O Tripé Gênero, Raça e Classe - Reflexões A Partir Do Pensamento de Heleith Saffioti e Lélia Gonzalez

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I CONGRESSO CRIM/UFMG

INTERSECCIONALIDADE E FEMINISMOS
I61
Interseccionalidade e Feminismos [Recurso eletrônico on-line] I Congresso CRIM/UFMG:
UFMG – Belo Horizonte;

Organizadores: Luiza Martins Santos, Mariana Karla de Faria e Raíssa Emmerich Santana
- Belo Horizonte: UFMG, 2021.

Inclui bibliografia
ISBN: 978-65-5648-362-7
Modo de acesso: www.conpedi.org.br em publicações
Tema: Gênero, feminismos e violência.
1. Gênero. 2. Feminismo. 3. Interseccionalidade. I. I Congresso CRIM/UFMG (1:2021:
Belo Horizonte, MG).

CDU: 34
_____________________________________________________________________________
I CONGRESSO CRIM/UFMG
INTERSECCIONALIDADE E FEMINISMOS

Apresentação

O CRIM/UFMG é um Programa de extensão universitária da UFMG sobre violência de


gênero, proveniente do Projeto de Ensino, Pesquisa e Extensão em Crimes Contra a Mulher
criado em 2019 por um grupo de estudantes universitárias da Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG), que perceberam a necessidade de ampliar o espaço de debates, denúncias e
enfrentamento da violência de gênero dentro da instituição.

O objetivo do Programa é trazer para o grande público questões relevantes referentes ao


combate à violência de gênero de forma didática e acessível, de modo a contribuir em
diferentes perspectivas, a partir da atuação estudantil em frentes com Profissionais de Saúde,
Educação, Infância e Juventude bem como na abordagem de acolhimento de migrantes e
refugiadas. Dessa forma, entende-se a necessidade de se desenvolver atividades – que não se
limitem ao espaço acadêmico - por meio da criação grupos de estudos, eventos, campanhas
de conscientização sobre o tema, além de ministrar oficinas, cursos e capacitação que
abordem os diversos tipos de violências de gênero numa perspectiva de promoção da
igualdade de gênero. Nesse sentido, o Programa, a partir de uma construção coletiva, busca
romper com a cisão criada em uma sociedade desigual e assim, colocar como sujeitos
políticos grupos historicamente marginalizados.

Nessa perspectiva, o I Congresso CRIM / UFMG - Gênero, Feminismos e Violência pretende


incentivar o debate sobre os progressos e desafios em relação à temática gênero,
considerando a integralidade da vivência do ser mulher em uma sociedade machista,
cisgênera, heteronormativa, com claros atravessamentos de classe e raça.

O GT 1 - Interseccionalidade e Feminismos acolheu artigos que se desenvolveram a partir de


uma perspectiva interseccional e da compreensão de como as discriminações de gênero se
interligam com questões relacionadas à sexualidade, raça e classe. Temas que abordem as
questões de gênero articulados com a divisão sexual do trabalho; a reconfiguração das
práticas sociais e das relações trabalhistas decorrentes do capitalismo; os diversos processos
culturais e identitários formativos relacionados à raça e sexualidade, sob perspectivas
interdisciplinares. Foram propostas discussões sobre as diferentes estratégias de lutas por
reconhecimento e direitos de movimentos democráticos contemporâneos, a partir de uma
fundamentação teórica feminista que busca evidenciar a coexistência de mais de um sistema
de opressão em relação às mulheres e outros agentes sociais.
O TRIPÉ GÊNERO, RAÇA E CLASSE: REFLEXÕES A PARTIR DO
PENSAMENTO DE HELEIETH SAFFIOTI E LÉLIA GONZALEZ
GENDER, RACE AND CLASS: REFLECTIONS INSPIRED BY HELEIETH
SAFFIOTI AND LÉLIA GONZALEZ

Alice Birman Cavalcanti 1


Suzane Chagas de Mesquita 2

Resumo
O presente trabalho pretende investigar as contribuições de Heleieth Saffioti e Lélia
Gonzalez sobre o imbricamento entre gênero, raça e classe no que diz respeito ao impacto
para a formação social, política e econômica brasileira. Cada uma, à sua maneira, trouxe
avanços importantíssimos para a construção do pensamento social brasileiro, expondo como
o gênero e a raça se articulam com o capitalismo, se configurando como categorias
fundamentais para uma análise comprometida com a realidade. Através de revisão
bibliográfica, ressaltamos as principais contribuições das autoras no âmbito dos debates que
articulam as três opressões que estruturam a formação social do Brasil.

Palavras-chave: Gênero, Raça, Classe, Formação social do brasil

Abstract/Resumen/Résumé
Our work investigates the contributions of Heleieth Saffioti and Lélia Gonzalez regarding the
interlocking impacts of gender, race and class on Brazilian social, political and economic
formation. They brought important advancements to the construction of Brazilian Social
Thinking, each their own way, exposing how gender and race articulate in the capitalist
system and consist in categories which are fundamental for analyses committed with reality.
Through bibliographic review, we highlight these authors' major contributions to the debates
that articulate the three oppressions that structure Brazil’s social formation.

Keywords/Palabras-claves/Mots-clés: Gender, Race, Class, Brazilian social formation

1 Graduanda em Serviço Social pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)
2 Graduanda em Serviço Social pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

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INTRODUÇÃO
No intuito de investigarmos como o imbricamento entre gênero, raça e classe
influencia a formação social política e econômica do Brasil, resgatamos duas grandes
pensadoras brasileiras, Lélia Gonzalez e Heleieth Saffioti, compreendendo que
cumpriram um papel crucial para fomentar os debates sobre as opressões de gênero e
raça no contexto brasileiro, em um momento histórico no qual estes tópicos ainda não
recebiam a devida atenção.
A partir de uma perspectiva crítica e ancorada no materialismo histórico
dialético, realizamos uma revisão bibliográfica das obras de Gonzalez e Saffioti, que
serão apresentadas separadamente. Em um primeiro momento, iremos expor as
principais contribuições de Heleieth Saffioti no que se refere ao imbricamento entre
gênero, raça e classe, apresentando o conceito do “nó” cunhado pela autora ao longo de
sua trajetória acadêmica e intelectual.
Na segunda parte, apresentaremos como Gonzalez articula as opressões sexuais
e raciais, dando especial importância para a elaboração da autora acerca dos impactos
dessas opressões na vida das mulheres negras, concretizadas na inserção no mercado de
trabalho e no imaginário social racista.
Por fim, apontaremos, nas conclusões, a articulação que os escritos de Saffioti e
Gonzalez nos permitem vislumbrar sobre a formação social do Brasil.

OBJETIVOS
O presente trabalho tem como objetivo apresentar de que forma o imbricamento
entre gênero, raça e classe impacta a formação social, política e econômica brasileiras,
através das produções teóricas de Heleieth Saffioti e Lélia Gonzalez.

METODOLOGIA
A metodologia do trabalho consiste na revisão bibliográfica de obras das duas
autoras supracitadas.

O NÓ EM HELEIETH SAFFIOTI
Heleieth Saffioti foi uma socióloga marxista, professora, estudiosa da violência
de gênero e militante feminista brasileira. Formada pela USP em 1960, Saffioti defende
em 1967 sua tese de livre docência pela UNESP, intitulada A mulher na sociedade de
classes: mito e realidade, sob orientação do professor Florestan Fernandes. Ao longo de

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sua trajetória, a autora formula o conceito do nó patriarcado-racismo-capitalismo, que
aparece pela primeira vez no livro O poder do Macho (1987). Deteremos-nos aqui
especialmente nesse conceito desenvolvido pela autora, entendendo que este se
configura como um conceito de extrema importância para pensarmos na realidade
social, política, econômica e cultural brasileira.

Trazendo à tona a imbricação entre o patriarcado, o racismo e o capitalismo, o


conceito do “nó” expõe como esses três fenômenos sócio-históricos, que se configuram
como sistemas de exploração e dominação construídos historicamente, se unem no
processo social. É importante salientar que cada um desses sistemas têm características
diferentes, possuem especificidades, contudo operam e se caracterizam como sistemas
de dominação e exploração que em um momento histórico específico se fundiram. Nas
palavras de Saffioti,

Com a emergência do capitalismo, houve a simbiose, a fusão, entre os três


sistemas de dominação-exploração, acima analisados separadamente. Só
mesmo para tentar tornar mais fácil a compreensão deste fenômeno, podem-
se separar estes três sistemas. Na realidade concreta, eles são inseparáveis,
pois se transformaram, através deste processo simbiótico, em um único
sistema de dominação-exploração, aqui denominado patriarcado-racismo-
capitalismo (SAFFIOTI, 1987, p.60 grifos nossos).

A partir disso, temos, então, que o capitalismo no Brasil se organiza conjugando


esses dois outros sistemas de exploração e dominação (patriarcado e racismo) que são
anteriores ao modo de produção vigente. Ambos já estavam estabelecidos socialmente
no momento de emergência do capitalismo, fazendo com que o processo de produção e
apropriação de mais valia se materializasse, desde seus primórdios até os dias atuais,
mediante o patriarcado e o racismo. A elaboração do conceito do nó revela justamente a
necessidade de analisarmos as relações de exploração e dominação de modo
interconectado e não hierárquico, recusando a primazia de uma opressão em relação às
demais de forma generalizada.

Ganha destaque, na pesquisa de Saffioti (1993), a necessidade de reconhecermos


a tripla constituição dos sujeitos, o que afasta a ideia de unicidade, ao passo que
evidencia seu caráter múltiplo e contraditório, mas não fragmentado. Assumir a tripla
constituição do sujeito exige o reconhecimento de que o gênero comporta diferenças de
raça/etnia e de classe social, assim como as classes sociais e as categorias de raça/etnia
comportam diferenças de gênero. Por essas dimensões serem estruturais, as três

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merecem o mesmo estatuto teórico quando se objetiva compreender a dinâmica que rege
as práticas sociais. Um dos grandes saltos teóricos da autora é o fato de apreender que a
subjugação entre estes três antagonismos limita a apreensão “da riqueza de
determinações que definem um concreto histórico, provocando o fracasso das
estratégias cujo alvo seja a superação destas contradições.” (SAFFIOTI, 1985, p.99),
independente da direção da sujeição perpetrada.

Saffioti vai afirmar que as relações de gênero, raça e classe que se forjam
produzem uma dinâmica própria do nó, “uma lógica contraditória, distinta das que
regem cada contradição em separado” (SAFFIOTI, 2015, p.133). A fusão das três
contradições sociais básicas expõe como elas não ocorrem paralelamente, mas sim de
maneira entrelaçada. Nas palavras da autora: “trata-se de um entrelaçamento que não
apenas põe em relevo as contradições próprias de cada ordenamento das relações
sociais, mas que as potencializa.” (SAFFIOTI, 1988, p.61). Por isso Saffioti (2015),
defende que não se trata da simples soma de cada uma das contradições (patriarcado +
racismo + capitalismo), uma vez que a formação desse nó apresenta qualidades distintas
das contradições que o integram, dando luz à uma realidade nova que decorre desta
simbiose.
Por mais que não se possa, de forma generalizada, hierarquizar essas três
opressões estruturais, dependendo da circunstância histórica, uma dessas opressões pode
ganhar centralidade, trazendo um impacto mais significativo para a realidade (objetiva e
subjetiva) experienciada pelos sujeitos. Segundo Saffioti,
Trata-se, em outros termos, de três faces, de três identidades sociais do
sujeito, todas igualmente importantes para que ele atue na construção de
uma sociedade sem desigualdades, como as que separam pobres de ricos,
mulheres de homens, negros de brancos. As três identidades estão sempre
presentes, embora não com o mesmo vigor. Dependendo da situação
histórica vivenciada, uma delas pode apresentar mais relevo, e
frequentemente o faz. Há circunstâncias em que a identidade de gênero fala
mais alto, mas há outras em que a de classe ou a de raça/etnia está neste caso.
Conceber o sujeito como múltiplo permite a apreensão de, pelo menos,
grande parte de sua riqueza. (SAFFIOTI, 1997, p.76, grifos nossos).

Compreendendo a tripla constituição do sujeito em gênero, raça/etnia e classe,


Saffioti (2015) indica a heterogeneidade dos sujeitos, onde, dependendo das condições
históricas, terá uma dessas faces ressaltada, enquanto as demais, por mais que estejam
presentes, estarão à sombra da primeira.

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A TRIPLA DISCRIMINAÇÃO EM LÉLIA GONZALEZ

Lélia Gonzalez1 foi uma professora, historiadora, filósofa, antropóloga e


militante negra brasileira. Dona de uma escrita ácida e enegrecida, Lélia, ao longo de
suas obras, valoriza a escrita coloquial e os elementos de africanidade presentes na
cultura e na linguagem brasileira, além de tratar de aspectos da formação sócio histórica
brasileira e da iniquidade de gênero, sempre articulando com os rebatimentos da
herança escravista e colonial no bojo das relações sociais capitalistas.

Trata-se de uma autora interdisciplinar, que passeia por diversas áreas do saber
como história, ciências sociais e psicanálise para analisar o racismo e o sexismo no
Brasil. Devido a extensão de suas obras, nos centraremos no debate acerca das mulheres
negras no mercado de trabalho e os impactos dos papéis sociais atribuídos a elas no
campo simbólico.
Seguindo na perspectiva teórica crítica, temos em Lélia Gonzalez uma autora
que alia os estudos da chamada sociologia acadêmica, do marxismo e das relações
ideológicas, a partir da psicanálise para melhor entender a realidade social e cultural
brasileira, marcada pelas contradições de gênero, raça e classe.
Recorrendo aos estudos de formação sócio histórica do Brasil, a autora descreve
que a existência de um desenvolvimento desigual e combinado, a formação de uma
massa marginal2 e os efeitos da dominação neocolonialista fazem da construção do
capitalismo no Brasil, dependente. A construção desta massa marginal, altamente
precarizada e excedente dentro do mercado de trabalho, tem grande valia para o
funcionamento capitalista à medida que, quanto maior a concorrência aos postos de
trabalho, menores são os salários pagos.
Assim sendo, a autora demarca a necessidade de estudar as relações de
produção, pois são elas que distribuem os lugares de classe e reproduzem em seu cerne
os conflitos de raça e gênero, construindo ideologias para fundamentá-las.

1
Destacamos sua importância para os estudos da cultura brasileira e das relações étnico raciais e de
gênero, tendo ocupado a chefia do departamento de sociologia e política da Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro (PUC-RIO), entre 1978 e 1994. Além disso, no âmbito político, além de sua
filiação e candidatura a deputada federal pelo Partido dos trabalhadores (PT) e Partido Democrático
Trabalhista (PDT), teve grande contribuição na fundação do Movimento Negro Unificado (MNU), bem
como na organização política de mulheres negras em coletivos.
2
O conceito de massa marginal é criado por José Nun. Essa massa segmenta-se em: Parte da mão de obra
ocupada pelo capital industrial competitivo; trabalhadores que buscam refúgio em atividades terciárias de
baixa remuneração; Desocupados; Força de trabalho ainda submetida ao capital comercial.

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É nesse sentido que o racismo — enquanto articulação ideológica e conjunto
de práticas — denota sua eficácia estrutural na medida em que estabelece
uma divisão racial do trabalho e é compartilhado por todas as formações
socioeconômicas capitalistas e multirraciais contemporâneas. Em termos de
manutenção do equilíbrio do sistema como um todo, ele é um dos critérios de
maior importância na articulação dos mecanismos de recrutamento para as
posições na estrutura de classes e no sistema da estratificação
social.(GONZALEZ, 2020, p.35)

Após a abolição, a população negra foi preterida no mercado de trabalho em


relação aos imigrantes europeus recém chegados, com o agravante de que o não acesso
à terra faz com que grande parte dessa população seja também segregada espacialmente,
ocupando regiões periféricas e mais pauperizadas, formando favelas e comunidades.
Sendo assim, historicamente há um movimento de subalternização e dominação dos
povos escravizados, que compõem, portanto, a massa marginal.
Dito isso, a chave analítica da mulher negra no mercado de trabalho, além dos
estudos de Lélia acerca das figuras dessas mulheres no imaginário social, são de grande
importância para entender o tripé das iniquidades de gênero, raça e classe na sociedade
brasileira. Afinal, elas são a corporificação das três opressões e segundo a autora,
sofrem a tripla discriminação.
Nos seus estudos de dados estatísticos dos anos 1950 a 1980, já constatava que
eram as mulheres negras que ocupavam majoritariamente os setores têxteis, alimentícios
e posteriormente setor de serviços, nos quais enfrentavam dificuldades, tanto pelo nível
de escolaridade que possuiam, quanto pela discriminação ocupacional. Porém, é a partir
do trabalho desta mulher negra, muitas vezes como doméstica, babá, entre outras
profissões ligadas ao cuidado, que a mulher branca conseguiu — e ainda consegue — se
inserir no mercado de trabalho em postos mais elevados.
Quanto à mulher negra, sua falta de perspectiva quanto à possibilidade de
novas alternativas faz com que ela se volte para a prestação de serviços
domésticos, o que a coloca numa situação de sujeição, de dependência das
famílias de classe média branca. A empregada doméstica tem sofrido um
processo de reforço quanto à internalização da diferença, da "inferioridade",
da subordinação. No entanto, foi ela quem possibilitou e ainda possibilita a
emancipação econômica e cultural da patroa dentro do sistema de dupla
jornada. (GONZALEZ, 2020, p.42-43)

Para melhor entender a figura da mulher negra dentro do imaginário social


brasileiro, Lélia recorre à imagem da Mucama na história escravista, sendo ela a
escravizada negra que trabalhava nos cuidados da Casa Grande e dos filhos dos
senhores, onde muitas vezes recebia as investidas desses homens brancos, ou mesmo
eram violentadas sexualmente. O desdobramento disso se dá na figura da mulata
sexualizada, que encontra maior realce durante o carnaval, onde esta mulher negra

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anônima é colocada como um objeto de adoração e/ou como doméstica, dentro das
opções que lhe restam na competição do mercado assalariado no cotidiano.
Segundo Lélia, a sociedade brasileira vive numa espécie da neurose cultural,
onde oculta e nega as contradições da tripla discriminação, como forma de manter o
status quo. O efeito disso rebate de forma violenta, principalmente nas mulheres negras,
que acabam por ocupar majoritariamente cargos profissionais que não lidam com o
público, como empregada doméstica, cozinheira, "servente" etc, de maneira a escondê-
las e invisibiliza-las, com a justificativa de não terem qualificação ou boa aparência.
O ditado "Branca para casar, mulata para fornicar e negra para trabalhar" é
exatamente como a mulher negra é vista na sociedade brasileira: como um
corpo que trabalha e é superexplorado economicamente, ela é a faxineira,
arrumadeira e cozinheira, a "mula de carga" de seus empregadores brancos;
como um corpo que fornece prazer e é superexplorado sexualmente, ela é a
mulata do Carnaval cuja sensualidade recai na categoria do "erótico-exótico".
(GONZALEZ, 2020, p.170)

Logo, a mulata é a mucama sexualizada e “a doméstica é a mucama permitida, a


da prestação de bens e serviços, ou seja, o burro de carga que carrega sua família e a dos
outros nas costas.” (GONZALEZ, 2020, p.82-83).
Vemos no pensamento de Lélia um grande esforço em dar visibilidade às
diversas formas de resistência das mulheres, pois se as contradições de gênero e raça
estão presentes na formação do país como elementos centrais históricos e políticos que
dão forma ao modelo capitalista moderno, estão também essas mulheres existindo e
resistindo ativamente.
Por fim, coadunamos com a autora quando afirma que enquanto mulheres
negras, “(...) sabemos bem o quanto trazemos em nós as marcas da exploração
econômica e da subordinação racial e sexual. Por isso mesmo, trazemos conosco a
“marca da libertação de todos e de todas” (GONZALEZ, 2020, p.270). Sendo, portanto,
exaltada a potência da organização social e política das mulheres negras.

CONCLUSÕES
Através desse breve e esquemático resgate de algumas das valiosas
contribuições de Saffioti e Gonzalez para a construção do pensamento social brasileiro,
fica evidente a influência do patriarcado e do racismo para a manutenção do sistema
societário vigente.
O conceito do nó de Saffioti apresenta precisamente a particularidade da nossa
formação social, e, ancoradas na obra de Lélia, podemos observar como esse nó se
manifesta na vida das mulheres negras, ao aliar o racismo, o sexismo e o capitalismo,

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em uma conjunção que atribui a essas mulheres, que sofrem com a tripla discriminação,
papéis específicos delimitados pela hegemonia burguesa patriarcal e racista.
Ambas as autoras nos apontam reiteradamente a importância de pensarmos o
imbricamento entre capitalismo, racismo e sexismo no Brasil, enxergando-os como três
opressões estruturais que se encontram profundamente articuladas na realidade concreta.
Sem a articulação desses três sistemas de dominação e exploração, a análise da
formação social, política e econômica brasileira fica extremamente prejudicada, para
dizer o mínimo.
O resgate da contribuição dessas duas grandes pensadoras sociais brasileiras nos
permite reconhecer o profundo impacto que o patriarcado, o racismo e o capitalismo
exerceram e exercem, ainda hoje, na formação social, política, econômica e cultural do
Brasil.

REFERÊNCIAS

BARTHOLOMEU, Juliana S. Lélia Gonzalez. In: Enciclopédia de Antropologia. São


Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia, 2019. Disponível
em: https://ea.fflch.usp.br/autor/lelia-gonzalez

GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino americano: ensaios, intervenções e


diálogos. RIOS, Flávia, LIMA, Márcia. (orgs.). 1ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.

SAFFIOTI, Heleieth. Força de Trabalho Feminina: no interior das cifras, in


Perspectivas, São Paulo, 1985, nº 8, p.95 a 141

_______. O poder do macho. São Paulo: Moderna, 1987.

_______. Movimentos sociais: face feminina. In Carvalho, Nanci Valadares de. (org.) A
condição feminina. São Paulo, Revista dos Tribunais Ltda., Edições Vértice, 1988.

_______. Violência de Gênero – lugar da práxis na construção da subjetividade. Lutas


Sociais, nº 2, PUC/SP, 1997, pp.59-79

_______. Gênero, patriarcado, violência. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular:


Fundação Perseu Abramo, 2015.

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