A Tensão Entre Liberalismo Formalista e A Releitura Social Do Póscivil
A Tensão Entre Liberalismo Formalista e A Releitura Social Do Póscivil
A Tensão Entre Liberalismo Formalista e A Releitura Social Do Póscivil
contemporâneo
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Esse pressuposto de igualdade é hoje visto como uma ingenuidade. Em todo caso, é importante lembrar
que se trata de uma época dominada por uma deturpação da concepção kantiana de que todos os seres
humanos são iguais por compartilharem o atributo inseparável da dignidade da pessoa humana. Todavia,
o que era uma afirmação filosófica se tornou uma espécie de hipocrisia, na medida em que se usou esse
pressuposto para desconsiderar as profundas diferenças sociais, legitimando assim a exploração de uns
sobre os outros. Como afirmou o historiador do direito alemão Franz Wieacker, tratar todos os cidadãos
como se fosse o comerciante burguês proprietário de terras foi o pecado original do século XIX.
Para isso, foi forjado um ambicioso código de leis, imenso e supostamente capaz de
dar conta de todos os atos da vida civil, do nascimento à morte, passando por contratos,
casamento, testamento, relações de propriedade etc.
Chamado de código civil napoleônico, tal legislação pode ser vista como o primeiro
código no sentido moderno que tem essa palavra para nós, isto é, um conjunto de leis
capaz de dar uma resposta a qualquer problema que se apresentasse ao Poder Judiciário2.
Em todo caso, como os juízes permaneciam os mesmos, formados nas bases do antigo
regime, acreditou-se que a melhor forma de impedir que a velha cultura contaminasse o
projeto revolucionário era obrigando os juízes a seguirem fielmente o código,
interpretando-o literalmente, como “a mera boca da lei”, para usar a expressão de
Montesquieu.
Tal noção de que os Juízes devem ficar adstritos à lei e interpretá-la literalmente ficou
conhecida como escola da exegese com relação ao código civil napoleônico e em termos
gerais como formalismo ou (equivocadamente) como positivismo.
Além de impedir que os valores retrógrados dos juízes influenciassem em seus
julgamentos, a ideia de aplicação literal da lei limita também o poder das autoridades e
consequentemente o poder do Estado, garantindo assim o ideal de livre circulação de bens
e serviços e livre contrato entre os particulares. A não ser que violassem alguma das
disposições bem gerais do código como os vícios e defeitos do negócio jurídico, o
contrato seria considerado válido.
O termo conhecido para ilustrar essa força vinculante dos contratos é pacta sunt
servanda (o contrato faz lei entre as partes). Isso significa que, se duas partes assinaram
um contrato, é como se houvesse uma lei entre elas. Se uma das duas descumprir o pacto,
pode a outra acionar a Justiça e pedir o cumprimento forçado do contrato, também
chamado coercitivo.
Também a propriedade tinha caráter absoluto, tendo o proprietário o direito de dispor
livremente de seus bens móveis e imóveis sem quaisquer restrições de ordem social.
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É preciso ter em mente aqui que legislações na antiguidade eram vistas como elementos que poderiam
auxiliar no julgamento, mas o ato de Julgar não era visto como um mero seguimento de uma regra pré-
determinada feita por uma autoridade competente. É preciso ter consciência história para não enxergar
institutos do passado com o olhar do presente.
Embora desde o fim da primeira guerra já existissem autores discutindo temas como
a relativização dos contratos por força da teoria da imprevisão, foi apenas após a
segunda guerra mundial e a Shoah (ou holocausto) que a maior mudança
paradigmática3 ocorreu nos fundamentos do direito.
Seria impossível tratar de todos os elementos históricos que condicionaram tal
mudança, razão pela qual me centrarei em apenas 3, que considero indispensáveis.
3
Esse termo é usualmente usado em referência ao livro de Thomas Kuhn “A estrutura das revoluções
científicas”.
a cabo aquilo que o filósofo alemão Theodor Adorno chamou de o princípio ético por
excelência da contemporaneidade, a saber impedir que Auschwitz se repita.
2) Virada Política