Manuel Cadafaz de Matos: Erasmo e Os Índices Inquisitoriais Portugueses No Século XVI
Manuel Cadafaz de Matos: Erasmo e Os Índices Inquisitoriais Portugueses No Século XVI
Manuel Cadafaz de Matos: Erasmo e Os Índices Inquisitoriais Portugueses No Século XVI
Matos
* Doutor em Estudos Portugueses pela UNL. Docente universitário (Prof. Associado). Director do Centro de
Estudos de História do Livro e da Edição, Lisboa. Este estudo, inédito, teve a sua primeira redacção quan-
do da realização, na Academia das Ciências de Lisboa, entre 25 e 28 de Maio de 1987, do "II Simpósio
Nacional de Humanismo, Erasmo na Cultura Portuguesa", e surge agora acrescido de ligeiras alterações -
tendo até em vista a homenagem que aqui se propõe - ao nível do pormenor.
Erasmo e os índices inquisitoriais portugueses no
século XVI
Por Manuel Cadafaz de Matos
1
Vide António Baião, "A Censura literária inquisitorial", in Boletim de Segunda Classe da Academia das
Ciências de Lisboa, vol. XII, 1918, pp. 474-483. No que respeita à apresentação, estudo introdutório e
reprodução facsimilada destes índices, remetemos o leitor para Artur Moreira de Sá, índices dos livros proi-
bidos em Portugai no século XVI, Lisboa, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1983.
Estudos em homenagem a João Francisco Marques
O primeiro destes índices, Prohibiçam dos livros defesos, nunca chegou a ser impresso.
A sua aprovação consta de uma carta do Infante Inquisidor datada de 28 de Outubro de 1547,
divulgada (ao que supomos pela primeira vez) por António Baião2. Ora a não publicação deste
índice acabou por fazer com que ele nunca cumprisse a missão pública para que fora criado.
Importará frisar, no entanto, que já aí a obra de Erasmo - mas mais do que isso a sua
ideologia - é tida pelos censores portugueses como algo de nefasto, de desestabilizador. Há
que travar, com efeito, a introdução dos ideais humanísticos e teológicos do filósofo de
Roterdão em território nacional.
Vejamos, assim, quais os objectivos a que preside a pretensa publicação de um índice
de livros proibidos como o de 1547.
Uma das razões básicas de um rol deste tipo - e já Silva Dias, em 19633, alertou para
tal questão - é indiscutivelmente uma atitude de prevenção contra os vários modelos possí-
veis de infiltração de propaganda do protestantismo.
A crítica doutrinária religiosa é, com efeito, a principal razão da proibição das obras
que figuram nesse rol. Nota-se aqui, refere ainda Silva Dias, uma notória "tendência para
assimilar o evangelismo, especialmente o de inspiração fabro-erasmiana."4
Importa reter que à altura da publicação deste "Rol" já Erasmo havia falecido há onze
anos (ao que é sabido em Julho de 1536).
2
Idem, ibidem.
3
Vide J. S. da Silva Dias, "0 primeiro rol de livros proibidos", ín revista Bibtos, n.° 39, 1963 (1967), pp. 231-
-327, p. 234.
4
Meritoriamente Silva Dias apercebeu-se, já nos começos dos anos sessenta, que os organizadores deste
Primeiro Roi de livros proibidos tiveram a percepção exacta de que a polémica anti-católica - até aí apenas
perspectivada num campo teológico - se havia alargado ao campo histórico, "servindo-se da historiografia
como arma de propaganda religiosa entre as massas".
5
Manuel Cadafaz de Matos, Erasmo, da sua modernidade, Braga, Barbosa & Xavier, 1987.
6
Este período coincide sensivelmente com aquele em que o próprio humanista de Roterdão terá oferecido
ao seu amigo J. Camerario um exemplar, por si autografado com a respectiva dedicatória, do opúsculo
Sobre as Esferas do matemático e helenista Teodósio de Siracusa, em tradução do grego para latim. A edi
ção dessa obra, devida ao humanista Johan Voegelin, decorreu tipograficamente em Viena, na oficina de
loannis Singrenii, sendo tais trabalhos finalizados em 18 de Março desse ano de 1529. Nessa dedicatória
Manuel Cadafaz de Matos
Trata-se de dois documentos, ou seja, dois recibos passados pelo mestre de Gramática
da capela da Rainha, D. Rodrigo Sanches. Eis o teor desses documentos que se encontram
depositados nos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo7 e foram publicados em 1977 por Maria
Augusta Barbosa8:
1. Digo yo Rodrigo Sanchez maestro de los moços de capilla de Ia Reyna nuestra
senora que Reçibi de diego calema tesorero de su alteza dos virgillios: dos lucenas
[lucanos?]: vn Horatio / vnas tragédias de seneca dos terençios lios quales Ijbros
costaron dos mil maravedis para los moços de capilla /y porque es verdad nos di este
conoseimjento firmado de mj nombre.
Fecho em lixboa a XXVJ de Júlio de mjl e qujnjentos e veynte y nueve.
Podrigo Sanchez
2. Digo yo el sobredicho que es verdad que Recibi dei dicho tesorero diez libros que
su alteza mando dar conviene a saber dos vergilios ij terençios: ij epistolas dovidio
ij colloquios de erasmo, dos lucanos y porque es verdad Io firme de mj nombre oy a
XXVJdeJulio.
Rodrigo Sanchez
Estes dois recibos - advertindo, como referimos, para a entrada das primeiras obras
de Erasmo em Portugal - poderão levar, ainda, a. outro grau de reflexões. Sendo tais docu-
mentos de finais de Julho de 1529, eles situam-se, segundo adverte Moreira de Sá10, precisa-
mente no período em que a obra de Erasmo, Colloquiorum formulae (cuja primeira edição
data de Antuérpia, de 1516) é traduzida para castelhano com o titulo Los Colóquios. Tal obra
é, com efeito, publicada em 1529 em Sevilha por Juan Cromberger. Registe-se ainda a parti-
cularidade de se tratar do mesmo Cromberger que poderá ter-se deslocado a Portugal como
- traduzida e divulgada pelo Prof. Doutor Rafael Moreira, no estudo "Um autógrafo de Erasmo na Biblioteca
de Évora", in Estudos de Arte e História, Homenagem a Artur Nobre de Gusmão, Lisboa, Editorial Vega,
1995, pp. 378-386 — explicita o humanista o seu afecto ao referido Camerario, nestes termos: C/ar/ss[imo]
et doct/ss[imo] viro d. Joachimo Camerario, domino et amico suo obseruando. Erasmus R. d.d. [= dono
dedit], isto é, "Ao mui ilustre e douto Sr. Joaquim Camerario, seu respeitado senhor e amigo, oferece
Erasmo de Roterdão" (id., p. 379).
7
Arquivos Nacionais/Torre do Tombo, Corpo Cronológico, Parte II, n.° 157, n.° 53.
8
Vide Maria Augusta Alves Barbosa, Vicentis. iusitanus. Ein Portugiesischer kompomisf und musiktheoretiker
das 16 Jahrhundert, Lisboa, pp. 360-370.
9
Vide, também, Artur Moreira de Sá, op. cit, pp. 57-58.
10
Artur Moreira de Sá, op. cit, p. 11.
Estudos em homenagem a João Francisco Marques
impressor em 1508. Ora segundo tais recibos de 1529, do mesmo ano da impressão espan-
hola de Los Colóquios, somos levados a aceitar, com Moreira de Sá, tratar-se aqui da entra-
da no nosso país, nesse ano, da referida edição erasmiana11.
Verificando-se tal situação, os Colóquios ainda circulam em Portugal, com uma par-
ticular "legalidade" durante, pelo menos, 18 anos, até que o índice de 1547 procura pôr
termo à sua divulgação nos meios eclesiásticos e eruditos portugueses.
1
A colectânea dos Colóquios de Erasmo foi largamente publicada neste período na Europa, em traduções
parcelares ou na íntegra, em países como a França, Itália e Espanha. Vide Bibiiotheca Erasmiana, Repertoire
des oeuvres dtrasme, 10? série, Nieuwkoop, 1961, pp. 35-51; Mareei Bataillon, Erasme et 1'Espagne.
Recherches sur l'histoire espiritueUe du XVI siècle, Paris, 1937. A passagem vertente colhemo-la de Erasmo
y Espana, nova edição, México 1950, tomo 1.°, pp. XLI-XLIII. Remetemos ainda, no contexto do erasmismo
e sua relação com a cultura portuguesa, para J. S. da Silva Dias, Correntes de sentimento religioso em Portugal,
Coimbra, 1960, tomo 1.°; e idem, 0 eramismo e a Inquisição em Portugal. 0 processo de Frei Valentim da
Cruz, Coimbra, 1975; e Manuel Augusto Rodrigues, Do Humanismo a contra-reforma em Portugal, Coimbra,
Centro de História da Sociedade e da Cultura da Universidade de Coimbra, 1981.
12
Vide Artur Moreira de Sá, De Re Erasmiana - Aspectos do erasmismo na cultura portuguesa do século XVI,
Braga, Publicações da Faculdade de Filosofia, 1977, cap. "Obras de Erasmo editadas em Portugal no século
XVI (em latim e em castelhano)", pp. 247-278.
13
Nesse mesmo ano é inquisidor geral, no pais vizinho, o Arcebispo sevilhano Don Alonso Manrique que, no
dizer de Bataillon é "bastante amigo do erasmismo para aceitar a dedicatória da dita tradução". Vide Mareei
Bataillon, Erasmo y el Erasmismo, Barcelona, Editorial Critica (1978), nova edição, de 1983, p. 157.
14
Esta assembleia de Valladolid ocorreu entre 27 de Junho e 13 de Agosto de 1527 e realizou-se em con
formidade com o desejo expresso pelo Inquisidor-mor de Espanha, D. Alonso Manrique. Estava ali em equa
ção a discussão dos cerca de trinta pontos de vista de Erasmo já fortemente divulgados em Espanha nesse
tempo e participaram nos trabalhos - para além dos portugueses Pedro Margalho, D. Estevão de Almeida
e Diogo de Gouveia Sénior - os espanhóis, Pedro Cirvelo, Bernardino Vásquez de Oropesa, Fr. Diego de
Astudillo, Fr. António de Guevara, Sancho Carranza de Miranda, Alonso de Vimes, Pedro de Lerma, Luis
Coronel e Frei Francisco de Vitória. Frei Francisco de Vitória - que, segundo Serafim Leite, "em Paris tra
tara com intimidade a Erasmo de Roterdão, e em Salamanca continuava a mostrar-se erasmista" (por volta
de 1534-1538) - terá seguramente influenciado no seu pendor humanístico o nosso padre Manuel da
Nóbrega, durante o período em que este último frequentou aquela universidade espanhola. Vide Serafim
Leite, Breve Itinerário para uma Biografia do P. Manuel da Nóbrega, fundador da província do Brasil e da
cidade de São Paulo (1517-1570), Lisboa - Rio de Janeiro, 1955, pp. 25-26. Sobre a assembleia de Valladolid
Manuel Cadafaz de Matos
Estamos em crer que até ao momento em que a edição do Enquiridio foi posta a circu-
lar em Lisboa - em 1541, como vimos - a edição espanhola da mesma obra entrava no nosso
país com uma significativa regularidade. Os inquisidores portugueses, zelosos defensores da
"consciência pública", só se terão apercebido, porém, algum tempo depois dos "perigos" ideo-
lógicos contidos em tal obra bem como em outras que pudessem pôr em risco a sua segu-
rança e "serenidade" de espírito. Esse facto explica que o Cardeal Inquisidor só tenha feito
surgir o primeiro rol de "livros defesos" cerca de seis anos depois, ou seja, em 1547.
O que que transparece desta atitude censória por parte da Igreja mais não é do que um
acto de defesa no tocante não só à preservação dos seus dogmas mais intrínsecos como da sua
própria segurança contra todo e qualquer risco externo, designadamente, o vírus herético.
Tal gesto "de defesa" da Igreja em relação aos elementos de "contágio" ideológico
maléfico (da segurança) dos dogmas estabelecidos, encontrava na Arte de impressão um ini-
migo. Se a Igreja tinha na Imprensa o útil aliado para a divulgação dos seus primados teoló-
gicos, também era graças a essa mesma Imprensa que os autores não recomendados infiltravam
nas consciências e nos espíritos considerados indefesos o germe da discórdia, do afastamento
e da ruptura.
Já se situa, com efeito, cerca de uma dúzia de anos antes do aparecimento do rol
Prohibiçam dos livros defesos (de 1547) do Cardeal Inquisidor, uma significativa manifes-
tação do temor da Igreja contra o perigo das "infiltrações" ideológico-religiosas externas que
se estendem, inclusivamente, até ao domínio da Ciência.
I. S. Revah mostra estar consciente desse mesmo "temor" da Igreja contra todo e
qualquer tipo de infiltração ideológica externa, já na primeira metade da década de trinta
(desse século).
Foi precisamente em 1534, comenta Revah15, que principiou a surgir a indicação de
que tinha sido dada uma licença para que determinada obra pudesse ser impressa. Tal medi-
da consta, afinal, do alvará de D. João III emitido em 23 de Dezembro desse ano, em que é
concedida ao cosmógrafo Simão Fernandes uma licença para poder imprimir o Regimento
da arte de navegar16.
Dessa carta do monarca, até uma outra, de 20 de Fevereiro de 1537 - em que deter-
mina que certas obras fossem vistas e examinadas pelo Doutor Pedro Margalho, documento
este que foi publicado em 1882 por Venâncio Deslandes17 - vai apenas um passo. Assim,
quando em 1547 os Colóquios de Erasmo surgem, aliados a outras obras portadoras de perigo
remetemos, em particular, para a rigorosa análise de Mareei Bataillon in Erasme et l'Espagne. Recherches
sur l'histoire espirituelle du XVI siècle, Paris, 1937, reedições em 1950 e, no México, em 1966. Nesta últi-
ma edição vide pp. 226-278.
15
I. S. Revah, La censure inquisitoriale portugaise au XVIe. siècle, Lisboa, 1960, p. 19.
16
A vigilância contra a possível infiltração de ideologias contrárias ao "status quo" da Igreja, por via da
Ciência, está patente, de igual modo, no país vizinho. Veja-se, por exemplo, o retrato de Erasmo, todo ris
cado e cortado pelos censores espanhóis, num exemplar da Cosmographia de Sebastião Munster.
17
Venâncio Deslandes, Documentos para a história da typographia portuguesa nos séculos XVI e XVII, Parte I,
Lisboa, 1882, pp. 3-4.
Estudos em homenagem a João Francisco Marques
18
Vide Artur Moreira de Sá, De Re Erasmiana, cap-. "Obras de Erasmo editadas em Portugal no século XVI
(em latim e castelhano )", ed. ant. cit, pp. 247-278.
19
Exemplar depositado na B. N. de Madrid, cota R. 3594, sobre a qual trabalhámos na capital espanhola em
Fevereiro de 1986. Na espécie bibliográfica existente na Biblioteca Pública Municipal do Porto, com a cota
F-5-50, faltam as folhas I a VIL
20
Existe também um exemplar desta edição na Biblioteca Pública Municipal do Porto, com a cota Y-3-68.
21
Tendo a Inquisição sido instituída definitivamente em Portugal em 23 de Maio de 1536 (por Bula do Papa
Paulo II), guiou-se na sua actividade censória, desde as primeiras relações de livros proibidos que fez circu
lar, por guias "orientadores" tais como o Catálogo da Sorbonne de 1544 bem como o Index da Universidade
de Lovaima, de 1546. Importa no entanto relevar que, apesar dos exemplos de normativismo censório apre
sentados por aquelas instituições parisiense e lovaniense, os censores portugueses denotaram, segundo
J. S. da Silva Dias, in 0 primeiro rol..., pp. 96-97, uma maior flexibilidade, aceitando a circulação no nosso
país de muitas obras que, por exemplo, eram proibidas pela Inquisição em Paris.
Manuel Cadafaz de Matos
Esta última obra surge, aqui, com a designação de Epitome coloquioram Arasmi
[sic22] (ou seja, Coloquiorum Epitome, Antuérpia, 1537).
Vêm, logo de seguida nesse mesmo rol, três outras obras do humanista de Roterdão.
São elas moria Arasmi23 [sic] (ou seja, Moriae Encomiam, Estrasburgo, 1512); Modas
Confitendi Erasmi em latim e em linguagem (ou seja, Exomologesis sive modas confitendi,
Antuérpia, 1524); bem como Os Colloqaios de herasmo em latim e em limgoajem24 (ou seja,
os Colloqaia, Basileia, 1526).
Acerca da chegada a Portugal da penúltima destas obras, Exomologesis sive modas
confitendi, J. S. da Silva Dias25 afirmava em 1963 não saber de nenhuma tradução, em lingua
gem castelhana ou portuguesa, "embora alguma possa ter existido em manuscrito", tal como 137
se admite em virtude de uma alusão contida na terceira parte do índice espanhol de 1551.
Conhecem-se deste período, no entanto, duas edições francesas de tal obra: uma que se
admite ser da responsabilidade de Claude Chausannette, com o titulo Manière de Confesserpar
Erasme (Basileia, 1524) e uma outra, com o titulo Le vrai moyen de bien et catholiqaement se
confesser, saída dos prelos de Dolet na cidade de Lyon, dezoito anos depois, ou seja, em 1542.
Se alguma destas edições circulava em Portugal no período em que o Cardeal
Inquisidor mandou estabelecer a Prohibiçam dos livros defesos, só em ulteriores investiga-
ções o poderemos vir a corroborar.
Dois anos depois da publicação deste rol de 1547, uma particularidade se afigura per-
tinente no que respeita à divulgação e censura do texto erasmiano em Portugal nos meados
do século XVI.
Na terceira obra de Erasmo editada em Portugal, em 1549, o Index Reram et
Verboram..., figura, logo no início26, uma carta de João de Vaseu, de Bruges, dirigida a
Martinho de Azpilcueta Navarro, datada de Évora de 17 de Setembro de 1547 27.
Esta epístola antecede em um mês e dez dias um outro importante documento, tam-
bém firmado precisamente naquela cidade, desta feita emitido pelo notário do Santo Ofício,
Francisco de Moura, em representação do Cardeal D. Henrique. Trata-se da referida Prohibiçam
dos livros defesos que, com a data de 28 de Outubro do mesmo ano, procura acabar com a
entrada em Portugal de livros de autores considerados heréticos, suspeitos e danados.
Esse rol, saliente-se, apontava quais os autores que não podiam, a partir daí, ser nova-
mente impressos (ou, até lidos) sem serem objecto de exame e autorização por parte da
Inquisição. Erasmo é, sintomaticamente, um desses autores considerados heréticos.
Dois anos depois da emissão desta disposição inquisitorial e da data em que foi escrita
a carta de João Vaseu a Martinho de Azpilcueta Navarro - ambas firmadas, repetimos, em
Évora a não muitos dias de distância - é publicada em Coimbra a referida terceira obra de
Erasmo (em Portugal) de que há noticia, o índex Reram et Verboram.
22
Artur Moreira de Sá, índices..., edição ant. cit. [1983], p. 147.
23
Idem, ibidem, loc. cit.
24
Idem, ib/dem, p. 148
25
A confirmar-se esta hipótese deverá certamente estar associado aos humanistas portugueses que à altura
frequentavam a Universidade de Paris.
26
In fls. 1-4.
27
In Biblioteca Pública de Évora, cota R . 324.
Estudos em homenagem a João Francisco Marques
28
O referido índice de livros proibidos apresenta o seguinte título na portada: Este he o rol dos liuros defesos
por o Cardeal iffante Inquisidor geral nestes Reynos de Portugal [D. Henrique] Anno de 1551. Consta de 11
folhas [+1] (= 24 pp.) e saiu impresso em Lisboa, na oficina de Germão Galharde, no referido ano de 1551.
29
ant. = ou seja, já anteriormente objecto de proibição. — Vide também n?s 2 e 5.
Manuel Cadafaz de Matos
30
A descrição destas obras de Erasmo no referido Rol de 1551 vem no fólio n/n, com assin-. Aiiii; na edição
em fac-simile de Artur Moreira de Sá, na p. 161. A esta dezena de obras do humanista de Roterdão seguem-se
os três títulos: Língua ejusdem, tam in vulgari q[uam] in latino; Miles christianus; Methodus compendio per-
veniendi ad veram theologiam...
Algum tempo depois da primeira redacção [em 1987] deste estudo saiu a obra Index des Livres Interdits,
2
dir . de J. M. de Bujanda, vol. IV: Index de 1'lnquisition Portugaise, 1547, 1551, 1561, 1564, 1581, Sherbrooke
[Canadá] Éditions de 1'Université de Sherbrooke, 1995. Constitui também um empreendimento de assinalá-
vel valia neste âmbito a edição da obra de Francisco Bethencourt, História das Inquisições, Portugal,
Espanha e Itália, Lisboa, Círculo de Leitores, 1994, de que existe também disponível a versão francesa,
Paris, Fayard, 1996.
** Agradecemos ao Prof. Doutor José V. de Pina Martins o ter-nos comunicado esta informação, antes de ele
próprio vir a utilizá-la no estudo "Erasme à 1'origine de 1'Humanisme en Allemagne", in Nordrhein-Westfàlische
Akademie der Wissenschaften, Dusseldorf, 1997, 38 pp., em particular p. 29.
Estudos em homenagem a João Francisco Marques
ficaram pela proibição de cerca de metade das obras de Erasmo, ou seja, sete, quatro das
quais não figuram no rol de livros portugueses. Esse facto só prova, por si, a diferença de
critérios nas duas atitudes censórias.
Eis, portanto, as obras de Erasmo reprovadas pelos censores de Valladolid:
[ 1 ] - Epithome colloquiorum;
[2] - Ecclesiaste vel modas concionandi;
[3] - Colloquia;
[4] - Copia...;
[5] - De conscribendis epistolis;
[6] - De ciuilitate moram;
[7] - Apophthegmata.
Importa referir, em relação à proibição em Valladolid da obra De ciailitate morum - dada
a sua natureza estritamente sociológica - que esta, explicitamente, tem de ser analisada num con-
texto que se prende, sobretudo, com a organização da sociedade espanhola desse período.
Torna-se hoje imprescindível levar a bom termo, a curto ou médio prazo, um profun-
do plano de pesquisa sobre a actividade censória na península neste período, de natureza
interdisciplinar, em que se envolvam cientistas sociais dos dois países. Chegamos a esta
necessidade após uma primeira missão de estudo desenvolvida em Valladolid.
Tal plano de pesquisas deverá ser feito a partir quer dos documentos existentes no
Arquivo daquela Universidade, quer nos de Simancas e de Madrid. Mesmo que já tenham
sido publicados, ao longo das últimas décadas, alguns estudos de particular relevo nesta
matéria, muitas das tipologias de atitudes censórias continuam, a nosso ver, sem estar cabal-
mente estudadas. No âmbito do erasmismo ibérico quinhentista há, de facto, muita docu-
mentação que ainda carece de estudo.
31
I.S. Revah, op. cit, pp. 51-52.
Manuel Cadafaz de Matos
Tendo uma circulação considerada por vezes deveras restrita ao nível nacional, ele
foi, pelo menos, parcialmente posto em vigor na diocese de Coimbra e talvez em outras dio-
ceses portuguesas.
Neste índice de livros proibidos de 1559 - que saiu dos prelos da oficina de João da
Barreira em Coimbra (onde foi composto sob as directrizes do bispo da diocese, D. João
Soares) - continua a estar evidenciada, claramente, uma acção censória e repressiva contra a
obra de Erasmo de Roterdão.
Iremos avaliar, assim, as obras proibidas de Erasmo neste índice.
Pelas investigações que fizemos no exemplar existente na Biblioteca Pública de Évora,
pode constatar-se, no sub-capítulo deste impresso intitulado "Auctores, quorum libri et scrip- 141
ta omnia prohibentur", que Erasmo está mais uma vez presente:
Desiderius Erasmus Roterodamus cum universis Commentarijs, Annotationibus,
Scholijs, Dialogis, Epistolis, Censuris, Versionibus, Libris, et scriptis suis, etiam si nil peni-
tus contra Religione, vel de Religione contineant.
Por sua vez no sub-capítulo "Biblia prohibita", consta:
Nouum Testamentum cum duplici interpretatione D. Erasmi, et Veteris interpretis.
Harmonia item Euangelica, et índice, etcaetera.
Torna-se indispensável, neste caso, voltar de novo a reflectir sobre a aproximação que
fez Moreira de Sá (em 1977) à prática censória inquisitorial verificada em Valladolid.
Com efeito, atendendo ao Cathalogus librorum qui prohibentur... publicado em
Valladolid em 1559, figuram proibidas as 15 seguintes obras de Erasmo, entre as quais 12 que
constam do rol português de 1551:
Erasmi Roterodami, opera haec quae sequuntur.
[ 1 ] - Moria, tam latino, quam vulgari sermone;
[2] - Colloquia, tam latino, quam vulgari sermone;
[3] - Modus orandi Deum, tam latino, quam vulgari sermone;
[4] - Exomologesis siue modus confitendi, tam latino quam vulgari sermone;
[5] - Enchiridion militis Christiani, tam latino quam vulgari sermone;
[6] - Lingua, tam latino quam vulgaris sermone;
[7] - Ecclesiates, siue de ratione concionandi;
[8] - Explicado Symboli, siue Cathechismus;
[9] - Epitome Colloquiorum;
[10] - Prologus in Hilari; opera;
[11] - De sarcienda ecclesiae concórdia;
[12]- Christiani matrimoni; institutio;
[13] - De interdicto esu carnium;
[14] - Censura super tertiam regulam Augustini;
[15] - Methodus compendio perueniendi ad veram thelogiam.
Estudos em homenagem a João Francisco Marques
32
Acerca das várias edições de algumas destas obras — em particular de algumas espécies que (outrora na
Biblioteca de Estudos Humanísticos) integram hoje as colecções da Biblioteca Nacional de Lisboa — reme-
temos para o catálogo Erasmo na Biblioteca Nacional, Século XVI, com introdução e notas bibliográficas
por José V. de Pina Martins, Lisboa, Biblioteca Nacional, 1987.
Manuel Cadafaz de Matos
33
Vide António Baião, "A censura literária inquisitorial", in 0 Boletim de Segunda Classe da Academia das
Ciências de Lisboa, vol, XII, 1918, p. 485.
34
Manuel Cadafaz de Matos, "0 processo do Padre António de Gouveia na Inquisição de Lisboa (séc. XVI) pela
prática de Alquimia e adesão ao espírito da Astrologia Judiciária", comunicação que apresentámos, em Maio
de 1987, na Universidade de São Paulo (Brasil), no âmbito dos trabalhos do Congresso Internacional sobre
a Inquisição que então ali se realizou.
Estudos em homenagem a João Francisco Marques
mais de vinte anos depois da sua morte35. Isso só atesta, afinal, do seu real significado teo-
lógico, da sua operatividade e capacidade de reinterpretação e análise do texto bíblico.
35
Nas duas décadas que se seguiram à morte de Erasmo [em Basileia, em 1536], os inquisidores de várias
nações cristãs do ocidente europeu não deixaram de assinalar — através de concretas manifestações prá-
ticas, como a da tinta corrosiva aplicada nas obras mais "perigosas" editadas pelo humanista — algumas
das passagens que se lhes afirmavam como mais prejudiciais à forma mentis dos cristãos. Vejamos uma
caso concreto. Em 1543, tendo sido editada em Basileia, na oficina dos Froben, a obra Epistolarum Opus
Divi Hieronymi in três tomos..., os censores continuaram, então, a não poupar alguns dos mais pertinentes
comentários do humanista de Roterdão. Essa atitude, nesta obra, nesses meados do século XVI continua-
va a fazer-se sentir em Portugal ainda no final do primeiro quartel do século XVIII (mostrando-se que a
História das Ideias não tinha evoluído muito nesses dois séculos). Com efeito, num exemplar dessa edição
de 1543, existente em Lisboa na LHITIPOR, está bem marcada a sanha do inquisidor setecentista que, para
além de ter barrado com tinta corrosiva várias dezenas de passagens de teor considerado herético, deixou
na portada da mesma obra quer o seu incontido autógrafo quer os intempestivos comentários, com a data
de 1745.
Manuel Cadafaz de Matos
Daqui se infere que para os inquisidores coordenadores desta obra, Erasmo não é tido
no grupo dos "capitães dos hereges". Logo, por exclusão de partes, deverá ser tido como sus-
peito ou acusado de praticar "falsa doutrina".
Erasmo, porém, continua neste Catálogo dos livros defesos de 1581 a ter a sua obra
representada. Cerca de 45 anos depois do seu desaparecimento, na secção E dessa publica-
ção, figura o Enchiridion militiae Christianae36 impressum Compluti***. Curiosamente, na
secção "Livros Prohibidos em Lingoajem", cerca de meia dezena de folhas, adiante, na
mesma compilação, figura a obra Euphrosina31, do português Jorge Ferreira de Vasconcelos.
Esse rol de livros proibidos de 1581 sairá impresso na oficina de António Ribeiro em
Lisboa. E evidente que foi, ainda, uma consequência directa, também entre nós, da última
fase dos trabalhos do Concílio de Trento que, como se sabe, decorreram por três períodos,
ou seja, em 1545-1548; 1551-1552; e 1562-1563.
Entretanto dezasseis anos depois daquela edição era dado à estampa - desta feita na
oficina de Pedro Craesbeeck, também na capital e com a data de 1597 - o último rol de livros
proibidos português do século XVI. Foi subordinado ao título genérico Index libro rum pro-
hibitorum, cum regulis confectis, per Patres à Tridentino Synodo delectos... e ainda se man-
tinha associado - tal como o seu título indica - ao espírito daquele Concílio.
Este rol estava ainda ligado, de forma curiosa - mesmo que indirectamente - aos ide-
ais censórios do Cardeal inquisidor, D. Henrique, que havia falecido em 1580 (um ano antes
daquele anterior índice ter sido publicado). Continuava vigente o espírito de um não incon-
tido temor pela entrada através das fronteiras de Portugal (sobretudo no Velho Continente
mas também nas possessões ultramarinas) dos ideais dos autores hereges que podiam conta-
minar o pacifismo cristão peninsular.
Este rol de livros proibidos de 1597 foi mandado imprimir pelo bispo de Eivas,
D. António de Matos de Noronha que, na altura, desempenhava o cargo de Inquisidor
geral do Reino. Erasmo (aliado a outros autores heréticos ou portadores de heresia) con-
tinuava a ter as suas obras representadas neste rol.Pelo estudo feito desta publicação - a
partir do exemplar depositado na Biblioteca Nacional de Lisboa (Res. 1417 P.) - sabe-se
36
Artur Moreira de Sá, índices..., ed. ant. cit [1983], p. 585.
*** Tudo indica tratar-se ou da edição latina Enchiridion militis Christiani de 1525, [J. M. Abad n.° 142], ou de
uma das edições, em castelhano, da mesma obra, Enquiridio, ou Manual dei cavailem cristiano [em tra-
dução de Alonso Fernández de Madrid], ou a de 1527 [Abad, n.° 185], a de c. 1528, [Abad, n.° 203], ou a
de 1529 [Abad n? 219]. Passando já vinte e dois anos sobre esta mais recente edição complutense do
Enquiridio, de Erasmo, será legítimo interrogarmo-nos se, porventura, pouco antes da data da publicação
deste Catálogo dos Livros Defesos, de 1581, terá saído em Alcaná de Henares uma nova edição desta
obra do humanista de Roterdão [não encontrada e, daí, não recenseada por Julían Martim Abad, in La
Imprenta en Alcalá de Henares, Madrid, Editorial Arco Liberos, 3 vols. 1994 - Vide, ainda do mesmo autor
"Sesenta y cinco nuevas ediciones complutenses dei sigli XV", Revista Portuguesa de História do Livro, n.°
4 [1998], Lisboa, Edições Távola Redonda, 1999, pp. 33-90.
37
Artur Moreira de Sá, idem, p. 595.
38
Idem, fl. 17. Este rol é também publicado por Artur Moreira de Sá, índices..., ed. ant. cit. [1983], sendo a
folha vertente apresentada in p. 736 desta sua edição.
Estudos em homenagem a João Francisco Marques
que, pelo menos, seis obras do humanista de Roterdão eram aí apresentadas como livros
defesos38. São elas:
[1] - Colloquioru[m] liber;
[2] - Moria;
[3] - Língua]
[4] - Christiani Matrimonij institutio',
[5] - De interdito esu carniu[m]\
[6] - Paraphrasis in Matthaeum.
Fica provado, uma vez mais, que tanto as edições latinas39, como a edição castelhana
dos Colloquia continuaram, até fins do século XVÍ, a ser impedidas de circular livremente
entre leigos mas sobretudo entre religiosos portugueses, fosse no Portugal continental fosse
em terras do império. Poderemos aduzir, de igual modo, desse facto que como o impedido é,
muitas vezes, o mais desejado, essa obra foi abundantemente não só lida como utilizada -
em meios que poderiamos considerar quase como clandestinos - por intelectuais portugue-
ses (e castelhanos) quinhentistas. Pelo estudo que aqui deixamos, poderá concluir-se que a
obra de Erasmo, mesmo proibida em grande parte de circular em Portugal, foi bastante lida
entre nós o que despertava o natural temor das autoridades censórias eclesiásticas.
39
A edição do texto latino dos Coiioquia - sobre o qual fazemos incidir, de momento, mais pormenorizadas
pesquisas é a constante da Obra Completa do humanista: Desiderii Erasmi Roterodami Opera Omnia
emmendatiora et auctiora, ad óptimas editiones praecipue quae ipse Erasmus postremo curavit summa fide
exacta, doctorumque virorum notis illustrata..., Lugduni Batavorum [Leiden], oficina de Petri Vander, 1703, 11
tomos in folio [obra em fac-simile preparada há algumas décadas atrás na Grã-Bretanha/Bélgica; exemplar
proveniente da Biblioteca de Estudos Humanísticos, hoje na LHITIPOR], em particular o tomo 1, "Coiioquia
Familiaria", pp. 629-890.