O documento discute como a filosofia era vista como uma maneira de viver para os antigos gregos e romanos. A filosofia envolvia tanto uma conduta moral virtuosa quanto a contemplação da natureza. Ela era vista como um exercício espiritual para alcançar a sabedoria, transformando completamente a maneira de existir. A filosofia proporcionava tranquilidade, liberdade interior e consciência cósmica.
O documento discute como a filosofia era vista como uma maneira de viver para os antigos gregos e romanos. A filosofia envolvia tanto uma conduta moral virtuosa quanto a contemplação da natureza. Ela era vista como um exercício espiritual para alcançar a sabedoria, transformando completamente a maneira de existir. A filosofia proporcionava tranquilidade, liberdade interior e consciência cósmica.
O documento discute como a filosofia era vista como uma maneira de viver para os antigos gregos e romanos. A filosofia envolvia tanto uma conduta moral virtuosa quanto a contemplação da natureza. Ela era vista como um exercício espiritual para alcançar a sabedoria, transformando completamente a maneira de existir. A filosofia proporcionava tranquilidade, liberdade interior e consciência cósmica.
O documento discute como a filosofia era vista como uma maneira de viver para os antigos gregos e romanos. A filosofia envolvia tanto uma conduta moral virtuosa quanto a contemplação da natureza. Ela era vista como um exercício espiritual para alcançar a sabedoria, transformando completamente a maneira de existir. A filosofia proporcionava tranquilidade, liberdade interior e consciência cósmica.
Baixe no formato PDF, TXT ou leia online no Scribd
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 14
AFILOSOFIA COMO MANEIRA DE VIVER
Todos que, entre os gregos e bárbaros, exercem-se na sabedoria,
levando uma vida sem repreensão e sem censura, abstendo-se voluntariamente de cometer a injustiça ou revidá-la, evitam o convívio com pessoas intrigueiras e reprovam os lugares que esses indivíduos frequentam, tribunais, conselhos, praças pú- blicas, assembleias, toda reunião ou agrupamento de pessoas desconsideradas. Aspirando a uma vida de paz e serenidade, eles contemplam a natureza e tudo que se encontra nela, exploram atentivamente a terra, o mar, o ar, o céu e todas as naturezas que aí se encontram, acompanham pelo pensamento a lua, o sol, os movimentos dos outros astros errantes ou fixos; seus corpos per- manecem sobre a terra, mas eles dão asas a suas almas para que, elevando-se no éter, elas observem os poderes que se encontram nele, como convém àqueles que, tendo se tornado cidadãos do mundo, fazem do mundo sua cidade, cujos cidadãos são fami- liares da sabedoria, os quais receberam seus direitos cívicos da Virtude, que tem a tarefa de presidir o governo do Universo. As- sim, repletos de perfeita excelência, habituados a não levar em consideração os males do corpo e os males exteriores, exercen- do-se a ser indiferentes às coisas indiferentes, armados contra os prazeres e os desejos, em uma palavra, sempre zelosos para ficar acima das paixões ... não se curvando sob os golpes da sorte porque calcularam de antemão os ataques (pois, entre as coisas que acontecem sem que se queira, mesmo as mais penosas são aliviadas pela previsão, quando o pensamento não encontra mais nada inesperado nos acontecimentos, mas ameniza a percepção como se se tratasse de coisas antigas e desgastadas), é evidente que, para tais homens, que encontram a alegria na virtude, toda a vida é uma festa. Eles formam, certamente, um pequeno número, tição de sabedo- ria mantido nas cidades para que a virtude não se apague com- pletamente e não seja arrancada da nossa espécie. Mas se, em toda parte, os homens tivessem os mesmos sentimen- tos desse pequeno número, se viessem a ser verdadeiramente tal qual a natureza quer que eles sejam, sem repreensão, sem cen- sura, amantes da sabedoria, regozijando-se com o bem porque é o bem e considerando que o bem moral é o único bem ... então as cidades estariam repletas de felicidade, livres de toda causa de aflição e de medo, repletas de tudo que constitui a alegria e o prazer espiritual, de modo que em nenhum momento estaria privada de vida alegre e todo o ciclo do ano seria uma festa. Nesse texto de Filo de Alexandria (De Special. Leg., II,§ 44), inspirado pelo estoicismo, aparece claramente um dos aspectos fundamentais da filosofia na época helenística e romana: ela é uma maneira de viver, o que não quer dizer somente que ela é uma certa conduta moral - pois se vê bem nesse texto o papel desempenhado pela contemplação da natureza -, mas que é uma maneira de existir no mundo, que deve ser praticada a cada ins- tante, que deve transformar toda a vida. A palavra philo-sophia, "amor pela sabedorià', bastava, aos olhos dos Antigos, para exprimir essa concepção da filosofia. Pla- tão, no Banquete, havia mostrado que Sócrates, figura do filo-sofo, podia ser identificado a Eros, filho de Poros (expediente) e de Penia (pobreza). Ele estava privado da sabedoria, mas sabia buscá-la.A filosofia parecia assim um exercício do pensamento, da vontade, de todo o ser, para tentar chegar a um estado, a sabedoria, que era, aliás, quase inacessível ao homem. A filosofia era um método de progresso espiritual que exigia uma conversão radical, uma trans- formação radical da maneira de ser. Maneira de viver, a filosofia o era então no seu esforço, no seu exercício, para alcançar a sabedo- ria, mas também o era em seu objetivo, a própria sabedoria, pois a
262 1 Exercícios espirituais efilosofia antiga
sabedoria não faz somente que possamos conhecer, mas faz "ser" diferentemente. Oparadoxo e a grandeza da filosofia antiga é que ela estava, a um só tempo, consciente do fato de que a sabedoria é inacessível e persuadida da necessidade de perseverar no pro- gresso espiritual. Como dizia Quintiliano (Institut. Orat. I, proem., 19): "É preciso tender em direção ao que há de mais alto: é o que fizeram a maior parte dos Antigos que, mesmo pensando que ain- da não se havia encontrado um sábio, não deixavam de ensinar os dogmas da sabedoria". Sabia-se que jamais se chegaria a realizar em si a sabedoria como um estado estável e definitivo, mas espe- rava-se ao menos atingi-lo em certos momentos privilegiados, e a sabedoria era a norma transcendente que dirigia a ação. A sabedoria era um modo de vida que trazia a tranquilidade da alma (ataraxia), a liberdade interior (autarkeia), a consciência cósmica. Primeiramente, a filosofia se apresentava como uma terapêutica destinada a curar a angústia. Esse tema se encontra explicitamente em Xenócrates, discípulo de Platão (fr. 4 Heinze), em Epicuro (Carta a Pítocles, § 85: "Não há outro fruto a colher do conhecimento dos fenômenos celestes senão a paz da alma"), nos estoicos (Marco Aurélio, IX, 31), nos céticos nos quais se encontra esta bela imagem (Sexto Empírico, Hypotyp., I, 28): "O famoso pintor Apeles queria reproduzir na pintura a espuma do cavalo. Não chegou a obter sucesso e decidiu desistir. Ele então lançou sobre o quadro a esponja com a qual limpava seus pincéis. E, precisamente, ao tocar o quadro, a esponja produziu a imitação da espuma do cavalo". Da mesma maneira, os céticos começam fazendo como os outros filósofos, que buscam a paz da alma na firmeza e segurança do juízo. "Não a alcançando, eles suspendem o juízo e eis que, por acaso, a paz da alma acompanha a suspensão do juízo como a sombra o corpo:' A filosofia se apresentava também como um método para al- cançar a independência, a liberdade interior (autarkeia), o estado no qual o eu depende apenas de si mesmo. Otema se encontra em Sócrates (Xenofonte, Memoráveis, I, 2, 14), nos cínicos, em Aristó- teles, para quem a vida de contemplação assegura a independên- cia (Et. Nic., X, 7, 1178b3), em Epicuro (Gnomol. Vatican., § 77), nos estoicos (Epiteto, III, 13, 7). Em todas as escolas filosóficas,
Parte VI -A filosofia como maneira de viver l 263
encontra-se, segundo diversos métodos, a mesma tomada de consciência do poder que o eu humano possui de se libertar de tudo que lhe é estranho, nem que seja, como nos céticos, pela re- cusa em decidir. No epicurismo e estoicismo, a essas disposições fundamen- tais acrescentava-se a consciência cósmica, isto é, a consciência de fazer parte do cosmos, a dilatação do eu na infinitude da natureza universal. Como diz Metrodoro, discípulo de Epicuro: "Lembra-te de que, embora tu sejas mortal e tenhas apenas uma vida limitada, tu te elevaste, todavia, pela contemplação da na- tureza até a infinitude do espaço e do tempo e que tu viste todo o passado e todo o futuro". E, segundo Marco Aurélio (XI, 1), "a alma humana percorre o cosmos inteiro e o vazio que o circun- da, e ela se estende na infinitude do tempo infinito, e ela abraça e pensa o renascimento periódico do universo". O sábio antigo, a cada instante, tem consciência de viver no cosmos e se coloca em harmonia com o cosmos. Para melhor compreender de que maneira a filosofia antiga po- dia ser um modo de vida, é talvez preciso fazer apelo à distinção que os estoicos propunham entre o discurso sobre a filosofia e a própria filosofia (Diógenes Laércio, VII, 39). Segundo os estoicos, as partes da filosofia, isto é, a física, a ética e a lógica eram, de fato, não partes da própria filosofia, mas partes do discurso filosófico. Eles queriam dizer com isso que, quando se trata de ensinar filo- sofia, é preciso propor uma teoria da lógica, uma teoria da física, uma teoria da ética. As exigências do discurso, ao mesmo tem- po lógicas e pedagógicas, obrigam a fazer essas distinções. Mas a própria filosofia, isto é, o modo de vida filosófico, não é mais uma teoria dividida em partes, mas um ato único que consiste em viver a lógica, a física e a ética. Não se faz mais então a teoria da lógica, isto é, do falar bem e do pensar bem, mas pensa-se e fala-se bem; não se faz mais a teoria do mundo físico, mas contempla-se o cosmos; não se faz mais a teoria da ação moral, mas age-se de uma maneira reta e justa. O discurso sobre a filosofia não é a filosofia. Pólemon, um dos escolarcas da antiga Academia, dizia: "O que se diria de um músi- co que se contentasse em ler os manuais de música e não tocasse
264 Exercícios espirituais efilosofia antiga
J jamais? Muitos filósofos são admirados por seus silogismos, mas se contradizem em suas vidas" (Diógenes Laércio, IV, 18). E cinco séculos mais tarde Epiteto lhe faz eco (III, 21, 4-6): "O carpinteiro não vem vos dizer: 'Escutai-me argumentar sobre a arte dos car- pinteiros', mas faz seu contrato para uma casa e a constrói [... ]. Faze o mesmo tu também. Come como um homem, bebe como um homem [... ], casa-te, tem filhos, participa da vida da cidade, sabe aguentar as injúrias, suporta os outros homens .. :'. Entreveem-se, em seguida, as consequências dessa distinção, formulada pelos estoicos, mas admitida implicitamente pela maior parte dos filósofos, concernente às relações entre a teoria e a prática. Uma sentença epicurista o diz claramente: "vazio é o discurso do filósofo se não contribui para curar a doença da almà' (Usener, Epicurea, 222). As teorias filosóficas estão a serviço da vida filosófica. É por isso que, na época helenística e romana, elas se reduzem a um núcleo teórico, sistemático, muito concentrado, capaz de ter uma forte eficácia psíquica, e suficientemente manuseável para que se possa tê-lo sempre à mão. Odiscurso filosófico é sistemático não por desejo de obter uma explicação total e sistemática de toda realidade, mas para fornecer ao espírito um pequeno grupo de princípios fortemen- te ligados em conjunto, que adquirem com essa sistematização uma maior força persuasiva, uma melhor eficácia mnemotécni- ca. Sentenças curtas resumem, aliás, os dogmas essenciais, às vezes numa forma impactante, a fim de permitir se recolocar na disposição fundamental na qual se deve viver. A vida filosófica consiste então somente em aplicar a cada instante teoremas que se dominam bem para resolver os pro- blemas da vida? De fato, quando se reflete sobre o que a vida filosófica implica, percebe-se que há um abismo entre a teoria filosófica e o filosofar como ação viva. Também o artista tem ares de se contentar em aplicar regras. Mas há uma distância in- comensurável entre a teoria abstrata da arte e a criação artística. Ora, na filosofia, não se trata somente de criar uma obra de arte, mas de se transformar a si mesmo. Viver realmente como filóso- fo corresponde a uma ordem de realidade totalmente diferente daquela do discurso filosófico.
Parte VI ·A filosofia como maneira de viver l 265
No estoicismo, como no epicurismo, filosofar é um ato contí- nuo, um ato permanente, que se identifica com a vida, um ato que é preciso renovar a cada instante. Nos dois casos, pode-se defi- nir esse ato como uma orientação da atenção. No estoicismo, a atenção está orientada para a pureza de intenção, isto é, a confor- midade da vontade do homem com a Razão, isto é, a vontade da Natureza universal. No epicurismo, a atenção está orientada para o prazer, que é, em última instância, o prazer de ser. Mas, para realizar essa atenção, todos os tipos de exercício são necessários, notadamente a meditação intensa dos dogmas fundamentais, a tomada de consciência sempre renovada da finitude da vida, o exame de consciência, sobretudo uma certa atitude com relação ao tempo. Com efeito, estoicos e epicuristas recomendam viver no presente, sem se deixar perturbar pelo passado, sem se inquie- tar com o futuro incerto. Para eles, o presente é suficiente para a felicidade porque é a única realidade que nos pertence, a única realidade que depende de nós. Estoicos e epicuristas concordam em reconhecer o valor infinito de cada instante: para eles a sabe- doria é tão completa e perfeita num instante como durante toda uma eternidade, o próprio instante equivale a toda uma eterni- dade, e, especialmente para o sábio estoico, em cada instante está contida, está implicada a totalidade do cosmos. Aliás, não somen- te podemos, mas devemos ser felizes imediatamente. Há urgência, o futuro é incerto, a morte ameaça. "Enquanto esperamos para viver, a vida passà' (Sêneca, Cartas a Lucílio, I, 1). Uma tal atitude não se pode compreender a menos que se suponha na filosofia antiga uma tomada de consciência aguda do valor incomensurá- vel, infinito, de existir, de existir no Cosmos, na realidade única do acontecimento cósmico. A filosofia, na época helenística e romana, apresenta-se en- tão como um modo de vida, como uma arte de viver, como uma maneira de ser. De fato, ao menos desde Sócrates, a filosofia an- tiga tinha essa característica. Havia um estilo de vida socrático (que os cínicos imitarão) e o diálogo socrático era um exercício que conduzia o interlocutor de Sócrates a se colocar em questão, a ter cuidado consigo mesmo, a tornar sua alma o mais bela e mais sábia possível (Platão,Apol., 29el ). Platão define a filosofia como o exercício para a morte e o filósofo como o homem que
266 j Exercícios espirituais efilosofia antiga
não teme a morte porque contempla a totalidade do tempo e do ser (República, 474d e 476a). Pensa-se às vezes que Aristóteles é um puro teórico, mas também para ele a filosofia não se reduz ao discurso filosófico ou a um corpo de conhecimentos, mas é uma qualidade do espírito, o resultado de uma transformação interior: a forma de vida que ele preconiza é viver segundo o espírito (Et. Nicam., 1178a ss.). Não é preciso, pois, como se faz muito frequentemente, ima- ginar que a filosofia se transformou radicalmente na época hele- nística, isto é, após a dominação macedônica das cidades gregas, ou na época imperial. Por um lado, não houve, depois de 330 a. C., essa morte da cidade grega e da vida política que comumente se admite, sob a influência de clichês tenazes. E, sobretudo, a concep- ção da filosofia como arte de viver, como forma de vida, não está ligada a circunstâncias políticas, a uma necessidade de evasão, de liberdade interior que compensaria a liberdade política perdida. Já em Sócrates e em seus discípulos a filosofia é um modo de vida, uma técnica da vida interior. Afilosofia não mudou de essência no curso de sua história na Antiguidade. Os historiadores da filosofia, em geral, dão muito pouca aten- ção ao fato de que a filosofia antiga é antes de tudo uma maneira de viver. Eles consideram a filosofia sobretudo como um discurso filosófico. Como explicar a origem desse preconceito? Penso que ele está ligado à evolução da própria filosofia na Idade Média e nos tempos modernos. O cristianismo desempenhou um papel considerável nesse fenômeno. No princípio, a partir do século II d.C., o cristianismo se apresentou como uma filosofia, isto é, como um modo de vida cristão. E, se o cristianismo pôde se apresen- tar como uma filosofia, isso reitera o fato de que a filosofia era concebida na Antiguidade como um modo de vida. Se filosofar é viver em conformidade com a lei da Razão, o cristão é um filósofo porque vive em conformidade com a lei do Logos, da Razão divina (Justino,Apol., I, 46, 1-4). Para se apresentar como filosofia, o cris- tianismo teve, aliás, de incorporar elementos tomados da filosofia antiga, fazer coincidir o Logos do Evangelho de João com a Razão cósmica estoica, depois com o Intelecto aristotélico ou platônico. Teve também de incorporar os exercícios espirituais filosóficos à
Parte VI -A filosofia como maneira de viver \ 267
vida cristã. Esse fenômeno de incorporação aparece muito clara- mente em Clemente de Alexandria e se desenvolve intensamente no movimento monástico, no qual se reencontram os exercícios estoicos ou platônicos da atenção a si mesmo (prosoche), da me- ditação, do exame de consciência, do exercício para a morte, e no qual se reencontra também o valor atribuído à tranquilidade da alma e à impassibilidade. A Idade Média herdará a concepção da vida monástica como filosofia cristã, isto é, como maneira cristã de viver. Como diz Dom Jean Leclercq ("Para a história da expressão 'filosofia cristã"', em Mélanges de Science Religieuse, t. IX, 1952, p. 221 ): "Tanto na Idade Média monástica como na Antiguidade, philosophia designa não uma teoria ou uma maneira de conhecer, mas uma sabedoria vi- vida, uma maneira de viver segundo a razão". Mas, ao mesmo tempo, na Idade Média, nas universidades, dá- -se fim à confusão que existia primitivamente no cristianismo en- tre a teologia, fundada sobre a regra da fé, e a filosofia tradicional, fundada sobre a razão. Afilosofia não é mais a ciência suprema, mas a "serva da teologià'; ela lhe fornece o material conceitual, lógico, físico ou metafísico do qual tem necessidade. Afaculdade de artes é apenas uma preparação para a faculdade de teologia. Na Idade Média, se colocamos à parte o uso monástico da palavra philosophia, a filosofia torna-se então uma atividade puramente teórica e abstrata, ela não é mais uma maneira de viver. Os exer- cícios espirituais antigos não fazem mais parte da filosofia, mas estão incorporados à espiritualidade cristã: eles se encontram nos Exercícios Espirituais de Santo Inácio, e a mística neoplatônica se prolonga na mística cristã, notadamente na dos dominicanos renanos, como Mestre Eckhart. Há, pois, uma mudança radical no conteúdo da filosofia com relação à Antiguidade. Por um lado, teologia e filosofia são doravante ensinadas em universidades, que foram a criação da Igreja da Idade Média. Ainda que às vezes se tenha querido empregar a palavra "universidade" a propósito das instituições escolares antigas, parece que a noção e a realidade da universidade jamais existiram então, salvo talvez no Oriente, no final da Antiguidade. Uma das características da universida- de é que ela é formada por professores que formam professores,
268 I Exercícios espirituais efilosofia antiga
de profissionais que formam profissionais. O ensino não se diri- ge mais, portanto, a homens que se quer formar para que sejam homens, mas a especialistas para que aprendam a formar outros especialistas. É o perigo da "escolásticà' que havia começado a se desenhar no final da Antiguidade, que se desenvolve na Idade Mé- dia e cuja presença pode-se ainda reconhecer na filosofia de hoje. A universidade escolástica dominada pela teologia continuará a funcionar até o final do século XVIII, mas do XVI ao XVIII a atividade filosófica verdadeiramente criativa se desenvolverá fora da universidade com Descartes, Espinosa, Malebranche, Leibniz. A filosofia conquistará sua autonomia ante a teologia, mas esse movimento que havia nascido em reação contra a escolástica medieval se situará sobre o mesmo terreno que ela. Opor-se-á ao discurso filosófico teórico um outro discurso teórico. Apartir do final do século XVIII, a nova filosofia faz sua entrada na universidade com Wolff, Kant, Fichte, Schelling e Hegel, e dora- vante a filosofia, com algumas raras exceções, como Schopenhauer ou Nietzsche, está indissoluvelmente ligada à universidade, como se vê com Bergson, Husserl ou Heidegger. Ofato tem sua importân- cia.A filosofia, reduzida, como vimos, ao discurso filosófico, desen- volve-se definitivamente em outro ambiente, em outra atmosfera que a da filosofia antiga. Na filosofia universitária moderna, a filo- sofia não é mais, evidentemente, uma maneira de viver, um gênero de vida, a menos que seja o gênero de vida do professor de Filosofia. Ele tem como elemento constituinte, como lugar vital, a instituição escolar do Estado, o que, aliás, sempre foi e pode permanecer uma ameaça para a independência da filosofia. Como diz Schopenhauer em OMundo como Vontade ... (Le Monde comme Volonté... , t. II, p. 297 da trad. de Burdeau): "A filosofia das universidades é a esgrima diante do espelho. No fundo, seu verdadeiro objetivo é dar aos es- tudantes opiniões em conformidade com o gosto do ministro que distribui as cadeiras[ ... ]. Não se poderia considerá-la como séria. É uma filosofia para rir. Todavia, se há algo de desejável no mun- do, é ver cair um raio de luz sobre o misterioso enigma de nossa vida .. :'. Seja como for, a filosofia moderna é antes de tudo um dis- curso que se desenvolve nos cursos, que se consigna em livros, um texto do qual se pode fazer a exegese.
Parte VI -A filosofia como maneira de viver l 269
Isso não quer dizer que a filosofia moderna não tenha reencon- trado, por vias diferentes, certos aspectos existenciais da filosofia antiga. É preciso dizer, aliás, que esses aspectos jamais desapare- ceram completamente. Não é um acaso, por exemplo, que Des- cartes intitule uma de suas obras Meditações. São efetivamente meditações (meditatio no sentido de exercício) segundo o espí- rito da filosofia cristã de Santo Agostinho, e Descartes recomen- da praticá-las durante um certo tempo. A Ética de Espinosa, sob sua forma sistemática e geométrica, corresponde bastante bem ao que pode ser o discurso filosófico sistemático no estoicismo. Pode-se dizer que esse discurso, nutrido da filosofia antiga, ensina a transformar radical e concretamente o ser do homem, a fazê-lo alcançar a beatitude. Aliás, a figura do sábio aparece nas últimas linhas da obra. "O sábio", diz Espinosa, "dificilmente conhece a perturbação em sua alma, mas, consciente de si mesmo, de Deus e das coisas, por uma certa necessidade eterna, ele jamais cessa de ser, mas possui sempre o verdadeiro contentamento da alma:' A filosofia de Schopenhauer e a de Nietzsche são, elas tam- bém, convites a uma transformação radical da maneira de viver. Nietzsche e Schopenhauer são, aliás, pensadores banhados na tra- dição antiga. Ademais, sob a influência do método hegeliano, isto é, da ideia do caráter puramente histórico da consciência humana, segundo a qual a única coisa durável é a ação do próprio espírito humano, que engendra incessantemente novas formas, resultou nos jovens hegelianos e em Marx a ideia de que a teoria não pode se desvincular da práxis, que é a ação do homem no mundo que engendra as representações. No século XX, a filosofia de Bergson e a fenomenologia de Husserl se apresentam menos como sistemas que como métodos para transformar nossa percepção do mundo. E o movimento de pensamento inaugurado por Heidegger e con- tinuado pelo existencialismo pretende, teoricamente, em princí- pio, engajar a liberdade e a ação do homem no processo filosófico, ainda que, de fato e em última instância, ele seja antes de tudo um discurso filosófico. Poder-se-ia dizer que o que diferencia a filosofia antiga da fi- losofia moderna é que, na filosofia antiga, não somente Crisipo ou Epicuro são considerados filósofos porque desenvolveram um
270 1 Exercícios espirituais efilosofia antiga
discurso filosófico, mas também todo homem que vive segundo os preceitos de Crisipo e Epicuro. Um homem político como Catão de Útica é considerado filósofo e até sábio, ainda que nada tenha escrito, nem nada ensinado, porque sua vida foi perfeitamente estoica. Ocorre o mesmo com homens de Estado romanos como Rutilius Rufus e Quintus Mucius Scaevola Pontifex, que pratica- ram o estoicismo demonstrando uma imparcialidade e uma hu- manidade exemplares na administração das províncias que lhes foram confiadas. Eles não são somente exemplos de moralidade, mas de homens que vivem todo o estoicismo, que falam como estoicos (Cícero diz explicitamente que eles recusaram um certo tipo de retórica nos processos aos quais foram submetidos), que veem o mundo como estoicos, isto é, que querem viver de acordo com a Razão cósmica. São homens que tentam realizar o ideal da sabedoria estoica, uma certa maneira de ser homem, de viver se- gundo a razão, no cosmos e com os outros homens. Não é somente uma questão de moral, todo o ser está envolvido. Afilosofia anti- ga propõe ao homem uma arte de viver; a filosofia moderna, ao contrário, apresenta-se antes de tudo como a construção de uma linguagem técnica reservada a especialistas. Cada um é livre para definir a filosofia como quiser, para esco- lher a filosofia que quiser, para inventar, se puder, a filosofia que acreditar válida. Mas, caso se permaneça fiel à definição antiga, como Descartes ou Espinosa ainda eram, para os quais a filoso- fia era "o exercício da sabedoria'', caso se pense que é essencial aos homens tentar chegar ao estado de sabedoria, encontrar-se- -ão nas tradições antigas, nas diferentes escolas filosóficas - o socratismo, o platonismo, o aristotelismo, o epicurismo, o estoi- cismo, o cinismo, o ceticismo - "modelos" de vida, formas funda- mentais, segundo as quais a razão pode ser aplicada à existência humana, tipos de busca da sabedoria. É justamente a pluralidade de escolas antigas que é preciosa. Ela nos permite comparar as consequências das diferentes atitudes fundamentais possíveis da razão, ela oferece um terreno privilegiado de experimentação. Isso evidentemente supõe que essas filosofias sejam reduzidas a seu espírito, à sua essência, desvinculando-as de seus elementos caducos, cosmológicos ou míticos, e que se depreendam as propo- sições fundamentais que elas próprias consideravam essenciais.
Parte VI -A filosofia como maneira de viver l 271
Não se trata, aliás, de escolher uma ou outra dessas tradições em detrimento das outras. Como observou K. Jaspers ("Epikur", em Mélanges E. Beutler, 1960, p. 132), epicurismo e estoicismo, por exemplo, correspondem a dois polos opostos, mas inseparáveis, de nossa vida interior: a exigência da consciência moral e o flo- rescimento da alegria de existir. Na Antiguidade, a filosofia é um exercício a ser praticado a cada instante; ela convida a se concentrar sobre cada instante da vida, a tomar consciência do valor infinito de cada momento presente se ele é colocado na perspectiva do cosmos, pois o exercício da sabe- doria comporta uma dimensão cósmica. Enquanto o homem co- mum perdeu o contato com o mundo, não vê o mundo enquanto mundo, mas trata o mundo como um meio de satisfazer seus de- sejos, o sábio não cessa de ter o Todo constantemente presente ao espírito. Ele pensa e age na perspectiva universal. Ele tem o senti- mento de pertencer a um Todo que ultrapassa os limites da indi- vidualidade. Na Antiguidade, essa consciência cósmica se situava numa perspectiva diferente daquela do conhecimento científico do Universo que poderia ser, por exemplo, a ciência dos fenôme- nos astronômicos. Oconhecimento científico era objetivo e mate- mático, ao passo que a consciência cósmica era o resultado de um exercício espiritual que consistia em tomar consciência do lugar da existência individual na grande corrente do cosmos, na pers- pectiva do Todo: "toti se inserens mundo", "mergulhando na tota- lidade do mundo" (Sêneca, Cartas a Lucílio, 66, 6). Esse exercício não se situava no espaço absoluto da ciência exata, mas na expe- riência vivida do sujeito concreto, vivente e percipiente. São duas ordens radicalmente diferentes de relação com o mundo. Pode-se compreender a distinção entre essas duas ordens lembrando-se da oposição sublinhada por Husserl ("L' arché-originaire Terre ne se meut pas" na revista Philosophie, I, 1984, p. 4-21) entre a rota- ção da Terra afirmada e provada cientificamente e a imobilidade da Terra sustentada ao mesmo tempo por nossa experiência co- tidiana e pela consciência transcendental e constitutiva. Para esta última, a Terra é o sol imóvel da nossa vida, a referência de nosso pensamento ou, como diz Merleau-Ponty em Elogio da Filosofia (Éloge de la Philosophie et Autres Essais, N. R. F., p. 285), "a matriz de nosso tempo, como de nosso espaço". Da mesma maneira, o
272 1 Exercícios espirituais efilosofia antiga
cosmos e a natureza são, para nossa experiência vivida, para nos- sa percepção viva, o horizonte infinito de nossa vida, o enigma de nossa existência que nos inspira, como dizia Lucrécio, "horror et divina voluptas", "um frêmito e um prazer divino". Como diz Goethe em versos admiráveis (Fausto, verso 6272): "o frêmito é a melhor parte do homem. Por mais caro que o mundo lhe faça pagar por essa emoção, é repleto de surpresa que o homem sente a realidade prodigiosà'. Relação consigo, relação com o cosmos, relação com os outros homens: também nesse último domínio as tradições filosóficas antigas são instrutivas. A bem dizer, não há clichê mais firme- mente ancorado, mais desenraizável na mentalidade dos historia- dores modernos do que a ideia segundo a qual a filosofia antiga teria sido uma conduta de evasão, de ensimesmamento, seja entre os platônicos no céu das Ideias, seja entre os epicuristas na re- cusa da política, seja entre os estoicos na submissão ao Destino. De fato, essa maneira de ver as coisas é duplamente falsa. Ini- cialmente, num primeiro nível, a filosofia antiga é sempre uma filosofia que se pratica em grupo, quer se trate das comunidades pitagóricas, do amor platônico, da amizade epicurista, da direção espiritual estoica. Afilosofia antiga supõe um esforço em comum, uma comunidade de busca, de ajuda mútua, de apoio espiritual. Mas sobretudo os filósofos, mesmo, em última instância, os epi- curistas, jamais se recusaram a agir nas cidades, a transformar a sociedade, a servir seus concidadãos que frequentemente lhes fizeram elogios dos quais há inscrições que servem de testemu- nho. As concepções políticas podem ter sido diferentes segundo as escolas, mas a preocupação de exercer influência na cidade ou no Estado, sobre o rei, sobre o imperador, sempre permane- ceu constante. Especialmente no estoicismo (pode-se observar isso facilmente em vários textos de Marco Aurélio), entre as três tarefas às quais é preciso pensar a cada instante paralelamente à vigilância do pensamento e ao consentimento aos eventos im- postos pelo destino, figura em bom lugar o dever de agir sempre a serviço da comunidade humana, o dever de agir segundo a jus- tiça. E essa exigência está intimamente ligada às duas outras. É a mesma sabedoria que se conforma à Razão cósmica e à Razão comum aos seres humanos. Essa preocupação de viver a serviço
Parte VI -A filosofia como maneira de viver l 273
da comunidade dos homens, essa preocupação de agir segundo a justiça é um elemento essencial de toda vida filosófica. Dito de outro modo, a vida filosófica comporta normalmente um enga- jamento comunitário. Isso é provavelmente o mais difícil para realizar, porque se trata de conseguir se manter no plano da ra- zão, a não se deixar cegar pelas paixões políticas, cóleras, rancores e pelos preconceitos. E é verdadeiro que há um equilíbrio quase inacessível a ser realizado entre a paz interior que a sabedoria for- nece e as paixões que não podem deixar de ser suscitadas pela visão das injustiças, dos sofrimentos e das misérias dos homens. Mas a sabedoria consiste precisamente nesse equilíbrio, a paz in- terior é indispensável para poder agir com eficácia. Tal é a lição da filosofia antiga: um convite para cada homem transformar a si mesmo. Afilosofia é conversão, transformação da maneira de ser e da maneira de viver, busca da sabedoria. Isso não é fácil. "Se o caminho que conduz a esse estado de sabedoria pare- ce árduo'', escreve Espinosa no fim da Ética, "pode-se, entretanto, encontrá-lo. Mas, se ele é descoberto com tamanha dificuldade, é precisamente porque é um caminho árduo. Como seria possível, se a salvação estivesse à mão e fosse possível chegar a ela sem grande esforço, que ela fosse negligenciada por quase todos? Mas tudo que é belo é tão difícil quanto raro?'