Lugar de Mulher - SilvanaRubino
Lugar de Mulher - SilvanaRubino
Lugar de Mulher - SilvanaRubino
SILVANA RUBINO
2
RESUMO/ABSTRACT
ÍNDICE
INTRODUÇÃO.................................................................................................................................
.........3
Estrutura da
tese.............................................................................................................................16
CAPÍTULO I
Tudo começou na
Bauhaus..........................................................................................................21
CAPÍTULO II
Em busca da
profissionalização..................................................................................................48
Desumana e
coquette.......................................................................................................................56
O ateliê da rue de
Sèvres................................................................................................................61
As amarras dos
gêneros.................................................................................................................86
3
CAPÍTULO III
As artes do
morar..............................................................................................................................90
A arte de
morar...............................................................................................................................108
Lina
conselheira..............................................................................................................................123
CAPÍTULO IV
Pedregulho e o
DHP.......................................................................................................................147
As casas do
casal.............................................................................................................................155
CAPÍTULO V
Fordismo doméstico
...................................................................................................................163
O problema dos
empregados....................................................................................................165
A cozinha-
laboratório...................................................................................................................170
A cozinha de
Frankfurt................................................................................................................175
4
Vida doméstica em
exposição...................................................................................................177
Paulette
Bernege............................................................................................................................183
A máquina e o “gosto
moderno”..............................................................................................191
PALAVRAS
FINAIS.................................................................................................................................201
AGRADECIMENTOS........................................................................................................................
......205
5
INTRODUÇÃO
CORPOS E CADEIRAS, IMAGENS GENERIFICADAS
Começo esta tese por com duas imagens, pois foram elas que deram origem a
esta pesquisa (Fig. 1 e 2). A inquietação, ou a perplexidade ocasionada pela
semelhança de postura corporal, e da relação entre corpo e objeto – no caso, duas
cadeiras – em duas fotografias provocou uma reflexão que deu início a uma novo
projeto e a esta tese. Posadas, estudadas e controladas, as imagens mostram duas
mulheres sentadas em cadeiras por elas desenhadas. Nas respectivas fotografias, estas
mulheres vinculadas ao modernismo arquitetônico usam seus corpos como medida
ergonométrica para suas obras. Embora ocultem os rostos, como se quisessem se
tornar anônimas, sabemos de quem se trata e em diversas ocasiões as fotografias
foram utilizadas como assinaturas, como imagem-símbolo que remetia a autoria.
Estas semelhanças aparentes começam a se dissipar se notamos a indumentária das
mulheres retratadas, certamente um primeiro sinal da distância que separa 1929, com
a jovem Charlotte Perriand (1903-1999) de vestido e sapatos femininos posando para
mostrar sua cadeira em uma exposição, do ano de 1951 com a arquiteta Lina Bo Bardi
(1914-1992) aos 37 anos, casada com Pietro Maria Bardi e já em vias de
reconhecimento, de calça comprida e sapatos fechados, mostrando em diversas poses
a versatilidade de sua cadeira (fig 3 e 4). De qualquer modo, vemos nas imagens uma
relação corporal que remete a repouso e feminilidade, além de um lembrete de autoria
que assina as fotos e coloca duas cadeiras como obras únicas: pontos de similitude
que nos convidam a ensaiar uma aproximação que trazendo momentos das trajetórias
das duas artistas, aliadas à cultura material e visual, nos permite especular a respeito
de relações entre gênero e produção cultural.
6
brasileiros do século XX1. Imagens que exigem serem lidas no contexto de uma
cultura visual que na primeira foto estava em tensão e na segunda, consagrada. A
busca em se entender o que levou a estas foros, para além de suas semelhanças,
conduziu à proposta de analisar estes dois casos de trajetórias bem-sucedidas, com
carreira, obra, nome e visibilidade no sentido de argumentar que, mais do que as
mulheres que ficaram à margem, aquelas que – como Lina e Charlotte –
freqüentaram o centro de seus respectivos campos podem dizer algo de novo a
respeito da silenciosa divisão de trabalho por gênero no interior da prática
arquitetônica do século XX, assim como revelar um modernismo no feminino. Afinal,
quando nos perguntamos sobre a participação feminina nos grupos de arquitetos
modernos, seus nomes se impõem ao lado de outros como Eileen Gray (1878-1976),
Ray Eames (1912-1988) e Alison Smithson (1928-1993), dente outras, como se suas
meras presenças e o sucesso que granjearam não pudessem indicar e indiciar formas
sutis de sujeição e auto-sujeição, cujas tensões aparecem inclusive em suas obras e no
modo como elas foram exibidas – por isso a centralidade das fotos.
1 . O que podemos extrair de uma imagem? A última passagem do livro de Miceli é notável: “Pulsões e
pretensões amorosas, ideais de beleza e espiritualidade, fabulações de idade e gênero, projetos de afirmação
econômica, expectativas de prestígio e distinção, ambições políticas, impulsos de liderança cultural,
arroubos de vanguardismo artístico, recados doutrinários, comemorações e contenciosos familiares,
tensões conjugais, lances de patriotismo, rivalidades profissionais, uma trama intrincada de desejos,
emoções, projeções, ressentimentos, alegrias e decepções, a mescla diversificada de energias de todo tipo
que constituem a matéria-prima sociologicamente disponível a ser transmutada em composição plástica.”
Miceli, Sergio. Imagens negociadas. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, pp. 142-3.
7
Lina Bo Bardi e Charlotte Perriand lograram construir um nome reconhecido,
mas por isso mesmo é preciso desmistificar o sucesso dessas “heroínas solitárias” –
não foram nem uma coisa nem outra – e observar como de certo modo trajetórias e
obras se articulam a saberes e práticas que tiveram lugar no século XIX e começo do
XX. O registro da excepcionalidade só faz sentido se a situarmos numa exceção mais
ampla do que suas qualidades singulares: em um conjunto de circunstâncias que se
combinaram de modo pouco comum. Nessas posições, é imperativo levarmos a sério
alguns momentos de demarcação de fronteiras de gênero nas trajetórias de Bardi e
Perriand. Quando Lina, ao se formar em arquitetura recebeu de seu professor
Marcello Piacentini (1881-1960) o veredicto de que se casaria, bella ragazza, para
não exercer a profissão, temos um momento simétrico à recepção que Le Corbusier
deu à jovem Charlotte que batia à porta de seu ateliê em busca de trabalho: “aqui não
bordamos almofadas”. Nesses rituais de não investimento o mundo doméstico em
oposição ao profissional – casamento, almofadas – aparece como o destino feminino
ao mesmo tempo que estabelece uma hierarquia: o lugar para onde elas deveriam
retornar não era dos mais desejados pelo mundo dessas profissões masculinas. Talvez
o mundo doméstico cotidiano e seus pequenos ritos nunca tivessem constituído o
cerne da reflexão da arquitetura; a habitação, contudo o foi. Segundo Beatriz
Colomina nada distinguiu mais a arquitetura do século XX do que o papel crucial da
casa privada, com idéias importantes de Adolf Loos, Le Corbusier e outros sendo
elaboradas por meio dos projetos de residência – casas que os tornaram conhecidos,
tenham ou não sido construídas, especialmente aquelas que foram projetadas para
mostras, publicações e concursos. Exemplos disso vão de statements, casas-manifesto,
como algumas dos arquitetos consagrados, parte delas desabitadas há décadas, às
casas projetadas sobretudo por seu efeito demonstrativo, como o Siedlung Werkbund
de Stuttgart de 1927, o evento nos mesmos moldes e com o mesmo nome em Viena,
dois anos mais tarde e, algumas décadas depois do outro lado no Atlântico Norte, as
Case Studies House californianas.
8
doméstico e sim um projeto de ensino2. Qual minha surpresa ao começar a lidar com
o escasso material sobre Carmen, não apenas com uma revisita às suas posturas
feministas quando de sua participação na concepção de Pedregulho, como sobretudo
com suas descrições do espaço da casa em um projeto urbanístico para uma capital!
Ainda assim, Carmen é um contraponto e é nesse sentido sua trajetória e algo de sua
obra comparecem nesta pesquisa.
Como não poderia deixar de ser, as personagens desta trama dedicaram boa
parte do seu tempo, talento e energia a refletir sobre a casa, desde o projeto de uma
com paredes envidraçadas – um statement que deveria ter se espraiado pelo Jardim
Morumby, como ansiou e propôs Pietro Maria Bardi a respeito da casa projetada por
sua esposa Lina – até preocupações “menores”, no sentido de mais ligada às pequenas
astúcias do cotidiano como onde guardar objetos, como manter a casa arrumada, onde
comer etc. , o que pode incluir as cozinhas pensadas em algum momento por Lina (na
Casa de Vidro), Charlotte (em 1929) e na tensão gerada pelas propostas de Carmen
Portinho para as áreas de trabalho do conjunto residencial Pedregulho, no Rio de
Janeiro.
2. A Escola Superior de Desenho Industrial (ESDI) foi fundada em 1961. Carmen foi sua diretora entre
1967 e 1988.
9
Bahia (MAMB), Lina trabalhava em grupo, e as nuances de sua parceria com Pietro
Maria Bardi ainda não foram suficientemente avaliadas. Carmen Portinho recebeu
pouco estudo a seu respeito – o livro de Ana Luiza Nobre é uma bela exceção – e
quando aparece em textos e livros é com freqüência com menção ao seu companheiro
Affonfo Eduardo Reidy. A longa entrevista que ela concedeu a Nabil Bonduki pouco
antes de falecer é quase que inteiramente voltada à atuação de Reidy.
Contudo, não se trata apenas de tirar estas trajetórias da sombra dos grandes
homens. Por um lado, atendendo ao que Griselda Pollock reivindicou para a pintura, a
recuperação histórica de mulheres que eram arquitetas – nesta tese isso inclui
engenheiras civis e designers – é uma necessidade primordial por conta da constante
obliteração de suas atividades na história dessa atividade3, uma vez que todos os
precursores canonizados dos movimentos artísticos reconhecidos como modernos são
homens. Se a recuperação de seus nomes não é o mais essencial nessa pesquisa e para
as trajetórias escolhidas, pois as três tem seu nome reconhecido, ainda assim, restam
outros desafios como, a partir delas repensar alguns marcos temporais deste campo.
10
pensar de modo relacional, confrontando duas ordens de hierarquias: gênero e gênero
artístico. Em outras palavras: colocar essas personagens em relações onde essas
demarcações podem aparecer, ainda que de modo subliminar. Não se trata apenas da
glamurosa Charlotte num ateliê masculino ou de Pietro Maria Bardi adjetivando o
conhecido museu projetado por sua esposa como “um sonho de mulher”. É preciso
lembrar como a literatura tratou Sonia Delaunay e sua presumida relação maternal e
instintiva com as cores (recordando que ela evidenciou sua pesquisa numa colcha para
com filho recém-nascido) se comparada à abordagem intelectual e lógica de seu
marido Robert5; a relação de Anni Albers (1889-1994) com a tapeçaria enquanto
Joseph (1888-1976) dedicava-se à teoria das cores6; a bem formada e vanguardista
Ray (Kaiser) Eames passando a ser tratada como braço direito de Charles (1907-
1978)7 em uma atitude de quase auto-sujeição. Os exemplos são inúmeros e
interessam especialmente por remeterem a divisões culturalmente constituídas que,
repetidas e reiteradas na longa duração, ganharam quase um caráter de dualidade
universal8.
5 . A ucraniana Sonia Terk chegou em Paris em 1905 aos vinte anos e conheceu Robert Delaunay em 1908,
iniciando uma intensa parceria pessoal e artística. A partir de 1910 o trabalho de cada um deles começou a
tender à abstração, que Robert denominava “desconstrução” enquanto Sonia a experimentava em
superfícies têxteis. Sonia tornou-se particularmente conhecida pelas roupas que desenhou e quando a obra
de Robert tornou-se mais consistente em relação aos debates estéticos dos anos 1910, a obra de Sonia
voltou-se para colagens, pastéis, tecidos e objetos domésticos. A respeito do trabalho do casal Delaunay,
ver Chadwick & Courtivon, op. cit., pp. 30-49.
6 . O casal Albers se conheceu em 1922 na Bauhaus. Ele foi um dos mais influentes professores de pintura
da escola, autor de uma teoria das cores enquanto ela, cujo nome de solteira era Annelise Fleischmann.
dedicou-se à tecelagem e a escritos sobre design. Em 1933 – Anni era judia – o casal migrou para os
Estados Unidos, de onde empreenderam uma série de viagens pela América Latina.
7 . Charles Eames abandonou o curso de arquitetura no segundo ano, trabalhando como fotógrafo e
também com diversas modalidades de artesanato como cerâmica e impressão. Sua adesão ao design
moderno deu-se em grande medida por sua proximidade com o designer Eliel Saarinen e sua esposa Loja, e
posteriormente seu filho Eero. Em 1941 casou-se com Ray Kaiser, pintora e escultora formada em Nova
York e militante do grupo AAA (American Abstracts Artists). Pat Kirkham observa o quanto a comum
dualidade que em parcerias artísticas vincula a mulher ao universo do artesanato e o homem ao da
abstração era justamente o inverso no momento em que o casal iniciou sua parceria amorosa e artística.
Kirkham, Pat. “Humanizing modernism: the crafts, ‘functioning decoration’ and the Eameses’. Journal of
Design History Vol 11, nº 1, Design History Society, 1998.
8 . A própria pedagogia da Bauhaus trabalhava nessa dualidade. A herança história européia, vista como
opressora era vista como “feminina” e “maternal”, enquanto que a admirada indústria norte-americana era
percebida como masculina. Herbert Bayer(1900-1985) trabalhava com esses opostos: os gostos da cultura
popular e de massa, irracionais e femininos deveriam ser disciplinados pela tipografia e pelo desenho,
equivalentes ao pai racional e regulador da teoria freudiana. “Esses limites são ecoados na dicotomia
estabelecida por Bayer entre a cultura popular e o design ‘funcional’, entre a história (regressiva) o futuro
(progressista) e entre o estilo (feminino) e sua rejeição (masculina).” Mills, Mike. “O Universal Type de
11
OS USOS DA IMAGEM NA PESQUISA
Sabe-se que também Lina (Fig. 9) desenhava suas roupas e mas mandava
confeccionar por alfaiates (jamais costureiras), e nas memórias de Charlotte consta
com ênfase os momentos em que ela desenhou e montou seus próprios colares – de
Herbert Bayer em seus contextos históricos. Lupton, E. & Abbott Miller, J. (orgs) ABC da Bauhaus: a
Bauhaus e a teoria do design. São Paulo: Cosac & Naify, 2008, p. 50.
9 . Pat Kirkham. Charles and Ray Eames. Designers of the twentieth century. Cambridge, MA e London, England:
12
metal, de conchas. Por que era importante para estas mulheres que sua aparência
corporal remetesse ao seu trabalho, e vice-versa? Aparentemente, para alem de casas-
manifesto e fotos-manifesto, a própria indumentária era um gesto consciente e
deliberado de expressar algo que remetia ao trabalho, uma mensagem silenciosa. É
também possível que uma visão que equivale luxo e decorativismo a um pensamento
retrógrado e produção da máquina a um progressista tivesse migrado para as roupas.
Lina e Charlotte usaram corpos, seus corpos, como medida para um móvel que
elas projetaram e que até então era classificado como um móvel masculino. A
poltrona Surrepos que pode ter servido de modelo para a chaise-longue tinha seu uso
demonstrado por um homem e as primeiras cadeiras de Charlotte, como foram
inspiradas em cadeiras de escritório. Vania Carneiro de Carvalho mostra como
poltronas são parte dos espaços masculinos da casa, em oposição aos sofás,
exatamente porque as primeiras permitiam apenas uma pessoa sentada, o homem da
casa, compenetrado ou se recuperando do trabalho no ambiente exterior, em oposição
ao sofá, cujas qualidades eram mostradas com uma mulher ali sentada com sua prole.
Lina Bo Bardi jamais desenhou um sofá e não havia um na Casa de Vidro, embora um
croqui mostrasse um móvel ou um degrau na sala onde estão sentados ela – de calças
compridas –, Bardi, uma terceira figura masculina e um gato (Figura 8). Estariam
nessas fotos, Lina e Charlotte tomando posse do móvel destinado ao homem, o
repouso que remete ao trabalho no espaço público, revertendo a teatralidade do
espaço doméstico, propondo uma nova?
13
O termo teatralidade é intencional. A divulgação da Bardi‘s Bowl mostrava
uma atriz reconhecidamente bela, Odete Lara com as pernas cruzadas, elegantemente
trajada e calçada, usando jóias e com o rosto ligeiramente virado, de olhos cerrados. A
cadeira foi capa da revista norte-americana Interiors e traz duas imagens de Lina, uma
como figura e outra como fundo, como marca d’agua: nas duas imagens Lina está
lendo. A de fundo esconde o rosto e tem os pés no cão; na que sobressai, temos suas
mãos, pernas e um livro, em cor contrastante.
10 . Carvalho, Vânia C. Gênero e artefato. O sistema doméstico na perspectiva da cultura material – São Paulo, 1870-
1920. São Paulo: Edusp/FAPESP, 2008, p. 195.
11 . Como notou Mary McLeod, as cadeiras de Charlotte não freqüentam tanto os espaços corporativos
14
projetos. Não se trata apenas de ergonomia. Charlotte era uma mulher de baixa
estatura, o que causava reclamações de Le Corbusier, que a acusava de fazer projetos
pensando em um usuário com suas dimensões – nada mais distante do homem
universal! – e se observarmos com atenção a fotografia veremos que a cadeira se
ajusta bem à moça que nela repousa.
12 . Refiro-me aqui especialmente à critica de Adrian Forty à impregnação da noção de gute form, para ele
uma ideologia, nos estudos de design. Sua resposta a ela passa pelo reconhecimento da vida dos objetos, da
sociologia de Pierre Bourdieu, estudos de gênero e outras contribuições que esta tese corrobora. Adrian
Forty, Objetos de desejo. Design e sociedade desde 1750. São Paulo: Cosac & Naify, 2007, especialmente a
introdução.
15
outros.13 Examinando as fotografias da exposição, Paul Overy observa que o aposento
feminino tem uma cama de casal, enquanto o masculino tem um divã; a escrivaninha
masculina tem um fichário, a feminina uma série de gavetas estreitas para se guardar
artigos de toucador ou roupa de baixo. Na mesa do homem o telefone era preto e
havia três livros grossos; na mesa da mulher o telefone era branco e havia uma pilha
de revistas. No quarto da mulher havia um gramofone enquanto que no do homem
encontrávamos um globo: se ambos remetiam à comunicação internacional, o
feminino sugeria um espaço doméstico enquanto o masculino fazia pensar em
explorar o mundo. O quarto masculino tinha mais prateleiras, o feminino mais
armários. E o espelho da mulher era bem maior.14
Observo que existem muitas maneiras de nos sentar, que variam de acordo
com a hora do dia, a ordem de nossas preocupações, a atitude que tomamos
num salão (...). Para trabalhar sentamos de maneira “ativa”. A cadeira é um
instrumento de suplício que nos mantém admiravelmente despertos. Quando
trabalho preciso de uma cadeira.
Sento-me para conversar: determinada poltrona proporciona-me uma postura
decente e elegante. Sento-me “ativo” para argumentar, demonstrar uma tese,
13 . Paul Overy. “The Werkbund Exhibition, Paris, 1930”. Journal of Design History no. 17 (4), 2004, p. 341.
14 . Idem, p. 350.
15 O autor se refere à Christine Keele, protagonista do caso Profumo, que foi fotografa nua na cadeira em
1963, lembrando que sua imagem tornou-se icônica, o que não surpreende.
16 . Le Corbusier. Precisões sobre um estado presente da arquitetura e do urbanismo. São Paulo: Cosac & Naify, 2004,
p. 113.
16
propor minha maneira de ver: como este tamborete alto convém à minha
atitude! Sento-me tranqüilo, descontraído: este tamborete turco dos “cavedjis”
de Istambul, com 35 cm de altura e 30 cm de diâmetro é uma maravilha: nele
ficaria horas sem me cansar, sentado sobre meu traseiro. (...) Mas eis aí a
máquina de descansar? Nós a construímos com tubos de bicicleta e a cobrimos
com uma magnífica pele de potro. (...) Pensei num caubói do faroeste,
fumando o cachimbo, com os pés erguidos mais altos do que a cabeça,
apoiados na borda da lareira.17
Certamente ele descrevia a chaise-longue, assim como os outroa móveir
realizados com intensa participação de Charlotte. A engenheira Carmen Portinho lá
estava, atenta às palestras do arquiteto.
17 . Idem, p. 125.
17
convida a observar as obras, a procurar nelas as tensões de gênero que marcaram suas
trajetórias, que, tudo parece indicar, conferiu às mulheres um lugar no menos
valorizado espaço doméstico e no âmbito das chamadas artes menores. Seria,
contudo, forçar demais a premissa da pesquisa afirmar que cadeiras, móveis e
cozinhas foram definidos, internamente ao mundo dos arquitetos modernos como
assunto de mulher. Bastaria mencionarmos as conhecidas cadeiras produzidas pela
Bahuaus, como a Wassily, do arquiteto Marcel Breuer, para derrubarmos tal
argumento. E sabemos que, confinadas às oficinas de têxtil e louça, Anni Alpers,
Marianne Brandt e outras contribuíram para borrar as fronteiras entre gêneros
artísticos. Por enquanto, encerramos com uma imagem da cadeira de Breuer, na qual a
modelo, possivelmente aluna da Bauhaus, empresta seu corpo feminino para exibir as
qualidades da cadeira (Fig. 7). Não olha para a parede, como Charlotte, nem se oculta
atrás de um livro como Lina. Usa, sim, uma máscara, como modo de se tornar
anônima. Sabemos apenas quem projetou a cadeira – Marcel Breuer – e a máscara –
Oskar Schlemer – mas não quem é a modelo. Por outro lado, o nome de Charlotte
esmaeceu por trás de uma denominação – LC4 – atribuída a Corbusier ou, quando
muito, a ele, Jeanneret e Perriand.
18
1960 também a idéia de design se altera, migrando um pouco do discurso épico e do
homem universal para as múltiplas narrativas de um mercado em expansão com um
imenso apoio na visualidade. Circunscrever trajetórias, espaços e objetos no
modernismo foi, desde o início, uma opção bastante clara desta pesquisa. E, nessa
perspectiva, modernismo é um termo êmico, mas é também o limite inicial e final de
nossa cronologia.
Como objetos que são, cadeiras, colares e cozinhas possuem agência e são
bem mais do que meras representações ou material inerte esperando que um uso lhes
confira sentido: eles existem e merecem nossa análise com boas ferramentas
metodológicas. São objetos materiais que têm autoria – e segundo Adrian Forty tudo
que está no mundo foi desenhado por alguém – e a hipótese dessa tese é que espaços e
objetos pensados por mulheres, sobretudo para a casa, revelam uma simbiose entre
suas identidades sociais e profissionais femininas – mesmo que elas reiteradamente
neguem tal lugar – e o resultado de seu trabalhos. São objetos que, ao fim e ao cabo
nos convidam a visitar os lugares de mulher. São os lugares de mulher que nos
permitem renovar novas perguntas aos objetos por elas pensados.
Por fim uma explicação quase telegráfica do título da tese: lugar de mulher é,
claro, um duplo que lugar social e dos lugares projetados por elas. Poderia ser espaço
de mulher se tomássemos a divisão entre espaço e lugar proposta por Michel de
Certeau. Nessa tese, optou-se pelo lugar como um lugar de mulher por sua força
semântica e por ele remeter tanto aos lugares interditados, um subtendido da
expressão, como, no caso dos objetos eleitos, à casa como lugar da mulher: a dona da
casa, de casa, a autora do projeto. Sim, na arquitetura moderna não foram muitos os
lugares de mulher, mas o espaço domestico certamente foi um deles.
19
ESTRUTURA DA TESE
20
CAPÍTULO I
OS LUGARES DA MULHER NA HISTÓRIA DA ARQUITETURA MODERNA
Ich bin keine Küche, eu não sou uma cozinha, costumava dizer a arquiteta
Margarete Schütte-Lihotzky (Viena, 1897-2000), reivindicando que se levasse em
conta sua longa e profícua carreira e não apenas a conhecida Cozinha de Frankfurt.
Com razão: seu arquivo em Viena guarda realizações na Áustria, Bulgária, União
Soviética, Turquia, escritos e desenhos de escolas, mobiliário, casas, decoração,
cozinhas burguesas e, claro, a cozinha de 1926-7.
Esta tese não é sobre a arquiteta austríaca, mas sobre o lugar da mulher
arquiteta na arquitetura moderna, seus feitos e suas limitações, seus deslocamentos
nesse campo e suas contribuições para noções de domesticidade moderna. Isso será
feito por um exame das trajetórias de Charlotte Perriand (Paris, 1903-1999), Lina Bo
Bardi (Roma, 1914 – São Paulo 1992) e Carmen Portinho (Corumbá, 1903 – Rio de
Janeiro, 2001). Se a primeira, oriunda do mundo das artes decorativas só conseguiu
praticar arquitetura no final da vida, Lina foi arquiteta na ampla definição do termo e
Carmen, engenheira, foi a que propiciou grandes projetos com dimensão urbanística.
A pesquisa nasceu com um artigo de 2010 que comparava as trajetórias de Lina e
Charlotte e a intenção de introduzir Carmen foi a princípio como um contraponto,
pois as primeiras partiram do desenho, ilustração, decoração para a arquitetura e
Carmen começou pelo urbanismo, como veremos. Mais do que um jogo de escalas,
essas passagens são também um deslocamento em circuitos hierárquicos nos quais a
decoração do espaço interno certamente aufere menos prestigio do que um grande
plano urbanístico – tanto que os arquitetos modernos evitam a palavra “decoração”,
embora a pratiquem.
O exame de tais trajetórias exige uma apreciação das narrativas canônicas nas
quais arquitetas comparecem comumente limitadas ao momento ou movimento que
confere sentido a uma história oficial (em que pesem as variações do cânone) que,
como outras dimensões do exercício dessa profissão, é masculina. A participação
21
feminina no auto-denominado Movimento Moderno18 demanda investigações no
âmbito da sociologia da cultura, história social, cultura visual, história da arquitetura e
cultura material tendo como foco o papel das relações de gênero na produção de
objetos como mobiliário, projetos arquitetônicos e planos de cidade. Gênero aqui
remete menos a um estudo das mulheres, suas trajetórias e obras e mais a uma
concepção de organização da diferença sexual, do conhecimento relativo sobre tal
diferença – conhecimento, nos termos foucaultianos colocados por Joan Scott,
ordenando o mundo sem ser anterior à organização social e inseparável desta19.
sentido atribuído a este por Michel Foucault. Saber sempre relativo, de produção complexa, cujos usos e
significados nas apenas nascem de disputas políticas como eles próprios constituem meios de construção
de relações de poder. Em outras palavras, modos de ordenar o mundo. Scott, Joan W. Gender and the politics
of History. New York: Columbia University Press, 1999.
20. Pollock, G. Vision and difference. Feminism, feminity and the history of art. London & New York, Routledge,
2003.
21 . Há vários grupos de pesquisadoras feministas realizando um grande inventário de arquitetas. Cito,
apenas como um exemplo, o coletivo espanhol (que reúne pesquisadoras de Barcelona, Valencia, Madri e
outras universidades) Un dia una arquitecta, que publica a cada dia uma pequena biografia de uma arquiteta,
conhecidas ou não. https://undiaunaarquitecta.wordpress.com/, última consulta em 10 de janeiro de 2017.
22
com Raymond Williams que um grupo de amigos pode ser bem mais do que isso – ou
seja, levando-se em conta tanto o ethos interno a um grupo – por exemplo, um grupo
de vanguarda – como suas posições de classe.
Lina Bo Bardi mereceu uma breve citação no volume de Yves Bruand23 sobre
arquitetura moderna brasileira, mas devemos considerar que o livro é quase
22 . Transnacional não é o mesmo que internacional e não se trata de negar a importância de contextos
nacionais e/ou locais, mas de considerar intercâmbios culturais, zonas de contato – que podem ser físicas
como também comunidades de discurso) e levar em consideração que tais relações são sempre de mão
dupla. Ver Weinstein, B. “Pensando a história fora da nação: a historiografia da América Latina e o viés
transnacional”. Revista Eletrônica da ANPHLAC. N. 14, jan – jun de 2013.
http://revistas.fflch.usp.br/anphlac/article/view/2331, último acesso em 18 de janeiro de 2017.
23. Bruand, Yves. Arquitetura contemporânea no Brasil. São Paulo, Editora Perspectiva, 1981. A tese de
Bruand, defendida na França, é de 1975.
23
contemporâneo de sua obra mais conhecida, o edifício do Museu de Arte de São
Paulo na Avenida Paulista. O fluxo de teses, livros e artigos a respeito de sua atuação
é posterior ao seu falecimento em 1992. Contudo, ao contrário da designer e arquiteta
irlandesa Eileen Gray (1878-1976)24, Lina morreu no auge de sua consagração, após o
projeto do SESC Pompéia e no momento em que projetava a prefeitura da cidade de
São Paulo.
24 . A escolha das três personagens foi tarefa difícil. Lina, Charlotte e Carmen poderiam ser Eileen Gray,
Ray Eames e Janete Costa, por exemplo. Ou várias outras, desde que tivessem conseguido construir uma
sólida carreira. A escolha pelo trio estudado remete a um jogo de escalas, hierarquias sutis incluídas. De
qualquer modo, Gray, Eames e no último capítulo, Schütte-Lihotzky comparecem para elucidar pontos de
vista, permitir melhores argumentos por efeito de comparação.
24
em 192725, quando veremos nos dois últimos capítulos que antes dessa data muitas
mulheres de formação dicersa já pensaram na modernização organização e mesmo
taylorização da cozinha.
& Dal Co, Francesco. Modern Architecture. Milano: Electra Editrice, 1986 [1976]; Curtis, William. Arquitetura
moderna desde 1900. Porto Alegre: Bockman, 2008.
25
Weimar garantia às mulheres liberdade irrestrita de estudo, ou seja, nenhuma
academia poderia barrar seu ingresso. Assim, em setembro de 1920, Walter Gropius
sugeriu ao conselho da escola que a seleção fosse mais rigorosa, dede o início,
especialmente no caso do sexo feminino, sobre-representado em termos numéricos, e
recomendou que não se fizesse com elas nenhuma (atividade experimental, que elas
fossem conduzidas diretamente para as oficinas de têxteis, com cerâmica e
encadernação (mas a oficina de encadernação de livros foi fechada em seguida) e em
1923 a decisão da escola era, em relação à cerâmica, de não admitir mulheres, “para
seu próprio bem e para o bem do ateliê”. E a nenhuma mulher deveria ser permitido
estudar arquitetura.
A tecelagem é antes de tudo um campo feminino. Jogar com forma e cor, uma
acentuada sensibilidade com o material, a habilidade de sentir e adaptar
fortemente, mais rítmica do que pensamento lógico, tudo isso são
28 . Droste, M. op. cit. pp. 38-40.
29. Droste, M. op. cit. p. 72
26
predisposições com as quais o caráter feminino é genericamente equipado, o
que tona as mulheres particularmente aptas a atingir grande criatividade no
campo da tecelagem. 30
Este texto, publicado no periódico Offset em 1926 não impediu que no mesmo
ano ela escrevesse ao governo de Dessau, para onde a escola havia se transferido,
condicionando sua permanência na Bauhaus a uma condição na qual sua posição de
líder do departamento de tecelagem fosse igual, em termos salariais, a dos condutores
dos outros departamentos. 31
Tudo que foi assinalado até agora poderia ser atribuído também a outros
arquitetos, seus grupos e seus parceiros. É pouco estudado o papel de Pierre Jeanneret
no ateliê de Le Corbusier, para não mencionarmos os tantos arquitetos do mundo todo
que por ali passaram. A estrutura de ateliê, aceita por grande parte dos pesquisadores
sem maiores perguntas, obscurece a participação dos colaboradores; a centralidade do
líder é visão êmica que migra para a bibliografia canônica32. Se Margarette Schütte-
Lihotzky é pouco conhecida além de sua cozinha, seu marido o arquiteto Wilheim
Schütte também é pouco ou nada estudado. Assim, a procura de nomes femininos
revela a premência da busca de outros nomes, dos arquitetos que muito construíram,
30 . “Waving is primarily a woman’s Field. Play with form and color, and enhanced sensitivity to material,
the ability to feel and adapt strongly, more rhythmic than logical thinking are all predispositions with which
the female character is generally equipped, which makes women particularly able to achieve great creativity
in the field of textiles”. Stadler, M. & Aloni, Y. (Ed.) Gunta Stolz Bauhaus Master. Ostfilern, Alemanha: Hatje
Cantz Verlag, 2009, p. 87.
31 . Idem, p. 91.
32 . Assumo aqui a perspectiva do sociólogo norteamericano Howard Becker, para quem o trabalho
artístico, como toda atividade humana envolve cooperação e um grande numero de pessoas, sendo que o
trabalho dá mostras dessa cooperação. Contudo, se, no caso da arquitetura moderna (como para outros
casos, mas vamos ficar no que interessa) as avaliações repetem as visões dos praticantes, é preciso lembrar
que aquele que escreve e quando escreve afeta nosso julgamento a respeito do que é o trabalho em questão
e do que ele releva a respeito de quem o fez. Isso é importante na medida em que apreciamos e mesmo
julgamos o trabalho de modos diversos, mas também porque as reputações dos artistas são a soma dos
valores que atribuímos à sua obra. Ver Becker, H. S. Art worlds, Berkeley & Los Angeles: University of
Califórnia Press, 1982, p. 23.
27
daqueles que tiveram carreiras pouco analisadas e do que isso quer dizer para o
mundo do arquiteto e do ensino da arquitetura.
Para além dos inúmeros méritos do livro citado35, temos um parágrafo para
três mulheres importantes no debate sobre a habitação moderna, funcionalista e
mínima. A mesma obra menciona de passagem a artista Varvara Stepanova no
capítulo sobre os construtivistas soviéticos e a inglesa Alison Smithson merece umas
poucas páginas, porém sempre referida como o casal Smithson, the Smithsons.
Gender ideology was always-already at work in art history and its sustained
mythologies. Far from being gender-neutral and indifferent, museological art history
has been a powerful inscription of a self-reflecting, narcissistic, masculinist vision in
which men act and create and ‘woman’ is positioned as other, a resource for art, a
part of the world of nature, reproduction, and matter which masculine creativity
33. No capítulo “The role of the masters” do Modern Architecture estes são Le Corbusier, Mies van der Rohe
e Frank Lloyd Wright.
34 Coulquhoun, Alan. Modern architecture. Oxford & New York: Oxford University Press, 2002, p. 165.
35 . As observações aqui apresentadas não representam uma ressalva historiográfica tout court aos autores
mencionados, mas a constatação da cegueira relativa dos mesmos ao que é externo ao debate arquitetônico,
com exceções pontuais. Uma análise da historiografia mais utilizada (em aulas, artigos e pesquisa em geral)
é tarefa necessária, mas não é o objetivo desta tese.
28
strives to master and reform in an activity – artistic creation – that makes (the) man.
Such processes occur at levels beyond individual consciousness, intent, or even
36
purposeful understanding.
William Curtis, em seu Arquitetura moderna desde 1900, dedica uma linha a
Schütte-Lihotzky, outra a Charlotte Perriand e algumas ao casal Smithson. A casa
californiana do casal Eames aparece como de Charles Eames – Ray Eames, co-autora
da casa e de tudo que é subsumido na expressão eameses, sequer é mencionada – e há
uma breve passagem sobre a casa de Eileen Gray no sul da França. No compêndio
Arte Moderna, de Giulio Carlo Argan, que dedica parte significativa de sua reflexão à
arquitetura, não há sequer uma citação às mulheres da Bauhaus, mas nos verbetes do
final do livro temos Walter Gropius, Lazlo Moholy-Nagy, Oskar Schlemmer e Paul
Klee. Em uma ilustração consta o nome de Aino Marsio ao lado do marido Alvar
Aalto – este sim que ganhou um verbete – e a única mulher, não arquiteta a receber
uma ficha foi Sonia Delaunay Terk: “Casou-se com [Robert] Delaunay em 1910,
criando com ele uma aliança indissociável de trabalho e vida. Sua pesquisa é paralela
à de Delaunay, mesmo que seu trabalho estenda-se além da pintura (...) para as artes
aplicadas. (...)”37.
36. Pollock, Griselda. “The Missing future: MoMA and Modern Women”. Butler, C. & Schwartz, A. (Ed.)
Modern Women. Women artists at the Museum of Modern Art. New York, MoMA, 2010, p. 39.
37 . Argan, Giulio Carlo. Arte moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 660. O verbete dedicado a
29
crescente do tema da domesticidade nesta tese. Colomina fala em colaboração, tema
denegado pela ênfase na autoria, a seu (e meu) ver uma espécie de caixa preta da
história da arquitetura: colaboração é a história secreta dos arquitetos, a vida
doméstica da arquitetura.39
39 . Colomina, Beatriz. “With or without you,” Butler, C. & Schwartz, A. (Ed.) Modern Women. Women artists
at the Museum of Modern Art. New York: MoMA, 2010, p. 218.
40 . Colomina, B. “Battle lines: E 1027. Renaissance and modern studies, volume 39, Issue 1: Space and Gender,
liberdade e estímulo para o desenvolvimento das crianças. Seu princípio mais conhecido é o da auto-
educação, no qual a criança tem a interferência mínima e necessária dos professores, mesmo estando
sempre sob supervisão.
30
registrar o nome de Truus Schröder como co-autora e de posteriormente passar a ali
viver, com ela. Quando escreveu seu manifesto “Novo funcionalismo na arquitetura
holandesa”, Rietvelt já vivia com Truus42.
42. Friedman, Alice. Women and the making of the modern house. A social and architectural history. New Haven:
Yale University Press, 2006.
31
diante a decoração perdia seu nome, subsumido no adjetivo “moderno”, se
masculinizava de vez, deixando o passado no passado e, talvez, para as mulheres.
Lina Bo Bardi escreveu e muito sobre casa e decoração, mesmo sem usar este
termo. Em seus primeiros anos de formada em Milão, publicou diversos artigos sobre
arredamento, espaços internos, geralmente voltados a demandas práticas como “de
que modo usar móveis modernos em uma casa antiga”. Lina foi trabalhar, sem
remuneração, com o polivalente arquiteto Giò Ponti: editor, autor de edifícios
importantes, designer e promotor do artesanato italiano, seu escritório dedicava-se,
dentre tantas tarefas, à organização das Trienais de Artes Decorativas. Um projeto de
decoração de interiores, realizado em parceria com Carlo Pagani chegou a ser
executada em 1942. A revista Quaderni di Domus, que Lina fundou – também com
Pagani – em 1945, dedicava-se aos problemas da casa moderna – da porta para
dentro, ao que tudo indica – e nela eram publicado os melhores exemplos, italianos ou
não, de mobiliário e equipamento doméstico43. Em 1946, Lina viajou por toda a Itália
pesquisando artesanato com a finalidade de organizar uma exposição de têxteis para
cortinas e estofamentos para uma empresa italiana, a Rima e instalada na São Paulo
dos anos 1950 fez muitos projetos de decoração de interiores, alguns para completar,
“vestir” os espaços modernos projetados por seus colegas arquitetos, como Vilanova
Artigas e Rino Levi.44
Em uma revista que fundou na Itália em 1945 com Bruno Zevi – A, ou Cultura
della Vitta – Lina propunha um jogo que ensinava o leitor a usar a casa e os objetos
modernos. Tratava-se sempre da escolha de um copo, um relógio doméstico, um
adorno. A resposta “errada” era severamente criticada como falta de visão funcional e
estética. No mesmo periódico, que durou apenas nove meses, ela editou um artigo a
respeito da liberdade feminina no século XX, liberdade solucionada por meio de
equipamento doméstico e de uma cozinha americana. E em 1958, já radicada no
Brasil, escreveu um interessante verbete sobre a casa, publicado em uma
convencional Enciclopédia da Mulher, do qual trataremos no terceiro capítulo.
43 . Campello, Maria de Fátima M. B. As moradas da alma. Dissertação de mestrado. EESC-USP São Carlos,
1997, p. 22.
44 . Rosatti, Camila G. Casas burguesas, arquitetos modernos: condições sociais de produção da arquitetura paulista entre
32
A trajetória de Charlotte foi inteiramente nas artes decorativas, ainda que
culminando em sua participação em um projeto arquitetônico e urbanístico para uma
estação de esqui, Les Arcs, já no final de sua vida. Durante os dez anos em que
trabalhou com Le Corbusier e Pierre Jeanneret, foi responsável pelo equipamento
interior de todas as construções da dupla de arquitetos. Em 1937 foi convidada a se
retirar do ateliê, por sua presença disruptiva, um elemento perturbador – foi esta a
justificativa de Le Corbusier. Até que ponto suas opções políticas, a proximidade
afetiva que ela, divorciada de seu primeiro casamento, mantinha com Jeanneret teriam
prevalecido nessa decisão? O que interessa aqui é que ela atuou nos anos de conflito
simbólico entre o campo da art-déco para o da arquitetura moderna e seus
equipamentos de habitação, e sua trajetória testemunha um esforço para migrar de um
ambiente mais acadêmico e comercial para uma vanguarda aparentemente
desinteressada, mas quando lá chegou esta já havia decretado o rappel à l’ordre e
talvez tais fronteiras não fizessem mais tanto sentido. Voltou a trabalhar com Le
Corbusier depois da guerra, respondendo pelos interiores de diversos projetos, como a
Unidade de Habitação de Marselha e casas da Cidade Universitária de Paris.
33
companheiro, o arquiteto Affonso Eduardo Reidy resultou no conjunto habitacional
conhecido como Pedregulho, no Rio de Janeiro. É dessa pioneira do feminismo no
Brasil a interferência que fez com que o conjunto tivesse uma lavanderia coletiva,
para resguardar o trabalho feminino de uma dupla jornada. Pedregulho tinha uma
dimensão urbanística, com escola, lavanderia, área de esporte, piscina, assim como
por sua densidade populacional.
Finalizando, o que é possível pensar a partir de tudo isso? Mais uma vez, não
se trata apenas, embora essa seja uma tarefa incontornável, de catalogar as mulheres
presentes em ateliês, escritórios, parcerias, as esposas silenciosas, as amantes
obscurecidas. Trata-se, a meu ver, de fazermos perguntas renovadas à documentação
conhecida e àquela que as novas indagações podem demandar. Trata-se também de
não tomarmos como resposta e explicação as falas dos próprios arquitetos, de não
deixarmos migrar para os estudos suas idiossincrasias, visões de mundo, disputas por
hegemonia no campo. Trata-se de rever hierarquias entre artes menores e maiores,
entre escalas mais e menos relevantes.
34
atacava seus princípios (racionalismo, funcionalismo), preconizava uma maior
liberdade de escolha, mas pouco incidiu na construção discursiva do cânone. Ainda
assim, é sempre bom lembrar que uma das primeiras censuras contundentes do
urbanismo funcionalista, veio de uma mulher, a jornalista canadense Jane Jacobs, que
curiosamente não menciona gênero ou mulheres em suas análises. E o impactante
livro Aprendendo com Las Vegas foi escrito a três vozes, sendo uma delas a da
arquiteta sulafricana Denise Scott-Browm. As revisões que trataremos a seguir pouco
ou nada tem a ver com essa liberdade estilística mercadológica que caracterizou esse
pós-modernismo que hoje parece datado, mais do que aqueles que foram seus alvos.
Mas é preciso reconhecer que talvez as brechas por eles criadas, especialmente a
critica ao grande relato ou grande narrativa, tenham aberto brechas, sendas para
estudos que miraram personagens “secundários”e realizações do modernismo
arquitetônico sob uma ótica generificada.
35
a partir dos anos 1970 e é onde nossa conversa começa, com a publicação da revista
norteamericana Heresies, apreciada dentro do debate de uma arquitetura feminista, ou
ao menos uma história que considere as mulheres, um marco fundador.
45 . Disponível em http://deyoung.famsf.org/files/whynogreatwomenartists_4.pdf, acessado pela última
vez em 18 de setembro de 2016.
46 . P. 3. Grifos do original.
36
Contudo, pergunta-se Nochlin, por que não ocorreu o mesmo na literatura? Se
não temos notícia de um Shakespeare no feminino – como não temos um
Michelangelo – há um numero expressivo de escritoras notáveis sem que sua obra
revele traços essenciais de “feminilidade”, ao menos não necessariamente. Nochlin
assume que arte pouco ou nada tem com expressão subjetiva de emoções. Assim, a
questão que importa recai nas condições de produção, assim como de transmissão dos
saberes artísticos, nas academias, o que conduz inevitavelmente às técnicas de ensino
de desenho e as tabus que cercam as aulas com modelo vivo, tema que para a arte
brasileira do século XIX foi magistralmente tratado pela socióloga Ana Paula
Simioni.47
47 . Simioni, Ana P. Profissão Artista. Pintoras e escultoras acadêmicas brasileiras. São Paulo: EDUSP, 2008.
37
Robert Delaunay foi permitido continuar se apresentando como um pintor e, talvez
mais importante, como um teórico da arte abstrata.48
48 . “Excerpts from women and decorative arts”. Heresies n. 4, 1978. Trata-se de uma versão condensada de
texto publicado em Ann Sutherland Harris e Linda Nochlin, Women Artists: 1550-1950.
49 . Por pioneirismo quero dizer que entre essa publicação dos anos 1970 e algumas publicações sobre as
mulheres da Bauhaus quando do centenário da criação da escola alemã, aparentemente houve um silêncio a
esse respeito, com publicações enfatizando sobretudo o papel dos arquitetos e pintores.
50 . Editorial, Heresies 11, p. 2.
38
doméstico51. Dolores Hayden, nascida em 1945 e já professora da universidade da
Califórnia em Los Angeles (UCLA), participou desse numero com o artigo “The
feminist paradise palace”, sobre a ativista política Charlotte Perkins Gilman (1860-
1935), cujo artigo “The passing of the home in great American cities”, de 1904, foi
também republicado na revista.
Berkeley e Matilda McQuaid (Ed) Architecture. A place for women. Washington & London: Smithsonian
Institute Press, 1989.
39
telefone teria dito: “What about Denise?”. Em 2013 um grupo de estudantes da escola
de arquitetura de Harvard iniciou uma petição pela correção do prêmio, que resultou
em nada e esse tema tornou-se um ponto sensível a cada nominação do Pritzker.53
53 . Em 2015, no congresso Matrices. Gender and Architecture, a arquiteta Martha Thorne, do conselho diretivo
do Pritzker, foi duramente inquirida pelas participantes do encontro.
54 . “De espaços outros”, disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-
40
modo, ela sugere que o impacto da obra de Foucault (assim como de Derrida) nos
meio acadêmicos norteamericanos pode ter encorajado arquitetos e seus teóricos a
pouco explorar outros interstícios entre espaço e poder, como tudo que diz respeito à
vida cotidiana, tema que como já notamos foi desenvolvido por Henri Lefebvre. E
como ainda não tivemos a oportunidade de assinalar, retomado por Michel de Certeau
nos anos 1980. Lefebvre e Certeau pouco exploraram a tirania e o controle dos
espaços cotidianos, e sim sua possibilidade de liberdade e diversidade. Na leitura que
feministas norteamericanas fizeram de Certeau, “outro” conduz ao que fica fora da
vida cotidiana e potencialmente também ao que nela cabe.
Mary McLeod é uma autora central para esta tese, o que justifica a atenção
conferida a seu ensaio, publicado na coletânea The sex of architecture55. O mesmo
volume republicou o disruptivo ensaio “Battle Linas: E 1027” de Beatriz Colomina e
uma resposta ao mesmo por Sylvia Lavin. Dentre outros subtemas, como a
colonização, o norte da África e a idéia antropológica de troca de presentes, Colomina
explorou a agência masculina de Le Corbusier (sim, um dos mestres da bibliografia
canônica) e sua desconsideração ciumenta, que não deixava de ser uma consideração
excessiva às avessas pelo trabalho de Eileen Gray.
55 . Agrest, D., Conway, P. & Weisman, L. K (eds). The sex of architeture. New York: Harry N Abrams, 1996.
56 . Correa, M. Antropólogas e antropologia. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2003, p. 186.
41
CAPÍTULO II
De certo modo, a designer Charlotte Perriand vem sendo redescoberta nas três
últimas décadas. Mary Mc Leod, uma das responsáveis pelo interesse acadêmico
atual, comenta que até o final dos anos 1970 ela só era conhecida por um pequeno
círculo de arquitetos franceses e pesquisadores de Le Corbusier. Nesse momento não
havia tanta atenção – jornalística, acadêmica e comercial – para o mobiliário dos anos
1950, tampouco publicações sobre seu colega arquiteto e colaborador Jean Prouvé.
Em 1985 sua trajetória e obra foram tema de uma grande retrospectiva no Musée des
Arts-Décoratifs de Paris, intitulada Charlotte Perriand un art de vivre e em 1998
tivemos uma exposição no Design Museum de Londres. Seria exagero falarmos em
um reconhecimento tardio, mas esta voga coincidiu com a publicação de sua
autobiografia Une vie de création57, de 1998 e seu falecimento em 1999. Em 2005,
foi a vez do Centre Georges Pompidou realizar uma extensa retrospectiva de sua obra
que ocupou boa parte do Musée National d’Art Moderne, no sexto andar do edifício,
por quatro meses de intensa visitação. Em 2010 o Museu do Design de Zurique
realizou uma exposição mais recortada, enfatizando seu ativismo e suas fotografias,
além de seus projetos de mobiliário.
57 . Ver resenha 089.1 de março de 2009, Resenhas Online, Vitruvius. Disponível em
http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/08.089/3040, última consulta em 01 de
fevereiro de 2017.
42
1990 os projetos de diversos móveis dos anos 1920/30 tornaram-se de domínio
público, podendo ser comercializados por qualquer fabricante. Não por acaso tais
temas vieram à tona nesse momento, quando debates sobre autoria, trabalho conjunto
em ateliê e temas correlatos já não mais diziam respeito a royalties – embora
comercialmente ainda exista uma bizarra discussão a respeito do objeto industrial
“autêntico”, o que pode inclusive sugerir um conluio de posturas acadêmicas e
interesses do mercado. Coincidência ou não, foi nessa circunstância que Charlotte
Perriand escreveu sua autobiografia, tornando pública sua versão de alguns fatos, sua
participação de diversos episódios que são parte da história, ou melhor, das histórias
da arquitetura e do design modernos. Da perspectiva da história intelectual, a atual
notoriedade remete também a uma movimentação no debate entre feminismo e artes
de modo geral, já tratado na apresentação desta tese: designers e parceiras de notórios
arquitetos designers ganharam visibilidade acadêmica.
58Michel Raynaud, citado por vários autores que estudam a designer.
59 . Em 1940 ela foi convidada pelo Ministério da Indústria e Comércio do Japão para trabalhar como
conselheira para assuntos de artes industriais. Entre 1943 e 1946, morou na Indochina. De volta à França,
teve um recomeço difícil mas refez aos poucos sua rede de relações e em 1950 trabalhou novamente com
Le Corbusier no protótipo da cozinha da Unité d’Habitation de Marselha e no ano seguinte criou a seção
Formes Utiles para o Salon des Arts Menagers, decorou um quarto de estudante na Casa da Tunísia da Cidade
Universitária parisiense em 1952. Entre 1955 e 91974, trabalhou com Jean Prouve e o mobiliário criado a
quatro mãos foi representado pela Galerie Steph Simon, que ficava em Saint German des Prés. Residiu de
43
para os 1970, Eileen Gray não teve clientes, tampouco reconhecimento por seu
trabalho anterior senão às vésperas de sua morte.60
modo intermitente no Brasil na década de 1960. Entre 1967 e 1982, participou da equipe que construiu a
estação de inverno Les Arcs, na Savoia.
60 . Segundo Walker, a arquitetura de Gray foi exibida pela primeira vem na Inglaterra em 1972-3. Walker,
Lynne. “Women architects”. Attfield, J & Kirkham, P. (Eds) A view from the interior. Feminism, women and
design. London: The Woman’s Press, 1989, p. 90.
61 . Perriand, C. Une vie de creátion, Paris : Odile Jacob, 1998, p.9.
44
perspectiva do pequeno artesão.62 Em cada andar do prédio onde foi criada, que ela
revelou/recordou em suas memórias, trabalhava e morava um artesão: costureiro,
chapeleiro, artífices que lidavam com plumas e couro, modistas e aprendizes. Seu pai
cortava tecidos para a respeitada alfaiataria masculina Cumberland; sua mãe era
especialista na confecção de coletes de piquê branco que eram usados por homens em
recepções de gala. Essas evocações de Charlotte, aliadas a visitas ao mercado Les
Halles para pedir as frutas não vendidas para fazer geleia63, testemunham a posição
social remediada de sua família, assim como a presença de pequenos trabalhadores
sem muitos recursos no centro de Paris, que ali permaneceram mesmo depois da
reforma do barão Haussmann. O início do século XX foi, nesse sentido, um período
de transição tanto da cidade e seus usos como dos pequenos ofícios que ela abrigava.
Já nas últimas décadas do século XIX, notou T.J. Clark, apesar de todas as alterações
oriundas do “bota abaixo” que deu lugar aos elegantes bulevares, Paris ainda era uma
cidade de trabalhadores, com mais homens ganhando a vida na pequena indústria do
que no comércio. Isso nos remete ao universo desses pequenos artesãos, a atividades
feitas em forjas e oficinas com poucos trabalhadores, a gráficos, cortadores de vidro,
alfaiates, cinzeladores, sapateiros etc, em suma, a atividades tradicionais. O contexto
da indústria era o quartier.64
62 . McLeod, Mary, « Introduction : Charlotte Perriand’s Art de vivre »2003, p. 11. MCcLeod, Mary (ed)
Charlotte Perriand. An art of living. New York : Harry N. Abrams/ The Architectural League of New York,
2003.
63 . Perriand, C. Une vie de creátion, op. cit.,pp. 12-13.
64 . Clark, T.J. O pintor da vida moderna. São Paulo : Companhia das Letras, 2004, p. 95.
45
rezava que a sobriedade a “nova mulher” minava um tipo de mulher parisiense
orgânica, decorativa, e discutia as implicações dessa nova postura às ordens urbana e
doméstica. Ele celebrava a habilidade feminina de adornar seu próprio corpo e os
espaços interiores aos quais ela naturalmente pertencia, alinhavando em seu
argumento mulheres decorativas e decoradoras, que tinham como modelo a mulher
aristocrática afeita aos trabalhos manuais, e delegando às esposas burguesas a
decoração não apenas das paredes de suas casas, como também o cultivo do luxo e do
caráter artístico em suas “roupas de baixo”. Uzanne e os Goncourts eram ávidos
colecionadores de objetos da tradição manual feminina da era aristocrática e, em sua
cruzada contra a femme nouvelle, Uzanne exalava um lamento: a loja de departamento
tornava impossível o caráter único da moda do século XVIII; ainda assim as mulheres
burguesas poderiam obter neste espaço algo equivalente em distinção.65
65. Silverman, Deborah L. Art nouveau in fin-de-siècle France. Politics, psychology and style. Berkeley, Los
Angeles & Oxford, University of California Press 1989, pp. 71-2.
66 . Exposition des Arts de la Femme. Paris, Imprimerie de A. Warmont, 1895. Disponível em
46
Marché, Grands Magasins du Louvre, Galleries Lafayette e Au Printemps, tornaram o
ato de comprar menos pessoal: nelas, qualquer burguês podia entrar, procurar
pechinchas, distinguir e decidir o que comprar, entre roupas que não foram cortadas
sob medida. Isso causou um forte efeito sobre a economia dos ateliês, que deixaram
de folgar em feriados e dias santos, e passaram a segmentar as tarefas em estágios e a
produzir com maior velocidade para atender os lojistas. Havia, claro, uma troca: ao
mesmo tempo que a oficina se desintegrava, a costureira lidava diretamente com o
capitalista e, nesse contato, ficava sabendo, o que não era de pouca relevância, o que
seria a moda daquela estação.67
67 . T.J. Clark, op. cit, pp. 101-3.
68 . Sparke, Penny. The Modern Interior, London: Reaktion books, 2008, p. 88
69 . Charlotte Chaucé, uma mulher na condução do ateliê de uma loja importante! Até o momento não
47
iniciativas não deixavam de ser respostas proativas a uma nomeada crise do gosto e
do mercado de luxo francês e de uma percepção da classe média como novo grupo
consumidor. Tratava-se de uma reação a uma visão propalada pelo comércio, pela
imprensade que o artista francês era engenhoso para produzir um objeto único mas
não dava conta da produção de séries ilimitadas70. Duas décadas mais tarde, em pleno
acirramento dessa discussão, os magasins tiveram lugar de destaque na Exposition
Internationale des Arts Décoratifs et Industriels Modernes de 1925, que reuniu os
principais decoradores do momento71.
70 . Benton, C., “The international exhibition”. Benton, C., Benton, T. & Wood, G. Art Deco 1910-1939.
Boston: New York & London, Bulfinch Press 2003 p. 142.
71 . The modern interior, op. cit., p 89; Costa Meyer, Esther. “Simulated Domesticities. Perriand before Le
Corbusier”, McLeod (ed). Charlotte Perriand. An art of living. New York : Harry N. Abrams/ The
Architectural League of New York2003, p. 33.
72 Pat Kirkham observa que a manufatura de móveis tem tradicionalmente na Europa seu escopo de
carreira e oportunidades reservados aos meninos, mas abre possibilidades ocasionais para moças quando
estas não têm irmãos para prosseguir com o trabalho de seus pais. Ver Kirkham, P. “If you have no sons:
furniture-making in Britain”. Attfield, J & Kirkham, P. (Eds). A view from the interior, London: The Women’s
Press Limited, 1989, p. 109.
73 . Une vie de création, op. cit., p. 31.
74 . Idem, p. 16.
75 . A Union Centrale des Arts Decoratifs foi fundada em 1864 como União Central das Belas Artes aplicadas à
Indústria. Ficava na Place Royale (hoje Place des Vosges), bem no bairro de artesãos que era o Marais. Seus
membros incluíam manufatureiros de papel de parede, tapetes, pianos, ourives etc. A mudança de nome
veio com outras alterações em 1890. O termo “indústria” foi suprimido e os objetivos transformados: por
volta de 1889, a idéia de vulgarizar o senso de beleza e democratizar a arte foi substituída por uma busca de
purificação da beleza e aristocratização do artesanato, cf. Silverman, op. cit., pp 111-3..
48
moças tivessem origem nas elites parisienses e a expectativa de um bom casamento76.
Seus pais queriam que ela estudasse na prestigiosa École Polythechnique77, a exemplo
do filho de um conhecido, que se tornou engenheiro de pontes e calçadas (ponts et
chaussées), mas faltava a ela a paixão pelos estudos78. A escola de artes decorativas a
apresentou a dois mundos então desconhecidos: o das moças que vinham do interior
da França e moravam em alojamentos para estudantes; e o das abastadas alunas
pagantes, destinadas a casamentos ricos, moças que “sonhavam com bailes”.
Ela era bolsista, não por mérito ou desempenho e sim graças à sua tia materna,
e sua necessidade de profissionalização nunca foi colocada em dúvida por sua família:
a cada manhã sua mãe a acordava, para no final do dia repetir que o trabalho libertava
– le travail, c’est la liberté. Quando da passagem de Charlotte pela École, sua direção
estava a cargo de mulheres, exceto por, Henri Rapin (1873-1939) que ocupava o
cargo de diretor artístico. Mas essa aparente particularidade teve origem nas
reformulações que a instituição sofreu por volta de 1890, dentre as quais ecoava a
visão desenvolvida em círculos oficiais, de que haveria um papel à mulher na
regeneração das artes aplicadas nacionais, e a partir de então essa escola envolveu-se
em campanhas para a liderança das mulheres na produção e consumo de um
artesanato de luxo. No começo do século XX, mulheres artistas como as já
76 . Silverman, Débora. Op. cit., p. 111
77 . Como se trata de memórias, com nomes grafados erroneamente, como seu professor Dufrène e mesmo
seu primeiro marido Scholefield, é possível que o tal conhecido tenha estudado na École de Ponts et
Chaussés e não na École Polythecnic.
78 . Curiosamente, em suas memórias ela não se pergunta se como mulher, poderia freqüentar as
ménagers, with its connotations of comfort and good taste, should be noted. These qualities associated
with traditional French artistry were also emphasized at the women’s school Perriand attended, the Ecole de
l’Union centrale des Arts Décoratifs.” Mary Mc Leod. “Charlotte Perriand’s Art de Vivre”. op. cit., p. 11.
49
mencionadas Eileen Grey e Sonia Delaunay, mas também Hélène Henry (1891–
1965), Charlotte Alix (1897–1987), Lucie Holt Le Son (1899- ?), dentre outras
ganhavam proeminência crescente no panorama das artes decorativas francesas80.
Charlotte não teve uma passagem cintilante ou destacada na École; percorreu
um caminho errático, com aulas cabuladas para passeios no Jardim do Luxemburgo, o
que criou problemas com sua condição de bolsista, chegando-se à uma quase expulsão
no segundo ano. Desejando trabalhar com a mãe, o que lhe foi negado, ela decidiu
apresentar novos desenhos ao professor Rapin, uma tentativa de permanecer no curso.
Quando a escola se mudou para as dependências do Musée des Arts Décoratifs, no
Louvre, ela passou a frequentar as aulas dos pintores Bernard Boutet de Montvel
(1881-1949)81 e Andrè Lhote (1985-1962). Desistiu logo das aulas com Lhote e
passou a complementar sua formação, inscrevendo-se no ateliê Pomone, da loja Au
Bon Marché e, o que foi mais decisivo, nas aulas vespertinas de Maurice Dufrène82, o
presidente do Salon des Artistes Décorateurs, responsável pelo desenho de mobiliário
das Galleries Lafayette. As demandas de Dufrène às alunas eram estritamente ligadas
ao universo da decoração, a partir de clientes imaginados, como “o quarto para uma
americana rica”83. Ao mesmo tempo, demandava projetos de protótipos como
estamparia para tecidos de estofamento, o que parecia a ela parte da vida real. Foi essa
formação complementar – que incluía concursos promovidos pela revista Art et
Industrie e cenários de teatro – que reintegrou Charlotte à escola – “eu não era mais
vista como marginal”, recordou84 – e ela foi uma das escolhidas para a Exposição de
Artes Decorativas de 192585. Em meio à imensidão do evento, passou desapercebida,
mesmo auxiliando seu mestre Dufrène.
80 . Esther da Costa Meyer, op. cit., p. 22, Mary McLeod, op. cit., p. 59.
81 . Bernard Boutet de Montvel era, alem de pintor, escultor, gravador, ilustrador de moda e decorador de
interiores. Nada distante do universo no qual Charlotte tentava se inserir.
82 . Maurice Dufrène (1876-1855) freqüentou e École Nationale des Arts Décoratifs e foi, em 1902, um dos
fundadores do Salon des Arts Décoratifs. Em 1921 assumiu a direção do ateliê La Maitrise, das Galleries
Lafayette.
83 . “Dans mon imaginaire, que pouvai bien faire une rich Américaine? Se cuiter la nuit dans les boîtes pour
rentrer au petit matin rejoinder sa couche. Mon projet s’exprima par une pente douce qui la dirigeait
directement -- plouf! – sur l’objet de son désir, le lit, dans une décor de star américaine.” Une vie de creation,
op. cit., p. 19.
84 . Une vie de création, op. cit., p. 19.
85 . A Exposition Internationale des Arts Décoratifs et Industriels Modernes, muitas vezes denominada apenas Art
Déco teve lugar em Paris de abril a outubro de 1925 e tinha como um de seus objetivos promover a
indústria francesa que perdia seu protagonismo na Europa posterior à Primeira Guerra.
50
A PARIS DA ART DÉCO
51
uma exposição dos “Decoradores de Munique”, que provocou reação hostil por parte
da imprensa parisiense, o que não impediu que em 1913 a exportação alemã de artes
industriais e produtos artísticos ultrapassasse a francesa, pois já havia chamado a
atenção em 190088. Cabia à França, na Exposição de 1925, reavivar a produção de
bens de luxo como signo de continuidade de seu lugar nos austeros anos do pós-
guerra o que, combinado ao temor da agressividade econômica que vinha da
Alemanha, adversária no conflito de 1914-18, enfatizou a importância da mostra.
88. Charlotte Benton, “The international Exhibition”, Benton, C., Benton, T. & Wood, G. Art Deco 1910-
1939. Boston, New York & London: Bulfinch Press 2003, p. 141-2.
52
Se as grandes lojas parisienses expuseram na Exposição de 1925, a partir de
então começaram a investir mais nas vitrinas, nos conjuntos de mobiliário
(ensembles) e a configurar uma certa partilha do perfil da clientela. Todas
reconheciam o valor comercial de um estilo para seus respectivos estúdios e os
folhetos de propaganda evidenciavam suas peculiaridades e os nomes de seus artistas.
Paul Follot (1887-1941) e seu grupo do Studio Pomone visavam uma clientela
conservadora e sua produção luxuosa ecoava aspectos das residências do passado,
enquanto George Bourgeois – conhecido como Djo Bourgeois(1898-1937) –, ao lado
de Maurice Matet e outros artistas do Studium Louvre, se dirigiam a uma clientela não
menos abastada, mas que se apresentava como mais arrojada89.
Essa virada artística dos templos do comércio não se deu apenas na França.
Em Nova York, a Macy’s, que funcionava desde 1851, começou a exibir peças de
design e o presidente do Metropolitan Museum, Robert W. De Forest, passou a ser do
conselho consultivo da loja, dando validação cultural a tais projetos de exibição de
mercadorias90.
89 . Charlotte Benton, op. cit. P. 146-7. A Encyclopédie des arts décoratifs et industriels modernes deu espaço a estas
manifestações artísticas-comerciais : « Chacun des principaux magasins de nouveautés de Paris possède
aujourd’hui un atelier d’art moderne dirigé par un artiste décorateur éminent. Cette innovation récente a
déjà amélioré & enrichie la production des objets de céramique, de verrerie, d’orfèvrerie, celle des papiers,
des étoffes de tenture, de l’ameublement en général. Il y a là, pour l’art moderne, un moyen de propagande
efficace. Les Grands Magasins ont tenu à présenter à l’exposition de 1925 les travaux de leurs ateliers ; ils
l’ont fait d’une façon qui témoigne à la fois du sérieux de leur tentative & de l’ampleur qu’ils entendent lui
donner. Cette adhésion résolue du commerce & de l’industrie constitue une grande victoire pour les
décorateurs contemporains. » Encyclopédie des arts décoratifs et industriels modernes au XX ème siécle, en douze
volumes. Paris, 1925, , p. 31. (foi consultada a enciclopédia pertencente à Fundação Gulbenkian em Lisboa
em 2010.
90 . “By the end of the 1920s the furniture sections of American department stores had fully embraced the
modern interior design style, known as Art Deco, that become popular in Europe following the 1925
Exposition Internationales des Arts Décoratifs et industriels Modernes, and they had begun to display complete
modern room sets, sometimes in partnership with museums. A mixture of modern France and American
designs in room settings were shown at both John Wanamaker and Macy’s in New York in 1927. Macy’s
cleared its floor of traditional pieces and showed only modern designs at that time. The president of New
York’s Metropolitan Museum of Art, Robert W. De Forest, became the chairman of the store advisory
committee, Thereby giving that commercial Project a level of cultural validation.” Sparke, P. Modern Interior,
op. cit.., pp. 62-3.
53
Guevrekian e Francis Jourdain além do decorador e desenhista de móveis Jacques-
Emmile Ruhlmann (1879-1933), formavam um catálogo vivo da moda e das artes
decorativas. Em meio a tamanha efervescência, discretamente, quase desapercebida –
pois a menção à sua participação é sempre retrospectiva – Charlotte Perriand
debutou.
EM BUSCA DA PROFISSIONALIZAÇÃO
Charlotte, então com vinte e dois anos, mostrou três trabalhos na vitrine da
Union Centrale des Arts Decoratifs: um conjunto de nove painéis para uma sala de
música representando as nove musas (Fig. 15), uma grade de ferro forjado e uma capa
de couro para o livro Eupalinos, de Paul Valéry. Para o pavilhão das Galleries
Lafayette, também coordenado por seu professor, Dufrène, ela desenhou um suporte
para quadros, que depois foi produzido e comercializado. Como participante e
consumidora visual, visitante dessa mostra, sua atenção foi voltada para os pavilhões
de prestígio e das grandes lojas de departamento e não para os da União Soviética,
sob responsabilidade do arquiteto Konstantin Melnikov, tampouco para o pavilhão do
Esprit Nouveau, de Charles Édouard Jeanneret, ambos arquitetos modernos que em
pouco tempo fariam parte das suas futuras redes de trabalho e sociabilidade:91
À l’Exposition, après avoir longé les pavillons de prestige et ceux des grands
magasins, dont celui de la maîtrise des Galleries Lafayette décoré par Dufresne92, je
passai devant le pavillon de l’URSS, qui tranchait dans tous ces décors, et le pavillon
de l’Esprit Nouveau de Le Corbusier et Pierre Jeanneret, si dépouillé, rélegué avec
mepris dans un coin. Il m’avait surprise mais pas atteinte93.
91 . Há uma homologia entre esse olhar que não se fixa nos pavilhões de proposta modernista e a atitude de
Lucio Costa em 1929, que praticamente ignorou a passagem de Le Corbusier no Rio de Janeiro. De
qualquer modo, devemos nos perguntar até que ponto o impacto dos dois pavilhões modernistas – o
soviético de Konstantin Melnikov e o de Le Corbusier – não é uma construção posterior ao evento, ditada
mais pela bibliografia defensora do Movimento Moderno do que pela visibilidade nos mesmos na ocasião.
Mas é preciso notar que a própria enciclopédia da exposição de 1925 dá pouquíssimo espaço a estas
inovações. O pavilhão soviético foi descrito como de uma simplicidade um tanto rudimentar. E a mesma
publicação perguntou, a respeito do pavilhão do Esprit Nouveau, se seria mesmo necessário se reduzir os
móveis ao estritamente necessário, como pareciam sustentar Le Corbusier e Pierre Jeanneret. Se Charlotte
estava afinada com o espírito dominante da mostra e com seus mestres, não seriam esses eventos
episódicos a chamar sua atenção.
92 . Como já foi assinalado, em sua autobiografia Une vie de création, Charlotte invariavelmente grafou errado
o nome de seu professor Dufrène. Curiosamente, isso escapou aos possíveis revisores, mas foi corrigido na
tradução para o inglês.
93 . Une vie de création, p. 20
54
A escolha de uma capa para Eupalinos, de Valery, é reveladora desse
desinteresse pelos dois únicos pavilhões vanguardistas. Pode remeter tanto a um flerte
com a arquitetura como a um retorno à ordem, tal como proposto nesse livro, que
defendia um retorno às variáveis estáveis da geometria para além de contingências
temporais e espaciais, como assinalou Costa Meyer94. O tema do retorno à ordem não
é fortuito se lembramos que outro grande manifesto nessa direção foi aquele
publicado por Le Corbusier e Ameedé Ozenfant em 1918. O historiador Carlo
Ginzburg chama a atenção para a relação entre ergonomia, fordismo e eurocentrismo
presente nesse opúsculo chamado Après Le Cubisme. Mas.... não era esta a proposta
do desenho industrial? Fordista, produtivista e utilitário, talvez seja essa a tensão com
os mundos das artes e do cotidiano, que do design – de objetos, de mobiliário –
buscava estetizar. E a jovem Charlotte, circulando entre os pavilhões declaradamente
comerciais e passando ao largo dos ditos vanguardistas não deixava de expressar essa
tensão nesse momento de mudança de espectro classificatório entre a decoração e o
modernismo.
Uma vez formada, ela recebeu de Dufrène e Rapin o conselho de que buscasse
a todo custo expor – afinal, ninguém a conhecia. Ela tinha trabalho nos ateliês das
grandes lojas, mas este, embora vendável, não trazia a marca da autoria. Ao apoio de
seus mestres veio a juntar-se o apoio de Henri Clouzot (1865-1941), diretor do Musée
Galliéra, figura importante que congregava os desenhistas de mobiliário na Paris
desses anos. O aconselhamento profissional nesse momento abaliza o perfil distinto
de suas colegas de curso, evidenciando que ela não havia frequentado a Union por
diletantismo ou à espera de um bom casamento, mas em busca de uma qualificação
para o trabalho – o que não impediu algumas amizades com as alunas mais ricas,
como Marianne, a filha de Clouzot. Em 1926, ela se dedicou, com ajuda financeira de
seus pais e de marceneiros indicados por Dufrène, a projetar o canto de uma sala,
Coin de Salon, (Fig. 16) sua primeira obra em mobiliário, exibida no salão anual da
Société des Artistes Décorateurs (SAD)95, em Paris. No conjunto, bastante
94 .”A call to order, Eupalinos advocated the return of architecture to the stable verities of geometry, beyond
contingencies of time and place. By casting his text in the form of dialogue between Socrates and
Phaedrus, Valéry elevated the architect to the same lofty status as the philosopher.”Costa Meyer, E. Op.
cit., p. 24.
95 . A Société des Artistes Décorateurs (SAD) foi fundada em 1901 como parte da elevação do status to
trabalhador artesão que em alguns casos passou a ser chamado de artista-decorador. A sociedade
55
impregnado pela sua inserção no meio art déco, destacava-se uma mesa e uma
estante-aparador, sendo o papel de parede também um padrão criado por Charlotte.
trabalhava muito em assuntos relativos à propriedade artística e legislação, e em sua definição o artista-
decorador deveria ser reconhecido como autor.
96 . Como já assinalamos Paul Follot foi o diretor artístico do estúdio Pomone, o ateliê de arte dos
armazéns Bon Marché entre 1923 e 1928. Produzia mobiliário e objetos em séries limitadas, usando materiais
como madeira machetada, marfim e bronze.
97 . Esther da Costa Meyer, op. cit. P 25.
98 . “Le 16e Salon des artistes décorateurs, coup d’oeil general”, Comoedia, 12 de maio de 1926. Apud
10.
56
eles se casaram no final de 1926. Se este capítulo dependesse apenas das memórias de
Perriand, pouco saberíamos desse enlace, apenas que ele era inglês, Percy, mais
velho, protestante e que ela se casou contra a vontade do pai e vestida de vermelho:
“Pensando da perspectiva de agora, eu penso que o casamento naquela época era o
único caminho possível para que a crisálida virasse borboleta. E a borboleta, ela
voa.”101 Contudo, é expressiva a recordação de sua amiga Marianne Clouzot:
Sholefield exibindo uma pequena Charlotte de vestido de renda e capa azul, ela
acuada como um gato molhado, ele lhe apresentando um mundo novo ao qual ela
reagia ora com encantamento ora com fastio. Ela encontrou no marido seu mecenas:
Scholefield patrocinou sua participação nos salões seguintes, ao mesmo tempo que
ofereceu atividades que poderiam aprimorar sua atuação: matemática e arquitetura
para superar sua defasagem cultural, e também aulas de condução de automóveis e de
inglês102, além do alpinismo, que veio a se tornar uma marca registrada103. As
transformações propiciadas pelo casamento são de ordem diversa: ela deixou a Rive
Droite e seus ofícios artesanais, mudou-se para o boêmio Quartier Latin, iniciou-se na
literatura inglesa, no jazz, aprendeu a dançar charleston, cortou os cabelos à la
garçonne e se tornou admiradora de Josephine Baker. Passou a encarnar a nouvelle
femme, que na geração de sua mãe era banida em todos os discursos como sinônimo
da degenerescência da França. Desenhou e mandou executar um colar de “bolotas”,
esferas de metal como se essa peça, de um modo um tanto metonímico, contivesse
toda mudança e modernidade que sua trajetória futura parecia anunciar. O casal não
viajou de lua de mel para que ela pudesse cuidar da concepção do novo apartamento,
um estúdio de um fotógrafo na Place St. Sulpice. A viagem de núpcias realizou-se em
1927, de automóvel pela França, em companhia da amiga Marianne Clousot.
101 . “En y reflechissant aujourd’hui, je pense que Le mariage à cette époque était le seul passage possible
pour que La chrysalide devint papillon. Et un papillon, ça vole.” Une vie de creátion, p. 22.
102 . Jacques Barsac, op. cit., p 24.
103 . Depoimento de Judi Dwight, sobrinha de Scholefield à autora em janeiro de 2013 em Portsmouth,
Reino Unido.
57
distinção entre fantasia e realidade e permitisse que o leitor passasse da tradução da
ficção para sua vida cotidiana. Esta era a Paris fin-de-siècle, cuja renovação urbana e
crise econômica transformaram a face da cidade permitindo a emergência de uma
cultura de consumo, de imprensa de massa, de uma rua espetacular pelos bulevares
haussmanianos. Foi o mercado dos sonhos de massa que deu lugar a uma geração de
femmes nouvelles, conectada não apenas com a Terceira República, mas sobretudo
com a mercantilização da cultura urbana francesa104.
58
cobre niquelado para a modista Jeanne Lanvin106. São fronteiras sutis entre dois
aspectos da indústria francesa do luxo; também no trabalho de Sonia Delaunay na
Exposição de 1925 moda, vitrine, arquitetura, automóveis, programação visual, tudo
parecia parte da mesma aposta na indústria, no artesanato de luxo e em sua renovação.
106 . Tanto Jacques Barsac como Arthur Ruegg são cautelosos com esta venda, pois não há documentação
apenas a mesma, apenas a recordação de Marianne Clouzot. De qualquer modo é interessante notar que
Jeanne Lanvin (1867-1946) também tinha origem modesta e firmou seu nome, primeiro no ramo da
chapelaria e posteriormente em sua Maison que em 1925, ano da exposição art-déco, empregava mais de
oitocentas operárias.
107 . Kirkham, P. “ ‘If you have no sons’: furniture-making in England”., p. 124.
108 . Ray Hille foi pintora em laca e em 1918, aos 19 anos de idade começou a desenhar mobiliário. Não
trabalhou em tempo integral na empresa de sua família por ser mulher. Mas em 1932 seu pai Salomon Hille
se aposentou e decidiu legar à filha a continuidade de seus negócios – Ray trabalhou até 1980. Doris
59
considerado adequado para as mulheres de classe média, uma vez que era apreciado
quase como uma extensão das habilidades femininas tradicionais. Assim, o papel
naturalmente atribuído à mulher, comumente descrito em termos de “gosto instintivo
e graça natural” não era colocado em questão, ao contrário. Este “gosto natural”
deveria se refletir na harmonia das cores escolhidas para papel de parede, cortinas,
tapetes, em todas as formas de conforto e elegância.109 Mais do que isso, o que as
mulheres produziam em termos artísticos passou a ser denominado artesanato ao
invés de arte, uma hierarquia pouco inocente, posto que as belas-artes constituíam
uma atividade pública, profissional. Essa divisão, ou hierarquia, altera todos circuitos
de apreciação e não tem necessariamente a ver com as qualidades intrínsecas daquilo
que se produzia, como analisaram Parker e Pollok110 . Mais uma vez a ênfase nas artes
têxteis, antecipando o destino social das mulheres da Bauhaus, enquanto marcenaria,
serralheria e a lida co outros materiais permaneceu a cargo dos homens – artesanato.
Young também assumiu o ramo dos negócios familiares em 1943, apos a morte de seu pai. Em seus
projetos, ela prestou especial atenção às necessidades femininas, desenhando uma cadeira especial para
amamentação para uma maternidade de Londres – cadeira depois transformada em cadeira para se assistir
televisão. Kirkham, op.cit.p. 125-7.
109 . Assim era descrito o papel da mulher no mundo das artes domesticas no artigo “Art-work for women
” publicado no Art Journal em 1872. Callen, Anthea. “Sexual division of labour in the Arts and Crafts
Movement”, A view from the interior. Feminism, women and design. London: The Woman’s Press, 1989, p. 153.
110 . Idem, p. 154.
60
exclusivamente feminina, e como tal padeceu com essa caracterização: como as
mulheres, os bordados eram vistos como delicados, decorativos e sem conteúdo. Os
homens elaboravam os riscos, suas mulheres e filhas os executavam. Jane Burden,
esposa de William Morris, foi iniciada no bordado pelo marido em 1859, após o
casamento, e quando suas filhas cresceram também entraram para o trabalho coletivo
à maneira medieval, como Morris tanto admirava. Sua filha May Morris rompeu um
pouco esse destino social das mulheres artesãs, assumindo a direção das oficinas de
bordados da empresa Morris, Marshall, Faulkner & Co em 1885, aos vinte e três
anos.
61
um ambiente completo com mobília, tapetes, trabalho em madeira e papel de parede
que foi também mostrado em 1988 – e isso não incluía bordado.
DESUMANA E COQUETTE
112 . APUD Walker, Lynne. “The Arts and Crafts Alternative”, p. 169.
62
classe triunfante não herdava propriedades nem alfaias ancestrais que limitassem suas
decisões decorativas. Nesse mesmo panorama, os papéis de mulher e a mãe eram
ligadas discursivamente à segurança nacional e, no campo artístico, a ideia de um
“retorno à ordem” casava bem com a proposta de um possível fordismo na vida
doméstica, que chegava dos Estados Unidos e da Alemanha.
113 . Charlotte Perriand, Une vie de création, op. cit., p . 23.
114 . Foi para mim uma curiosa experiência de pesquisa folhear o álbum de família de Percy Scholegield em
visita à sua sobrinha em janeiro de 2013. O que até então eu conhecia pela bibliografia e exposições como
“apartamento de Charlotte”, me foi mostrado como apartamento de Percy Scholefield, projeto de sua
esposa francesa Charlotte Perriand.
115 . Une vie de création, p. 23.
116 . Segundo Tag Gronberg, muitos consideram o filme de 1924 uma espécie de ensaio para a mostra de
1925. O filme incorporava diversos nomes que estariam presentes na exposição e evidenciava que, como
uma loja, podia funcionar como um mostruário das artes decorativas modernas da França. Tag Gronberg,
63
portava junto ao colo já parecia indiciar, de certo modo, uma convivência com um
tipo de trabalhador manual que já não era o artesão tradicional.
“Paris 1925: consuming modernity”, Benton, C., Benton, T. & Wood, G. Art Deco 1910-1939. Boston,
New York & London, Bulfinch Press 2003.p. 161.
117 . Jacques Barsac, Charlotte Perriand, un art d’habiter. Paris, Norma Éditions, 2005, p. 27.
64
em um salão, e nos diários de Marrianne Clouzot há referências a tais reuniões, com
cocktails preparados por Percy118.
No mesmo ano de 1927, começou a conceber sua sala de jantar, com cadeiras
giratórias em couro e metal tubular. Uma mesa, que fechada podia acolher cinco
pessoas, era extensível para receber onze e tinha uma cobertura em borracha. Para
sentar, ela redesenhou cadeiras de madeira que havia projetado um ano antes, desta
vez em metal e couro.(Fig. 18) Seu apartamento, visitado por um crítico, Marcel
Zahar, teve a sala de jantar descrita em La Revue de La Femme como um espaço que
seduz por sua coqueteria, o que era uma maneira de ressaltar a leveza, alegria e
feminilidade do espaço .119.
118 . Une vie de création, p. 24. O salon era a parte feminina da casa burguesa, o lugar de receber e mostrar
status e savoir-faire. Ao que tudo indica, os colaboradores mais jovens de Le Corbusier, como André
Roth, posteriormente freqüentaram as reuniões que Charlotte promovia em seu pequeno apartamento.
119 . “En préface joyeuse, se développe l’installation du bar: harmonies vives, chatoyantes des tubulures
d’acier chromé, coulées brillants des larges surfaces courbes; accords endiablés des notations crues des
cuirs; aus murs se rassemblent, comme un affiche, les accessoires du parfait inventeur de cocktail. La salle à
manger séduit par son caractère de coquetterie. (....) Apud Jacques Barsac, op. cit., p. 32. Ver também Tim
Benton, “Charlotte Perriand: Les années Le Corbusier”. Centre Pompidou, Charlotte Perriand. Catálogo de
exposição. Paris, Centre Pompidou, 2005, p. 12.
120 . Esther da Costa Meyer, p. 30.
121 . Ruegg, A. Libre de bord, p. 17.
65
Se o bar era um ambiente masculino, o metal era (e é) um material também
sexuado. Em 1929, Ernst Tisserand, um crítico de decoração, escreveu que o medo do
móvel tubular ou de todo tipo de móvel de metal era partilhado por senhoras da
aristocracia, pequenas burguesas e mesmo pelas famosas cocottes. Estas senhoras não
se dão conta de que vivem em meio a antigas mobílias carcomidas ou a peças
modernas que fazem lembrar túmulos ou mesmo caixões. O cemitério não as
incomoda; é a clínica que elas abominam.”122 Assim, pode-se dizer que o apartamento
de Perriand foi uma obra de ruptura, mais do que as que desenharia já no contexto do
ateliê de Le Corbusier: esse ambiente não tinha tapetes, tecidos, texturas macias ou
itens que feminizassem o interior doméstico em concordância com estereótipos
vigentes (então e mesmo ainda hoje). E as cadeiras pivotantes em metal tinham seu
assento forrado em couro, também um material associado aos espaços masculinos.
O nome era “bar sob o teto” e o teto era de uma mansarda parisiense e não de
um apartamento luxuoso; no mesmo artigo, Marcel Zahar observou que nesse
apartamento, a dona da casa podia prescindir de uma empregada doméstica, o que
remete a um debate intenso promovido em Paris por meio dos Salons des Arts
Ménagers, pela revista Mon chez moi e sobretudo pela atuação de Paulette Bernége:
como transformar o lar em um espaço que possa ser cuidado com menos empregados?
Como veremos, a resposta passava por arranjos mais funcionais123.
66
posteriormente na série de livros Repertoire du goût moderne. Nessa publicação, ela
estava em companhia de nomes importantes das artes decorativas como Djo-
Bourgeois , Francis Jourdain, E. Kohlmann, René Herbst e de arquitetos como André
Lurçat e Robert Mallet-Stevens, em uma publicação que pretendia, como o nome
indica, fornecer repertório moderno aos possíveis interessados :
Qu’il existe un gout proprement moderne, cela personne ne songe plus aujourd’hui le
contester. En peu d’années, grâce à l’œuvre de quelques artistes, le goût qui s’imposa
d’abord à une élite, a gagné une partie importante du public – dans tous les pays. Ce
qui crée, pour l’édition d’art documentaire, des nouvelles obligations.
124 . Répertoire du goût moderne, Éditions Albert Lévy, 1929. O trabalho de Charlotte Perriand foi publicado
nas pranchas 18 a 22 do segundo volume.
125 Barsac não tem muita certeza desta informação, considerando que pode ter sido iniciativa de Dufrène
para La Maîtrise, mas pode ter sido outra grande loja. Charlotte Perriand, un art d’habiter. Paris, Norma
Éditions, 2005, p. 34.
126 . Barsac, Jacques. Charlotte Perriand. Un art d’habiter. 1903-1959. Paris: Éditions Norma, 2005, p. 27.
67
existência profissional quando, aos vinte e três anos, conheceu Charles Édouard
Jeanneret, que poucos anos antes havia se rebatizado como Le Corbusier.
“Je ne puis me décider à dessiner une chaise; une chaise se fait avec
des outils et des expériences superposées; or je ne connais que mal
les outils et je n’ai pas d’expérience.” Le Corbusier, 1924127
A mudança que desse encontro se segue tem seu mito de origem pessoal. Bem
sucedida, moderna e na moda, Charlotte teria achado tudo um tanto limitado. Recebeu
de um amigo dois livros de Le Corbusier que fizeram com que ela olhasse as artes
decorativas de outra perspectiva. Reside aqui parte da cilada classificatória que
nomeia este capítulo. No livro em questão, As artes decorativas hoje Le Corbusier,
como já o fizeram em Depois do Cubismo, volta sua verve contra as artes decorativas
e ela era.... nada mais do que uma artista decoradora moderna em ascensão. Os passos
seguintes, e a década em que trabalhou no atelier do arquiteto são marcados por
recusas e adesões a posições que foram se definindo como opostas, embora
mantivessem diversos pontos de proximidade: arquitetura moderna ou artes
decorativas?
Segundo seu relato, os tais livros eram Vers une Architecture e L’art décoratif
d’aujourd’hui. Ela já tinha obtido algum reconhecimento e tudo indicava uma
carreira de designer independente. “Aqui não bordamos almofadas”, foi a resposta
127. Artigo intitulado “Un tournant”, publicado pela primeira vez em 1924 na revista Europa. Autores como
Barsac e Ruegg notam a inconsistência de tal afirmação, uma vez que desde os anos 1910 ele desenhava
móveis refinados. Eu tomaria contudo, tal afirmação no sentido de mais uma blague, às vésperas da
exposição art-déco de 1925.
68
que ouviu do já conhecido arquiteto suíço quando bateu à sua porta e tentou mostrar
seus desenhos. Le Corbusier e seu primo e braço-direito Pierre Jeanneret, contudo,
visitaram a ambientação Bar sous le toit e a convidaram a juntar-se a eles e outros
companheiros no ateliê que Cobu chefiava, não sem a “não-benção”, uma fala de
altercação de Dufrène, que predicou que ali ela “secaria por dentro”. As prédicas de
Corbusier e Dufrène, profissionais situados em pólos opostos no campo da arte
decorativa de então, indicam diversos níveis de contenciosos. De um lado,
conhecendo o ensino de artes decorativas – em que pese toda a misoginia de sua fala
– Le Corbusier talvez não pudesse esperar muito mais de uma jovem com tal
formação. Ainda assim, “não bordamos almofadas” é uma fala de não-investidura, de
desclassificação, desqualificação. Contudo, não foi certamente para defendê-la dessa
atitude que Dufrène não apostou em seu futuro no novo ateliê, e sim para explicitar as
dificuldades que viriam: não necessariamente por ela ser mulher, mas sobretudo por
se tratar de um ateliê que era quase uma corporação de ofício, onde jovens de várias
origens abrigavam-se à sombra daquele que consideravam um mestre, algo diferente
da experiência comercial que Charlotte vinha adquirindo. De qualquer modo, Le
Corbusier não foi apenas seduzido pelo mobiliário que viu: notou que ela tinha boa
formação – aluna de Dufrène e Rapin – e que aceitaria trabalhar como voluntária 128.
128 . O que a meu ver só era possível por se tratar de uma mulher casada. A informação do trabalho sem
vencimentos está em Arthur Ruegg, Libre de bord, p. 15.
129 . O salão que ele criou para a Villa Jeanneret-Perret, por exemplo, em 1912 era bastante vinculado a
uma linguagem do século XIX. Não estava sozinho: Walter Gropius também trabalhou em projetos de
interiores no início de sua carreira, como o escritório de um advogado em Berlim em 1910. Penny Sparke,
The Modern Interior, p. 93.
69
d’aujourd’hui que, em um momento de crise pessoal130 tanto surpreenderam
Charlotte. Contudo, ele nunca abandonou totalmente sua atividade de decorador de
interiores diante de alguns clientes abonados de Chaux-de-Fonds, sua cidade natal,
como assinalou Tim Benton.131 Charles Édouard Jeanneret – ou seja, antes de ser Le
Corbusier – se ocupou do interior da casa de diversos amigos em La Chaux-des-
Fonds, o que lhe permitia o papel de comprador de móveis e objetos em Paris, ou seja,
propiciava que ele entrasse em contado – e os mantivesse – com eventos artísticos,
assim como com um universo da indústria e do comércio que, como vimos, estava em
plena renovação. Foi desse modo que ele adquiriu objetos e obras de arte para o
banqueiro Raul de La Roche – para quem projetou a casa homônima e para Marcel
Levaillant, industrial suíço da área de relojoaria: arte negra, poltronas da Maison
Maple, bens que deveriam compor o mundo particular do cliente. Renomeado como
Le Corbusier, passou a tentar construir uma certa teoria sobre os mecanismos de
escolha dos objetos da casa.132
Il existe des chaises à paille à cinq francs, les faulteuils Maple à mille francs et les
Morris-chair à inclination graduée avec tablette móbile pour le lévre en lecture,
tablette pour la tasse de café, rallonge pour étendre ses pieds, dossier basculant avec
manivelle pour prendre les positions les plus parfaites depuis la sieste jusq’au travail,
hygiéniquement, confortablement, correctement. Vos bergères, vos caseuses Louis
XVI avec Aubisson ou Salon d’Automne à positions, son-elles des machines à
s’assessoir?
130 . Segundo suas memórias por não querer projetar para a burguesia e freqüentar os salões; segundo
depoimento de Marianne Clouzot a Jacques Barsac, por não desejar iniciar uma família. De qualquer modo,
há narrativas de que ela por um momento pensou em deixar tudo e se refugiar no campo, na cidade de
seus avós.
131 . Benton, Tim. “Charlotte Perriand: les années Le Corbusier”, ”. Centre Pompidou, Charlotte Perriand.
70
Certamente nessa querela contra os estilos, ele não considerava o que
realizava nesse sentido como ensemble ou decoração e sim como arquitetura,
equipamento de interiores, distinção lexical que ao invés de atenuar os conflitos
latentes apenas os encobre134. Assim, Charlotte, como Eileen Gray, veio a se tornar
uma figura importante no modernismo vanguardista, masculino, com e contra seu
background de desenhista de interiores135: era por isso que elas estavam nesse meio e
era contra isso que elas talvez precisassem se rebelar para nesse novo meio se manter.
Ao que tudo indica, a visita frustrada de Perriand, então com 24 anos, ao ateliê
ocorreu alguns dias após o encerramento da já mencionada exposição de Stuttgart138.
Nessa mostra de habitações a cozinha foi o centro das atenções, com as regras gerais
definidas por uma Associação de Donas de Casa de Stuttgart e pelo livro Der neue
Haushaut, livro de 1926 da feminista Erna Meyer sobre a “nova casa” que vendeu
vinte e nove edições em dois anos, e que vinha ilustrado com casas construídas por
arquitetos ligados ao Neues Bauen e com equipamento projetado pela Bauhaus. As
casas apresentadas pelo arquiteto J.J.P. Oud era um exemplo desse novo ideal de casa
eficiente (21). Por outro lado, os interiores das casas de Le Corbusier, desenhados por
134 . Florence Knoll, responsável pelo mobiliário e pelo uso do espaço dos showrooms dos móveis Knoll,
declarou em 1964: “I am not a decorator... the only house I decorate was mine”. E em uma entrevists:
“People ask me IF I AM a furniture designer. I am not.” Sobre Florence Knoww, ver Bobbye Tigerman. “
‘I am not a decotator’: Florence Knoll the Knoll Planning Unit and the Making of the Modern Office.
Journal of Design History, Vol. 20, no. 1.
135 . Sparke, Penny. “Elsie de Wolfe and her female clients, 1905-1915: gender, class and the Professional
interior decorator.”, Martin, B. & Sparke, P. Woman’s place: architecture and design 1860-1960. London & New
York: Routledge, 2003, p. 48.
136 . McLeod, Mary. “New Designs for Living. Domestic equipment os Charlotte Perriand, Le Corbusier,
dezessete arquitetos, incluindo blocos de apartamentos do próprio Mies, de J.J.P. Oud e de Mart Stam, e
diversas casas, o que incluía duas de Le Corbusier e Pierre Jeanneret. Segundo Mary McLeod (2003:37), os
interiores das casas alemãs eram elegantes, enquanto Le Corbusier não dava conta de equipar suas casas à
altura de seus projetos arquitetônicos. Nesse caso, no último momento, seu parceiro Alfred Roth desistiu
de esperar os projeto de equipamento que não chegava e improvisou, com um resultado que contrastava
muito com o interior do apartamento de Mies, projetado em parceria com Lilly Reich. Le Corbusier foi
severamente criticado pelos alemães.
71
Alfred Roth sem qualquer ajuda do mestre, foram mal recebidos, considerados mal
acabados e aquém do arrojo da proposta arquitetônica. A própria reformadora social
Erna Meyer criticou os interiores da casa de Corbusier em carta a Mies Van der Rohe.
As ressalvas eram específicas e endereçadas, mas traduziam uma visão mais ou
menos corrente segundo a qual os interiores austríacos e alemães eram o resultado de
atividade intelectual enquanto os franceses eram instintivos e intuitivos, como
publicou de modo caricatural e esquemático a revista International Studio em 1915.
Alem disso, nessa mostra ficou evidente que Le Corbusier não projetava mobiliário, o
que seus concorrentes alemães faziam muito bem.
139 . Segundo seu “curriculum literário”, quando Lina Bo foi trabalhar com o conhecido Giò Ponti em
Milão, também foi aceita sem remuneração.
140 . “C’était en 1927, ma première visite à La Roche. Quel choc, comme une oppression de bonheur.” Une
72
A participação no ateliê de Le Corbusier não a afastou de seus parceiros das
artes decorativas. Como já vimos, no final de 1927, Rebé Herbst, Djo-Bourgeois e
Charlotte decidiram projetar o interior de um apartamento modelo e, associados aos
joalheiros Jean Fouquet – o responsável pela leitura dos textos de Le Corbusier e
Gérard Sandoz, se autodenominaram uma “unidade de choque”(Fig. 22). Ao lado de
um salão e uma cozinha de Djo-Bourgeois com ares de clínica médica141 e um fumoir
– espaço eminentemente masculino – de Herbst, Charlotte exibiu, mais uma vez, sua
própria sala de jantar. Cara, a instalação foi mais uma vez financiada por seu marido,
segundo Jacques Barsac, Scholefield teria pago a mesa extensível, cadeiras e bancos
pivotantes. Segundo Tim Benton, a cadeira pivotante foi produzida com ajuda
financeira de sua mãe142. De qualquer modo, o financiamento era familiar e seis
meses depois de começar a trabalhar com Le Corbusier, foi elogiada por seu trabalho
com outros parceiros. Suas cadeiras pivotantes começaram a fazer parte dos projetos
em grupo do ateliê da rue de Sèvres; em outras palavras, alguns móveis de desenhou
para seu apartamento tornaram-se protótipos para o mobiliário do ateliê de Le
Corbusier143.
141 . Mary Mc Leod, p. 39.
142 Benton, T. ”Charlotte Perriand. Catálogo de exposição. Paris, Centre Pompidou, 2005p. 12.
143 . O livro de Vincent A. Masucci Le Corbusier Machines for living. Furniture: a critical history foi editado pelo
Centre Le Corbusier de Zurique, que por sua vez é mantido por Heidi Weber, a detentora dos direitos
autorais do mobiliário a que nos referimos neste capítulo. Seu livro (e a exposição que o acompanhou) é
uma resposta à reivindicação de Perriand quando à autoria e participação em alguns projetos
posteriormente patenteados como Le Corbusier. Ainda assim, ele admite que a cadeira e o banco pivotante
são de 1927 e de Charlotte.
144 . Segundo Mary Mc Leod que a entrevistou, ela não demonstrava desconforto por estes móveis terem
entrado para o repertório compartilhado no ateliê. McLeod, op. cit., p. 268 n. 16.
73
criar um ambiente jovial, voltado para a vida moderna: essa era a razão da mesa sem
toalha, da louça branca comum, dos copos simples, tudo isso aludindo a uma
sociabilidade afastada das formalidades burguesas, em espaços que não requeriam
serviço domestico145. Vistos em conjunto, o salão, o fumoir e a sala de jantar
formavam um ambiente austero, distante da nonchalance do bar sob o teto146.
145 . Mary Mc Leod, op. cit, p.40.
146 . Libre de Bord, op. cit., p. 23.
147 . Mary Mc Leod, op. cit, pp. 43-4.
74
Cadeiras e poltronas constituíam um programa importante para o ateliê. Os
alemães já haviam feito várias delas. O mobiliário era parte dessa proposição de um
modo de vida ativo, com poucos objetos móveis – a cadeira é assim o elemento
irredutível. Quando os arquitetos não desenhavam cadeiras, apelavam para as de
Thonet, de madeira vergada, que eram baratas e industrializadas. O projeto da cadeira
tubular tornou-se assim uma “alegoria exemplar do modernismo”148. Uma cadeira
podia ser vendida em qualquer loja, aceita mesmo em ambientes refratários a uma
casa funcionalista, vista por muitos nos anos 1920 como algo um tanto bolchevique.
Não era o caso alemão se lembramos que em 1927 a arquiteta austríaca Grete
Schütte-Lihotzky “inventou” a cozinha moderna, denominada cozinha de Frankfurt,
pensada para um conjunto habitacional nesta cidade, o que demandou a construção de
148 . Charlotte Benton, “Le Corbusier: Furniture and the interior” Journal of Design History Vol. 3, nos. 2-3,
1990, p. 104
149 .Tim Benton, op. cit., p. 12.
75
11 mil cozinhas idênticas, salvo variações de cor. O debate a respeito da habitação
mínima, central nas primeiras reuniões dos CIAMs, era dominado por alemães e
suíços. Talvez a cozinha de Frankfurt não possa ser enquadrada na rubrica “artes
decorativas”, mas não era esse o caso das cadeiras produzidas no contesto do ateliê de
Le Corbusier. Quanto à Cozinha de Frankfurt, a sugestão de um baquinho pivotante
para a dona de casa se mover enquanto trabalhava sentada – como já vimos, as
cadeiras giratórias vêm dos ambientes de trabalho – pode nos autorizar a pensar que,
além de prestar atenção em trabalhos de diversos arquitetos e decoradores, estas
mulheres prestavam especial atenção nos trabalhos umas das outras. A cozinha de
Frankfurt foi pensada para famílias de operários, e naquele momento, Charlotte
reconhecia que suas cadeiras eram elitistas, como talvez não pudessem ser de outro
modo na menos industrializada França. Por isso, em programas coletivos como
conjuntos habitacionais, ela, Jeanneret e Corbusier continuaram a usar os móveis
Thonet de madeira vergada, “honestos e econômicos”; nos ensembles de prestígio,
empregavam as cadeiras de metal criadas em 1928150: a vida moderna jovial,
esportista e sem empregados domésticos tornou-se uma proposição para as elites, se
não estritamente econômicas, mas culturais, cultivadas. Embora para Charlotte isso
constituísse um certo dilema, a opção não era só dela: também Le Corbusier concebeu
e exibiu armários em duas modalidades: para a classe operária, por meio das casas
Loucheur;151 e para a burguesia, para quem eles eram exibidos nos populares salões
de decoração, pintura, escultura e arquitetura como o Salon d’Automne – que era
anual – de 1929. À fascinação pela “era maquinista” não correspondia um
empresariado, um cliente ou uma indústria interessada em móveis de metal.
150. Une vie de création, p. 33.
151 . A lei Loucheur, de iniciativa do Ministro do Trabalho e da Previdência Social Louis Loucheur, de
1928, previa a interferência do estado na habitação popular deu origem aos HBM (Habitation à Bon
Marché). Em resposta à lei, Le Corbusier concebeu casas com o uso de pré-fabricação destinada aos
trabalhadores.
76
espantoso, como exaltação do trabalho produtivo, racional e funcional. Mas esse
caminho sinuoso do luxo burguês terminaria por desembocar num “hedonismo
privado” (termo da autora) que viria aos poucos a substituir a noção de luxo pela de
conforto – um luxo burguês merecido e laborioso152.
77
concepção: a maestria de um edifício de concreto ou de uma cadeira em aço, materiais
pouco “nobres”, passava para o projeto e seu autor.
Contudo, nos anos 1920-30 essa “magia da grife” ainda não tinha sido
reconhecida. Os problemas de fabricação eram muitos e os móveis eram de fato
dispendiosos. Mesmo o colecionador Raoul La Roche, dono da Villa homônima,
reclamou do preço do protótipo de uma poltrona. Uma chaise-longue em lona era
vendida no catálogo de 1930 da Thonet por mais do que uma espreguiçadeira de
madeira de William Morris. O dedo na ferida veio da crítica do arquiteto italiano
Edoardo Pérsico (1900-1936), que afirmou não ver nenhuma diferença entre a
vanguarda e os decoradores mais tradicionais, ou melhor, sim, ele via: a diferença é
que Corbusier poderia atender a burguesia de toda a Europa, não apenas da França.
Mas o que afastava as classes mais baixas dos projetos e cadeiras não era apenas seu
custo. O desdém iconoclasta que o trio Corbusier-Perriand-Jeanneret demonstrava
quanto às pretensões burguesas de domesticidade não atingia classe nenhuma, apenas
uma pequena fração dominante, intelectual e artística.
78
O design, o espaço fordista, a ergonomia, tudo isso adaptava-ser perfeitamente a essa
nova onda156.
Para além destes dilemas, da adaptação dos meios e materiais de expressão aos
possíveis usuários ou comitentes, um episódio de 1929 demanda nossa atenção
minuciosa: o Salon d’Automne. Nesse espaço diversas tensões se explicitaram; e ali
foi tirada o icônico clichê de Charlotte Perriand na coquette cadeira de repouso – a
imagem que originou esta tese, tratada no capitulo anterior. Contudo, antes da
abertura desse salão houve uma explicitação dos dilemas das artes decorativas frente à
arquitetura moderna.
Se havia algo de ardil nesse campo tenso prestes a cindir, este se faria evidente
em 1929. Dilemas como produção em massa para todos versus produção de luxo para
clientes, assim como decoração versus outros nomes para dizer a mesma atividade,
ainda que em outra chave, tudo foi posto na mesa. E a foto da cadeira que esta tese
persegue é talvez a culminação desse ano. Havia a possibilidade dos móveis
nomeados como de Corbusier, Jeanneret e Perriand serem fabricados pela empresa
Thonet-Mundus157 e para tanto era preciso que eles fossem exibidos em ensembles,
indicando modos de usar. Eram cadeiras: a pivotante que Charlotte projetou para sua
casa, uma espreguiçadeira (chaise-longue), uma poltrona em dois tamanhos e uma
cadeira poltrona leve cujo encosto se movia. Rüegg nota que a mesa extensível com
tampo de borracha que Charlotte também desenhou para seu apartamento de casada
ficou de fora. Cadeiras eram importantes, cadeiras os aproximariam dos pares alemães
como Marcel Breuer e Mies van de Rohe.
156 . A melhor análise sobre esse momento de embate entre o Purismo e o Cubismo está, a meu ver no
livro de Carlo Ginzburg, Relações de força. São Paulo, Companhia das Letras.
157 . Gebrüder Thonet e Mundus AG eram empresas separdas que em 1921 se uniram para formar a maior
manufatura de móveis do mundo. A Thonet-Mundus durou até 1938, quando a família Thonet conseguiu
comprar sua parte de volta.
79
foram aceitos, mas uma carta de Charlotte declinou na proposta. Dois meses depois,
um grupo formado pelos protagonistas do conflito ao lado dos parceiros e colegas do
campo da decoração, enfim, um time que juntou Robert Mallet-Stevens, Helène
Henry, Sonia Delaunay e outros, rompeu com o SAD e criou a Union des Artistes
Modenes (UAM)158. O manifesto, lançado em 1934 afirmava que a vitalidade de uma
arte pode ser mensurada pelo grau de oposição que encontra: “Les attaques contre
l’art moderne, c’est-à-dire l’art le plus représentatif du temps et le plus conditionné
par l’époque, se font de plus en plus vives.159
158 . Curiosamente, na criação da UAM, Charlotte apareceu como decoradora e Eileen Grey como
arquiteta. Em 1934 os membros ativos eram: Rose Adler, Pierre Barbe, Louis Barillet, Georges Bastard,
Francis Bernard, Jean Burkhalter, Carlo Rim, Jean Carlu, A.M. Cassandra, Pierre Chareau, Paul Colin,
Etienne Cournault, Joseph Csaky, Jean Dourgnon, Jean Fouquet, Marcel Gascoin, Adrienne Gorska,
Gabriel Guevrekain, Helene Henry, René Herbst, Lucie Holt-le-Son, Francis Jourdain, Frantz_Phillippe
Jourdain, Robert L’Ellemant, Jean Lambert-Rucki, Jacques Le Chevallier, Le Corbusier et Pierre Jeanneret,
Claude Lemeunier, Charles Loupor, Andé Luçart, Robert Mallet-Stevens, Jan et Joel Martel, Gustave
Miklos, Charles Moreux, Nelson, Charles Peignot, Charlotte Perriand, G.H. Pingusson, Jean Prouvé, Jean
Puiforcat, André Salomon, Gérard Sandoz, Louis Sognot et Charlotte Alix, Raymond Templier,
Maximilien Vox. Ver René Herbst, 25 années UAM. Paris, Éditions du Salon des Arts Ménagers, 1956.
159 . René Herbst, 25 années UAM, Paris: Éditions du Salon des Arts Ménagers, 1956, p. 17.
80
temos a volta do dilema experimentado por Charlotte a respeito de um design para
todos, de esquerda, de choque, da divisão entre o móvel para um cliente genérico e
aquele para um cliente com rosto.
81
Em setembro de 1929 Le Corbusier realizou a viagem à America do Sul que
viria a se tornar um marco para a arquitetura moderna brasileira, assim como para sua
historiografia. Quando o Salon d’Automne foi inaugurado ele se encontrava em alto
mar, segundo as lendas, em pleno flerte com a dançarina Josephine Baker que
Charlotte tanto admirava. Antes disso, em junho, ele recebeu a confirmação de aceite
por parte do salão e aprimorou seus contatos com a empresa Thonet-Mundus: desta
feita, os móveis contariam com o apoio financeiro do braço parisiense da fábrica de
móveis austríaca Thonet, que fabricou os móveis em metal em troca do direito de
produzi-los160. O salão abriu suas portas no início de novembro, mas o stand de
Corbusier, Jeanneret e Perriand veio à público doze dias antes do encerramento da
exposição. Objetos pessoais e do ateliê fizeram parte do décor, junto ao mobiliários: o
colar de bolotas de Charlotte, o cachimbo de Jeanneret, exemplares do livro Vers une
architecture e mesmo, em um dos quartos um vestido de Charlotte ao lado de um
casaco de Jeanneret, além de uma pedra polida que fazia parte de sua coleção de
objets trouvés. Ela deixou sua impressão digital, sua marca no trabalho coletivo do
ateliê161, o que culminou no seu gesto de se fazer fotografar em várias poses na chaise
longue. Ou talvez, para além do desespero de precisar montar um ensemble em pouco
tempo e na ausência do mestre, ela desse continuidade ao caráter experimental e
demonstrativo do seu cotidiano moderno, como já o fizera ao expor seu apartamento e
seu bar. Contudo, aqui temos uma mudança, no mínimo, de escala: os móveis já
tinham o estatuto discursivo (ainda que não a prática) de móvel industrial para
qualquer usuário, e o que ela trouxe tinha uma certa carga de subjetividade, como a
pedra polida e seu próprio traje – isso para não mencionar o fato de colocá-lo ao lado
do paletó de Jeanneret com quem anos depois, já divorciada de Percy Scholenfield,
ela iniciaria uma relação amorosa.
160 . Ao financiar as peças do Salon d’Automne, a Thonet Frères adquiriu o direito das peças que os designer
apresentaram na mostra. Em maio de 1930 publicaram uma pequena brochura com a mobília de Le
Corbusier, Pierre Jeanneret e Charlotte Perriand – nesta ordem – e passaram a colocar nos móveis
pequenas placas metálicas identificando os autores do projeto. De qualquer modo, Arthur Ruegg assinala
que até 1932 a correspondência com a empresa Thonet era enviada para seu apartamento, e não pra o
ateliê de Le Corbusier.
161 . Benton, op. Cit., p. 21 e Rubino, S. “Corpo, imagem, objeto”.
82
talvez também o banquinho da mesma série) para a exposição Der Stuhl, que teve
lugar em Stuttgart entre outubro e dezembro. Quando os protótipos das outras
cadeiras – “máquinas de sentar” – foram concluídos, ela os fez fotografar
individualmente em seu estúdio e em conjunto na galeria da Vila La Roche, onde
fizeram parte do trabalho de interiores que ela realizou com seus companheiros de
ateliê. Em setembro de 1929 ela patenteou dois móveis – a grand confort e a chaise
longue – no nome do trio do ateliê: “Mme Scholenfield, née Charlotte Perriand,
Charles Édouard Jeanneret di Le Corbusier et André-Pierre Jeanneret”(Fig. 25).162
Logo depois ela escreveu um artigo para a revista britânica, The Studio,
advogando o uso do metal no mobiliário. Esportes, azuis e vermelhos, transparências,
espaço, luz, alegria, “The joy of creating and of living (...) in this century of ours”: o
metal era em suas palavras uma metáfora para um novo estilo de vida. Para ilustrar o
texto, duas imagens, a dos móveis que ela patenteou em com seu nome encabeçando a
lista de autores. Em um deles, a espreguiçadeira, ou chaise-longue, a máquina de
repousar, ela aparece deitada, ocultando seu rosto. Esta foto, ao que tudo indica, foi
aquela tirada no Salon d’Automne de 1929, clichê reproduzidao no segundo volume
das obras de Le Corbusier dedicadas ao salão: a cadeira vazia, Charlotte deitada e
uma maquete do ensemble com uma colagem de uma das três fotografias dela na
cadeira. Um texto breve explicava serem equipement d’un logis feitos em colaboração
com Charlotte Perriand, uma manifestação que exprime teses totalmente novas em
matéria de mobiliário, para concluir exaltando uma industria que se encarregue de
realizar os casiers em série, sob um formato estandartizado163.
162 . Arthur Ruegg, Charlotte Perriand. Libre de Bord, p. 282, n. 57.
163 . Le Corbusier et Pierre Jeanneret, Oeuvre complete de 1929-1934, pp. 42-3.
83
ele parecia assumir que a cozinha era um lugar de empregados, logo sem importância;
em casas como as de 1922 ele propôs salas coletivas que substituiriam uma área para
se cozinhar bem projetada. Ou seja, por mais de uma década, a cozinha não foi
assunto. Nas palavras da autora: “O que causou a mudança de atitude de Le
Corbusier? A resposta imediata é, claro, Perriand. Como já foi mencionado, não
apenas seu treinamento na Union Centrale enfatizara os aspectos práticos da vida
cotidiana, mas, como uma mulher que adorava se divertir, era sociável e tinha
acabado de montar seu apartamento, ela estava sintonizada com as exigências
funcionais do espaço doméstico.”164 E, se supomos que ao desenhar a cadeira
pivotante ela conhecia tanto os exemplares norteamericanos masculinos, usados em
escritórios, como a cadeira usada na cozinha de Frankfurt, certamente, ligada ao
núcleo francês dos CIAMs como era nesse comento, tomou o conhecimento da
cozinha projetada pela austríaca Grete Schütte-Lihotzky.
84
Corbusier evocou qualidades masculinas para a chaise-longue, descrita como uma
“máquina de sentar” feita de tubos de bicicleta, e publicou a mesma em suas obras
completas usando as icônicas fotos que mostram Charlotte em repouso e ocultando
seu rosto.
Em 1929 Charlotte Perriand optou publicamente pelo metal, como o fez Eileen
Gray. Possivelmente um demarcador de posição, uma escolha pelo lado masculino e
mais profissional da profissão ou também – pois uma possibilidade não elimina a
outra – uma escolha clara, nesse ano movimentado do ponto de vista das alianças e
das classificações, pelas premissas modernistas. De qualquer modo é preciso lembrar
que os espaços, móveis e sua disposição eram assumidamente marcados por atributos
de gênero no final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX. Vânia
Carvalho mostrou essas tensões com precisão e farta documentação para a casa
paulista. Eleb e Debarre apontam na casa burguesa francesa do século XIX essa
distinção de espaços, objetos e materiais com que estes eram feitos. Para as autoras, a
distinção entre um espaço masculino e um feminino é marcada por uma escolha
precisa da localização, relações de proximidade e contigüidade entre as peças, assim
como das relações entre os cômodos da casa. O papel feminino associado à
166 . Sparke, P. The modern interior, p. 107.
85
maternidade ligava o quarto da mulher ao das crianças; o quarto masculino podia ser
próximo do escritório na residência burguesa do século XIX.
Como continuidade do caráter cindido por gênero da casa e de tudo que esta
abrigava, até 1927 Le Corbusier ainda distinguia modos de sentar masculinos e
femininos, mas deixou essa separação de lado em 1929, como parte do repertório
modernista: moveis pouco figurativos, sem gênero. Contudo, os móveis da Bauhaus,
igualmente de metal tubular – mas desenhados quase sempre por homens, à exceção
da conhecida cadeira Barcelona, de Mies Van der Rohe e Lilly Reich167 – adquiriram
por seus usos sociais uma conotação masculina na antiga acepção que dava atributos
de gênero aos espaços e atividades, pois tornaram-se sobretudo, até recentemente,
mobiliário corporativo. As cadeiras projetadas no ateliê de Le Corbusier continuam
sendo móveis domésticos, e se ainda há algo das rígidas divisões em questão, nesse
sentido, com sua idéia de repouso são móveis femininos, domésticos.
06/02/2011.
86
mostrar ambientes modernos. Charlotte sempre explicou sua posição na cadeira como
uma sugestão de qualquer usuário possível, sem rosto, mas como observou Mary
McLeod, com suas pernas estendidas e à mostra, a roupa junto ao corpo, há algo de
coquete na imagem. Em suas palavras, a “foto, como a cadeira, tem um charme
sedutor, que revela a presumida neutralidade da estética da máquina”169 . Eu prestaria
ainda mais atenção ao termo “coquete”, lembrando que o trabalho da designer foi
assim recebido já no início da carreira e que foram estas as palavras de Le Corbusier
ao ver pela primeira vez algumas cadeiras prontas: “ils sont coquets”. Coqueteria que
fazia parte da cultura feminina francesa e do ofício: a conhecida decoradora
americana Elsie de Wolfe (que iniciou sua carreira como atriz) vinculava moda e
decoração de interiores: uma vestimenta na moda era para ela mais do que um
marcador de identidade pessoal, era também um sinal decorativo de riqueza e status
social. Wolfe transferiu estas ideias para seu trabalho com interiores que formara, a
seu ver, um segundo container, depois da roupa, para o corpo170. Não há como negar
uma certa dose de teatralidade nesta imagem de Charlotte na qual a cadeira consegue
parecer uma segunda roupa. Suas roupas sem adereços, o vestido quase infantil,
semelhante aos usados posteriormente por Ray Eames, o colar de bolas metálicas,
seus cabelos curtos: as linhas limpas e curvas da espreguiçadeira acompanham seu
repouso ou vice-versa: tamanha simbiose entre corpo feminino e objeto acompanhava
essa afinidade já bastante aceita nas artes decorativas desde o século XIX. Não por a
acaso, a imagem de Charlotte na cadeira foi depois recortada e usada pelo ateliê de Le
Corbusier em diversas montagens em que esta peça foi exibida.
87
Charlotte ao deitar em sua cadeira, fazendo-se ali eternizar, não se afirmou por
seu marido, sua prole ou sua origem social. Afirmou-se por sua obra: uma cadeira de
repouso, pequena como sua autora – ou co-autora?171. Segundo os padrões pictóricos
do final do século XIX, e o exemplo máximo é a Olympia de Edouard Manet, só
poderia mesmo ocultar seu rosto: uma mulher deitada mirando o observador era um
atributo das prostitutas. Se virou o rosto contra a câmera, ainda assim é plausível que
ela “assinou” ao mesmo tempo texto e objeto ao publicar esta imagem no já
mencionado “Wood or metal?”, manifesto que em termos lexicais e de conteúdo não
difere muito de outros publicados no mesmo período, mas que permaneceu, assim
como o nome de Charlotte Perriand, um tanto esmaecido até sua recente
“redescoberta”. Este artigo saiu na importante revista britânica The Studio, fundada
em 1893 e que mostrava interiores, embora com menos ênfase em moda do que
outras, como a Vogue.
171. Não e a intenção desde capítulo, ou desta tese, atribuir autoria. É preciso, no entanto, assinalar que Le
Corbusier publicou a cadeira no primeiro volume de suas obras completas. Le Corbusier et Pierre
Jeanneret, Oeuvre complete 1910-1929, p. 157. A ordem da exposição no volume é capciosa, pois nas páginas
anteriores temos desenhos e fotografias de seus projetos na exposição Weissenhof de Stuttgart. Em
seguida, três imagens da espreguiçadeira, sendo que em uma ela está já na ambientação da casa La Roche.
Claramente a edição, feita depois de 1929, induz o leitor a crer que a cadeira é de sua autoria e um projeto
de 1927. Mais adiante, no mesmo volume, três cadeiras aparecem em fotografia da ambientação da Ville
D’Avray, 1928/9, desta vez com a explicação: “Les sièges, fauteuils, tables, etc. sont des mobiliers standars,
créés par Le Corbusier, Pierre Jeanneret et Mme Charlotte Perriand. Idem, p. 201-3.F
88
Crane, as mulheres realizam com sua vestimenta172 e que, no caso que aqui nos
interessa, transportamos para uma possível análise dessa relação entre corpo, objeto e
autoria evidenciada pela foto em questão.
172 . Crane, D. A moda e seu papel social. São Paulo: Editora SENAC, 2006, capítulo 4.
173 . Bentom, Tim. “Charlotte Perriand: les années le Corbusier”, p. 15.
89
chaise em bambu – aparentemente sem pedir autorização a ninguém, como se ela
fosse sua obra
A mulher nos precede. Ela realizou a reforma de seu traje. Ela encontrava-se num
impasse: seguir a moda e então renunciar à contribuição das técnicas modernas, à
vida moderna. Renunciar ao esporte e, problema mais material, não poder aceitar
empregos que lhe permitiriam ter uma participação fecunda na atividade
contemporânea e ganhar sua vida. Seguir a moda: ela não podia pensar em guiar; não
podia nem o metrô, nem o ônibus, não podia sequer agir com desenvoltura em seu
escritório ou na loja. Para poder realizar a construção cotidiana de sua toalete –
pentear-se, calçar o sapato, abotoar o vestido – ela não tinha mais tempo para dormir.
Então a mulher cortou seus cabelos, suas saias e suas mangas. Agora está com a
cabeça descoberta, os braços de fora e as pernas livres. Veste-se em cinco minutos. E
é bela, seduz com o encanto de suas graças, das quais os modistas resolveram tirar
partido.” 175.
174 . Ver o belo livro de Muel-Dreyfus, Vichy et l’eternel feminin, sobre o trabalho ideológico em relação às
mulheres e seu lugar na sociedade francesa.
175 . Precisões, op. cit, p. 112.
90
“Ela é muito magra, apenas pele e ossos... As mulheres estão cortando seus cabelos
como um sinal de esterilidade. Partes de seu cabelo se escondem sob um lenço. Ela
anda com as mão vazias; não usa jóias; ela está completamente descoberta.”176 ()
91
decorados. O Salon era uma vitrine, um show-room, uma exibição de gosto, vida
moderna e distinção. As imagens não chegam a dar a dimensão do gesto, mas o leitor
atual pode imaginar uma mostra da miséria urbana em meio a exposições nos moldes
das atuais Casa Cor... A colagem que ela fez em parceria com o pintor Fernand Léger,
seu vizinho depois da separação de Scholenfield, chegava a ter duzentos metros.
O texto de Perriand contrastava com o restante da revista que mostrava
projetos de villas e maisons de weekend. A linguagem visual da mostra La Misère de
Paris era a do Agitprop soviético dos anos 1920, das fotomontagens de Alexandre
Rodchenk. Pouco depois ela deixou o ateliê. O momento de ruptura com Corbu
merece atenção, não apenas pela tensão política que tendia a afastar designer
franceses e alemães, Charlotte e seu mestre moderno, e tantos outros grupos e
indivíduos. Ë no final da década de 1930 que as tensões latentes e manifestas entre
arquitetos e decoradores de interiores chega ao seu ponto máximo. Os primeiros não
desejavam a feminização de sua profissão, tampouco ligar suas carreiras ao comércio
das lojas e fábricas. Eles buscavam soluções universais e viam as lady decorators
como intuitivas. O projeto de interiores – e não a decoração – passou a ser
profissionalizado e colonizado pelos arquitetos e pelo emergente desenho
industrial.178
Voltemos então à imagem da cadeira em 1929: um doce, sutil e possivelmente
pouco consciente manifesto. Se a cadeira tornou-se indissociável da imagem de sua
autora nela repousada, ela foi registrada em nome do trio Corbusier-Jeanneret-
Perriand, para hoje ser conhecida apenas como LC 4. De certo modo, como as
relações de gênero e hierarquias artísticas (homem e mulher, arquitetura e design, arte
e decoração, entre outras) já estavam postas em questão, podemos ler essa foto sem as
amarras da sujeição, como quis Colomina (Perriand olhava para a parede, para o
nada), mas tampouco sem a singeleza do gesto pretendido por Charlotte. Se em retrato
de 1929 a pintora Tâmara de Lempicka – outra mulher da margem esquerda –
escolheu se representar como a motorista de um carro esporte (metal!), dando vida à
representação da garçonne, essa categoria nova criada pela literatura e promovida
pelas mídias, estabelecendo o elo entre uma imagem elitista de garçonne e a nova
178 . Sparke, P., The Modern Interior, p. 109.
92
cultura de consumo179, há um movimento análogo na imagem que fundiu Charlotte à
cadeira. Temos metal, indústria, produção... e corpo, cabelos curtos, colar, coqueteria.
Uma garçonne num ateliê masculino. Se não conseguimos observar a participação
feminina no Movimento Moderno em arquitetura sem marcas de sujeição e auto-
sujeição, tampouco temos apenas essa possibilidade de leitura. Perriand, como as
mulheres da Bauhaus e outras designers do seu tempo, construiu sua carreira nas
brechas estipuladas por uma dominação masculina no campo, mas não sem deixar as
marcas de uma sutil revolução simbólica. As casas que hoje conhecemos tem aspectos
pensados de dentro pra fora, característica marcante do trabalho feminino nessa área.
Designer que em diversos momentos buscou se tornar arquiteta, Perriand legou
transformações importantes no espaço doméstico e na produção de seus parceiros de
trabalho, como Corbusier e posteriormente Jean Prouvé.
Contudo é preciso atentar para as convenções presentes na foto. Como
imaghem que perdurou, resultado da negociação entre Charlotte e Jeanneret – e com
todos os condicionantes no meio desta – com que fotos ela podia dialogar. Tag
Gronberg em seu estudo sobre manequins de lojas chama a atenção para o caráter de
abstração e desfamiliarização do corpo feminino identificado com os estilos artísticos
de vanguarda como o cubismo e assinala que na década de 1920 eram exatamente tais
corpos que chamava a atenção das mulheres reais que compravam mercadorias, e
também que enfatizavam a ligação tanto do manequim como da modernidade que
centravam-se justamente em Paris180.
Manequim vivo de cabelo curto, colar de metal, corpo livre se espartilhos – a
foto mostra o móvel moderno e a mulher moderna. Não apenas podemos buscar
pontos de homologia entre a foto de Charlotte e outra fotos femininas do período –
notadamente aquelas de algum modo vinculadas às vanguardas – como podemos
tomar Lee Miller como um exemplo de “narrativa de aspiração feminina, liberação
sexual e subordinação profissional a um artista masculino estabelecido.”181. Mas
Charlotte não operava como musa do ateliê, embora Miller não se reduzisse a modelo
de Man Ray, como mostra sua carreira subseqüente do outro lado da câmera. Sem
179 . Birnbaum, Paula. “Tamara de Lempicka and the Modern Artist”. Chadwick, W. & Latimer. T. T.
(Eds). Modern women revisited. Paris Between the wars. New Brunswick & London, Rutgers University Press,
2003, p. 96.
180 . Chadwick, W. “Lee Miller’s two bodies.” Chadwick, W. & Latimer. T. T. (Eds). Modern women revisited.
Paris Between the wars. New Brunswick & London, Rutgers University Press, 2003, p. 201.
181 . Idem, p. 210.
93
cairmos no radicalismo de Colomina, precisamos notar, com ajuda de Chadwick, uma
dinâmica no ateliê que assumiu a forma de uma agência masculina e uma
objetificação feminina. Contra a objetificação, a delicada foto de 1929 pode ser
interpretada como uma potente reivindicação de visibilidade, nome, existência e
autoria, ainda que a hexis corporal indique uma resistência e um clamor que só podia
se apresentar desse modo: um pouco enviesado, quase de soslaio, como para uma
moça bem comportada, havia de ser: em estudado repouso. Bem lembrado por Vânia
Carvalho, a respeito de outras série fotográfica: “Fotografar-se era um gesto
socialmente significativo e, portanto, sexualmente ativo”182.
94
As hierarquias silenciosas talvez sejam as mais eficazes. Já no final da vida, a
bauhasiana radicada nos Estados Unidos, Anni Albers, costumava repetir com ironia o
dito que marcou sua trajetória, sempre comparada à do marido Josef Albers: “Se está
no papel, é arte”. Contudo, embora se ressentisse que suas investigações cromáticas,
ao serem realizadas em fios e fibras não tivesse o mesmo estatuto, enfatizava que era
preciso, em design, deixar o material falar. Encontramos um sarcasmo análogo em um
comentário de Sonia Delaunay, já com noventa e três anos: “Robert [Delaunay, seu
marido] atirou foguetes para todo lado. De volta à terra eu recolhia as fagulhas que
caíam dos fogos de artifício. Eu tendia os fogos mais íntimos e transitórios da vida
cotidiana, enquanto continuava silenciosamente a fazer um trabalho importante.”183
Marianne Brandt, também do time da Bauhaus, deixou sua carreira de pintora
expressionista para integrar a oficina de metais da escola. Escapou assim do destino
das mulheres tecelãs e nessa condição produziu projetos para cinzeiros, bules de chá.
O material “falou”: uma mulher foi admitida na siderurgia da Bauhaus, mas o
resultado de seu trabalho ainda se vinculava ao objeto de pequena escala e ao mundo
doméstico.
A lista seria longa.
As disputas, artimanhas e ciladas entre gêneros aqui expostas terminaram por
encontrar suas soluções provisórias, com a hegemonia oficial e intelectual da
arquitetura moderna e um lugar incômodo, feminino e minorado para a decoração –
em que pese a crescente profissionalização dessa atividade. A outra cilada de gênero,
que enredou a carreira de Charlotte como mulher, com seus constrangimentos e
possibilidades, se não permanece na mesma, caminhou a passos curtos e lentos. Basta
ver a única nominação de uma mulher ao maior prêmio da arquitetura internacional.
A iraniana Zaha Hadid permanece como uma exceção nesse panteão, certamente não
pela deconstruitivismo de seus projetos – pois há outros homens dessa vertente nesse
star-system – mas porque a arquitetura pública, a edificação, os museus continuam a
não ser bem, tanto tempo depois, lugares de mulher. E a pergunta “what about
Denise?”184 talvez passe ainda alguns anos sem resposta.
. Hauptman, Jodi. “Sonia Delaunay”, Butler, C. & Schwartz, A. (Eds) Modern Women. Women Artists en the
183
95
CAPÍTULO III
MODERNIDADE: MODOS DE USAR, OU A CASA MODERNA E A VIDA COTIDIANA
Charlotte Perriand se tornou mais conhecida por seus móveis do que pelo
pouco que escreveu. Lina Bo Bardi escreveu proficuamente e tem algumas de suas
ideias repetidas à exaustão. Curiosamente, as duas praticantes do modernismo
lavraram textos que podemos classificar como de aconselhamento doméstico,
voltados para o público feminino, leitoras de revistas comuns. E o que é um tanto
desconcertante, não são textos muito divulgados, especialmente o de Lina, sobre o
qual pesa quase um interdito, pela modalidade de escrita, o público e o veículo no
qual se inseriu. Trata-se de “L’art d’habiter”, de Charlotte, 1951 e “A casa. Sua
organização e arranjo”, de Lina, 1958.
É disso que trata este capítulo: de dois textos que, considerando a trajetória e a
consagração de suas autoras, podem ser lidos como textos de arquitetura e design.
Minha proposta, contudo, é lê-los como inscritos na tradição e no gênero do
aconselhamento, ainda que eles tenham algo em comum com os escritos dos
96
arquitetos modernos, especialmente um certo tom de manifesto. Uma literatura
divulgadora e formatadora de novos padrões de gosto, escrita por e endereçada a
mulheres. Se na França um texto como o de Charlotte se fazia acompanhar de
exposições, como algumas apresentadas no capítulo anterior, no Brasil, onde Lina
publicou “A casa” não havia essa profusão de ensembles a serem visitados, o que
exacerba o potencial de revistas e textos dessa natureza, especialmente por suas
ilustrações e legendas das mesmas.
Em 1951, Charlotte Perriand publicou “L’art d’habiter”, seu texto mais longo
até então: sessenta e três páginas fartamente ilustradas compondo um número especial
da revista Architecture et Techniques (Fig. 26). Antes, havia escrito um manifesto a
favor dos móveis de metal, dois artigos para o veículo comunista Vendredi e alguns
textos sobre habitação publicados na revista Architeture d’aujourd’hui. O habitat,
segundo este novo escrito de Perriand, deveria criar as condições de um equilíbrio
humano e de equilíbrio do espírito. O trabalho vinha dividido em tópicos como :
“células vitais”, “alimentação”, “higiene”, “manutenção”, “armazenamento”,
“relaxamento”, “gesto forma técnica”, “ambiente” e “área da criança”. O texto era
finalizado por um escrito intitulado “Reflexões”, assinado por A. Hermant, que no
corpo editorial da revista era o responsável pela seção de “teoria”da revista.185.
185. Do conselho de redação da Architecture et Technique, que era uma publicação bimestral, faziam parte,
dentre outros, Le Corbusier, o antropólogo George Henri Rivière (que respondia pela seção de artes
populares) e Jean Prouve, todos sob a supervisão de Auguste Perret.
97
Os dois escritos sugerem alguns diálogos. Seria arriscado – embora um tanto
provável – afirmar que Lina conhecia este trabalho escrito de Charlotte186. Os
diálogos mais evidentes são outros: com o repertório conceitual e imagético da
arquitetura moderna; com a industrialização crescente do pós-guerra que inundava as
casas com novos produtos a serem decifrados; e, tão ou mais importante, com a
literatura de aconselhamento feminino.
186. O Instituto Lina Bo e P. M. Bardi interrompeu por parte do período de redação deste capitulo, as
consultas públicas a seu acervo, para reestruturação. Assim, a idéia de verificar se Lina tinha a revista
francesa não se realizou.
98
Resta indagar por que a casa, o espaço doméstico. Lembrando que para G.
Semper a casa amplificava a função protetora de um vestido, associando necessidades
e expectativas culturais. Assim, é da razão cultural que elas estão falando, ainda que,
como é corriqueiro nos textos manifesto dos arquitetos modernos um tom na terceira
pessoa, como se houvesse imperativos categóricos – a sociedade pede, a era da
máquina clama, os novos tempos exigem etc. Como no vestido, na casa, na
arquitetura moderna ou outra, a razão prática, o programa pode ser pouco mais que
um pretexto. Especialmente porque a casa, ou o edifício (ou a cadeira) prontos são
sempre e a um só tempo, materialidade e representações sociais. Em uma casa ou na
idéia de casa se decantam várias dimensões.
AS ARTES DO MORAR
marquei com uma cruz. Se o olho 'pervertido' o achou bonito, a necessidade de armazenamento não foi
satisfeita. Eu comparei as capacidades de armazenamento de ambos os sistemas”. Une vie de création, p. 80.
189 . Revista editada Por Lina Bo e Bruno Zevi que durou menos que o ano de 1945.
99
barulhentos, pois o repouso do trabalhador não estava em questão, além de serem
construídos unicamente para dar lucro, para entregar o mínimo pelo máximo preço.
Segundo Jacques Barsac, a proposta de Charlotte era informar o público proletário
para que eles pudessem demandar dos fabricantes uma adesão, uma adaptação ao
“mundo moderno”, em “uma visão dialética da criação, do público e da produção”.
Não, guarde as peças bonitas e que funcionam bem para você. As unidades de
armazenamento vão ajudá-la a manter a ordem, e seus exteriores vão se fundir com a
arquitetura do aposento. Elas não vão se impor como móvel “moderno”, ao mesmo
tempo que seu desenho limpo vai dar certo com outros móveis concebidos de outras
maneiras. O que geralmente é denominado estilo moderno é de fato uma moda criada
por interesses comerciais para se vender bens ... e assim tornar a última moda do ano
passado fora de moda no dia de hoje. O comércio oferece a ilusão de riqueza com
“cópias” e “imitações”de mobília antiga... e desde a Exposição de 1925 também
produziu móveis em “estilo moderno”. Mas a tradição de falsificação continua, com
“funcionalismo subordinado à forma representativa do móvel”. Um modo adequado
de guardar nossos pertences, de modo a tomar um espaço mínimo em nossos
apartamentos já seria um passo. Precisamos de unidades de armazenamento com
portas de correr, gavetas nas quais tudo possa ser guardado no lugar conveniente
(para não termos de procurar uma pilha de pratos atrás de uma pilha de xícaras)190 .
190. Tradução livre a partir da versão inglesa do artigo, reproduzida no livro de Mary Mc Leod. Charlotte
Perriand, an art of living, p. 260.
100
Aparentemente, a “secretária tipo” se convenceu.
T.J. Clarke mostrou, em sua análise sobre a pintura na Paris de Manet, que
quando, na cidade remodelada por Haussmann, os restaurantes se proliferaram e
passaram a exibir seus cardápios, todos (especialmente aqueles que não tinham acesso
a tais novidades) puderam descobrir, finalmente, o que e como os ricos comiam e em
muitos casos, imitá-los193. De modo análogo, quando revistas e livros passaram a não
apenas dizer o que fazer, como ordenar casas, mas a exibir desenhos e fotografias,
todos – especialmente os menos providos de recursos materiais e simbólicos –
puderam aferir para que serviam e como usar os novos produtos que o crescente
mercado não cessava de jorrar. Como códigos de etiquetas, manuais de bons
costumes, tais publicações incutiam novos padrões de gosto, de uso dos espaços, das
marcações do tempo – uma cruzada pouco inocente.
191 . Sobre Vera Cleser, ver Gênero e Artefato, pp. 44-5.
192 . Norbert Elias, O processo civilizador, Rio de Janeiro: Zahar, 1993, pp. 80-1.
193 . T, J. Clark. A Pintura da Vida Moderna, op. cit. pp 117-8.
101
que os textos a seguir debatem e divulgam, que linhas demarcatórias estabelecem, eis
o que interessa perscrutar: estilos de vida no sentido mais amplo do termo, o que
inclui dimensões estéticas e visuais e podem suscitar demarcações de classe, assim
como divisões intra-casse. Além disso, a apresentação em ordem mais ou menos
cronológica, do século XIX até meados do XX pode indicar alguma mudança social a
respeito do lugar da mulher, suas relações com a casa, com o corpo e sua posição
nessa escrita (amadora, diletante, profissional).
102
para o novo papel da mulher na sociedade industrial. Se de um lado Beecher aceitava
uma definição convencional do mundo doméstico como esfera feminina, de outro ela
se colocava como uma defensora de algo como um feminismo doméstico ao evocar a
capacidade da mulher para o auto-sacrifício, característica que a habilitaria para guiar
o lar. Seu livro foi um sucesso imediato, com edições anuais, adotado em escolas195.
Beecher considerava a economia doméstica tão importante quanto a matemática, as
ciências naturais e a filosofia e por isso deveria fazer parte do currículo escolar. Ela
sugeria que as mulheres recebessem treino em economia doméstica, química
doméstica, assim como as melhores disposições e conveniências para
196
acondicionamento econômico de armazenamento e despensa . Em The American
Woman’s Home, de 1869, escrito a quatro mãos com sua irmã, a abolicionista e
escritora Harriet Beecher Stowe197, ela projetou uma cozinha moderna, longitudinal,
uma estação de trabalho com água encanada e equipamento de calefação e
ventilação.198 A mulher, apresentada como “ministra da casa” – as irmãs Beecher
eram filhas de um ministro congregacionalista e se voltavam tanto contra as idéias de
Fourier quanto da igreja católica – mas, quando sem empregados, deveria usar das
mais avançadas tecnologias pois estas eram o fator de profissionalização do trabalho
doméstico da mulher isolada em sua casa no subúrbio. Neste livro ela declarou sua
crença na idéia de que um modo de trabalhar mais racional daria às mulheres cristãs
(grifo meu) orgulho e satisfação na criação de uma casa eficiente.199 O livro, contudo,
incluía recomendações para habitações coletivas, uma vez que nem toda mulher
norteamericana poderia viver no subúrbio ou mesmo encontrar um marido.
195 . Hayden, Dolores. The Great Domestic Revolution. Cambridge, MA & London: The MIT Press 1982, p. 55.
196 , Bicester, Charlotte E. “Catharine Beecher’s view of Home Economics”, History of Education Journal Vol.
3, No. 3 (Spring), 1952.
p. 89.
197 . Harriet Beecher Stowe (1811-1896) é conhecida por seu romance anti-escravagista A cabana do Pai
Tomás, de 1852.
198 . Hayden, Dolores. The grand domestic revolution. Cambridge & London, The MIT Press, 1982.
199 . Penny Sparke, The Modern Interior, p. 132.
103
refinamento estético, que precisava, segundo elas, da ajuda de um decorador não
extravagante200. Sufragistas ativas, Rhoda (1841-1882) e Agnes Garret (1845-1935)
foram as primeiras inglesas a receber treinamento em um escritório de arquitetura e a
trabalhar como decoradoras (home decorators). Pouco sabemos de suas trajetórias,
mas o pai de Agnes era fabricante de cerveja e tinha a expectativa de que uma de suas
filhas se tornasse produtora de malte, mas em 1867 Rhoda e Agnes decidiram se
profissionalizar como decoradoras, uma vez que o plano inicial que era obter
treinamento como arquitetas não encontrou nenhum escritório disposto a abrigar uma
pupila. Iniciaram então seu aprendizado no escritório de Daniel Cottier, que
trabalhava com vitral e decoração. Após um período de aprendizado, as duas viajaram
pela Inglaterra, registrando informações das “melhores” casas, que facilmente se
abriram para elas201. De acordo com a análise de Emma Ferry, o livro não é um
apanhado de “o que e onde comprar, tampouco se alimenta da experiência das autoras
em gerenciar uma casa, pois elas queriam se apresentar como decoradoras e não como
autoras de conselhos domésticos – tanto que não entram, em seu livro, na cozinha, na
área de limpeza ou no berçário; não ensinam a limpar, não dão receitas e não falam de
crianças”202.
200 . Suggestions for House Decoration in Painting, Woodwork and Furniture, p7. Disponível em
https://ia601406.us.archive.org/7/items/suggestionsforh00garrgoog/suggestionsforh00garrgoog.pdf.
Última consulta em 01/11/2016.
201 .Os dados biográficos e a análise do livro das Garret estão no texto de Emma Ferry“ ‘Decorators may
be compared to doctors’. An Analysis of Rhoda and Agnes Garret’s Suggestions for House Decoration in
Painting, Woodworking and Furniture (1876)”. Journal of Design History Vol,. 16, No. 1, 2003.
202 . Emma Ferry, op. cit., p. 22.
203 . Apud Garret, p. 27. Na Inglaterra vitoriana, a separação das áreas da casa era profundamente marcada
por divisões de gênero. A mulher era responsável por sua aparência e pelas atividades que ali ocorriam. As
diferenças de Gênero eram materializadas na escolha do móveis e dos detalhes decorativos. As salas de
jantar, vistas como masculinas recebiam móveis grandes, que se impunham e de madeira escura, e com
freqüência um retrato do dono da casa na parece reforçava a masculinidade dominante do aposento. Em
contraste, o salão e os boudoirs recebiam cores claras e a mobília era mais elegante. Os usos também eram
104
recriminada pelas autoras por ser o trabalho de algum estofador empregado por uma
dona de casa ansiosa por ter nesse aposento sua voz ouvida e seu gosto acatado. O
capítulo seguinte, mais propositivo, traz ilustrações de seus próprios projetos,
advogando a favor de tons claros e mobiliário simples e bem construído, inspirado
nos modelos do século XVIII. Ao eleger como modelo o mobiliário dos anos da
Rainha Anne, elas criticavam a deterioração dos saberes artesanais, a alienação do
trabalhador na era vitoriana e a falta de discernimento do consumidor204. O tom é
prescritivo: “decorators may be compared to doctors”!
divididos: os homens podiam receber na sala de fumar ou de bilhar, as mulheres no salão ou no boudoir.
Ver Sparke, Modern Interior, p. 25
204 . “The public themselves are mainly to blame. They demand cheap and showy furniture, and the only
way to make furniture at once cheap and showy is to make it by machinery, and to turn the men Who
mnake it as nearly as one can into de machines.” Apud. Garret., p. 29.
205 . Apud Spark, The Modern Interior, p. 91.
206 . Pode parecer bizarro ou pouco coerente essa afirmação de modernidade a partir de objetos de um
passado eleito. Adrian Forty chama a atenção para esse aparente paradoxo ao mencionar as escolhas dos
ingleses do século XVII, sua fascinação por Roma e pela arqueologia: “O estudo das ruínas gregas e
romanas proporcionava inspiração para como deveria ser o presente. O paradoxo do gosto setecentista –
uma época tão fascinada pelo progresso e ao mesmo tempo devotada ao estudo de um passado distante –
expressou-se em todos os produtos artísticos do neoclassicismo. Não se tratava de reproduções servis da
Antiguidade: eles usavam imagens e formas do passado, mas pretendiam expressar sentimentos
modernos.” Objetos de desejo. Design e sociedade desde 1750. São Paulo: Cosac & Naify, 2007, p. 25.
105
The House in Good Taste se distingue de outros manuais anteriores – como o
de Beecher – e posteriores por não mencionar as chamadas áreas funcionais de uma
casa, como cozinha e banheiro. Não há qualquer menção a higiene e limpeza, menos
ainda ao fato de que se cozinha numa casa. Sua ênfase repousa na personalidade,
crenças e visibilidade dela mesma como autora, em um livro totalmente escrito na
primeira pessoa, ainda que com a ajuda de uma ghost writer. Segundo Sparke207
artigos reunidos por Wolfe nos periódicos Delineator e The good housekeeping, entre
1911 e 913 foram editados por Ruby Ross Wood, que no ano seguinte publicaria seu
The Honest House. Nesses artigos e no livro, Wolfe usava o expediente de mostrar
suas casas, mesmo falseando a informação. Em artigo sobre como decorar
apartamentos pequenos, a ilustração foi do boudoir de seu próprio apartamento na
Midtown de Nova York, exibido como se fosse a sala de estar de um apartamento
pequeno. A sala de estar do mesmo apartamento apareceu em outro artigo em seu
fausto: lareira, quadros, lustre de cristal208.
106
execução das mesmas tarefas e toda atenção era dada aos materiais, que deveriam ser
laváveis. Seu livro não se voltava para a mulher pobre, que já vinha da classe dos
empregados domésticos, mas à classe média à qual Frederick pertencia.209 Na década
seguinte ela criou e dirigiu o Applecroft Home Experiment Station (Fig. 30) em sua
casa no estado de Nova York, um laboratório onde fazia testes de como economizar
passos no preparo da comida, alem de experimentar 1800 produtos, de
eletrodomésticos a gêneros alimentícios210.
107
conservador, mas Hayden destaca sua sensibilidade, assim como a dos arquitetos que
com ele colaboravam, para as necessidades especial de grupos como mulheres
solteiras, velhos, viúvos e viúvas, casais sem filhos e casais nos quais os dois
trabalham212. E nunca é demais lembrar que os quadrangles de Howard permanecem
habitados até hoje.
212 . Dolores Hayden, p. 237.
213 . Este tema será melhor desenvolvido no Capítulo V.
214 . Citado por Schönfield, Christine & Finnan, Carmel. Practicing modernity. Female Criativity in the Weimar
177.
108
capítulo desta tese capítulo) e a idéia de uma dona de casa em parte desobrigada do
fardo dos afazeres tornou-se nesse país um culto que unia esquerda e direita.
Ao final dos anos 1920 na Alemanha, a divulgação das ideias do novo modo
de se gerenciar uma casa, aliada à atuação de arquitetos como Bruno Taut gerou como
solução a proposta da casa para uma subsistência, ou existência mínima (Die
Wohnung für das Existezminimum). E a culminação, do ponto de vista da mudança no
âmbito da domesticidade, disso tudo foi o projeto da conhecida Cozinha de Frankfurt,
pela arquiteta austríaca Grette Schütte-Lihotsky, exibida na Die neue Wohnung und
ihr Innenausbau ( A casa nova e o novo design interior) em 1925 e logo incorporada
em diversos projetos residenciais construídos nessa cidade pelo arquiteto Ernst May
(1886-1970). Trata-se de uma Kochküche, cozinha para se cozinhar, pequena e com
uma aura de modernidade que vinha do uso da eletricidade. A muito referenciada
cozinha de Frankfurt tornou-se um modelo, foi reproduzida em diferentes cores e
materiais e quase um sinônimo da longa trajetória de sua autora, como vimos na
introdução desta tese.
O livro (Fig. 31) Der neuer Haushalt, de Erna Meyer, de 1926 vendeu 40 mil
exemplares até 1932 e incorporava as idéias de Catherine Frederick – cujo New
Housekeeping havia sido traduzido para o alemão por Irene M. Witte (1894-1976) em
1921216 – adaptando as mesmas à necessidade alemã de profissionalizar a dona de
casa. Tais novidades atravessaram de volta o Atlântico e em 1934 o livro Modern
Housing, da norteamericana Caherine Bauer, editado em Nova York saudava a
cozinha de Schütte-Lihotsky como uma das grandes conquistas da nova arquitetura.217
109
lápis na mão, anotando tudo, e não mais de um capítulo de cada vez218. Este trabalho
ménager, da dona de casa que podia ou não contar com empregadas para auxiliá-la,
era definido como de grande complexidade, um conjunto variado de tarefas que
ocupam partes diferentes do corpo e exigem qualidades diferentes da inteligência.
Trabalho que exige mãos que passam da água muito quente à muito fria, dos produtos
cáusticos para a lavagem de roupa aos pontos delicados da costura. Uma mesma
mulher que deveria ter o bom gosto para ornar sua casa, vestir sua família, deveria
suportar o peso da lavagem da louça e os cuidados com os velhos e os doentes. E para
agravar sua situação, em todas as tarefas ela de certo modo competia com um
profissional – a cozinheira, o chef, a costureira, o tintureiro, a professora de crianças –
que poderia desempenhar melhor suas tarefas por ser especializado219. Para propor
seu método, ela apresenta à sua leitora Frederick Taylor e Henri Fayol, enfatizando as
regras que o primeiro estabeleceu para a indústria e que poderiam ser aplicáveis ao
trabalho doméstico. E menciona diversas vezes o trabalho de Christine Frederik,
traduzido em diversas línguas, assim como sua colega alemã Erna Meyer e o casal
Frank e Lilian Gilbreth.
Ainda na Itália, quando começou sua carreira em Milão trabalhando com Giò
Ponti, a arquiteta Lina Bo escreveu com seu colega Carlo Pagani diversos artigos
cujos títulos indicam uma preocupação e um o cuidado com o arranjo interno de
diversas modalidades de casa: “A casa pequena”, “A casa na cidade”, “A casa na
periferia”, “Sistematização de interiores” são alguns dos títulos que visavam ensinar a
montar e a conceber uma casa simples e moderna, sem qualquer excesso herdado de
outros tempos. Mas o artigo mais radical não foi por ela assinado. No primeiro
número da revista A, que ela editou com Bruno Zevi, um artigo intitulado “Come può
essere Il uomo libero si la donna è schiava” argumentava que a civilização moderna
tendia a libertar a mulher, lançá-la na vida social, civil e política da nação e para tanto
era necessário facilitar o trabalho doméstico. Este era um problema de método, de
tornar a casa eficiente, e a resposta estava no artigo seguinte, “La cucina
dell’avenire”, uma cozinha projetada nos Estados Unidos e tão diferente das cozinhas
italianas de então como a abóbora da carruagem de Cinderela, declarava o texto.
218 . Bernege, Paulette. De la methode ménagère, Paris: La Ligue de l’organization ménagère, 1934, p. 3.
219 . Bernege, Paulette. De la methode ménagère, p. 7.
110
Esta publicação ainda na Itália dá a dimensão do quanto a casa, seus
problemas, escolhas e dilemas, tudo isso fazia parte da preocupação de Lina Bo Bardi,
ainda que permaneça um aspecto nada explorado de seu trabalho – talvez pela
historiografia corrente ter tomado para si a blague de quem se apresentava como
arquiteto. Não é possível averiguar se Lina e Charlotte conheciam alguns dos livros
de conselhos expostos. Mas é possível propor que isso não chega a fazer muita
diferença, se pensamos um pouco como Baxandall propôs em sua análise de um
quadro de Chardin. Nesse texto, o historiador inglês propões uma ligação entre certos
tipos de pintura do século XVIII, como a de Chardin e o empiricismo filosófico que
se propagava por toda a Europa, especialmente em suas versões, vulgarizadas,
simplificadas e destinadas à divulgação. O pintor Chardin teria lido Locke? Até certo
ponto, tanto faz: “ele já vivia numa sociedade lockeana. Somos nós que, de fora dessa
cultura, precisamos de Locke para compreender os padrões do pensamento do século
XVIII.”220
220 . Baxandall, Michael. Padrões de intenção, São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 155.
111
No capítulo anterior vimos o início da carreira de Charlotte Perriand, quando
sua atuação esteve constrangida entre os dilemas e querelas das artistas decoradores e
dos arquitetos modernos. Ela deixou o ateliê de Le Corbusier em 1937, mas continuou
a se relacionar com Pierre Jeanneret e Fernand Léger, e não ficou sem trabalho, pois
desde 1934 manteve alguma independência em relação à vida do ateliê, mesmo
porque precisava de trabalho remunerado. Nos anos seguintes desenhou e mandou
executar móveis mais orgânicos, usou mais madeira em seus projetos e, com Jean
Prouvé e Jeanneret chegou a esboçar um estudo para móveis pré-fabricados221.
Em abril de 1940, Josep lluis Sert escreveu à designer, indagando por que ela
não escolhera viajar para a América, o que, a seu ver seria perfeito, e afirmou ainda
esperar que eles pudessem fazer coisas juntas. “Ainda somos jovens.... a arquitetura é
um vício difícil de ser erradicado, e hélas! Seremos arquitetos por toda a vida, bons ou
maus, pois a rua de Sèvres nos envenenou bem, para sempre...”222. A carta do
arquiteto catalão torna evidente que, ainda que o lugar pudesse ser repensado, deixar a
Europa não era um mais tema de debate para eles: America ou outros destino, mas as
condições de possibilidade de permanência não eram sentidas como reais. Dois meses
depois Charlotte Perriand embarcava, do porto de Marselha, no navio Hakusan Maru.
Depois de mais dois meses, desembarcou em Tóquio.
Mesmo com trabalho, 1939 tinha sido um ano politicamente difícil para ela, e
deixar a França, como antes dela fizeram o casal Sert e Moncha223, assim como
Fernand Léger, parecia inevitável. Em fevereiro de 1940 ela recebeu um telegrama de
Junzo Sakakura, que tinha sido seu companheiro de trabalho no ateliê de Le
Corbusier, convidando-a para trabalhar como conselheira desenhista de arte
decorativa para o Ministério do Comércio do Japão. Era um convite oficial, mas
segundo Yasushi Zeno pouco antes ela havia recebido uma carta de seus amigos,
escrita no rolo de papel finíssimo tradicional do país, com um envelope do mesmo
material – e isso ajudava a tornar o convite irresistível224. Lembremos que no
momento o Japão ainda não tinha se tornado aliado da Alemanha, não fazia parte do
221 . Barsac, Jacques. Charlotte Perriand, Art de vivre, p. 34.
222 . Idem, p. 231.
223
. No livro Une vie de création, está grafado Muncha Sert.
224 . Zeno, Y. “Fortuitous Encounters: Charlotte Perriand in Japan”, McLeod, M. Charlotte Perriand, an art of
112
eixo. E o pagamento era bastante alto.225 Por outro lado, o Japão estava em guerra
com a China, situação grave da qual ela só se daria conta uma vez lá. Esta experiência
de trabalho deveria durar apenas um ano, uma vez que seu contrato expiraria em
março de 1941.
Saka, como ela o chamava, trabalhou com Le Corbusier entre 1930 e 1936 e
foi o arquiteto do pavilhão japonês da Exposition Internationale de Paris em 1937.
Outro amigo do mesmo período era Kunio Maekawa, que chegou ao ateliê de Corbu
em 1928 e partiu em 1930. Este pavilhão teve um papel importante no debate
arquitetônico de então, O primeiro projeto foi de Maekawa, recusado por não ser
“suficientemente japonês” e substituído por um de Sakakura, saudado pela imprensa
como uma manifestação bem-sucedida de regionalismo, enquadrado por uma moldura
moderna. Este pavilhão dividiu o prêmio com o de Alvar Aalto e o de seu amigo Sert.
Há, contudo dois outros nomes importantes na reconstituição da rede de relações que
levou a designer a rumar para o oriente. Soetsu e Sori Yanagi, pai e filho. O primeiro,
conhecido fundador do movimento Mingei de arte popular, que tinha como missão
evitar que o conhecimento do artesanato popular japonês desaparecesse e para tanto
ele coletava objetos que pudessem inspirar a criação por parte de designers. O
movimento Mingei defendia também que o Japão olhasse para a produção de outros
países do oriente, como a Coréia, a China e Taiwan como fonte de inspiração estética,
do mesmo modo que no final do século XIX a Europa havia mirado o Japão.
225 . Benton, C., “Rencontre avec le Japon”, Catálogo de exposição. Paris, Centre Pompidou, 2005, p. 84.
113
Ainda assim: por que o convite para Charlotte e não para os outros membros,
talvez mais conhecidos e notórios do que ela? Por que a assunção de que Le
Corbusier, notório viajante, que nesse momento pedia e aceitava trabalho mundo
afora rejeitaria o Japão? Certamente porque a demanda não era pela arquitetura, mas
pelo seu pólo “menos importante”: certamente porque tratava-se de uma expertise em
artes decorativas, estas artes “menores” que Corbusier parecia um pouco desdenhar. E
porque a carreira de Charlotte nos anos anteriores ao período da rue de Sèvres
apontava justamente para o que eles precisavam: uma experiência com lojas,
magasins de nouvautés, design para o comércio. Charlotte era formada por Maurice
Dufrène, que sempre acompanhou sua carreira, e floresceu no período de parceria
com Le Corbusier e Pierre Jeanneret, ainda que, como pudemos ver no capítulo
anterior, não apenas a partir desse contato, mas de outros como seus colegas da UAM
e o trabalho de Mallet-Stevens, Djo Bourgeois e René Herbst.
114
Neste contexto, Charlotte foi bem recebida por Sakakura, seu antigo
companheiro do ateliê de Le Corbusier e se hospedou, de início, no Hotel Imperial,
projetado por Frank Lloyd Wright. Desde o início, teve como assistente o estudante
de artes industriais Sori Yanagi, filho do historiador de arte, especialista em artes
populares, Soetsu Yanagi. Charlotte Perriand chegou ao Japão para substituir o
arquiteto alemão Bruno Taut, que após fugir do nazismo em 1933, dirigiu o Instituto
de Arte Industrial de Sendaï, e de Madame Shermann226, que o sucedeu. Assim,
segundo Barsac, um de seus desafios ao suceder essa dupla alemã era lutar contra uma
certa tendência ao formalismo, herança da Bauhaus.
Ao fim dessas visitas, ela assinalou que o que aprendeu foi tão útil quanto o
que ensinou. A produção destinava-se à exportação, mas também ao mercado
nacional. A primeira era desprovida de interesse, mas a segunda, ao contrário, era
deliciosa.227 Ela encontrou objetos perfeitos, que não necessitavam de qualquer
modificação. As recomendações de Perriand foram agregadas em uma exposição
intitulada “Tradição, seleção, criação”(Fig. 33), exibida na primavera de 1941,
apresentada em Tóquio com a ajuda de seu amigo Sakakura e do magazine
Takashimaya, e foi bem acolhida pelos mecenas. “Seleção” remetia a bons objetos de
uso cotidiano; “tradição” trazia fotografias dos usos dos objetos, mostrando sua
continuidade; e “criação”significava “criar no seu século”, sem nunca copiar.228 De
“criação” fazia parte sua chaise-longue, dessa vez projetada para ser executada em
bambu e madeira.
As redes de apoio no Japao foram fundamentais para que ela pudesse explorar
um território nada familiar; contudo, do ponto de vista institucional há que se ressaltar
seu encontro com um instituto governamental chamado Seccho na região de Tohoku.
Em uma carta a um de seus companheiros Mingei, Yanagi pai pedia que ele fosse
solícito com uma pessoa da França que visitava a área em trabalho de pesquisa. Esta
instituição, um centro de pesquisa fundado em 1933 pelo Ministério da Agricultura e
Silvicultura, compartilhava como o movimento Mingei a preocupação com o
artesanato regional. Ela esteve duas vezes em Seccho, em novembro de 1940 e em
226 . Até o momento, a pesquisa não descobriu de quem se trata.
227 . Benton, Charlotte. “Rencontre avec Le Japon”. Centre Pompidou, Charlotte Perriand, op. cit., p. 78.
228 . Barsac, J. Charlotte Perriand et Le Japon. Paris: Norma Éditions, 2008, p. 134.
115
abril de 1941 – nessa segunda visita acompanhada por Yanagi pai e pelo designer de
tecidos Mingei, Keisuke Serisawa.
Um ano depois de chegar, seu contrato expirava o contexto não apontava para
uma renovação. O Japão entrou na guerra e os planos de Charlotte eram insanos:
encontrar Jeanneret no Himalaia, nas estepes da Ásia central ou em Pequim. Jeanneret
sugeriu o Chile, enquanto Sert voltou a insistir que ela fosse encontrá-lo e a Léger na
América. Como não havia transporte viável para a América, seus amigos japoneses a
convidaram para uma conferência em Hanói, na Indochina. Ela estava nesta cidade
quando do ataque de Pearl Harbour e o Japão entrou no conflito mundial. De volta ao
Japão, ela se refugiou com a família de Sakakura, onde ficaria por seis meses. A única
maneira de deixar o Japão, naquelas circunstâncias, foi por um convite oficial do
governo da Indochina, e com a intermediação da embaixada francesa em Tóquio ela
partiu para Hanói.
116
Marselha. De qualquer modo, um recomeço difícil: casada e com uma filha, mas
recomeçando o trabalho na França, ela se viu “só na luta, sem meio”, mas com um
capital simbólico de uma experiência duradoura de dez anos no ateliê de Le Corbusier
– então mais consagrado então do que quando trabalharam juntos – mais seis anos no
extremo Oriente. Nessa circunstância recebeu o convite para escrever um número
especial da Architecture et Techniques, que foi, ente outras coisas, um sopro delicado
de autonomização profissional em seu pais. De volta, ela escrevia como Perriand, não
como uma decoradora do grupo de Dufrène, tampouco como uma colaboradora de Le
Corbusier. O convite foi, em suas palavras, uma dádiva, que lhe permitiu aprofundar
algumas idéias.229
A ARTE DE MORAR
117
Outra tomada de posição remetia ao elemento primordial do equipamento doméstico:
armazenar bem objetos parecia a ela o elemento primordial. Sem bons armários, não
há vida possível no habitat, tema que como veremos logo, foi retomado por Lina em
seu texto de aconselhamento.
Mas nesse artigo, era a arquiteta não diplomada que conviveu com Sert e Le
Corbusier quem afirmava, modernista, que o habitat tem células vitais que respondem
às necessidades do organismo. São elas, duas funções que constituem o nervo da
construção: alimentação (e sua preparação) e higiene do corpo.
Assim como no trabalho de Paulette Bernège que ela bem conhecia, a solução
para a falta de empregados remetia à planta da casa, quando ela propôs uma nova
distribuição para unir a cozinha e sala de estar – a fala é de uma ex-sala de jantar –
por um passa-pratos; ou quando propõe uma reabilitação da dona de casa que faça
seus gestos culinários com a “harmonia do nosso pastor nas montanhas” 232.
118
morar. Destacamos duas: um projeto de Pierre Jeanneret com uma cozinha-sala na
qual a mesa é de sua autoria (mas isso não é mencionado na legenda) (Fig.34) e um
pequeno desenho mostrando a escotilha que liga sala e cozinha. O homem está na sala
em posição mais repousada do que a mulher que, na cozinha parece fazer alguns
gestos do trabalho cotidiano. De qualquer modo o desenho, mais do que o texto
parece interpelar uma consagrada divisão de lugares na casa ao propor ao menos uma
certa porosidade entre estes. Outra imagem mostra uma mulher de avental passando
os pratos pelo passa-pratos da cozinha da Unidade de Habitação de Marselha, com a
explicação: “contato da dona de casa com seus convidados”. O que parece em jogo,
nesses casos é o isolamento da dona de casa relegada ao lugar de trabalho que
permanece seu, e que demandava mudanças espaciais para ser minimizado. Claro que
tudo isso se fazia acompanhar de detalhes técnicos como ventilação, materiais
laváveis, fogão elétrico e um sistema de evacuação do lixo.
Esta não era a casa que Charlotte enfrentava na reconstrução das cidades
francesas, nem a de suas leitoras: mas era cada casa onde ela viveu, a casa que
conheceu, a casa urbana de seus pais. Visto sob esta perspectiva, o que ela indica
quando abre uma janela unindo sala de estar e cozinha com um desenho jovial? Se
podemos ver ecos de sua própria experiência quando exibia seu apartamento
experimental, sua mansarda de recém casada com um bar235, era nesse momento,
pós-guerra francês, um apelo à virtude de um lugar diminuto que não necessariamente
233 . Eleb, M. e Debarre, A. L’invention de l’habitation moderne. Paris 1880-1914. Paris: Hazan, 1995, p. 31.
Curiosamente, em seu apartamento de casada, que tinha dimensões reduzidas, Charlotte optou por um bar
para poder receber, cf. capítulo 2.
234 . L’invention de l’habitation moderne. Paris 1880-1914, p. 114.
235 . Bar sous Le toit, capítulo II.
119
precisaria ser lido na chave da falta de espaço, de aposentos chancelados pelos usos e
pela cultura etc.
Alors, au 20eme siècle, pourquoi ne pas standartiser, le produire en grande série avec
des procédés, des matériaux nouveaux, selon une nouvelle conception? J’ai proposé
des bacs coulissants en tôle d’aluminium, de forme légèrement conique (...) Un étude
approfondie déterminera les matériaux et les procédés de fabrication le plus
120
économiques, selon le cas. Il nous reste à lui donner les dimensions à l’image des
objets qu’il doit contenir.238
Ou seja, em sua perspectiva a forma tinha mesmo de ser útil. Por isso
certamente a atenção aos objetos produzidos em um país no qual até então ela nunca
havia pisado, e que recebeu fortes ressalvas de seu antigo mentor Le Corbusier240.
Mas era nos Estados Unidos que designers como George Nelson e o casal Charles e
Ray Eames estavam se lançando ao desafio de produzir mobiliário de qualidade
reconhecida em grande escala com bom preço; era lá que uma empresa como a
Hermann Miller patenteava armários e prateleiras (Fig. 36). A contrapartida européia
vinha do próprio trabalho, dos companheiros da UAM e dos móveis do arquiteto
finlandês Alvar Aalto241. Os Estados Unidos eram admirados pelo grande numero de
máquinas de lavar nos lares, e o arquiteto precisava aprender a reservar um lugar para
este equipamento.
Charlotte propunha que toda casa tivesse uma área ventilada para os trabalhos
domésticos. Caso contrário, onde limpar os sapatos depois de um passeio no campo
em um domingo? Onde deixar os objetos que precisavam ser limpos? Há nesse trecho
de seu texto um sentido de realidade cotidiana que aconselha o arquiteto a fazer o
espaço para funções realmente existentes e necessárias, e não o contrário, quase um
238 . “Então, no século XX, por que não estandartizá-los, produzir em série com processos e materiais
novos, segundo uma concepção nova? Eu propus tabuleiros deslizantes em folha de alumínio, com forma
ligeiramente cônica (...) Um estudo aprofundado vai determinar os materiais e procedimentos de fabricação
mais econômicos, caso a caso. Resta a nós darmos as dimensões segundo os objetos que este deva conter.
“L’art d’habiter, p. 58.
239 . L’art d’habiter, p. 58.
240 . No livro Quand les cathédrales étaient blanches, de 1935.
241 . O papel de sua esposa Aino Aalto na produção de móveis e objetos vem sendo pesquisado na última
década.
121
exemplo dos escritos de Bernège.242. Nessa peça, contígua à cozinha, deveria haver
espaço para a lavagem, secagem e passagem de roupa e seu texto termina com
diversas ilustrações de lavadoras, tábuas e ferros de passar.
Mas é no capítulo “Ambiance” que ela exprime sua visão de bem morar pouco
burguês, ao assumir que a arte de morar não custa caro. Esta “arte” volta-se para a
calma, o relaxamento, a harmonia. Um quarto pobre no 6o andar podia ser um
ambiente: uma vedação leve nas janelas para isolar os vizinhos, um chão pintado de
vermelho, paredes caiadas de branco, uma cama metálica pintada de amarelo, uma
mesa de pinho, uma bandeja de vime, flores, uma pele de carneiro para pisar, fotos
bonitas... e temos um quarto digno para uma jovem charmosa do século XX – como
não pensar nela mesma poucas décadas antes? Semelhante localização à mansarda
onde viveu logo que se casou com Scholefield, e ainda mais próximo ao apartamento
que alugou logo que dele se separou: o viver ao mesmo tempo monástico e
estimulante de uma jovem moderna. Nesse aspecto de seu livro de aconselhamento
sua experiência de morar contaminou sua perspectiva: viver podia custar pouco, caber
dentro de um pequeno orçamento. “L’ambiance ne coûte rien, on n’habite pas dans les
musées”.243 O oposto da Casa de Vidro.
242 . Nesse sentido, ela caminha em uma direção contraria à de Carmen Portinho (capitulo IV) que sugeriu
a retirada da área de serviço do conjunto residencial Pedregulho, no Rio de Janeiro, projeto de 1947.
243 . L’art d’habiter, p. 86.
122
arquitetura: os cinco anos que viveu na Bahia e a construção do MASP da avenida
Paulista. Um dos condicionantes de sua atuação nesse momento é a parceria com o
marido, que convém examinar, o que é também um modo de equilibrar a tese,
conferindo à Lina, como foi feito à Charlotte, uma pequena abordagem biográfica que
muito auxilia a compreensão de suas opções e constrangimentos.
244. Antropólogas e Antropologia, p. 22.
245 . Não é, para nossa análise, irrelevante que ao longo de sua carreira, Lina tenha alternado –
aparentemente do modo aleatório – sua assinatura em desenhos e projetos: Lina Bo, Lina Bo Bardi, LB,
BB.
123
A recente valorização do trabalho de Lina, que faz parte de uma
movimentação do campo da historiografia da arquitetura moderna brasileira, de certo
modo esmaeceu o papel de Bardi; é preciso recuperarmos a dimensão dessa parceria
em seus lugares, redes de relações, naquilo que realizaram juntos e separados246. Lina
e Bardi: estamos diante de um Künstlerehepaar, uma dupla, parceria ligada às artes
que é do mesmo modo uma manifestação do casamento modernizado. Este termo,
utilizado na Alemanha dos anos 1920, invoca uma projeção auto-consciente do casal
de artistas, ligada à movimentos de gênero e a uma parceria entre iguais. Segundo a
análise de Tag Gronberg, a idéia de um casal de artistas permite que a artista mulher
apresente seu perfil profissional para um universo mais amplo. Nesse caso, mesmo a
esfera doméstica “privada” (as aspas são da autora) se torna um palco público, uma
vitrine para a vida a dois dos artistas. A residência dos Bardi, projeto de Lina
chamado de Casa de Vidro já tem no nome – ao remeter à transparência e exposição –
a evidência dessa publicidade: um mix de casa e galeria, foi desde sua inauguração
apresentada como a possibilidade de um morar moderno247.
Parceria que nos remete também ao Museu de Arte de São Paulo (MASP) em
suas duas versões – na rua 7 de abril e na avenida Paulista – e à complexidade de seu
alcance: o projeto museológico, os debates que suas publicações desencadearam, a
escola de artes que o museu abrigou. Lina no agenciamento do espaço, Bardi na
direção de museus e crítica de arte; o casal em incisiva atuação na revista Habitat,
publicada pelo museu, em editoriais assinados, sem assinatura ou ocultos sob o
pseudônimo Alencastro. O período entre 1946 e 1968 marca o auge de uma parceria
pessoal e de trabalho que legou a São Paulo aquele que ainda é seu museu mais
importante, e um indiscutível marco urbano. Mas mesmo antes do MASP, esta caixa
246 . Parceria aqui é um termo que remete à coletânea de Whitney Chadwick e Isabelle de Courtivon,
Significant others, traduzido em português como Amor e Arte. Autores diversos analisam treze casais como
Sonia e Robert Delaunay, Frida Kahlo e Diego Rivera entre outros, enfatizando “os confitos de duas
pessoas que têm uma vida criativa dentro de um contexto de vínculo sexual/afetivo e que, portanto, estão
sempre confrontando o prazer e o terror de ‘juntos serem gênios’ “, p. 11.
247 . São diversas as casas-manifesto resultantes de parcerias conjugais e artísticas: além da Casa de Vidro,
residência do casal Bardi podemos mencionar a Casa Eames na Califórnia, onde viveu o casal de designers
Charles e Ray Eames; a Casa E1027 que a arquiteta e designer Eileen Gray projetou para ela e seu amante,
o arquiteto Jean Baldovici; e a Casa Schröder, resultado da parceria entre o arquiteto holandês – do
movimento neoplasticista – Gerrit Rietvelt e sua cliente Truus Schröder. Rietvelt registrou o nome de
Schröder como co-autora e de posteriormente passou a ali viver com ela. Ver, a respeito, Alice. T.
Friedman, Women and the making of modern house.
124
suspensa de concreto protendido248 abrir suas portas na Avenida Paulista com uma
exposição de arte popular brasileira, a parceria deixou marcas na cidade. Assim, é
preciso examinarmos os termos desta aliança que incidiu de modo pleno na São Paulo
dos anos 1950 e 1960, exatamente o período no qual ela escreveu sobre casas
tornando a sua, a do casal Künstlerehepaar um exemplo do viver moderno e de bom
gosto.
No final dos anos 1930, antes que o fascismo se tornasse sinônimo de aliança
com o nazismo, havia basicamente dois caminhos para um aspirante a arquiteto na
Itália. A já mencionada Universidade de Roma, sob a batuta de Marcello Piacentini e
Gustavo Giovannonni e o Instituto Politécnico de Milão. Se Roma era a capital a
Itália reunificada desde 1871, Milão era politicamente. Ainda que menos
industrializada e sindicalizada do que a Torino Rossa associada aos conselhos de
fábrica e à atuação de Antonio Gramsci, Milão possuía indústrias e do ponto de vista
da agitação cultural, era a cidade onde Tommaso Marinetti e seus companheiros
futuristas viviam e atuavam. Era também a cidade do Gruppo 7, de jovens arquitetos
modernos249, do qual Giuseppe Terragni se tornaria o mais conhecido, especialmente
por obras como a Casa Del Fascio e o Novocomum. Contrastava fortemente com
Roma, que desde que se tornou a capital expressava-se com referências a um passado
glorioso, representado em seu espaço físico: na construção de um monumento a
Vittorio Emmanuele em 1911 ou na criação de um percurso arqueológico em 1913.
Em Roma se delineavam dois mundos opostos: o centro da cidade e da nação,
monumental, fragmento isolado de antiguidade e ruínas que deveriam testemunhar o
passado imperial – revivido pelo fascismo – enquanto que sua crescente periferia
pobre, que abrigava aqueles que haviam sido expulsos pelas demolições na área
central – medida que visava dar mais relevo e evidência aos monumentos nacionais –
parecia abandonada à sua própria sorte. Entre o centro histórico remodelado e a
periferia abandonada havia uma faixa intermediária onde se situavam os serviços, o
clero, os serviços públicos e, claro, a especulação imobiliária.250
248 . A protensão do concreto visa aumentar sua resistência, permitindo vãos maiores do que o concreto
armado convencional, razão pela qual é um procedimento utilizado em pontes.
249 . O grupo se formou em 1926 e os sete arquitetos eram Ubaldo Castagnoli, Luigi Figini, Guido Frette,
Sebastiano Larco, Gino Pollini, Carlo Enrico Rava e Giuseppe Terragni. Posteriormente Adalberto Libera
substituiu Castagnoli.
250 ; Gli architetti e il fascismo, pp. 79-80.
125
Tanto Marcello Piacentoini em Roma como Giuseppe Terragni e seu Gruppo
7 em Milão disputavam a primazia na representação que o fascismo deveria promover
de si por meio da arquitetura e da cidade, imagem que deveria abranger edifícios
públicos e privados, casas burguesas e populares, além das “cidades de fundação”,
como eram chamados os empreendimentos urbanísticos de grande escala que
marcaram a empreitada colonial fascista na Líbia e Tunísia251. Ainda que Lina tenha
posteriormente se referido ao seu professor Marcello Piacentini e ao ensino que
recebeu na universidade ressaltando sua ênfase na cultura clássica e em uma nostalgia
áulica, ele tinha uma posição proeminente entre os arquitetos e buscava uma
conciliação entre a herança clássica e a demanda moderna. Curiosamente, embora
tenha permanecido fiel à forma clássica e à retórica monumental e cívica, ele fez parte
da formação de importantes arquitetos modernos – e imigrantes – que viriam a atuar
em São Paulo – além de Lina, Gregori Warchavchik e Rino Levi.252
251 . Nessa modalidade de “racionalismo colonialista”destacou-se Carlo Rava, do Gruppo 7.
252 . Apenas esse papel na formação de arquitetos que seguiriam outro caminho já justificaria uma revisão
da trajetória do arquiteto. A respeito de Marcello Piacentini, ver Arquitetura italiana no Brasil: a obra de
Marcello Piacentini : história, catálogo, documentos. O autor realizou uma pesquisa minuciosa, que diz mais do que
o epíteto de “arquiteto fascista” sob o qual sua vida e obra foram avaliados pela historiografia até os anos
1990.
253 . Ritrato di un’idea. Arte e Architettura nel Fascismo. (Guida breve alla mostra), p. 6.
126
Bardi reputava como o edifício mais feio de Roma, algo de criticas posteriores de
Lina em texto de 1943254. Em 1933 Bardi realizou outras fotomontagens, desta feita
expressando mais motivação de continuidade e proposição do que repúdio, painéis
para serem exibidos nos círculos culturais italianos na América Latina, e foram
efetivamente mostrados por ele em Buenos Aires em 1933.
Nessa viagem, durante uma escala do navio, Bardi conheceu São Paulo, a
Avenida Paulista e o Conde Matarazzo além, de fora e de longe, a sua mansão,
projeto do arquiteto italianoTomaso Buzzi, que ele atribuiu a Marcello Piacentini.
Quando os Bardi chegaram ao Brasil, uma contenda semelhante à italiana era travada
a respeito do estilo dos edifícios oficiais, com Lucio Costa e seus companheiros da
“escola carioca” preconizando o chamado funcionalismo arquitetônico, enquanto
outros arquitetos voltavam-se para as linhas mais clássicas e ecléticas, numa disputa
pela “verdadeira” arquitetura nacional. Como Mussolini, o Estado Novo de Getulio
Vargas fez uma aposta múltipla, construindo edifícios modernos como o já citado
Ministério da Educação, ou mais “passadistas” como o Ministério da Fazenda255. Se
em São Paulo, onde havia um contingente maior de imigrantes e de uma arquitetura
promovida não pelo Estado mas por empreendedores, o debate a respeito da
“brasilidade” da arquitetura fazia menos sentido, intelectuais e escritores como Mario
de Andrade e Alcântara Machado também investiam contra a miríade de estilos que
identificavam na paisagem urbana em mutação.
254 . “Case a nuclei abitativi in Roma”. Lo Stile, Milão, no. 31, 1943. Traduzido e reproduzido em Lina por
escrito.
255 . Os debates e querelas relativos aos edifícios do governo Vargas foram tratados no livro As Preocupações
127
capital social na valise do casal Bardi. Redes traçadas a partir da Itália, tecidas no
navio Patris II onde se realizou o emblemático CIAM256 de 1933, quando Bardi se
aproximou de Le Corbusier257, que por sua vez já havia estado no Rio de Janeiro e em
São Paulo em 1929. Em entrevista de 1981258, Bardi chegou a afirmar que custeou a
passagem de Le Corbusier no navio que transportou os arquitetos de Marselha a
Atenas, e vive-versa – onde teve lugar o famoso encontro que discutiu a cidade
funcional – mas isso parece pouco provável. De qualquer modo, seu papel nessa
reunião não foi irrelevante: havia quatro representantes da Itália nesse navio, e Bardi
era um deles259. E nos meios da arquitetura moderna, tanto na Itália como no Brasil,
ser próximo de Le Corbusier constituía um trunfo.
d’Aujourd’hui de Paris, estabelecendo então boas amizades com os grupos que se andavam afiliando aos
“CIAM” (…) fundados por Le Corbusier em ’28 em La Sarraz, na Suíça. Lembranças de Le Corbusier. Atenas,
Itália, Brasil, São Paulo: Nobel, 1984, p. 15.
258 . Harris, E. Le Corbusier: riscos brasileiros, ao Paulo: Studio Nobel, 2002, p. 39.
259 . A Itália foi representada por Piero Bottoni, Gino Pollini, Giuseppe Terragni e pelo galerista e editor da
Quadrante, Pietro Maria Bardi. The CIAM Discourse on Urbanism, pp. 77-8. Piero Bottoni (1903-1973),
arquiteto formado em Milão, participou da fundação da Quadrante, com Bardi e Bontempelli; Gino Pollini
(1903-1991) também era um arquiteto atuante e Giuseppe Terragni, como já vimos era o mais importante
arquiteto racionallista do período.
260 . Brito publicou também um artigo na revista Quadrante, editada por Bardi. Curiosamente, em artigo de
1955, publicado no Brasil, Brito tentou aproximar o fascismo dos movimentos artísticos italianos de modo
simplista: “Em 1919, Mussolini já redigira a plataforma do fascismo, cujas origens estão no Manifesto
Futurista, de Marinetti, ao qual, alias, o líder político apôs sua assinatura”. Depoimento de uma geração, pp. 26-
7.
128
por um empresário como Chateaubriand261, o casal veio inventar seu museu de arte
em São Paulo. Bardi como diretor, Lina como responsável pelo espaço, pelo projeto
museológico que deve em grande medida à experiência anterior de Bardi como dono
de galeria em Roma e Milão.
129
dona de casa comum, que Lina começou a exercitar intensamente a cruzada pelo
gosto moderno. O periódico exprimia uma sedução pela possibilidade de uma vida
cotidiana moderna, identificada com aspectos do American way of life, expresso
especialmente em objetos cotidianos como os eletrodomésticos. E esse fascínio dizia
respeito à mulher dona de casa: se a civilização moderna tendia a libertá-la, a lançá-la
na vida social, civil e política da nação, era preciso facilitar o trabalho doméstico, o
que era visto como um problema de método: uma casa eficiente.263 A resposta estava
na “cozinha do amanhã”, projetada nos Estados Unidos, tão diferente da cozinha
italiana do momento como a abóbora da carruagem de Cinderela264. Era visível a
simpatia pelo new deal no meio dos arquitetos modernos265 e a retomada da questão
feminina no discurso arquitetônico não deixa de remeter a todo um debate sobre a
casa dentro e fora do campo da arquitetura, como já vimos.
In the general enthusiasm about rationalization, the way things looked was important.
By proclaiming the unification of the life of work and the life of leisure under the sign
of rationality and ever-increasing productivity, the appeance of houses and objects
symbolized modern technology266.
O uso cotidiano dos objetos era também tema de A, em jogos que propunha a
escolha de itens como copos, vasos, móveis. O comentário, ao final das respostas de
múltipla escolha, era jocoso, quando a escolha recaía em um objeto artesanal ou
industrial remetendo a uma aparência do século XIX e elogioso quando o leitor
evidenciava uma escolha por objetos modernos e industriais. Assim, a revista editada
por Lina Bo operava como um certo guia, um “modo de usar” para modernidade
traduzida na vida cotidiana. A carreira editorial de Lina Bo caminhou até que aos
trinta e um anos – ou seja, um casamento tardio para sua geração – ela se tornou a
signora Bardi. A autonomia relativa de Lina como arquiteta nos primeiros vinte anos
no Brasil se deve e muito ao seu casamento. Sua primeira obra construída, a Casa de
Vidro era a residência do casal e com esta obra ela se tornou arquiteta. Malgrado a
dúvida que ainda paira sobre a Casa de Vidro ter sido pensada como extensão do
MASP, é preciso assinalar que de qualquer modo ela é uma casa-manifesto, uma casa
feita para ser exibida, uma casa exemplar, o que foi explicitado tanto em alguns
263 “Come può esse il uomo libero si la donna”, A, n.1.
264 “La cucina dell’venir”, A, n. 1.
265 O biógrafo de Bardi, Francesco Tentori, se refere à A como “um boletim de informações patrocinado
America. Berkeley & Los Angeles: University of Califórnia Press, 1995, p. 33.
130
artigos para arquitetos como em seu verbete para a Enciclopédia da Mulher. Museu
ou não, a dimensão expositiva atravessa o espaço e os discursos de domesticidade
nesta casa.
São Paulo nos final da década de 1940 já era uma metrópole e foi nela que a
parceria Bo-Bardi aconteceu. Cidade que procurava viver a modernidade como uma
sina, com sinal positivo, em contraste, sob diversos ângulos, com a capital federal.
Penso caber aqui o argumento de Carl Schorske a respeito de uma modernidade que
se pensa com, sem ou contra a história267, remetendo a pista para o ambiente
construído e para os grupos dominantes no campo da arquitetura moderna. Os anos
posteriores à Segunda Guerra Mundial modernizaram o ambiente construído de
cidades diversas por razões distintas. Se na Europa o esforço de reconstrução das
cidades arrasadas pelo conflito bélico legou conjuntos habitacionais, new towns e
novos edifícios ao tecido urbano destruído, o caso paulistano aproxima-se mais da
metrópole norteamericana, que se reinventou na prosperidade, no crescimento
industrial e de serviços. No que diz respeito ao espaço urbano, a hegemonia
modernista era clara e dela fez bom uso o capital corporativo estadunidense,
marcando o espaço com edifícios projetados por arquitetos que migraram na guerra,
como, em Nova York o Seagram’s Building de Mies van der Rohe e o Panam
Building de Walter Gropius. Guardadas as proporções, temos o Edifício Itália (1965)
projetado por um arquiteto alemão, Adolf Franz Heep – que havia trabalhado em
Paris com o nome de François Heep – o Edifício CBI Esplanada (1948), do polonês
Lucjan Korngold, o Conjunto Nacional (1952-6) na avenida Paulista, projeto do
também alemão Daniel Liebskind, além de um número significativo de edifícios
residenciais na área central e proximidades, em grande maioria projetados sob
princípios modernistas e por arquitetos estrangeiros.
Destarte, São Paulo perdeu o ar acanhado da cidade dos anos 1920. Mas se a
urbe era já colossal, era no centro que a vida mundana, cultural e cosmopolita
acontecia, num trajeto que ia do teatro Municipal à avenida São João, passando pelo
largo do Arouche, pelas paralelas 7 de abril e Barão de Itapetininga, voltando à
Biblioteca Mário de Andrade e desta pela Consolação até a rua Maria Antonia, onde
estavam os cursos da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo – que
267 . Schorske, Carl. Pensando com a História. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
131
ainda não era isolada e autossuficiente, no modelo suburbano norteamericano, como
veio a ser posteriormente. Ao lado, o Mackenzie, uma universidade prebisteriana, e a
duas ruas dali a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP na Rua Maranhão.
Nesse centro novo – em oposição ao centro velho, nas cercanias da Praça da Sé –
instalou-se o Museu de Arte de São Paulo. Nessa cidade o casal foi bem e mal
recebido. De um lado circulavam por festas e eventos, Lina sempre chamando a
atenção por suas maneiras e modo de vestir, deliberadamente procurando mostrar que
era européia e não provinciana como ela via as senhoras paulistanas. Seu desejo, ou o
desejo do casal de exalar modernidade (ou mundanidade?) estendia-se, no caso de
Lina, às jóias e ao vestuário com que aparecia publicamente. Era uma mulher
moderna, que exercia uma profissão masculina. Pensava no artesanato, escrevia a
respeito mas não o exercia de modo manual. Sua relação com a cultura material era
técnica, artística, pública e, nesse sentido, masculina. Nada mais moderno do que isso
na São Paulo do pós-guerra.
132
Em 1949, quando procurava, em companhia do arquiteto Gregori
Warchavchik, um terreno para construir oficinas para o IAC, Lina conheceu um novo
loteamento, onde era antes uma fazenda de chá, o Jardim Morumbi. A revista Habitat
lançou-se numa cruzada pelo gosto para evitar que o bairro tivesse destino semelhante
aos outros bairros-jardim de São Paulo com suas casas ecléticas e enfeitadas, e
Alencastro, o “duplo” do casal na revista chegou a lançar ao prefeito a pergunta se
seria possível instituir uma comissão para salvaguardar o decoro arquitetônico da
cidade. O casal comprou dois lotes e no bairro também havia projetos em andamento
de Oswaldo Bratke e de Warchavchik, o que dá suporte à sugestão de Zeuler Lima, de
que a intenção em algum momento foi tornar o novo bairro um equivalente à
experiência californiana das Case Study Houses268.
268 . Essa sugestão veio do pesquisador Zeuler Lima em um debate sobre a presença dos italianos nas
cidades brasileiras, realizado no Rio de Janeiro em 21 de novembro de 2011, no Seminário Interlocuções
Brasil-Itália. As Case Study Houses foram um experimento patrocinado pela revista Arts and Architecture que
entre 1948 e 1966 construiu mais de 30 casas, de arquitetos proeminentes como Richard Neutra, William
Wurster, Eeno Saarinen e do Casal Charles e Ray Eames, dentre outros. A maioria foi publicada na revista
com imagens do fotógrafo de Julius Schuman. O papel de formadores de opinião e de gosto que o casal
assumiu na Habitat nos autoriza a incorporar essa interessante sugestão de Lima.
269 . Habitat no. 10, 1953. pp. 31-40.
133
LINA CONSELHEIRA
Como Charlotte em seu trabalho com o mesmo escopo, Lina partiu da noção
de habitat, em seu significado biológico. Na casa, além de morar, o homem adquire
seus hábitos de vida e “forma a própria personalidade”270. Nesse habitat, a arquiteta-
museógrafa que se empenhou em tirar as obras de arte de seu lugar sacralizado no
museu (se isso nunca foi conseguido, ela tirou os quadros das paredes), quis fazer o
mesmo nesse texto ao afirmar que o adágio segundo o qual “a casa é o santuário da
família” muitas vezes reduziu a dona da casa à escravidão271. Por esta razão, habitat
em seu significado biológico e acrescido de poesia:
Poesia não quer dizer cantos e recantos, adornos e sentimentalismo a baixo preço;
quer dizer continuo refazer-se de acordo com o sentido da natureza e da ingenuidade
das coisas; quer dizer ar luz flores, plantas e sobretudo o banimento da mesquinhez
moral que se percebe numa casa, do porão às grades da janela, graças à aus6encia
absoluta de uma planta viva ou de um livro; incluindo-se nessa mesquinhez moral o
abrir-se a sala da visitas uma vez por ano e o hábito de comer-se na cozinha quando
se tem uma sala de jantar.272
Seria essa a impressão guardada por Lina da casa burguesa paulistana que, de
fato, nos anos 1950 tinha uma sala de visitas trancada e uma sala de jantar reservada
às ocasiões especiais? Aparentemente, essa passagem era endereçada às mesmas
“madames” para quem ela se vestia de modo extravagante, o que torna essa passagem
um tanto identitária, uma fala de demarcação de fronteira. Talvez também para
demarcar novas e antigas visões do espaço burguês, seu texto apresenta várias opções
270 . Enciclopédia da Mulher, p. 73.
271 . Idem, p. 77.
272 . Idem, ibidem, p. 73.
134
do morar para se ocupar da casa nova. Ainda assim, dá conselhos para a necessária
adaptação da casa velha: criar ou refazer os serviços (banheiros e cozinha); classificar
os móveis em antigos com valor artístico e aqueles com valor meramente sentimental.
No primeiro caso, móveis e objetos passariam a integrar o ambiente da casa; no
segundo seria preciso esclarecer que a condição de objeto de recordação nada tem a
ver com seu valor físico. A “cruzada do gosto” se justificava: “A evolução do gosto, a
contínua simplificação das coisas, o constante referir-se às origens ou, melhor
dizendo, às coisas autênticas, com o que se eliminam as copias e as coisas refeitas,
ajudam na formação de uma mentalidade aberta, livre de preconceitos e
limitações”273. Prosseguindo, o texto afirmava ser a arte uma especialização, como a
medicina e a presunção de compreender a arte constituiria um erro. Assim, seria
melhor na casa se usar fotografias na parede. Em relação ao texto de Charlotte
Perriand, que também carregava suas tintas em erros e acertos, “A casa” apostou em
uma série de interdições, censuras e nesse exemplo diferenciava muito bem a dona de
casa comum inculta do conhecedor de arte. Não se tratava, pedagogicamente de
ensinar escolhas à primeira (o que é no mínimo curioso para quem trabalhava em um
museu de arte com forte ênfase padagógica), mas sim de adverti-la para, consciente
do seu desconhecimento, evitar o erro, presente nos quadros e nos móveis de estilo.
A sala de estar é o ambiente onde por excelência se vive, e que mais contribui para
dar caráter à casa e mais influi sobe os indivíduos que a habitam. (...) nada de quadros
de ínfima categoria nas paredes. (...) também entre os móveis considerados
“modernos”há imitações de mau gosto, de péssimo desenho e de mau acabamento
(...).274
273. Enciclopédia da Mulher, p. 76. Grifos adicionais.
274Enciclopédia da Mulher, p. 84. É possível que ela estivesse se referindo aos móveis da fábrica de Zanine
Caldas em São José dos Campos, que ela costumava veladamente criticar em suas colunas na Habitat. Ver
Camila Gui Rossatti, 2016.
135
cabia numa casa – e, claro, em seus armários embutidos – era medido, de panelas a
sapatos.
Nessa casa a sala é o lugar de se viver (certamente por isso não deveria nunca
ser fechada). Deveria sim ser clara, contemporânea e seguir uma “idéia otimista de
vida”275. Os materiais sugeridos para a sala: madeiras, tecidos com cor lisa, riscos ou
quadros – pois segundo ela as estampas raramente têm bom desenho; as almofadas
dos estofados devem ser removíveis para facilitar a limpeza e evitar o mofo. Um bar
balcão deveria ser evitado – por ser de mau gosto—mas um único móvel poderia
aglutinar rádio, televisão, vitrola, bar e biblioteca (no caso da casa não tem um espaço
dedicado aos livros). Tapetes também lisos em cores sóbrias: persas e gobelins só se
autênticos. Critérios severos transferidos também para outros objetos:
275 . Idem, p. 84.
276 . Idem, ibidem, p. 86.
136
No estúdio, o primeiro elemento é a estante de livros, e mais um impedimento:
gravuras antigas com passe-partout em celeste e ouro277: “O, é que é preciso,
sobretudo, é ter sempre presente a simplicidade, que deve ser levada na maior
consideração, porquanto em um estúdio ‘pensa-se’ e, por isso, se é extremamente
suscetível à influência do ambiente”278. Em uma casa pequena, o conselho é que o
estúdio se resumisse a um canto da sala e uma escrivaninha.
277 . A Enciclopédia da Mulher, p. 92.
278 . Idem, p. 96.
279 . Ibidem, p. 99.
280 . A Enciclopédia da Mulher, p. 99.
137
Uma certa ambigüidade no discurso quanto ao item “lixo” acusa o costume de lixeiras
em casa e nas ruas de ausência de higiene. À modernidade dos aparelhos domésticos
ainda pouco acessíveis no Brasil e a uma cozinha em “série” – ou seja, uma bancada
seguida de pia e de fogão, claramente informada pela cozinha de Frankfurt e outras
cozinhas tayloristas – a cozinha da casa moderna tem alguns itens que ainda remetem
a um trabalho bastante artesanal, como uma mesa para se fazer massas ou doces. Mas,
afirmada a necessidade de uma cozinha-laboratório de trabalho, a autora se volta para
os usos, as práticas neste espaço dirigindo sua critica à copa:
A copa é um elemento útil, mas não indispensável; nela lava-se a louça, colocam-se
os armários para o serviços de mesa e preparam-se os pratos de serviço. É costume
ter-se na copa uma mesa para tomarem-se refeições inteiramente à vontade, em
pijama ou roupa de dormir. Somos contrários a esses hábitos; quem tem a sala de
jantar deve usá-la sempre e em qualquer momento, ou então aboli-la usando, para
comer, a copa. Esse uso tem um quê de burguês e recorda o hábito de fechar a sala de
visitas (...). Para quem não tem a sala de jantar, a copa não é mais uma copa, mas
transforma-se automaticamente na sala de jantar que, nesse caso, é anexa à cozinha,
critério moderníssimo e que facilita as refeições, especialmente para quem não tem
copeiras.
A copa pode servir também para as refeições dos empregados, mas se a casa é
grande e se tem recursos, é bom fazer para os domésticos uma saleta à parte, onde
eles possam descansar e tomar suas refeições.”281
“Se a casa é grande e tem recursos”: esta passagem no texto de Lina remete ao
espanto de dois colegas italianos ao conhecerem a Casa de Vidro. Francesco Tentori,
biógrafo de Pietro Maria Bardi lembra com ironia seu espanto ao vislumbrar os
aposentos de empregados. Com ironia, assume que se trata de uma apropriação, por
parte da arquiteta, da memória do Brasil colonial, ao incorporar um esquema de “casa
grande e senzala”. Na casa, que é usada no texto da Enciclopédia da Mulher como
exemplo do viver moderno, a área de serviço é rigorosamente apartada do corpo da
casa por um pátio e uma porta. Entre esta e o bloco onde vivia o casal, a cozinha faz a
transição, o que não é muito diferente de qualquer casa ou apartamento burgueses
construídos naquela década e ainda hoje. Além disso, como bem mostrou Campello,
os empregados possuem uma habitação mínima, independente do resto da casa.
Também Giò Ponti, com quem Lina trabalhara em Milão antes de migrar para o Brasil
referiu-se a esta situação do lugar do trabalho e dos trabalhadores da casa,
281 . Idem, pp.101-2. Grifos adicionais.
138
denominando essa parte de viscere, assinalando que esta casa tinha dois setores: um
desnudado para os visitantes e outro opaco, resguardado, segreto282.
Assim, nota-se que ser ou não burguês na São Paulo dos anos 1950-60 por
parte de uma intelectualidade que era uma fracção de classe no sentido usado por
Raymond Williams, mais do que um discurso esvaziado ou uma saída espacial, era
uma tensão quase insolúvel284. Tensão semelhante àquela explicitada por Le
Corbusier em carta a um cliente: “nós não somos burgueses”285.
disponíivel em http://www.revistas.usp.br/plural/article/viewFile/77127/80996.
285 . Carta de Le Corbusier a um cliente, Fueter, explicando porque a casa não poderia ser pintada e deveria
ter o concreto aparente. Citado em aula por Tim Benton, Unicamp, 30 de maio de 2011.
139
dependências de serviço”, e que estes apartamentos pertencem ao tipo de
“apartamentos mínimos, espécies de cálulas – para uma ou duas pessuas no máximo”.
É o segredo que causou espécie aos italianos Tentori e Ponti, e uma evidência na fé
cega que o modernismo depositava em seus ganhos e na aposta de um homem
universal. Pensados em uma condição democrática e progressista da Alemanha dos
anos 1920, por arquitetos – como os já mencionados Bruno Taut e Ernst May – é
como se o apartamento mínimo pudesse transferir suas qualidades, que eram
evidentes quando comparados às mietkasernen que mal abrigavam os trabalhadores
no século XIX, para qualquer lugar. Progressistas como um bairro em Frankfurt na
República de Weimar, os apartamentos mínimos eram, sim, uma marca senhoral em
uma casa burguesa no Morumbi na São Paulo dos anos 50-60, não obstante as
intensões e pretensões de que o bairro pudesse vir a se tornar um mostruário de boa
arquitetura, como casas-manifesto como a Casa de Vidro e uma casa projetada por
Orwaldo Bratke nas imediações286.
Lina não faz qualquer menção a gênero em seu verbete e aparece em diversas
imagens manipulando eletrodomésticos sem mostrar o rosto, como nas imagens
analisadas no primeiro capítulo desta tese. Mostrar-se, contudo, como uma mulher
anônima é um discurso que tem papéis sexuais em destaque e a não menção de que é
à mulher que os conselhos modernizadores são endereçados é significativa. Diferente
de algumas de suas antecessoras de quase um século, como Beecher ou Zina Peirce,
Lina não precisava bater na tecla da importância do trabalho remunerado como fator
de independência pessoal feminina. Como Charlotte, era uma mulher com profissão,
distante do modelo de esposa protagonizado por Doris Day nos filmes da década de
1950 e igualmente distantes da mulher operária, auxiliar do comércio ou outras que
caberiam na rubrica do trabalho necessário para fechar as contas do lar. Se no que se
refere ao seu trabalho, Charlotte Perriand levou “uma vida de criação”, no momento
da escrita do verbete, meados dos anos 1950, ela era uma arquiteta em vias de
consagração: trabalhava na direção do MASP e editava a Habitat, além de projetar e
produzir mobiliário que ilustra o texto ( que não deixava de ser uma propaganda
disfarçada dos feitos do Studio Palma). Ao leitor – ou leitora! – que de algum modo
conhecia sua persona pública, sua mera presença nas fotografias não deixava de ser,
286 . Casa Oscar Americano, onde hoje funciona a fundação com o mesmo nome.
140
de algum modo, uma propaganda a favor da mulher que tem parte de suas realizações
fora dos limites da casa. E é preciso destacarmos a postura corporal de Lina nas
fotografias: embora usando o equipamento, ela não olha a câmera (mais uma vez),
menos ainda com o ar triunfal da dona de casa suburbana norte americana, vitoriosa
em seu lar equipado e com um avental adornado cobrindo o vestido new look. Lina
está de calças compridas, sapato baixo, cabelo solto, sem adornos mas com as unhas
feitas, em uma postura que indubitavelmente a coloca como a dona daquele espaço
por tais sinais de distinção visual – mais uma vez a indumentária em conformidade
com a arquitetura e a decoração (Figuras 38, 39 e 40.
287 . As transformações da cozinha que culminaram com o Kitchen Debate, uma discussão entre os políticos
norteamericanos e soviéticos, serão tratados no capítulo V desta tese.
288 . Enciclopédia da Mulher, p. 94.
289 . Mary Douglas, Purity and danger: an analysis of the concepts of pollution and taboo, p. 69.
141
das empregadas – trataremos disso posteriormente na tese – o novo equipamento
doméstico, o fogão a gás também poderia contribuir para atar a criada ao trabalho.
Como nos anos 1950 a classe media paulistana continuava a contar com a
trabalhadora doméstica, não era exatamente a libertação da dona de casa que estava
em pauta. O resultado, contudo, dessa nova tecnologia, do ponto de vista da delicada
relação entre a dona de/da casa e sua empregada foi o desprestígio do saber
tradicional desta última, que resistia à inovação. Assim, a “mecanização do trabalho
braçal da criada na cozinha oferece uma saída ‘de classe’ para o dilema da dona de
casa. Ela permite o usufruto da modernidade tecnológica sem comprometer o
universo artístico e artesanal (com sentidos de negação do trabalho manual) ao qual
estava associada”.290 Ou como observou o arquiteto Carlos Comas, em análise sobre a
Casa de Vidro, nesse momento no Brasil os eletrodomésticos começavam a aparecer
enquanto os empregados permaneciam nas casas: a burguesia iluminada gozava
assim, do melhor de dois mundos291.
Isso ficou bastante claro quando, em visita à Casa de Vidro em 2010 pedi para
examinar os equipamentos domésticos que ilustravam, com Lina em ação
demonstrativa, o texto da Enciclopédia da Mulher. Encontrei-os intactos, intocados.
Ao comentar com os funcionários que cuidam da casa tal fato, a resposta veio célere:
“os empregados não sabiam como usar”. Se tal observação que não minimiza sua
proposta de uma cozinha distante da tradicional e próxima do consultório médico –
limpa, higiênica – certamente é reveladora de seus constrangimentos de gênero e
classe que, talvez malgrado seus esforços e intenções, terminam por se revelar no
texto, contrastando visivelmente com a noção de ambiente propalada por Charlotte
Perriand, o quarto da moça solteira que vivia em uma mansarda parisiense. No caso
da casa de Lina, tenha ou não sido pensada como anexo do MASP, a casa era um
museu. Um museu moderno para se viver ou o museu de uma proposta de vida
moderna.
290 . Gênero e artefato, p. 256.
291 . Carlos Comas. “Lina 3x1” Arqtexto (UFRGS) vol. 2009, p. 150
142
a uma mulher genérica, qualquer mulher ou pior, mulher universal. Estaria Lina
propondo uma casa moderna brasileira em oposição ao palacete burguês para a
mulher, pois em momento algum seu texto se dirige ao homem, casada e com casa?
Por que o silêncio sobre os apartamentos que, em projetos de arquitetos em sua
maioria imigrantes, começavam a pontuar o espaço de São Paulo? Estaria se opondo,
ao propor potes de barro populares à europeização dos objetos da casa burguesa
paulistana ou apenas acompanhando as premissas das exposições do MASP? A
pergunta que subjaz a isso tudo remete às motivações mais amplas de tais escritos,
desse aconselhamento de mulher escolarizada e de classe média para outra mulher
com a mesma ancoragem social. Trataremos disso no próximo capítulo. Afinal, se
parte desta tese tem como fundo teórico a noção de campo, é preciso lembrar que este
é marcado por uma autonomia relativa. Assim, se parte da movimentação da
arquitetura moderna – estendida ao design e à engenharia – pode ser atribuída às
regras do campo, há parte que nos convida a olhar o que acontecia nos conflitos da
modernidade, para além dos CIAMs e das revistas especializadas e exposições, mas
em relação com isto tudo. E parte dos conflitos dessa modernidade e de seu
entendimento êmico dizia respeito na Europa do início do século e no Brasil mais
recentemente, ao lugar do serviço doméstico, este sim um lugar de mulher.
143
CAPÍTULO IV
O ano de 1926 deve ter sido intenso, um ano e tanto para a jovem Carmen
Velasco Portinho. Marie Curie, a cientista laureada com dois prêmios Nobel proferiu
uma série de palestras na Escola Politécnica do Rio de Janeiro, onde Carmen estudava
e já ligada ao sufragismo, foi assistir. No mesmo ano, ao se formar como a terceira
engenheira do Brasil292 em 1926 na Escola Politécnica do Rio de Janeiro, recebeu um
destaque do jornal A noite que notou a graça comunicativa da senhorita que leu os
juramentos dos recém formados. Engenharia e um olhar para questões feministas
pareciam compor o universo presente e futuro da jovem de 23 anos que logo em
seguida à sua formatura deu início à carreira de praticante técnica na Prefeitura do
Distrito Federal293, função na qual fiscalizava o patrimônio público, supervisionava a
derrubada de “velhos pardieiros que impediam a expansão urbana do Rio de Janeiro”,
chegando a dirigir seiscentos operários294.
O que não quer dizer que foi uma entrada fácil em um meio masculino. Em
seu depoimento/livro de memórias Carmen relatou que sua primeira tarefa foi
inspecionar o para-raios instalado no alto do edifício da prefeitura. “O velho
engenheiro queria a todo custo me ver em cima do telhado e eu não podia decepcioná-
lo de forma alguma”.A solução foi estudar o tema em livros técnicos, mas restava o
dilema de uma moça subir no telhado, o que foi resolvido com calças cáqui, o
uniforme que Carmen usava para seu esporte de final de semana, o alpinismo, de
modo que para quem já havia escalado a Pedra da Gávea foi possível subir no telhado:
292 . Desde 1875 as mulheres tinham acesso aos escassos cursos superiores do Brasil, o que não significa
que os ocupassem. As primeiras engenheiras formadas foram Edwiges Becker e Maria Ester Correia
Ramalho.
293 . Carmen Portinho foi nomeada pelo prefeito Alaor Prata para a Diretoria de Obras e Viação. Um artigo
não assinado em O Globo considerou isso um passo para o triunfo do feminismo: “É mais uma vitória,
mais uma compensação, mais um prêmio à vontade forte de nossas gentis patrícias.” Ver Portinho,
Carmen. Por toda a minha vida. Depoimento a Geraldo Edson de Andrade. Rio de Janeiro, Editora da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1999, p. 33.
294 .Portinho, Carmen. Por toda a minha vida. Depoimento a Geraldo Edson de Andrade. Rio de Janeiro, Editora
144
“a discriminação machista não vingou”.295 Esse episódio, simétrico à desqualificação
sofrida por Charlotte Perriand ao se apresentar a Le Corbusier chama a nossa atenção
para dois aspectos: a violência simbólica dos pequenos ritos de não investimento, de
desqualificação; e, lembrados posteriormente, o relato no registro anedótico, como se
aquilo pouco tivesse significado na ocasião.296
Carmen Velasco Portinho nasceu no mesmo ano que Charlotte Perriand, 1903,
em Corumbá, Mato Grosso, filha do gaúcho Francisco Sertório Portinho e da
boliviana, Maria Velasco Blanco. Matogrossense vivendo na Capital desde os 5 anos,
cresceu no Rio da belle époque da Primeira República, na cidade remodelada pelas
afrancesadas reformas urbanas conduzidas por Pereira Passos, de modo que a idéia de
se derrubar cortiços não deveria parecer inadequada. Mais do que a cidade renovada
pelo “bota abaixo”, era a capital do pais.
visitá-la nas minhas feias. Considero o francês minha segunda língua.”Por toda minha vida, op.cit. p. 26.
145
provedora da família. O capitão Delso Mendes da Fonseca, com quem Carmen havia
convivido na Politécnica, foi secretário de obras da prefeitura entre 1931 e 1934. Com
essa proximidade, Carmen encontrou espaço para a criação de uma revista cujo copo
editorial era formado pelo redator Armando de Godoy, pelo diretor Everardo
Backhauses, pelo engenheiro Manoel Santos Dias e por ela como secretária. Assim,
em 1932, durante o mandato de Pedro Ernesto, a prefeitura do Distrito Federal
começou a editar o periódico de caráter técnico, a Revista da Diretoria de
Engenharia298. A revista funcionava como um espaço para textos técnicos de temas
ligados à construção, mas também como um lugar de debate a respeito dos rumos da
Capital Federal, e a presença da engenheira tornou-se um fator para que o periódico
assumisse também um papel de divulgação da arquitetura moderna que se realizava
na Europa e nos Estados Unidos. Já no primeiro número, Carmen apresentou um texto
absolutamente elogioso da arquitetura naqueles anos realizada na Holanda –
arquitetura moderna em um país tradicionalista – e celebrava o feito de que o clássico
tijolo nacional começava a ser abandonado, abrindo caminho para o uso do cimento
armado. No mesmo número, em artigo a respeito da influência do clima na construção
de prisões, a engenheira alterou o foco, trazendo os desafios construtivos para o
Brasil, país de clima tropical que precisava enfrentar questões de insolação e
ventilação: “não podemos esperar que nossos problemas sejam resolvidos no
estrangeiro”.299
298 . Ana Luiza Nobre, Carmen Portinho. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999, p. 34
299 . Revista da Diretoria de Engenharia, ano 1, nº 1, p.14.
146
não ser que deseje interromper criminosamente a continuidade que deverá
existir entre a vida passada e o desenvolvimento futuro da cidade em questão.
E mais adiante:
Só a partir dessa “escuta” à cidade, seu modo de vida, poderia o urbanista, esse
praticante de uma ciência nova, proceder ao seu plano, seu ante-projeto. A cidade
remodelada não deveria perder a “cor local”, um de seus maiores atrativos. Da
explicação do escopo da nova ciência ela passou à demanda por formação no Rio de
Janeiro, atrasado se comparado a São Paulo onde graças à competência de Luiz de
Anhaia Melo300 que lecionava a cadeira no curso de engenharia, o debate estava,
segundo ela, mais avançado.301 Seus textos evidenciam uma atualização bibliográfica,
com menções aos CIAMs, CIRPAC, GATEPAC, MARS302 e outras associações de
arquitetos e urbanistas menos conhecidas. Por outro lado, no mesmo texto, finaliza
citando um pensamento do papa das cidades-jardim, Raymond Unwin, para quem o
“Urbanismo é a ciência de estabelecer relações entre as coisas”.
147
artigo de Le Corbusier em francês, “Le prefét Passos”, no qual o arquiteto franco-
suíço demandava um novo Pereira Passos, para que o Rio de Janeiro voltasse a
brilhar. Em suma, o pleito era de urbanismo, intervenções, reformas urbanas, e como
redatora ela se tornava uma porta-voz de tais tendências hoje vista como no mínimo
controversas, mas talvez não nesse período e pelo referido grupo.
303 . Françoise Choay atribui a cunhagem do termo à mesma sociedade, sem no entanto mencionar
nominalmente Agache e dando como data 1911.
304 Meucci, Simone, Gilberto Freyre e Sociologia no Brasil: da sistematização à construção do campo científico. Tese de
Leão, de arquitetura; Nestor de Figueiredo, de urbanismo; Cândido Portinari, de pintura mural e cavalete;
Celso Antonio de Menezes, de escultura monumental e de salão; Georgina de Albuquerque, de artes
decorativas; F. Valentim do Nascimento, Gilberto Trompowsky e Sylvia Meyer, de artes plásticas e
industriais; Heitor Villa-Lobos e Lorenzo Fernandes, de música e canto orfeônico; J. C. Andrade Muricy,
Arnaldo Estrella e Albuquerque Costa, de história e música, harmonia prática instrumental, teoria musical e
prática orfeônica. Pouco depois vieram Edmundo da Luz Pinto, Prudente de Morais neto, Cornélio Penna,
Josué de Castro, Heloísa Alberto Torres, Afonso Pena Jr. Roberto Accioly, Tavares Barros, José Maria
Bello, Arthur Ramos, Nelson Romero, João Capistrano Raja Gabaglia, João Baptista Mello e Souza, Sérgio
Buarque de Holanda, Cecília Meirelles, Luís de Barros Freire, Mario Casassanta, Mário de Andrade,
Joaquim Costa Ribeiro e Othon Leonardos. As informações estão na página
http://www.bvanisioteixeira.ufba.br/artigos/federal.html, última consulta em 8 de fevereiro de 2017.
148
ali, Lucio Costa lecionou em 1935; ali, Gilberto Freyre teve sua única passagem, com
alguma estabilidade, pelo ensino superior brasileiro.306 Em 1935 foi criado o curso de
Urbanismo em 1936, uma pós-graduação que funcionou por três anos no Instituto de
Artes, e que tinha como professores, entre outros, Mário de Andrade e Candido
Portinari e Heitor Vila-Lobos.307 Ali, em uma turma de apenas oito alunos (Paulo
Camargo de Almeida308 e João Lourenço309 da Silva, arquitetos, e outros não
localizados), no curso que funcionava da rua do Catete, Carmen se tornou a primeira
pós-graduada em urbanismo no Brasil. Em que pese já haver praticantes, como
Anhaia Mello e a despeito de desde 1933 Atílio Correia Lima ensinar urbanismo no
curso de arquitetura da ENBA, foi a primeira diplomada como tal.
306. Meucci, Simone, op. Cit, p. 13.
307 . Tal constelação poderia sugerir uma extensão das atividades do Ministério da Educação e Saúde
Pública na gestão de Gustavo Capanema. Contudo, foi este o ministro a destruir o projeto de uma
universidade municipal. Liderada pelo então diretor do Departamento de Educação do Distrito Federal
Anísio Teixeira, a Universidade do Distrito Federal foi fundada em junho de 1935 com a presença de
Capanema e do prefeito Pedro Ernesto. A vocação liberal da nova universidade desafiava uma parte do
projeto educacional do ministério, a saber a parcela liderada por Alceu Amoroso Lima que via ali uma
pregação comunista. Com a saída, ainda em 1935 de Anísio Teixeira do cargo (substituído por Francisco
Campos), as atividades não foram interrompidas. Mas no ano seguinte Capanema começou uma campanha
argumentando que cabia à União dar o padrão do ensino superior no país. Com a instituição do Estado
Novo, Capanema pôde propor a extinção da UDF e a incorporação de seus cursos pela Universidade do
Brasil, o que não incluiu o curso de Urbanismo. Sobre a querela entre a UDF e o ministério, ver.
Schartzamann, S., Bomeny, H. e Costa, V. Tempos de Capanema, Editora da Universidade de São Paulo e
Editora Paz e Terra, 1984, pp. 210-4.
308 . Paulo Camargo de Almeida (Rio de Janeiro, 1906-1973) era engenheiro-arquiteto pela ENBA, onde foi
contemporâneo de Affonso Eduardo Reidy e ao se formar ganhou a grande Medalha de Ouro e o Prémio
de Viagem ao Estrangeiro, com o que foi estagiar em Paris. Sua tese em urbanismo na UDF foi a respeito
da remodelação da área central do Rio de Janeiro, após o desmonte do morro de Santo Antonio, trabalho
apresentado em 1938. Como Carmen, publicou seu trabalho em duas partes na Revista Municipal de
Engenharia. A seu respeito, ver Cerávolo, Ana Lúcia. Paulo de Camargo Almeida. Arquitetura total na
trajetória de um arquiteto brasileiro. Dissertação de mestrado, EESC/USP, 2000.
309 . João Lourenço da Silva era ligado a arquitetos modernos como Gregori Warchavchik (em sua
temporada carioca) e Alcides da Rocha Miranda. Com este último coordenou um I Salão de Arquitetura
Tropical.
149
Marcelo e Milton Roberto, “O edifício central do aeroporto Santos
Dumont”. PDF nº 4, julho de 1938.
elaborado pelo arquiteto grego de origem italiana, egresso da Escola de Belas-artes de Paris. Foi um plano
de embelezamento e expansão para uma cidade que deveria chegar a 100 mil habitantes e Carmen Portinho
colaborou como engenheira. No IV Congesso Panamericano de Arquitetura realizado no Rio de Janeiro
em 1930, ela apsentou as linhas mestras do plano. Ver file:///Users/silvana/Downloads/618-1229-1-
SM.pdf, última consulta em 5 de fevereiro de 2017.
150
Anhaia elogiou um artigo de Carmen, e completou: “Não há sciencia que melhor que
o Urbanismo se adapte a um espírito feminino, faz mais trabalhar o coração que a
intelligencia, é sciencia mais sentida que pensada, não acha? Embora o cérebro
feminino nada fique a dever ao masculino, o coração é muito mais rico”. Admitindo
assim uma mulher que pleiteia um lugar em um campo em construção no Brasil, ele
sugeriu que se dedicasse ao conceito e aplicação do zoning: “a cada dia mais me
convenço de que o Zoning é a base do urbanismo. É um problema tão interessante
como técnica, como legislação, como economia. E nós quase que o desconhecemos e
porisso estamos estragando nossas cidades. Não acha que seria um belo assumpto de
these? O Prof. Agache incluirá o ‘zoning’ no seu projeto?”313 (Fig
151
Getúlio Vargas uma carta com as declarações conclusivas do encontro, assinada por
Bertha Lutz e Carmen Portinho, respectivamente presidente e vice-presidente da
FBPF:
316 . Citado por Ana Luiza Nobre, op. cit., p. 19.
152
Brasília, se a alinhamos com aquelas que quase vinte anos depois se submeteriam ao
concurso para a nova capital.
153
Essa imensa região não poderá ficar eternamente abandonada. Localizada aí a
Capital Federal, para ela convergiriam certamente as nossas mais importantes
rodovias, caminhos aéreos e estradas de ferro, ligando-a ao litoral e ás capitais
dos Estados e assegurando, dessa forma, o desenvolvimento e o progresso da
Nação. Contra a idéia da mudança da Capital da República para o Planalto
central, nem o fator distância se poderá alegar, pois que, segundo L. Cruls,
presidente da comissão, a “vol d’oiseau” entre a cidade o Rio de Janeiro e a
zona demarcada é de cerca de 970 kms.
Percurso que segundo Portinho, poderia ser percorrido em vinte horas num
trem lento, de velocidade média de 60 km/hora.
Não seria, assim, endereçada ao pedestre, que com seus passos contrasta a
experiência corporal com o vôo do pássaro, como quis Michel de Certeau ao lembrar
que os praticantes comuns da cidade moram “lá embaixo” e caminham, com seus
corpos acompanhando um texto que não podem ler, praticando espaços que não
318 . Revista Municipal de Engenharia, maio de 1939, p. 287.
154
podem ser vistos.319 Localizada às margens do rio Torto, onde seria possível erigir
esta cidade arborizada, bela e pitoresca, seu projeto previa uma população de 2
milhões de habitantes, funções separadas no espaço, auto-estradas, um trem que
ligasse a nova Capital à antiga e um Brasil que investisse fortemente no transporte
aéreo. Como na “Cidade de três milhões de habitantes” que Le Corbusier apresentou
em Paris em 1922, o centro da cidade, uma grande esplanada, seria destinado ao
pouso de pequenos aviões, enquanto o aeroporto ficaria um pouco afastado do centro.
155
Acima dos ‘pilotis’ um andar foi exclusivamente reservado para os serviços
comuns. A organização desses serviços será o único meio de evitar fadigas
improdutivas e perdas de tempo infrutíferas à dona de casa. Nesse pavimento,
ficará localizada uma grande usina de serviços domésticos. Organizações
corporativas assumirão a responsabilidade desses serviços. Os gêneros
alimentícios, carnes, legumes, frutas, etc, vindos diretamente dos mercados
(entrepostos), situados na zona industrial, serão recolhidos aos frigoríficos,
construídos nos pavimentos destinados aos serviços comuns. Cozinhas bem
instaladas e equipadas fornecerão refeições a qualquer hora. A limpeza dos
apartamentos será também feita por profissionais; a lavagem da roupa, idem, e
assim todos os demais serviços necessários ao lar. Uma empregada para tomar
conta das crianças e fazer outros serviços pequenos, será o suficiente para cada
habitação. O problema das empregadas domésticas, de tão difícil solução,
poderá ser resolvido dessa forma.320
Onde moraria essa “uma empregada”? Isso não está claro no texto do projeto,
tampouco há desenhos. A cidade da engenheira feminista não previa uma periferia,
não indicava uma supressão de diferenças sócias, tampouco indicava bairros “nobres”
e para as classes baixas. O tema da empregada doméstica, contudo, foi parte da
discussão do encontro do CIAM de 1929, o mesmo que apresentou aos arquitetos a
cozinha de Frankfurt da arquiteta austríaca Grete Schütte-Lihotzky, e foi de Walter
Gropius a fala que abordou o problema dos empregados:
320 . Revista Municipal de Engenharia, maio de 1939, p. 292.
321 . No original, ““La constatation de l’infériorité du travail ménager individual a fait naître la conception
de vastes enterprises ménagères que déchargeant chaque femme d’une partie de ses obligations ménageres.
Ceci se fait grace à une organization centrale qui travaille mieux et plus économiquement que ne pourrait le
faire une ménagère, meme si elle consacrait tous ses moyens. La difficulté est toujours gradissante de
trouver des domestiques favorise celle conception.”Die Wohnung für Existenzeminimum, II Internationalen
Kongresses für Neues Bauen in Frankfurt am Main 1930, Verlag, englet & Schlosser, Frankfurt AM Main
Cópia em francês feita pela revista Techné. Arquivo dos CIAMs, ETH Zurique.
156
A preocupação com o problema dos empregados era uma constante na Europa
e nos Estados Unidos nas primeiras décadas do século XX (O assunto retornará no
capítulo V). Mas a preocupação com o chamado problema dos empregados pode
também ser analisada na perspectiva de uma profissional que foi criada por
empregadas bolivianas, o que talvez criasse uma sintonia com o debate que acontecia
no hemisfério norte, inclusive nos CIAMs e especialmente em todas as práticas e
propostas de economia domestica, com seu feminismo e to tema reaparece em
projetos posteriores.
Na capital projetada por Carmen Portinho, sobre os edifícios com seus tetos
horizontais seriam projetadas praias de areia para banhos de sol e esportes, tornando a
cobertura o pavimento mais atraente. Um Centro Cívico próximo ao Centro de
Negócios, mas dele separado por uma zona verde deveria incluir um Museu do
Conhecimento do Brasil, uma “expressão sintética da vida brasileira”, um precioso
instrumento de propaganda do país.
157
ao Brasil um planos de cidade nova de feição modernista-coebuseana, tornou-se com
esta, uma urbanista, urbanista com essa filiação. Quando essa vertente se vincula à
sua dicção feminista, não sem uma pitada de arts ménagèrs, é como se uma equação
bizarra se fechasse nos projetos que ela realizou posteriormente com outros arquitetos
como Francisco Bolonha e, principalmente, com seu companheiro Affono Eduardo
Reidy.
323. Bruand, Yves. Arquitetura contemporânea no Brasil. São Paulo: Editora Perspectiva, 1981, p. 354.
324. Bonduki, Nabil, Affonso Eduardo Reidy. São Paulo e Lisboa: Instituto Lina Bo e P.M. Bardi e editorial
Balu, 2000, p 24.
158
pensado na capital no meio do Brasil como um “imenso parque verde”. A Brasília que
conhecemos não deixa de sê-lo325.
PEDREGULHO E O DHP
Sua visita ao Reino Unido se deu graças a uma bolsa do British Council
recebida em 1945 para estudar as new towns e ela visitou não apenas Londres como
Cardiff, Liverpool e Bath. Convite, partida, permanência e regresso foram
amplamente noticiados pela imprensa carioca. Ao voltar, disse a que vinha, relatando
sua experiência em um longo artigo, “Habitat popular”, publicado com destaque no
Correio da Manhã. De certo modo, esse artigo lançava uma base para projetos futuros
nos quais se destaca o conjunto habitacional conhecido como Pedregulho. Carmen
criticou a cidade-jardim inglesa, que viu se transformar numa cidade-dormitório: “De
que serve então a casinha em ‘centro de jardim’ se o homem não pode tratar desse
jardim de tão cansado que se acha ao fim do dia?”, perguntava retoricamente ao leitor
325. Sobre o concurso de Brasília de 1956 os planos apresentados, todos de algum modo dialogando com
os debates dos CIAMs ainda que com variações que iam de torres de 400m até uma versão atualizada da
cidade-jardim, ver Braga, Aline M.C. (Im)Possíveis Brasílias. São Paulo, Alameda, 2011.
159
para apresentar sua solução: “Falamos em ‘conjuntos residenciais’ localizados em
áreas próximas dos locais de trabalho. Esses conjuntos deverão compreender , não só
os blocos de habitação como também os edifícios para comércio local e ainda, outras
edificações de creches, escolas maternais e primárias, clínicas, bibliotecas, clubes
etc.”326 Essa tarefa, segundo a autora, seria competência da prefeitura.
160
nem despachava com ele. Fazia por conta própria porque tinha o apoio do
Correio.328
Em 1948 Carmen, até então chefe de seção do DHP, posto no qual licenciava
e fiscalizava habitações populares, foi nomeada diretora. O fato foi comemorado
pelos movimentos feministas, que realizaram festas331, o que mostra de um lado a
centralidade de Carmen nesse meio e de outro a conquista que representava uma
mulher em posição de chefia. Mas o DHP não era uma criação totalmente nova por
parte da prefeitura da capital e remete a iniciativas anteriores como a Divisão de
Construções Proletárias, órgão da Secretaria Geral de Viação e Obras Públicas,
transformada em Sérico em 1940, em Departamento em 1942 e então, no período que
nos interessa de perto, no DHP. Foi mais do que uma mera alteração de nomenclatura,
pois ao DHP caberia dar conta da habitação para os funcionários mais baixos da
própria prefeitura, que habitavam em condições indesejáveis. A primeira obra do
novo departamento foi esse grande e exemplar grande conjunto habitacional e a
Carmen, como diretora, cabia a escolha do arquiteto que projetaria o conjunto, e ela
chamou Affonso Eduardo Reidy, como ela funcionário de carreira da prefeitura, a
partir de 1948 diretor do Departamento de urbanismo da Prefeitura e seu
328 . Bonduki, Nabil. Os pioneiros da habitação social, volume 1. São Paulo, SESC e Editora da UNESP, 2014,
p. 301.
329 . Cavalcanti, Lauro. Casas para o povo. Dissertação de mestrado em Antropologia, Rio de Janeiro, Museu
Reidy. Rubino, S., Lira, J., Nascimento de Brito, F. E Mello, J. Domesticidade, gênero e cultura material. São
Paulo: EDUSP, 2017, p. 179.
161
companheiro.332 Com o nome do prefeito Mendes de Moraes, conhecido por
Pedregulho devido ao morro no qual o conjunto se assenta, é uma iniciativa
habitacional contemporânea à Unité d’Habitation que Le Corbusier projetou para
Marselha (mobiliada por Charlotte Perriand, nunca é demais lembrar), mas com um
grau muito superior de complexidade, a começar pela topografia. No limite, ambos
responderam duas décadas depois, às colocações do emblemático CIAM de Frankfurt.
332 . Segundo diversas fontes orais, Carmen teria dito : “Só assumo se tiver liberdade de entregar o projeto
do Pedregulho ao Reidy”, Ver entrevista de Francisco Bolonha em Capítulos da memória do urbanismo carioca.,
p. 50.
333 . Ana Luiza Nobre, p. 57.
162
condigna.”334 Assim, fazia parte do programa ensinar a usar os espaços de uso
coletivo, às crianças a não brincarem nos corredores dos prédios, aos banhistas que
era preciso um chuveiro antes de se entrar na piscina – a entrada se fazia por dentro
do vestiário.
163
realizavam; apenas como exemplo, o plano de Reidy para a urbanização da Esplanada
de Santo Antonio parece conversar, com mais sofisticação, com as imagens das
quadras da “Brasília de Carmen”, a cidade-capital que ela planejou duas décadas
antes. A mesma autora fala em colaboração, tema denegado pela ênfase na autoria, a
uma espécie de caixa preta da história da arquitetura: colaboração é a história secreta
dos arquitetos, a vida doméstica da arquitetura.337
. Colomina, Beatriz. “With or without you, Modern Women. Women artists at the museum of modern art. New
337
164
projeto foi destaque da 1a. Bienal de São Paulo em 1953, assim como do encontro do
CIAM em Bergamo, Itália em 1949, mesmo sem a presença de Reidy ou Carmen338.
338 . Apesar dos esforços de Siegfried Giedion para que Reidy, que pediu em telegrama a Henrique Mindlin
que o autor de Pedregulho e de Santo Antonio conduzisse os debates sobre a arquitetura brasileira em
Bergamo. Aparentemente, Reidy não respondeu, mas no encontro seguinte dos CIAMs a prefeitura do Rio
de Janeiro enviou alguns engenheiros e técnicos. Munford, Eric. The CIAM discourse on urbanism, p. 320, n.
257,
339 . Brito do Nascimento, Flavia. Entre a estética e o hábito. O Departamento de Habitação Popular (Rio
de Janeiro, 1946-1960) Rio de Janeiro: Secretaria Municipal das Culturas, 2008, p. 104.
165
Houve outros conjuntos realizados pelo Departamento de Habitação Popular,
ainda que nenhum tão emblemático. Mas é relevante o depoimento de Francisco
Bolonha, que dentre outros feitos, como o projeto para os conjuntos residenciais de
Paquetá (1952) e Vila Isabel (1948) foi colaborador de Pedregulho:
340 . Freire, Américo e Lippi Oliveira, Lucia (org). Capítulos da Memória do Urbanismo Carioca, Rio de Janeiro,
Edições Folha Seca, 2002, p. 51.
341 . Também chamada de Butterfly, a cadeira BKF tem as iniciais de seus criadores, Antonio Bonet, Juan
Kurchan e Jorge Ferrari-Hardoy, do grupo argentino Austral, que reunia arquitetos e designers. É um
projeto de 1938.
166
AS CASAS DO CASAL
No mesmo livro, Mindlin chama a atenção para uma rede no terraço, algo
“de uso muito comum ainda no Brasil” e menciona as dependências de empregada343.
Ao contrário da casa do casal Gregori e Mina Warchavchik e mesmo da casa de vidro
do casão Bardi, esta não era uma casa-manifesto, era apenas casa, embora de
moradores muito particulares. Em comum, apenas o fato de se situarem em bairros
física e simbolicamente longe do centro, como a Vila Mariana no final dos anos 1920,
o Morumbi nos anos 1950 e Jacarepaguá, ainda hoje. Carmen conheceu a casa do
casal Warchavchik em 1930 e segundo Flávia Nascimento, a visita despertou ideias
de domesticidade, relatadas em artigo para o Correio da Manhã:
342 . Mindlin, H. Arquitetura Moderna no Brasil. Rio de Janeiro: Aeroplano, IPHAN/MINC, 2000 [1956], p
76.
343 . Idem, p. 76.
167
Dificilmente poderei esquecer a sensação esquisita e extraordinária que senti
ao visitar aquele recanto pitoresco e ultra moderno. Invejei, por momentos, a
felicidade e o bem estar daquele casal ditoso, que construindo para si tal
habitação, conseguira realizar um dos mais belos sonhos arquitetônicos. E
pus-me a pensar, no meu colonial espanhol, projetado por mim, quando
apenas deixava os bancos escolares. E revi na minha imaginação aquela casa
ideal que nunca construí e que não pretendo , jamais construir. Prefiro vê-la
em sonho, incomparavelmente bela, do que destruída pela realização desse
sonho.344
Carmen escreveu estas notas pouco antes de, por meio da Revista de
Engenharia, encabeçar sua ampla divulgação da arquitetura moderna européia. Sua
casa ainda demoraria duas décadas. Seu manifesto foi Pedregulho, sua casa era
refúgio e moradia, longe do centro o bastante para uma engenheira separada que vivia
com seu parceiro (o divórcio no Brasil foi promulgado por emenda em 1977, depois
do falecimento de Reidy). Era a casa de um casal que se encontrava discretamente
depois do expediente e seguia junto para longe do local de trabalho. Ainda assim, era
um modelo de habitação popular, mesmo que a metragem do terreno e a inserção
social do casal não fossem compatíveis com tal classificação. Não sendo um
manifesto, tinha ainda assim um curioso caráter exemplar. A casa era um projeto de
habitação popular do DHP. O bairro onde esta se situa, na zona oeste do Rio de
Janeiro cabia perfeitamente nessa rubrica, ainda que o terreno tenha 9 mil m2 –
curiosamente, a mesma metragem do terreno da Casa de Vidro do casal Bardi345.
maior.
168
cimento por mês. Para dois funcionários públicos significava um diferencial
imperdível. Um artifício fez com que a varanda, indicada no anteprojeto
aprovado e por suas características não acrescida no total da área, se
transformasse na deliciosa sala que penetra pelo alto na mata, solta, apoiada
nos pilotis e é por aquela área totalmente envolvida. A casa terminou com 95
m2346.
Ainda é uma metragem pequena para a casa de uma diretora de museu, para
um casal de funcionários altamente especializados e ocupantes de cargos de mando. A
observação acima grifada de Brito, arquiteto, urbanista e professor apenas evidencia a
simbiose que se dá (e isto não diz respeito apenas a Carmen, Reidy ou ao Brasil) entre
o analista, o comentador, o proponente, o cliente, todos do mesmo círculo, da uma
fração de elite, no limite de um grupo de amigos. Um expediente, tal como todos os
que envolveram a construção do edifícios do Ministério da Educação e Saúde Pública,
narrado exaustivamente entre a naturalidade e o elogio. Contudo, um recurso, uma
burla.
Desde 1937 o decreto no. 6000 designava áreas para habitação popular na
capital do país e Jacarepaguá estava nessa área. O Departamento de Construções
Proletárias, antecessor do DHP, podia doar o projeto, desde que as casas não
ultrapassassem 70 m2, excluindo-se garagem e varanda. Carmen, em seu artigo já
mencionado, no qual ao voltar de Londres lançou as bases de sua futura atuação no
DHP, mostrou ser contraria à idéia de cidade jardim, casa com jardim para o
trabalhador, apontando a solução de conjuntos multifamiliares. Contudo, assinala
Flavia Nascimento, ao assumir o DHP, manteve o programa de concessão de casas
populares, apenas mudando o estilos das plantas aprovadas a partir de 1937; Carmen
solicitou aos arquitetos do DHP novos tipos, modernos. Francisco Bolonha e outros
arquitetos do DHP atenderam ao pedido, estabelecendo uma tipologia por letras,
subdivididas em soluções: o tipo e solução I, projeto de Reidy, era a própria casa do
casal, ou seja, eles procederam a uma institucionalização o projeto da própria
346 . Depoimento de Alfredo Britto para Toda minha vida, op. cit. p. 80. Grifos adicionais.
169
moradia. Ou realizaram um inexplicável expediente que mesclou atuação pública e
interesse privado.
a mesma mobília: móveis do Studio Palma de Lina Bo Bardi e Giancarlo Palanti, cadeiras Butterfly,
espreguiçadeiras, sofás de Florence Knoll, cadeiras Eames e em alguns casos, um móbile de Alexander
Calder.
170
texto que Lina Bo Bardi escreveu posteriomente, talvez sem conhecer a moradia do
casal Portinho-Reidy: em suma, uma casa moderna350.
A casa de Itaipava (Fig. 44) foi concretada pela própria Carmen com pedras de
um rio nas proximidades. Com cerca de 100 m2, tem um arranjo de interiores
equivalente ao da casa de Jacarepaguá. Tem sala, quarto, cozinha, escritório e
banheiro no pavimento superior. No inferio, a escada que dá acesso a casa, um quarto
e banheiro de empregada e na saída destes, um imenso tanque de lavagem de roupas.
Carmen e Reidy conviveram por quase trinta anos e pouco se sabe dessa
relação sempre marcada pela discrição. Não se casaram, ela nunca usou seu nome.
Embora assinasse tudo como Carmen Portinho e fizesse disso um ponto de honra, em
sua documentação burocrática veio a falecer como Carmen Portinho Lutz.
171
intelectuais de Truus fizeram parte do processo: “Enquanto cliente, assim como
designer, assim como feminista, Schröder ajudou a delinear e a definir os caminhos da
arquitetura moderna352.
Modern Housing, que Bauer publicou em 1934, é reconhecido como uma das
bases para a política habitacional que Carmen implantou apos seu retorno da
Inglaterra.Desafiando os nortamericanos a não imitarem exemplos europeus, Bauer
afirmava não haver uma fórmula simples – ela achava que o modernismo alemão nos
EUA poderia vir a se tornar um “novo realismo” – e preconizava que a necessária
reforma urbana deveria necessariamente envolver mudanças nas políticas municipais
e nas modalidades de financiamento, tanto quanto na forma arquitetônica354.
modernism. The Houses of William Wurster. Berkeley, Los Angeles, London: San Francisco Museum of Modern
Art/ University of Califórnia Press,1999, p. 188.
354 . Idem, p. 189.
172
pode ser um dos atalho possíveis para a necessária tarefa de se arranhar o cânone, não
apenas pelo seu já mencionado sexismo, mas pelo esmaecimento do trabalho em
duplas, trios, grupos, escritórios e ateliês. Talvez, nesse sentido, a maior parceria a ser
investigada seja a de primos: Le Corbusier e Pierre Jeanneret. Parceiras com algum
grau de assimetria – um significant e um other – não acontecem apenas na arquitetura.
O casal Carmen-Reidy nos convida a desarranjar um pouco a freqyencia com a qual a
mulher fica na sombra do marido, uma vez que ela era a coordenadora dos projetos, a
que possibilitou, inclusive a participação do companheiro – ainda que ela seja vista
como “participante” em grande parte da bibliografia, talvez por ela ter permitido ser
colocada neste lugar. Talvez um pouco semelhante à situações analisadas pela
antropóloga Heloísa Pontes quanto às atrizes brasileiras na época do Teatro Brasileiro
de Comédia, quando as mulheres cuparam uma posição central como intérpretes,
mesmo quando tendo parceiras amorosas e de trabalho com os diretores da
companhia355. Não se trata de presucrtar as questões íntimas do casal, como nal se
tratava disso ao falar de Charlotte e seus parceiros, ou do casal Lina-Bardi. Tatá-se de
não pretender que essa circunstância de trabalho a ois não existe e nal term
reverberações não apenas no universo de escolhas Possíveis, como também no
resiultado, na obra. São muitas as parcerias a merecerem análise detida,356 mas no
caso da arquitetura, como já foi assinalado à exaustão, elas ganham peculiar
materialidade em uma casa, e uma casa autoral, muitas vezes com o nome de seu
(sua) morador (a)
173
conduzido com base em componentes identitários e a arquitetura moderna vista como
uma causa foi seguramente parte dessa identidade paulatinamente construída. Assim
as casas de Jacarepaguá e Itaipava, belas, econômicas e modernas, apontam os limites
de projetos para um cliente coletivo que, de tão abstrato e idealizado, por melhores
que possam ser as intenções, não foi considerado. As casas habitadas pelo casal
Carmen-Reidy, essas sim, tinham tanque. Aparentemente a resolução do “problema
dos empregados”, enunciada no plano para uma capital e executada em Pedregulho,
não se aplicava a qualquer grupo social. Mas o problema dos empregados é basilar
para entendermos a expansão de uma arquitetura moderna, não a das casas-manifesto,
mas de suas versões palatáveis, aplicadas ou mesmo vulgarizadas.
Essa distância entre o que se projeta para um coletivo e o que se pratica não
era (ou é) uma questão tão somente brasileira, pois até projetar a conhecida Cozinha
de Frankfurt, a arquiteta austríaca Margarete Schütte Lihotzky também não tinha sido
usuária de uma cozinha sequer: “The truth of the matter was, I’d never run a
household before designing the Frankfurt Kitchen, I’d never cooked and had no idea
about cooking”.357
Como a cozinha de Pablo Picasso que ilustra a capa desta tese: uma bela e
plástica abstração. A cozinha de Picasso é um quadro, mas as cozinhas modernas
foram um lugar de mulher – usuária e em muitos casos projetista – que ao longo do
século XX se tornou algo entre a quimera e um espaço praticado, como veremos no
capítulo final.
357. Margarete Schütte-Lihotzky, citado em Kinchin, Julia e O’Connor Aidan. Counterspace. Design and the
modern kitchen. New York, MoMA, 2011, p. 20
174
CAPÍTULO V
FORDISMO DOMÉSTICO
Enfin l’outillage sera mécanisé. C’est la grande règle des temps modernes. Si
le bien-être, la richesse, le confort pénétrant de plus en plus dans toutes
classes de la société, c’est Grace à La mécanisation de toute l’industrie
moderne. La machine permet de produire davantage, plus rapidement, à un
moindre coût; la machine est le complément indispensable de tout
démocratie.”359
175
por apresentar setores distintos: aquele que por projeto e nome se revelava
transparente para os moradores e visitantes e a parte resguardada, segreto nas palavras
espantadas de Ponti, os quartos de empregada361.
Mais do que uma visível distância, por parte da autora do projeto da casa,
entre o que se propõe – pensemos na Enciclopédia da Mulher, analisada
anteriormente – e o que a experiência cotidiana demanda, este conflito revela que para
um visitante europeu – e homem, é bom lembrar – como Ponti, a questão do
empregado doméstico era um tema cujo debate já havia acontecido. No Brasil, como
bem lembra um artigo de Carlos Comas, a dona de casa de classe media vivia o
melhor dos mundos, com empregados mal remunerados à mancheia e o novo mundo
do equipamento doméstico362.
É disso que trata esse capítulo final: das mudanças do espaço de trabalho no
interior da casa, incluindo suas hierarquias espaciais e simbólicas, sua dimensão
tecnológica e de ordenamento das tarefas, os sujeitos pertencentes a este espaço de
trabalho, e os debates a respeito disso tudo. Debates que passam por publicações,
indústria, comércio, propaganda e exposições. Se o debate das artes decorativas
versus arquitetura moderna e seu mobiliário dizia respeito especialmente à sala de
visitas, de jantar e escritório do homem, chegando até os quartos, o tema da
mecanização e tecnificação fala sobretudo de cozinha e área de trabalho, os “serviços”
da casa.
361 . Acompanho aqui a leitura da Casa de Vidro feita por Campello em sua dissertação de mestrado Lina
Bo Bardi: as moradas da alma, 1997, pp. 90-92.
362 . Ao mesmo tempo, o recuo e a maior altura da cozinha de cobertura plana afirma sua independência
volumétrica tanto quanto a da ala externa, e propõe, para efeito de retórica, como muitos eletrodomésticos
à vista também fazem, a dispensabilidade dos empregados residentes. No entanto, o teto de uma água só
dessa senzala retoma e completa a inclinação do teto da casa grande, reiterando sua conexão. Duas
organizações se imbricam, uma definida por privacidade, outra por autoridade. Fora de vista, a casa do
caseiro se ergue à parte. A burguesia iluminada sempre foi capaz de gozar do melhor de muitos mundos.
Comas, Carlos. “Lina 3x1” Arqtexto (UFRGS) vol. 2009, p. 150.
176
O que nos conduz a leituras impregnadas de otimismo no progresso, como
Gideon em 1947 que, de um lado espelhava os compromissos e tomadas de posição
de sua geração e grupo e de outro gerava um certo efeito teoria ou, em outra
linguagem, um mito a ser repetido estruturalmente, sem levar em conta que é uma
peculiaridade do capitalismo que a cada inovação venha junto – não como um efeito
colateral, mas como parte constitutiva – mudanças nem sempre desejadas que em
nome do progresso ou do lucro muitos terminam por aceitar363. Como antes dele
Nikolaus Pevsner fez para o design em Pioneers of Modern Design, de 1936, Gideon
em Mechanization takes command seguiu de perto, ao lado e como um porta-voz os
sentimentos e as visões de quem estava vivenciando esse processo com seus olhos
mãos e pensamentos e ao fazê-lo, parte do fenômeno que buscava relatar e analisar,
contribui para a cristalização da doxa e da construção da legitimidade do grupo.
Assim, mais do que uma contribuição pioneira, o que certamente é, o trabalho de
Gideon a meu ver não mantém seu vigor, a menos que, como ele, embarquemos em
uma visão quase cega de fé no futuro e na máquina – que no entanto nos ilumina e
ajuda a enxergar o discurso dos arquitetos de sua geração.
Se, como salienta Adrian Forty, a relação entre criados domésticos e seus
patrões não fosse a única modalidade de relação hierárquica existente no século XIX,
era das mais complexas e embaraçosas. Já em meados do século era referida como um
. Forty, Adrian. Objetos do desejo. Design e sociedade desde 1750. São Paulo: Cosac & Naify, 2007, p. 19.
363
364. Pérez, Inês. El hogar tecnificado. Famílias, gênero y vida cotidiana 1940-1970. Buenos Aires: Editorial Bibios,
2012, p. 27.
177
“problema”, já havia sinais de estar se tornando uma forma arcaica de emprego,
especialmente pela circunstância do trabalhador morar na casa do patrão, comer sua
comida e estar sob sua responsabilidade. Além disso, as queixas quanto a criados
insubordinados eram freqüente. Uniformes de copeira, toucas e aventais brancos
faziam parte da diferenciação dentro do ambiente da casa, assim como estratégias
como o uso de bandejas, evitando que as criadas oferecessem algo aos patrões ou às
suas visitas com as próprias mãos365.
De acordo com Barker, uma dona de casa digna de tal nome deveria saber não
apenas escolher – e eram raros os bons empregados – mas saberia exigir um trabalho
bem feito. “Não há uma só dona de casa hoje que não tenha muitas experiências
amargas” em relação à sua empregada ou cozinheira. Fazia-se urgente uma reforma
em prol da dona de casa, mais do que da empregada, pois esta sempre poderia arrumar
outro tipo de emprego enquanto a primeira permaneceria com seus problemas
domésticos. Barker identificava diversos problemas a prejudicar esta difícil relação, e
o salário era o menor deles. As vantagens comparativas de outro tipo de trabalho –
como no comércio ou na indústria era várias e visíveis: a hora do trabalho doméstico
era mais longa, a empregada ficava sempre à disposição da patroa, não havia
365 . Forty, Adrian. Objetos de desejo. Design e sociedade desde 1750. São Paulo, Cosac & Naify, 2007, PP. 111-2.
366 . The Modern Interior, p. 37.
367 . Barker, Clara Hélène. Wanted, a Young women to do housework, business principles applied to
178
liberdade, vida social e a empregada era chamada pelo seu primeiro nome e não por
“senhorita” como nos outros empregos. Além disso, o termo “empregada” era
estigmatizado, portando um sentido de degradação368.
E empregada então vivia na casa de seus patrões, sob estrita vigilância. Por
que então, perguntava-se a autora, a dona de casa não adotava métodos empresariais
nesta questão? Por que permitia que suas empregadas domésticas vivessem em sua
casa? Por que consentia em abrigá-las às suas custas, a ter para elas um quarto,
banheiro, lugar para sentar e comer? Por que as deixava usar sua cozinha – com seu
gás – e sua lavanderia? Só por que suas mães, avós e bisavós assim o fizeram?369
Morando em sua própria casa, a empregada doméstica, segundo os conselhos de
Barker, deveria trabalhar oito horas por dia e seis dias por semana. Ao terminar seu
trabalho, deveria ir embora. As tarefas deveriam ser claramente definidas. O trabalho
doméstico não deveria constituir uma exceção a outras formas de trabalho. Feriados
deveriam ser observados, assim como o pagamento de horas extras. Esta era a dona de
casa moderna e seu modo de solucionar “a questão dos empregados”: praticando em
sua própria casa, sem a necessidade de qualquer legislação a respeito370.
179
apenas moderno mas sobretudo um cenário para uma vida moderna – qualquer que
fosse sua acepção.
372 Eleb, Monique. “Conforto, bem-estar e cultura material na França”. Lira, J. et alli, Domesticidade, gênero e
cultura material, 2017, op.cit, p. 162.
373 . El hogar tecnificado, op. cit. p. 72.
180
acompanho a autora, a cozinha foi o epicentro das transformações do espaço
doméstico. De qualquer modo, se a casa do século XX seguiu a do XIX em alguns
aspectos, não parece ter sido na cozinha, que passou a receber mais atenção. Segundo
Forty, a noção de que o lar deveria expressar beleza e virtude passou à idéia de que a
casa precisava ser fonte de saúde e bem-estar físico e a higiene trouxe a cozinha como
centro das atenções dos dois lados do Atlântico (Norte)374.
374 . Objetos de desejo, op. cit. pp. 156-7.
375 . Ballent , A. & Liernur, F. La casa y la multitud. Vivienda, política y cultura en la Argentina moderna. Buenos
Aires, Fondo de Cultura Económica, 2014, p. 163.
376 . Georgie Child escreveu The efficient kitchen em 1914.
181
emblemática, Frederick e Bernège criaram esquemas de circulação do espaço de
trabalho da casa que visavam dar a este a mesma eficiência de uma fábrica.
A COZINHA-LABORATÓRIO
377 . Reid, Susan E. “The Krushchev Kitchen: domesticating the Scientific-technological Revolution.”
Journal of Contemporary History, SAGE Publications, London and New Delhi, Vol 40 (2), p. 292.
378 . A exposição Haus am Horn foi financiada pelo empresário Adolf Sommerland, o mesmo que já havia
encomendado uma casa a Walter Gropius, e seus objetivos eram apresentar os trabalhos da Bauhaus no
contexto de uma casa moderna, cujo objetivo era facilitar a vida de seus habitantes.
379 Les Arts Décoratifs, L’esprit Du Bauhaus. (catálogo da exposição homônima). Paris: Les Arts
Décoratifs/Fondation d’entreprises Hermes, 2016, p. 201.
182
Ao enunciar o problema dos empregados, Walter Gropius, como já foi visto,
mencionou a inferioridade do trabalho individual da dona de casa, em meio a um
congresso no qual se debatia os desafios da habitação. A bibliografia sobre os CIAMs
tem o problema de ficar presa às falas dos arquitetos, ou melhor, às falas de alguns
arquitetos, ou aos textos conhecidos como “cartas”, geralmente fruto de debates e
querelas mascaradas sob a forma de um consenso. Quem ali concordou com Gropius?
Quem discordou? E, talvez mais importante, quem o ouviu? O CIAM se dirigia a um
público mais amplo do que os pares arquitetos? Essa reunião do CIAM, cuja abertura
foi no dia do crash da bolsa de valores de Nova York, teve especialistas não
arquitetos pela primeira vez, em um evento não aberto ao público em geral.380
183
isolamento da dona de casa neste recinto. Ao contrário, a cozinha foi remodelada:
menor, bem equipada, planejada para uma vida doméstica científica que prescindia do
uso das empregadas, a cozinha não era mais um lugar para folguedos com as crianças
ou para se receber visitas dos vizinhos: era um laboratório doméstico382.
Com o século XXI já em sua segunda década, estamos tão habituados a uma
casa com energia elétrica e água encanada – para não falarmos em outras facilidades
eletrônicas – que corremos o risco de perder a medida desse impacto e sua incidência
no mundo doméstico. Na Inglaterra, pela primeira vez se gerou eletricidade para
venda em 1881 e a Electrical Development Association foi criada em 1919; na década
seguinte suas campanhas publicitárias tinham como alvo as mulheres. Primeiro as
382 . Building the dream, p. 172.
383 .”Domestic reform and European Modern Architecture: Charlotte Perriand, Grete Lihotzky, and
Elizabeth Denby” in Modern women, p. 180.
384 . Ruth Oldenziel & Karin Zachman, Kitchens as Techonology and Politics: an introdution.” P. 3.
184
donas de casa de classe média, mas a partir de 1930 também as mulheres das classes
trabalhadoras passaram a ser vistas como consumidoras em potencial. As novidades
propagandeadas eram água quente e iluminação. Ao reconhecerem as possibilidades
da energia elétrica para a casa, grupos de mulheres passaram a debater seus usos,
especialmente as possibilidades que esta trazia de diminuição de trabalho. Mulheres
de classe media fundaram a Women’s Engineering Society (WES) em 1919 e logo
depois uma dissidência, a Electrical Association for Women (EAW), em 1924385.
Como se fosse o início de uma nova era, eram freqüentes descrições prenhes de
otimismo, quase uma milenarismo:
385 . Suzette Worden, “Powerful women: Electricity in the home, 1919-40”, p. 131.
386 A. G. White, The all Electric Age, apud Forty, op. cit., p. 357.
387. A primeira-secretária e depois presidente da WES assim descreveu as primeiras interessadas: “women
for whom the Great War had meant emancipation, women for the most part who by the 1920 thought
they were now better fitted for life outise the home, and they could no longer be convinced that their
sphere should be so restricted.”Apud Worden, op. cit., p. 134.
185
algum reconhecimento em 1925 ao organizar a conferência “Women in Science,
Industry and Commerce” em Wembley em 1925.
A dissidente EAW publicou uma brochura, Electrical Age for Women, que se
tornou bastante popular. Contudo, o mais interessante são os momentos em que a
EAW agiu como mediadora entre a indústria e o consumidor. E 1927 organizaram
uma discussão sobre os fogões elétricos por meio de questionários que avaliavam
onze tipos de fogão. As mulheres que responderam aos questionários pediram grelhas
maiores, placas de aquecimento e outras sugestões que chegaram a ser incorporadas
em 1934. Cinco anos depois um panfleto intitulado The Design and Performance of
Domestic Electrical Appliances, publicado pela EAW, sugeria que os fogões tivessem
cantos arredondados, alguns itens de segurança que ajudassem a prevenir incêndios
em casas acarpetadas, e pediam que os aspiradores de pó não fizessem tanto
barulho388. A partir de então as associações e empresas passaram a prestar muita
atenção no planejamento das cozinhas, e a observar exemplos norteamericanos,
especialmente o trabalho da engenheira e psicóloga Lilian Gilbreth; em 1932
publicaram um relatório intitulado The Kitchen Practical e para popularizar suas
demandas financiaram o filme Motion Study in the Home em 1936. Certamente
inspirado pelos trabalhos do casal Gilbreth389, o filme mostrava uma família
preparando seu café da manhã pelos métodos tradicionais e pelos métodos dos
estudos de movimentos, que mostrava uma economia de energia por meio de três
funções interligadas: a comida guardada na geladeira e em armários, os alimentos
preparados em um fogão, uma bancada e um lugar onde era servido, e uma área de
limpeza com água quente e corrente390. Mas o passo mais ousado da EAW foi
planejar e equipar uma casa modelo projetada pelo arquiteto Adrian Powell, dirigida a
uma família de classe média. A casa, em estilo modernista com teto plano, foi
construída em Bristol em 1935 e em um mês foi visitada por vinte mil pessoas. Suas
novidades incluíam aquecimento, água quente e frigorífico. Além disso, foi admirada
388 . Idem, p. 44.
389 . Lilian Gilbreth chegou a protagonizar filmes onde exibia sua rotina doméstica organizada, em uma
família com doze filhos.
390 . Worden, op. Cit., p. 144.
186
por ser fácil de limpar, pela ausência de janelas emolduradas, balaustrada e outros
detalhes que juntam pó391.
Lihotzky, and Elizabeth Denby”. P. 181. Aino Aalto (nascida Marsio) (1894-1949) foi uma arquiteta e
designer finlandesa que foi trabalhar com Alvar Aalto e com ele se casou, tornando-se sua colaboradora;
seu trabalho mais conhecido é em vidro, especialmente copos. Salme Setälä (1894-1980) trabalhou como
arquiteta do estado na Finlândia.
187
laboratório racionalizada não é um capricho da moda, mas a demanda de uma era”.395
A fala de Setälä estava sintonizada com a do arquiteto tchecoslovaco Karel Teige
(1900-1951), para quem a cozinha deveria se tornar um laboratório químico, uma
oficina modelo, o aposento da casa mais racionalizado e melhor projetado.396
A COZINHA DE FRANKFURT
projeto, foi citada por Catherine Bauer em seu Modern Housing, que tanto inspirou o trabalho de Carmen
Portinho.
188
cozinhas profissionais pensadas para homens, como as de navios e estações de trem,
espaços compactos onde duas ou três pessoas poderiam cozinhar para centenas. E
além disso, o livro de Frederick, New Housekeeping, traduzido para o alemão nos
anos 1920399 foi descrito como sua “bíblia”, como já vimos400. Contudo, ao contrário
de Frederick, Grete Lihotzky estendia a racionalização para a construção – afinal era
uma arquiteta – e concebeu uma cozinha pensando em custos reduzidos, ao alcance de
tantos quanto possível e, para atingir esse objetivo, trabalhou com industriais e grupos
de mulheres.
189
cozinha, de tamanho reduzido, ficava dentro de um armário – ou seja, desaparecia de
este fosse fechado. Essa cozinha-gabinete foi produzida na Alemanha pelo empresário
Otto Kahn404.
Na França este debate foi parte das atividades do Salon des arts menagers, ou
Salão de Arts Domésticas.
404 . Counterpace, p. 24.
405 . Encyclopédie de l’Exposition, op. cit., pp.. 10-11.
190
Amnedé Ozenfant foi ignorado pelas entidades oficiais, por boa parte do público,
cumprindo no entanto sua missão de fazer representar as vanguardas modernas: “Com
o teatro de Perret, os dois pavilhões de Robert Mallet-Stevens e o Pavilhão Soviético,
a villa do L’Esprit Nouveau é o único edifício da exposição que poderá ser
qualificado de moderno, isto é, que cumpre a sua missão, tanto do ponto de vista
406
prático como estético”, escreveu um crítico na revista L’Art Vivant . Ao mesmo
tempo, Auguste Perret afirmava que onde existia arquitetura não havia lugar para a
decoração; Perret, mestre de Le Corbusier, assim como os colegas soviéticos,
autodenominados construtivistas, pareciam ser o ruído que na ocasião pouco
incomodou.
Por essa feira, grande bazar, passaram quinze milhões de visitantes. O papel de
Maurice Dufrène, da Société des Artistes Décorateurs, na exposição foi relevante: era
seu projeto uma fileira de pequenas lojas de jóias e ornatos que transformou a ponte
Alexandre III em uma espécie de Ponte Vecchio florentina. Não apenas essa ponte
406 . Brunhammer, Yvonne. “1925, ‘a maratona das artes da casa’ “. ArtDéco 1925. Fundação Calouste
Gilbenkian, 2009, p. 25.
407. Gronberg, Tag. “Paris 1925: consuming modernity”. Benton, C., Benton, T. e Wood, G. (eds). Art deco
191
conectava os dois lados da exposição como enfatizava o caráter de consumo efêmero
e da relevância das butiques de luxo naquele cenário. Se a exposição de 1989 teve
como ícone a Torre Eiffel, esta teve os efêmeros bens de luxo. Em 1925 as lojas
parisienses eram tão importantes para o comércio como para o planejamento da
cidade, era uma manifestação da reconstrução do pós-guerra408. Além disso essa rua
de lojas na ponte trazia a produção artística de algumas mulheres, como a artista
plástica Sonia Delaunay, cuja loja Simultanée ali exibia seus casacos409. Havia na
mostra um forte destaque para os bens de luxo – ourivesaria Christofle, cristais
Baccarat e Lalique – que tinham suas lojas na Esplanade des Invalides. Mas nessa
disputa comercial, de visibilidade o destaque foi para o quarteto das grandes lojas de
departamentos já mencionadas, que desde a belle époque recrutava estudantes
talentosos de artes decorativas.
408 . Idem, pp. 157-8,
409 . Idem, ibidem. p. 163.
410 . O museu foi criado em 1937 pelo etnólogo Georges Henri Rivière, (1877-1985) que o dirigiu até 1967.
192
últimas pelos objetos domésticos franceses. A influência americana e alemã no
redesenho da casa, especialmente da cozinha, foi limitada.
O Salon des Arts Ménagers, criado em 1923 (funcionou até 1983) pretendia
dar às classes populares instruções e regras quanto ao manejo da casa, normas que
iam das virtudes morais do lar ao gosto – ou melhor, ao que seria bom gosto.
193
conhecimentos que permitem manter a casa de modo adequado. Em 1925, a proposta
de Breton era de transferir o salão para o Grand-Palais, mas havia a concorrência da
exposição art-déco, e o salão veio a se realizar no ano seguinte. Houve ênfase no
termo “arte”: arte no sentido de conjunto, do bom emprego dos recursos, arte como o
conjunto de pratos, panelas e utensílios necessários à casa; arte como método e
ordem, como um estilo de vida cotidiana em uma sociedade em mudança. Para
Breton, a art ménager ganhou uma dimensão inédita: “diz respeito não só à
organização da casa, mas de toda célula de habitação: conteúdo, continente, ambiente;
expressa aspirações novas como a liberação da mulher, higiene, conforto, beleza e
lazer”, e foi dicionarizado no Nouveau Larousse Universal.413Arte, mas dizia respeito
a economia doméstica, à esfera privada, a procedimentos e ordem que poderiam
poupar recursos. Para Breton, tratava-se de definir um novo estilo de vida cotidiana
em uma sociedade em mudança, pois ciência doméstica dizia respeito à casa, célula,
ambiente, conteúdo, continente, possuía dimensões inesperadas414. Não por acaso, a
publicação de Charlotte Perriand analisada no terceiro capítulo se intitulava L’art
d’habiter.
413 . Rouaud, p. 45.
414 . Apud Rouaud, op. cit., p.45.
194
que aos escritos de Taylor. À exceção da FIAT de Turim, a indústria automobilística
européia ainda produzia carros de luxo quase que artesanalmente415. Ainda assim, o
movimento pela racionalização do trabalho tinha como seu modelo a usina e métodos
industriais que incluíam o melhor uso do espaço e de certo modo, o mesmo raciocínio
foi transferido à esfera doméstica. O movimento de racionalização da casa, tema
maior do Salon des Arts Ménagers, buscava recriar esse ambiente produtivo na esfera
doméstica, que passa então a ser pensada como ambiente de trabalho.
415 . Adiro totalmente ao comentário de David Harvey sobre práticas intelectuais e ideológicas quanto à
racionalização do trabalho: “Foi esse tipo de história intelectual e política confusa que fez Lênin louvar a
tecnologia de produção taylorista e fordista enquanto os sindicatos da Europa Ocidental a recusavam; Le
Corbusier aparecer como apostolo da modernidade enquanto se aliava a regimes autoritários (Mussolini
por algum tempo e o regime de Vichy na França); Ebenezer Howard forjar planos inspirados no
anarquismo de Geddes e Kropotkin – apenas para serem apropriados por desenvolvimentistas capitalistas
– e Robert Moses começar o século como ‘progressista’ político (...) e terminar como o ‘corretor do poder’
que ‘levou o moedor de carne’ para o Bronx em nome da automobilização da América.” Condição pós-
moderna, São Paulo, Ed. Loyola, 1989, pp. 122-3.
195
Frederick visitou Paris e o Salão a convite da própria Bernège, onde proferiu uma
conferencia intitulada “l’art menager”.
Segundo Rouaud (que foi secretário dos SAM pouco antes de sua extinção nos
anos 1980), a recepção do salão não era unânime. Relativamente aceito pela imprensa
“bem pensante”, esse evento imaginado por um socialista serviu menos a causas da
esquerda do que ao socorro de uma classe privilegiada que vivia uma crise416.
Talvez isso explique por que em 1924 a decoração compareceu ao lado das
máquinas. Com isso, o evento cresceu: dos 130 expositores em 1923 passou a 465 em
1930. A partir de 1926 passou a ter palestras, a abrigar um Congresso de Higiene,
exposições de artesanato e mobiliário, tudo em nome da “educação pública”. Assim,
não causou espanto a decisão do Ministro da Instrução Pública e das Belas-artes
Edouard Herriot que em 1927 decidiu organizar, dentro do salão, uma semana de
cursos de culinária, assim como um premio em um concurso de culinária e de
trabalhos domésticos durante o salão.
PAULETTE BERNÈGE
416. Rouaud, op. cit., p. 57.
196
Ao lado de Jules Breton, o destaque dos salões era Paulette Bennège (1896-
1973), formada em filosofia e criadora da Ligue d’Organization Ménagère417 em
1923 em Nancy, assim como da École de Haut Enseignement Ménagère em Paris em
1930. A partir de 1923 foi a editora da revista Mon chez moi, mas também publicou
em periódicos como Art Ménager e Éducation ménagère. Em 1924 ela fundou a
Ligue d’organization ménagère e desde seu livro pioneiro Si les femmes faisaient les
maisons, Bernège se lançou em uma espécie de cruzada que visava, ao tornar a casa
mais eficiente, liberar a mulher, pelo menos parcialmente, do fardo de cuidar desta.
Nesse livro, Bernège provocava os arquitetos e sua relação de exterioridade com a
casa, mostrando como a falta de planejamento no espaço interno poderia causar à
dona de casa um sobre-trabalho em gestos, passos, distâncias percorridas no interior
do lar. Ao longo de sua carreira Bernège publicou catorze livros, todos ao redor
destes temas. O mais conhecido, De la méthode ménagère, foi reeditado até 1969,
uma façanha para um livro nesse tema escrito em 1928.
417. Organização da qual o arquiteto Le Corbusier era um dos patronos, o que nos permite aproximar, o
que a historiografia da arquitetura não faz, a noção de “máquina de habitar” desse debate.
197
revista L’Art Menager uma nova indagação, desta feita não com o condicional “se”,
mas como o tempo indeterminado “quando”.
Vale a pena nos determos nas propostas para um tempo quase impensável.
Em Si les femmes faiseiant les maisons, de 1928, uma brochura que devia
exprimir os desejos e as reivindicações das donas de casa francesas de modo que as
casas fossem contruídas segundo suas necessidades, em um século de eficiência que
reivindicava casas eficientes418. Casas que não congelassem no inverno e não
grelhassem no verão; casas com eletricidade, aquecimento, telefone e elevador; casas
sem escadas, elemento tirano e criminoso que silenciosamente obriga a dona de casa a
subir e descer. A ilustração desse tópico comparava esses movimentos a subir a Torre
Eiffel. Nada de cobre, que exige limpeza difícil; nada de pequenas janelas lado a lado
com cantinhos, uma vez que uma grande superfície sem ângulos é mais fácil de se
manter; as juntas (de piso, de telhado), um inimigo a ser banido; no lugar dos
parquets pouco higiênicos, um piso de um aglomerado compacto lavável com água;
nada de cornijas, aparadores, esculturas: “a sobriedade das linhas retas ao gosto da
decoração moderna é tanto melhor”419.
Além disso, as distâncias mal estudadas, vampiros das forças humanas; e, para
combater qualquer acusação de exagero o argumento, ela apelava à matemática, a
mais rigorosa das ciências e suas cifras; se a mulher por causa das escadas parecia
escalar a torre Eiffel, por causa das distâncias mal planejadas, podia caminhar até a
Ásia (Fig, 32). Além disso tudo, o quarto das crianças poderia ficar no centro da casa,
de modo que estas estivessem sempre sob vigilância; no lugar da sala que ninguém
usa, um espaço para todos. Apenas o necessário, nada além do necessário: tudo
necessário, tudo o que é necessário; conforto a todos com o trabalho doméstico
mínima: “Duas horas de trabalho confortável, em vez de quinze horas de trabalho
cansativo, este repetido todas as semanas por milhões de mulheres (...)”. 420
198
Admirando a cozinha americana pensada há vinte anos por Frederick, Bernège chama
a atenção para os materiais laváveis – mobiliário de níquel inoxidável e raramente em
madeira – assim como o aço nos batentes das janelas, alumínio para as pias, muito
vidro. Ou seja, materiais que remetem à indústria e espaços de trabalho então (mas
ainda hoje) visto como masculinos. O texto é detalhado, fala dos pontos de
iluminação e das tomadas para os aparelhos elétricos. Particularmente interessante é a
ordem dos espaços, dividida por atividade: um centro de reserva de alimentos; um
escritório de cozinha; um centro de cozimento; um centro de serviço; uma pequena
sala de refeições; um centro de limpeza. Complementando, um relógio elétrico e um
aparelho de rádio, este destinado a, entre as dez da manhã e o meio dia, fornecer à
dona de casa toda sorte de ensinamento práticos, notadamente culinários421.
Claro que a dimensão simbólica disso tudo nos leva ao clássico Pureza e
Perigo, a uma noção de sujeira como desordem, de rituais de pureza e impureza que
criam unidade na experiência, pois através deles padrões simbólicos são executados e
manifestados422.
Talvez o sucesso de Paulette Bernège tenha a ver com o fato de que, sem se
afastar muito dos temas da domesticidade, ela não ensinasse a cozinhar ou costurar,
mas a planejar. Aí reside a chave da ressignificacão, pois a dona de casa foi por ela
colocada no papel de gestora. Segundo Clarke, ela usava um tanto de sua própria
experiência de mulher solteira de vida profissional intensa, que morava em um
apartamento423.
421 . Bernège, Paulette. “Quand une femme construit sa cuisine”. L’art Ménager, août 1933.
422 . Douglas, Mary. Pureza e perigo. São Paulo, Editora Perspectiva, 2014, p. 13.
423 . Clarke, J. “Domestic organization as pedagogy. Paulette Bernège and the making of a middle class in
the 1930s and 1940s”. Travail, genre et sociétés 2005/1 (No 13), p. 139-157. Nesse sentido próxima aos
conselhos singelos de Charlotte Perriand para uma moça fictícia que morava numa mansarda, como vimos
no capítulo III.
199
enquanto consumidoras. Para as autoras de manuais, compras não deviam ser feitas
sob emoção e para isso era preciso um esforço pedagógico, uma postura que no limite
opusesse o prazer à necessidade – afinal, eletrodomésticos eram dispendiosos. Claro
que nisso tudo havia uma visão moral e social, um elogio da virtude, da estabilidade
organizacional da casa, nada muito novo, mas a proposta era tornar a compradora
frívola uma mulher capaz de analisar, usar a razão, ter espírito critico, observação e
bom senso. Mais do que apenas desenvolver novas competências, segundo Clarke
tratava-se sobretudo de disciplinar o sexo feminino burguês, uma auto-disciplina424.
Assim, quando Bernège especula sobre como seria uma casa feita por uma
mulher – em um momento em que nenhuma mulher se aproximava do campo da
arquitetura, mesmo na moderna Bauhaus na Alemanha – ela de certo modo, mesmo se
dirigindo à mulher abastada, rompeu o molde do apartamento burguês haussmaniano,
que de certo modo ainda sobrevivia em muito do que se mostrou na art-déco 1925.
424 . Marguerite Lamy publicou Bien acheter pour mieux vivre em 1932. Ver, a respeito, Clarke, op. cit.
200
novo status social. E nessa casa a mulher podia mostrar seu talento como
organizadora, tanto da vida familiar como de uma certa vida em sociedade. Desse
modo, semelhante ao que Vânia Carvalho mostrou para as casas paulistanas do
começo do século XX, os ambientes se generificavam. A sala de jantar e o fumoir
eram domínios masculinos enquanto as salas, qualquer fosse sua dimensão, era o
reino da mulher. Mais do que isso, ela se fazia ler pela decoração de seu salon. Tarefa
que exigia ofícios e saberes: o decorador, o arquiteto, o arranjador de seu boudoir, o
tapeceiro, além de vasta produção impressa em catálogos, guias e revistas. Na França
a mais conhecida era a Le Garde-Meuble ancien et moderne, que funcionou entre
1839 e 1935, mas era possível também se recorrer a congêneres inglesas e alemãs.425
Havia também a publicação da Union Centrale des Beaux-arts appliqués à l’industrie,
La revue des arts décoratifs, ambiciosa, que até 1889 forneceu notícias do ensino e
dos museus não restrito à França, mas com relato do que se passava em outros países
europeus.
Para os burgueses nem tão abastados, mudou a forma de aquisição dos bens
que deveriam compor o espaço doméstico, com a chegada das lojas de departamentos,
os grands magasins de noueautés.
425 . Charlotte Gere e Florence McCarren-Cates, “Des or au confort”. Intérieurs romantiques, catálogo do
Musée de la vie Romantique, Paris, 2012. Pp. 71-72.
426 . Silverman, D.L. op. cit., p. 77.
201
Contudo, a belle époque foi contraditória. De um lado havia uma
prosperidade, mas a produção de produtos industriais se mantinha ligada aos bens de
luxo, somo se fosse uma reverberação do Segundo Império. A semelhança quanto a
temas de domesticidade, entre os dois momentos impressiona pela persistência de
referências estéticas burguesas, que explica o porque de, em meio a um forte
desenvolvimento técnico que possibilitaria o acesso de uma parcela maior aos bens de
consumo, gosto e estilo permaneciam sendo temas determinantes. Contudo, novos
produtos como bicicletas e automóveis (esse sim um bem de luxo) fomentaram uma
estética industrial, não necessariamente autoconsciente posto que boa parte das
mercadorias produzidas ainda copiava industrialmente o produto artesanal de luxo.
427 . Laureant, Stéphane. Les arts appliqués en France. Genése d’un enseignement. Paris, Éditions du CTHS, 1999,
p. 317
428 . Silverman, Deborah L., op. cit., p. 74.
202
O debate acerca do papel da mulher, as lojas de departamento – móveis
comprados prontos e não herdados ou encomendados – tudo isso se vinculava
também a transformações na produção, que se faziam acompanhar, como quase um
pré-requisito, de transformações na transmissão dos saberes, especialmente das
chamadas artes aplicadas. Na França em 1853 um decreto imperial se opunha à
separação tradicional das exposições de belas-artes e de produtos industriais,
afirmando que o aprimoramento da indústria estaria inequivocamente vinculado ao
das artes e que um dos modos de contribuir para o progresso das artes seria a
realização de uma exposição universal.429
429. Laureant, Stéphane. Les arts appliqués en France. Genése d’un enseignement. Paris, Éditions du CTHS, 1999, p.
32.
430. Simon, Jean-Emmanuel, Conte de Laborde. Exposition Universelle de1851, travaux de la commission francaise
sur l’industrie des nations. Tome VIII, "Rapport sur l’application des arts à l’industrie. Paris, Imprimerie
Imperiale, 1856, p 405.
203
Educado, o chamado sexo frágil em menos de um século se revelaria como
mulher moderna, como Paulette Bernège e Charlotte Perriand e delas emanaria a
revolução simbólica do espaço doméstico.
A praticidade de uma casa não dispensava a questão do gosto. Talvez seja esse
o ponto que articula a exposição de artes decorativas e aquela voltada à casa eficiente.
Arranje a casa a seu gosto, aconselhava Bernège, se possível com gosto. Para tanto,
chame um decorador, aproveite de sua experiência e seu caderno de endereços; conte
seus desejos, seus sonhos, suas necessidades. Dessa valorização do profissional de
decoração, em alta na Paris do entre-guerras, Bernège passava a uma indagação
crucial nas disputas dos diversos grupos ligados ao espaço da casa e seus
equipamentos naquele momento e lugar: “antigo ou moderno?”. O ideal seria o
“antigo de família” e na ausência deste ou na impossibilidade de se adquirir uma peça
autêntica, o conselho era que se evitasse o antigo, à copia medíocre. Assim como o
rústico, ideal para um albergue normando ou do pais basco.
431 . Stéphane Laureant, op. cit. p. 192.
432 . “La maison et son décor” Encyclopédie de la vie familiale. Paris, Horizons de France, 1938.
204
Assim, encontrava-se com o debate dos decoradores modernos ao aconselhar:
“tenha um ambiente moderno para a sua vida em casa, ou melhor, uma ambiente do
seu tempo. Não acho que isso significa cubo e tubo (...) e moderno não quer dizer:
paredes brancas, carpete preto e um aparador em linha reta e uma caixa de pau-rosa
envernizado”433. Embora isso não seja enunciado com clareza, ao falar da casa
burguesa, Bernège se dirigia a novas populações urbanas que não herdavam
mobiliário e, ao necessitar adquiri-lo, demandavam uma espécie de bula, de guia.
Talvez por isso a alta dos manuais de aconselhamento, como foi visto no terceiro
capítulo.
433. “La maison et son décor”, op. cit. p. 24.
434 . Djo-Bourgeois, Francis Jourdain, E. Kohlmann. Le répertoire du gout moderne No. 1. Paris, Éditions
Albert Lévy, 1928.
205
Os artistas a carregarem com sua assinatura a marca de seu tempo – tempos
modernos – eram Francis Jourdan (Fig. 33), Georges Djo-Bourgeois, Charlotte
Perriand, G. Guévrékian, André Luçat e Robert Mallet-Steven, dentre outros. Artistas
decoradores e arquitetos que haviam participado da grande exposição de 1925
colocando-se num pólo moderno não modernista, algo como uma proposição moderna
palatável e menos vanguardista. No momento da publicação do répertoire, Charlotte
Perriand já trabalhava no escritório de Le Corbusier e Pierre Jeanneret, e ocupando o
pólo do “moderno modernista” o trio participava de exposições que também eram de
artes decorativas, ainda que o termo usado fosse outro: equipamentos de habitação.
É quando dois campos que pareciam separados, o das artes decorativas e das
artes domésticas se aproximam. Essa aproximação não é incidental. Como já foi dito,
em 1929 houve uma dissidência importante nas artes decorativas francesas. Junto com
os já mencionados artistas decoradores que publicaram o “repertório” Sonia
Delaunay, Eileen Grey, Charlotte Perriand, Robert Mallet Steves, dentre outros,
deixam a SAD Société des artistes décorateurs para fundar a UAM, Union des
artistes modernes. Um dos pressupostos da UAM era o fim da ornamentação e a
proposta de espaços funcionais.
206
espetacularização, atingindo públicos que a revista sozinha, ou a UAM talvez não
alcançasse.
435 Rouaud, op. cit., p. 212.
436 . Heirich Hauser, 1945.
207
Uma guerra depois e de volta pro outro lado do Atlântico Norte, era de se
prever que logo a indústria tomaria esse debate e daria conta da produção – o que não
era, para seus proponentes uma mácula e sim, talvez, um sinal de vitória de uma idéia.
O crescimento significativo da indústria norteamericana e seu domínio no mercado
internacional de produção de bens e consumo criou uma nova cultura do conforto
doméstico, emblematizado por empresas como Westinghouse e General Electric,
dentre outras. Não se tratava mais de defender a idéia de eficiência para a dona de
casa sem empregados do apartamento europeu, mas das casas confortáveis dos
subúrbios que não paravam de ser implantados nas margens das cidades americanas,
em suas versões de excelência e debate arquitetônico, assim como nas versões
acessíveis às massas. As Case Stuty Houses foram construídas entre 1945 e 1962 na
Califórnia como um experimento promovido por uma revista de arquitetura, que
reuniu nomes como Eero Saarinen, Richard Neutra e William Wuster; tornaram-se
conhecidas sobretudo pelas imagens icônicas feitas pelo fotografo de arquitetura
Julius Shulman. O primeiro Levittown, o grande paradigma da vida suburbana
norteamericana, é de 1947 e tornou-se sinônimo de subúsbio, da casa do americano
médio. Diferenças assinaladas, as duas iniciativas tinham como finalidade a
construção de caas baratas e eficientes que pudessem se tornar modelo para o
crescimento imobiliários que os Estados Unidos viviam com o final da Segunda
Guerra,
208
era internacional, contando com França, Inglaterra, Suíça, Suécia e Estados Unidos –
foi dirigida por uma economista doméstica, Martha Bode-Schwandt, que insistiu que
seu pais deveria manter a realidade do colapso do pós guerra que a nação enfrentava
ao avaliar o que os outros países mostravam. A pobreza da casa alemã se comparada à
norteamericana era uma constatação, mas um certo ascetismo compareceu em
diversos discursos como uma espécie de antídoto contra as seduções do supérfluo438.
438 . Greg Castillo, “The American ‘Fat Kitchen’ in Europe”, pp 37-8.
439 . Idem, p. 39.
209
Paraíso para uma nova Eva440, uma cozinha automática e mecanizada passou a objeto
de desejo, e emergia uma dona de casa que apaziguava os temores de uma
modernidade com efeitos negativos sobre a vida familiar. A tecnologia foi
feminizada, exibida como algo que traria conforto, noção que passa a ser cada vez
mais central. Não importava que essa Hausfrau ideal da família nuclear, representada
por atrizes, fosse uma ficção, uma imagem da reconstrução da família tanto na
Alemanha como nos Estados Unidos. E que a cozinha maravilhosa não estivesse
acessível ao consumidor europeu.
O corolário disso tudo foi o debate da cozinha da guerra fria conhecido como
The kitchen debate, em 1959, uma discussão em público, com ajuda de intérpretes e
televisionada441, entre Richard Nixon, vice-presidente dos Estados Unidos e Nikita
Krushchev, Premiê soviético (Fig. 48). As virtudes e carências do capitalismo e
comunismo, no context de uma exposição norteamericana em Moscou, não foi
incendiada pela corrida espacial ou descobertas cientificas, mas por uma cozinha.
Uma cozinha da General Electric representava, argumentou Nixon, as vantagens de se
viver nos Estados Unidos, especialmente porque estes tinham alterado as regras do
jogo da corrida tecnológica: a tecnologia podia ser nesse momento medida não apenas
nos termos da corrida espacial e das usinas nucleares, como também, e talvez mais
importante, em termos de bens de consumo442. A cozinha se tornou um ponto de
controvérsia e os dois maiores lideres mundiais jogaram todo seu capital político na
inflamada conversa443. Não estavam sós: outros estadistas como Winston Churchill e
os alemães Ludwig Erhad e Walter Ulbrich, ocidental e oriental, respectivamente,
também consideravam os utensílios de cozinha so blocos construtores do contato
social entre cidadãos e estado.
A cozinha que causou tamanha celeuma, aos olhos de hoje parece quase
inocente. Na mostra também havia a cozinha “futurista”da RCA Whirlpool, que
440 Ibidem, p. 45.
441 . https://www.youtube.com/watch?v=D7HqOrAakco, último acesso em 10 de fevereiro de 2017.
442 . Odenziel, R. e Zachmann, K. Cold war kitchen. London, UK & Cambridge, MA, 2009. p. 6.
443 . E Krushev retrucou: não temos aqui intenções de utilidade, é puro gadjet. Op cit, p. 9. A reação ao
american way of life que vinha embutido na cozinha, uma versão domestica e pedestre da equação
gramsciana “americanismo e fordismo”também ocorreu na Alemanha do entreguerras, quando alguns
autores perguntaram que tipo de dona de casa poderia emergir de uma casa racionalizada e da adoção da
tecnologia americana. A noção de uma traição de gênero da cultura alemã veio a se tornar mais tarde um
tema do antiamericanismo do Terceiro Reich. Castillo, G. “The American ‘fat kitchen’ in Europe”, p. 33.
210
exigia que a mulher apenas apertasse botões, mas como a sedução era um mote, além
dos eletrodomésticos, a cozinha era mobiliada com móveis de madeira do designer
finlandês Hans Wegner (ou seja, um pouco de madeira e apelo artesanal em meio a
tanta tecnologia). Mas o que causou tanta dor de cabeça foi uma cozinha verde-limão
da General Electric, instalada em uma casa americana estilo rancho – ou seja, a casa
do americano comum, não a casa californiana que exibia a arquitetura moderna – e ela
atingiu este status inesperado.
Mas o debate não era privilégio de governantes das maiores potências políticas
e econômicas. Num nível mais pedestre e acessível, diversos profissionais
requisitaram a cozinha como seu domínio: designers, arquitetos, engenheiros,
médicos, inspetores sanitários, profissionais da economia doméstica, cientistas
sociais, associações de moradores, higienistas etc. E a transmissão dessa disputa por
pontos de vista acontecia nas revistas femininas, local onde jornalistas, mais uma vez
arquitetos e decoradores, publicitários e outros formatam o simbolismos inscritos
entre quatro paredes azulejadas e suas máquinas.
444. Odenziel e Zachmann, p. 8
445 . Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=Vui2CSEwOxQ, última consulta em 8 de
fevereiro de 2017.
211
Era sim um tema, se nem sempre tão politizado, no mínimo de debate e
visitação pública. E o tema passeou Europa afora, e o impacto dessas mostras nos
permitem inferir o quanto a casa americana – e sua cozinha – era o modo do
American Way se exportar ideológica e culturalmente para o Velho Mundo. Assunto
de estado: United States Information Agency (USIA), criada em 19... engajou ........
do Museu de Arte Moderna, Edgar Kauffmann Jr, que já tinha experiência em
trabalhar com diplomacia, para manter uma vitrine intitulada American Design for
Home and Decorative Use. 446
446 . Mcdonald, Gay. “The Modern American Home as Soft Power: Finland, MoMA and the ‘American
Home 1953’ Exhibition. P. 387.
447 . MacDonald, op. cit., p. 388.
212
Na exposição, além de guias para mostrar como se usar o equipamento, o
visitante podia abrir portas de fornos e geladeiras.
448 . Floré, F. e De Kooning, Mil. “The Representation of Modern Domesticity in the Belgian Section of
the Brussels World’s Fair 1958”. Journal of Design History Society vol. 16 no. 4. The Design History Society,
2003, p. 320.
449 . Floré, F. e De Kooning, Mil., op. cit. P. 334.
213
Ainda assim, o que ficou para sempre como ícone da feira de 1958 foi,
sabemos, o átomo, preservado e visitado em Bruxelas. Tamanha especulação e
tratamento da casa como dimensão expositiva voltada para um futuro tecnológico nos
remete a um desenho de Joseph Hanna e William Barbera, cujo primeiro episódio foi
ao ar em 1962. The Jetsons, cuja empregada-robô Rosie pode bem ser vista como uma
atualização doa Marie Mechanique, a simpática robô francesa exibida nos vários
Salons d’arts ménagers, enunciando um futuro onde a tecnologia poderia servir de
amortecedos para tensões de clace, gênero e, em casos como o brasileiro e
norteamericano, raça no interior do espaço privado.
214
PALAVRAS FINAIS
Ensaboa
Tô ensaboando
Ensaboa
Tô ensaboando
Ensaboa
Tô ensaboando
Cartlola, Ensaboa
Em seu A dominação masculina, Pierre Bourdieu recorre à Durkheim tanto para falar
de espaço como de ordem masculina. Trata-se de explorar as formas de classificação com as
quais se constrói o mundo e que por serem originárias do mundo estão de acordo com ele e
215
assim são percebidas450 . Uma das dimensões nas quais a diferença entre os sexos parece estar
“na ordem das coisas” é a casa onde todas as partes são sexuadas, assim como nos corpos,
depositório de princípios de visão e divisão sexualizante451 . Tal princípio de visão e divisão
da casa encontra eco em trabalhos como o de Vânia Carvalho que, historiadora, não trabalha
nessa chave teórica, mas que examina não apenas o espaço da casa como os usos corporais da
mesma; sentar, especialmente, é tratado como um gesto socialmente significativo, logo
sexualmente significativo.
Valeria a pena uma pesquisa a partir de plantas diversas de casas a partir da segunda
década do século XX. Isso não foi realizado, pois não era a proposta, mas se apresentou como
uma das possibilidades abertas pela pesquisa que resultou nesta tese. Afinal, se há um jogo
perverso de dominação silenciosa, este se materializa nos objetos, e sobretudo nas casas e
seria desejável romper com o pensamento substancialista também nas análises do espaço
doméstico.
Para além de uma divisão sexual de atividades na qual casa é feminina e rua é
masculina, é preciso examinar essa assimetria na avaliação das mesmas. Se o homem não
pode realizar tarefas socialmente designadas como inferiores, “as mesmas tarefas podem ser
nobres e difíceis quando são realizadas por homens ou fáceis e fúteis quando realizadas por
mulheres.453 ”os exemplos são evidentes; costureiro e costureira, cozinheiro e cozinheira,
sendo que quando os homens as realizam é fora da esfera privada, o que transfigura e
enobrece. Poder-se-ia argumentar o oposto, que quando uma mulher arquiteta, o faz da porta
ara dentro o que sempre é um rebaixamento simbólico, haja visto a dissimetria entre artes
decorativas quando dominada por homens, como Dufrène e como foi se tornando lugar de
mulher – daí a revolução simbólica de Charlotte Perriand, por exemplo. Isso explica
movimentos já na autodenominada vanguardista Bauhaus, escola na qual as mulheres eram
450 . A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999, p. 13
451 . Idem, p. 19.
452 . Bourdieu, P. “Efeitos de lugar”. A miséria do mundo. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 161.
453 . Ibidem, p 75,
216
encaminhadas aos ateliês de tecelagem e cerâmica – casa – e interditadas nos espaços da
arquitetura – espaços públicos. A desqualificação ia do discurso, como a fala de Schlemer à
qual já nos referimos até os baixos salários contra os quais Günta Stolz se rebelou. A única
mulher bauhausiana a sair do quente e doméstico universo das lãs foi Marianne Brandt, que se
dedicou à metalurgia, material masculino usado nas cadeiras de Marcel Breuer, mas o fez
produzindo xícaras e chaleiras – casa. Chaleiras, talheres, eletrodomésticos fazem parte dos
metais femininos em uma casa enquanto que ferramentas de trabalho, serras e alicates, do
mesmo material, são masculinas. Então há algo a mais além das características táteis da
matéria: seu uso e as classificações inerentes a estes, as classificações que a produzem e,
como tal, reproduzem..
Se não há, segundo Bourdieu, em uma sociedade hierarquizada um espaço que não
seja hierarquizado e não exprima hierarquias e distancias sociais dissimuladas como lógica
das coisas, isso pode valer pro gueto, pra praça, pra casa. A lógica das coisas nada mais é do
que efeito de naturalização, lógica histórica dissimulada, o que, nos temas que tratamos em
cinco capítulos nos autoriza a construir uma “escala de classificação” que de modo um pouco
confuso, se reproduz em sala e cozinha, cozinha e serviços, cadeira e sofá, couro e tecido,
cores, texturas, suportes: cultura material.
A casa, contudo, é dinâmica, uma dimensão que ao mesmo tempo reproduz e resiste
ao mundo como ele é. Prosseguindo com a dicotomia casa e rua, se a metrópolis de Simmel é
454. Sennet, Richard. O artífice. Rio de Janeiro: Editora Record, 2009, p. 33.
455 . Idem, p. 33.
217
o espaço no qual a homogeneização comparece, a casa, o interior não deixa de ser um recinto
de defesa da subjetividade.456
E as caixas pretas abertas, alteram minimamente o estado das coisas. Hoje, a empresa
Cassina imprime na chaise-longue, os nomes de Le Corbusier, Pierre Jeanneret e Charlotte
Perriand, certamente porque depois de tantas pesquisas mostrarem as tensões da atribuição de
autoria, já não era mais viável simplesmente se grafar LC. A dois dias de depositar esse
trabalho, saiu o resultado do Prêmio Pritzker, atribuído a Ramon Vilalta, Rafael Aranda e
Carme Pigen, do escritório espanhol RCR, que atua em uma pequena cidade da Catalunha..
Pela primeira vez, um grupo de três pessoas, um escritório, ou seja, um reconhecimento de
trabalho coletivo. E, depois de Zaha Hadid, finalmente uma mulher de fora do star system da
arquitetura contemporânea.
Pesquisadores não pesquisam apenas por capricho ou deveres de carreira, mas para
contribuir com necessárias mudanças, ainda que elas sejam mínimas, quase imperceptíveis.
Se pendamos na modernidade como uma ruptura do pensar com tradição, como quis
Giddens, para pensar com reflexividade, é no mínimo desconcertante verificarmos que
enquanto mulheres entravam nos mundos do trabalho, sufragistas reivindicavam participação
política e o próprio corpo entrava em revolução silenciosa por meio de cortes de cabelo,
indumentária e posturas, os grupos de arquitetura continuasse,m em meio aos entreguerras,
presos a um modelo renascentista e ateliê ou escritório. Assim, ouso inquirir: se um universo
de atuação não incluía mulheres nos anos 1920, como podia se denominar moderna?
456. Liernur, J.F. e Ballent, Anahi. La casa y a multitud. Vivienda, política y cultura en La Argentia moderna.
Ciudad Autônoma de Buenos Aires: Fondo de Cultura Econômica, 2014, p. 46.
218
Deixem-me finalizar com uma conversa com uma orientanda de mestrado brilhante,
que certa ocasião me disse: “Você tem que entender que Le Corbusier é como Michelangelo,
e o ateliê é mesmo meio renascentista.
Não no sentido da dicotomia estilo versus causa, como quis Anatole Kopp457, mas
enquanto prática social: talvez a arquitetura esteja finalmente se tornando moderna.
457 . Kopp, A. Quando o moderno não era um estilo e sim uma causa. São Paulo: Nobel, 1990. Um livro
claramente escrito para confrontar o debate pós-moderno, tentando recuperar a potência da “fase heróica”
do modernismo arquitetônico.
219
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AGRADECIMENTOS
À UNICAMP, que eu escolhi para trabalhar quando me doutorei (e, por sorte,
fui por eles escolhida), cujo Departamento de História é um ambiente pra lá de
instigante do ponto de vista intelectual, cuja biblioteca de Ciências Humanas é
imbatível no pais (graças aos funcionários, à FAPESP, ao Michael Hall e ao saudoso
John Monteiro) e que, ao assinar bases bibliográficas eletrônicas como o JSTOR,
possibilitou essa o acesso a diversos materiais sem os quais, nada feito. Sem os livros
que eu encontrei na biblioteca e os muito textos que “baixei” não teria sequer
conseguido redigir o projeto de pesquisa.
Nunca imaginei ter uma irmã que parecesse uma madonna (a dos quadros do
Renascimento, não a cantora pop) e eis que encontro Cris Meneguello. Estranhamos
um pouco e discordamos muito, como irmãs, mas é a companheira de trabalho que eu
pediria a deus, caso acreditasse em algo, como ela. Até nisso a teimosa discorda de
mim. Cris é um dos vértices do que eu carinhosamente chamo de “quarteto”
fantástico, the fab four que tenho a honra de integrar com José Alves de Freitas Neto e
Iara Schiavinatto. Inteligência, carinho, cumplicidade, companheirismo,
conhecimento, amizade, aposta uns nos outros: nada falta ente nós quatro. Fundamos
uma linha de pesquisa à qual se juntou Aline Carvalho, que trouxe oxigênio e
criatividade à toda nossa conversa sobre patrimônio.
Leila Algranti, Stella Bresciani, Edgar De Decca (in memoriam) e Bel Marson
são companheiros de área de pesquisa que acima de tudo constituem um exemplo. Na
UNICAMP eu reencontrei intelectualmente – pois afetivamente nunca nos
desencontramos – Heloisa Pontes. Essa tese não existiria sem seu estímulo para que
eu publicasse o primeiro texto a respeito e sem os dois cursos que ministramos juntas
na pós. O que devo a ela não cabe nesses agradecimentos.
228
Em Paris, no gelado inverno de 2005-6, Stella Bresciani e Heloísa Pontes
viram comigo a exposição de Charlotte Perriand no Centre Pompidou. Como eu
literalmente enlouqueci achando que tinha descoberto um tema de pesquisa, o olhar
de confirmação das duas foi fundamental para que eu percebesse que não era surto,
era um bando de idéias dispersas que então se manifestavam. Merci, Stella e Helô.
Naquele mesmo inverno parisiense, quando fiz um breve pós-doc, Afrânio Garcia
também deu apoio à pesquisa que parecia ali nascer.
Ana Paula Simioni, Bibia Gregori, Paulo Garcez, Monica Schpun, Guita
Debert, Iara Beleli, Helena Sampaio, Ana Lanna, Simone Frangella, Fernanda Arêas
Peixoto, Renato Cymbalista, Joana Mello, José Lira, Marcelo Suzuki, Bia Cappello,
Flavia Nascimento, Vânia Carvalho, Sabrina Fontenele, Vânia Carvalho, Leopoldo
Waizbort, Sergio Miceli, Beatriz Kühl, Monica Junqueira, Wilton Silva, Omar
Thomaz e Silvio Oksman foram ajudando a iluminar o tema com conversas informais
aqui e ali, em caronas, cafés, jantares, viagens, bancas etc.
229
Stanislaus Von Moos, Carlos Comas, Beatriz Cappello, Carlos Comas e Saran
Topelson de Grinberg.
A Cris Fino, pela paciência com que editou Lina por escrito, e à Marina
Grinover pela parceria nesta empreitada.
Descobri David Hynes e sua esposa Judith Dwight por acaso na internet.
Trocamos mensagens, eles me receberam em sua casa com chá, vinho e informações
muito interessantes. E confiaram um álbum fotográfico, verdadeiro tesouro de família
a uma estranha que vinha de um pais distante. Thank you both, não tenho palavras
para exprimir meu contentamento naquele fim de semana perfeito em Portsmouth –
até um domingo ensolarado na Inglaterra vocês providenciaram para mim.
230
Ao arquivo de Grete Schütte Lihotzky em Viena e seus gentis funcionários,
pacientes com quem não fala alemão. Ao arquivo dos CIAM na ETH onde David me
ajudou a não me perder em meio a tanto documento interessante. Aos funcionários da
biblioteca da Fundação Calouste Gulbenkian, das bibliotecas de Paris, especialmente
a Cite d’Architecture et Patrimoine e o Musée des Arts Decóratifs. Pesquisar com
vista pra torre Eiffel ou pro Louvre foi mesmo inesquecível.
Costumo dizer que meus alunos só me dão alegria. Tenho a sorte de ter os
melhores orientandos e de ter conseguido estabelecer com eles um clima de
verdadeira troca de idéias. Obrigada, Anne Capello, Rafaela Martins, Alexandra
Tedesco, Sandro Valentini, Bruno Zorek, Ligia Moura, Fernanda Drummond,
Deborah Neves e Sabrina Fontenelle pela melhores manhãs de quinta-feira. Mesmo
quando o Brasil parecia desabar, nossas reuniões preenchiam o vazio com o sentido
que o conhecimento propicia. Obrigada por terem discutido minha pesquisa, como um
grupo como vocês tudo é melhor e mais desafiante.
Aos alunos de AU, que contribuíram para que, “pensando alto” durantes as
aulas, algumas ideias avançassem. Às meninas do Coletivo Charlotte Perriand:
quando minhas alunas fazem um coletivo feminista com um nome que vem da minha
pesquisa, é porque algo está dando muito certo.
231
Denise, minha irmã caçula, gostou do primeiro escrito e mais, me ensinou a
fazer os cinco ritos tibetanos que me ajudaram a manter, na medida do possível, a
calma e o pique. Rejane, minha irmã do meio, providenciou receitas de florais quando
o prazo parecia me roubar a calma necessária para escrever. Luciano, o mais novo de
todos, me defende, literalmente, das vilanias do mundo corporativo.
À minha avó materna, que quando eu era muito pequena – em plena guerra
fria – dizia que o american way of life (ou, o que era o pior, em suas palavras, o
imperialismo ianque) entrava nas nossas casas por meio do aspirador de pó e da
geladeira. E, diante de minha incredulidade infantil, recomendava que eu lesse os
romances de Grahan Greene, especialmente Nosso homem em Havana. Pois é, vó,
acho que vou reler. Então, começando pela minha avó Maria Antonieta Rangel,
dedico este trabalho ela, à minha mãe Zillah e à minha tia-madrinha Maria Zélia, in
memoriam. De certo, modo escrevi essa tese em homenagem a três mulheres que
devem ter vivido parte do sentimento de inadequação que minhas personagens
experimentaram, embora em uma experiência muito mais pedestre, anônima e sem
traço de glamur. Nada para elas foi fácil, e a pesquisa só aumentou esta certeza.
Oferto este trabalho às minhas sobrinhas Diana, Laura e Helena Vera Rubino,
esperando um futuro melhor.
E dedico também à minha amiga Lena Machado, que foi embora muito, muito
antes da hora. E, claro, à Mariza Correa. Sem ter lido Antropólogas e antropologia eu
jamais teria pensado em estudar as arquitetas.
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