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FERENCZI, Sándor - Adestramento de Um Cavalo Servagem - Psicanálise II

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OBRAS COMPLETAS – PSICANÁLISE II - SÁNDOR FERENCZI

II - ADESTRAMENTO DE UM CAVALO SELVAGEM

Em abril de 1912, com a autorização do comandante da gendarmaria montada de


Budapeste, assisti à demonstração do ferrador de cavalgaduras de Tolna, Joseph Ezer,
que se gabava de domar e ferrar numa só sessão o mais xucro dos cavalos.
Já fazia algum tempo que os jornais andavam cheios de histórias sobre extraordinário
poder de Ezer; contava-se que ele podia reduzir à obediência o cavalo mais indômito
somente pelo efeito da sua vontade, por “sugestão”. Uma comissão, composta por
oficiais superiores de cavalaria e da gendarmaria, reuniu-se no pátio do quartel da
gendarmaria com o objetivo de provar a arte do domador com um cavalo
particularmente selvagem. Czicza¹, uma esplêndida égua puro-sangue de 4 anos e
meio, propriedade de um tenente de hussardos, não podia ser utilizada, apesar de
suas notáveis qualidades, porque nenhum mestre ferrador conseguira ainda ferrá-la.
Nenhum estranho podia aproximar-se do animal, por causa de seu caráter selvagem
e de seus violentos coices.
Mesmo o seu moço de estrebaria habitual só o abordava com precauções, e precisava
de aturados esforços antes de conseguir escovar seu dorso. Mas quando queria tocar
nas suas patas, o animal desencadeava coices furiosos em todas as direções, ao mesmo
tempo que soltava relinchos assustadores. Como, por outro lado, a égua era
perfeitamente saudável, qualificava-se o seu estado de “selvageria” e de “nervosismo”,
sendo considerada imprópria para as corridas ou para a reprodução; não obstante, foi
submetida à experiência para ver se a misteriosa arte de Ezer podia levar a melhor
sobre a arrogância de Czicza e induzi-la a deixar ferrar seus cascos ainda inatos.
Finalmente, o domesticador apareceu: era um homem de seus 30 e poucos anos, de
aparência rústica, gestos desembaraçados, muito senhor de si, e conversou sem o
menor constrangimento com as altas personalidades presentes. Foi então trazida a
égua, que todos os especialistas reconheciam como um puro-sangue de excelente
família (seu pai: Kisbéröccse, sua mãe: Gerjer). Em geral, Czicza tolerava o seu moço
de estrebaria habitual mas, desta vez, quando ele quis tocar nas suas patas, ela
relinchou e escoiceou violentamente.

1. “Gata” em húngaro. (NFT)


Compreendi logo que o método de Ezer não consistia simplesmente em recorrer a
um poder espiritual extraordinário, pois começou o seu trabalho substituindo a brida
habitual do animal por outra que ele próprio trouxera e na qual o freio se prolongava
por rédeas donde pendiam pesados anéis logo acima das ventas. Como, ao dispor-me
a assistir à demonstração de Ezer, eu tinha em mente um certo número de hipóteses,
baseadas em considerações teóricas que desenvolverei mais adiante, prefiro
reproduzir a descrição de um jornalista imparcial para noticiar o que se passou nesse
dia¹.
“Avançando para o animal, o mestre ferrador pôs-se a falar com ele em voz forte,
num tom autoritário, mas, ao mesmo tempo, com uma ternura infinita, quase um
arrulho; toma simultaneamente as rédeas das mãos do moço de estrebaria.
- Vamos, eh, minha belezinha – sussurra o ferrador. – Não tenha medo de mim, gosto
muito de você. Olá, sua maluquinha, olá, ho!
Faz menção de tocar no pescoço da égua para acariciá-la, mas esta relincha
violentamente e dá um salto enorme, espinoteando com os quatro cascos. Ainda não
tinha tocado terra e o ferrador já estava agachado diante dela, pondo-se a gritar com
uma voz estentórica, assustadora, que até a nós sobressaltou:
- Eh, que vem a ser isso, sua bruta?
E dá mais um puxão brusco na brida. Aterrorizada, a égua imobiliza-se, depois tenta
uma vez mais escoicear e curvetear, mas logo ouve a voz terrível do ferrador e
percebe seu olhar. Um momento depois, Ezer fala-lhe de novo no mesmo tom que
teria uma mãe com seu bebê recém-nascido.
- Vamos, vamos, não tenha medo de nada, minha bela, gosto muito de você, minha
bonequinha, seria capaz de comer você*.
Nesses instantes, o rosto de Ezer resplandece de amor e ternura e, lenta mas
firmemente, num gesto que não hesita por um momento, aproxima a mão espalmada do
pescoço do animal e logo na direção de sua boca. A égua escoiceia de novo e empina-
se verticalmente; dir-se-ia que no segundo seguinte seus cascos iriam espatifar a
cabeça do ferrador. Mas este pulou ao mesmo tempo gritando. Há!!! – Puxou a brida
e de novo o animal se imobilizou. O primeiro resultado sensível foi Czicza parar de
relinchar. Era evidente que se dera conta de que o homem em pé diante dela sabia
gritar mais forte do que ela.

1. Ver o jornal Az Est (NTF: “A Tarde”), número de 1° de maio de 1912, reportagem de Lászlo Fényes, “O
Domador de Cavalos”.
 Em francês, expressão terna de uma mãe com seu bebê, falando de sua vontade de enchê-lo de beijos e
carícias (N.R)
Ao fim de um quarto de hora, Czicza tremia com todos os seus membros, transpirava,
e seus olhos, até então cintilantes, embaçavam-se pouco a pouco, mas de um modo
bastante visível. Meia hora depois, o animal deixava-se tocar nas patas, e o ferrador
pôde, num gesto firme mas suave, acariciá-las, flectir-lhe as articulações. Czicza,
subjugada, permanecia de pé sobre três patas diante dele, a quarta pata dobrada na
posição que o ferrador lhe dera, como se fosse de cera...
Isso durou uma hora; assim que o animal tentava mostra-se indócil, o ferrador punha-
se a gritar de novo, caso contrário, ficava o tempo todo sussurrando-lhe palavras
carinhosas junto ao pescoço.
- Oh, minha pobre, você está suando, não é? Transpiramos os dois. Não se preocupe,
ninguém vai repreender você, eu sei que tudo o que você quer é ser bem comportada, você
é uma eguinha bem comportada, um amor de eguinha. – O sentido das palavras do
mestre ferrador estava no tom com que as proferia, não era necessário compreender
a significação das palavras.
Uma hora depois, o ferrador já se ocupava em ferrar Czicza a golpes de martelo e, ao
fim de uma hora e cinquenta minutos, tudo estava terminado. Czicza estava
completamente extenuada, mas perfeitamente calma e obediente; deixou-se acariciar
nas patas e foi reconduzida à estrebaria. ”
Ezer apresentou certidões oficiais atestando que esse método tinha produzido um
efeito duradouro em todos os cavalos assim domesticados.
Após essa demonstração, tão perfeitamente observada pelo jornalista perspicaz,
pediram-me que dissesse se, na minha opinião, o adestramento tinha sido realizado
com a ajuda da transmissão de pensamento, da hipnose ou da sugestão. Respondi que
só era preciso invocar forças extraordinárias e misteriosas se o fenômeno observado
não se enquadrasse no âmbito das leis na natureza e da psicologia. Mas não era esse o
caso e eu pensava poder demonstrá-lo da seguinte maneira:
O estudo psicanalítico dos efeitos e dos métodos da hipnose e a sugestão permitia-me
ligar esses fenômenos à tendência infantil para a obediência cega, que pode persistir
na vida toda¹. Pude estabelecer que havia dois meios de mergulhar um indivíduo na
hipnose: a doçura e a autoridade. Dei ao método da doçura (caricias afetuosas, ternos
encorajamentos, murmúrios persuasivos) o nome de hipnose maternal;

1. Ver “sugestão e psicanalise”. O.C., vol. I, P. 221.


Ao método autoritário (interpelação enérgica, injunções, intimidação) o de hipnose
paternal.
É a história dos quatro primeiros anos, em particular a maneira como se constrói a
relação com os pais, o que determinou se um indivíduo ficará toda a sua vida receptivo
a uma, à outra ou às duas formas de influência.
A receptividade a hipnose de um sujeito adulto não depende, por tanto de uma
aptidão especial do hipnotizador, mas de uma disposição inata ou adquirida
(filogenética ou ontogeneticamente) do “médium” para despojar-se de sua vontade
própria sob a influência da doçura ou do temor, que são precisamente os meios
educativos de que dispõem os pais. Claparéde considera que essa hipótese vai muito
mais longe do que as outras explicações da hipnose¹. Em seu artigo recapitulativo,
Clapadére confirma com numerosos exemplos essa disposição específica de certas
espécies animais – que a teoria da evolução poderá, sem dúvida, explicar – para
deixar-se mergulhar na hipnose por um terror súbito (como no caso da rã, da cobaia,
da galinha, etc.).
Ele próprio tinha conseguido mergulhar uma macaca selvagem e rebelde à
domesticação num estado de passividade completa e de rigidez cataléptica, olhando-
a fixamente e acariciando-a afetuosamente no peito e nos braços. Clapadére explica essa
docilidade súbita por uma confirmação dos meus pontos de vista, ou seja, que
sugestionabilidade pressupõe uma dependência sexual em relação ao sugestionador².
Morichau-Beauchant³ e Ernest Jones4 corroboraram as minhas concepções com base
na observação humana.
Nada nos impede de aplicar essas conclusões à técnica sugestiva do mestre ferrador
Ezer. De forma instintiva, Ezer parece ter recorrido aos métodos de doçura e de terror
habilmente associados e, por essa combinação de hipnose maternal e paternal pôde
amansar um animal indomável

1. “Esta teoria vai muito mais fundo que as outras, ao procurar explicar como é deflagrada essa
hipersugestionabilidade do sujeito, por que mecanismos particulares podem realizar-se ações tão poderosas
quanto as que se observa na hipnose, qual é o veículo afetivo que vai fazer o sujeito aceitar a pílula da sugestão
dada. ” (Prof. Ed. Claparéde, “Interpretation psycologique de l´hypnose”, Journal de Psychologie et de
Neurologie, 1911, vol. XVIII, n° 4.)
2. Claparéde, “État hypnoide chez um singe” (Archives des Sciences Physiques et Naturelles, vol. XXXII,
Genebra).
3. R. Morichau-Beauchant, professor na Escola de Medicina de Poitirers, “Le raport affectif la cure des
psychonévroses” (Gazzette des Hôpitaux, 14 de novembro de 1911).
4. Prof. E. Jones (Universidade de Toronto), “The action of sugestion in psychoterapy”, The Journal of
Abnormal Psychology, Boston, dezembro de 1910.
Essa combinação, sem dúvida, impressionou profundamente o animal por seus efeitos
de contraste cuja importância psicológica é conhecida, e podemos facilmente
conceber que o efeito tardio de uma experiência tão marcante pudesse persistir no
ser humano.
Esse gênero de adestramento só tem interesse, por certo, para os animais domésticos
cuja qualidade principal é a docilidade. Mas um ser humano submetido no decorrer
de sua infância a tais excessos de ternura e intimidação corre o risco de perder para
sempre a sua capacidade de agir com independência. São essas crianças “domesticadas”
que fornecem mais tarde sujeitos sempre receptivos à sugestão maternal ou paternal,
e igualmente a maioria dos neuróticos.
É difícil estabelecer de antemão se essa técnica brutal de adestramento pode
prejudicar em seguida a saúde do cavalo.

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