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Olavo de Carvalho
Aula 275
20 de dezembro de 2014
[versão provisória]
Para uso exclusivo dos alunos do Curso Online de Filosofia.
O texto desta transcrição não foi revisto ou corrigido pelo autor.
Por favor, não cite nem divulgue este material.
Escolhi para a aula de hoje um texto que eu retirei do livro de Scott Soames, Philosophical Analysis
in the Twentieth Century que é talvez a mais completa obra da história da filosofia analítica que
alguém já fez. Nosso foco não é propriamente a filosofia analítica, mas eu queria ilustrar a
profundidade da influência da filosofia de Kant no século XX.
A profundidade da influência de um filósofo é medida pelo fato de suas teses serem subscritas como
premissas que não precisam ser discutidas, ou seja, premissas óbvias que já não são conclusões ou
raciocínios, mas pontos de partida, dogmas, axiomas que são aceitos sem requerer uma análise
especial.
Destarte, trabalhos filosóficos inteiros foram inaugurados com essas teses como ponto de partida.
Explicar isto — não só ilustrar alguns pontos que eu expus nas aulas sobre Kant — será a ocasião
de explicar certos pontos do meu esforço filosófico, educacional e pessoal de modo que vocês
entendam melhor em que tipo de aventura se meteram quando começaram a assistir a estas aulas.
Então, para esclarecer o que estamos fazendo, eu e vocês também, lerei e analisarei um texto
bastante curto, mas que dará a chance de muitas explicações. Este livro do Scott Soames têm umas
900 páginas, é algo oceânico, tem um capítulo para cada um dos filósofos em que é seguida uma
ordem cronológica e a atualiza até a década de 80, 90.
Se a filosofia analítica não é um conjunto unificado de doutrinas subscrito por uma ampla faixa de
filósofos, que é ela? A resposta breve é que é uma certa tradição histórica na qual o trabalho inicial
de G. E. Moore, Bertrand Russell e Ludwig Wittgenstein estabeleceu a agenda para os filósofos
posteriores [...]
Ou seja, por mais longe que tenha ido parar do trabalho desses pioneiros, é sempre a ele que os
filósofos dessa corrente reportam como um ponto de partida. A mesma coisa acontece em toda a
escola filosófica existente. Por exemplo, o marxismo começa com a idéia de que a ideologia de uma
classe é determinada pela sua posição objetiva na sociedade, isto é, pelos seus interesses vitais —
interesses de ordem material. Depois de um século e meio, o que está na vanguarda do pensamento
marxista é a idéia do Ernesto Laclau de que a propaganda revolucionária cria a classe à qual ela
destina o seu discurso ideológico. A propaganda vem primeiro, a classe vem depois. Em vez de a
posição de classes ser o fator determinante, é uma criação da propaganda revolucionária, é uma
inversão total da premissa marxista.
No entanto, o pensamento de Laclau não é compreensível fora desta tradição marxista. Ele
representa uma espécie de evolução interna, uma dialética interna, da própria filosofia marxista. A
mesma coisa acontece na escola analítica e, adiante, o próprio Wittgenstein muda de rumo no curso
de sua vida adotando uma orientação oposta à do início — ele tinha começado com um projeto de
uma linguagem aperfeiçoada baseado sobretudo na lógica do Gottlob Frege e depois de um certo
tempo Wittgenstein vê que isto é impossível e então passa a se dedicar a analisar frases banais da
comunicação diária para ver no que dá.
Existe uma variedade muito grande dentro da escola, mas todas essas variedades referem-se ao
início. Este início é como se fosse um rito de passagem, você tem de passar, não há ninguém da
escola analítica que não tenha passado por George Morre, Bertrand Russel e Ludwig Wittgenstein;
sobretudo esses dois últimos, porque o George Morre foi um pouco esquecido, embora seja de uma
importância extraordinária na fundação desta escola.
Isto é importante: não há um conjunto de doutrinas fixo a que todos tenham de subscrever. Não se
trata de uma Igreja, nenhuma escola filosófica tem isso — nem a Escolástica têm isso.
Aqui você já tem três idéias superpostas. O tipo de clareza que eles buscam no início é a clareza de
termos perfeitamente definidos. Quer dizer, o tipo de clareza que se necessita, por exemplo, em uma
demonstração geométrica — sabe-se exatamente a que tipo de figura cada termo se refere. Porém,
isto abrange o conceito total clareza? Obviamente não. Na filosofia, na medida em que se lida com
elementos reais da experiência, sobretudo a sua experiência interior, existe um outro tipo de clareza
que abrange a expressão dessa experiência. E a expressão da impressão interior é uma coisa
extremamente difícil, que necessariamente começa por uma espécie de discurso poético: um
discurso de ordem narrativa.
Quando você assistiu a algum fato estranho na rua, algo que não compreendeu; você chega em casa
e está branco. As pessoas perguntam: o que aconteceu? E como você responde? Faz uma narrativa.
Ou seja, você ainda não está entendendo, mas já tem os dados na mão; está fazendo aquilo que o
Benedetto Croce chamaria de uma narrativa poética, está expressando impressões. Esta expressão
de impressões não é uma coisa fácil, porém, como ela lhe dá o primeiro material com o qual você
vai raciocinar, sem ela não há nada além de palavras. É o caso de perguntar: o ideal de clareza que
esta escola tinha era realmente uma clareza ou apenas uma nitidez das definições das palavras?
Havia o cuidado em saber se estas palavras correspondiam efetivamente à experiência humana real?
Na segunda fase de sua vida, o Wittgenstein teve uma preocupação deste tipo: analisar frases que
expressavam experiências humanas diretas. Porém, o problema é que ele quase invariavelmente
escolhe frases banais do dia a dia, onde, no máximo, expressa um dado sensível qualquer, com uma
base muito pobre. Dizer, por exemplo, coisas como: a vassoura está atrás da porta; um tipo de
linguagem que não permite avançar nem na experiência da expressão humana, nem para, depois,
avançar filosoficamente, não se irá longe com isso.
Ao longo da vida do próprio Wittgenstein, é possível perceber que ele não era um indivíduo com
muita clareza em relação a ele mesmo, a sua própria alma. Muitas vezes era um indivíduo muito
confuso. Confuso ao ponto de o próprio Bertrand Russell não o tolerar, pois ele só vinha com
conversa maluca. Que tipo de clareza um homem confuso pode alcançar? Ele pode alcançar uma
clareza verbal ou uma clareza conceptual: ele define cada termo e apresenta-os como se fosse um
programa de computador: o resto do raciocínio segue a partir daquelas definições dadas. Isto está
longe de poder abranger o tipo de clareza que se necessita numa investigação filosófica que, em
princípio, vai partir da experiência da realidade. Em primeiro lugar há que se ter a clareza da
percepção da realidade — este é um tema em que vou voltar daqui a pouco. É preciso perceber as
coisas com clareza, expressá-las com clareza e, depois, trabalhar esta expressão até chegar a
conceitos descritivos que sejam adequados e comproporcionados à experiência real.
Pior, quando você elabora um conceito está passando da experiência concreta singular para uma
estrutura universal. Esta conversão não é uma coisa fácil e imediata, muito pode ser perdido no
meio do caminho. O simples trajeto da experiência até os conceitos já é um bicho de sete cabeças.
Na verdade, é a principal ocupação de um filósofo. Qual é a pergunta filosófica por excelência? O
que é (Quid est). Ou seja, você está perguntando por um conceito. Mas se você se pergunta o que é
isto?, é porque alguma experiência do isto você teve, já tem um material narrativo e descritivo bruto
em cima do qual vai trabalhar.
Em segundo lugar, o rigor. Eu acho que não se poderia exigir mais rigor nas demonstrações, nas
análises, do que esta escola oferece. A especialidade deles é partir cabelo em quatro, chegar as
últimas minúcias e não deixar escapar nada. A clareza deles não é muito forte, mas o rigor assim o
é. Por fim, a argumentação. Chegamos em um ponto decisivo: só existe argumentação quando você
tem uma tese pronta e quer que os outros a aceitem. Se você procurar a obra inteira de Platão, ou de
Aristóteles, não tem nenhum exemplo de argumentação. Absolutamente nenhum. Sócrates, nos
diálogos, nunca está interessado em provar coisíssima nenhuma, ele está interessado em, através de
perguntas, levar as pessoas a uma certa descoberta, sem saber sequer se elas conseguirão: primeiro,
ter a experiência da descoberta que ele quer levá-las a ter; segundo, se elas conseguirão expressá-la
de maneira adequada. Ele não sabe isso, mas todo o seu método é levar os seus ouvintes a perceber
algo, ou seja, a co-participar de uma experiência que ele também teve de algum modo. Isto é o
máximo. Ele nunca convence ninguém de nada, tanto que ele nunca tem uma idéia pronta para
apresentar. Quando ele diz: “Eu só sei que nada sei”, estou partindo de um estado de ignorância
para ver se, no curso deste diálogo, eu chego a conhecer alguma coisa. Eu parto de um
desconhecimento para chegar a algum conhecimento. Isto é exatamente o contrário de uma prova!
A prova subentende que você já tenha a tese pronta para ser oferecida e calçá-la, reforçá-la
mediante argumentos, responder objeções. Na verdade, quem aparece, às vezes, com teses prontas
são os ouvintes de Sócrates e ele faz perguntas que vão corroendo a certeza que os indivíduos têm
daqueles pontos e recolocando os seus ouvintes em uma posição de investigar, em uma posição de
examinar a si mesmos, sondar a sua memória, sondar sua experiência e tentar expressá-la.
Com relação as obras de Aristóteles, não temos todas as obras, sobretudo não temos as obras mais
populares que são escritos em um estilo mais didático, temos apenas notas e apostilas de aula, mas
nessas notas e apostilas não vemos Aristóteles interessado em provar tese alguma, ao contrário, ele
também está investigando. O método que ele usa é sempre a dialética: parte de uma pergunta, de
uma dúvida qualquer, analisa os vários sentidos que essa pergunta pode ter, às vezes desmembra
uma investigação em quatro ou cinco diferentes, depois faz o repertório das respostas já oferecidas
pelos sábios que já examinaram essa questão antes, sejam respostas diretas a esta questão, sejam
respostas que não dizem propriamente a esta questão, mas que tocam nela de raspão e que podem
ser usadas nesse repertório.
Com essas opiniões, ele cria um feixe de contradições e em seguida elabora essa contradição para
ver se os pontos discordantes se referem efetivamente aos mesmos aspectos da coisa considerada ou
se estão falando de coisas diferentes, ou de perspectivas diferentes; com isso esclarece os três
pontos fundamentais na programação de uma investigação científica que são o seu objeto material
(do que estamos falando), o seu objeto formal motivo (qual é precisamente a pergunta que estamos
fazendo) e, em terceiro, o seu objeto formal terminativo (aonde pretendemos chegar com essa
investigação), de que tipo de resposta precisamos.
Com isso, ele parte de um objeto e de várias perspectivas diferentes — que são oferecidas em
relação a esse objeto — e monta uma investigação. O objetivo é chegar a alguma conclusão e não
provar esta conclusão, o provar começa na hora em que alguém tem alguma objeção às conclusões.
Aristóteles está buscando conclusões, não tentando defendê-las perante alguém. É claro que existem
nos escritos aristotélicos, assim como o de Platão, várias discussões, onde duas teses se enfrentam
durante algum tempo, não no sentido de provar nada, mas no sentido de prosseguir a investigação.
A palavra argumentação é praticamente inútil no estudo da filosofia de Platão e Aristóteles — eles
nunca argumentam.
A preocupação com a prova é muito posterior. De onde surge a preocupação com a prova? No livro
de Alois Dempf, sobre o formato da concepção, o desenvolvimento dos gêneros literários dentro da
literatura da Igreja, ele mostra que nos primeiros séculos, os primeiros padres da Igreja, quando
faziam as suas pregações, defrontavam-se com objeções e com dificuldades, sejam objeções
formuladas por eles mesmos ou por seus colegas, ou por objeções que eram apresentadas por
inimigos da fé cristã. Eles, então, tentavam responder a isto da melhor maneira possível e defender
os seus pontos de vista. É neste momento que começa a preocupação com a argumentação.
Aristóteles veio ao mundo quatrocentos anos antes de Cristo, mais um ou dois séculos, significa que
decorreram seiscentos anos entre Aristóteles e isto. A argumentação estava longe das preocupações
de Aristóteles, mais ainda, isto aconteceu em um período em que os escritos de Aristóteles haviam
quase todos desaparecido, haviam sobrado alguns pedaços do Organon e alguns pedaços da
Metafísica, salvo engano. Livros inteiros como a Física, de Anima tinham desaparecido de
circulação.
A preocupação com a argumentação surge, não dentro do campo filosófico, mas dentro do campo
da apologia da religião. Esta apologia é possível porque os cristãos tinham uma doutrina pronta.
Essa doutrina estava no Evangelho, às vezes de uma maneira explicita, às vezes de uma maneira
mais compacta que os teólogos então interpretavam, expressavam em linguagem doutrinal.
A preocupação com argumentação não surge dentro de uma preocupação filosófica, mas de uma
preocupação que não é sequer teológica, que é apologética — a defesa da fé. Ora, você não pode
fazer uma defesa da fé se não existe uma doutrina da fé anterior. Primeiro há um esforço teológico
da transposição da narrativa em doutrina e, quando se forma a doutrina, ela é apresentada às pessoas
que, por sua vez, oferecem objeções e, só então, começa a argumentação. Talvez esses argumentos,
aos poucos, vão se organizando, ou porque as objeções se repetem, ou porque há objeções
aparentadas, ou ainda porque uma depende da outra. A ordenação das próprias objeções e a
ordenação das respostas é um processo que vai durar muito tempo — dura até hoje na verdade — e
que alcançará o seu cume nas grandes Sumas Medievais.
O que são as Sumas? A suma é uma apresentação da doutrina em uma ordem hierárquica, que
começa dos pontos principais para os pontos secundários e que, a cada passo, discute as várias
objeções possíveis para chegar à interpretação correta. A suma tem, ao mesmo tempo, uma função
teológica e apologética. A teológica predomina, pois a preocupação é expor a doutrina, o que não
pode ser feito sem que se ofereçam respostas à objeção. Portanto, algum elemento apologético há
ali também.
A argumentação não é algo característico nem próprio da filosofia, isto é algo absolutamente
fundamental. A argumentação supõe um público que você deseja persuadir de algo e que não está se
persuadindo tão fácil, é uma preocupação totalmente extra filosófica. Nos diálogos socráticos,
Sócrates não se defronta com seus inimigos, ele só se defrontará com os inimigos na apologia e
defesa perante o Tribunal, somente aí. No resto, ele está sempre discutindo com o círculo de
amigos, que tal como ele, não estão interessados em impor verdade nenhuma, mas estão
interessados em buscar a verdade junto com Sócrates.
Do mesmo modo, nos escritos de Aristóteles, você vê um professor investigando a verdade junto
com seus alunos. Não há inimigos presentes, portanto não há argumentação alguma. A
argumentação surge dentro do contexto religioso e surge tardiamente, 600 anos depois de
Aristóteles. Cabe a pergunta: como é possível que, decorridos tantos séculos, certa escola fizesse da
argumentação um dos seus pontos fundamentais, e acreditasse que isso é próprio da filosofia e
aquilo que escapa da argumentação está fora da filosofia?
De fato, há uma inversão de perspectivas. A filosofia teve de mudar muito para chegar a fazer da
argumentação, que era um negócio secundário, uma das suas preocupações fundamentais senão a
principal. É evidente que isso só pode acontecer em uma época em que muitas certezas públicas
foram demolidas ou dissolvidas; {uma época} na qual a polêmica está correndo solta. O filósofo,
nesse caso, já entra em ação em um meio carregado de polêmicas, ele entra para provar alguma
coisa. Desde o início a obrigação de provar é mais importante do que a preocupação de investigar,
isto é notável nos livros de George More.
George More entra em debate no seu livro principal, Princípio da Ética, com a filosofia idealista —
que ele pretende demolir — e com os céticos. Ele procura demonstrar que existem certas crenças do
senso comum que são absolutamente inabaláveis porque elas constituem o fundamento da
possibilidade da filosofia e, portanto, não podem ser investigadas pela própria filosofia.
Uma dessas teses do senso comum, subscrita e defendida por ele contra os céticos e idealistas, é a
seguinte sentença: eu tenho um corpo que é mais ou menos o mesmo desde que eu nasci, que se
modifica no curso do tempo, que ocupa certo lugar no espaço e que se encontra com outros corpos
com os quais sucede mais ou menos a mesma coisa. Ele diz que todo mundo sempre acreditou nisto
e que a filosofia não pode colocar isto em dúvida porque a existência desses corpos é um
pressuposto da atividade filosófica.
Eu acho esse argumento do More inteiramente válido, só que evidentemente isso é uma coisa muito
pobre. More entra na filosofia com uma atitude polêmica, tem-se uma tradição de filosofia
idealística que reduz tudo a estados interiores do sujeito e de filosofia cética que na esteira de David
Hume negava a existência até mesmo do eu, do sujeito autoconsciente, More tenta derrubar tudo
isto dizendo que a sentença do senso comum não pode ser impugnada sinceramente — isso é
importantíssimo e está entre as teses fundamentais do Princípio da Ética e ele diz que nenhum
filósofo pode, sinceramente, colocar isto em dúvida, voltaremos a este ponto da sinceridade daqui a
pouco.
“G. E. Moore em Principia Ethica: Parece-me que as dificuldades e discordâncias [em filosofia] são
principalmente devidas a uma causa muito simples: isto é, a tentativa de responder a questões sem
primeiro descobrir precisamente qual a questão que se deseja responder… [Os filósofos] estão
constantemente se esforçando para provar que o “sim” ou o “não” vão responder a questões para as
quais nenhuma dessas respostas é correta, devido ao fato de que o que eles têm diante das suas
mentes não é uma questão, mas várias.”
Essa preocupação é inteiramente legítima, só que ele está chegando nisso e, se acredita que
descobriu alguma coisa, está atrasado 2.400 anos em relação a Aristóteles, porque isto é o que
[Aristóteles] ensina no livro da Interpretação e das categorias. Você pode formular uma mesma
sentença, afirmação e pergunta em diferentes contextos, o que significa uma coisa completamente
diferente, e dentro de uma questão filosófica pode ter diversas questões embutidas que nós
precisamos descascar, separar uma da outra e tentar articulá-las em um conjunto.
Essa proposta do More, eu não sei o quanto ele conhecia da filosofia de Aristóteles e não tenho
idéia, mas isso é uma coisa muito comum, um filósofo aparecer com uma novidade que já foi
apresentada 2.400 anos por Aristóteles. Isso acontece a todo o momento. Frithjof Capra em A
totalidade e a ordem implícita, na qual ele diz que precisamos mudar os conceitos porque os
conceitos que nós usamos expressam figuras estáticas. Por exemplo, nós falamos do ser em vez de
sendo, nós falamos de uma vaca, ou um gado como se fossem seres estáticos, agora também
precisamos de um conceito dinâmico.
Ele também chegou 2.400 anos atrasado porque Aristóteles ensinava que na definição, um conceito
de uma espécie, o estático e o dinâmico não se aplicam, porque são duas coisas que se sucedem no
tempo. Ao passo que as definições e os conceitos gerais são alheios e superiores ao tempo, portanto
a definição de uma espécie, é uma espécie de algoritmo que contém todos os tipos de transformação
que são próprios dessa espécie.
No conceito de gato, por exemplo, tem o conceito de embrião de gato, tem o gatinho, o gato, o
gatão e o gato morto. Tudo isto é gato. Dizer que esses conceitos são estáticos é um absurdo dos
absurdos, nem dinâmicos, porque o que eles estão tentando fazer é reduzir a uma matriz de
transformações possíveis que expressa o desenvolvimento orgânico dessa espécie, aliás Aristóteles
é o inventor da noção de desenvolvimento orgânico.
De repente aparece um grande sujeito apresentando uma coisa que tem 2.400 anos de idade e
ninguém o avisa que está atrasado. Moore também está fazendo a mesma coisa, essa distinção das
várias camadas de significado de uma questão é uma das lições fundamentais de Aristóteles. Scott
Soames está reproduzindo este parágrafo do George Moore como um exemplo que eles tinham com
a clareza, ou seja, distinguir entre os vários níveis o significado de uma questão filosófica para não
tratar de uma questão pensando se tratar de outra.
“No entanto, a clareza não é a história inteira. Igualmente importante é o compromisso dos filósofos
analíticos com a argumentação. A filosofia feita na tradição analítica tenta estabelecer suas
conclusões pelos meios mais racionais possíveis.”
Quando você chega a uma conclusão, esta serve de premissa para a próxima etapa da investigação.
Neste caso, a preocupação do argumento, que havia surgido como uma preocupação de ordem
polêmica, transforma-se em uma preocupação de ordem metodológica, é o método da investigação
que requer que você discuta certas teses, rejeite umas e prove outras para poder prosseguir com a
investigação. Quer dizer, você mata uma parte da questão e passa para a questão seguinte tomando a
conclusão da investigação anterior como premissa que já não precisará voltar a ser discutida.
“Isso está ligado com um segundo tema subjacente. Em geral, a filosofia analítica visa à verdade e ao
conhecimento, enquanto opostos ao melhoramento moral e espiritual.”
Ou seja, os filósofos analíticos, no início, Russell, Wittgenstein, George Moore não estão
interessados em melhorar ninguém e nem melhorar na vida de ninguém: “estamos buscando a
verdade, estamos fazendo ciência e não educação, apologia, auto-ajuda, psicologia”. Essa separação
entre a dimensão da busca da verdade e a dimensão da busca do bem, da felicidade é uma coisa
característica essa época.
Mais ou menos contemporaneamente a isto, Max Weber, um pensador que não teve grande contato
com esta escola, mas que trabalha em uma linha notavelmente kantiana e positivista, fala dos
abismos entre os valores. Ele diz que o valor verdade nem sempre constitui com o valor bem, ou
justiça. A verdade pode ser oposta ao bem e a justiça, e este abismo entre as esferas de valor não é
transponível.
Ou seja, ele enfatizava muito que o investigador acadêmico — no caso, das ciências sociais, mas
em outras dimensões –— deve adotar uma atitude acética de busca da verdade e não de
aprimoramento moral com, ou de seus discípulos, ou de melhoramento da sociedade, etc. Ele
chamava tudo isto, pejorativamente, de profecia acadêmica, dizia não ser profeta acadêmico, mas
um cientista que quer apenas a verdade dos fatos.
Esta separação das esferas de valor, nesta época, era uma idéia que estava solta no ar; vêm do Kant
a distinção irrecorrível que ele faz entre pensar e saber. Há coisas que podemos saber — são as
Sumas das Ciência — e há coisas que nós podemos pensar. Dessas coisas que nós podemos pensar
algumas são moralmente obrigatórias, por exemplo, temos a obrigação de acreditar que existe um
Deus e que Ele é bom, mas nós não temos conhecimento disto e não podemos provar nada disto.
Isto é uma pré-condição para que sejamos humanos, de certo modo, uma pré-condição para a
própria filosofia na medida em que busca aprimorar a racionalidade humana e está tentando realizar
as mais altas qualidades humanas, portanto, tem uma base ética indispensável. Este é o argumento
de Kant, mas isto se emprega na mente européia do século XIX de tal maneira que, quando chega o
começo do século XX, Max Weber estava proclamando isto como um dado final intransponível,
não haverá mais a idéia de Dans Scot — unum verum bonum ens et bonum convertuntur sunt, o ser
e o bem se convertem um no outro, são a mesma coisa. Isto, para Max Weber, acabou.
Agora nós temos de nos conformar com uma situação horrível na qual a busca pela verdade pode
nos levar ao mal e não há nada que possamos fazer contra isto, temos de ser ascetas da inteligência
e resistir à tentação de ser edificantes, temos de prosseguir implacavelmente na busca da verdade.
Então, o filósofo tem de ser um sujeito durão, como Maquiavel, que dizia que temos que encarar a
verdade nua e crua. Ele é o John Henry da filosofia, isto é, um sujeito durão que não cede às
exigências dos bons sentimentos, etc. Ou seja, os bons sentimentos que se danem, nós queremos a
verdade científica.
Acontece que isto aqui, no meu entender, e isto foi um dos primeiros objetos de meditação para
mim, faz abstração do seguinte: para adotarmos esta posição, desde esta época e até hoje, em que é
normalmente aceita por filósofos e cientistas sociais, quer dizer, nós não fazemos juízo de valor.
Isto cria um abacaxi. Coisas que aparecem tão óbvias, parecem uma exigência metodológica tão
óbvia que nem precisa ser discutida e quem não aceitar aquilo está falsificando a ciência.
Isto coloca um problema tremendo que toda essa gente deixou de ver. É o seguinte: você quer a
verdade? Tudo bem. Quem pode descobrir a verdade? Quem está qualificado para descobrir a
verdade? Qualquer um? Basta ele ter a metodologia da ciência para descobrir a verdade? Para
pensar nisto, nós precisaríamos ignorar toda a psicologia do século XX, como Freud, Jung, Reich,
Rank, Melanie Klein, toda a psicologia que nos mostra uma tendência permanente do ser humano
ao auto-engano.
Você quer fazer ciência? Muito bem, aqui tem um dado científico que mostra que não é tão fácil
assim. Existem certas qualidades psíquicas e morais que são absolutamente necessárias para o
investigador da verdade, sem as quais você pode ter na mão uma fórmula lógica que lhe pareça
verdade, mas que pode ser, como diria o doutor Freud, não uma razão em si, mas uma
racionalização.
O que você vai fazer para descobrir se um argumento seu, que lhe parece muito científico, é uma
razão ou racionalização? Existe um meio lógico de descobrir isto? Não, só o meio psicológico.
Existe este problema das condições psicológicas da busca da verdade, a busca da verdade não pode,
jamais, ser reduzida a um problema de criteriologia lógica. A criteriologia lógica se aplicará aos
julgamentos das provas e a consistência lógica das provas.
Porém, a percepção que está por trás disto tudo, pode ter sido totalmente falseada por um fator
psicológico. Por exemplo, nada impede um sujeito que é um doente mental ou um psicopata ou um
neurótico de marca como o Wittgenstein, dominem os instrumentos todos da argumentação lógica e
produza um absurdo que vai parecer inteiramente racional dentro dos termos do que se ensina como
filosofia.
Muito bem, isto é o efeito apenas de uma compartimentação disciplinar ou administrativa, não um
traço da realidade. Disciplinarmente, as questões psicológicas são separadas das questões lógicas e
epistemológicas, mas na realidade da vida concreta não estão. Se você é um investigador da
verdade, não há como pular por cima desta questão e perguntar-se: será que eu estou qualificado
para investigar a verdade ou já entrei em campo falsificando tudo? Eu tenho interesse em jogo ou
estou produzindo um tipo de auto justificação sob uma vestimenta de argumento científico?
Quando nós investigamos o problema da fraude científica do século XX, que é um oceano, nós
vemos como, sobretudo, nas ciências sociais e na própria filosofia, a constância com que o elemento
de auto justificação, de preferências pessoais, de neuroses pessoais e de más inclinações pessoais
interferiram na busca da verdade e falsificaram tudo. Então entendemos que essas duas coisas que
se pretende separar, essas esferas de valor que se acredita estar eticamente obrigado a separar, são
inseparáveis, é algo impossível, inviável e altamente inconveniente de tentar realizar.
É o famoso exemplo da Margaret Mead, com a sua pesquisa nas Ilhas Trobriands. Ela estava
interessada em demolir certas correntes da sociedade em relação à moralidade, casamento, sexo e
fez uma série de entrevistas com os habitantes dessas ilhas, falsificando totalmente a resposta ao
ponto de as testemunhas consultadas por ela, quando foram consultadas novamente por um segundo
pesquisador, cinqüenta anos depois, as testemunhas estas já velhinhas, elas morriam de rir ao
lembrarem de como tinham enganado a Margaret Mead, elas diziam assim: aquela mulher é uma
chata. Ela fazia algumas perguntas e forçavam as respostas, então nós dávamos a resposta que ela
queria.
Basta isto para demolir uma investigação científica por completo, no entanto, as investigações da
Margaret Mead tiveram uma importância extraordinária nas ciências sociais do século XX. Foi uma
revolução. Quando você observa, percebe que foi tudo uma farsa. Ou seja, meu mundo caiu. A
investigação da verdade claramente não é um setor separado da auto constituição, da psique do
investigador, da sua personalidade, sua mora, sua ética, etc.
Quando nós lemos um livro, por exemplo, do Paul Johnson, Intellectuals, um breve tratado sobre a
imoralidade dos principais gurus da idade moderna, fica impressionado com o fato de um bando de
louco, pessoas totalmente desqualificadas, mentirosas, trapaceiras, puderam exercer tanta
influência. Se não fosse esta separação entre os domínios da psique e da lógica, ou seja, entre o
mundo dos sentimentos, emoções e o mundo da ciência, isto não teria acontecido. Se não fosse
Kant, isto não teria acontecido, ele é quem cria esta carapaça de defesa na qual o investigador pode
falar em nome de um papel social e onde as suas motivações pessoais têm de ser postas de lado e
não podem serem investigadas porque é falta de educação.
Ao mesmo tempo que eles fazem isto nas ciências sociais, na psicologia ocorre o contrário, a
psicologia está sondando cada vez mais os elementos de auto-engano, as motivações inconscientes,
as distorções fantásticas, etc. Então eles vêm com um modelo de ciência, mas existe outra ciência
que mostra que não dá pra fazer isto aí. Essas coisas não podem ser separadas.
A busca da verdade e a consistência da alma do buscador foram uma das primeiras coisas que me
chamaram a atenção. O problema se resume nas relações entre ciência, conhecimento e ética ou tem
mais coisa ainda? Bastaria garantir que uma pessoa seja moral, idônea, honesta para garantir que ele
faça uma boa investigação científica? Não, de jeito nenhum, porque existe outro problema:
horizonte de consciência.
Uma pessoa muito honesta, idônea e com uma boa formação científica possa ter um horizonte de
consciência muito estreito. Ou seja, o número de variáveis com que ele consegue lidar ao mesmo
tempo é pequeno, então ele vai falsear as coisas não porque seja desonesto, não que possua agenda
oculta, não que seja um neurótico, mas simplesmente porque o horizonte do que ele enxerga é
pequeno. Ele consegue lidar com um pequeno número de variáveis ao mesmo tempo. Então
encontra-se o problema: de que tipo de pessoa você precisa para poder lidar com um número
mínimo de variáveis que lhe permita situar-se perante o mundo de uma maneira razoável, de uma
maneira que seja filosoficamente defensável e digna?
Nesta altura, quem me ajudou muito foram os livros do Szondi, onde ele cria uma descrição da
arquitetura da psique humana, sobretudo desde o ponto de vista dos elementos que vão formando ao
longo da vida e que se integram nela como componentes. O primeiro desses elementos é a
hereditariedade e a genética. Você nasce e já traz uma carga genética. Note bem que tudo que o
Szondi escreveu sobre genética foi muito tempo antes da descoberta do ADN e que veio a lhe dar
razão em cem por cento.
Quer queira ou não, você já nasce com uma carga genética, essa carga genética se expressa
psicologicamente através do que ele chama de pulsões. Pulsões, instintos, ou desejos são
necessidades básicas do ser humano que variam de pessoa para pessoa e que, no conjunto, são
sempre as mesmas, mas se dispõem em quantidade, relações diferentes de indivíduo para indivíduo.
Ou seja, você tem uma carga genética que, por sua vez, define o que ele chama de sua natureza
pulsional e instintiva da qual você nasce. Essa natureza pulsional não se expressa de uma maneira
estática e sempre a mesma, há um certo circuito. Por exemplo, se você tem uma tendência maníaco-
depressiva, você tem a fase da mania e a fase da depressão. Você não vai proceder da mesma
maneira em duas circunstâncias diferentes. Se você tem uma tendência tipo paranóico, ora você
pode ter a paranóia persecutória, onde você é vítima, um rato perseguido pelo gato, ora você pode
ter a paranóia megalômana, onde acredita ser Napoleão Bonaparte ou o próprio Deus.
Tem a piada: um louco chegou para o outro e falou “você não é Napoleão Bonaparte” e o outro diz
“eu sou”, outro diz “não é”, o outro diz “sou”, “quem você que disse que você é?”, “foi Deus”, o
outro disse “eu não disse nada”.
As pulsões são basicamente as mesmas em todo o ser humano, mas elas se articulam de maneira
diferente em cada indivíduo, formando uma espécie de fórmula pulsional. Esta fórmula pulsional,
por sua vez, também não é estática, mas é uma matriz de transformações possíveis. Primeiro, a
carga genética direta, a natureza pulsional e científica, em cima disto há um ambiente social no qual
o indivíduo cria e modula a expressão dessas pulsões de acordo com as preferências do ambiente,
por exemplo, pode haver certas pulsões que são mais facilmente admitidas e outras que são
reprimidas pelo ambiente. Em terceiro lugar há o ambiente cultural, a circulação das idéias que o
indivíduo vai adquirindo uma cultura que o coloca um pouco acima do seu ambiente social de
origem, ele tem algumas variáveis com as quais ele pode lidar. Por fim, há a dimensão do espírito.
Não vamos discutir agora sobre o que é espírito, tem um artigo em que eu falei sobre isto. O espírito
é aquilo em que a gente chega, através da psique, mas não é psique (Espirito e Personalidade). No
meio de todos estes elementos existe um fator que Szondi chamava de o ego. O que é o ego? É o
centro decisório que é responsável perante si mesmo e que, em parte, também é responsável pelos
outros, mas sobretudo perante você mesmo e perante aquilo que você sabe ou acha que sabe. Esses
vários elementos que estão em sua natureza pulsional, instintiva, no seu quadro cultural, social e no
mundo do espírito, quem maneja e faz escolha destes elementos é uma coisa chamada ego.
O ego coincide com a sua história pessoal, com a história que você conta de você mesmo para você
mesmo, que é o padrão de continuidade biográfica que você tem. Szondi chama o ego de ego
pontifix: o ego construtor de pontes, ele constrói pontes entre tendências antagônicas inconciliáveis
que se agitam dentro dele. As tendências pulsionais refletem a carga genética e ele descreve isto
como se fossem os antepassados que exigem que o indivíduo repita o seu destino.
Há vários antepassados e cada um quer puxar a brasa para a sua sardinha. Você pode ter um
antepassado suicida e outro sádico ou homossexual, há várias tendências e cada uma está tentando
se afirmar em cima das outras, elas estão presentes e ao mesmo tempo disputam espaço, o ego é
quem vai fazendo as escolhas — o que ele vai aceitar como componente e aquilo que vai rejeitar.
Aquilo que ele rejeita não desaparece completamente, fica no fundo do palco. Szondi compara com
um círculo giratório em que há uma cena na frente, outra no fundo.
Essa noção do ego pontifix apareceu para mim como uma das respostas que eu estava procurando.
Somente o ego pontifix que está em condições de operar o palco giratório, isto é, que conhece os
componentes da sua psique tem um efetivo domínio do seu quadro interior que lhe permita refletir
objetivamente o que está acontecendo, aquilo que está se passando fora dele. Por exemplo, se estou
escondendo de mim fatores importantes da minha psique, aquilo que eu não posso ver de mim
mesmo, eu também não posso ver no mundo exterior. Então eu tenho como se fosse um escotoma,
uma mancha que não me deixa ver aspectos da realidade. Estou fugindo.
Sem garantir a centralidade do ego e rotatividade saudável do palco giratório da vida não há
filosofia nenhuma! Você terá um sistema de racionalizações. Logo o desenvolvimento do ego
pontifex é a construção daquilo que Aristóteles dizia, que era a condição absolutamente essencial
para o exercício da filosofia: que é a maturidade. Você tem de se transformar em uma spoudaios,
ser um homem maduro responsável por si mesmo. Responsável não significa que você é um bom
cidadão, que é cumpridor das leis, que é uma boa pessoa, que é o papai Noel do fim do ano. Nada
disto, mas apenas que você é o ego pontifex.
Os elementos que giram dentro de ti, e que motivam a sua conduta, sejam os que vêm pela
hereditariedade, sejam os que foram incorporados pela educação, pela cultura, não lhe são
estranhos. E você assume a responsabilidade pelo gerenciamento do conjunto. Isto é, seu diálogo
interior consigo mesmo é muito intenso, em suma, você está sabendo o que se passa dentro de si. E
está sabendo qual é o seu drama a cada momento e ciente também que por trás do drama que está
vivendo conscientemente, existem outros dramas que estão escondidos. Mas que podem reaparecer
amanhã ou depois. Esta noção de um ego central consciente, capaz de gerenciar o conjunto de sua
psique, note bem, não é dominar a psique, ninguém domina, é só gerenciar. Isto é a condição
número um para a objetividade do conhecimento. Novamente eu digo: opa! eu descobri algo que
Aristóteles já sabia. Aristóteles não tinha lido Szondi, ele não sabia detalhar a coisa com todos estes
aspectos, mas quando ele fala do spoudaios, é disto que está falando, meu Deus do Céu!
Aluno: Olavo, a grosso modo, a diferença entre gerenciamento da psique e o que [você chama] o
dom do Espírito Santo dá, que é o autodomínio. Seria a diferenciação que você (...)
Olavo: O autodomínio é um dom do Espírito, portanto você também não o controla. Não é isto?
Você obtém a capacidade deste autodomínio em certos momentos e certas circunstâncias por um
dom do espírito, o espírito é um dos elementos que diz: compõem a psique no quadro do Szond.
Desta forma, os elementos que vêm do espírito também são importantes neste contexto. Mas o
espírito não tem o domínio total da situação, ele vai se introduzindo através do ego, são as escolhas
do ego que permitem que o espírito se manifeste e o fortaleça ou bloqueie a entrada do mesmo. E
isto coincide com a doutrina da Igreja Católica: no exercício de sua liberdade, você pode fechar-se
ao espírito, a ação do Espírito Santo. Não que você esteja rejeitando conscientemente, mas pode
tomar atitudes que, na prática acabam bloqueando, mesmo sem querer. Todos nós fazemos isto.
Agora, considerando que exista um bloqueio deste tipo. Você sabe que tem um bloqueio? Você
sabe que tem algo que quer ver, mas tem medo de ver e não se permite chegar lá? Se não sabe disto,
meu filho, não tem apenas uma ignorância, e sim de fato um escotoma. Saber quais são os pontos de
bloqueio que estão dentro de nós, que nos impedem de enxergar a verdade, é um elemento do ego
pontifex. E esta tem que ser uma preocupação fundamental e constante. Imagine o que acontece
quando um indivíduo não tem este gerenciamento da totalidade de seus elementos e, portanto, a
alma dele não é um espelho fiel do que acontece: o que ele não vê nele, também não verá fora. Isto
é o que chamamos de uma alma tosca, mal desenvolvida e imatura. O que acontece quando você
pega um indivíduo deste e diz: nós vamos lhe ensinar método científico e lógica matemática e você
vai investigar verdade. Vai dar no quê? Sairá um monstrinho! Ao estudar a biografia de Bertrand
Russel e Wittgenstein, inclusive estou sondando um pouco de George Moore, vê que em muitos
casos a psique deles era uma série de véus, eles estavam tentando tampar alguma coisa. Eles não
eram pessoas realmente bem desenvolvidas, nenhum dos dois. Porém, quando não há este
gerenciamento bom e eficiente da psique, ou seja, o ego pontifex está atrapalhado com ele mesmo;
em vez de lidar com os elementos da contradição interior, fecha os olhos e foge. Então,
evidentemente a sua percepção da história, da cultura, dos problemas filosóficos já aparecem todos
deformados. Aparece um recorte que visa a atender uma necessidade mal resolvida interiormente.
“Não posso ver certas coisas porque elas me assombram, tenho horror daquilo, tenho ojeriza
daquele outro...” Em suma, é um poço de preconceitos.
Imaginar que o simples domínio do método científico e de um pouco de lógica possa suprir isto, já é
por si mesmo um sintoma neurótico. Portanto, esse elemento da autoconsciência é o fundamental no
método filosófico meu Deus do Céu! É o famoso: conhece-te a ti mesmo. Note bem, não está
escrito: domina-te a ti mesmo. Mas, conhece-te a ti mesmo. Dominar, você não conseguirá nunca, a
não ser que haja uma influência especial do Espírito Santo. Que transfigura você no espírito. Ele
então te elevará a um patamar de liberdade que é inimaginável para os outros. Poderemos falar disto
daqui a pouco, nesta aula ou na próxima.
Quando Aristóteles coloca como pré-condição da filosofia a maturidade, enquanto Sócrates e Platão
insistiam no conhece-te a ti mesmo, é disto que eles estão falando, meu Deus do Céu! Se você não
tem uma alma, onde todos os elementos apareçam para você e de forma que esteja consciente de
tudo que se passa ali, então a sua imagem do mundo exterior, da história, da cultura, da ciência etc.,
também será deformada. Desta maneira o problema da centralidade da consciência é o problema
fundamental do método filosófico. E ele não pode ser saltado assim. Mesmo que um sujeito diga: eu
quero objetividade e não quero saber do bem, dos deveres... — Êpa! Então sobrou na sua mão só o
método científico e a lógica. Não tem nada mais. E aonde se espera chegar com isto? A uma
discussão de "nerds", com certeza. Claro que nada impede que um indivíduo que domina o método
científico e a lógica tenha tudo isto. O ideal seria fazer o conjunto todo, porém, o peso deste
elemento — autoconsciência — é muito do maior que o domínio da lógica por exemplo.
A lógica fala apenas da coerência do discurso, ela não fala de sua coerência da visão das coisas, de
sua percepção, pois não alcança este ponto, daí você precisa de outro método — uma coerência
mais profunda. Ademais, a preocupação com a argumentação tira você de dentro da esfera da
autoconsciência para colocá-lo numa confrontação de papéis sociais, que é uma coisa altamente
alienante. Pelo contrário, estou menos interessado em me conhecer e aprimorar a minha consciência
e ampliar a minha consciência, entender as coisas como elas são, do que provar determinadas coisas
para os outros. A prova é sempre para os outros, evidentemente. Note que existe uma mudança sutil
no critério fundamental da verdade; não existe verdade que seja conhecida de maneira mais
irrefutável do que aquela que é conhecida de maneira intuitiva imediatamente e imediata por um
indivíduo humano. Por exemplo, aquilo que você viu porque estava lá e do qual é testemunha
solitária. A verdade da testemunha solitária é a mais perfeita que você pode imaginar: naquilo que
eu vi, porque estava lá, ninguém poderá me provar que não é assim — claro que posso não ter visto
tudo, e que uma pessoa possa ter visto um aspecto que não vi. Mas aquilo que vi, vi. Portanto, este é
o verdadeiro ponto arquimédico da filosofia: o testemunho real direto. Se você quer a base, o
fundamento inabalável da certeza é este. Mas o detalhe é o seguinte: é uma certeza que vale apenas
para você. Para impô-la a outras pessoas, precisa transformar a sua evidência direta numa prova. E a
prova é um argumento indireto, logo muito já se perde aí. Desta maneira, a verdade mais certa e
inabalável apenas tem validade para um. No instante em que o desenvolvimento da noção de prova,
discussão ou técnica lógica, é instaurada como elemento fundamental e mais fidedigno à crença
pública de uma comunidade, você chegou ao auge da alienação. E entrou de fato naquele negócio
do Groucho Marx: afinal você vai acreditar em mim ou nos seus próprios olhos? Atualmente, você
é convidado incessantemente, a deixar de acreditar no seu próprio testemunho direto, para acreditar
numa verdade exterior que aparentemente está bem provada pela ciência. Com efeito, isto criou
uma inversão total da hierarquia epistemológica por assim dizer. E acredito que este é o problema
essencial da modernidade — a perda da própria noção de veracidade. Que é substituída por um
conceito meramente formal de um critério coletivo de verificação.
Ora, qualquer critério coletivo de verificação nunca diz respeito aos fatos concretos, somente dizem
respeito ao recorte onde todas as visões individuais coincidem. Mas elas coincidem enquanto. Se
você fizer um diagrama — inclusive na minha apostila sobre "Problemas de Métodos nas Ciências
Sociais" possui tal um diagrama — pelo método de interseção de conjuntos: aqui tem o conjunto do
qual percebo, ali o do qual outro percebe, e obviamente em algum ponto eles têm uma interseção,
no entanto, esta interseção é menor do que o meu conjunto e menor do que o dele. Daí adentra-se
um terceiro, o qual terá novamente uma interseção, e esta interseção com os meus conhecimentos e
com os do meu vizinho tem uma interseção com um terceiro que é menor ainda. Deste modo, esta
verdade coletivamente admitida é sobre um fragmento quase irrelevante da realidade. E é isto que
hoje é aceito como a suprema autoridade da verdade. Tudo isto remonta ao quê? Ao Kant. Tudo isto
são efeitos do kantismo. Muito bem, eu vou deixar este último pequeno parágrafo para comentar na
aula seguinte. Espero que tenham compreendido até aqui, como também o encaixe disto, e, com o
que estava explicando sobre o Kant.
Esta é a última parte que diz respeito ao que é o meu projeto filosófico pessoal. Note que, em
Platão, a filosofia é eminentemente educação, contudo o quê que é educação? É a formação do
filósofo, mas a formação do filósofo passa pela formação do spoudaios. Ou seja, passa pela
formação do ego pontifex. E este para mim é o centro de preocupação da filosofia.