A Onda Verde - Monteiro Lobato
A Onda Verde - Monteiro Lobato
A Onda Verde - Monteiro Lobato
ISBN 978-85-250-4999-5
Editora Globo S.A.
Av. Jaguaré, 1.485 – Jaguaré
São Paulo – SP – 05346-902 – Brasil
www.editoraglobo.com.br
[email protected]
Capa
Folha de Rosto
Créditos
Monteiro Lobato
Obra Adulta
Jornada de lutador
A ONDA VERDE
A onda verde
O “grilo”
A lua córnea
O incompreendido
Veteranos do Paraguai
Os eucaliptos
Os tangarás
O pai da guerra
Homo sapiens
Luvas!
Dramas de crueldade
Dialeto caipira
Os livros fundamentais
Condes...
Uruguaiana
O dicionário brasileiro
O 22 da Marajó
A arte americana
Homem de múltiplas facetas, José Bento Monteiro Lobato
passou a vida engajado em campanhas para colocar o país no caminho da
pioneiro.
Direito pelo mundo das letras, sem deixar de lado a pintura nem a
presidente negro. Neste seu único romance prevê, através das lentes
do “porviroscópio”, um futuro interligado pela rede de computadores.
De regresso dos Estados Unidos após a Revolução de 30, investe no
não o é.
Entronizado que seja um desses animais – o boi, vá lá! –, há de tudo
ressentir-se de imediata melhoria.
Os bois não falam, nem escrevem, de onde resulta impossível
conhecerem-se de antemão os pontos básicos da Magna Carta bovina;
entretanto, dadas as excelentes qualidades de caráter e coração reveladas
por eles até aqui, é lógico prever que a realeza de guampas será
infinitamente mais gentil que a dura realeza humana.
Quantas instituições, hoje meros sonhos de ideólogos, só então as
teremos! Uma delas é facilmente previsível: a Sociedade Protetora das
Crianças.
Porque não há maiores vítimas da crueldade e da incompreensão do rei
atual do que estes débeis serezinhos de carne tenra. Sobretudo as crianças
pobres...
Durante a guerra, quando a Alemanha bombardeava, passou alguma
vez ante os olhos do germânico flamívomo a imagem das pequeninas
vítimas?
E agora, que o aliado comodamente bombardeia com ultimatos piores
que obuses, passa pela mente dos estadistas a imagem das vítimas
pequeninas?
Quantas, a esta hora, na Alemanha, na Áustria, na Turquia, com
grandes olhos assustados, purgam nas torturas da fome o crime de guerra
cometido pelos pais?
Magras, dolorosas, entanguidas...
A meia ração geral estancou-lhes o leite do seio materno. O leite das
vaquinhas não existe mais. O Tratado de Versalhes as levou... Ah, os
Torquemadas do momento preveem até nos mínimos detalhes o requinte da
tortura. Clemenceau, Lloyd George, Foch, os grandes chefes tigrinos,
sabem que a dor nos filhos inocentes é o melhor castigo aos pais. E descem
aos estábulos em pacífica e risonha pilhagem às vacas...
Os processos da guerra e da paz são os mesmos. As armas, as mesmas.
Numa, großes Berthas que vomitam ferro e gases asfixiantes; noutra, großes
Clemenceaus que expluem artigos dundum e parágrafos recheados de gases
consumptores.
Artilheiros de 420 ou artilheiros de tratados: canibais que nunca
meditaram um instante nas inocentes vítimas dessa ferócia truculenta
chamada patriotismo, culto de sangue ao Moloch moderno: Pátria.
No Moloch fenício, de ferro incandescente, despejavam os sacerdotes
dezenas de criancinhas vivas para que o chiar das carnes, os gemidos e o
fumo aplacassem um deus.
No Moloch-Tratado os sacerdotes da Pátria despejam milhões de
criancinhas para que morram de consumpção, lentamente, e aplaquem as
iras do Baal Patriotismo.
A mesma estupidez sempre, sempre o mesmo requinte de crueza.
O grande princípio da justiça humana, consagrado pelo Deus carniceiro
inventado pelo homem à sua imagem e semelhança, resume-se nesta coisa
horrenda: o inocente pagará o crime do pecador. Princípio bíblico! Divino!
Princípio irredutível que dominou ontem com Herodes, domina hoje com os
Tigres, dominará amanhã sob os Lênins, porque é própria do homem a
iniquidade...
Mas há de a vida do planeta ficar assim ab eterno sob a regência da
iniquidade?
Todos os seres, transfeitos numa legião infinita de espoliados, hão de
eternamente curvar a cabeça à tirania?
Não! É forçoso que se opere a revulsão de tudo e que do poleiro desça
o rei mau.
Eia, pois, animais todos da Terra: basta de escravidão!
Levantai-vos, leões do Saara, tigres da Índia, onças do Brasil; e vós
todos, do ar, da água, da terra, cascavéis dos campos, lobos da Rússia,
bisões do Arizona, girafas, elefantes, rinocerontes, hipopótamos, hienas,
chacais, urubus, condores, tubarões, golfinhos: uni-vos!
É tempo de conspirar contra o gorila que evoluiu e, senhor da
Inteligência e da Má-fé, vos oprime a ferro e fogo.
A inteligência dele, bem o sabeis, é uma doença, uma hipertrofia
cancerosa do instinto. Só produz males. É a mãe do sofrimento. A guerra, a
fome, a peste são filhas suas, como são filhos seus todos os horrores que
fazem odiosa a vida na Terra: os deuses carniceiros, a mentira, a riqueza, a
miséria, o Estado, a lei, o cadafalso, a inquisição, o patriotismo, a farda.
Não possuís nada disso e sois felizes.
Resolveis vossos problemas com tamanho acerto que não tendes
problemas.
Que perfeição nas abelhas! A mais rudimentar colmeia constitui ideal
inatingível ao senhor da inteligência. As aves e os insetos sorriem dos seus
progressos de aviação. Os rouxinóis não lhes toleram os Carusos. Os ratos
zombam da guerra que eles lhes declaram. Os pombos apiedam-se da sua
pobreza de instintos. Esvoaçando num hospital, a mosca, tão bem
aparelhada para a vida, tão segura de voo, tão aguda de faro, tão precisa nos
fins, vê a miséria fisiológica do homem qual um monturo infecto de que só
ela sabe tirar bom partido.
Vossa vida, animais, é perfeita de ritmo e de beleza. Se nela há
perturbações; se vos estraçoam as aves a tiro; se vos deixam os ninhos
órfãos para que morram de fome os implumes inocentes; se vos pescam nas
águas com armadilhas traiçoeiras; se todas as vossas passagens andam
tramadas de arapucas, de mundéus, de ratoeiras; se vos roubam os ovos no
ninho ou o mel nas colmeias; se vos aprisionam em gaiolas os cantores e em
jaulas os que sabem defender-se; se vos jungem às carroças, a carros
pesadíssimos, à canga dos arados; se vos furam o focinho para meter
argolas dolorosas; se vos enfreiam a boca de ferros cruéis; se vos caçam no
mar a arpão de aço e na terra a balas explosivas; se penduram nos açougues
a carne dos vossos cadáveres; se vos invadem todos os domínios, e vos
incendeiam os campos, e vos inundam as matas, e vos secam as águas, e
vos drenam os pântanos – é ele que o faz. Ele, o macaco glabro, o rei por
maquiavelice da má inteligência. Ele, o cultor consciente da arte da dor.
Em toda parte está o Homo como o próprio mal encarnado, matando,
esfolando, torturando, saqueando, desnaturando, perturbando a harmonia
das coisas.
Em proveito próprio, ao menos?
Oh, não!
E não porque a maior vítima do homem ainda é o próprio homem.
Lobo de si próprio. Torquemada dos seus próprios filhinhos inocentes, o
homem é Prometeu roendo com seus próprios dentes o próprio fígado.
Que esperar, pois, da realeza dum calceta desta marca?
Animais todos da Terra, basta de submissão! Uni-vos!
Luvas!
em cima.
Mas o menino cresce, atinge a puberdade e entra a perturbar-se diante
da mulher. Ama. A aurora do primeiro amor intumesce-lhe o coração,
recheia-o de sentimentos vagos, novos, nunca experimentados. E ele cai a
fundo em Casimiro de Abreu. A sua virgem está lá nos versos do poeta; é
aquela mesma rolinha esquiva que se oferece e negaceia, e fugindo o fere
com a flecha do Partho.
Suas tremuras, sua vermelhidão, seu enleio, seus desejos, tudo lhe
traduz o poeta encantador dos 16 anos, esse eterno Casimiro que morreu na
cruz para redimir Querubim da tortura de sentir e não saber dizer.
As meninas, já essas vão todas para Escrich. Só Escrich sabe o segredo
de interessar a sensibilidade das nossas “meninas e moças”.
Em Escrich ama-se com furor, pelos processos embriagadores do
“romantismo do coração”. A vida ali é uma coisa só: amor. A ação: amar. O
objetivo, o fim supremo de tudo: cair nos braços do objeto amado ou
traduzindo isso na linguagem utilitária da mulher: casar.
Mil cidadezinhas pelo interior do Brasil existem onde, em matéria de
leitura, de pais a filhos, gerações sucessivas gravitam em torno desse trio:
Tereza, Carlos Magno, Escrich.
Tereza, sempre escondida, surge da toca quando lhe passa ao pé um
adolescente. É a fada boa dos 14 anos.
Escrich vive às claras, em cima das cômodas, na gaveta dos toucadores,
nos cestinhos de costura. É o cicerone dos corações que soletram. Quem
examinar um desses Escrich de edição barata verá que prodigiosa legião de
olhos – olhos verdes, azuis, negros, castanhos, lindos olhos quase todos – já
lhe choraram sobre as páginas amarelidas e encardidas. De cantos puídos e
folhas uma a uma assinaladas com dobrinhas marcadoras de interrupção da
leitura, alçam-se tais livros à categoria de entidades veneráveis, dignas do
maior respeito. Sem donos, em geral, circulam de mão em mão, em
empréstimos sucessivos, como bens pertencentes à comunidade. E de tanto
uso chegam literalmente a gastar-se, como velhas notas de mil-réis.
Disto se vê que as letras nacionais só forneceram até hoje um livro de
influência marcada na formação popular: as Primaveras de Casimiro Patativa.
Os mais vieram da península, com a pimenta e o queijo do reino.
Só nacionalizamos, portanto, o amor – e o amor masculino, apenas.
Para o resto o nosso povo ainda é colono. E assim será enquanto a literatura
for entre nós planta de estufa – desabrochada em flores como as quer a elite,
e enquanto a pedagogia for a própria arte de secar as crianças com o
didatismo cívico, criando, logicamente, o irredutível horror à leitura que
caracteriza o brasileiro.
Condes...