: conteúdo, continente, ambiente;
expressa aspirações novas como a liberação da mulher, higiene, conforto, beleza e
lazer”, e foi dicionarizado no Nouveau Larousse Universal.413Arte, mas dizia respeito
a economia doméstica, à esfera privada, a procedimentos e ordem que poderiam
poupar recursos. Para Breton, tratava-se de definir um novo estilo de vida cotidiana
em uma sociedade em mudança, pois ciência doméstica dizia respeito à casa, célula,
ambiente, conteúdo, continente, possuía dimensões inesperadas414. Não por acaso, a
publicação de Charlotte Perriand analisada no terceiro capítulo se intitulava L’art
d’habiter.

Dentre as tantas mudanças experimentadas pela sociedade francesa no


entreguerras, destaca-se a participação crescente da mulher na indústria. Livros como
La Garçone, de Victor Margueritte foram mal recebidos e uma pesquisa de 1927,
conduzida pelo jornal L’art menager revelou que as pessoas temiam que em poucos
anos mulheres se vestiriam como homens e teriam empregos similares. Um dos focos
de tal temor era a possibilidade da mulher abandonar o foyer, a casa. Este,
argumentavam os proponentes do movimento natalista, era o lugar da mulher. Lugar
da mulher, dona de casa em meio à crise dos empregados, assunto da imprensa
francesa e inglesa nas primeiras décadas do século XX. Uma casa racionalizada talvez
ajudasse a manter a mulher casada em casa, resguardada e distante dos perigos do
espaço público.

No entreguerras o movimento pela racionalização científica do trabalho, já


bastante avançada nos EEUU, tornou-se um debate da Europa, que no entanto parecia
mais afeita aos escritos de Hery Fayol e seu Administration industrielle et genèrale do

                                                                                                                         
413 . Rouaud, p. 45.
414 . Apud Rouaud, op. cit., p.45.

  194  
que aos escritos de Taylor. À exceção da FIAT de Turim, a indústria automobilística
européia ainda produzia carros de luxo quase que artesanalmente415. Ainda assim, o
movimento pela racionalização do trabalho tinha como seu modelo a usina e métodos
industriais que incluíam o melhor uso do espaço e de certo modo, o mesmo raciocínio
foi transferido à esfera doméstica. O movimento de racionalização da casa, tema
maior do Salon des Arts Ménagers, buscava recriar esse ambiente produtivo na esfera
doméstica, que passa então a ser pensada como ambiente de trabalho.

A modernização da casa parecia uma resposta a tal crise, um modo de se


substituir a doméstica e de liberar a mulher desse trabalho narrado como degradante.
Para tanto, a casa deveria ser mecanizada e a máquina feminizada. Os cuidados da
casa passaram a ser chamados de arts ménager e também de science domestique e
assim se promovia a indústria de eletrodomésticos. Em 1926, ano em que passou para
o Grand-Palais – antes funcionava no Champ de Mars – recebeu mais de 300
expositores e 145 mil visitantes. No ano seguinte lançaram a revista oficial do Salão,
a já mencionada L’art menager, assim como concursos como a melhor dona de casa.
A partir de então os concursos se multiplicaram – de bebê mais bonito, de casa de
família – assim como as atividades do salão: curso de culinária, concertos,
conferências sobre conforto rural e, o que para esta tese é o mais relevante, mobiliário
e decoração.

A mudança do nome do salão atesta também a insuficiência da máquina por si


só para a economia de tempo, dinheiro e energia. Era preciso que tempo, dinheiro e
energia fossem bem conduzidos: quarenta anos depois da mulher norteamericana, a
francesa começava a descobrir os benefícios da organização e do taylorismo. A partir
de 1927, Jules-Louis Breton e Paulette Bernège fizeram do salão um lugar de
divulgação e vulgarização das idéias de Christine Frederick. Nesse mesmo ano,

                                                                                                                         
415 . Adiro totalmente ao comentário de David Harvey sobre práticas intelectuais e ideológicas quanto à
racionalização do trabalho: “Foi esse tipo de história intelectual e política confusa que fez Lênin louvar a
tecnologia de produção taylorista e fordista enquanto os sindicatos da Europa Ocidental a recusavam; Le
Corbusier aparecer como apostolo da modernidade enquanto se aliava a regimes autoritários (Mussolini
por algum tempo e o regime de Vichy na França); Ebenezer Howard forjar planos inspirados no
anarquismo de Geddes e Kropotkin – apenas para serem apropriados por desenvolvimentistas capitalistas
– e Robert Moses começar o século como ‘progressista’ político (...) e terminar como o ‘corretor do poder’
que ‘levou o moedor de carne’ para o Bronx em nome da automobilização da América.” Condição pós-
moderna, São Paulo, Ed. Loyola, 1989, pp. 122-3.

  195  
Frederick visitou Paris e o Salão a convite da própria Bernège, onde proferiu uma
conferencia intitulada “l’art menager”.

Segundo Rouaud (que foi secretário dos SAM pouco antes de sua extinção nos
anos 1980), a recepção do salão não era unânime. Relativamente aceito pela imprensa
“bem pensante”, esse evento imaginado por um socialista serviu menos a causas da
esquerda do que ao socorro de uma classe privilegiada que vivia uma crise416.

Talvez isso explique por que em 1924 a decoração compareceu ao lado das
máquinas. Com isso, o evento cresceu: dos 130 expositores em 1923 passou a 465 em
1930. A partir de 1926 passou a ter palestras, a abrigar um Congresso de Higiene,
exposições de artesanato e mobiliário, tudo em nome da “educação pública”. Assim,
não causou espanto a decisão do Ministro da Instrução Pública e das Belas-artes
Edouard Herriot que em 1927 decidiu organizar, dentro do salão, uma semana de
cursos de culinária, assim como um premio em um concurso de culinária e de
trabalhos domésticos durante o salão.

O passo seguinte foi a entrada no salão, a partir de 1932, do Sindicato dos


Negociantes de Objetos de Arte. Ao lado disso, menções aos arquitetos Le Corbusier
e Pierre Jeanneret. Se essas menções parecem deslocadas de um certo retorno ao luxo
e ao conforto que parece terem adentrado o salão nas década de 1930, isso se deve
certamente à parceira do Salão com a recém-criada UAM – Union des Artistes
Modernes – em 1929. A UAM, dissidência da Société des Artistes Décorateurs
(SAD), era mais afinada com novas tendências, novos materiais, e expressava a
convicção de que ”l’art moderne est veritablement social”, o que certamente
correspondia às idéias de Paul Breton, filho do fundador, que agora estava à frente do
Salão. Mas após os primeiros anos de existência, a UAM ainda padecia da
incompreensão do público. Uma das saídas para sua melhor publicização foi a
publicação de um manifesto, Pour l’art moderne, cadre de la vie contemporaine.
Outra foi se unir ao bem-sucedido grupo das arts menagers.

PAULETTE BERNÈGE

                                                                                                                         
416. Rouaud, op. cit., p. 57.

  196  
Ao lado de Jules Breton, o destaque dos salões era Paulette Bennège (1896-
1973), formada em filosofia e criadora da Ligue d’Organization Ménagère417 em
1923 em Nancy, assim como da École de Haut Enseignement Ménagère em Paris em
1930. A partir de 1923 foi a editora da revista Mon chez moi, mas também publicou
em periódicos como Art Ménager e Éducation ménagère. Em 1924 ela fundou a
Ligue d’organization ménagère e desde seu livro pioneiro Si les femmes faisaient les
maisons, Bernège se lançou em uma espécie de cruzada que visava, ao tornar a casa
mais eficiente, liberar a mulher, pelo menos parcialmente, do fardo de cuidar desta.
Nesse livro, Bernège provocava os arquitetos e sua relação de exterioridade com a
casa, mostrando como a falta de planejamento no espaço interno poderia causar à
dona de casa um sobre-trabalho em gestos, passos, distâncias percorridas no interior
do lar. Ao longo de sua carreira Bernège publicou catorze livros, todos ao redor
destes temas. O mais conhecido, De la méthode ménagère, foi reeditado até 1969,
uma façanha para um livro nesse tema escrito em 1928.

Segundo Martine Martin, essa movimentação promovida pelo salão e


especialmente pelas publicações visava valorizar e até mesmo conferir um ar
profissional ao trabalho doméstico, tornado-o compatível, conveniente à mulher
burguesa de então. Em outras palavras, buscava responder novas inquietações de
gênero e classe. Ou seja, a racionalização não se voltava a qualquer mulher e sim à
burguesa, essa que parecia ameaçada pelo desaparecimento do empregado doméstico
e via ameaçada também sua feminilidade. Aparentemente, jamais passou pela cabeça
de algum proponente que esta pudesse substituir as empregadas. Seu trabalho,
rotineiro, pesado e sujo, deveria ser realizados por máquinas e aperfeiçoado por
métodos racionais. Em outras palavras, cuidar da casa passa a ser percebido como
gestão e não como uma atividade subalterna.

Impossível não se notar um certo condicional em dois títulos de Bernège. Seu


livro “se as mulheres” de certo modo lembrava que não, não são elas as que
desenhavam o espaço que posteriormente elas, sobretudo, enfrentariam a cada dia,
como um deleite ou um fardo – ou ambas as dimensões. E em 1933, ela publicou na

                                                                                                                         
417. Organização da qual o arquiteto Le Corbusier era um dos patronos, o que nos permite aproximar, o
que a historiografia da arquitetura não faz, a noção de “máquina de habitar” desse debate.

  197  
revista L’Art Menager uma nova indagação, desta feita não com o condicional “se”,
mas como o tempo indeterminado “quando”.

Vale a pena nos determos nas propostas para um tempo quase impensável.

Em Si les femmes faiseiant les maisons, de 1928, uma brochura que devia
exprimir os desejos e as reivindicações das donas de casa francesas de modo que as
casas fossem contruídas segundo suas necessidades, em um século de eficiência que
reivindicava casas eficientes418. Casas que não congelassem no inverno e não
grelhassem no verão; casas com eletricidade, aquecimento, telefone e elevador; casas
sem escadas, elemento tirano e criminoso que silenciosamente obriga a dona de casa a
subir e descer. A ilustração desse tópico comparava esses movimentos a subir a Torre
Eiffel. Nada de cobre, que exige limpeza difícil; nada de pequenas janelas lado a lado
com cantinhos, uma vez que uma grande superfície sem ângulos é mais fácil de se
manter; as juntas (de piso, de telhado), um inimigo a ser banido; no lugar dos
parquets pouco higiênicos, um piso de um aglomerado compacto lavável com água;
nada de cornijas, aparadores, esculturas: “a sobriedade das linhas retas ao gosto da
decoração moderna é tanto melhor”419.

Além disso, as distâncias mal estudadas, vampiros das forças humanas; e, para
combater qualquer acusação de exagero o argumento, ela apelava à matemática, a
mais rigorosa das ciências e suas cifras; se a mulher por causa das escadas parecia
escalar a torre Eiffel, por causa das distâncias mal planejadas, podia caminhar até a
Ásia (Fig, 32). Além disso tudo, o quarto das crianças poderia ficar no centro da casa,
de modo que estas estivessem sempre sob vigilância; no lugar da sala que ninguém
usa, um espaço para todos. Apenas o necessário, nada além do necessário: tudo
necessário, tudo o que é necessário; conforto a todos com o trabalho doméstico
mínima: “Duas horas de trabalho confortável, em vez de quinze horas de trabalho
cansativo, este repetido todas as semanas por milhões de mulheres (...)”. 420

No artigo “Quand une femme construit sa cuisine”, de 1933, ela retoma a


importância de sua amiga Christine Frederik para o tema, lembrando que a colega
americana sempre se dizia cheia de idéias para remodelar sua própria cozinha.
                                                                                                                         
418 . Bernége, P. Si les femmes faiseiant les maisons. Paris, Mon chez moi, 1928, p. 2.
419 . Idem, p. 10.
420 . Ibidem, p. 35.

  198  
Admirando a cozinha americana pensada há vinte anos por Frederick, Bernège chama
a atenção para os materiais laváveis – mobiliário de níquel inoxidável e raramente em
madeira – assim como o aço nos batentes das janelas, alumínio para as pias, muito
vidro. Ou seja, materiais que remetem à indústria e espaços de trabalho então (mas
ainda hoje) visto como masculinos. O texto é detalhado, fala dos pontos de
iluminação e das tomadas para os aparelhos elétricos. Particularmente interessante é a
ordem dos espaços, dividida por atividade: um centro de reserva de alimentos; um
escritório de cozinha; um centro de cozimento; um centro de serviço; uma pequena
sala de refeições; um centro de limpeza. Complementando, um relógio elétrico e um
aparelho de rádio, este destinado a, entre as dez da manhã e o meio dia, fornecer à
dona de casa toda sorte de ensinamento práticos, notadamente culinários421.

A pequena sala de refeições deveria se ligar à cozinha de modo que os pratos


pudessem ser passados sem muito esforço. Idéia freqüente nos Estados Unidos, essa
“copa” serviria para as pequenas refeições. A pia, com duas cubas, em uma altura
adequada e ao lado, a máquina de lavar.

Claro que a dimensão simbólica disso tudo nos leva ao clássico Pureza e
Perigo, a uma noção de sujeira como desordem, de rituais de pureza e impureza que
criam unidade na experiência, pois através deles padrões simbólicos são executados e
manifestados422.

Talvez o sucesso de Paulette Bernège tenha a ver com o fato de que, sem se
afastar muito dos temas da domesticidade, ela não ensinasse a cozinhar ou costurar,
mas a planejar. Aí reside a chave da ressignificacão, pois a dona de casa foi por ela
colocada no papel de gestora. Segundo Clarke, ela usava um tanto de sua própria
experiência de mulher solteira de vida profissional intensa, que morava em um
apartamento423.

Paulette Bernège e sua colega Marguerite Lamy preconizavam o


embelezamento da casa nas revistas femininas e julgavam as mulheres influenciáveis

                                                                                                                         
421 . Bernège, Paulette. “Quand une femme construit sa cuisine”. L’art Ménager, août 1933.
422 . Douglas, Mary. Pureza e perigo. São Paulo, Editora Perspectiva, 2014, p. 13.
423 . Clarke, J. “Domestic organization as pedagogy. Paulette Bernège and the making of a middle class in

the 1930s and 1940s”. Travail, genre et sociétés 2005/1 (No 13), p. 139-157. Nesse sentido próxima aos
conselhos singelos de Charlotte Perriand para uma moça fictícia que morava numa mansarda, como vimos
no capítulo III.

  199  
enquanto consumidoras. Para as autoras de manuais, compras não deviam ser feitas
sob emoção e para isso era preciso um esforço pedagógico, uma postura que no limite
opusesse o prazer à necessidade – afinal, eletrodomésticos eram dispendiosos. Claro
que nisso tudo havia uma visão moral e social, um elogio da virtude, da estabilidade
organizacional da casa, nada muito novo, mas a proposta era tornar a compradora
frívola uma mulher capaz de analisar, usar a razão, ter espírito critico, observação e
bom senso. Mais do que apenas desenvolver novas competências, segundo Clarke
tratava-se sobretudo de disciplinar o sexo feminino burguês, uma auto-disciplina424.

Ou seja, se o taylorismo nas fábricas trazia embutido uma visão


organizacional e hierárquica, o mesmo senso de rodem, auto-controle e definição de
prioridades operada em sua aplicação ao lar. A ergonomia fazia parte da educação dos
corpos, corpos estes que deveriam fazer parte da educação do espírito, uma
autodisciplina permanente que poderia se refletir no espírito lógico, em uma
disciplina do pensamento.

Assim, quando Bernège especula sobre como seria uma casa feita por uma
mulher – em um momento em que nenhuma mulher se aproximava do campo da
arquitetura, mesmo na moderna Bauhaus na Alemanha – ela de certo modo, mesmo se
dirigindo à mulher abastada, rompeu o molde do apartamento burguês haussmaniano,
que de certo modo ainda sobrevivia em muito do que se mostrou na art-déco 1925.

Uma exposição, visitada em 2013 durante o estágio de pós-doutorado em


Paris, sobre interiores românticos, evidenciava com qual modelo de casa burguesa
essa modernidade tecnológica buscava em alguma medida romper. Por meio de uma
rica coleção de aquarelas se desvelava a transformação dos interiores domésticos do
século XIII para o XIX. À medida que a burguesa enriquecia passava a adotar práticas
espaciais da aristocracia, fazendo com que certas partes da casa que antes não
chegavam a ter uma função específica se diferenciassem por gênero ou atividade. É
quando a sala – o salon – se transforma pouco a pouco no que hoje conhecemos como
sala de estar. Ao final do XIX aquarelas mostram homens e mulheres lendo,
desenhando ou praticando atividades musicais. A burguesia européia que havia
acumulado riquezas com a revolução industrial fazia da casa um marcador de seu

                                                                                                                         
424 . Marguerite Lamy publicou Bien acheter pour mieux vivre em 1932. Ver, a respeito, Clarke, op. cit.

  200  
novo status social. E nessa casa a mulher podia mostrar seu talento como
organizadora, tanto da vida familiar como de uma certa vida em sociedade. Desse
modo, semelhante ao que Vânia Carvalho mostrou para as casas paulistanas do
começo do século XX, os ambientes se generificavam. A sala de jantar e o fumoir
eram domínios masculinos enquanto as salas, qualquer fosse sua dimensão, era o
reino da mulher. Mais do que isso, ela se fazia ler pela decoração de seu salon. Tarefa
que exigia ofícios e saberes: o decorador, o arquiteto, o arranjador de seu boudoir, o
tapeceiro, além de vasta produção impressa em catálogos, guias e revistas. Na França
a mais conhecida era a Le Garde-Meuble ancien et moderne, que funcionou entre
1839 e 1935, mas era possível também se recorrer a congêneres inglesas e alemãs.425
Havia também a publicação da Union Centrale des Beaux-arts appliqués à l’industrie,
La revue des arts décoratifs, ambiciosa, que até 1889 forneceu notícias do ensino e
dos museus não restrito à França, mas com relato do que se passava em outros países
europeus.

Havia, claro, um discurso psicologizante acompanhando essa voga dos


interiores. Por volta de 1889, artigos na Revue de deux mondes assinalavam que o
culto ao interior e ao self poderia ser boas compensações para uma individualidade
ameaçada pela máquina, máquina esta regida pela simetria, exatidão, precisão. Essa
consonância ao um discurso do urbanismo que, para espaços coletivos conduzia ao
elogio da cidade antiga ou medieval, como no austríaco Camillo Sitte, parecia levar
também ao elogio exacerbado dos interiores domésticos, tão bem analisados por
Walter Benjamin em seu exposée de 1935. O corolário desta tendência é localizável
nos escritos dos irmãos Goncourt, que delinearam os nexos entre decoração interior e
interioridade psicológica; o interior não mais como um refúgio, mas como uma
substituição do mundo lá fora.426

Para os burgueses nem tão abastados, mudou a forma de aquisição dos bens
que deveriam compor o espaço doméstico, com a chegada das lojas de departamentos,
os grands magasins de noueautés.

                                                                                                                         
425 . Charlotte Gere e Florence McCarren-Cates, “Des or au confort”. Intérieurs romantiques, catálogo do
Musée de la vie Romantique, Paris, 2012. Pp. 71-72.
426 . Silverman, D.L. op. cit., p. 77.

  201  
Contudo, a belle époque foi contraditória. De um lado havia uma
prosperidade, mas a produção de produtos industriais se mantinha ligada aos bens de
luxo, somo se fosse uma reverberação do Segundo Império. A semelhança quanto a
temas de domesticidade, entre os dois momentos impressiona pela persistência de
referências estéticas burguesas, que explica o porque de, em meio a um forte
desenvolvimento técnico que possibilitaria o acesso de uma parcela maior aos bens de
consumo, gosto e estilo permaneciam sendo temas determinantes. Contudo, novos
produtos como bicicletas e automóveis (esse sim um bem de luxo) fomentaram uma
estética industrial, não necessariamente autoconsciente posto que boa parte das
mercadorias produzidas ainda copiava industrialmente o produto artesanal de luxo.

Segundo Stéphane Laureant, fazendo um balanço, as artes aplicadas na Belle


Époque foram ao mesmo tempo ricas e ambíguas, pois como todo o mundo da
cultura, estava em plena transformação, de um mundo tradicionalmente vinculado aos
estilos burgueses e aos ofícios artísticos para um mundo moderno onde havia lugar
para a funcionalidade, a estética industrial e a organização racional da produção. As
resistências eram muitas e a tendência era sobrevalorizar o luxo, a qualidade, o saber
fazer427 – o art nouveau era um espelho dessas ambigüidades.

De certo modo do debate acerta da domesticidade na belle époque


masculinizava, ou neutralizava essa casa da mulher que não mais contava com ajuda.
Nesse sentido, em que pese as ambigüidades de seu discurso, não seria correto situá-
lo no mesmo campo das artes decorativas voltadas apenas aos interiores domésticos,
movimento característico do fin-de-siècle francês quando a política republicana se
desdobrava no movimento pelo artesanato, cujos membros expressavam tanto um
antifeminismo defensivo quanto um “feminismo familiar” de figuras republicanas.
Era um movimento de contenção e interiorização da mulher e ao se celebrar mulheres
como rainhas e artistas do interior doméstico, desenvolveu-se um antídoto poderoso à
femme nouvelle, que se recusava ao papel de objeto decorativo ou artista decorativa.
Três décadas depois, as querelas semânticas ao redor do termo “decoração”
permaneciam, por isso a centralidade da noção de arts menagers428.

                                                                                                                         
427 . Laureant, Stéphane. Les arts appliqués en France. Genése d’un enseignement. Paris, Éditions du CTHS, 1999,
p. 317
428 . Silverman, Deborah L., op. cit., p. 74.

  202  
O debate acerca do papel da mulher, as lojas de departamento – móveis
comprados prontos e não herdados ou encomendados – tudo isso se vinculava
também a transformações na produção, que se faziam acompanhar, como quase um
pré-requisito, de transformações na transmissão dos saberes, especialmente das
chamadas artes aplicadas. Na França em 1853 um decreto imperial se opunha à
separação tradicional das exposições de belas-artes e de produtos industriais,
afirmando que o aprimoramento da indústria estaria inequivocamente vinculado ao
das artes e que um dos modos de contribuir para o progresso das artes seria a
realização de uma exposição universal.429

Das artes industriais, destacava-se a têxtil, a mais exportada das produções


artísticas francesas, mas que demandava desenho e pessoal qualificado, de modo que
era urgente a abertura de escolas municipais de desenho aplicado à industria. Essa
necessidade de mão de obra especializada para produzir o que deveria abarrotar os
grands magasins tornou-se ainda mais evidente depois da Exposição Universal da
rival Londres. A arte, até então considerada um luxo passou a um elemento
importante para a economia. Todos os países presentes se sensibilizaram a esta
preocupação manifesta. O relatório do responsável pela visita oficial francesa
destacou que esta poderia ser uma ocupação feminina, o que demandava aprendizado
formal:

On ne fera pas initielment appelà la sollicitude du gouvernment et à la charité


publique, pour former et soutenir dans toutes les grands villes e dans tous les
arrundissements de Paris, de vastes écoles de dessin, des maisons spéciales
d’apprentissage, des ateliers de peinture, de modelage et de gravure, dou
sortiont des artistes –ouvrières, capables de elever l’industrie en y introduisant
avec des telents acquis, toutes les aptitudes féminines si précieuses, si rares et
si respectables, quand’on peut les donner a ce faible sexe, armes conre la
seduction du vice.430

                                                                                                                         
429. Laureant, Stéphane. Les arts appliqués en France. Genése d’un enseignement. Paris, Éditions du CTHS, 1999, p.
32.
430. Simon, Jean-Emmanuel, Conte de Laborde. Exposition Universelle de1851, travaux de la commission francaise
sur l’industrie des nations. Tome VIII, "Rapport sur l’application des arts à l’industrie. Paris, Imprimerie
Imperiale, 1856, p 405.

  203  
Educado, o chamado sexo frágil em menos de um século se revelaria como
mulher moderna, como Paulette Bernège e Charlotte Perriand e delas emanaria a
revolução simbólica do espaço doméstico.

Enquanto isso em 1865, a Union Centrale des Beaux-arts appliqués à


l’industrie, que funcionava no coração do bairro de artesãos que era o Marais de
então, organizou uma exposição segundo seus princípios definidores, ou seja, ao lado
de produtos industriais artísticos daqueles anos, um museu retrospectivo com certa de
8 mil desenhos e modelagens provenientes das escolas de desenho de todo o pais. A
dimensão expositiva nunca mais abandonaria esse campo de produção entre as artes e
a industrial. Mas no Segundo Império, uma forte tendência cultural era a idéia de uma
arte presente no tecido social e na indústria, o que requeria uma conversão aos novos
valores de uma estética industrial que passava inclusive por um certo patriotismo, no
qual a arte industrial permitiria a reabilitação de um passado nacional glorioso.431

É hora de voltarmos às primeiras décadas do século XX, quando convidada


por Bernège, Frederick visitou Paris em 1927 e proferiu a conferência “L’art
ménager”. Foi bem recebida, mas recebeu críticas. Mais de uma década depois, em
texto específico sobre a casa burguesa432 – que deveria ser feita para ser usada –
Paulette Bernège chegou a dar as medidas dos cômodos, ao mesmo tempo que
elogiava as virtudes da eletricidade e da água encanada.

A praticidade de uma casa não dispensava a questão do gosto. Talvez seja esse
o ponto que articula a exposição de artes decorativas e aquela voltada à casa eficiente.
Arranje a casa a seu gosto, aconselhava Bernège, se possível com gosto. Para tanto,
chame um decorador, aproveite de sua experiência e seu caderno de endereços; conte
seus desejos, seus sonhos, suas necessidades. Dessa valorização do profissional de
decoração, em alta na Paris do entre-guerras, Bernège passava a uma indagação
crucial nas disputas dos diversos grupos ligados ao espaço da casa e seus
equipamentos naquele momento e lugar: “antigo ou moderno?”. O ideal seria o
“antigo de família” e na ausência deste ou na impossibilidade de se adquirir uma peça
autêntica, o conselho era que se evitasse o antigo, à copia medíocre. Assim como o
rústico, ideal para um albergue normando ou do pais basco.
                                                                                                                         
431 . Stéphane Laureant, op. cit. p. 192.
432 . “La maison et son décor” Encyclopédie de la vie familiale. Paris, Horizons de France, 1938.

  204  
Assim, encontrava-se com o debate dos decoradores modernos ao aconselhar:
“tenha um ambiente moderno para a sua vida em casa, ou melhor, uma ambiente do
seu tempo. Não acho que isso significa cubo e tubo (...) e moderno não quer dizer:
paredes brancas, carpete preto e um aparador em linha reta e uma caixa de pau-rosa
envernizado”433. Embora isso não seja enunciado com clareza, ao falar da casa
burguesa, Bernège se dirigia a novas populações urbanas que não herdavam
mobiliário e, ao necessitar adquiri-lo, demandavam uma espécie de bula, de guia.
Talvez por isso a alta dos manuais de aconselhamento, como foi visto no terceiro
capítulo.

A MÁQUINA E O “GOSTO MODERNO”

A discussão a respeito do gosto moderno começou um pouco antes. Entre


1928 e 1929, um grupo de artistas decoradores que se apresentavam como mais
modernos do que a média dos que expunham no salão da Société des artistes
décorateurs lançou um livro de grande formato intitulado Le répertoire du gout
moderne. Já no primeiro dos quatro livros advertiam o leitor de que existia um
incontestável gosto moderno, primeiro aceito por uma elite e agora por um público
maior. O desafio do repertório séria fornecer soluções lógicas e práticas para a
organização e decoração de um apartamento. Por isso propunham um repertório :

Um repertório de formas, bem como de cores que possam ser constantemente


renovadas e enriquecidas pela colaboração dos artistas mais representativos do
movimento de arte moderna que propõem, conjuntos e em detalhes os vários
elementos do mobiliário, de modo para permitir os estudos, a fim de facilitar o
nosso trabalho.
Acreditamos que nenhuma outra fórmula até os dias atuais, poderia
desempenhar melhor o seu propósito. Queríamos uma rica documentação,
sugestões abundantes em novas idéias. Optamos pelo prático, pelo útil.
Repertório de tudo o que carrega - com a assinatura de um artista – a marca do
tempo.434

                                                                                                                         
433. “La maison et son décor”, op. cit. p. 24.
434 . Djo-Bourgeois, Francis Jourdain, E. Kohlmann. Le répertoire du gout moderne No. 1. Paris, Éditions
Albert Lévy, 1928.

  205  
Os artistas a carregarem com sua assinatura a marca de seu tempo – tempos
modernos – eram Francis Jourdan (Fig. 33), Georges Djo-Bourgeois, Charlotte
Perriand, G. Guévrékian, André Luçat e Robert Mallet-Steven, dentre outros. Artistas
decoradores e arquitetos que haviam participado da grande exposição de 1925
colocando-se num pólo moderno não modernista, algo como uma proposição moderna
palatável e menos vanguardista. No momento da publicação do répertoire, Charlotte
Perriand já trabalhava no escritório de Le Corbusier e Pierre Jeanneret, e ocupando o
pólo do “moderno modernista” o trio participava de exposições que também eram de
artes decorativas, ainda que o termo usado fosse outro: equipamentos de habitação.

É quando dois campos que pareciam separados, o das artes decorativas e das
artes domésticas se aproximam. Essa aproximação não é incidental. Como já foi dito,
em 1929 houve uma dissidência importante nas artes decorativas francesas. Junto com
os já mencionados artistas decoradores que publicaram o “repertório” Sonia
Delaunay, Eileen Grey, Charlotte Perriand, Robert Mallet Steves, dentre outros,
deixam a SAD Société des artistes décorateurs para fundar a UAM, Union des
artistes modernes. Um dos pressupostos da UAM era o fim da ornamentação e a
proposta de espaços funcionais.

Simultaneamente, em 1930 foi criada a no espaço das art ménagers a figura da


Marie Mechanique (Fig. , símbolo da substituição da doméstica pela máquina,
desenho que em diversas variações se tornou a imagem emblemática do salão. Desde
1926 o salão se engajava em um debate a respeito da habitação renovada pela
arquitetura modernista e em 1934 a UAM participou do salão des Arts Menagers – até
então seus membros expunham suas propostas no Salon D’Automne e no salão da
SAD. A jovem revista L’architecture d’aujourd’hui, fundada em 1930, organizou
uma exposição e um concurso de casa individual dentro do salão a convite de Paul
Breton. Assim, os esforços consorciados do grupo das arts ménagères e do da nova
revista ajudaram a popularizar uma arte moderna até então privilégio de alguns
poucos. A exposição sobre habitação nesse espaço contribuiu para a aceitação de uma
estética contemporânea na França, pois o salão era um espaço de vulgarização e

                                                                                                                         

  206  
espetacularização, atingindo públicos que a revista sozinha, ou a UAM talvez não
alcançasse.

Nessa junção de forças, o pólo mais artístico e vanguardista e, digamos, o


mais utilitário, os ensembles de cozinhas passaram a ganhar força nos salões.
Tradicionalmente vistas como primas pobres da indústria do mobiliário, a cozinha
ajudou o salão a florescer, pois era como um ponto de convergência entre
necessidades e aspirações que nasciam de mudanças de hábitos e costumes cotidianos,
assim como da chegada de novas tecnologias aplicadas à vida doméstica. “Ela [a
cozinha] se tornou um produto de uma sociedade e a expressão de um estado de
espírito. Ela é toda a economia doméstica”. 435

Cozinhas, UAM e L’architecture d’aujourd’hui não mais no campo das artes


decorativas e sim no das arts menagers, tudo isso é significativo. Embora a UAM em
seu livro de apresentação, Repertório do gosto moderno, afirmasse que havia um
incontestável gosto moderno, o que havia sim era uma querela, em embate de gêneros
artísticos com gêneros sexuais, ciladas que se resolviam não com argumentos textuais
mas com as imagens exibidas de um lado e de outro. Por isso a necessidade da
apresentação de bons exemplos, e da criação de um repertório, a exibição dos bons
exemplos em mostras que eram também eventos de massa.

Quando vingou, finalmente, o “gosto moderno”, não foi por qualquer


protocolo de boas intenções, mas por uma série de esforços, coordenados ou não e
nem sempre internos ao debate artístico e arquitetônico.

A COZINHA AMERICANA, OU A “COZINHA GORDA”

“America represents the fat kitchen, and Europe a very lean


kitchen indeed”436

                                                                                                                         
435 Rouaud, op. cit., p. 212.
436 . Heirich Hauser, 1945.

  207  
Uma guerra depois e de volta pro outro lado do Atlântico Norte, era de se
prever que logo a indústria tomaria esse debate e daria conta da produção – o que não
era, para seus proponentes uma mácula e sim, talvez, um sinal de vitória de uma idéia.
O crescimento significativo da indústria norteamericana e seu domínio no mercado
internacional de produção de bens e consumo criou uma nova cultura do conforto
doméstico, emblematizado por empresas como Westinghouse e General Electric,
dentre outras. Não se tratava mais de defender a idéia de eficiência para a dona de
casa sem empregados do apartamento europeu, mas das casas confortáveis dos
subúrbios que não paravam de ser implantados nas margens das cidades americanas,
em suas versões de excelência e debate arquitetônico, assim como nas versões
acessíveis às massas. As Case Stuty Houses foram construídas entre 1945 e 1962 na
Califórnia como um experimento promovido por uma revista de arquitetura, que
reuniu nomes como Eero Saarinen, Richard Neutra e William Wuster; tornaram-se
conhecidas sobretudo pelas imagens icônicas feitas pelo fotografo de arquitetura
Julius Shulman. O primeiro Levittown, o grande paradigma da vida suburbana
norteamericana, é de 1947 e tornou-se sinônimo de subúsbio, da casa do americano
médio. Diferenças assinaladas, as duas iniciativas tinham como finalidade a
construção de caas baratas e eficientes que pudessem se tornar modelo para o
crescimento imobiliários que os Estados Unidos viviam com o final da Segunda
Guerra,

Já em 1944 uma Cozinha do Amanhã (The Kitchen of Tomorrow) foi


projetada nos Estados Unidos, fabricada pela Libbey-Owens-Ford (Fig.47) e exibida
em lojas de departamentos. Um filme de propaganda da época mostra dona de casa
distinta daquela do laboratório de Frederick. Alta, elegante, de sapato de saltos altos e
unhas pintadas, lidando com facilidade e rapidez com tudo enquanto suas crianças
brincam ou fazem seus deveres de escola. Nenhum homem nessa peça publicitária437.

Na Alemanha em 1949 arquitetos invocaram uma domesticidade minimalista


na exposição Neues Wohnen (Morar novo) em Colônia. Esta mostra, organizada pelo
Deutsche Werkbund, ou seja, pela mesma aliança de governos reformistas, industriais
e arquitetos que dera origem à Bauhaus, reeditou temas do entreguerras como itens
domésticos pensados para uma produção de massa. A sessão da Alemanha – a mostra
                                                                                                                         
437 . Ver https://www.youtube.com/watch?v=ddN6baf8F3Q , último acesso em 12 de fevereiro de 2015.

  208  
era internacional, contando com França, Inglaterra, Suíça, Suécia e Estados Unidos –
foi dirigida por uma economista doméstica, Martha Bode-Schwandt, que insistiu que
seu pais deveria manter a realidade do colapso do pós guerra que a nação enfrentava
ao avaliar o que os outros países mostravam. A pobreza da casa alemã se comparada à
norteamericana era uma constatação, mas um certo ascetismo compareceu em
diversos discursos como uma espécie de antídoto contra as seduções do supérfluo438.

Mas essa cozinha americana tinha seus admiradores e ajudava a acalmar a


agitação do lado comunista da Alemanha, e a afirmação do ascetismo poderia ser
confundida com simpatia pelo lado oriental, uma vez que a propaganda soviética
ridicularizava o american way of life. Em 1948 o Office for the Military Government
in US Occupied Germany (OMGUS) planejou uma mostra sobre as tendências
habitacionais norteamericanas. O diretor da OMGUS, Peter H. Harnden, solicitou
imagens de tecnologia domestica avançada e planejamento de subúrbios às escolas de
arquitetura de Harvard, Columbia e MIT. A mostra So wohnt Amerika (Como a
América mora) foi inaugurada em Frankfurt – a cidade da cozinha homônima e do
famoso conjunto habitacional – em 1949, mas atraiu uma audiência módica439.

Mostrar a vida suburbana da classe média norteamericana continuava uma


prioridade do Plano Marshall e em 1950 foi realizada uma Exposição Industrial na
Berlim Ocidental. O Departamento de Estado mandou por navio seis casas pré-
fabricadas com aquecimento central, eletrodomésticos e outros aparelhos de cozinha,
além de mobília. Quando a exposição Amerika zu Hause (America em casa) foi
inaugurada, a visitação foi intensa, chegando a 43 mil visitantes em 15 dias – e 15 mil
vinham do lado comunista. Contudo, a culminação dessas Ações do Departamento de
Estado norteamericano veio em 1952 com a exposição Wir bauen ein besseres Leben
(Construímos uma vida melhor). Nessa mostra em Berlim, como nas exposições
colonialistas do século XIX nas quais os “exóticos” eram exibidos ao vivo, uma casa
modelo era cenário para uma família de pai, mãe e filhos atuar, mostrando o uso
adequados dos objetos. Atores profissionais se alternavam nos espaços para
desempenhar o papel da família americana – e para transformar os visitantes em
voyeurs. Um narrador, vestido de branco, explanava sobre as interações neste espaço.

                                                                                                                         
438 . Greg Castillo, “The American ‘Fat Kitchen’ in Europe”, pp 37-8.
439 . Idem, p. 39.

  209  
Paraíso para uma nova Eva440, uma cozinha automática e mecanizada passou a objeto
de desejo, e emergia uma dona de casa que apaziguava os temores de uma
modernidade com efeitos negativos sobre a vida familiar. A tecnologia foi
feminizada, exibida como algo que traria conforto, noção que passa a ser cada vez
mais central. Não importava que essa Hausfrau ideal da família nuclear, representada
por atrizes, fosse uma ficção, uma imagem da reconstrução da família tanto na
Alemanha como nos Estados Unidos. E que a cozinha maravilhosa não estivesse
acessível ao consumidor europeu.

O corolário disso tudo foi o debate da cozinha da guerra fria conhecido como
The kitchen debate, em 1959, uma discussão em público, com ajuda de intérpretes e
televisionada441, entre Richard Nixon, vice-presidente dos Estados Unidos e Nikita
Krushchev, Premiê soviético (Fig. 48). As virtudes e carências do capitalismo e
comunismo, no context de uma exposição norteamericana em Moscou, não foi
incendiada pela corrida espacial ou descobertas cientificas, mas por uma cozinha.
Uma cozinha da General Electric representava, argumentou Nixon, as vantagens de se
viver nos Estados Unidos, especialmente porque estes tinham alterado as regras do
jogo da corrida tecnológica: a tecnologia podia ser nesse momento medida não apenas
nos termos da corrida espacial e das usinas nucleares, como também, e talvez mais
importante, em termos de bens de consumo442. A cozinha se tornou um ponto de
controvérsia e os dois maiores lideres mundiais jogaram todo seu capital político na
inflamada conversa443. Não estavam sós: outros estadistas como Winston Churchill e
os alemães Ludwig Erhad e Walter Ulbrich, ocidental e oriental, respectivamente,
também consideravam os utensílios de cozinha so blocos construtores do contato
social entre cidadãos e estado.

A cozinha que causou tamanha celeuma, aos olhos de hoje parece quase
inocente. Na mostra também havia a cozinha “futurista”da RCA Whirlpool, que

                                                                                                                         
440 Ibidem, p. 45.
441 . https://www.youtube.com/watch?v=D7HqOrAakco, último acesso em 10 de fevereiro de 2017.
442 . Odenziel, R. e Zachmann, K. Cold war kitchen. London, UK & Cambridge, MA, 2009. p. 6.
443 . E Krushev retrucou: não temos aqui intenções de utilidade, é puro gadjet. Op cit, p. 9. A reação ao

american way of life que vinha embutido na cozinha, uma versão domestica e pedestre da equação
gramsciana “americanismo e fordismo”também ocorreu na Alemanha do entreguerras, quando alguns
autores perguntaram que tipo de dona de casa poderia emergir de uma casa racionalizada e da adoção da
tecnologia americana. A noção de uma traição de gênero da cultura alemã veio a se tornar mais tarde um
tema do antiamericanismo do Terceiro Reich. Castillo, G. “The American ‘fat kitchen’ in Europe”, p. 33.

  210  
exigia que a mulher apenas apertasse botões, mas como a sedução era um mote, além
dos eletrodomésticos, a cozinha era mobiliada com móveis de madeira do designer
finlandês Hans Wegner (ou seja, um pouco de madeira e apelo artesanal em meio a
tanta tecnologia). Mas o que causou tanta dor de cabeça foi uma cozinha verde-limão
da General Electric, instalada em uma casa americana estilo rancho – ou seja, a casa
do americano comum, não a casa californiana que exibia a arquitetura moderna – e ela
atingiu este status inesperado.

Contra a aparente ruptura de laços familiares e comunitários tradicionais, a


cozinha era um cenário adequado para a performance da família nuclear: era nesse
espaço que as refeições eram produzidas para o ritual diário da refeição
compartilhada. Era o lugar da performance da domesticidade e não por acaso o
mercado e a propaganda miravam a mulher como consumidor444. O filme comercial
da cozinha do futuro da Whirlpool RCA445 confirma a idéia de que junto com a
cozinha se projetava um tipo ideal de consumidora: o oposto complementar do
homem provedor, e nessa configuração a dona de casa lançava mão de engenhocas
que facilitavam o fardo domestico, beneficiando assim a família inteira. De modo
diverso convergiam socialistas e arquitetos que configuraram uma mulher moderna
emancipara das tarefas domesticas para que ela pudesse sair de casa para o mundo do
trabalho. Mas, longe das arquitetas modernistas e dos socialistas, os engenheiros
norteamericanos elaboraram uma dona de casa hedonista e encantada, que sonhava
com uma cozinha plena de gadgets como um fim em si.

Mas o debate não era privilégio de governantes das maiores potências políticas
e econômicas. Num nível mais pedestre e acessível, diversos profissionais
requisitaram a cozinha como seu domínio: designers, arquitetos, engenheiros,
médicos, inspetores sanitários, profissionais da economia doméstica, cientistas
sociais, associações de moradores, higienistas etc. E a transmissão dessa disputa por
pontos de vista acontecia nas revistas femininas, local onde jornalistas, mais uma vez
arquitetos e decoradores, publicitários e outros formatam o simbolismos inscritos
entre quatro paredes azulejadas e suas máquinas.

                                                                                                                         
444. Odenziel e Zachmann, p. 8
445 . Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=Vui2CSEwOxQ, última consulta em 8 de
fevereiro de 2017.

  211  
Era sim um tema, se nem sempre tão politizado, no mínimo de debate e
visitação pública. E o tema passeou Europa afora, e o impacto dessas mostras nos
permitem inferir o quanto a casa americana – e sua cozinha – era o modo do
American Way se exportar ideológica e culturalmente para o Velho Mundo. Assunto
de estado: United States Information Agency (USIA), criada em 19... engajou ........
do Museu de Arte Moderna, Edgar Kauffmann Jr, que já tinha experiência em
trabalhar com diplomacia, para manter uma vitrine intitulada American Design for
Home and Decorative Use. 446

Em 1953 o Taidehalli (museu de arte) de Helsinki, Finlândia inaugurou sua


exposição The American Home, com uma casa modelo que seus visitantes pagantes
poderiam visitar, na qual o destaque era a cozinha. Segundo Mcdonald, essa ala do
MoMA, frequentemente subestimada era parte dos esforços da administração
Eisenhower para persuadir outras nações a se identificar com a cultura
norteamericana. Mais eficiente do que a arte moderna poderia ser o design doméstico
moderno, menos passível de controvérsias – em suma, a dimensão domestica podia
ser crucial para a propaganda americana contra o bloco socialista.447

Realizada pela Finnish-American Society (FAS), foi um sucesso: em dez dias


a exposição recebeu 20 mil visitantes pagantes. Assim como nos outros países em que
a casa americana foi exibida, era patente o contraste entre as privações da guerra há
pouco terminada, ou melhor, entre uma cultura européia de privação vivida nesses
anos e ainda com reflexos na ida social, e, de outro lado a exibição do modo de vida
de um pais que não sofreu a guerra em casa. Isso é ainda mais grave se lembrarmos
que a Finlândia cedeu importantes territórios para a união Soviética nas tratativas de
reparação que se seguiram ao fim do armistício. Os anos entre 1944 e 1953 foram de
reconstrução. Ou seja, poucos visitantes poderiam adquirir algo das caras maravilhas
da casa americana. A mostra visava inspirar a indústria local assim como retomar a
discussão da economia doméstica, debate dos anos 1920 em que se discutia o papel da
mulher nessa esfera. Nos anos 1940 um declínio nas taxas de nascimento também
levaram a debates sobre o papel da dona de casa, família, domesticidade.

                                                                                                                         
446 . Mcdonald, Gay. “The Modern American Home as Soft Power: Finland, MoMA and the ‘American
Home 1953’ Exhibition. P. 387.
447 . MacDonald, op. cit., p. 388.

  212  
Na exposição, além de guias para mostrar como se usar o equipamento, o
visitante podia abrir portas de fornos e geladeiras.

Em 1956, a exposição Daily Mail Home exhibition teve lugar em Londres e


Edimburgo e incluiu uma casa do futuro, The House of future, projetada por Alison
Margareth Smithson com coleboração de seu marido Peter. Era pura especulação:
pensada para um casal sem filhos, cenográfica, lúdica, um tanto Jacques Tati, pensada
para um futuro que chegaria em pouco mais de duas décadas. Em 1958 a casa foi um
tema importante em outra grande mostra, a Exposição Universal conhecida como
Expo 58, que teve lugar em Bruxelas e cujo tema era um “balanço para um mundo
mais humano”. Em outras palavras, ainda no impacto do final da guerra e do uso da
energia nuclear, os organizadores da exposição pretendiam mostrar aspectos positivos
das conquistas científicas. As casas mostravam as promessas do progresso para a vida
cotidiana por meio de imagens de uma casa moderna e confortável para a família
448
tradicional, tentando criar alguma crença positiva no futuro. Foram diversas as
explorações do tema “casa” – casa do agricultor, habitação social – mas uma das
casas exibidas, Electric House, merece nossa atenção. Impactada pela afluente
visitação do Salon des Arts Ménagers de Paris que em 1956 mostrou uma casa de
plástico – a Maison tout en Plastiques projetada por Lionel Schein – assim como pela
Daily Mail Ideal Home Exhibition de Londres no mesmo ano, onde foi mostrada a
Casa do Futuro de Peter e Alison Smithson – a organização da feira destinou à casa
elétrica um lugar central na área em que foi exposta, o Pavilhão da Energia Elétrica. O
tema do pavilhão era “eletricidade a serviço do homem” e a casa conferia,
literalmente, escala humana a essa idéia.449 O equipamento precisava ser vanguardista
tanto em sua aparência como em suas possibilidades, e chamou a atenção dos
visitantes tanto um forno elétrico como um congelador com compartimentos para
cada dia da semana. Durante as visitas, mulheres desempenhavam o papel de donas de
casa, enfatizando o aspecto teatral da montagem e eram várias as promessas de um
futuro confortável: uma câmera de vídeo que vigiasse as crianças, uma cozinha que
libertasse os moradores do fardo de cozinhar.

                                                                                                                         
448 . Floré, F. e De Kooning, Mil. “The Representation of Modern Domesticity in the Belgian Section of
the Brussels World’s Fair 1958”. Journal of Design History Society vol. 16 no. 4. The Design History Society,
2003, p. 320.
449 . Floré, F. e De Kooning, Mil., op. cit. P. 334.

  213  
Ainda assim, o que ficou para sempre como ícone da feira de 1958 foi,
sabemos, o átomo, preservado e visitado em Bruxelas. Tamanha especulação e
tratamento da casa como dimensão expositiva voltada para um futuro tecnológico nos
remete a um desenho de Joseph Hanna e William Barbera, cujo primeiro episódio foi
ao ar em 1962. The Jetsons, cuja empregada-robô Rosie pode bem ser vista como uma
atualização doa Marie Mechanique, a simpática robô francesa exibida nos vários
Salons d’arts ménagers, enunciando um futuro onde a tecnologia poderia servir de
amortecedos para tensões de clace, gênero e, em casos como o brasileiro e
norteamericano, raça no interior do espaço privado.

Da dimensão expositiva para a casa de cada familia, o trabalho não diminiu.


Ao contrario, os padrões de higiene e do que se considera uma boa domesticidade
foram ajustados às novas tecnologias: uma cozinha branca, hospitalar, é mais difícil
de manter do que uma cozinha do século XIX.

E o que era prticidade transmutou-se em conforto e glamour. Como a cozinha


gorda do país da cocanha, a América do pós-guerra era afluente. Não havia mais
contexto para a frugalidade dos primeiros CIAMs e nos anos 1950 os próprios
arquitetos modernos reviam a idéia de habitação mínima. Como não amar uma
cozinha americana que seduzia? Como não abraçar a idéia de conforto que a
eletricidade prometia. As casas californianas são modernas, mas um modernismo do
usufruto, distante de intenções socializantes de se mudar o mundo de dentro pra fora
(primeiro a cozinha, depois a fachada) ou de fora pra dentro (a importância da
cidade). Termos antitéticos no começo do século XX, o modernismo torna-se também
sinônimo de estilo, conforto e bem vier. Essa era sua versão liberal: fordismo e
americanismo dentro de cada casa definindo, dentre outras dimensões, lugares e
práticas masculinas e femininas.

  214  
PALAVRAS FINAIS

Ensaboa mulata, ensaboa

Ensaboa

Tô ensaboando

Ensaboa mulata, ensaboa

Ensaboa

Tô ensaboando

Tô lavando a minha roupa

Lá em casa estão me chamando


Dondon

Ensaboa mulata, ensaboa

Ensaboa

Tô ensaboando

Cartlola, Ensaboa

Sabão, um pedacinho assim

A água, um pinguinho assim

O tanque, um tanquinho assim

A roupa, um montão assim

Para lavar a roupa da minha sinhá

Para lavar a roupa da minha sinhá

Monsueto, Lamento da lavadeira

"É preciso, antes de tudo, fazer o catálogo mais amplo possível de


categorias: é preciso partir de todas aquelas das quais se pode saber
que os homens se serviram. Ver-se-á que há muitas luas mortas, ou
pálidas, ou obscuras, no firmamento da razão". Marcel Mauss

Em seu A dominação masculina, Pierre Bourdieu recorre à Durkheim tanto para falar
de espaço como de ordem masculina. Trata-se de explorar as formas de classificação com as
quais se constrói o mundo e que por serem originárias do mundo estão de acordo com ele e

  215  
assim são percebidas450 . Uma das dimensões nas quais a diferença entre os sexos parece estar
“na ordem das coisas” é a casa onde todas as partes são sexuadas, assim como nos corpos,
depositório de princípios de visão e divisão sexualizante451 . Tal princípio de visão e divisão
da casa encontra eco em trabalhos como o de Vânia Carvalho que, historiadora, não trabalha
nessa chave teórica, mas que examina não apenas o espaço da casa como os usos corporais da
mesma; sentar, especialmente, é tratado como um gesto socialmente significativo, logo
sexualmente significativo.

Se há no espaço, um efeito de lugar que cria homologias, como foi argumentado em


MM, talvez também o haja nas casas ocidentais, essa homologia que, guardando
dessemelhanças de tamanho e materiais utilizados, e até mesmo estilos, continua designando,
na mesma proporção, os mesmos lugares às atividades, o que é um outro modo de dizer que
determina lugares práticos e simbólicos aos seus ocupantes, lugares, demarcados por idade,
gênero e posição na estrutura familiar ou dos grupos ocupantes da casa, em outras palavras,
“enquanto corpos ligados a um lugar permanente.”.452

Valeria a pena uma pesquisa a partir de plantas diversas de casas a partir da segunda
década do século XX. Isso não foi realizado, pois não era a proposta, mas se apresentou como
uma das possibilidades abertas pela pesquisa que resultou nesta tese. Afinal, se há um jogo
perverso de dominação silenciosa, este se materializa nos objetos, e sobretudo nas casas e
seria desejável romper com o pensamento substancialista também nas análises do espaço
doméstico.

Para além de uma divisão sexual de atividades na qual casa é feminina e rua é
masculina, é preciso examinar essa assimetria na avaliação das mesmas. Se o homem não
pode realizar tarefas socialmente designadas como inferiores, “as mesmas tarefas podem ser
nobres e difíceis quando são realizadas por homens ou fáceis e fúteis quando realizadas por
mulheres.453 ”os exemplos são evidentes; costureiro e costureira, cozinheiro e cozinheira,
sendo que quando os homens as realizam é fora da esfera privada, o que transfigura e
enobrece. Poder-se-ia argumentar o oposto, que quando uma mulher arquiteta, o faz da porta
ara dentro o que sempre é um rebaixamento simbólico, haja visto a dissimetria entre artes
decorativas quando dominada por homens, como Dufrène e como foi se tornando lugar de
mulher – daí a revolução simbólica de Charlotte Perriand, por exemplo. Isso explica
movimentos já na autodenominada vanguardista Bauhaus, escola na qual as mulheres eram

                                                                                                                         
450 . A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999, p. 13
451 . Idem, p. 19.
452 . Bourdieu, P. “Efeitos de lugar”. A miséria do mundo. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 161.  
453 . Ibidem, p 75,

  216  
encaminhadas aos ateliês de tecelagem e cerâmica – casa – e interditadas nos espaços da
arquitetura – espaços públicos. A desqualificação ia do discurso, como a fala de Schlemer à
qual já nos referimos até os baixos salários contra os quais Günta Stolz se rebelou. A única
mulher bauhausiana a sair do quente e doméstico universo das lãs foi Marianne Brandt, que se
dedicou à metalurgia, material masculino usado nas cadeiras de Marcel Breuer, mas o fez
produzindo xícaras e chaleiras – casa. Chaleiras, talheres, eletrodomésticos fazem parte dos
metais femininos em uma casa enquanto que ferramentas de trabalho, serras e alicates, do
mesmo material, são masculinas. Então há algo a mais além das características táteis da
matéria: seu uso e as classificações inerentes a estes, as classificações que a produzem e,
como tal, reproduzem..

Se não há, segundo Bourdieu, em uma sociedade hierarquizada um espaço que não
seja hierarquizado e não exprima hierarquias e distancias sociais dissimuladas como lógica
das coisas, isso pode valer pro gueto, pra praça, pra casa. A lógica das coisas nada mais é do
que efeito de naturalização, lógica histórica dissimulada, o que, nos temas que tratamos em
cinco capítulos nos autoriza a construir uma “escala de classificação” que de modo um pouco
confuso, se reproduz em sala e cozinha, cozinha e serviços, cadeira e sofá, couro e tecido,
cores, texturas, suportes: cultura material.

Isso diz respeito às hierarquias da arquitetura, atualizadas pela ação e


ressubstancializadas em hierarquias. Richard Sennet retomou em seu O artífice, escritos de
Aristóteles sobre a natureza do artesanato, sendo os arquitetos mais sábios que os artesãos,
pois conhecem as razões das cosias que são feitas454 . Assim, a dicotomia criada pelo ensino
nos primeiros anos da Bauhaus deve ser vista como uma atualização de script, ou, em temos
mais elegantes, uma demonstração de como a estrutura orienta a ação e é por esta estruturada.
Em outras palavras, só mostra que os frutos não caem tão longe da árvore. Prosseguindo com
Sennet: “Desde os tempos mais primitivos, a tecelagem era uma atividade reservada às
mulheres, que lhes conferiam respeitabilidade na vida pública”, para completar: “os ofícios e
artífices domésticos têm um caráter diferente dos trabalhos que hoje se executam fora de
casa”.455.

A casa, contudo, é dinâmica, uma dimensão que ao mesmo tempo reproduz e resiste
ao mundo como ele é. Prosseguindo com a dicotomia casa e rua, se a metrópolis de Simmel é

                                                                                                                         
454. Sennet, Richard. O artífice. Rio de Janeiro: Editora Record, 2009, p. 33.  
455 . Idem, p. 33.

  217  
o espaço no qual a homogeneização comparece, a casa, o interior não deixa de ser um recinto
de defesa da subjetividade.456

Nesta tese, tentei argumentar a favor de indagações de gênero no estudo da


arquitetura moderna, tomando a carreira de três mulheres reconhecidas e com renome e desta
caixa preta saíram novas e inevitáveis lacunas: poderes coloniais, hierarquias internacionais e
inter-regionais, divisões etárias de trabalho e, sobretudo, a premência de vasculhar um pouco
mais a “ordem das coisas” neste campo. Por vezes comentava achados da pesquisa com meus
(muitos) amigos arquitetos, para ouvir: “ah, mas nos escritórios é assim”. Essa modalidade de
afirmação merece uma dupla leitura: o porquê das coisas serem assim e o porquê da aceitação
tácita. Os arquitetos que façam o que quiserem nos seus escritórios, estagiários que trabalhem
de graça para aprender, autorias que sejam designadas (ainda) aos mestres, isso pouco me
importa. O que importa, em um trabalho acadêmico, é saber como isso reverbera no ensino e
aí temos a responsabilidade, enquanto pesquisadores, de abrir todas as caixas pretas que
estiverem ao nosso alcance.

E as caixas pretas abertas, alteram minimamente o estado das coisas. Hoje, a empresa
Cassina imprime na chaise-longue, os nomes de Le Corbusier, Pierre Jeanneret e Charlotte
Perriand, certamente porque depois de tantas pesquisas mostrarem as tensões da atribuição de
autoria, já não era mais viável simplesmente se grafar LC. A dois dias de depositar esse
trabalho, saiu o resultado do Prêmio Pritzker, atribuído a Ramon Vilalta, Rafael Aranda e
Carme Pigen, do escritório espanhol RCR, que atua em uma pequena cidade da Catalunha..
Pela primeira vez, um grupo de três pessoas, um escritório, ou seja, um reconhecimento de
trabalho coletivo. E, depois de Zaha Hadid, finalmente uma mulher de fora do star system da
arquitetura contemporânea.

Pesquisadores não pesquisam apenas por capricho ou deveres de carreira, mas para
contribuir com necessárias mudanças, ainda que elas sejam mínimas, quase imperceptíveis.

Se pendamos na modernidade como uma ruptura do pensar com tradição, como quis
Giddens, para pensar com reflexividade, é no mínimo desconcertante verificarmos que
enquanto mulheres entravam nos mundos do trabalho, sufragistas reivindicavam participação
política e o próprio corpo entrava em revolução silenciosa por meio de cortes de cabelo,
indumentária e posturas, os grupos de arquitetura continuasse,m em meio aos entreguerras,
presos a um modelo renascentista e ateliê ou escritório. Assim, ouso inquirir: se um universo
de atuação não incluía mulheres nos anos 1920, como podia se denominar moderna?

                                                                                                                         
456. Liernur, J.F. e Ballent, Anahi. La casa y a multitud. Vivienda, política y cultura en La Argentia moderna.
Ciudad Autônoma de Buenos Aires: Fondo de Cultura Econômica, 2014, p. 46.  

  218  
Deixem-me finalizar com uma conversa com uma orientanda de mestrado brilhante,
que certa ocasião me disse: “Você tem que entender que Le Corbusier é como Michelangelo,
e o ateliê é mesmo meio renascentista.

Não no sentido da dicotomia estilo versus causa, como quis Anatole Kopp457, mas
enquanto prática social: talvez a arquitetura esteja finalmente se tornando moderna.

                                                                                                                         
457 . Kopp, A. Quando o moderno não era um estilo e sim uma causa. São Paulo: Nobel, 1990. Um livro
claramente escrito para confrontar o debate pós-moderno, tentando recuperar a potência da “fase heróica”
do modernismo arquitetônico.  

  219  
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AGRADECIMENTOS

À FAPESP, por meio de um projeto regular, e ao CNPq, com a bolsa de


produtividade, que viabilizaram a pesquisa.

À UNICAMP, que eu escolhi para trabalhar quando me doutorei (e, por sorte,
fui por eles escolhida), cujo Departamento de História é um ambiente pra lá de
instigante do ponto de vista intelectual, cuja biblioteca de Ciências Humanas é
imbatível no pais (graças aos funcionários, à FAPESP, ao Michael Hall e ao saudoso
John Monteiro) e que, ao assinar bases bibliográficas eletrônicas como o JSTOR,
possibilitou essa o acesso a diversos materiais sem os quais, nada feito. Sem os livros
que eu encontrei na biblioteca e os muito textos que “baixei” não teria sequer
conseguido redigir o projeto de pesquisa.

Mas o cotidiano na UNICAMP é bem mais do que isso. É um programa de


pós-graduação estimulante onde tenho privilégio de ministrar aulas. É o lugar onde
encontrei pessoas cujo apoio intelectual, institucional e afetivo foi fundamental.

Nunca imaginei ter uma irmã que parecesse uma madonna (a dos quadros do
Renascimento, não a cantora pop) e eis que encontro Cris Meneguello. Estranhamos
um pouco e discordamos muito, como irmãs, mas é a companheira de trabalho que eu
pediria a deus, caso acreditasse em algo, como ela. Até nisso a teimosa discorda de
mim. Cris é um dos vértices do que eu carinhosamente chamo de “quarteto”
fantástico, the fab four que tenho a honra de integrar com José Alves de Freitas Neto e
Iara Schiavinatto. Inteligência, carinho, cumplicidade, companheirismo,
conhecimento, amizade, aposta uns nos outros: nada falta ente nós quatro. Fundamos
uma linha de pesquisa à qual se juntou Aline Carvalho, que trouxe oxigênio e
criatividade à toda nossa conversa sobre patrimônio.

Leila Algranti, Stella Bresciani, Edgar De Decca (in memoriam) e Bel Marson
são companheiros de área de pesquisa que acima de tudo constituem um exemplo. Na
UNICAMP eu reencontrei intelectualmente – pois afetivamente nunca nos
desencontramos – Heloisa Pontes. Essa tese não existiria sem seu estímulo para que
eu publicasse o primeiro texto a respeito e sem os dois cursos que ministramos juntas
na pós. O que devo a ela não cabe nesses agradecimentos.

  228  
Em Paris, no gelado inverno de 2005-6, Stella Bresciani e Heloísa Pontes
viram comigo a exposição de Charlotte Perriand no Centre Pompidou. Como eu
literalmente enlouqueci achando que tinha descoberto um tema de pesquisa, o olhar
de confirmação das duas foi fundamental para que eu percebesse que não era surto,
era um bando de idéias dispersas que então se manifestavam. Merci, Stella e Helô.
Naquele mesmo inverno parisiense, quando fiz um breve pós-doc, Afrânio Garcia
também deu apoio à pesquisa que parecia ali nascer.

Roberto Grün me emprestou vários livros fundamentais, mesmo sabendo,


espero, que jamais os veria de volta, que eu os incorporaria à minha biblioteca.
Trouxe de Paris um livro sobre a Charlotte e o Japão, um belo presente, e insistiu que
eu prestasse atenção no fordismo, além de me brindar com os filmes sobre os
engenheiros Gilbreth.

Ana Paula Simioni, Bibia Gregori, Paulo Garcez, Monica Schpun, Guita
Debert, Iara Beleli, Helena Sampaio, Ana Lanna, Simone Frangella, Fernanda Arêas
Peixoto, Renato Cymbalista, Joana Mello, José Lira, Marcelo Suzuki, Bia Cappello,
Flavia Nascimento, Vânia Carvalho, Sabrina Fontenele, Vânia Carvalho, Leopoldo
Waizbort, Sergio Miceli, Beatriz Kühl, Monica Junqueira, Wilton Silva, Omar
Thomaz e Silvio Oksman foram ajudando a iluminar o tema com conversas informais
aqui e ali, em caronas, cafés, jantares, viagens, bancas etc.

As colegas do Pagu, que escutaram um seminário logo no início do trabalho, e


deram sugestões significativas. Apresentar as primeiras indagações para Mariza
Correa, querida mestra que admiro desde o mestrado, foi no mínimo um deleite. Só eu
sei a falta que ela me faz e o quanto esta pesquisa deve a ela.

Com Joana e Flávia, um trio de conversa bastante informal deu origem ao


grupo que promoveu o seminário Domesticidade, Gênero e Cultura em 2013, com o
auxílio luxuoso de José Lira, que se integrou ao time. Dessa experiência nasceu um
grupo de trabalho e discussão que cresceu com Vânia Carvalho, Mina Warchavchik e
Sabrina Fontenelle. Grupo que teve vida breve e que sonho um dia poder retomar.

Raquel Franklin, que coordenou uma mesa no Docomomo do México, fez


boas observações sobre meu paper, que está na base do segundo capítulo. Ainda nessa
reunião, agradeço os comentários e conversas informais com Maristela Cacciato,

  229  
Stanislaus Von Moos, Carlos Comas, Beatriz Cappello, Carlos Comas e Saran
Topelson de Grinberg.

A Cris Fino, pela paciência com que editou Lina por escrito, e à Marina
Grinover pela parceria nesta empreitada.

O interesse pela arquitetura paulista do pós-guerra trouxe, literalmente, Arthur


Ruegg e Stanislaus Von Moos até mim. Alguns livros nos aproximaram. Agradeço
aos dois a acolhida em Zurique, a generosidade e especialmente ao Arthur por me
apresentar à Pernette Perriand e Jacques Barsac, por me levar ao Pavilhão Heidi
Weber e por elucidar a disputa em torno das patentes do mobiliário de Le Corbusier.
E em Zurique, cidade que parece ter entrado na minha rota, quero agradecer à sorte de
ter cruzado meu caminho com o curador Roger Martin Buergel.

Abílio Guerra generosamente publicou duas pequenas resenhas no


Vitruvius/Arquitextos, o melhor site sobre arquitetura que conheço, o que foi
importante pois me permitiu ir “pensando aos poucos” em um tema novo e espinhoso.

Flávia Nascimento, autora de um dos melhores estudos sobre Affonso E.


Reidy que conheço, pelos livros e indicações.

A Rede Brasil-Portugal de Estudos Urbanos acolheu uma apresentação do


trabalho em janeiro de 2010. Agradeço mil vezes ao amigos que fiz na Universidade
de Coimbra: Carlos Fortuna, Paulo Peixoto, Claudino Ferreira e Paula Abreu por anos
de troca intensa. E o Jorge Figueira por me convidar a integrar o dossiê Mulheres e
Arquitetura que ele publicou logo em seguida.

Monica Schpun me convidou para um séjour na EHESS que foi crucial.


Agradeço por tudo. E ao CNPq por ter possibilitado essa estadia.

Descobri David Hynes e sua esposa Judith Dwight por acaso na internet.
Trocamos mensagens, eles me receberam em sua casa com chá, vinho e informações
muito interessantes. E confiaram um álbum fotográfico, verdadeiro tesouro de família
a uma estranha que vinha de um pais distante. Thank you both, não tenho palavras
para exprimir meu contentamento naquele fim de semana perfeito em Portsmouth –
até um domingo ensolarado na Inglaterra vocês providenciaram para mim.

  230  
Ao arquivo de Grete Schütte Lihotzky em Viena e seus gentis funcionários,
pacientes com quem não fala alemão. Ao arquivo dos CIAM na ETH onde David me
ajudou a não me perder em meio a tanto documento interessante. Aos funcionários da
biblioteca da Fundação Calouste Gulbenkian, das bibliotecas de Paris, especialmente
a Cite d’Architecture et Patrimoine e o Musée des Arts Decóratifs. Pesquisar com
vista pra torre Eiffel ou pro Louvre foi mesmo inesquecível.

Se menciono arquivos e colegas que me receberam é também para enfatizar


que trata-se de uma tese produto da internacionalização da universidade, que me
permitiu a altivez de eleger um objeto não apenas brasileiro. A isso acrescento, alem
das citadas agencias de fomento, todos aqueles que se empenham para colocar
informação de qualidade na internet. Artigos do Jstor, livros lidos no Google Books,
obras baixadas (legalmente) na íntegra no Archive.org, filmes e propagandas que
pude assistir no youtube.com – poderia me perguntar como pesquisar sem isso tudo.
Mas prefiro me indagar: diante disso tudo, como não mergulhar de cabeça na
pesquisa?

Costumo dizer que meus alunos só me dão alegria. Tenho a sorte de ter os
melhores orientandos e de ter conseguido estabelecer com eles um clima de
verdadeira troca de idéias. Obrigada, Anne Capello, Rafaela Martins, Alexandra
Tedesco, Sandro Valentini, Bruno Zorek, Ligia Moura, Fernanda Drummond,
Deborah Neves e Sabrina Fontenelle pela melhores manhãs de quinta-feira. Mesmo
quando o Brasil parecia desabar, nossas reuniões preenchiam o vazio com o sentido
que o conhecimento propicia. Obrigada por terem discutido minha pesquisa, como um
grupo como vocês tudo é melhor e mais desafiante.

Obrigada, Leo Novo e Suelen Caldas por me ajudarem em um semestre difícil.

Aos alunos de AU, que contribuíram para que, “pensando alto” durantes as
aulas, algumas ideias avançassem. Às meninas do Coletivo Charlotte Perriand:
quando minhas alunas fazem um coletivo feminista com um nome que vem da minha
pesquisa, é porque algo está dando muito certo.

As “Dirces” acolhem sempre umas as outras. Obrigada, Barbara Corrales,


mais uma vez Helena Sampaio, Helena Tassara, Monica Gouveia, Maria Telles,
Flávia Costa e Daisy Perelmutter pelo exercício da sororidade.

  231  
Denise, minha irmã caçula, gostou do primeiro escrito e mais, me ensinou a
fazer os cinco ritos tibetanos que me ajudaram a manter, na medida do possível, a
calma e o pique. Rejane, minha irmã do meio, providenciou receitas de florais quando
o prazo parecia me roubar a calma necessária para escrever. Luciano, o mais novo de
todos, me defende, literalmente, das vilanias do mundo corporativo.

Francisco Izzo, meu filho, recentemente me perguntou se quando eu fazia


pesquisa a idéia ficava ali martelando o dia inteiro, não dava sossego. Diante da
minha resposta afirmativa, completou: “acho que agora entendo o que você faz”.
Chico, que já suportou algumas teses e muito trabalho de minha parte, é um adulto
que e ao enfrentar seus próprios desafios entendeu os meus. Obrigada, por tudo e
sempre.

À minha avó materna, que quando eu era muito pequena – em plena guerra
fria – dizia que o american way of life (ou, o que era o pior, em suas palavras, o
imperialismo ianque) entrava nas nossas casas por meio do aspirador de pó e da
geladeira. E, diante de minha incredulidade infantil, recomendava que eu lesse os
romances de Grahan Greene, especialmente Nosso homem em Havana. Pois é, vó,
acho que vou reler. Então, começando pela minha avó Maria Antonieta Rangel,
dedico este trabalho ela, à minha mãe Zillah e à minha tia-madrinha Maria Zélia, in
memoriam. De certo, modo escrevi essa tese em homenagem a três mulheres que
devem ter vivido parte do sentimento de inadequação que minhas personagens
experimentaram, embora em uma experiência muito mais pedestre, anônima e sem
traço de glamur. Nada para elas foi fácil, e a pesquisa só aumentou esta certeza.

Oferto este trabalho às minhas sobrinhas Diana, Laura e Helena Vera Rubino,
esperando um futuro melhor.

E dedico também à minha amiga Lena Machado, que foi embora muito, muito
antes da hora. E, claro, à Mariza Correa. Sem ter lido Antropólogas e antropologia eu
jamais teria pensado em estudar as arquitetas.

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