A Onda Verde - Monteiro Lobato

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Créditos

© Editora Globo, 2009


© Monteiro Lobato
sob licença da Monteiro Lobato Licenciamentos, 2007
 
Todos os direitos reservados.
 
Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e estocada em sistema de banco de dados ou processo
similar, em qualquer forma ou meio, seja eletrônico, de fotocópia, gravação etc. sem a permissão dos
detentores dos copyrights.
 
Edição: Cecília Bassarani (coordenação) e Luciane Ortiz de Castro
Edição de Arte: Adriana Bertolla Silveira
 
Consultoria e pesquisa: Marcia Camargos e Vladimir Sacchetta
Preparação de texto: Margô Negro
Revisão: Márcio Guimarães de Araújo e Página Ímpar
Produção editorial: 2 Estúdio Gráfico
Direção de arte: Adriana Lins e Guto Lins / Manifesto Design
Projeto gráfico: Manifesto Design
Designer assistente: Nando Arruda
Editoração eletrônica: Susan Johnson
Diagramação para ebook: Janaína Salgueiro
 
Créditos das imagens: Acervo Cia. da Memória (páginas 10, 12 e 13);
Arquivo Família Monteiro Lobato (página 6); Biblioteca Guita e José Mindlin (página 15)

ISBN 978-85-250-4999-5

  
Editora Globo S.A.
Av. Jaguaré, 1.485 – Jaguaré
São Paulo – SP – 05346-902 – Brasil
www.editoraglobo.com.br
[email protected]
Capa

Folha de Rosto

Créditos

Monteiro Lobato

Obra Adulta

Jornada de lutador

A ONDA VERDE

A onda verde

O “grilo”

A lua córnea

O incompreendido

Veteranos do Paraguai

Os eucaliptos

Os tangarás
O pai da guerra

Homo sapiens

Luvas!

Dramas de crueldade

Dialeto caipira

Os livros fundamentais

Condes...

Uruguaiana

O dicionário brasileiro

O 22 da Marajó

A arte americana

Bibliografia selecionada sobre Monteiro Lobato


Monteiro Lobato

Monteiro Lobato, por J.U. Campos.

 
 
 
 
 
 
 
 
 
Homem de múltiplas facetas, José Bento Monteiro Lobato
passou a vida engajado em campanhas para colocar o país no caminho da

modernidade. Nascido em Taubaté, interior paulista, no ano de 1882,

celebrizou-se como o criador do Sítio do Picapau Amarelo, mas sua

atuação extrapola o universo da literatura infantojuvenil, gênero em que foi

pioneiro.

Apesar da sua inclinação para as artes plásticas, cursou a Faculdade

do Largo São Francisco, em São Paulo, por imposição do avô, o Visconde

de Tremembé, mas seguiu carreira por pouco tempo. Logo trocaria o

Direito pelo mundo das letras, sem deixar de lado a pintura nem a

fotografia, outra de suas paixões.


Colaborador da imprensa paulista e carioca, Lobato não demoraria a

suscitar polêmica com o artigo “Velha praga”, publicado em 1914 em O


Estado de S. Paulo. Um protesto contra as queimadas no Vale do

Paraíba, o texto seria seguido de “Urupês”, no mesmo jornal, título dado

também ao livro que, trazendo o Jeca Tatu, seu personagem símbolo,

esgotou 30 mil exemplares entre 1918 e 1925. Seria, porém, na Revista


do Brasil, adquirida em 1918, que ele lançaria as bases da indústria

editorial no país. Aliando qualidade gráfica a uma agressiva rede de

distribuição, com vendedores autônomos e consignatários, ele revoluciona

o mercado livreiro. E não para por aí. Lança, em 1920, A menina do


narizinho arrebitado, a primeira da série de histórias que

formariam gerações sucessivas de leitores. A infância ganha um sabor

tropical, temperado com pitadas de folclore, cultura popular e,

principalmente, muita fantasia.

Em 1926, meses antes de partir para uma estada como adido

comercial junto ao consulado brasileiro em Nova York, Lobato escreve O

presidente negro. Neste seu único romance prevê, através das lentes
do “porviroscópio”, um futuro interligado pela rede de computadores.
De regresso dos Estados Unidos após a Revolução de 30, investe no

ferro e no petróleo. Funda empresas de prospecção, mas contraria

poderosos interesses multinacionais que culminam na sua prisão, em 1941.

Indultado por Vargas, continuou perseguido pela ditadura do Estado Novo,

que mandou apreender e queimar seus livros infantis.

Depois de um período residindo em Buenos Aires, onde chegou a

fundar duas editoras, Monteiro Lobato morreu em 4 de julho de 1948, na

cidade de São Paulo, aos 66 anos de idade. Deixou, como legado, o

exemplo de independência intelectual e criatividade na obra que continua

presente no imaginário de crianças, jovens e adultos.


Obra Adulta[1]
CONTOS
• URUPÊS
• CIDADES MORTAS
• NEGRINHA
• O MACACO QUE SE FEZ HOMEM
 
ROMANCE
• O PRESIDENTE NEGRO
 
JORNALISMO E CRÍTICA
• O SACI-PERERÊ: RESULTADO DE UM INQUÉRITO
• IDEIAS DE JECA TATU
• A ONDA VERDE
• MISTER SLANG E O BRASIL
• NA ANTEVÉSPERA
• CRÍTICAS E OUTRAS NOTAS
 
ESCRITOS DA JUVENTUDE
• LITERATURA DO MINARETE
• MUNDO DA LUA
 
CRUZADAS E CAMPANHAS
• PROBLEMA VITAL, JECA TATU E OUTROS TEXTOS
• FERRO E O VOTO SECRETO
• O ESCÂNDALO DO PETRÓLEO e GEORGISMO E COMUNISMO
 
ESPARSOS
• FRAGMENTOS, OPINIÕES E MISCELÂNEA
• PREFÁCIOS E ENTREVISTAS
• CONFERÊNCIAS, ARTIGOS E CRÔNICAS
 
IMPRESSÕES DE VIAGEM
• AMÉRICA
 
CORRESPONDÊNCIA
• A BARCA DE GLEYRE - VOLUMES 1 E 2
• CARTAS ESCOLHIDAS - VOLUMES 1 E 2
• CARTAS DE AMOR
Jornada de lutador

Colheita de café no interior paulista


 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Monteiro Lobato deixou na imprensa um leque


diversificado de temas saídos da sua produção jornalística. Reunindo aqui
uma série de artigos, este livro tem como mote o café, que, em sua longa
viagem desde a África, correu mundo testando climas e solos. No Brasil, a
onda verde aportou no Rio de Janeiro, espalhou-se pelo Vale do Paraíba e,
bordejando a Serra da Mantiqueira, seguiu até Campinas, no oeste paulista,
onde “arranchou de vez, para sempre, em sua casa”. Ao lado dela, o grileiro
aparece como semeador do progresso comparável ao bandeirante e aos
cruzados de outrora. Inescrupuloso e amoral, mas necessário, na opinião de
Monteiro Lobato, ele precede a lavoura cafeeira, desbravando terras
devolutas depois vendidas aos colonos e firmando-se, assim, como fator
decisivo para o “arranque” das regiões dominadas pelo latifúndio
improdutivo. Ali, diz o pesquisador Humberto Marini, os incontroláveis
cafezais só se detêm diante das geadas.
Pois é neste cenário agreste, com seus coronéis decadentes a transpirar
“falsa grandeza, favores do governo, amantes manteúdas a se extasiarem
com os filmes de John Barrymore”, que o cinema surge com força
irrefreável. Em “A arte americana”, Lobato aponta o papel de renovação da
imagem em movimento, cuja importância como vetor da modernidade ele
foi um dos primeiros a detectar. Fascinado pela sétima arte, pontua que o
Brasil do futuro não se forjava aqui. “Vem em películas de Los Angeles,
enlatado como goiabada”, afirmou em “A lua córnea”, enquanto já antevia a
ascensão da influência dos Estados Unidos, que, aos poucos, tomavam o
lugar da França no imaginário latino-americano. “E a dominação yankee vai
se operando de maneira agradável, sem que o assimilado o perceba.”
Redação do jornal O Estado de S. Paulo, 1918
 
Como se vê, Lobato enxergava o futuro. Em um dos seus raros textos
sobre futebol, por exemplo, confirma sua conversão em entretenimento de
massa. “Hoje, alastrado de Norte a Sul, transformou-se quase em praga,
conseguindo, só ele, interessar vivamente, exaltadamente, delirantemente, o
nosso povo”, registrou em “O 22 da Marajó”. Ele ainda satiriza o abuso do
emprego de termos técnicos em inglês como grounds, corners, hands ou goal-keepers
e faz um paralelo desta modalidade esportiva com a capoeira. “Teve seus
períodos áureos, produziu seus Friedenreichs e afinal acabou perseguida
pelo governo, com grande mágoa dos tradicionalistas que viam nela uma
das nossas poucas coisas de legítima criação nacional.”
A maneira muito particular de Lobato desfiar sua ironia, expondo sem
meias-tintas o que o jornalista Barbosa Lima Sobrinho definiu de “mazelas
inúmeras da sociedade brasileira”, beira a caricatura em “Condes”, texto
sobre a nobreza arrivista de São Paulo. “Erro foi da República, e grande,
suprimir as distinções nobiliárquicas, visto que o crachá tem suas raízes na
própria natureza humana.” E, com o humor cortante de sempre, lembra que
a “fauna condal” teria ao menos o mérito de abrigar sob suas asas protetoras
legiões de jornalistas, revisteiros, poetas e pintores que, sem ela, acabariam
vivendo à custa do governo.
 

Cena da Guerra do Paraguai


 
No trato cotidiano do jornalismo, Lobato selecionou para enfeixar em
Onda verde três reflexões sobre diferentes conflitos bélicos. “Uruguaiana”, que
traz passagens inéditas do diário do engenheiro e abolicionista baiano
André Rebouças, bem como “Veteranos do Paraguai” aborda as lutas contra
o nosso vizinho, mas ambos criticam as atrocidades cometidas. “O pai da
guerra”, por sua vez, escrito sob a forte impressão do confronto mundial
que entre 1914 e 1918 devastou o Velho Continente, denuncia o Estado,
várias vezes chamado por Lobato de cancro, como único responsável por
fazer do povo a carne sofredora e o bode expiatório das suas manobras
interesseiras e maquiavélicas.
Neste volume há ainda considerações sobre literatura e dialeto caipira.
Mas será “Homo sapiens”, tido como um dos seus escritos mais pessimistas,
que trará a marca do inconformismo visceral contra a brutalidade do
homem perturbador da harmonia da natureza. Como ressaltou na Revista do
Brasil de 1921 J. A. Nogueira, colega dos tempos de estudante na república
do Minarete, Lobato esculpia em relevo sua indignação contra uma pátria
muito distante daquela com a qual sonhava: “Seu estilo, todo feito de
imagens que nunca mais esquecem a ninguém, é um poderoso reflexo de
uma consciência revolta contra a mentira viva que somos”, disse ele,
frisando que este volume representava, no fundo, uma “jornada de lutador”.
 
Marcia Camargos
 
A onda verde, capa da 1ª edição
A ONDA VERDE
A onda verde

A quem viaja pelos sertões do chamado oeste de São


Paulo empolga o espetáculo maravilhoso da preamar do café. Aquela onda
verde nasceu humilde em terras fluminenses. Tomou vulto, desbordou para
São Paulo e, fraldejando a Mantiqueira, veio morrer, detida pela frialdade
do clima, à beira da Paulicéia.
Mas não parou. Transpôs o baixadão geento e foi espraiar-se em
Campinas.
Ali começou mestre Café a perceber que estava em casa. Corredor de
mundo, viajante exótico vindo da Arábia ou da África, provara pelo
caminho todos os massapés e sondara todos os climas.
Franzia o nariz, porém. Veio sorrir ali, ao pisar esse oásis do rubídio
que é o oeste paulista. E arranchou de vez, para sempre, em sua casa.
Repete-se, então, o movimento bandeirante de outrora. Atrai o homem
aventureiro não mais o ouro dissimulado em pepitas no seio da terra, mas o
ouro anual das bagas vermelhas que se derriçam em balaios.
A região era todo um mataréu virgem de majestosa beleza.
Rasgara-o a facão o bandeirante antigo, por meio de picadas; o
bandeirante moderno, machado ao ombro e facho incendiário na mão, vinha
agora não penetrá-lo, mas destruí-lo.
Almas fechadas ao contemplativismo, nunca lhes amolentou o pulso a
beleza augusta dos jequitibás de frondes sussurrantes como o oceano, nem o
vulto grave das perobeiras milenárias.
Sua ambição feroz preferia a beleza da desordem natural à beleza
alinhada da árvore que dá ouro. Só esta forma de beleza tem amavios
capazes de enlevar a alma fria do paulista. Para ver estadeada ante os olhos
a sua beleza – coisa nova no mundo e criação genuinamente local –,
derrubou, roçou e queimou a maravilhosa vestimenta verde do oásis. Desfez
em decênios a obra-prima que a natureza vinha compondo desde a infância
da Terra.
Confessemos: um espetáculo vale o outro.
Nada mais soberbo – e nada desculpa tanto o orgulho paulista – do que
o mar de cafeeiros em linha, postos em substituição da floresta nativa.
É de enfunar o peito a impressão de quem pela primeira vez navega
sobre o oceano verde-escuro. Horas a fio, num Pullman da Paulista ou num
carro da Mogiana, a cortar um cafezal só – milhões e milhões de pés que
ondulam por morro e vale até se perderem no horizonte confundidos com o
céu... Um cafezal só, que não acaba mais, sem outras soluções de
continuidade além do casario das fazendas e dos pastos circunjacentes...
Para quem necessita revitalizar as energias murchas e esmaltar-se de
indestrutível fé no futuro destas regiões do sul, nada melhor do que um raid
pelo mar interno da rubiácea.
Mas a árvore do ouro só o produz à custa do sangue da terra. É
exuberante na produção da baga vermelha, mas insaciável de húmus.
Polvo com milhões de tentáculos, o Café rola sobre a mata e a soverte.
Nada o sacia. Já comeu as zonas ubérrimas de Ribeirão Preto, Jaú, São
Manuel, Araraquara, os pedaços de ouro de São Paulo e agora afunda os
dentes na carne virgem, tressuante de seiva, do Paraná e de Mato Grosso.
Nada lhe detém a ofensiva irresistível. Não a paralisam geadas
monstruosas como a de 1918; nem a inépcia dos governos – que chegou a
barrar-lhe o caminho com a cerquinha de taquara de uma proibição de
plantio; nem as taxas e sobretaxas excessivas; nem os impostos de saída;
nem a jogatina de Santos; nem a mentalidade altista, loucamente
esbanjadora, do fazendeiro.
Caminha sempre. Tanque monstruoso, vivo mas inconsciente, cego mas
instintivo, lá rola hoje rumo noroeste, para diante, sempre para diante...
O café é uma epopéia. Quando nossa literatura largar o chazinho que
beberica no Alvear e compreender a sua verdadeira missão, a epopéia, a
tragédia, o drama e a comédia do café serão os grandes temas de quantos
sentirem em si a fagulha divina. Hoje, coitadinha, anda ela tão entretida
com o seu chá das cinco, com rodopios em torno de meninas histéricas, com
a cintura dos almofadinhas, com as escorrências mercuriais que o francês
nos exporta, que é bom, mesmo, não se meta a estragar com mãos de mico o
nobre tema.
Que fôlego é mister!
Que amplitude de visão, que dureza d’alma, que sobre-humana
coragem para ver, sentir e contar a história da Onda Verde que digere as
florestas virgens!
Os aspectos antigos – o eito de negros tocado a bacalhau – e os
aspectos modernos – a bravura do italiano, encardido de óxido de ferro. As
hostes de sertanejos, os mais rijos do Brasil, que descem pelo inverno dos
socavões da Bahia, de machado às costas e uma fúria de destruição nos
músculos. O duelo entre esses heróis de dentes apontados a faca e a seiva
bruta. O machado que canta no róseo das perobas. A foice que risca a
miuçalha vegetal. A queimada, depois... E depois o sertanejo que volta à
querência com o dinheiro no lenço – pago e repago da faina com o
espetáculo fulgurante da queimada que leva impresso na retina.
Eles destroem, mas não sabem construir. Entra em cena, para construir,
o colono europeu e começa o drama da formação: quatro anos de enxada no
pulso, de corrida paciente atrás de um mato que “corre atrás da gente”. A
vitória, afinal, a florada nívea – quando não, como em 1918, uma prematura
florada de neve...
O assunto arrasta. Voltemos atrás.
A penetração do café nas terras novas escreve capítulos curiosíssimos,
oscilantes entre o trágico e o cômico.
Faz-se por bem ou por mal – quase sempre por mal. O primeiro passo é
a criação da propriedade de título líquido. Sem esta base não pode surgir a
fazenda, que é uma empresa de vulto, exigidora de capitais. A propriedade
cria-se hoje, como outrora, pela conquista do mais forte, pela espoliação
levada a cabo pelo mais audacioso, pelo mais despido de escrúpulos.
Um homem tímido e perfeitamente moral chega ao sertão e não topa
brecha onde pôr o pé. Encontra-o deserto – mas apossado. Não vê gente –
mas sente donos. Se quer comprar, ninguém lhe vende. Ninguém lhe
arrenda. Ninguém lhe arrenda nem lhe aluga. Os detentores, zelosos de uma
posse tradicional de pais a filhos, não querem vizinhos que lhes perturbem a
paz do latifúndio. E o homem moral volta para trás desanimado.
Mas surge o grileiro e tudo se transforma. Terras paradas, terras
inexpugnáveis à cultura, que velhos barbaças detêm aos milheiros de
alqueires para delas tirar um prato de feijão e uns porquinhos de ceva, e que
vêm vindo assim de avós a netos e que permaneceriam assim toda a vida;
terras devolutas, que a inércia do Estado conserva a monte, sem saber por
que nem para quê; terras legitimamente, legalmente “aproprietariadas” –
nada disso é obstáculo à solércia do grileiro. Ao partir para o sertão ele
deixou em casa, na gaveta, os escrúpulos da consciência. Vem firme, vem
“feito“ como um gavião. Opera as maiores falcatruas; falsifica firmas,
papéis, selos; falsifica rios e montanhas; falsifica árvores e marcos; falsifica
juízes e cartórios; falsifica o fiel da balança de Têmis; falsifica o céu, a terra
e as águas; falsifica Deus e o Diabo. Mas vence. E por arte dessa obra-
prima de malabarismo, espoliando posseiros ou donos, sempre firmados na
gazua da lei, os grileiros expelem das terras, num estupendo parigato, todos
os “barbas ralas” que ali vivem parasitariamente, tentando resistir ao
arranque da civilização.
Divididas as glebas em lotes, vendem-nas os grileiros à legião de
colonos que os seguem como urubus – pelo cheiro da carniça. E o grilo, se
foi bem-feito, é inexpugnável e provoca admiração; se foi malfeito, fracassa
e é apupado pelos embaídos.
Num sertão modorrento, quando a presença de um advogado ou
agrimensor esperta os velhos moradores, a uma voz eles murmuram – e se
não murmuram sentem-no lá dentro das tripas:
– Nosso tempo acabou...
E acaba, de feito. Acaba o marasmo da terra porque o grileiro é o
precursor da Onda Verde. O seu cri-cri anuncia a aproximação do tanque.
Cinco, dez anos depois, a flor do café branqueia a zona e a incorpora ao
patrimônio da riqueza nacional.
O peregrino espírito de Assis Chateaubriand já explanou em traços
gerais, mas incisivos, esta função social e civilizadora do grilo. Definiu-o a
arte de tirar o direito do nada. É isso. É a vitória da gazua do mais forte.
– Mas é uma gazua! Abre as portas do sertão, mas é uma chave falsa!...
– diz a moral.
Responde o Café:
– Minha fome está acima da moral, e eu só conheço as leis do meu
apetite.
Há fomes simpáticas, não resta dúvida...
O “grilo”

Insistente nas palestras como certas moscas em dia de


calor é, nas regiões do noroeste, a palavra “grilo”. “Grilo” e seus derivados,
“grileiro”, “engrilar”, em acepção muito diversa da que devem ter entre os
nipônicos, em que grileiros engrilam grilos de verdade em gaiolinhas, como
fazemos aqui com o sabiá, o canário, o pintassilgo e mais passarinhos tolos
que morrem pela garganta.
Em certas zonas chega a ser obsessão. Todo mundo fala em terras
griladas e comenta feitos de grileiros famosos.
E agora que o grilo penetrou na arte, e vai perpetuar-se em mármore e
bronze no monumento da Independência[2], vem a talho de foice um
apanhado geral sobre a conspícua instituição – viveiro onde se fermenta a
aristocracia dinheirosa de amanhã.
As velhas fidalguias da Europa entroncam no banditismo dos cruzados.
Ter na linhagem um facínora encoscorado de ferro, que saqueou, queimou,
violou, matou à larga no Oriente, é o maior padrão de glória de um marquês
da França. Ter entre os avós um grileiro de hoje vai ser o orgulho supremo
dos nossos milionários futuros. Matarás, roubarás são os mandamentos de
alto bordo do decálogo humano, eternos e irredutíveis, que a ingênua lei de
Moisés tentou inverter, antepondo-lhes um inócuo “não”.
Grilo é uma propriedade territorial legalizada por meio de um título
falso; grileiro é o advogado ou “águia”, qualquer manipulador de grilos;
terras “grilentas” ou “engriladas”, as que têm maromba de alquimia forense
no título.
Como o grilo proliferou no noroeste mais do que o permite o
coeficiente tolerável da patota humana, as conversas ressentem-se ali de
muita insistência no assunto.
– Vou comprar terras do grilo do doutor Honestino dos Anjos.
– Não caia nessa! O Honestino é um grileiro sujo. Qualquer dia
escangalham-lhe com a patota. Grilo de primeiríssima, que dá gosto, é o do
Pizarro! Esse, sim...
Porque há grilos geniais, obra de verdadeiros Cagliostros2 encarnados
nos bacharéis do “venerando mosteiro”; e os há ineptos, mancos, fabricados
aí por meros “curiosos” da trampolinagem, sem dedo para a coisa.
Aqueles gozam de toda a consideração social devida aos mestres de
vistas largas, ao passo que estes o povo os cobre de irrisão.
– Ali vai o senador Pizarro, um grileiro macota!
– E que me diz do doutor Cunha?
– Um sujo. Borrou-se com aquele grilinho indecente da Pedra Azul e
anda agora a tentar outro mais inepto ainda. É um crime deixar a polícia
soltos pelas ruas tipos dessa ordem...
– Não tem a pinta!...
– É isso.
O grileiro é um alquimista. Envelhece papéis, ressuscita selos do
Império, inventa guias de impostos, promove genealogias, dá como sabendo
escrever velhos urumbebas que morreram analfabetos, embaça juízes,
suborna escrivães – e, novo Jeová, tira a terra do nada. Seu laboratório
lembra as espeluncas dos Faustos medievais; mais prático, porém, não
procura ali a pedra filosofal ou o elixir da longa vida. Fausto virou rábula:
manipula a propriedade.
Envelhecer um título falso, “enverdadeirá-lo”, é toda uma ciência. Mas
conseguem-no. Dão-lhe a cor, o tom, o cheiro da velhice, fazem-no muitas
vezes mais autêntico do que os reais. Expõem-no ao fumeiro, a tal distância
da fumaça conforme o grau de ancianidade requerido, e conseguem assim a
gama dos amarelidos, segredo até aqui do Tempo.
Enquanto o papel se defuma, fazem-lhe aspersões sábias que lhe deem
a rugosidade peculiar às celuloses de antanho.
Finalmente, para impregná-lo do cheirinho, do bouquet dos decênios,
passeiam-no a cavalo, metido entre o baixeiro e a carona...
E mais coisas fazem que os leigos não pescam e constituem o segredo
do “ponto de bala”.
Mas tudo isso às vezes é pouco. Veste o lobo a pele da velhice e fica
com o rabo da mocidade de fora...
Conta-se de um grilo superiormente engenhado que faliu por artes de
um raio de sol. O documento engrilado era perfeito, sem o mínimo cochilo
por onde o advogado contrário, preposto a destramar a marosca, pudesse
levantar a perdiz. Por mais que virasse e revirasse o papel, e analisasse a
letra, e cotejasse os dizeres, e cheirasse, e apalpasse, não atinava com o
calcanhar de Aquiles. Já com dor de cabeça ia pôr de parte o grilo, quando
Apolo intervém. Um raio de sol entra pela janela e dá de chapa contra o
título. Àquela súbita e intensa iluminação o perito pôde vislumbrar as letras
d’água com que a fábrica marcara o papel. Lá estava a estrela da República
naquele documento do século XVII...
Ao trabalhinho de laboratório aliam-se ao ar livre os atos anexos e
complementares – violências, suborno, incêndio de cartórios, sumiço de
autos etc.
Porque o grilo é proteiforme e para completar-se sobe até a óptica,
subornando até os teodolitos dos engenheiros.
Que prodígios não opera neste campo! O primeiro é substituir a
corrente, o podômetro, o teodolito, a trigonometria e o mais por um
instrumento só, de alta engenhosidade: o olhômetro.
Só o olhômetro merece fé aos grileiros, esse aparelho maravilhoso, de
criação nossa, e já muito usado pelos governos em estudos estatísticos.
Por intermédio do olhômetro mudam-se os cursos dos rios, passa-se um
afluente da margem esquerda para a direita, criam-se

cachoeiras em sítios onde o nível é manso e operam-se quantas mais


revoluções geográficas se fazem mister à patota.
Um grileiro está na posse do nome de um rio que a natureza esqueceu
de criar; se ele consegue localizar esse rio no mapa, o grilo sairá de
primeiríssima. E lá vai ele, com o rio às costas, em procura de colocação...
A outro fazia grande conta uma cachoeira em certo ponto das divisas.
O homem não pestaneja: constrói a cachoeira. Os contrários protestam.
Há intervenção judiciária. Na vistoria chamam para perito o morador
mais antigo das redondezas. O caboclo chega, defronta-se com a cachoeira
fantástica e abre a boca. Há 50 anos que vive ali, conhece a zona como a
palma de sua mão – como é que nunca viu aquele “poder d’água”,
barulhento e atravancador? Mas desconfia – e entrando na água desfaz com
dois pontapés a cachoeira de mentira, que lá rola, rio abaixo, transformada
em tranqueira de galhaça e cipós... Era uma cachoeira grilo...
O grilo come nas terras apossadas pelos caboclos mal apetrechados
contra os percevejos da lei, tanto quanto nas terras devolutas, as quais,
engriladas a norte, sul, leste e oeste, estão se derretendo como torrão de
açúcar n’água.
Calcula uma autoridade no assunto em três milhões de alqueires a área
das terras griladas no noroeste. E esses milhões caminham para quatro,
visto como agora a indústria do grilo passou a interessar os altos paredros
da política, verdadeiras piranhas em matéria de voracidade.
Não há exagero no cálculo de três milhões, sabendo-se que há grilos de
duzentos, trezentos e quatrocentos mil alqueires – territórios equivalentes à
metade da Bélgica, quase a Saxônia, e tamanhos como antigos ducados e
principados alemães!...
Verdade seja que estes grilos são os grilos-mães, os canhões 420 da
espécie.
Um existe de 480 mil alqueires – o rei dos grilos –, notável não só pelo
tamanho como pela perfeição da sua gênese.
É o grilo recorde, e merece publicidade para lição dos que querem
enriquecer depressa mas andam por aí a malbaratar o engenho com
patotinhas vagabundas.
Na posse de um título autêntico que lhe dava domínio sobre três mil
alqueires, um dos nossos águias resolve tomá-lo como base para um grilo.
Estuda bem o caso e um dia requer cópia dos autos onde vinha a partilha da
gleba em questão, delimitada de um lado nestes termos: “[...] e daí em linha
reta de duas léguas, até encontrar o rio tal”.
Ao chegar neste ponto, o escrevente do cartório, que tirava a cópia,
sofre uma alucinação ótica e escreve “vinte e duas léguas” onde estavam
“duas”. Mesmo fora das bebedeiras é comum esta visão dupla das coisas,
que há de ter em medicina um nome grego. Concluída a cópia, vai ela ao
juiz para os sacramentos. Juiz, promotor e coletor subscrevem-na, depois de
lançados o “conferido e concertado” do estilo. Mas nenhum deles realmente
conferiu nem concertou coisa nenhuma, de acordo com a mais louvável das
praxes, porque é preciso ter confiança no escrivão, que diabo! E destarte o
grileiro entrou na posse duns autos tão autênticos perante a lei quanto os
originais.
Intervalo de quinze minutos.
Um advogado surge no cartório e pede vista dos autos originais.
Obtém-na, passa recibo e leva para casa o calhamaço.
Terceiro quadro: dias depois o grileiro denuncia esse advogado como
tendo perdido o papelório. O juiz se assanha e intima o advogado a entregá-
lo sob as penas da lei: prisão ou reconstrução dos autos perdidos. O
advogado, consternadíssimo, alega que de fato os perdeu – e segue para o
xadrez como um verdadeiro mártir da urucubaca. E lá, entre grades, antes
de meditar Silvio Pellico e Dostoievski, sente na cabeça o famoso estalo de
Arquimedes:
– Heureca!...
Lembra-se de que em mãos de um amigo existe cópia conferida e
concertada e compromete-se a dá-la em troca do original que o saci
(evidentemente o saci!...) lhe furtara da gaveta.
Quarto ato: deferimento do juiz, soltura do advogado preso e solene
entrada em cartório do grilo triunfante, com as vinte e duas léguas em vez
de apenas duas. Cai o pano. Reacendem-se as luzes e o grileiro de gênio
entra na posse de quatrocentos e tantos mil alqueires de terra em vez dos
miseráveis três mil primitivos.
É ou não um rasgo yankee, merecedor dum filme?
Não se conhecem os nossos progressos lá fora. Não imaginam o galope
do nosso cavalo.
Galope tão grande que já se reflete na língua. Todos os dias o povo
surge com palavras novas que deem medida à evolução da esperteza. Para
batismo destes looping the loop da aviação forense só entre os bichos que voam
encontra o povo analogias competentes: águia, grilo, aguismo.
Mas não basta. Há necessidade de formas novas, combinações
estapafúrdias, conúbios de rapinagem de alta envergadura com ruminantes
de pé ultraligeiro. Só estas cabriolas vocabulares têm força expressiva no
caso.
Ouvimos uma vez, em roda onde se comentavam estes tremendos
malabarismos, cair em crise de entusiasmo um dos ouvintes; piscou, faiscou
os olhos e improvisou este soberbo jato de impressionismo zoológico, única
forma capaz de dizer toda a imensidade da sua admiração:
– Que cabras águias!
A lua córnea

Meio século depois da descoberta do Brasil, um


sábio da Holanda, Fabricius, notou pela primeira vez a ação negrejante da
luz sobre um sal de prata. As invenções naquela época eram em extremo
lentas no evoluir – engatinhavam, andavam de muletas, com estações de
desesperantes soneiras pelo caminho. O fato observado por Fabricius era o
primeiro passo da fotografia; para chegar ao segundo, ao passo industrial
dado com Niepce e Daguerre, foram precisos quase três séculos de
incubação em numerosos cérebros, alguns superiormente dotados na bossa
inventiva, como no caso de Humphry Davy e Wollaston.
Se esses precursores ressuscitassem hoje, que assombro diante das
consequências maravilhosas em que se desabrochou a singela reação solar
sobre o cloreto de prata – ou lua córnea, como lhe chamavam então!
A fotografia virou um dos elementos fundamentais do mundo moderno.
Não há ciência nem indústria que não deva a esse instrumento insubstituível
muito dos seus atuais progressos. O que ela possibilitou não tem conta,
como é imprevisível o muito que ainda traz latente no bojo.
Quando parecia estacionada, tendo já dado de si tudo, abrolha da
grande árvore um galho novo, imprevisto, aberto numa florescência de
possibilidades que tonteia a imaginação: a cinematografia.
Recentíssima, coisa de ontem, já conquistou o mundo e imprimiu ao
andamento do progresso um ritmo novo. Sua influência amanhã será tão
grande como o é hoje a da imprensa. E é possível, mesmo, que seu destino
seja sobrepor-se à imprensa, subalternizando-a como instrumento de
propagação de ideias – a ela e ao livro.
Tanto o jornal como o livro funcionam como veículos de imagens
cerebrais – mas veículos ronceiros, que exigem um elevado índice de
cultura do leitor; que exigem tempo, elemento cada vez mais escasso na
atropelada vida moderna; e dinheiro – e, cada vez mais, porque o livro
encarece vertiginosamente; e ainda certas disposições de espírito não
realizadas com frequência.
Já o cinema, veículo de imagens de muito maior envergadura, pede
menos tempo, menos dinheiro, menos cultura e menos disposições mentais
especialíssimas. Está, pois, predestinado a bater o livro em uma boa parte
dos seus domínios e, quem sabe?, a bater a própria imprensa.
Entre nós a atuação do cinema é já formidável e muito mais dilatada
que a do livro. Calculando-se para os setecentos cinemas existentes no
Brasil a média de um espetáculo para duzentos espectadores por dia, temos
140 mil pessoas que “veem” diariamente as novelas cinematográficas dadas
à projeção. Pergunta-se: haverá não digo 140, mas catorze mil novelas
impressas lidas por dia? O movimento de vendas dos livreiros está longe de
indicar este algarismo, o que prova o enorme avanço conquistado pela
novelística muda, vista na tela, sobre a lida em livros.
Nos Estados Unidos os algarismos tonteiam. Vinte e cinco milhões de
pessoas frequentam diariamente os cinemas. É fácil imaginar a força
prodigiosa dum instrumento de ideias que se alarga em tais proporções.
A novela popular pelo sistema antigo, quer em folhetins de jornais,
quer em brochuras baratas, está quase morta entre nós, onde, aliás, nunca
teve grande desenvolvimento graças ao nosso fantástico analfabetismo. A
proporção nas capitais e no interior do país entre a novela vista e a lida será,
talvez, de uma para mil. E a inclinação da balança favorável à novela vista
cresce constantemente.
Só no estado de São Paulo existem cerca de trezentas “salas de leitura”
dedicadas exclusivamente à novelística cinematográfica. E todas se enchem
à noite, ao passo que as salas de leitura dos grêmios literários, recreativos e
dançantes, ou das bibliotecas municipais, vivem às moscas. Boceja dentro
delas um “tomador de conta”, com a cabeça povoada de imagens das
Dorothys americanas, ansioso para que anoiteça e ele possa escapar e ir
regalar-se com a arte mímica da gentilíssima Dalton. Ninguém mais surge
ali, como outrora, para um serãozinho de Escrich; nem meninas em crise
romântica, flechadas por Cupido, mandam pelas crioulinhas buscar um
romance “bem amoroso, seu Chico Traça, que tenha uma condessa pálida e
um Raul moreno, de olhos bem pretos como os do meu Lulu...”.
As girls americanas, ricas de beleza e saúde, senhoras duma arte pessoal
que não revê o molde do conservatório francês – acrobatas, nadadoras
insignes, dançarinas, mestras na arte de dominar, cavalgar, amansar
espadaúdos representantes do sexo forte –, empolgam em absoluto a nossa
gente masculina. Em casa, vindos da fita, diante das esposas empalamadas,
toda nervos e medo às baratas, eles sonham outra vida mais forte, mais bela,
perfumada de lindas mulheres, num país de devaneio onde tudo corra na
maciota cinematográfica.
As meninas, românticas ou realistas, essas viraram místicas, dum
misticismo novo. Como as outrora esposas de Jesus, todas hoje, mais ou
menos, esposaram os George Walsh, os Wallace Reid, os William Farnum,
essa plêiade de suculentos heróis modernos, magnificamente belos,
esplendidamente fortes. E suspiram de decepção piedosa quando, fora da
tela, os Chiquinhos, Lulus e Pedrocas cor de cuia, sem peito, sem ombros,
sem músculos, sem masculinidade, aproximam-se para uma corte de
namoro.
– Amo-te, Julieta! Pede-me a vida, pede-me o impossível para que eu
possa demonstrar a vastidão do meu amor!
– Quero que você, Romeu, faça como o Tom Mix naquela noite:
apanhe o meu lenço do chão numa galopada de cavalo!...
Romeu coça a cabeça. Em matéria de equitação seu heroísmo não vai
além de montar éguas mansas, ultralerdas, só de andadura.
E as Julietas suspiram...
Até as crianças se fanatizam pelo shadowland. Os cinemas do interior
reservam-lhes os bancos da frente, com entradas a 200 réis, e elas ali
deliram, torcendo como no futebol em favor do herói do dia e aplaudindo-o
com delírio no momento da vitória.
Tom Mix, William Hart, Eddie Polo, Antonio Moreno e outros
maravilhosos cowboys povoam hoje os cérebros infantis, impregnando-os
fortemente num ideal novo.
Porque o cinema americano renova, ressurge a cavalaria andante, dá-
lhe formas atuais, lógicas e modernas, conservando-lhe, porém, o espírito.
Hart é o moderno “par de França” que morreu em Roncesvalles. No
começo, em suas primeiras fitas, limitava-se a vencer um adversário depois
de luta corporal ao vivo, dum realismo eletrizante.
Não bastava isso. Foi além. Passou a vencer dois, três, dez rivais. Hoje
Hart voga em plena fase heroica, a fase áurea em que Roldão, enfrentando
exércitos de trezentos mil mouros e relampagueando a Durindana, fendia
crânios aos milheiros, decepava cerce vinte cabeças de reis morenos e
punha afinal em desbarato a mourisma inextinguível.
A última fita de William Hart dá a impressão dum capítulo da História de
Carlos Magno e dos doze pares de França, posto em linguagem e ambiente modernos.
Vence ele, sozinho, uma cidade inteira de bandidos – dessas cidades de
tábuas, improvisadas no Far-West pelo elemento aventureiro da pelota yankee.
Estão todos os habitantes maus da cidade reunidos na tasca do Sheriff, que é o
chefe da malta, comentando entre goles de gim o crime que cometeram,
quando se abre a porta e surge a figura retesada de Hart, com dois
revólveres nas mãos, engatilhados. Estarrecimento geral. Pavor. Erguem-se
os braços lentamente. Hart, imóvel, gela os bandidos. Seu olhar de fera
magnetiza o Sheriff, que, vencido, ergue também os braços. Na plateia a
criançada delira nas convulsões do entusiasmo elevado a ponto de faísca
elétrica.
– É agora!...
Roldão continua imóvel na tela e mantém imobilizada a mourisma de
braço ao ar. Súbito, num movimento brusco, ergue o revólver para o teto e
“casca” um tiro no lampião de petróleo. E outro e outro e outro, em todos os
lampiões belgas da tasca. O imprevisto do lance estarrece a criançada e leva
ao apogeu o pavor dos mouros. O petróleo derramado inflama-se.
Labaredas fumarentas tremem pela sala. O rei mouro Abderraman-Sheriff,
arrastado pelo desespero, tenta reagir, mas cai varado pela bala mortal de
Roldão. Situação horrorosa: ou assados no incêndio, imóveis, de braço ao
ar, ou varados pelas balas do paladino, se tentam defender-se...
A criançada inteira está de pé, com arrepios de cabelo, numa suprema
tensão de nervos.
Mas a fumarada envolveu a cena e o desenlace ficou à mercê da
imaginação de cada um.
No último quadro Roldão passa a galope com um vulto de mulher à
garupa. Salva! Salva!... E some-se, enquanto ao longe a cidade dos
bandidos arde inteirinha, num incêndio pavoroso...
É pura cavalaria andante. É idealismo industrial dos melhores quilates.
Ensina a generosidade, a defesa do inocente, o castigo do mau e a força
invencível da boa causa.
Cervantes não matou a cavalaria – matou uma forma de cavalaria. O
espírito da cavalaria persiste – e para honra da humanidade está mais
vivedoiro que nunca. E está influenciando poderosamente a elaboração da
mentalidade do nosso povo, o qual encontra, afinal, uma escola. Jeca Tatu
aprenderá nela a perdoar com generosidade o erro dos fracos e a punir com
dureza o crime dos fortes. E aprenderá ainda a mover-se, a correr, a nadar, a
ser homem com H maiúsculo em todas as situações da vida.
O Brasil de amanhã não se elabora, pois, aqui. Vem em películas de
Los Angeles, enlatado como goiabada. E a dominação yankee vai se operando
de maneira agradável, sem que o assimilado o perceba.
Tudo isso porque em 1557 um holandês notou que os raios solares
enegreciam a lua córnea...
O incompreendido

Quatro anos fez em 12 de outubro que dentre os vivos


desapareceu tragicamente uma dessas criaturas de exceção, notas
insubstituíveis da sinfonia universal. Sua morte diminuiu de alguma coisa o
mundo. Desafinou-o.
Porque Ricardo Gonçalves era a suprema inteligência aliada a uma
bondade extra-humana, filha da suprema compreensão. Poeta e orador, a
poesia e a eloquência atingiam nele a altura vertiginosa, o zênite onde as
cordas estalam. Seu organismo não suportou a vibração exagerada da alma
e caiu, em pleno agraço da vida, como fulminado pelo raio. E, morrendo,
contraditou o les morts vont vite. Ricardo não se vai. Como luminoso
rodante, imarcescível, sua imagem permanece vivíssima na memória de
quantos o conheceram. O tempo que desliza e tudo esmaece nem tem forças
para amortecer o brilho dessa partícula de rádio engastada em saudade no
coração dos seus amigos.
Do que foi ele como poeta e orador contará ao público o livro em que
se enfeixarem as suas produções. Diga-se aqui apenas, com um exemplo, da
excelsa virtude de sua arte em apreender o caráter das pessoas e estilizar-
lhes o tipo.
Era inexcedível nisto. Sua palestra, já em si uma verdadeira obra de
arte, rica de todos os cambiantes do humorismo sem fel e da observação
psicológica de finíssimos quilates, daria, reproduzida, capítulos de romance
como os melhores de Eça.
Lembro-me de uma, a propósito dum artista “incompreendido”.
Tratava-se dum pobre pintor mulato, teimoso em impor-se ao mundo como
discípulo de Apeles, apesar de todas as precauções tomadas pela natureza
para impedir esse crime, inclusive a de cegá-lo dum olho.
Ricardo visitara-o e, de volta, encontrando-me na rua, contou o caso
com uma graça que me é impossível reproduzir.
– Quando entrei – começou ele – vi-me tonto para cavar um
lugarzinho: os quadros avassalavam tudo. Havia-os pelo chão, em pilhas
aos cantos, embaixo da cama e pelas paredes. Salvava-se o teto...
Além de quadros, rolos de tela, bisnagas murchas, pincéis de molho em
aguarrás – um perfeito caos...
Sentei-me na cadeira que havia e o pintor, após as trivialidades da
ouverture, abriu-se para comigo, contando toda a sua vida de misérias e as mil
picuinhas de que tem sido vítima.
É um “incompreendido” cujas desgraças todas provêm de ser filho
“desta cafraria”, onde um artista vale menos que qualquer vendeiro da
esquina. Ah, se viera à luz no Velho Mundo! Lá, sim, há ambiente para os
“temperamentos de escol”.
– Olhe – disse abrindo uma folha –, cá está a notícia da última venda da
galeria Drouet: um Degas, 100 mil francos; um Corot, 400 mil; um Millet,
500 mil! Três milhões rendeu o leilão! Isto é que é!... Estimula o trabalho.
Exalta a arte. Paga o artista. Mas aqui?... – interrompeu-se com um muxoxo
de desprezo. – Cá estou eu para exemplo. Tenho 40 anos, pinto há 30 e a
bem dizer não vendi um só quadro até hoje!
Fiz cara de tríplice ponto de admiração, e ele:
– Chamo vender quadros receber pela pintura o que ela vale, e não dá-la
em troca dum punhado de níqueis. Por isso afirmo: nunca, jamais, em 30
anos de pintura, vendi um só quadro que fosse. É incrível, mas é...
Tomou fôlego e prosseguiu:
– Existe entre nós a fobia da arte. O público odeia o artista, e os
críticos, para lisonjear o público, metem-lhe o pau. Na minha última
exposição fui cruelmente maltratado. A crítica escoicinhou à larga e o
resultado foi não se vender coisa nenhuma. Tenho aqui um caderno de
recortes de jornais onde coleciono os coices. Tudo reza pela mesma
cartilha: “O senhor F. tem muito boa vontade, é trabalhador etc. etc., mas...”
e lá vêm as asnices, as piadas sobre o desenho, sobre o colorido, sobre os
assuntos, sobre a perspectiva e até sobre as molduras. Como se entendessem
do riscado, esses cavalos de dois pés!
Tomou mais um gole de fôlego e:
– Ninguém sabe de arte nesta cafraria, mas todos se metem a latir
opinião. Outro dia expus este quadro – disse espanejando com o lenço um
enorme Caipira acendendo o cigarro – e fiquei por ali sapeando como Apeles.
Chega um, olha, olha e murmura que este pé está inchado...
(Olhei e vi que de fato o pé estava inchado.)
– ... que esta perna sofre de erisipela... (Refleti com os meus botões que
era muito justa a observação.)
– ... que as cores deste fundo estão vivas demais...
(Vivíssimas!, pensei comigo.)
– ... que o nariz da figura está deslocado para a esquerda!
(Achei que se o nariz estivesse um pouquinho mais para a direita...)
– Remordi-me por dentro, mas calei. O criticastro torceu o focinho a
mais não sei quê e foi-se. Mal saiu este animal de rabo, chega outro e ri-se.
Não me contive. Saí da tocaia e abordei-o: “De que se ri o amigo?”. “Da
desproporção entre este tronco e estas pernas”, respondeu o insolente.
Furioso da vida, despejei-lhe em cima uns desaforos e agarrando o quadro
trouxe-o para cá. Ora, o senhor que é um moço de talento e de bom gosto
vai me dar a sua opinião com toda a sinceridade. Que tal acha o meu
quadro?
– Ótimo! – respondi. – Um quadrão...
– E o pé?
– Magnífico!...
– E o nariz, não está direito?
– Mas muito!...
– E a perna, não está sãzinha?
– Salubérrima!...
– Pois é isso. A mim, na cara, todos dizem o que o senhor está dizendo.
Só os zoilos, os murmuradores incontentáveis, amigos de falar pelas costas,
é que acham defeitos e metem a ronca.
Pousou um bocado, em contemplação da obra-prima. Depois disse em
solilóquio:
– Um pé tão réussi... Inchados andam eles, de estupidez...
– Inveja! – alvitrei eu.
O incompreendido apanhou o tema no ar.
– É isso mesmo, inveja, bem sei. A eterna conspiração contra o talento.
Se eu cortejasse a crítica, e a adulasse, e a “comprasse”, como fazem os
colegas espertalhões... Mas não! Jamais desci a tais baixezas porque espero
tudo da posteridade. Ela me vingará!...
Enquanto o pintor deblaterava, de olho posto no futuro, ia eu
remexendo uma pilha de telas. Eram retratos de celebridades, Pedro II,
Floriano, Custódio, pintados com a intenção de seduzir fanáticos. O
fanatismo, porém, passou e os quadros ficaram.
Havia também uma galeria de paredros mais recentes, Glicério,
Bernardino, Lins, presidentes passados, presentes ou prováveis. Mas lá iam
os heróis caindo no ostracismo, um por um, e os retratos... ali.
Num cavalete vi um esboço de figura onde, com alguma boa vontade,
vislumbrei o Hermes, nome indicado na última convenção... Apesar disso o
pintor trovejava:
– Não cortejo a opinião pública. Não bajulo os grandes do dia. Não
cavo! Detesto o engrossamento – e aqui está o meu erro. Neste país só
vinga o sabujo, o capacho, o pirata. Eu, porém, morrerei na miséria, mas
puro!
Louvei-lhe a nobilíssima atitude; depois, vendo ao correr do rodapé um
rolo de comprimento fora do comum, indaguei do que era.
O incompreendido suspirou:
– Contos largos...
Desdobrou o rolo, uma tela imensa, e explicou:
– Só de material tenho aqui para mais de 300 mil-réis. Vê bem daí?
– Muito bem. É um lindo coqueiral! Interessantíssimo...
O pintor olhou-me de revés.
– Coqueiral propriamente não. É um cafezal da fazenda de dona
Veridiana, a velha milionária. Levei meses a pintá-lo. Estudei a paisagem no
local. Gastei tinta aos quilos. Um trabalhão! Concluída a tela, emoldurei-a
ricamente e remeti-lha, certo de que, pelo menos, uns 30 contos a velha
dama havia de escorropichar.
– Ofereceu-lhe apenas 15...
– Quinze? O senhor não conhece a terra em que vive. Devolveu-me o
quadro! Devolveu-mo alegando que era uma tela muito grande, que não
tinha parede para tanto, e tal e tal. Mentira! A verdade é que são uns unhas-
de-fome e em matéria de arte uns zebus!...
Achei razoável a explicação; devia ser isso mesmo... O pintor
prosseguiu:
– Quer o amigo ver até que ponto vai a má vontade da burguesia
dinheirosa para com os artistas sérios? Quando surgiu a moda das vendas a
prestações lembrei-me de aplicar o sistema à pintura e organizei um clube
de retratos a óleo, sem nenhum fito de lucro aliás, simplesmente a título de
contribuição para o nosso aperfeiçoamento estético. Obtive com facilidade
cem sócios contribuintes. Mensalmente havia um sorteio, e o sorteado tinha
direito ao próprio retrato em tamanho natural. Veja a minha abnegação – dar
um retrato desse vulto por 10, 20, 30 mil-réis! Muito bem. Procede-se ao
primeiro sorteio e tira o prêmio o doutor Fortunato. Pinto-lhe a caraça. No
dia seguinte o retrato volta-me para cá. Queria retoques; não achava
“parecido”... A eterna incompreensão dos leigos, que querem no artista
meros reprodutores fotográficos em vez de intérpretes – compreende?
Atendi-o. Retoquei-lhe o focinho. Achou bom; levou-o. Pois não lhe digo
nada: dias depois, casualmente, encontro num ferro-velho o dito retrato!...
Veja o tartufo! Vender a própria cara! E inda por cúmulo o belchior me
confessa ter comprado “aquilo” pela moldura, visto que a “careta” não valia
o pano...
Esse, o primeiro. O segundo sorteado não quis retratar-se – por “não ser
vaidoso”. O terceiro – por “falta de tempo”. O quarto – já não me lembro
por quê. Conclusão: dos cem retratos a pintar só pintei um e esse... cá está –
disse puxando do canto uma tela.
– Ei-lo!
Conhecido velho que sou do Fortunato, nem por sombras lobriguei na
pintura o mais leve traço de parecença. Era “interpretação” das legítimas...
Entretanto, gabei-o:
– Está ótimo! Muito bem “interpretado”! Não é a fotografia dele, está
claro, mas é ele, psicologicamente falando...
O incompreendido bebeu-me as palavras com delícia e murmurou:
– Nada como lidar com gente entendida e sincera... Ah, se todos
tivessem uma compreensão estética como a sua...
Corei e, para disfarçar, disse:
– Mas como voltou este quadro para aqui?
– Comprei-o, olaré! E caríssimo. Mal o raio do gatuno do ranheta do
ferro-velho percebeu o meu empenho em adquiri-lo, entrou a gabar a
pintura, a fazer valer a assinatura – e não houve abater 1 real nos 100 mil-
réis pedidos. Veja o senhor: despender eu 100 mil-réis, eu, um pobretão,
para resgatar um filho extraviado! Isto só a mim...
Louvei-lhe pela segunda vez os nobres sentimentos e o pintor,
regalando-se:
– Cá comigo é assim. Cada quadro é como um filho. Quando me aparto
deles... isto é, se me apartasse deles, seria com dor de coração. Nesse ponto
sou feliz, porque tenho toda a prole em casa, desde os primeiros ensaios,
obra dos 11 anos. Admira-se? Sim, senhor, comecei nessa idade, embora
aos 8 já denunciasse o meu pendor estético, desenhando a carvão nos muros
caiados figuras humanas bem jeitosinhas. Aos 12 eu fazia boizinhos e
cavalos que eram uma maravilha. Aos 14...
Veio de ano em ano até aquele, numa enumeração exaustiva, e
concluiu:
– Vocação, meu caro – das boas, das incoercíveis...
Apertei-lhe a mão, comovido.
– E atualmente em que trabalha?
– Nisto – respondeu exibindo uma tela em andamento. – Veja se gosta.
É uma tentativa feliz de impressionismo, obra arrojada, pura novidade em
nosso meio...
Olhei e por mais que olhasse não consegui entender coisa nenhuma.
Era um vermelhão berrante com uma coisa oval no centro.
– Então? – perguntou.
– Um pôr do sol, parece-me... Um ocaso...
O incompreendido desfechou uma bela gargalhada.
– É o meu retrato! Estranhou, é natural. O impressionismo requer
iniciação e uma especialíssima educação da visionabilidade estética. – E
concluiu guardando a charada vermelha: – Isto é néctar para os eleitos!
Concordei, mas receoso de que após o néctar me viesse ele com a
ambrosia temperada à moda cubista, fiz gesto de ponto final, tomando o
chapéu. O pintor disse então, à laia de resumo:
– Pois é o que o amigo vê. Trabalho, estudo, creio em mim e na minha
arte. Nada espero do presente – mas tenho fé no futuro. A posteridade dirá
um dia quem tem razão, Homero ou Zoilo. O destino dos verdadeiros
artistas é sempre este: ser negado em vida. Veja Rembrandt, veja Watteau. É
o imposto que pagam à mediania todos aqueles em cujo cérebro fulgura...
– A centelha divina! – rematei.
– Isso mesmo! A cen-te-lha di-vi-na! – repetiu pausadamente o
incompreendido, com os olhos vagos...
Pobre Ricardo!
Veteranos do Paraguai

Foi na rua da Palha da cidade de Três Estrelinhas. (Cada


cidadota do interior possui uma “Rua da Palha”. Vem isso de que nelas
existem ou existiram ranchos de tropa, galpões de carros de boi e porteira
dando para algum “rapador” de aluguel. “Rapador”!... A humilde ironia do
povo da roça chama assim aos pastos de aluguel de beira de povoado, onde
pousam por uma noite tropas e carros em trânsito. A grama desses pastos é
uma hipótese só admitida pelo dono deles. O alugador não consegue
enxergá-la e os animais ali metidos passam a noite “rapando” o solo em
busca do “cheiro da raiz da grama”...)
Foi lá que vimos, uma tarde, sentado num mocho de três pernas, à porta
dum casebre, esse velho cujo cadáver ali passa na rede com rumo ao
cemitério. De bruços num porretão de cego, atentamente ouvia ler notícias
da Grande Guerra a um menino descalço, de cócoras à soleira da porta.
Os alemães por esse tempo batiam de obuses os muros de Namur, e os
telegramas soletrados pelo pequeno diziam respeito à façanha.
Finda a leitura, nenhum comentário brotou dos lábios do velho, a não
ser um nome murmurado em surdina:
– Curupaiti...
Farejando soldado do Paraguai, interessei-me por ele.
– É o Pedro Alfaiate, soldado de 70, disseram-me. Depois da guerra se
fez alfaiate, músico e vendedor de loteria, sucessivamente, até que cegou e
entrou a viver por aí ao deus-dará, roendo a meia-pataca do soldo.
Os velhos são livros vivos, compostos pela vida. Nem sempre
interessantes, aliás. Uns tornam-se ilegíveis, com os melhores capítulos
arruinados pela traça da desmemória. Outros são tediosos como os velhos
negociantes – livros que não passam de simples borradores. Outros são
vazios, resumidos que têm o viver no insulso tríptico do comeu, casou,
procriou. Mas um velho soldado é sempre um livro interessante, rico de
incidentes, pitoresco e não raro heroico. Aproximei-me, pois, do velho
soldado e folheei-o ao acaso, como a um livro incomum em montra de
belchior.
– Fui para a guerra menino, 19 anos, mas com um gosto: voluntário de
verdade, e não como a maioria dos “voluntários” que eram pegos a laço; e
varei toda a campanha, tomando parte em onze batalhas. Estive em
Uruguaiana e em Aquidabã – os dois extremos. Vi a morte de cara, quantas
vezes!... e vi-a rentinha de mim em Estero Bellaco, onde, de setecentos que
éramos no batalhão, ficamos reduzidos a 56... Formávamos na extrema
esquerda, a qual, atacada, fraqueou, de modo que o choque recaiu inteiro
sobre nós. Como tenho presente a luta! Mena Barreto mandou formar em
linha. Formamos, firmes, e quando o inimigo apareceu pusemo-lo
atarantado com uma descarga terrível.
Depois:
– “Carregar a baioneta!”
Carregamos, e que medonha foi a chacina!... Não existe horror maior
do que a guerra. A gente durante a peleja vira monstro e perde a qualidade
de homem. Matar, matar!... É um delírio, uma perfeita bebedeira de
ferocidade. Para que mentir? Nesse momento matar é uma delícia – matar,
matar, matar... Enterrar o ferro agudo na carne viva do inimigo, urrar ao vê-
lo esguichando sangue e dobrado de dor, arrancar ferro da ferida, saltar por
cima do ferido que se estorce, atirar-se a outro que vem feito sobre nós,
fugir-lhe ao golpe, retrucar, varar-lhe o peito... tudo é coisa de relâmpagos,
que a gente só vê depois, mais tarde, no fim da festa, quando a imaginação
pega a recompor o quadro.
–?
– O pior? Todos eram piores, mas creio que o de Lomas Valentinas
tirou a palma. Lutamos sete dias para tomar as trincheiras paraguaias sitas
num morrote. Eram uma trama horrível de fossos, bocas-de-lobo e linha de
abatises.
–?
– Abatises são uma tranqueira tecida de ferros pontudos fincados no
chão, paus apuados e galhos dum espinheiro terrível que há muito por lá.
Eles enredavam tudo isso em frente das trincheiras, como dizem que hoje
fazem na Europa com o arame farpado, tornando assim dificílima e
penosíssima a aproximação. Durante seis dias atacamos sem resultado. Uma
das vezes conseguimos alcançar o morro, mas tivemos que rodar para trás,
escangalhados. No sétimo dia Caxias reuniu todas as forças disponíveis e
concentrou o ataque num ponto só. Aí vencemos.
–?
– O trabalho da escalada? Nem me fale! Duro de roer. Cada assaltante
ia com uma escadinha feita de bambu, ou pau roliço, e mais um feixe de
galhos, ramos e folhagem, para atulhar os fossos. E ter de fazer isso sob a
chuva de balas do inimigo escondido! Um horror...
Em Itororó... Que pensa que era Itororó? Uma pequena ponte de quatro
a cinco metros de largo, sem guardas laterais, armada sobre um ribeirão. Do
outro lado, a cem metros, os paraguaios assestaram a artilharia, de modo a
varrê-la a fio comprido. Era forçoso passar. Passamos. Mas que carnificina!
Os nossos vacilavam diante daquela morte certa e foi preciso que Osório e
Caxias se atirassem à frente, num completo desprezo pela vida. “Quem for
homem, siga-me!” Aquele arrojo eletrizou-nos e passamos. Osório levou
bala, mas Caxias saiu incólume.
Os paraguaios, então, formaram quadrado, com a artilharia no centro.
Osório dispôs-se a rompê-lo. Marchou com a cavalaria mascarando os
canhões; em certo ponto a cavalaria abriu-se, os canhões despejaram
metralha, fazendo uma brecha no quadrado inimigo. Por ela a cavalaria
entrou como um furacão, destroçando tudo. Terrível, terrível!...
Em Pirebebuí foi triste. A vila estava cheia de mulheres e crianças. O
conde d’Eu intimou o inimigo a render-se, fazendo-lhe ver que crime era o
sacrifício daquelas míseras criaturas. Inútil. O paraguaio deixava-se
esmagar, mas não cedia a razões. Foram avisados, então, de que o ataque se
realizaria às seis da manhã.
Rompeu a madrugada. Quatro, cinco, seis horas... O chefe da artilharia
veio pedir ordem de fogo.
– Espere mais meia hora, que até lá talvez surja a bandeira branca –
disse o generoso príncipe, protelando a chacina, tanto lhe repugnava o
sacrifício de pobres não combatentes. Mas esgotou-se a meia hora e nada.
– Espere mais quinze minutos.
Passaram-se mais quinze minutos e nada de bandeira branca. O conde
d’Eu, então, ordenou a abertura do fogo.
– Não há remédio...
Após uma hora de bombardeio a praça era nossa. Que horrível
espetáculo de tantas mulheres e criancinhas estraçalhadas pela metralha!
Estou velho e cego, mas vejo – vejo sempre o horripilante quadro. Meu
Deus, que horrorosa coisa a guerra!...
– E madame Lynch, conheceu-a?
– Sim. Foi a alma danada de López, essa inglesa linda, loura, de belo
corpo, nem magra nem gorda. Acompanhava-o sempre. Conheci-a porque
fiz parte da escolta que a conduziu a Assunção, para onde seguiu a cavalo,
valente amazona que era. Murmurava-se que madame Lynch queria o fim
de López para entrar no gozo sossegado das riquezas acumuladas. Bem
possível. Mas, voltando ao conde, grande príncipe! Não permitiu a menor
atrocidade. Só dois coronéis foram fuzilados porque sobre eles pesava a
acusação de terem mandado arrancar os olhos a prisioneiros nossos. Depois
da tomada de Pirebebuí ele agiu com grande largueza, distribuindo roupa e
alimento à mulherada rota e faminta – umas três mil talvez. As coitadas
assombravam-se daquilo. Em vez dos horrores esperados, carinho. O
inimigo, que lhes pintavam crudelíssimo, repartindo com elas suas magras
provisões. Foi bonito, foi, foi...
Este velho soldado era o verdadeiro tipo do herói humilde, que o é sem
saber. Valente contraste de outro, nosso conhecido, que, interrogado, só se
denunciou como o rei dos poltrões.
Fez alguns anos da campanha, mas era incapaz de dar às suas narrativas
uma impressão belicosa.
– Em Lomas Valentinas, esteve?
– Estive, sim, mas na enfermaria.
– Ferido?
– Não. Uma cólica...
– E em Estero Bellaco?
– Também na enfermaria.
– Ainda a cólica?
– Não. Uma dor de dente danada!
– E em Tuiuti?
– Ah, gozei! Assisti à batalha inteira sem arredar pé do meu posto. Vi
tudo e posso descrever a coisa como a palminha das mãos.
– Assistiu-a da janela do hospital, com certeza...
– Não. Detrás dum belo cupim...
Os eucaliptos

Se fôramos médico e acaso nos surgisse consultório


adentro um freguês nas últimas, queixoso de gelidez d’alma, anquilose do
entusiasmo, indiferença em grau nirvânico, ceticismo marca FFF, receitar-
lhe-íamos, incontinênti, o único remédio próprio para salvar semelhante
desgraçado: uma visita ao Horto Florestal de Rio Claro. E daríamos a
cabeça a cortar se o infeliz não regressasse enfolhado de esperanças como
um plátano de setembro, ou apendoado de flores como as roseiras de
outubro.
Porque o Horto não se limita a ser um remédio de efeito aleatório: é um
tópico, um porrete, melhor que o mercúrio para a sífilis ou a aspirina para as
nevralgias.
– Mas que Horto maravilhoso é esse? – perguntará o leitor.
Ah, o Horto é uma coisa séria! É uma coisa que só vendo. É dessas
lições de eficiência que só julgamos possíveis em terras como os Estados
Unidos e a Alemanha. É uma prova, com os noves fora, de convencimento
absoluto. É uma aberta que deixa entreluzir o que poderemos ser no futuro.
É um filho vigoroso, e nobremente viril, do trabalho inteligente em conúbio
com a ciência de verdade. É uma vitória completa, esmagadora, a coroar
uma batalha de 17 anos.
O Serviço Florestal da Companhia Paulista constitui um formidável
exército de oito milhões e quinhentos mil eucaliptos, armados em pé de
guerra, com a mobilização marcada para daqui a 3 anos. Só com essa idade,
20 anos, é que entrarão em batalha, a fecunda batalha da paz, desdobrados
em dormentes, achas de lenha, postes, moirões, tabuado, carvão e essências.
Mas a formação desse exército não para. Todos os anos centenas de
milhares de conscritos saem dos canteiros e vão engrossar as falanges
veteranas que se distribuem à beira da linha férrea em vários pontos
estratégicos.
O quartel-general situa-se em Rio Claro. Ali reside o comandante
supremo, Edmundo Navarro de Andrada, a maior autoridade mundial hoje
em matéria eucalíptica. Base de operações, dali do seio dessa formidável
floresta artificial de mais de três milhões de árvores é que parte a ideia
coordenadora que uniformiza e articula os demais corpos de exército,
acampados em Loreto, Boa Vista, Rebouças, Tatu, Cordeiro, Camaquã e
Jundiaí.
Centro de estudos florestais, esse horto deixa a perder de vista tudo
quanto se fez no Brasil por iniciativa governamental. Burocracia nenhuma,
nenhum bizantinismo, nada que lembre a palermice marasmática em que
inevitavelmente caem os nossos serviços públicos.
Os nossos serviços públicos! Conta-se de um horto onde se iniciara
uma sementeira de eucaliptos. Veio visitá-lo um dia a mulher do secretário
da Agricultura. Examinou tudo mulherilmente, e dando com os eucaliptos
disse:
– Não gosto disto. Prefiro violetas.
E lá se substituíram os eucaliptos pelas violetas da senhora secretária...
Impossível uma coisa destas num estabelecimento particular, e muito
menos em departamento da maravilhosa empresa que é a Companhia
Paulista.
Resultado: o problema resolve-se de vez, a floresta cria-se em
proporções formidáveis, a demonstração se torna exaustiva e o caminho fica
aberto, liso e plano como rua de asfalto, para todos quantos queiram atirar-
se à silvicultura.
E tanto é assim que, contagiado pelo exemplo da Paulista e industriado
por Edmundo Navarro, o plantio de eucaliptos cresce no Brasil
maravilhosamente. Em São Paulo orça já por treze milhões de árvores. No
Rio Grande do Sul anda por quinze milhões. Um industrial alemão,
Bleckmann, lendo o livro de Navarro, veio do Sul especialmente para
verificar com seus olhos a exatidão do que lera; e hoje, gerente da
Companhia Geral de Indústrias, em São Leopoldo, planta seiscentos mil pés
por ano. A Companhia de Morro Velho, visando à futura exploração do
ferro de Itabira, planta duzentos mil anuais. A Companhia Florestal
Fluminense tem um programa de um milhão. No Ceará a Companhia de
Melhoramentos planta cem mil por ano para dormentes. Em Santa Catarina
a Companhia Aranguá, em Laguna, planta em larga escala a fim de obter
escoras para as minas de carvão. A Companhia Eletrometalúrgica de
Ribeirão Preto pretende plantar seiscentos mil anuais para abastecer de
carvão seus futuros altos-fornos. Além destas, numerosas pequenas
plantações particulares surgem por toda parte, de dez, de vinte, de cinquenta
mil árvores, todas filhas do exemplo da Paulista e orientadas pela visão
segura de Edmundo Navarro.
Pergunta-se: o Ministério da Agricultura, em anos e anos de
funcionamento com verbas enormes, fez até agora obra que se possa
comparar a esta? Fomentou alguma cultura, orientou-a na escala e com a
segurança desta maravilhosa iniciativa particular?
O núcleo mais antigo dos eucaliptos da Paulista está localizado em
Jundiaí, plantado, cremos, em 1903. Constitui a velha guarda, de cujo seio
surgiram este ano os primeiros postes para o serviço de eletrificação dessa
via férrea no trecho de Jundiaí a Rio Claro.
Merece especial menção este fato.
Discutindo-se qual a madeira mais conveniente para a obra, os
campeões do nacionalismo florestal apresentaram-se em campo com o
guarantã nec plus ultra.
Debates. Palavrório.
– Experimentemos – diz a Paulista.
Tudo preparado para a grande prova, saltam à frente do terrível
campeão indígena três espécies de eucaliptos – o robusta, o butryoides e o
teriticornis, conduzidos pela mão do entraineur Navarro, que é quem conta a
história.
O nacionalismo riu-se. A derrota do pau australiano seria inevitável
porque o guarantã apresentado era velho de 150 anos no mínimo, ao passo
que os eucaliptos contavam apenas 17 risonhas primaveras. Luta de Golias
com Davi...
Mesmo assim todos torciam pelo campeão nacional, num patriotismo
de pau, gozando-se antecipadamente da esfrega que ia sofrer a madeira
intrusa.
Iniciadas as experiências de resistência, o guarantã rompeu a uma carga
de 2.790 quilos e dois metros e cinco centímetros de deflexão.
Palmas. Bravo. Fora um resultado brilhantíssimo, pois que lhe bastava
resistir a apenas seiscentos quilos para ser aprovado com grau nove.
A lambuja de 2.190 quilos de diferença fez delirar de entusiasmo o
patriotismo silvicultor. A Liga Nacionalista, informada, abriu uma garrafa
de champanha... de abacaxi. E armou-se para bebê-la.
Mas a experiência prossegue, entrando em cena o robusta, que rompe
com 2.378 quilos de carga. Teve parabéns indulgentes, foi gabado, recebeu
palmadinhas de conforto. Apanhara do pau nacional pela diferença de 412
quilos – uma vergonha.
A Liga mandou hastear o pavilhão.
Mas a experiência não estava acabada e pula à arena o butryoides, que
resiste mais que o robusta – que resiste tanto quanto o campeão nacional –,
que resiste mais que ele, e afinal o derrota, pois só rompe à carga de 3.227
quilos, com deflexão de noventa centímetros.
Desapontamento. O nariz da Liga cresce e pendura. O coração da Pátria
sangra...
– O teriticornis agora!
Vai o teriticornis para o suplício. Amarram-lhe o cabo ao pescoço.
Começa a girar o parafuso milimétrico.
Uma tonelada.
Duas toneladas.
Duas toneladas e 790 quilos – o índice do guarantã!
Três toneladas!!...
Quatro!!...
Cinco!!!...
O assombro é geral. Os patriotas, furiosos com tamanha resistência,
torcem o arrocho com fúria.
Cinco toneladas e meia!...
Seis!!...
Chega a ser desaforo. A Liga bate um telegrama protestando: “Há
truque! Deram-lhe a beber infusão de cola! Está infibrado de aço! Não é
pau!”.
E o teriticornis, impassível, continua mudo, sem um estalinho de dor!...
Só deu o berro à carga de 6.517 quilos, com deflexão de três metros e
quarenta centímetros. Bateu, pois, o campeão indígena por uma diferença
de 3.727 quilos de carga de ruptura e um metro e trinta e cinco centímetros
no índice de deflexão...
Quando as brisas levaram a nova do feito aos vários hortos da Paulista,
oito milhões de árvores, irmãs daquele herói, tremelicaram as folhas. O
passaredo já nascido entre os eucaliptos soltou pios de vitória e as cigarras
chiaram numa vaia.
Enquanto isso, na capital, com dor d’alma, a Liga Nacionalista,
rearrolhando a garrafa de champanha, punha a bandeira a meio pau. E
cobria a cabeça de cinzas... de pau-brasil
Os tangarás

Apareceu há dias um livro de nada sedutor aspecto,


cheio de gravuras mal reproduzidas, pesadão – meio quilo – e de difícil
manuseio, costurado que vem a barbante de fora a fora, e não caderno a
caderno como o exige a comodidade da leitura. Exemplar típico da arte
livresca nas zonas onde Gutenberg não vai lá de pernas.
Para mal de pecados cheira o livro, à primeira vista, a sermão de
encomenda, desses fervidos às pressas, em fim de governo patoteiro, para
abocar uma bolada.
Entretanto, quem vence os óbices opostos pela má apresentação
material e mete os dentes no miolo sai contente da vida pela bela ideia que
teve. É obra que revela, já nas primeiras linhas, um observador seguro de si,
com sério equilíbrio de faculdades e capaz da visão ecológica das coisas. E
escrita, além disso, em bom estilo, sóbrio sem secura, singelo sem
vulgaridade, e pitoresco sem galharada excessiva de regionalismo. Terra
catarinense chama-se – e assina-o Crispim Mira. Nele se estuda sob todos
os aspectos o estado barriga-verde, entreverando-se paisagens com
estatísticas, anedotas com visões de sociologia e história com cenas de
costumes. Quis destarte o senhor Mira dar uma impressão exata, quase a
sensação da terra catarinense. E de si dá a medida dum escritor que tem o
que dizer, e o diz bem, às rápidas, com clareza e sinceridade.
Em matéria de escritores, temo-los de duas categorias: a dos
necessários e a dos inúteis. Uns revelam o país a si próprio, bem vendo,
bem sentindo e bem reproduzindo os estados d’alma e de corpo da brasileira
coisa e da brasileira gente; outros tomam o tempo dos ocupados com uma
arte pela arte singularmente pulha.
Uns constroem deveras uma literatura: fixação exata do momento
étnico, cósmico e mental. Outros bizantinizam. Cronistas, às vezes
brilhantes do omni re, a varridela saneadora do tempo não deixará da agitação
desses escritores uma isca sequer.
Crispim Mira tem qualidades para fulgir na vivedeira plêiade dos
primeiros. Basta para isso que tenha fé em suas forças.
Mas não vem a pelo aqui uma análise desse livro, senão o furto da
página relativa aos tangarás.
Esta avezinha, cujo nome nem sequer entrou para os dicionários que
Portugal nos vende, merece da Poesia as honras dispensadas na Europa ao
rouxinol e aqui ao sabiá.
É incrível, com a riqueza da nossa fauna ornitológica, que acampemos
toda a vida no sabiá de Gonçalves Dias, com menospreço da variedade
infinita de temas plumados que andam aos regorjeios de ramo em ramo.
O sabiá é, de fato, uma coisa séria no mundo dos voláteis. Caruso
nostálgico, filho da laranja e dos crepúsculos, é o sonoroso poeta alado das
saudades. Ouvi-lo em tardes lânguidas é mergulhar a alma num banho de
suave tristeza. Só não pensam assim os donos de pomar, gente rude para
quem peste pior que o sabiá só o sanhaço.
Seus méritos canoros, porém, não justificam o aferrarem-se a ele os
poetas, como se a gama passarinheira tivesse uma nota só.
Vá que repudiem o joão-bobo, excelente criatura maltratada pelo
homem com essa alcunha difamadora; ou aquele gracioso passarinho preto,
irmão da graúna, batizado escatologicamente; mas deixar sem as festas da
rima aos tangarás, os nossos Nijinskis de pena e bico, é coisa que brada aos
céus.
Que nos conste até hoje só um poeta – Ricardo Gonçalves – meteu em
versos a dança dos tangarás. Sugere-a, porém; não a descreve. Põe-na no
fecho de bucólicas sextilhas como simples nota impressionista:
Na mata umbrosa, que é um templo,
Cheio de aroma e de paz,
Horas perdidas contemplo,
Sobre o tapete da relva,
A maravilha da selva,
A dança dos tangarás.
Há séculos que os tangarás cantam e dançam, fazendo abrir a boca, em
êxtase, os seus colegas de pena e os seus inimigos peludos. Dizem que a
onça, ao vê-los, entrepara, e assiste à festa com um brilho “besta” nos olhos.
Será ficção. Vem logo aí um naturalista demonstrar com ruins
pronomes que tal brilho não é de êxtase estético, mas de fome pura e, possa
a onça, lá irão os tangarás concluir a dança no seu bucho.
Não importa. O êxtase da onça ficará, porque é uma nota necessária à
harmonia das coisas, como tempero dulçoroso da ferocidade felina.
Ficará como ficou o patriarcado de José Bonifácio depois das
catilinárias do Assis Cintra. A floresta sem o êxtase da onça e o Brasil sem
o patriarcado de José Bonifácio perdem metade da graça.
O tangará é talvez o único pássaro do mundo que evoluiu do canto à
dança e os conduz de par com uma ciência de ritmos tão sábios como os da
Pavlova.
(Está aqui uma rata nossa: por que não apresentamos à sublime Ana os
nossos Nijinskis plumados? Coisa muito de ver seria a esgalgada russa em
êxtase de onça ante um bailado tangará. E quem sabe não se inspiraria para
uma criação sui generis, irmã da Morte do cisne, por meio da qual,
saracoteando nos palcos estrangeiros, fizesse a Europa ornitológica curvar-
se ante o Brasil passarinheiro? Gente escassa de ideias, a nossa...)
Crispim Mira viu com seus olhos os tangarás na faina coreográfica e os
descreve nestes termos:
“Das aves catarinenses é a mais famosa. É azulado e de crista
vermelha. Anda em bandos de oito a dez, sob o comando de um. Nos
momentos da festa reúnem-se no galho de uma árvore e ao sinal do tangará
diretor, que pousa em galho fronteiro, iniciam o gorjeio. Compõe-se de três
partes esse admirável concerto. Na primeira o maestro modula em solo um
cântico dobrado, ora terno, ora vibrante, as penas meio alvoroçadas pelo
ardor da modulação, a cabecinha esticada, o bico entreaberto e o pescoço a
regorgitar-se e a retrair-se na emissão de notas deliciosas que se espalham
pelo silêncio da mata.
E permanece assim dois a três minutos, como um Caruso, um Tamagno
da floresta, sobrepondo trinados, dilatando os sons em corridas longas,
encachoeirando as solfas numa precipitação vertiginosa, amortecendo-as em
surdinas, tornando-as vagarosas e atropelando-as em seguida em sutilezas
de violino e tons graves de barítono.
Quando termina o hino, rompem os demais em coro. Às vezes se
reúnem, combinam-se, estridulam uniformes, todas as cabecinhas se
distendem igualmente para a frente, todos os pescoços têm os mesmos
movimentos, todos os bicos desferem o mesmo canto macio, cheio, vivo,
sonoro, extasiador.
Há um descanso rápido. Os tangarás saltitam aos pares ou isolados pelo
arvoredo. Eis, porém, que o maestro trila de novo e todos acodem
celeremente, retomando o seu posto: o bando num galho e o chefe no outro,
a princípio. E unissonamente, galhardamente, a encantadora e plumosa
orquestra irrompe a um só tempo, numa espécie de bailado, pondo-se o
tangará maestro a saltitar em ida e volta do seu galho para o outro onde
estão os companheiros, ao mesmo tempo em que estes, sempre a gorjear,
pulam também, uns sobre os outros, de modo que os primeiros vão ficar
atrás dos últimos e depois estes passam a ficar atrás dos primeiros. Cerca de
cinco minutos são consumidos nessa curiosa alegria avicular. Em certo
ponto o maestro suspende o voo e perde-se na folhagem, cantando. A
orquestra o acompanha, e de longe ainda vêm as últimas vibrações do
belíssimo bailado. É um espetáculo que, visto uma vez, nunca mais se
esquece”.
Infelizmente o tangará é uma avezinha esquiva, pouco amiga de
relações com o homem, cuja ferocidade certamente conhece. Vive por isso
no recesso das matas e não dá espetáculos quando preso em gaiola ou
viveiro. Fosse como o pardal, e que maravilhosa coisa seria temo-lo a
avivar com canto e dança a paisagem das grandes capitais!
Mas é ave envergonhada. Tem muito da caipirinha arisca que se
esconde atrás das portas. Ele também se esconde para dançar. Não é
cabotino e o mundo é dos sem-vergonhas. O mundo é do pardal.
O pai da guerra

O homem inventou uma coisa fora da natureza: o


parasitismo na mesma espécie.
O parasitismo é uma lei da vida, mas sempre entre espécies diversas.
Na própria, só o caso do homem.
E a guerra é, em última análise, uma simples manifestação desse
parasitismo. É o meio violento a que um Estado recorre para escravizar os
povos mais fracos e aparasitar-se neles, vivendo-lhes à custa do sangue.
Venha o vencido para Roma, atado nu à cauda dos carros de triunfo, ou
fique em suas terras no arrocho econômico de um Tratado de Versalhes, o
fato é na essência o mesmo.
Ora, antinatural, antibiológica que é tal forma de parasitismo, a guerra
constitui o supremo mal, a cruel avariose que torturou, tortura e há de
torturar a humanidade. E mal sem remédio, porque a guerra tira dos seus
próprios efeitos extremos, vitória e derrota, o estímulo que mantém vívida a
mentalidade guerreira.
A apoteose dos heróis, a apresentação estética de todos os crimes, o
embelezamento sistemático da carniçaria, o exalçamento das virtudes
guerreiras revigoram, na vitória, a mentalidade bélica enfraquecida nos anos
de paz. Na derrota, o sofrimento injusto, a espoliação do inocente, a
insolência da pata invasora criam o ódio mortal e põem em todas as almas
uma ideia suprema de vingança.
Glória e vingança: eis a alma bifronte da guerra.
Há, entretanto, um erro monstruoso de visão, tanto no vencedor como
no vencido. Erro de pessoa.
Esse erro é o de atribuir ao povo contrário todas as calamidades sofridas
durante a guerra.
Não é o povo que faz a guerra, é o Estado. O povo limita-se ao papel de
máquina, de carne sofredora e bode expiatório.
Os povos são partes do grande todo que é o gênero humano e têm a
sensação inconsciente desta unidade pregada por todos os filósofos, de
Cristo a Novicow.
Esta verdade, porém, é nua como todas as verdades, tem contra si o
óbice tremendo da nudez – e o homem, criança ainda, e inda muito próximo
do troglodita, só se embeleza ante os ídolos lantejoulantes e pomposamente
embonecados da mentira. Quanto mais miçanguento o ídolo religioso ou
social, mais fiéis possui e mais difícil de ser derrotado mostra-se.
A verdade da unidade humana não consegue impor-se porque é uma
verdade e vive nua como suas irmãs que moram no poço.
Entretanto, de mil maneiras ela demonstra que a humanidade é o
grande corpo de que cada povo ou raça é membro com funções especiais.
Um é cérebro, pensa; outro é músculo, age; outro é pulmão, respira.
Este é cigarra, canta; aquele é formiga, trabalha.
Há o que inventa, há o que aperfeiçoa, o que industrializa, o que
comercia.
Há o artista, que compõe; há o sábio, que estuda; há o místico, que cria
religiões.
E todos se servem entre si, completando-se, numa interdependência
maravilhosa da qual resulta o funcionamento harmônico do todo.
E é tão íntima esta troca de serviços que, do mesmo modo como no
indivíduo, a doença, a atrofia, a morte de um membro afeta profundamente
o organismo inteiro, quebrando-lhe o ritmo da vida.
Assim, a guerra é o Mal, porque é o desequilíbrio de funções num
corpo cuja harmonia fisiológica depende do perfeito equilíbrio dos órgãos.
Imagine-se a guerra transportada para o corpo humano. Os pulmões
invadindo o cérebro e destroçando-lhe as células cinzentas. O estômago
ocupando militarmente o fígado e impondo-lhe a tarefa de fabricar suco
gástrico em vez da odiosa bílis. Os rins, vencedores do pâncreas, forçando-o
a pagar como indenização de guerra dez litros de pancreatina e a passar o
canal de Wirsung para a jurisdição do baço.
Pois absurdos assim acontecem no corpo da humanidade em
consequência da coisa monstruosa que é o direito do vencedor.
E a verdade tão simples, tão entradiça pelos olhos, dessa
interdependência harmônica das partes, povos e raças, necessária à saúde do
grande corpo humanidade, foi, é e continuará inatingível. Os séculos se
passam e estamos longe dela como no tempo de Átila.
Por que é assim?
Porque os povos se acham empolgados por um monstro parasitário de
estupidez infinita aliada a um infinito maquiavelismo.
Esse monstro é o Estado.
Aquela visão de lince feita homem que foi Frederico Nietzsche já o
denunciou pela boca sibilina de Zaratustra.
“Não há mais povos entre nós”, diz ele, “há Estados. O Estado é o mais
frio dos monstros frios; ele mente com frieza, e a mentira que escorre
perene de sua boca é esta: Eu, o Estado, sou o povo.”
Mentira! Eram criadores os que criaram os povos e lhes deram uma fé e
um amor. Serviam, assim, à vida. São destruidores os que armam arapucas à
massa e chamam a isso Estado; estes suspendem sobre a cabeça do povo um
gládio e cem apetites. Onde ainda há povo, este não compreende o Estado e
o detesta... Cada povo tem sua língua do bem e do mal que o vizinho não
compreende, linguagem inventada para seus costumes e leis. Mas o Estado
mente em todas as línguas do bem e do mal. Em tudo o que diz mente, e
tudo o que possui é roubado... Tudo nele é falso: ele morde com dentes
roubados. Até suas entranhas são mentirosas... Ao mundo vêm homens de
todos os valores, mas o Estado foi inventado pelos homens supérfluos. Vede
como ele atrai os supérfluos, como os enlaça, como os masca e remasca.
“Nada há maior que eu sobre a terra!”, urra o monstro. “Eu sou o dedo
de Deus.”
Esta visão do filósofo nunca se patenteou mais flagrante do que agora.
Foi o monstro frio quem fez a guerra – a guerra crudelíssima que os
povos padeceram em sua carne sensível.
E foi ainda o monstro frio quem fez a paz, a paz odiosa em que se torce
no garrote o pescoço dos povos – dos povos inocentes, pois os povos nos
fizeram a guerra. Eles são vítimas da guerra, porque são vítimas do monstro
Estado. O monstro empolga-os e a partir da escola organiza a mentira viva
de que se alimenta e em que se rebolca. Mentira alemã de um lado, mentira
francesa de outro, mentira inglesa, mentira italiana, mentira em todos os
idiomas, sob todas as formas. Diretor da mentalidade dos homens que
fazem a opinião pública, senhor dos instrumentos de difusão das ideias:
imprensa, livros, telégrafos, correios, o rei da mentira mente onimodamente
e a tudo envenena com a sua mentira organizada, desde as ondas hertzianas
até a cera mole dos cérebros infantis. E os povos parasitados não percebem
a sua monstruosa escravização ao parasita que nele se enraizou como um
cancro...
Não há símile mais perfeito. O cancro também cresce sem cessar,
invade todos os tecidos, não tem limites, não atinge um termo, é um
embrionário que não chega a adulto e se desenvolve num sentido só – no de
alargar-se cada vez mais. Se lhe extirpam uma parte, renasce. Se o extirpam
inteiro, ressurge.
Também o Estado não vive hoje como órgão necessário à vida do povo,
qual era a sua missão primitiva. Mas como dono, como senhor absoluto
desse povo. Ele que é o principal. O povo é o acessório, a massa carnosa de
que o Estado se alimenta.
Simbiose sui generis em que um entra com o sangue e o outro com o
apetite inextinguível...
Todas as criações do Estado são grifanhas e de utilidade unilateral. O
militarismo, a burocracia, o privilégio, o fisco, a censura: dentuças!
Mas a sua obra-prima, de uma maquiavelice infinita, é a arte de
confundir-se com o povo e dar-se como organização inteligente e necessária
do povo. Se os cancros pensassem e tivessem escolas e agências
telegráficas, a propaganda do cancro, a lição permanente do cancro perante
as células do corpo atacado seria a mesma linguagem oficial dos Estados de
hoje.
No caso recente da Grande Guerra: quem a acendeu? O Estado: o
Estado alemão, o Estado inglês, o Estado francês, o Estado russo.
Mas quem lhe sofreu os horrores inenarráveis? Os povos respectivos.
A paz de urubus, quem a fez? O Estado: o Estado alemão, o Estado
inglês, o Estado francês.
E quem lhe vai sofrer os horrores consequentes? Os povos respectivos.
Entretanto, toda gente sabe que os povos nunca fizeram guerra entre si,
porque os povos são compostos de seres sensíveis de carne dolorosa, de
pais, de mães, de filhos, de esposas, de irmãs – de corações, enfim, inimigos
natos da guerra, porque para quem é coração guerra é dor.
Apesar disso a guerra continua. E não há esperança de que os povos
abram os olhos, tirem do poço a verdade espezinhada e extirpem de vez o
cancro frio, o parasita monstruoso que é a um tempo o filho, o pai e a mãe
da guerra...
Homo sapiens

Quando o homem abdicar –  ou for deposto – da


terrena realeza, que usurpa, e em seu poleiro o plebiscito livre de todos os
seres viventes entronizar o boi, a foca ou o abutre, a vida do globo ganhará
imenso em amabilidade.
Amabilidade é o caráter do que é digno de ser amado –  e a vida na
Terra, sob a regência do homem, positivamente

não o é.
Entronizado que seja um desses animais – o boi, vá lá! –, há de tudo
ressentir-se de imediata melhoria.
Os bois não falam, nem escrevem, de onde resulta impossível
conhecerem-se de antemão os pontos básicos da Magna Carta bovina;
entretanto, dadas as excelentes qualidades de caráter e coração reveladas
por eles até aqui, é lógico prever que a realeza de guampas será
infinitamente mais gentil que a dura realeza humana.
Quantas instituições, hoje meros sonhos de ideólogos, só então as
teremos! Uma delas é facilmente previsível: a Sociedade Protetora das
Crianças.
Porque não há maiores vítimas da crueldade e da incompreensão do rei
atual do que estes débeis serezinhos de carne tenra. Sobretudo as crianças
pobres...
Durante a guerra, quando a Alemanha bombardeava, passou alguma
vez ante os olhos do germânico flamívomo a imagem das pequeninas
vítimas?
E agora, que o aliado comodamente bombardeia com ultimatos piores
que obuses, passa pela mente dos estadistas a imagem das vítimas
pequeninas?
Quantas, a esta hora, na Alemanha, na Áustria, na Turquia, com
grandes olhos assustados, purgam nas torturas da fome o crime de guerra
cometido pelos pais?
Magras, dolorosas, entanguidas...
A meia ração geral estancou-lhes o leite do seio materno. O leite das
vaquinhas não existe mais. O Tratado de Versalhes as levou... Ah, os
Torquemadas do momento preveem até nos mínimos detalhes o requinte da
tortura. Clemenceau, Lloyd George, Foch, os grandes chefes tigrinos,
sabem que a dor nos filhos inocentes é o melhor castigo aos pais. E descem
aos estábulos em pacífica e risonha pilhagem às vacas...
Os processos da guerra e da paz são os mesmos. As armas, as mesmas.
Numa, großes Berthas que vomitam ferro e gases asfixiantes; noutra, großes
Clemenceaus que expluem artigos dundum e parágrafos recheados de gases
consumptores.
Artilheiros de 420 ou artilheiros de tratados: canibais que nunca
meditaram um instante nas inocentes vítimas dessa ferócia truculenta
chamada patriotismo, culto de sangue ao Moloch moderno: Pátria.
No Moloch fenício, de ferro incandescente, despejavam os sacerdotes
dezenas de criancinhas vivas para que o chiar das carnes, os gemidos e o
fumo aplacassem um deus.
No Moloch-Tratado os sacerdotes da Pátria despejam milhões de
criancinhas para que morram de consumpção, lentamente, e aplaquem as
iras do Baal Patriotismo.
A mesma estupidez sempre, sempre o mesmo requinte de crueza.
O grande princípio da justiça humana, consagrado pelo Deus carniceiro
inventado pelo homem à sua imagem e semelhança, resume-se nesta coisa
horrenda: o inocente pagará o crime do pecador. Princípio bíblico! Divino!
Princípio irredutível que dominou ontem com Herodes, domina hoje com os
Tigres, dominará amanhã sob os Lênins, porque é própria do homem a
iniquidade...
Mas há de a vida do planeta ficar assim ab eterno sob a regência da
iniquidade?
Todos os seres, transfeitos numa legião infinita de espoliados, hão de
eternamente curvar a cabeça à tirania?
Não! É forçoso que se opere a revulsão de tudo e que do poleiro desça
o rei mau.
Eia, pois, animais todos da Terra: basta de escravidão!
Levantai-vos, leões do Saara, tigres da Índia, onças do Brasil; e vós
todos, do ar, da água, da terra, cascavéis dos campos, lobos da Rússia,
bisões do Arizona, girafas, elefantes, rinocerontes, hipopótamos, hienas,
chacais, urubus, condores, tubarões, golfinhos: uni-vos!
É tempo de conspirar contra o gorila que evoluiu e, senhor da
Inteligência e da Má-fé, vos oprime a ferro e fogo.
A inteligência dele, bem o sabeis, é uma doença, uma hipertrofia
cancerosa do instinto. Só produz males. É a mãe do sofrimento. A guerra, a
fome, a peste são filhas suas, como são filhos seus todos os horrores que
fazem odiosa a vida na Terra: os deuses carniceiros, a mentira, a riqueza, a
miséria, o Estado, a lei, o cadafalso, a inquisição, o patriotismo, a farda.
Não possuís nada disso e sois felizes.
Resolveis vossos problemas com tamanho acerto que não tendes
problemas.
Que perfeição nas abelhas! A mais rudimentar colmeia constitui ideal
inatingível ao senhor da inteligência. As aves e os insetos sorriem dos seus
progressos de aviação. Os rouxinóis não lhes toleram os Carusos. Os ratos
zombam da guerra que eles lhes declaram. Os pombos apiedam-se da sua
pobreza de instintos. Esvoaçando num hospital, a mosca, tão bem
aparelhada para a vida, tão segura de voo, tão aguda de faro, tão precisa nos
fins, vê a miséria fisiológica do homem qual um monturo infecto de que só
ela sabe tirar bom partido.
Vossa vida, animais, é perfeita de ritmo e de beleza. Se nela há
perturbações; se vos estraçoam as aves a tiro; se vos deixam os ninhos
órfãos para que morram de fome os implumes inocentes; se vos pescam nas
águas com armadilhas traiçoeiras; se todas as vossas passagens andam
tramadas de arapucas, de mundéus, de ratoeiras; se vos roubam os ovos no
ninho ou o mel nas colmeias; se vos aprisionam em gaiolas os cantores e em
jaulas os que sabem defender-se; se vos jungem às carroças, a carros
pesadíssimos, à canga dos arados; se vos furam o focinho para meter
argolas dolorosas; se vos enfreiam a boca de ferros cruéis; se vos caçam no
mar a arpão de aço e na terra a balas explosivas; se penduram nos açougues
a carne dos vossos cadáveres; se vos invadem todos os domínios, e vos
incendeiam os campos, e vos inundam as matas, e vos secam as águas, e
vos drenam os pântanos – é ele que o faz. Ele, o macaco glabro, o rei por
maquiavelice da má inteligência. Ele, o cultor consciente da arte da dor.
Em toda parte está o Homo como o próprio mal encarnado, matando,
esfolando, torturando, saqueando, desnaturando, perturbando a harmonia
das coisas.
Em proveito próprio, ao menos?
Oh, não!
E não porque a maior vítima do homem ainda é o próprio homem.
Lobo de si próprio. Torquemada dos seus próprios filhinhos inocentes, o
homem é Prometeu roendo com seus próprios dentes o próprio fígado.
Que esperar, pois, da realeza dum calceta desta marca?
Animais todos da Terra, basta de submissão! Uni-vos!
Luvas!

Quando Deus, de mangas arregaçadas, empreendeu a


tarefa de organizar o mundo, o que existia era o caos. Todas as coisas já
estavam nele, mas às tontas, no desarranjo dum imenso depósito de
mercadorias “empasteladas”. A obra da criação foi simples obra de ordem e
harmonia. Jeová ia pegando rios, lagoas, montanhas, planícies e dispondo-
os sobre a crosta nua, ao sabor dum plano de geoestética preestabelecido.
Feito o quê, cuidou do aformoseamento.
Havia em certo ponto uma grande reserva de coisas lindas. Montão
caótico de maravilhas, museu das mais belas águas, das mais belas pedras,
despejo desordenado duma cornucópia de fada, era ali o Grande
Almoxarifado das Belezas Naturais donde Jeová ia tirando maravilhas para
alindar as regiões recém-geografadas. O depósito, porém, era inesgotável e,
por mais primores que fornecesse ao insigne presepista, permaneceu quase
intacto após sete dias de requisições contínuas.
Estudos posteriores conseguiram localizar a sede do Grande
Almoxarifado. Situava-se – ninguém mais o discute – onde é hoje o Rio de
Janeiro.
Mas as outras regiões prejudicadas no rateio reclamaram contra a
injusta distribuição, e Jeová, Suma Diplomacia, resolveu o problema duma
forma engenhosa. Ponho lá, disse ele às reclamantes, um povo fechado aos
encantos da natureza e, por mãos desse povo, o excesso de que vocês se
queixam minguará dia a dia.
O dito, o feito. Jeová povoou o Rio com os elementos mais aptos para
corrigir o seu erro, e os homens escolhidos trabalharam como Brenos, sem
um momento de folga, na obra de provar que Deus é também a Suma
Psicologia.
A tarefa, entretanto, era ingente. Cansou a mão de Deus e está
cansando a munheca do homem. Por mais que esta faça, continua o Rio a
denunciar que foi a sede do Grande Almoxarifado das Belezas Naturais. O
Pão de Açúcar persiste. O Corcovado insiste. A Tijuca resiste. A Gávea
subsiste. E embora feio visto nos detalhes afeiantes com que o homem
pacientemente o desfeia, olhado dos altos, em conjunto, no agrupamento
das massas, o Rio é e há de ser sempre a prova esplêndida de que a Suma
Equidade ali claudicou.
O carioca não dá o devido apreço ao quadro, já porque faz parte
integrante dele, como animação da paisagem, já porque sofre da saturação
da beleza. Criado naquele ambiente, afeito desde menino à irradiação da
beleza, calejou-se, ofuscou-se e adquiriu o hábito de olhar sem ver. Quem
chega de fora, porém, das terras lesadas pelo erro de dosagem do Supremo
Paisagista, esse deslumbra-se e leva na retina, estampado para sempre, o
deslumbramento, como leva n’alma uma ponta de revolta contra a
diplomacia divina.
Porque se houvesse caído no Rio um povo capaz de senso estético,
como foi o grego, como são os do Norte da Europa, e se à obra da natureza
se somasse a obra do homem, o Rio seria o Éden restaurado, a sala de
visitas do mundo, um ponto forçado do turismo universal.
Dá vertigens sonhar dentro dessa paisagem uma arquitetura que a
realçasse, que fosse a mesma paisagem continuada, projetada
artificialmente em linhas e massas de suprema harmonia.
Em vez disso: outra, o casarão, o horrendo chalé, a gaiola com batentes
de granito; e hoje, o carnavalesco fandango dos estilos exóticos, mourisco
ali, assírio aqui, coisa nenhuma acolá, elixir de nogueira adiante...
Apesar disso o Rio é o Rio, cidade do sonho e maravilha incomparável.
E o será, talvez, sempre. Por mais que o micróbio neoformans, empenhado na
faina de quebrar o brilho ao sol, ataque, morda, corroa a paisagem, um
aspecto subsistirá sempre, e bastará ele para assegurar o primado da beleza:
o relevo do solo, essas pedras gigantescas, únicas no mundo, esses morros
sem-par, joias inestimáveis, suficientes, um só em cada cidade, para encher
de orgulho seus habitantes.
Mas até contra o morro investe o neoformans. Já arrasou alguns e traz
sempre de olho o morro dos morros, o pai de todos, o morro sagrado que
deveria ser a nossa acrópole.
Ali no morro do Castelo nasceu a cidade, ergueu-se a primeira igreja,
funcionou o primeiro colégio, enterrou-se Estácio, o fundador. Dali partiu a
mancha de azeite que, insinuada encostas acima e vales afora, criou o
urbanismo mais pitoresco jamais surgido sobre a Terra. Além desta função
genetriz, de si bastante para sagrar a colina, o morro do Castelo, justamente
pelo abandono em que o deixaram e pela vizinhança com a Avenida, é a
pérola maior do colar de pérolas carioca.
Anacronismo vivo, Dom João VI paredes-meias com Epitácio, século
XVI entreaberto à curiosidade do século XX, sobrevivência fossilizada de
eras para sempre perdidas, é um ancião de barbas brancas, de cócoras à
beira-mar, rememorando o muito que já lhe passou diante dos olhos.
Mas triste. Sabe que os homens de hoje estão voltando a certas praxes
aimorés e receia que lhe façam a ele o que fazia aos pais inutilizados pela
velhice a mocidade de tanga: que o matem e comam. Ouve sempre
cochichos suspeitos nos quais um estribilho soa insistente: precisamos
arrasar o morro do Castelo! Sente-se condenado, como a árvore secular que
caiu nas unhas dum vendedor de lenha, preocupadíssimo com o cálculo das
carradas prováveis. Percebe que virou negócio, que o verdadeiro tesouro
oculto em suas entranhas não é a imagem de ouro maciço de Santo Inácio, e
sim o Panamá do seu arrasamento. E desconfia que o seu fim está próximo.
Os homens de hoje são negocistas sem alma. Querem dinheiro. Para
obtê-lo venderão tudo, venderiam até a alma, se a tivessem. Como pode ele,
pois, resistir à maré, se suas credenciais – velhice, beleza, pitoresco,
historicidade – não são valores de cotação na Bolsa?
Conforme-se o velho morro sagrado e com ele os abencerragens do
contemplativismo estético: está decretada a sua extirpação. Mais dia, menos
dia a picareta lhe lavrará as entranhas, e em seu lugar se estabelecerá mais
um núcleo desses açougues onde o senhorio risonho esfola a rês inquilina.
Estão eles, os senhorios, a sonhar nas luvas de ouro incubadas ali dentro.
Quantas! Que gordas pepineiras! Que negociatas de esfregar as mãos o raio
do morro, quando arrasado, lhes proporcionará!
Ora, o mundo não é dirigido nem por filósofos nem por estetas. Condu-
lo a mão pegajosa do vendeiro malcheiroso que enriqueceu na cebola e
acabou conde. Ele compra. Ele paga. Ele suborna. Ele é imensamente
estúpido. Reze, pois, o morro do Castelo suas últimas orações, entregue a
alma a Deus, e prepare-se para gemer na agonia final aos golpes da picareta.
Não há forças humanas que o salvem. Os homens de hoje são filhos dos
antigos prepostos de Jeová, e tão incansáveis como os pais na faina de lhe
corrigir o famoso erro de dosagem. Além disso, está provado que há
tesouros lá dentro: luvas!
Dramas de crueldade

Estudou Euclides da Cunha um dos dramas da


nossa crueldade. Os outros, que os temos em número maior do que se
supõe, jazem em branco, à espera de novos Euclides, suficientemente
corajosos e suficientemente artistas para fixá-los em obra de verdade e arte.
No geral esses dramas permanecem ignorados do país. Mortos os atores,
dispersos como grãos de areia os assistentes eventuais, reduzida a voz da
vítima a débeis cochichos, deles restam nos arquivos do Estado relatórios
insulsos, tão soporíferos quão mentirosos. E ali irá a história mais tarde
beber informes para a estilização, para a moedagem corrente dos fatos,
assentando um tijolo a mais no edifício da mentira inconsciente que ela é.
Sem a intervenção da arte é impossível transmitir aos pósteros a
sensação exata do que se passou. Só a arte sabe perpetuar o que foi vida.
Canudos teve a sorte de topar em seu caminho um estilo a serviço de uma
consciência. Não fora isso, e o drama lá estaria hoje reduzido à mentiralha
de encomenda dum relatório tendencioso, apologético para o vencedor,
capaz de meter na história, como heróis, a gente que Euclides atou ao
pelourinho.
Assim, Manzoni e Boccaccio legaram-nos a visão exata das pestes de
Milão e Florença. Não fossem eles, e quem se recordaria hoje dessas
calamidades? Os relatórios oficiais em que foram “mentidas”, onde param?
O relatório é um mal crônico. É a própria velhacaria humana transfeita
em calhamaço. O meio de neutralizá-lo é um só: contrapor-lhe Euclides.
Infelizmente os Euclides são raros, e centenas de dramas se desenrolam
antes que surja um. Tivemos depois de Canudos uma reprise da peça no
Contestado. As mesmas origens: beatice e ignorância. A mesma réplica:
farda e incompreensão. O mesmo desfecho: crueldade e covardia. A mesma
apoteose: relatórios. Não surgiu, porém, o Euclides, e o país ignora esse
novo drama, que não será o último.
Que não será o último porque as causas persistem. Cada vez mais o
litoral encurrala o sertão, especializando-se em inépcia à medida que este se
especializa em miséria moral e ignorância. O beco é sem saída.
A República, feita para uso e gozo de uma mediocracia rapinante, não
resolve problemas sociais. Digere. Joga pôquer. Percebe porcentagens. Não
lhe sobram olhos para ver em Canudos, no Contestado, na permanência do
cangaço nortista, nas agitações da Bahia, o tremendo mal-estar de uma
pobre sub-raça em via de eliminação, mas capaz de muito no dia em que
tiver chefes.
Vêm-nos à pena estas considerações lendo no livro de Crispim Mira o
capítulo dedicado à revolução sulista no tempo de Floriano. É outro drama
de estupidez e crueldade que não foi escrito. Até aqui, sobre ele, tem-se
apenas mentido.
Que horrorosa calamidade foi aquilo! Como nos degradou, revelando
aspectos repelentes do caráter nacional!
Por isso mesmo que a revolução não teve um critério claro a orientá-la,
diz Mira, aconteceu o que era inevitável: desenfreamento das mais baixas
paixões da besta humana, só de leve açaimada por uma casquinha de cultura
moral. E uma onda de calamidades rolou sobre a terra catarinense, norteada
pelo fio do espadagão caudilhesco, subvertendo a ordem e levando aos
campos e às cidades a miséria, a dor, a desonra, o luto. Desgraçados os que
caíam no desfavor das facções! Não tardava surgir-lhes pela frente bandos
de cavalarianos de bombachas, ou vestidos à legalista, que arrombavam,
saqueavam, assassinavam, violavam meninas em frente dos pais amarrados
e forçados a assistir ao horrendo sacrifício. Ninguém escapava a esse cruel
destino. Por mais que respeitáveis famílias se conservassem estranhas ao
facciosismo político, a qualquer momento irrompiam-lhes casa adentro
indivíduos patibulares, portadores de intimações e exigências odiosas. E o
remédio era submeterem-se sem um protesto, porque o facão ali estava de
fio pronto para tudo decidir sumariamente.
Imperavam por toda parte as criaturas más por temperamento e de
caráter infame, o ladrão, o proxeneta, o delator, o traiçoeiro – essas
ressurreições ascorosas daqueles pustulentos romanos do tempo de Nero.
Capazes de todas as infâmias, o momento era deles, porque do alto só se
exigia do homem uma coisa: servilismo. A cada fechadura um ouvido se
postava. Havia o sadismo da delação. Chegou ela a ponto de o próprio
Floriano revoltar-se um dia. Um capacho político insinuava coisas
desairosas relativas a Saldanha da Gama, quando o marechal o interrompeu:
– Cale-se. Saldanha é um marinheiro que honra o Brasil. É um homem
de linha. Não calunia nem bajula. Prefiro adversários assim a amigos
áulicos, instrumentos da própria inferioridade e advogados das próprias
ambições.
Se Floriano agia assim – e nem sempre agiu assim –, seus asseclas só
se guiavam pela voz do delator. Por esse motivo a luta do Sul constitui,
talvez, a mais horripilante mancha da nossa história. A delação fez mais
vítimas do que a ideia. Vidas preciosas foram ceifadas sem que de nenhum
modo o crime aproveitasse aos interesses das facções.
E os requintes de perversidade em que refocilava o ódio! Não bastava
matar. Era mister torturar. E lá iam prisioneiros de mãos algemadas,
puxados a laço pelo pescoço. Se caíam, vencidos pelo cansaço, vinha o
infamante chicote erguê-los. A outros obrigavam a passar fogueiras, ou a
engolir excrementos humanos, quando os não supliciavam à maneira da
Santíssima Inquisição, cortando-lhes as carnes aos pedacinhos durante
semanas inteiras.
Felizes os que caíam sob a degola! Porque a degola chegou a ser ato de
clemência... Era comum os chefes – gente que hoje dá nome a ruas –
esquentarem o carrasco à força de pinga e mandarem-no divertir-se com o
lambisca ou o maragato. E lá ia ele, a rir, chapéu para trás, alisando o facão, em
procura do prisioneiro manietado. Começava com chufas, e um pontaço
para espertá-lo. Se a vítima pedia a degola rápida, o infame replicava que
tivesse paciência, que “primeiro era preciso botar fora o sangue ruim”. E, à
sua frente, boleando o facão em movimentos de esgrima, cortava-lhe uma
orelha. Parava. Ria-se. Cortava outra, decepava o nariz, ablaqueava os
lábios de modo a deixar os dentes à mostra. E ria-se ante as visagens
horrendas do martirizado. Chamava os companheiros para ver que boneco
engraçado estava esculpindo a facão. E continuava, golpe aqui, golpe ali,
corta este, aquele músculo, até paralisar todos os movimento da cara. Como
a caveira escamada ainda geme, mete-lhe a ponta do facão na boca e atora-
lhe a língua. E ri-se. Por fim, farto como uma hiena, degola-a...
Nos fuzilamentos o processo era mais humano. Concediam às vitimas o
direito de vendar os olhos...
“Houve uma ilha”, diz Mira, “provida duma fortaleza, para onde um
coronel epiléptico, já execrado pelas gerações e ignominiosamente fixado
pela história, mandava às dezenas, nos seus rompantes de paranoico, para
serem passados pelo fuzil, prestimosos cidadãos cujas famílias os choram
ainda. Duma feita, quando um cavalheiro de barbas brancas ia ser
espingardeado, o filho, também prisioneiro, atirou-se-lhe aos braços em
doloroso amplexo de despedida. Mas o comandante da escolta ordenou
incontinênti:
– Façam fogo nesses sujeitos.
Esses ‘sujeitos’ eram o venerando barão de Batovi e seu filho, o doutor
Gama d’Eça.”
Os autores destas barbaridades tiveram um castigo sui generis: dar o
nome às principais ruas das nossas principais cidades. Crispim Mira
esqueceu de completar com esta observação a página vibrante onde
estigmatiza aquele rosário de crimes. No entanto, este detalhe é o mais
precioso de todos, porque completa o quadro e faz-nos compreender a
mentira viva que somos. Mentimos aos pósteros alçando à categoria de
heróis carrascos que mentiram a todas as leis da justiça e da humanidade.

Depois, para desencargo de consciência, à primeira oportunidade que surja,


mentimos de novo deflagrando nossa indignação contra os bárbaros de
fora...
Dialeto caipira

Sob este título modesto acaba Amadeu Amaral de


compor a primeira gramática da língua brasileira.
Expliquemo-nos.
A grande árvore da língua latina, que circunstâncias felizes fizeram
viçar ao bafejo das brisas mediterrâneas, depois de completo um glorioso
ciclo biológico, morreu como morrem árvores – escasqueada, broqueada,
parasitada, lenhada e afinal derrubada pelo bárbaro a manejar
inconscientemente o machado da evolução.
Mas como árvore que era, morreu perpetuando a espécie nas filhas –
esses formosos alporques que constituem hoje a família neolatina.
Bela irmandade! Quatro irmãs, opulentas de tesouros literários – a lusa,
a italiana, a francesa, a espanhola e a mais humildezinha, aquela entalada no
frége dos Bálcãs – a romena. E todas bem enseivadas, ricas, capazes de a seu
turno reflorirem em prole magnífica de que sairão as netas da língua latina.
Cá entre nós já vemos grulhar a netinha número um, subvariedade da
variedade portuguesa.
É a língua da terra, a língua geral destes 25 milhões de criaturas que
somos. Coexiste em nosso território, ao lado da língua-mãe e oficial, a
portuguesa. Humilde criança da roça, gerada no seio da arraia-miúda dos
campos e do povinho humilde e sofredor das cidades, negam-lhe pão e água
os magnatas cortesanescos que fazem roda de peru em torno da rainha
metropolitana.
Não obstante a menina cresce, conchegada com amor no seio do povo.
Já é ela, a neta, e não mais a avó erudita, quem satisfaz às necessidades de
intercâmbio mental dos roceiros, das patuleias urbanas e dos literatos que se
dirigem às massas e não às elites. Nela é que o sertanejo ama, o gaúcho
bravateia, o retirante chora, o seringueiro lamenta-se, o vaqueiro descanta, o
cafajeste pernostica. Tem já poetas embelecados pelas suas graças
nascentes, e adoradores prosistas, doidos pelo seu linguajar langue,
ingênuo, expressivo e vivamente impregnado da cor, do som, do cheiro, do
ité, do agreste da terra brasílica.
Crescerá essa menina, far-se-á moça e mulher e sentar-se-á um dia no
trono ora ocupado por sua empertigada e conspícua mãe. Imperará no Brasil
inteiro – não como hoje, às ocultas e medrosamente, mas às claras, de
justiça e de direito; e não na língua falada apenas, mas na falada, na escrita
e na erudita. E a velha língua-mãe, que cá vige mas não viça, abdicará de
vez em favor da filha espúria que hoje renega, e desconhece, e insulta como
corruptora da pureza importada.
Cem anos levará isto? Que importa? Cem, duzentos, quinhentos – isso
é nada na vida de um povo. E sinhazinha Brasilina não tem pressa. Menina
descançadota, meio “mãe da vida”, ela não olha para o tempo e,
despreocupada, folga e ri de pé no chão à beira dos corgos, pelas vendolas
de estrada, nos casebres de sopapo, nos sambas, nas catiras, nas farras, na
peraltagem infantil das ruas. Convive apenas com o povinho miúdo. Foge
acanhada dos grandes, em cujo olhar severo só vê censuras e desprezo.
Tem namorados. Cornélio Pires é um. Valdomiro Silveira é outro. Com
eles abre o coração e entremostra o ouro que lhe vai dentro.
Gosta ainda de sapatear quando Catulo sapeca o pinho choroso. Mas,
apesar destas fugidias entradas no grande palco, a artista Brasilina
permanece roceira, e só nos campos reina qual ninfa selvagem – pés nus,
vento nos cabelos, sol nas faces.
Era assim. Mas hoje Brasilina está séria, de testa franzida. Veio
perturbar-lhe o sossego um homem seu desconhecido, cuja atitude a
surpreende.
Amadeu Amaral, em vez de lhe sussurrar palavras de amor ou desferir
descantes de viola, estuda-a. E Brasilina, tomada a sério pela primeira vez,
escolhida de improviso por um escritor de alto renome que a quer retratar
com fidelidade, entrepara, acanhadinha, de pé atrás e dedo na boca. E
Amadeu assim a esboça, dos pés à cabeça, em traços firmes, num carvão
que marcará entre nós o início duma fase nova de estudos linguísticos – e
esta fecundíssima, verão.
Até aqui a nossa filologia se limitava a bizantinar sobre verrugas da
língua-mãe, mexericando com clássicos, fossando como leitoa
pulverulentos alfarrábios reinóis. Surgia a polêmica estéril. Cândido de
Figueiredo intervinha lá de Lisboa com a palmatória; os gramáticos
menores – que os há como carrapatos pelo interior – assanhavam-se; e o
ponto debatido em vez de esclarecer-se ficava como novelo que gato
brincou.
O estudo único em matéria filológica que nos cumpria fazer não o
fazíamos. Era esse da língua nova, a língua que ao país inteiro interessa: o
estudo, o retrato fiel da Brasilina arisca que atende às necessidades de
expressão dos 25 milhões de jecas que somos. Porque, estranha
contradição!, falamos à moda de Brasilina, mas escrevemos à moda de dona
Manuela, por falta de coragem, ou medo ao bolo da palmatória portuguesa.
Esse estudo tão reclamado Amadeu Amaral superiormente o realizou.
Seu Dialeto caipira vale por chave de ouro a abrir as portas de um mundo
inédito. É o começo da gramaticação de uma língua nova, neta da língua de
Horácio.
Ele traz pela mão, honestamente, a caipirinha dialetal paulista e a
apresenta ao país.
– Está aqui o pingo-d’água arisco que vai ser o diamante de amanhã.
Exponho-a aos vossos olhos, nuazinha em pelo, envergonhada e humilde
como a apanhei na roça. Apanhei-a como o O. F. apanha borboletas: sem
lhes tocar nas asas para que nenhuma falripa do irisado se perca. Está pura e
intacta como se surgisse de um banho matinal no ribeirão.
Estudei-a sob todos os aspectos.
O fonético, enunciando as alterações normais dos fonemas e as
modificações isoladas. O lexicológico, dizendo dos elementos lusos,
arcaicos na forma ou no sentido, com que se enfeita; dos elementos
indígenas que assimilou, dos africanos e das elaborações pessoais –
deliciosa criação de fino valor expressivo. O morfológico, dando a
formação das palavras, as maluqueiras teratológicas, as flexões de grau e
verbo e o modo todo seu de resolver a questão dos pronomes. O sintático,
reunindo fatos relativos ao sujeito, ao pronome como objetivo direto, às
conjugações perifrásticas, às orações relativas, às modalidades de negativa e
à maneira de circunstanciar o tempo, o espaço e a causa.
Em seguida organizei um vocabulário onde desfio o rosário inteiro de
palavras que ela criou, ressuscitou, simbolizou e modificou – ou corrompeu,
como querem os moralistas vestidos na pele dos filólogos.
Aqui tendes a minha contribuição. Juro pela fidelidade do esboço – que
assim foi que a vi, à língua nova, brincando menineira em terras de São
Paulo. Façam outros o mesmo. Retratem-na com este carinho, ao Norte, ao
Sul, ao Centro – honestamente, sem retoques.
Porque Brasilina é volúvel. Traja-se de gaúcha nos pampas, de vaqueira
no Centro, de seringueira na Amazônia e só a teremos estudada de modo
integral, nas graças corporais e na psicologia, quando lhe fotografarmos
todas as variantes. Só esse trabalho coletivo nos permitirá a posse do
diamante bruto que por aí rola nas mãos calejadas do poviléu. Feito isso, é
lapidá-lo na ourivesaria da rima e da prosa e teremos criado a língua nova
que no futuro falarão cem ou duzentos milhões de homens.
É isto que nos diz o livrinho modesto de Amadeu Amaral, o Fernão
Lopes da gramaticologia brasileira.
Seu Dialeto caipira assanhará as tartarugas filológico-perobas, como obra
ímpia que dá honras de cidade à “corrupção”.
Esses carunchos sob forma humana pertencem à fauna cadavérica. Só
se sentem à vontade quando a questão é de necropsia. Em se tratando de
arrastar a asa a uma rapariga viva, de carne morena e quente, persignam-se
como fradalhões hipócritas e gritam fugindo às arrecuas:
– Pecado! Pecado!...
Os livros fundamentais

O filhote vespertino do Estado abriu nas livrarias


um inquérito a fim de apurar o que entre nós se lê.
Tais inquéritos são por natureza deficientes e velhacos, intervindo para
viciá-los não só a maroteira dos negociantes como ainda a simpatia dos
promotores. Além disso não provam de fato o que se lê, senão, e apenas, o
que se compra.
Entre comprar livros e lê-los vai alguma diferença. Muita gente adquire
os Ensaios de Montaigne para enfeitar a estante; mas só lê o fescenino
Alfredo Galis. Outros ornamentam as estantes com Taine, Spencer,
Mommsen, Nietzsche, William James, Maeterlinck, Platão. Entretanto, à
cabeceira da cama só lhes vereis o velho Dumas ou o moderno Nick Carter.
De modo que tais inquéritos erram de objetivo e tomam a nuvem por Juno,
como se dizia nos saudosos tempos das imagens gregas.
Cumpre ainda distinguir o que leem os trezentos de Gedeão do escol
nacional, do que lê a massa, os 99% do país.
O escol lê o seu Anatole France, o seu Maupassant, o seu Maeterlinck,
o seu Rostand, o seu d’Annunziozinho. É cosmopolita, e se lhe tomardes as
medidas psicométricas vereis que nada o distingue da elite de toda parte. A
cultura uniformiza os cérebros e trá-los moldados pela mesma fôrma – na
França, aqui ou na Indochina. O escol não possui individualidade marcada,
nem a coragem do gosto pessoal. Rege-o em toda parte o mesmo código de
esnobismo. Quando surgiu Bergson na França, os escóis do mundo inteiro
se fizeram bergsonianos. Zelosos do bom-tom, vestem o cérebro pelo
figurino do dia e usam um poeta, um romancista, um filósofo, do mesmo
modo e pelas mesmas razões que usam certo nó de gravata ou tal moda de
chapéu.
O povo, não.
O povo tem a coragem da sua honrada estupidez. Veste-se como quer e
lê o que lhe sabe.
Entre nós, por exemplo, é facílimo seriar as leituras que conformam a
mentalidade do povo.
O menino aprende a ler na escola e lê em aula, à força, os horrorosos
livros de leituras didáticas que os industriais do gênero impingem nos
governos. Coisas soporíferas, leituras cívicas, fastidiosas patriotices,
Tiradentes, bandeirantes, Henrique Dias etc. Aprende assim a detestar a
pátria, sinônimo de seca, e a considerar a leitura como um instrumento de
suplício.
A pátria pedagógica, as coisas da pátria pedagogicada, a ininterrupta
amolação duma pátria de fancaria empedagogada em estilo melodramático,
e embutida a martelo num cérebro pueril que sonha acordado e, fundamente
imaginativo, só pede ficção, contos de fada, história de anõezinhos
maravilhosos, “mil e uma noites”, em suma, apenas consegue uma coisa:
fazer considerar a abstração “pátria” como um castigo da pior espécie. Mais
tarde, possam eles!, e estão vendendo, estão traindo, por espírito de
vingança, essa pátria desagradável, maçadora, secante, que lhes encruou os
melhores dias infantis.
Além disso, sai o menino de escola com esta noção curiosíssima,
embora lógica: a leitura é um mal; o livro, um inimigo; não ler coisa alguma
é o maior encanto da existência.
Acontece, todavia, que o diabo intervém, e um belo dia lhe cai nas
mãos um livro proibido, Tereza, a filósofa, por exemplo. O menino abre-o, por
acaso, já enfastiado de antemão.
– Já sei. É aquela seringação do Tiradentes...
E lê displicente uma linha. Lê mais interessado a segunda. Lê uma
outra com o sangue já a alvoroçar-se nas veias – e corre a esconder-se para
que ninguém lhe perturbe a leitura do livro inteiro.
Está salvo! Aquele providencial livrinho matou-lhe o engulho da leitura
inoculado na escola pela pedagogia sorna. O menino aprendeu no livro de
Tereza o valor da leitura; viu que a letra de fôrma não se limita a veicular as
estopadas bocejantes do desagradável tempo de prisão escolar; viu que a
leitura é suscetível de interessar profundamente a imaginação; e que se há
livros piores do que palmatórias, há-os em compensação deliciosos, como
esse da boa Tereza.
E, despertado para um mundo novo, ei-lo à caça de livros e a
mergulhar-se em quantos encontra, em procura de pão para a libido – o pão
básico, o pão fundamental do homem.
Daí a procurar o pão do espírito é um passo – e está salvo, está ganho
para a cultura.
Anos depois, mergulhado em Spencer ou estudando em Kant a
representação sensorial das coisas, se se detém para um exame de
consciência, verifica, sorrindo, que o que o levou àquelas altas filosofias
não foi o pedagogo carreteiro de pacóvias sornices cívicas, mas um livro
proibido – um grande livro, afinal, a biblion da sua formação do espírito:
Tereza, a filósofa.
Estes são, pois, os livros fundamentais da nossa cultura. Se temos
grandes escritores, e pensadores, e altos expoentes de vida mental, às
excelentes Terezas e aos apopléticos fradalhões fesceninos que em livros
desse gênero enxameiam o devemos. Sem elas e eles, tais mentalidades
conservar-se-iam em estado latente, graças ao horror à leitura adquirido na
escola.
Ao lado desses livros básicos existem outros de menor influência,
embora fecundíssimos em resultados. Carlos Magno e os doze pares de França é um
deles.
Não se dirige à libido, e sim ao instinto guerreiro que nos legou o
troglodita e que a civilização vem apurando através dos séculos.
A imaginação ali cabriola como potro insofrido, liberto da baia.
Aqueles heróis que fendem cabeças de mouros durante trezentas páginas a
fio, o cheiro de sangue que exala a história, as façanhas inauditas dos
invencíveis “pares de França”, tudo aquilo por junto forma um amavio
inebriante, capitoso como um vinho forte.
É livro formador. Desperta o gosto pela leitura e conduz à boa estrada
quantos no tempo próprio lhe põem a vista

em cima.
Mas o menino cresce, atinge a puberdade e entra a perturbar-se diante
da mulher. Ama. A aurora do primeiro amor intumesce-lhe o coração,
recheia-o de sentimentos vagos, novos, nunca experimentados. E ele cai a
fundo em Casimiro de Abreu. A sua virgem está lá nos versos do poeta; é
aquela mesma rolinha esquiva que se oferece e negaceia, e fugindo o fere
com a flecha do Partho.
Suas tremuras, sua vermelhidão, seu enleio, seus desejos, tudo lhe
traduz o poeta encantador dos 16 anos, esse eterno Casimiro que morreu na
cruz para redimir Querubim da tortura de sentir e não saber dizer.
As meninas, já essas vão todas para Escrich. Só Escrich sabe o segredo
de interessar a sensibilidade das nossas “meninas e moças”.
Em Escrich ama-se com furor, pelos processos embriagadores do
“romantismo do coração”. A vida ali é uma coisa só: amor. A ação: amar. O
objetivo, o fim supremo de tudo: cair nos braços do objeto amado ou
traduzindo isso na linguagem utilitária da mulher: casar.
Mil cidadezinhas pelo interior do Brasil existem onde, em matéria de
leitura, de pais a filhos, gerações sucessivas gravitam em torno desse trio:
Tereza, Carlos Magno, Escrich.
Tereza, sempre escondida, surge da toca quando lhe passa ao pé um
adolescente. É a fada boa dos 14 anos.
Escrich vive às claras, em cima das cômodas, na gaveta dos toucadores,
nos cestinhos de costura. É o cicerone dos corações que soletram. Quem
examinar um desses Escrich de edição barata verá que prodigiosa legião de
olhos – olhos verdes, azuis, negros, castanhos, lindos olhos quase todos – já
lhe choraram sobre as páginas amarelidas e encardidas. De cantos puídos e
folhas uma a uma assinaladas com dobrinhas marcadoras de interrupção da
leitura, alçam-se tais livros à categoria de entidades veneráveis, dignas do
maior respeito. Sem donos, em geral, circulam de mão em mão, em
empréstimos sucessivos, como bens pertencentes à comunidade. E de tanto
uso chegam literalmente a gastar-se, como velhas notas de mil-réis.
Disto se vê que as letras nacionais só forneceram até hoje um livro de
influência marcada na formação popular: as Primaveras de Casimiro Patativa.
Os mais vieram da península, com a pimenta e o queijo do reino.
Só nacionalizamos, portanto, o amor – e o amor masculino, apenas.
Para o resto o nosso povo ainda é colono. E assim será enquanto a literatura
for entre nós planta de estufa – desabrochada em flores como as quer a elite,
e enquanto a pedagogia for a própria arte de secar as crianças com o
didatismo cívico, criando, logicamente, o irredutível horror à leitura que
caracteriza o brasileiro.
Condes...

Erro foi da Erro foi da República, e grande,


suprimir as distinções nobiliárquicas, visto que o crachá tem suas raízes na
própria natureza humana. Tanto mais rica de encantos é a vida social de um
povo quanto mais se acidenta de altibaixos, como acontece na vida natural.
A paisagem humana é, na vida natural, opulentíssima de contrastes. Ao lado
do gênio vegeta o cretino; João da Ega cruza passos com mestre Acácio;
Wagner mora paredes-meias com um surdo-mudo; Maquiavel da sua janela
sorri do infindável desfile dos ingênuos; Antônio traz negócios com o
senhor Quasímodo; Frineia sorri-se de Miss Leyton, essa urucaca inglesa,
primeiro prêmio da feiura londrina; São Francisco de Assis ombreia com
labregos ferozes, que derrancam a cabo de relho burros estropiados.
Terreno montanhosíssimo. Cadeia andina onde os picos vulcânicos da
inteligência se erguem ao pé das boçorocas da estupidez; e o bom e o mau,
o rico e o pobre, o virtuoso e o crápula, o puritano e o larápio, o artista e o
idiota, o honesto e o cavador, os Rollos e os Ximenes formam a mais
pitoresca montanha-russa de valores naturais.
Foi, é e será assim, porque a sinfonia universal joga com milhares de
notas, e todas são necessárias à maravilhosa harmonia do conjunto.
Na ordem social também é assim. De tempos já sem memória criaram-
se as distinções nobiliárquicas a fim de dar à paisagem social o mesmo
relevo de solo que assinala a outra. Daí Himalaias: reis, imperadores. E
montes: duques, marqueses, condes. E montículos de terra: barões,
comendadores.
Mas vem a República e entende de revogar a natureza humana
decretando a planície geral. Tudo raso! Nem Himalaias, nem montes, nem
montículos. Apenas, para consolação de aflitos, o cupim do coronelato da
Guarda Nacional, que por sua vez acabou suprimido também. De ponta a
ponta um plaino sem duna de areia a quebrar a lisura da obra!...
Ingênua República! Falhou nisto como falhará em tudo quanto fez
contra os pendores irresistíveis da natureza humana. Abafados, asfixiados
aqui, eles ressurtem lá adiante sob formas novas e perpetuam-se.
Assim se deu entre nós com a nobreza. Extinta por decreto, graças à
incompreensão do 15 de Novembro, refloresce hoje em vergônteas
magníficas. À fauna copiosa da nobreza imperial substitui-se a fauna
moderna da nobreza arrivista. E a nossa paisagem social, planura intérmina,
pasto pontilhado apenas de legiões de cupins coronelícios, anima-se de
novo com montículos baronais, montes condais e até um pico principesco.
Em São Paulo o terreno acidenta-se rapidamente graças à
cogumelagem dos condes. Tantos há que os engraxates já receiam dar de
doutor a todos os fregueses.
– Doutor? Dobre a língua. Saiba que está aos pés do senhor Conde da
Mortadela!...
Que os há em número dia a dia maior. Negociante que abre falência
três vezes começa a ser tratado com respeito.
– Está ali, está conde – murmura o povo, fino de faro.
E como é lindo ser conde, quem enriquece numa boa negociata ou
inventa um meio inédito de “aperfeiçoar” a banha entra logo a sonhar com
brasões, e lá num ano bom de saldos gordos “recebe” a comenda. Festas,
então, suntuosas; “V. Excia.” a granel; murmúrios de inveja dos que não
podem colher o fruto.
Não demora muito surge um estudioso de nobiliarquia, o qual descobre
o entroncamento do conde na alta prosápia dum Bernardo del Carpio, dum
Assurbanipal da Assíria. Dum Roderico de Espanha, ou, se o homem é
modesto ou paga pouco, dum simples Bulhão cruzado.
E rebenta logo o escudo da família, elaborado pelos nossos engenhosos
Sanches de Baena. Castelos, leões de goles, veiros e contraveiros, aspas –
olé! –, arminhos, águias armadas em preto, fundos jalnes, campos blaus,
arruelas, grifos, rabos de jacaré – toda a estamparia heráldica que nos legou
a imaginação medieva.
Só não figuram nesses escudos as coisas prosaicas que deram origem às
respectivas nobilitações: molhos de aletria, réstias de cebolas, pezinhos de
cabra em campo blau, barriletes de banha com fundo duplo em imprimadura
jalne etc. etc. Não são heráldicos tais signos; não têm por si a força da
tradição.
Não se sabe bem por que a fauna condal é a que mais depressa se
multiplica. Corresponde na nobreza ao coelho entre os roedores. Talvez seja
isso pelo fato de abrolhar em São Paulo mais fortunas que em todo o resto
do país; e, por estranho malabarismo do acaso, ser sempre nos novos-ricos
que se reúnem qualidades merecedoras de nobilitação. Graças a isso a
Pauliceia oferece nas récitas líricas um aspecto imponente.
– Quem é aquele, lá na primeira frisa?
– Aquele é o Conde da Banha Rançosa, descendente de Carlos Martelo.
– E aquele outro, chatote?
– É o Conde da Mamona, oriundo de Pepino, o Breve.
É lindo. Enfeita a sociedade. Pintalga de coturnos ultra-eminentes a
monótona democracia chineleira do 15 de Novembro. E como em geral são
uns mãos-largas em se tratando de benefício próprio, viram árvores a cuja
sombra acampam jornalistas, revisteiros, poetas, pintores – uma miuçalha
lambareira que se não vivesse dos condes iria viver do Estado.
Assinala-se, pois, aqui, a primeira grande função econômica da espécie.
O rico simples, sem comenda no peito, não realiza esta função aliviadora do
Estado. Possui menores os canteiros da vaidade e necessita menos pessoal
adstrito à tarefa de cultivá-los e manter sempre ofuscante a flama da
apoteose.
Vê-se disso que foi inepta a política republicana, suprimindo uma
instituição preciosa como fonte de lucro para a economia pública. Cada
conde que surge são dez sanguessugas a menos no Tesouro da nação. Criar
condes, além da renda direta que ao Tesouro trazem os emolumentos, é
medida financeira de incalculável alcance para aliviar o toutiço do Estado
duma legião de parasitas. Só a economia feita com a imprensa não é coisa
de desprezar. Quantas revistas, quantos jornalecos não se desprendem da
verba secreta logo que lhes surge pela frente um conde a gigolotar?
A lei, está provado, não consegue extinguir a cogumelagem
nobiliárquica: tire, pois, partido da insopitável vaidade humana.
É inútil persistir o nosso Estado nesse tolo abstencionismo, que sempre
há de haver Estados estrangeiros prontos mediante dinheiro a lhe inutilizar
as intenções igualitárias.
Além disso, há o processo novo, genial, da autocondecoração –
processo em início ainda, mas suscetível de enorme desenvolvimento. Com
meia dúzia de artigos em jornais, bem pagos, qualquer trifalido passa a
barão, a marquês e até a príncipe, se quiser.
Processo novo, dissemos, mas ai! Nihil novum!... É velho como tudo. O
Mark Twain brasileiro – infelizmente um Mark Twain inédito – conta uma
passagem que mostra a velhice do sistema.
Um seu parente herdara dum tio-avô um legado de 25 contos, quantia
de vulto naquela época de açúcar a 60 réis a libra. E, grato pela lembrança
do parente morto, resolveu pendurar-lhe o retrato a óleo em lugar de honra
na sala de visitas. Foi ao Rio e encomendou a tela ao pintor Petit, o qual
Petit alisou a mais macia cara de velho jamais saída de palheta humana.
Quando o freguês, voltando, viu a obra, ficou deveras encantado.
– Lindo! – disse. – Parece até que está falando!...
E, embevecido, examinou minuciosamente a figura, com um brilho de
lágrima no olho.
– Mas – objetou – é pena que esteja com o peito assim vazio... Uma
comendazinha ali...
– Pois é fácil, sacré nom! Por mais 80 mil-réis pinto-lhe no peito uma
linda comenda da Rosa.
– Oitenta? É carete...
– É o preço. Uma, 80; duas, 120...
– Pois então pinte-me duas, da Rosa e do Cruzeiro.
O artista sapecou no peito do velho duas comendas tão bem pintadinhas
que até pareciam verdadeiras.
O retrato do tio-avô foi impar majestosamente na sala de visitas do
grato sobrinho. E se alguém, sabendo que o velho nunca fora em vida senão
fazendeiro, estranhava o caso das duas comendas...
– Nunca soube que fosse duas vezes comendador o seu tio Pedro...
– Não era – respondia o sobrinho. – Mas, você compreende, legou-me
25 contos. Muito natural que eu fosse grato para com a sua memória. Pus-
lhe uma comenda – 80 mil-réis. O pintor advertiu que duas custavam 120.
Ora, você compreende, por mais 40 mil-réis...
Uruguaiana

André Rebouças foi talvez o homem mais


meticuloso do Império. Tudo anotava, registrava, sistematizava
cuidadosamente, de modo a transmitir-nos a sua vida cinematografada dia a
dia nos copiosos volumes que compõem o seu diário. Abre-o a nota do
nascimento, em Cachoeira, Bahia, 1828, quando seu ilustre pai lutava
contra a rebeldia da Sabinada; e passo a passo acompanha-o esse diário
como sombra até ao fim da operosíssima vida, cheia de trabalhos técnicos,
estudos, leituras e atos.
Três volumes dessa obra se referem à Guerra do Paraguai.
Interessantíssimos. Anotações diárias, instantâneos fotográficos, à sua
leitura hoje homens e coisas revivem num enlevo estereoscópico de
ressurreição.
A Revista do Brasil está publicando excertos desse diário, na parte relativa
ao cerco e tomada de Uruguaiana.
Uruguaiana!... Palavra sonora que sugere mil coisas distantes, apagadas
já, apesar de transcorridos menos de 60 anos da tragicomédia de Canabarro
e Estigarribia, dois hipopótamos, afins na bravura e na incapacidade mental.
Foi de ontem a Guerra do Paraguai; seus veteranos ainda vivem por aí ao
léu, às dezenas; no entanto, parece um fato de priscas eras – tão
rapidamente o Brasil evoluiu daí para cá, aos pinotes.
Uruguaiana já está na história devidamente estilizada ao sabor do
paladar patriótico.
Tem isso a história de generoso: estiliza os fatos, descasca-os dos
realismos dolorosos, desfigura-os num sentido estético. É o meio de a
humanidade poder ver-se com bons olhos...
Entre o que foi de fato Uruguaiana e a feição pela qual a vemos hoje
vai um abismo.
O azul das montanhas... Quem for amigo da beleza não queira nunca
vê-lo de perto. O azul é a grande mentira da natureza. É a mentira por
excelência. É tão mentira que não existe. Não há azul. A montanha linda, a
recortar no azul do céu o liso azul de safira, é de perto aspereza, precipício,
perambeira, boçoroca, mata híspida tramada de cipós e arranha-gato. E não
é azul.
Assim a história. Possui, como a montanha, o seu azul nítido,
fulgurante, luminoso. Homens e fatos vistos a distância que azula
despertam-nos suaves emoções e até entusiasmo. Se nos aproximamos,
porém, ai de nós! O azul histórico descora, morre, e tudo fica prosaico,
colorido da grisalha suja das coisas contemporâneas.
Distância e tempo: os dois pais do azul. Benditos sejam, que é de
abençoar tudo quanto ajuda a criar a coisa mais bela que possui vida: a
mentira azul.
O diário de Rebouças, suprimindo o tempo, desfaz o azul de
Uruguaiana e mostra-nos esse episódio da guerra como ele o foi na
realidade. As indecisões, a frouxidão, a politicagem emaranhando-se como
erva-de-passarinho na ação militar, a incapacidade dos chefes, a imprevisão,
a falta de tudo, a desordem, o negocismo...
A resistência dos invasores eternizava-se, menos pela eficiência do
exército paraguaio ou pela fraqueza do nosso, do que por conveniência da
politicalha. Por fim, como sempre acontece, dos dois lados virou negócio
prolongar a marosca. O cerco se fazia de modo favorável aos sitiados: com
portas abertas para que se prolongasse a resistência e se protelasse um
desfecho que viria pôr termo à pepineira. E a tal ponto chegou a desfaçatez
que o Imperador teve de ir em pessoa liquidar o caso. Foi, e a ação catalítica
do seu alto espírito de honestidade agiu com rapidez fulminante.
Uruguaiana rendeu-se imediatamente.
Dos heróis desse feito só Pedro II avulta com aproximação. Grande de
longe, maior de perto. Azul de longe e azul de perto. Luminosa exceção à
regra do azul.
Rebouças, no decurso do diário, diz várias vezes: “Só Pedro II é
brasileiro”. Porque aos mais achava apenas negociantes.
Uruguaiana foi um caso típico de inópia militar.
López, evidentemente um louco, agarra de um exército e lança-o, qual
um dardo, ou um alfinete, contra uma imensa baleia de carne atônica. O
dardo penetra uns centímetros e para. Perdida a força inicial do arremesso,
abre na baleia uma pequena ferida, nem benigna, nem maligna. A natureza
operando, a ferida apostema, forma-se o tumor e o estrepe cai por si mesmo,
de maduro. Foi esse o caso da invasão paraguaia.
Toda a agitação mavórtica do “Império sonso”, como nos chamavam os
argentinos, não apressou de um dia a queda do estrepe. O tumor veio a furo
no prazo previsível.
Estigarribia, selvagem bronco, penetrando no Rio Grande com alguns
milhares de asseclas, trouxe na bagagem o germe do desastre. Para vencê-lo
incruentamente bastava esperar. O bom cabo de guerra indicado para
expugná-lo era o mesmo grande auxiliar de Fábio: o tempo. Enquanto o
Império, convulsionado, improvisava a resistência e o “castigo”,
Estigarribia vencia-se a si próprio naquela Capua rota e faminta. E no dia
em que Porto Alegre deu início ao assalto não havia mais inimigos pela
frente. O exército paraguaio não passava dum bando de maltrapilhos
ansiosos por uma coisa só: libertarem-se da disciplina e comer em paz o
churrasco.
André Rebouças descreve a cena do assalto, por ele assistida de bordo
do Onze de Junho, um vapor fluvial. Viu a cavalaria e a infantaria brasileiras
caminharem sem um disparo em direção da praça. Viu tremular a bandeira
auriverde no cemitério a cavaleiro da cidade. E às três da tarde viu chegar
um oficial com a grata notícia da capitulação.
Nossas forças marcharam como num passeio militar, sem guardar
sequer disposições elementares de arte bélica. A artilharia colocou-se sob o
alcance da fuzilaria paraguaia. O General Flores teve a impressão de que as
nossas forças caminhavam como a bandear-se para o inimigo.
Rebouças descreve Estigarribia, a quem viu a bordo.
“Alto, corpulento, muito moreno, cabelos pretos, tipo geral dos homens
do interior do Ceará ou Pernambuco. Demonstrava sangue-frio e segurança
admiráveis; continuamente fumando, só pensava em reaver uns arreios de
prata que estavam no ‘Taquari’ e seiscentos patacões que deixara em mãos
dum oficial paraguaio, ao qual escreveu uma carta. Em suas canastras, onde
todos contavam descobrir documentos oficiais importantíssimos, ‘havia
apenas leques, peças de seda e joias’.”
Pobre Estigarribia! No fundo, um homem de apetites fortes, que tinha o
seu problemazinho pessoal a resolver.
López, incompreensivo, vingou-se da sua “traição” dum modo feroz:
entregando-lhe a filha à luxúria dos soldados...
Uruguaiana caiu, pois, de madrugada; e estaria terminada a guerra se
Pedro II não cometesse o erro de reincidir no erro de López, invadindo-lhe
os domínios. Essa invasão custou rios de dinheiro e de sangue, amamentou
a Argentina e deu com a monarquia em terra. Cinco anos de guerra foram
suficientes para desenvolver entre nós o germe do militarismo, o qual,
senhoreando-se da situação, fez uma República para uso e gozo dos
militares.
Do ponto de vista humano, bem como do ponto de vista imperial,
prosseguir na guerra foi um desastre. Uruguaiana devera ter sido um ponto
final.
O fazê-la vírgula deu com o Império em terra. Que grande ciência, na
política, a ciência da pontuação!...
O dicionário brasileiro

Assim como o português saiu do latim pela corrupção


popular desta língua, o brasileiro está saindo do português. O processo
formador é o mesmo: corrupção da língua-mãe. A cândida ingenuidade dos
gramáticos chama “corromper” ao que os biologistas chamam “evoluir”.
Aceitemos o labéu e corrompamos de cabeça erguida o idioma luso, na
certeza de estarmos a elaborar uma obra magnífica. Novo ambiente, nova
gente, novas coisas, novas necessidades de expressão: nova língua.
É risível o esforço do carrança, curto de ideias e incompreensivo, que
deblatera contra esse fenômeno natural e tenta paralisar a nossa elaboração
linguística em nome dum respeito supersticioso pelos velhos tabus... que
corromperam o latim.
A nova língua, filha da lusa, nasceu no dia em que Cabral pisou no
Brasil. Não há documentos, mas é provável que o primeiro brasileirismo
surgisse exatamente no dia 22 de abril de 1500. E desde então não se passou
um dia talvez em que a língua do reino não fosse na colônia infiltrada de
vocábulos novos, de formação local, ou modificada na significação dos
antigos.
Hoje, após 400 anos de vida, a diferenciação está caracterizada de
modo tão acentuado que um camponês do Minho não compreende nem é
compreendido por um jeca de São Paulo ou um gaúcho do Sul.
Quer isto dizer que no povo – e a língua é um produto puramente
popular – a cisão já está completa.
Nas classes cultas a diferença é menor, se bem que acentuadíssima,
sobretudo na pronúncia e no emprego de palavras novas. Até arcaísmos
lusos ressuscitaram cá e são correntes

de norte a sul. Um deles foi tomado como brasileirismo: o emprego do


pronome pessoal “ele” como complemento

direto. Ora, isso é coisa velha, forma anterior ao descobrimento do Brasil.


Dizem os escabichadores de antigualhas que é de uso corrente nos
cancioneiros, na Demanda do Graal,
no Amadis etc. E citam em Fernão Lopes muito “viu ela”, “nomeamos ele”
etc. – de Fernão Lopes!, um dos grandes pais da língua lusa.
Não é brasileirismo, pois, essa forma velha. É um lusitanismo
ressurreto na colônia.
Hoje, do Amazonas ao Borges, o “ele” e o “ela” desbancaram o “o” e o
“a” na linguagem falada, apesar da resistência dos letrados e da resistência
da língua escrita. Não nos consta que algum escritor de mérito usasse na
prosa ou no verso esse pseudobrasileirismo, embora falando familiarmente
incida nele. Mas dia virá em que se rompa essa barreira, porque as correntes
populares são irresistíveis, os gramáticos não são donos da língua, e esta
não é uma criação lógica.
Verão, pois, nossos netos um futuro Rui, de tanta autoridade como o
atual, abrir uma oração política da mais alta importância com esta forma
que inda choca o beletrismo de hoje: O Brasil, senhores, amei ele o mais que pude, servi
ele o que me deram as forças etc.
E verão um futuro Bilac lançar um “ouvir estrelas” assim:
Ontem divisei ela
na janela...
Será isso simplesmente a reabilitação da forma lusa dos pré-clássicos,
já vitoriosa na língua falada de hoje?
Riem-se? Não é matéria de riso. É a anotação singela da marcha dum
fenômeno.
Ainda nos detém hoje o medo à férula dos gramáticos d’além-mar e de
seus prepostos no Brasil. Não obstante, a corrente do “ele” cresce dia a dia e
acabará expungindo-a do “o”.
Além dessas incoercíveis modificações sintáticas, temos outra feição
evolutiva operada em larga escala: a adoção de palavras novas por
injunções das necessidades ambientes.
A língua é um meio de expressão. Modifica-se sempre no sentido de
aumentar o poder da expressão. A variedade de coisas novas que tivemos
necessidade de expressar, num mundo novo como o Brasil, forçou e força
no povo um surto copiosíssimo de vocábulos. Eles brotam por aí como
cogumelos durante a chuva. Lutam entre si. Os fracos, os inúteis, caem,
como frutos temporões, bichados antes de maduros. Os bons, os expressivos
e necessários, vencem e ficam na língua. A princípio na língua falada.
Depois penetram na chamada literatura regional. Passam dela aos glossários
de brasileirismos e entram, por fim, consagrados, no panteão dos
dicionários.
A extensão do nosso território favoreceu grandemente o neologismo.
Houve além disso a contribuição copiosa do índio e do negro. Há agora a do
italiano em São Paulo e a dos alemães no sul. A maioria destas palavras são
de absoluta necessidade. Como falar da vida amazônica sem recurso às mil
palavras de criação local? Como pintar o Rio Grande sem recorrer ao
vocabulário gaúcho? E falar do Rio sem tomar as pitorescas invenções
glóticas do cafajeste carioca? Há no português termos que substituam o
“encrenca” e seus derivados, de criação santa-catarinense? E “uruca”,
“caguira”, “engrossamento”, como enunciar a coisa com palavras do
Morais?
Sem coragem ainda de lançarmos o nosso dicionário, vemo-lo já em
trabalhos preparatórios, a delinear-se nas obras de B. Rohan, Taunay,
Romaguera e tantos outros coletores de regionalismos. Virá a seu tempo.
Convencer-nos-emos um dia de que, se saímos de Portugal, nada mais
temos com o ex-reino, hoje tumultuosa República. Virá, talvez, muito
breve. O dicionário brasileiro já anda em elaboração em várias tentativas
que nos chegaram ao conhecimento. E a prova da viabilidade da ideia está
no interesse dos editores pelo assunto.
Em matéria dicionarística vivemos inda hoje na absoluta dependência
de Portugal. Temos o que Portugal nos manda, Aulete, Vieira, Cândido de
Figueiredo. Este nos deu a honra insigne de incluir na sua obra uma boa
cópia de brasileirismos, para contentar a colônia e fazer bom negócio nela.
Os mais são dicionários rigorosamente portugueses.
Quem lê Alberto Rangel, por exemplo, o mais rico bateador de termos
regionais da nossa literatura, em muitos pontos não tem meios de lhe
compreender o pensamento. Esbarra a cada passo com uma palavra regional
coletada por ele e, se recorre aos dicionários, fica na mesma.
No próprio Rui Barbosa quantas palavras não existem que o carrança
português não nos deu a honra de “endicionariar”?
Isso, porém, não é culpa deles, que fazem léxicos portugueses, para seu
uso lá. A culpa é nossa, pois já era tempo de termos publicado o nosso
dicionário.
Pensando bem a matéria, temos de empreender a obra nas seguintes
bases: eliminar do novo dicionário todas as palavras portuguesas desusadas
no Brasil, já arcaísmos, já lusitanismos de moderna criação popular,
absolutamente inúteis para as nossas necessidades expressivas. Eliminar
todas as palavras coloniais portuguesas que atravancam os dicionários
atuais, fazendo-os obesos. Dar, principalmente, a significação que os
vocábulos portugueses têm aqui no Brasil, e subsidiariamente a que têm no
ex-reino. Introduzir todas as nossas criações linguísticas, as coletadas pelos
glossaristas e as que andam soltas. Fazer, em suma, o dicionário prático de
que precisa quem vive nesta terra, que já foi colônia e está custando a se
convencer de que não mais o é.
Será, pois, uma obra de grande utilidade e alto alcance, porque
consolidará definitivamente o cisma operado na velha língua lusa.
Acontece hoje o seguinte: um menino abre o Aulete e procura a palavra
“hein”; e vê lá a pronúncia “an-e”. Ri-se, está claro, e chama “âne” ao pobre
Aulete.
Outro vai ao C. de Figueiredo em busca da palavra “chupim”, que ele
ouve todos os dias aplicada a um passarinho preto que parasita o tico-tico e
por analogia aos maridos de professoras. Não encontra. Mas encontra, por
exemplo, “caloqueio”, pássaro africano. Temos de abrir a gaiola ao
caloqueio e pôr em seu lugar o chupim. Está aquele estafermo a empatar um
poleiro precioso.
Dirão: seria melhor conservar todas as palavras portuguesas e incluir
todas as nossas. Isso seria fazer uma almanjarra ineditável, ou caríssima, ao
passo que o peneiramento acima proposto aliviaria a obra das múmias
inúteis que se esmirram ali, dos exotismos da Índia e Angola com que nada
temos que ver, daria livro maneiro, cômodo, num volume só, e por preço ao
alcance do povo.
Acoimam o nosso pobre povo de ignorante, mas não lhe dão sequer um
dicionário da língua, bom e barato! Os sucedâneos portugueses que lhe
indicam, sobre lhe não satisfazerem as exigências, custam os olhos da cara,
80, 100 mil-réis.
Além desta novidade, o novo dicionário tem de dar o máximo rigor às
definições, aproximando-se dos grandes dicionários estrangeiros, Webster à
frente. Fugirá, assim, às sandices que Aulete e Figueiredo incriminaram aos
anteriores e em que incidiram, se bem que em menor escala.
Abro ao acaso este último e leio: “Desarvorado – que fugiu
desordenadamente”. Logo: navio desarvorado – navio que foge
desordenadamente.
E são os papões da língua. Dão-nos em cima de palmatória e ensinam-
nos o que não se deve dizer, esquecidos de que não se deve dizer, sobretudo,
asneiras.
Muita coisa se projeta para a comemoração da independência. Se for
levado a termo o Dicionário Brasileiro, nenhuma comemoração será mais
significativa. Valerá por um esplêndido monumento e por um grande passo
na “realização” duma independência “proclamada” que vai fazer 100 anos.
O 22 da Marajó

Esse delírio que por aí vai pelo futebol tem seus


fundamentos na própria natureza humana. O espetáculo da luta sempre foi o
maior encanto do homem; e o prazer da vitória, pessoal ou do partido, foi, é
e será a ambrosia dos deuses manipulada na Terra. Admiramos hoje os
grandes filósofos gregos, Platão, Sócrates, Aristóteles; seus coevos, porém,
admiravam muito mais aos atletas que venciam no estádio. Milon de
Crotona, campeão na arte de torcer pescoços de touros, só para nós tem
menos importância que seu mestre Pitágoras. Para os gregos, para a massa
popular grega, seria inconcebível a ideia de que o filósofo pudesse no futuro
ofuscar a glória do lutador.
Na França o homem hoje mais popular é George Carpentier, mestre em
socos de primeira classe; e, se derem nas massas um balanço sincero, verão
que ele sobrepuja em prestígio aos próprios chefes supremos vencedores da
guerra.
Nos Estados Unidos há sempre um campeão de boxe tão entranhado na
idolatria do povo que está em suas mãos subverter o regime político.
Entre nós há o exemplo recente de Friedenreich, um pé de boa pontaria
pelo qual nossos meninos são capazes de sacrificar a vida.
E os delírios coletivos provocados pelo combate de dois campeões em
campo? Impossível assistir-se a espetáculo mais revelador da alma humana
que os jogos de futebol em que disputam a primazia paulistanos e italianos
em São Paulo.
Não é mais esporte, é guerra. Não se batem duas equipes, mas dois
povos, duas nações, duas raças inimigas. Durante todo o tempo da luta, de
quarenta a cinquenta mil pessoas deliram em transe, estáticas, na ponta dos
pés, coração aos pulos e nervos tensos como cordas de viola. Conforme
corre o jogo, há pausas de silêncio absoluto na multidão suspensa, ou
deflagrações violentíssimas de entusiasmo, que só a palavra delírio
classifica. E gente pacífica, bondosa, incapaz de sentimentos exaltados, sai
fora de si, torna-se capaz de cometer os mais horrorosos desatinos.
A luta de 22 feras no campo transforma em feras os cinquenta mil
espectadores, possibilitando um esfaqueamento mútuo, num conflito
horrendo, caso um incidente qualquer funda em corisco as eletricidades
psíquicas acumuladas em cada indivíduo.
O jogo de futebol teve a honra de despertar o nosso povo do marasmo
de nervos em que vivia. Antes dele, só nas classes médias a luta política
tinha o prestígio necessário para uma exaltaçãozinha periódica.
E isso porque de todos os esportes tentados no Brasil só o futebol
conseguiu aclimar-se, como o café. Hoje, alastrado de norte a sul,
transformou-se quase em praga, conseguindo, só ele, interessar vivamente,
exaltadamente, delirantemente, o nosso povo.
No estado de São Paulo não há recanto, viloca, fazenda, bairro onde
não sejam vistos num chão plaino e batido os dois retângulos opostos,
assinaladores dum ground. Pelas regiões novas, de virgindade só agora
atacada pelos invasores, é comum topar-se de súbito, em plena mata, uma
clareira aberta, limpa, onde nas horas de folga os derrubadores de pau vêm
bater bola.
Já assistimos a um match em certa fazenda. Tudo muito bem-arrumado;
os players uniformizados, de meias grossas e botinas ferradas, tal qual nos
clubs das cidades. E falando em corners, goals, hands, half-times, a inglesia inteira
dos termos técnicos.
Ao nosso lado o fazendeiro explicava:
– Aquele goalkeeper é carreiro; amanhã de madrugada está de pé no chão
puxando lenha. O center-half é madeireiro; está-me lavrando umas perobas na
roça velha. Os full-backs são tropeiros; e os forwards, simples puxadores de
enxada.
Era assombroso! Estávamos diante da maior revolução de costumes
jamais operada em Terras de Santa Cruz. E tudo por arte e obra de uma
simples esfera de couro estufada de ar...
Antes do futebol, só a capoeiragem conseguiu um cultozinho entre nós
e isso mesmo só na ralé. Teve seus períodos áureos,

produziu seus Friedenreichs e afinal acabou perseguida pelo governo, com


grande mágoa dos tradicionalistas que viam nela uma das nossas poucas
coisas de legítima criação nacional.
Infelizmente não se guardou memória escrita desse esporte, cujos anais
se encheram de maravilhosas proezas. Não teve poetas, não teve cantores,
não teve sábios que as salvaguardassem do olvido; e de todo o nosso rico
passado de rasteiras, rabos de arraia e soltas restam apenas anedotas
esparsas, em via de se diluírem na memória de velhos contemporâneos.
Que se fixe, pois, em letra de fôrma, ao menos o caso do 22 da Marajó,
com tanto chiste narrado pelo maior humorista brasileiro, esse prodigioso
Mark Twain inédito que é o senhor Filinto Lopes.
O 22 da Marajó era um imperial marinheiro, mestre em desordens e
amigo de revirar de pernas para cima quiosques portugueses. Rapazinho
bonito, imperava na Saúde onde suas proezas de capoeira excepcional
andavam de boca em boca, discutidas como façanhas de Rolando. E tais fez
ele que o governo, incomodado, deportou-o para o Norte, a servir em
canhoneira da flotilha estacionada no Pará. A mudança de clima regenerou-
o e o rapaz, resolvendo tirar partido dos seus dotes plásticos, ferrou namoro
com a mulher de um ship-chandler, da qual se tornou amante.
Pouco durou o trio.
O ship-chandler morreu e o 22 casou-se com a viúva, herdeira dum paco
de 400 contos de réis. Pediu baixa, obteve-a e foi com a esposa em viagem
de núpcias à Europa, onde permaneceu 2 anos. Ao cabo regressou à pátria,
elegendo o Rio de Janeiro para residência definitiva.
Mas quanto mudara! Transformado num perfeito gentleman, embasbacava
a rua do Ouvidor com o apuro dos trajes, as polainas, as luvas, a cartola café
com leite.
– Quem é? Quem é? – Ninguém sabia.
– Algum fidalgo certamente – cochichavam. – Não veem que modos
distintos?
E o 22, impávido, petroneando de monóculo no olho, a olhar de cima
para os homens e as coisas...
Tinha hábitos certos e todos os dias passava pelo Largo de São
Francisco, como paca pelo carreiro.
Aconteceu, porém, que ali era ponto de uma roda de rapazes chiques,
fortemente despeitados ante a esmagadora elegância do desconhecido, rival
perigoso, sem dúvida, em matéria de esporte feminino. Os quais rapazes,
depois de muito cochicho, deliberaram quebrar a proa do novo concorrente,
apenas aguardando para isso a boa oportunidade.
Certa vez em que o Petrônio passava mais imponente do que nunca,
coincidiu aproximar-se da roda chique um capoeira mordedor, que se
gabava de ser mestre em soltas.
Quem sabe hoje o que é a solta, nesta época de kickes e shootes? Solta era
uma cabeçada sem hands, isto é, sem encostar a mão no adversário.
Mas o capoeira chegou e mordeu-os em 5 mil-réis.
– Perfeitamente – responderam os rapazes –, mas primeiro hás de
sapecar uma solta naquele freguês que ali vai de monóculo.
– É já! – exclamou o capoeira, gingando o corpo. E, tirando o chapéu,
foi postar-se na calçada por onde vinha o 22, de cartola e monóculo,
sacudindo passos de lord, muito esticado dentro do seu croisé cortado em
Londres.
Um, dois, três... Quando Petrônio o defronta, o capoeira avança e
despeja-lhe uma formidável e primorosa cabeçada.
O Petrônio, porém, quebra o corpo, e a cabeça do atacante vai de
encontro à parede, ao mesmo tempo em que um pé bem manejado planta-o
no chão com elegantíssima rasteira. O mordedor, tonto e confuso, ergue-
se... mas desaba de novo, cerceado por outra gentil rasteira. Passara
imprevistamente de agressor a agredido e, desnorteado, deu sebo às canelas,
indo apalpar o galo da cabeça a cem passos de distância.
Enquanto isso o Petrônio, serenamente consertando a gravata, com
grande calma dirige a palavra à assombradíssima roda elegante.
– Só uma besta destas dá soltas sem negaça. Já dizia o Cincinato
Quebra-Louça: soltas sem negaça, só em lampião de esquina. Se
“grampeasse”, inda vá lá. O Trinca-Espinhas, o Estrepolia e o Zé da
Gamboa admitem soltas neste caso, mas isto mesmo só quando o semovente
não é firme de letra.
E girando entre os dedos a bengala de unicórnio, concluiu com
saudades:
– Já gostei deste divertimento. Hoje a minha posição social não mais
mo permite. Mas vejo com tristeza que a arte está decaindo...
E lá se foi, imperturbável e superior, murmurando consigo:
– Soltas sem negaça... Forte besta!
Passado o momento de estupor e depois de muito debaterem o estranho
incidente, os elegantes planejaram solene desforra. Contratariam o famoso
Dente de Ouro, da Saúde, para romper o baluarte e quebrar de vez a proa ao
estranho personagem.
Tudo bem assentado, no dia do ajuste vieram colocar-se no carreiro da
vítima, com o rompe e rasga à frente.
– É aquele lá! – disseram assim que repontou ao longe a cartola café
com leite do Petrônio.
Dente de Ouro avançou para o desconhecido. Ao defrontá-lo, porém,
entreparou e abriu-se num grande riso palerma – o riso de boca aberta de
quem reconhece um antigo parceiro.
– O 22!... Você por aqui?...
– Cala o bico, moleque, e toma lá para o cigarro; mas afasta-te, que
hoje sou gente e não ando em más companhias – respondeu o Petrônio
correndo-lhe uma pelega de 10 e seguindo o seu caminho
imperturbavelmente.
Dente de Ouro voltou para o grupo dos elegantes, alisando a nota.
– Então? – perguntaram estes, desnorteados com o imprevisto
desfecho.
– ... ‘cês ‘tão bestas! Pois aquele é o 22 da Marajó, corpo fechado pra
“sardinha” e pé que nunca “malou saque”. Estrompar o 22... ‘cês ‘tão
bestas!...
A arte americana

Os Estados Unidos eram acusados de não ter arte. E


de fato, povo adolescente, a formar-se em terra nova com a fina flor
eugênica das boas raças europeias, e, pois, o núcleo humano mais rico em
valores que ainda surgiu sobre o planeta, era estranho que em matéria
artística permanecesse aquém da caduca Europa.
A explicação do fenômeno temo-la hoje. As belas-artes, filhas, uma da
rêverie, qual a música; outra, da sensação visual, como a pintura; outra, da
álgebra, das proporções, como a arquitetura; outra, da escolha e estilização
da forma tátil, como a escultura; outra, da ideação vocabular, como as
belas-letras: todas se condicionavam a épocas e povos como peculiaridades.
Na Grécia de Péricles, a escultura; na Itália de Leão X, a pintura; na
Alemanha do século XVIII, a música; na França, o teatro; na Inglaterra, a
novelística.
Estas artes emigraram para os Estados Unidos já velhas, já “rosas de
três dias”, tendo já dado de si o máximo e, pois, infletidas para a
decadência. Mas para nenhuma delas em especial propendia,
morbidamente, o grande povo da América, visto que esse grupo humano
não se desenvolve por unilateralidades, a guinar ora num rumo, ora noutro,
e sim marcha para a frente num ímpeto de formação cerrada.
Fazia-se mister, para os Estados Unidos, uma arte nova, que
comparticipasse de todas e fosse ao mesmo tempo um gigantesco negócio,
capaz de atrair a atenção daquela coorte de pioneiros. E surgiu o cinema.
O cinema nasceu em França, mais ou menos do acaso, como quase
todas as invenções. Mas a França, já artística e esclerosada, velho galo
descrente da influência do seu canto no nascer do sol, não soube ver o que
tinha em mãos. Considerou-o teatro; primeiro erro; e considerou-o pela voz
dos seus blasés (que os nossos inconscientes cretinos inda repetem como um
eco) inferior ao teatro – segundo erro. Cinema não é teatro. E se não é teatro
não pode ser inferior nem superior ao teatro, visto como não se comparam
coisas heterogêneas. O cinema é o cinema – uma coisa nova no mundo. Dos
outros povos europeus, também galos cansados, só a Alemanha vislumbrou
o que o cinema era e chegou a produzir alguma coisa – mas a guerra veio
quebrar-lhe as asas e tudo parou.
Entra em cena o yankee. Toma o cinema, examina-o e com
deslumbramento vê que era a grande arte nova, de possibilidades
formidavelmente grandes para interessar o ardor e o vigor da sua pujança. E
dá-se a ele.
Já de começo a arte muda americana impressionou o mundo. Apesar de
constrangida (a Bíblia de plantão ao lado para fiscalizá-la, e forçada a ater-
se ao gosto médio do público), mesmo assim penetrava na arena com tal
rompante que foi arredando um a um todos os concorrentes.
O cinema-teatro francês tornou-se grotesco. O cinema-pantomima
italiano tornou-se odioso. O público refugou-lhes as produções – e o cinema
europeu, que é dele? Que fim levou?
Senhor absoluto dos mercados, o cinema americano encontrou na
formidável renda da indústria cinematográfica o mais possante estímulo
para a arte cinematográfica. Uma arte qualquer só atinge o apogeu quando
um caudal de ouro e glória lhe banha as raízes. Péricles, Leão X, Luís XIV...
Para o apogeu do cinema americano não surgiria um Mecenas coroado.
O Mecenas seria a humanidade. China, Japão, a Europa inteira, a Austrália,
as ilhas, a África, a América e sobretudo os próprios Estados Unidos que,
postos numa balança, já pesam tanto quanto o resto do mundo – toda a terra
acudiu com o seu apoio à nova indústria de arte, permitindo-lhe assumir a
situação de maior do mundo. E é nesta gigantesca base industrial que a arte
americana se desenvolve, num progredir fantástico, deixando-nos tontos ao
imaginar o que virá a ser um dia, quando se libertar totalmente do monstro
chamado Censura.
Está circulando entre nós um filme que entreabre as cortinas do futuro
e nos revela o cinema de amanhã: A fera do mar, baseado na famosíssima
novela de Melville, Moby Dick.
Barrymore, ator shakespeariano, atinge nela a suprema expressão da
beleza da força. É um destino em delírio que luta contra o Destino – e
vence-o! Desafia os elementos e desafia Deus. No torvelinho da tempestade
horrenda que o desabar da tromba marinha despeja sobre o navio roto, o
sublime aleijado arrosta os escarcéus, ri como um diabo dos vagalhões que
varrem seus homens para o abismo e, mãos crispadas na roda do leme,
avança, avança, que lá adiante, onde o céu se mistura com as águas, está o
seu inimigo – a fera do mar –, a monstruosa baleia que o aleijou.
É sublime este delírio do heroísmo, que o faz inimigo pessoal duma
fera oceânica!
Avista-se por fim, e a expressão do seu rosto torna-se divina. A
vingança é dos deuses e Barrymore faz-se nesse momento o deus da
vingança. E tão deus que ergue as chispas dos olhos para o céu e grita para
o Barrymore lá de cima, Deus com D grande:
– Se tu és o Senhor dos céus, eu sou o senhor dos mares!
E pela primeira vez na arte americana não desce das alturas o corisco
do Deus bíblico a fulminar o blasfemo. O arpéu que tremia na mão de
Barrymore amedrontara Jeová...
Trava-se o embate. O herói arpoa a fera e o mar geme, convulso,
trabalhado dum turbilhão de raiva, cólera e dor. Barrymore sorri como cem
mil diabos. Seus dentes rangem de ouvir-se na plateia arrepiada. Seus olhos
coriscam de iluminar as salas. Mas a sua gana não se contenta com aquilo.
E ele atira-se ao mar e vai atracar-se com a baleia, em luta corporal, e crava
e recrava de arpéus o dorso do monstro, como quem apunhala um inimigo
homem.
É fantástica de audácia esta cena, a mais romanticamente louca jamais
concebida por um cérebro exaltado. E o grande ator a conduz num tal
amontoamento de lances de gênio que consegue manter a plateia num
contínuo arrepio de assombro.
No começo do filme outra cena há que é inédita na arte: o beijo. Não se
trata de um beijo como os há tantos, e como os dá a bonita estupidez de
Rodolfo Valentino. Não é um beijo. É o beijo! É o Shakespeare dos beijos.
É a posse do ciclone que cai de chofre sobre as águas tranquilas dum lago, e
vai ao âmago, e as desfaz em convulsões de espuma, e mata aos dois –
ciclone e lago – da doce e passageira morte do amor...
Diante de manifestações como esta, como ficam pequeninas as velhas
artes da Europa, unilaterais e restritas sempre a escassos grupos de
apreciadores! A arte americana é ciclônica. Arroja-se contra o mundo
inteiro e arrepia ou comove quanto nervo ou coração exista, seja do rude
mongol que se alaparda no fundo do Tibete, seja da boneca que trotina pela
Avenida à caça de homem.
A arte americana abre, areja, ventila, fortifica, fecunda o cérebro da
humanidade em bloco. Não mais fronteiras, nem a muralha das línguas. É a
música nova – a música do movimento. E é, sobretudo, o amanhã...
Bibliografia selecionada

sobre Monteiro Lobato


De Jeca a Macunaíma: Monteiro Lobato e o modernismo, de Vasda
Bonafini Landers. Editora Civilização Brasileira, 1988.
Juca e Joyce: memórias da neta de Monteiro Lobato, de Marcia Camargos.
Editora Moderna, 2007.
Monteiro Lobato: intelectual, empresário, editor, de Alice M. Koshiyama.
Edusp, 2006.
Monteiro Lobato: furacão na Botocúndia, de Carmen Lucia de Azevedo,
Marcia Camargos e Vladimir Sacchetta. Editora Senac São Paulo, 1997.
Monteiro Lobato: vida e obra, de Edgard Cavalheiro. Companhia Editora
Nacional, 1956.
Monteiro Lobato: um brasileiro sob medida, de Marisa Lajolo. Editora
Moderna, 2000.
Na trilha do Jeca: Monteiro Lobato e a formação do campo literário no
Brasil, de Enio Passiani. Editora da Universidade do Sagrado
Coração/Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais,
2003.
Novos estudos sobre Monteiro Lobato, de Cassiano Nunes. Editora
Universidade de Brasília, 1998.
Revista do Brasil: um diagnóstico para a (n)ação, de Tania Regina de Luca.
Editora da Unesp, 1999.
Um Jeca nas vernissages, de Tadeu Chiarelli. Edusp, 1995.
Vozes do tempo de Lobato, de Paulo Dantas (org.). Traço Editora, 1982.
 
 
 
Sítio eletrônico na internet: www.lobato.com.br
(mantido pelos herdeiros do escritor)
[1]Plano de obra da edição de 2007. A edição dos livros Literatura do Minarete, Conferências,
artigos e crônicas e Cartas escolhidas teve como base a primeira edição, de 1959. Críticas e outras
notas, a primeira edição, de 1965, e Cartas de amor, a primeira edição, de 1969. Os demais títulos
tiveram como base as Obras completas de Monteiro Lobato da Editora Brasiliense, de 1945/46.
[2]Alusão ao projeto do escultor Ximenes, que venceu o concurso para o monumento, e que Monteiro
Lobato muito combateu em Ideias de Jeca Tatu. Nota da edição de 1946.

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