Vol. 12 - Conflitos Revoltas e Insurreicoes
Vol. 12 - Conflitos Revoltas e Insurreicoes
Vol. 12 - Conflitos Revoltas e Insurreicoes
123 p.
ISBN: 978-85-61586-62-1
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IV Encontro Internacional de História Colonial 1
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2 Conflitos, revoltas e insurreições na América Portuguesa
3 Somente para ficar em alguns exemplos, Cf. MELLO, José Antônio Gonalves de. Tempo
dos Flamengos. Rio de Janeiro: Topbooks, 2001. MELLO, Evaldo Cabral. Rubro Veio – O
Imaginário da Restauração Pernambucana. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997. MELLO, Evaldo
Cabral de. O Negócio do Brasil. Portugal, os Países Baixos e o Nordeste, 1641-1669. Rio de
Janeiro: Topbooks, 2003.
4 Ver BOXER, Charles R. Salvador de Sá e a Luta pelo Brasil e Angola. São Paulo:
Brasiliana, 1973.
5 VAINFAS, Ronaldo. Traição. – Um Jesuíta a Serviço do Brasil Holandês Processado pela
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IV Encontro Internacional de História Colonial 3
reflexo até mesmo de uma carência documental que nos aponte à realidade local ao
longo deste período.
O relato de viagem de Adriaen Van Bullestrate, em 13 de dezembro de 1641,
enquanto se deslocava de um canto a outro da Capitania de Pernambuco para
diagnosticar as condições do território flamengo, nos dão conta, de maneira relativa,
da conjuntura do “território alagoano” durante as primeiras décadas de controle
batavo.6 Apontava Porto Calvo com pontes destruídas; com o Forte de Bom Sucesso
necessitando de reparos que seriam dificultosos de serem realizados por conta das
chuvas; que a igreja tinha problemas do telhado, mesmo abrigando algumas pessoas,
que seriam reconstruídas a partir das madeiras recolhidas da mata; que a câmara dos
escabinos na localidade, não se reunia por discordâncias pessoais; que existia falta de
farinha par guarnição. Chegando a Penedo (Rio de São Francisco) destacava soldados
doentes, a existência de alguns currais, que havia uma boa quantidade de arsenal de
guerra dos armazéns e a preocupação de oficiais no que se referia a roupa para
inverno. Sobre Alagoas do sul, apontava que estava arruinada e destruída, com falta de
habitantes, pontes caídas, sem um governante que a administrasse, sem plantações de
mandioca gerando a falta de farinha, bem como os engenhos estavam em situação
calamitosa, assim como em Porto Calvo.
Ausência populacional nas localidades era reflexo da fuga ocorrida com a invasão,
as dificuldades econômicas fruto do abandono dos habitantes. Aqueles que ficaram
constituíram-se, evidentemente, um grupo forte e coeso que lutaria por seus direitos
de mantenedores da economia colonial quando o “invasor” holandês fosse posto “a
toque de caixa” do terreno pernambucano. Por outro lado, esse mesmo grupo que
tentava reerguer a economia açucareira se viu endividada ao longo dos anos, seja a
partir das concessões feitas por Nassau, seja pelas guerras de restauração que
incendiaram o território a partir da década de 40.
O fato é que após a Reconquista muitos destes homens, sobretudo da sede da
Capitania, passavam a escrever a coroa portuguesa reivindicando direitos de cargos,
ofícios e títulos em troca da luta contra os batavos e sujeição ao monarca português.
O discurso de “a custa de nosso sangue, vidas e fazendas”, descortinado por Evaldo
Cabral de Mello, utilizada pela açucarocracia pernambucana percorreu todo o resto
do século XVII e XIX, fortalecendo um grupo distinto local e atribuindo as gerações
vindouras o estatuto de nobreza da terra.7 Há de se ressaltar, que antes do completo
domínio flamengo em Pernambuco, a capitania tinha o estatuto de privada ou
hereditária, entregue a família Albuquerque no início do processo de construção do
Dezembro de 1641 até 24 de janeiro do ano seguinte de 1642”. In: MELLO, José Antonio
Gonsalves de. Fontes para História do Brasil Holandês: Administração da Conquista.
Recife: CEPE, 2004, p. 147-197.
7 MELLO, Evaldo. Rubro Veio…, passim.
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4 Conflitos, revoltas e insurreições na América Portuguesa
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6 Conflitos, revoltas e insurreições na América Portuguesa
“alagoanos” entre 1701 e 1800, oito deles eram pedidos de mercês tendo como
justificativa a participação da derrubada de Zumbi e seus congêneres.10 Para ficarmos
só em alguns exemplos, destaca-se Feliciano Berenger de Andrade, em 1723, que
pleiteava o cargo de comissário geral da cavalaria; José Camelo Bezerra de Andrade,
em 1755, que exigia os ofícios de juiz e escrivão dos órfãos, tabelião do judicial e
escrivão da câmara; os oficiais da câmara de Alagoas do Sul, em 1751, que exigia as
mercês de escrivão e meirinho da correição, escrivão do geral e meirinho do campo;
e os oficiais da câmara de Penedo, em 1755, que solicitava ter os mesmos prestígios
dos camaristas da cidade do Porto.11
Evidentemente, que muitas destas súplicas tinham como referência os feitos dos
antepassados já que as batalhas palmarinas esgotaram-se em 1695 e os pedidos
perpetuaram-se em todo o século XVIII para a Comarca das Alagoas. Caso curioso
foi o índio Lázaro Coelho de Eça, que em 1754, dizia ser:
Fica claro o uso do discurso dos homens brancos, súditos portugueses, para a
aquisição de sua solicitação, bem como da fala de “real vassalo” e “fiel súdito” como
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13Uma boa referência para analisar esses problemas já no final do século XVIII e início do
século XIX é o artigo de SILVA, Luiz Geraldo. “Sementes da Sedição”: Etnia, Revolta
Escrava e Controle Social na América Portuguesa (1808-1817). Afro-Ásia. 25-26, 2001, p. 9-
60. Nele, o autor analisa como o território alagoano servia se não na concretude, pelo menos
no discurso, para os agentes régios justificarem como uma localidade aberta a abrigar
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fugitivos quilombolas da Bahia, mas que, no fundo, para o mesmo autor refletia uma má
administração dos ouvidores locais para a contenção dos próprios moradores da Comarca.
14 MELLO, Evaldo Cabral de. A Fronda dos Mazombos. Nobres contra Mascates
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estreitos que unia mascates e nobreza da terra.16 Todavia, para os mais exaltados, a
perseguição e as punições foram severas, resultado de um pesado jogo de
articulações da coroa portuguesa com rodízios de administrações, concessões aos
senhores de engenhe e entregue do controle da capitania aos aliados dos mascates.
No que se refere às vilas de parte sul (Penedo, Porto Calvo e Santa Maria
Magdalena) as repercussões da guerra dos mascates atrasou a implantação da
Ouvidoria no território. Segundo Isabel Loureiro, a criação da Comarca das Alagoas
havia sido autorizada pela coroa portuguesa em 9 de outubro de 1706, mas o conflito
envolvendo os mazombos e a açucarocracia pernambucana impediram a concretude
da instituição.17 Curioso é que até o presente momento não existe uma comprovação
documental sobre esta data, mas os primeiros conjuntos primários do Arquivo
Histórico Ultramarino referente à Capitania das Alagoas, destacam dois documentos
que acaloram esta discussão.
O primeiro, se refere a um despacho do Conselho Ultramarino, em 9 de junho de
1709, com referendo do ouvidor-geral de Pernambuco e Procurador da Coroa, sobre
a solicitação da criação do lugar de ouvidor-geral e tabelião do judicial de notas em
Alagoas, especificamente com jurisdição em Porto Calvo e Penedo. O parecer é
favorável acreditando que Penedo seria a localidade que mais fazia uso dos serviços
do Ouvidor, mas por conta da pobreza destacada da localidade recomenda-se a
retirada de recursos da Bahia e Pernambuco para pagamento dos salários do novo
agente. Todavia, aponta que tanto o Governador de Pernambuco como o
Desembargo do Paço deveriam opinar sobre esta questão, já que solicitação gerava
uma outra realidade para a localidade.18
O segundo documento, já em 26 de maio de 1712, refere-se à carta da câmara da
Vila das Alagoas agradecendo ao monarca a criação do cargo de Ouvidor Geral das
Alagoas. Nas linhas salientavam:
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Apesar dos camaristas de Santa Maria Madalena usarem a expressão “há muitos
anos”, não há a especificação de quanto tempo se falava, de modo que o ano de 1706
ainda se configura como uma incógnita em termos de comprovação documental.
Aparecendo, assim, sempre a referência de 6 de fevereiro de 1711 quando é
nomeado José da Cunha Soares como o primeiro ouvidor geral das Alagoas, e em 4
de março de 1711, quando soma o cargo de Provedor da Fazenda dos Defuntos,
Ausentes, Capelas e Resíduos da mesma localidade.19 Interessante notar, para este
caso, foi a promessa feita ao agente régio para sua transferência para o território
alagoano: a função de Desembargador do Tribunal da Relação da Bahia, sem
concurso, assim findo seu tempo em Alagoas e tirada sua residência.
Em 11 de dezembro de 1719, ou seja, oito anos depois, conforme lhe foi
prometido e por ter tido uma boa residência, recebeu a magistratura no Tribunal da
Bahia, agora, por tempo de 6 anos, como era costumeiro para o cargo de
Desembargador.20 Neste documento, faz-se uma espécie de trajetória do funcionário
régio, destacando suas passagens pelos cargos de juiz de fora, juiz dos órfãos de Beja,
Ouvidor e Corregedor na Vila de Montermor o Velho e a passagem pela Comarca
das Alagoas. Sobre esta última, releva algo interessante, pois se destacava que agiu:
19Arquivo Nacional/Torre do Tombo. Registro Geral de Mercês, D. João V, Livro 4, fl. 540.
20Arquivo Nacional/Torre do Tombo. Registro Geral de Mercês, D. João V, Livro 4, fl.
570v.
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14 Conflitos, revoltas e insurreições na América Portuguesa
Introdução
1
Mestre em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
2 HESPANHA, Antonio Manuel. A monarquia: a legislação e os agentes. In: História da
vida privada em Portugal. Lisboa: Editora Temas e debates, 2011.
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mundo que as cercava, com a possibilidade de uma vida após a morte e da expiação
dos pecados cometidos. De acordo com Hespanha:
3 Ibidem, p. 18.
4 A definição de “nobreza da terra” no Rio de Janeiro está fortemente ligada à participação
dos conquistadores na organização da República na cidade, através da ocupação de cargos e
do ganho de prestígio social.
5 MOTT, Luiz. Cotidiano e vivência religiosa: entre a capela e o calundu. In: SOUZA, Laura
de Mello e (org). História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América
portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, vol. 1, 1997.
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16 Conflitos, revoltas e insurreições na América Portuguesa
Enlaces matrimoniais
pai, mãe e filhos, mas também genros, cunhados, sogros, noras, avós, ou seja, todos os que
estão interligados por laços afetivos.
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8 RODRIGUES, José Damião. Casa e família. In: ______ São Miguel no século XVIII:
Casa, elites e poder. Lisboa: Ponta delgada, 2003, p. 607 e 608.
9 HESPANHA, Antonio Manuel e XAVIER, Angela Barreto. Op. Cit, passim.
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18 Conflitos, revoltas e insurreições na América Portuguesa
nestes registros. Numa análise prévia sobre as práticas maritais dos capitães e seus
descendentes pude chegar alguns dados importantes:
Tabela 1.0.
Presença dos Capitães pesquisados nos registros (1616-1620/ 1644-1663)
Período 1616-1620 1644-1663
Nº total de registros analisados 185 909
Nº de registros em que os capitães estão presentes 14 30
Porcentagem do total 7.5% 3.5%
Fonte: Batismos de livres do Arcebispado de S. Sebastião do Rio de Janeiro,
Freguesia da Sé (1616-1621/ 1644-1663). ACMRJ, livros 1º, 3º e 4º.
Pelo que se pode observar na tabela acima, a porcentagem que representa o total
de capitães nos anos pesquisados é muito pequena em relação ao número total de
documentos observados. Isso parece nos fazer crer, que dentre a população total de
casais que batizavam crianças, os capitães estavam presentes em número muito
menor. A observação nominal permite esse tipo de análise direta e a afirmação
concreta dos dados mostrados, e leva a afirmar que o motivo de aparecerem em
número reduzido é porque representavam um número muito reduzido da população
total da Sé. Assim pode-se concluir que eles representam uma porcentagem bem
pequena na população total e não poderia ser diferente, pois numa sociedade
hierarquicamente definida, todos os lugares sociais devem estar bem marcados e não
se confundem entre si.10 E além disso, a maior parte da população não pode ser de
pessoas “nobres”, já que isso invalidaria a existência de uma diferenciação social, se
todos são elite, então não há elite.
A realização de casamentos entre membros da “nobreza da terra” é bastante
evidente. Como já me referi em outros trabalhos, essa elite que se forma no Rio de
Janeiro é oriunda de outras regiões da América, o que necessariamente nos faz tecer
algumas considerações: Primeiro, a existência de vínculos extra regionais, o que
explica em grande parte a ocorrência de uniões com pessoas oriundas de outras
localidades, como Pernambuco e São Paulo. Um segundo ponto, observado através
dos estudos realizados, é o de que a primeira geração de filhos de capitães tornaram-
se também capitães, casando com rapazes e moças da própria “nobreza da terra”,
mas podendo ser os noivos também oriundos de outras regiões da América lusa e
por isso, não aparecem diretamente nos registros da base de dados.11 De qualquer
10Ibidem.
11Base de dados FAM 51. Agradeço ao meu orientador por me fornecer a base de dados da
“nobreza da terra” do Rio de Janeiro, que durante anos abasteceu.
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forma, esses noivos que se unem com pessoas da “nobreza da terra” local são
pessoas também oriundas da gente “nobre” de outras regiões da América lusa.
Por exemplo, entre os filhos de Antonio de Mariz, conquistador quinhentista,
Diogo de Mariz Loureiro casou-se com Paula Rangel de Macedo, filha de Julião
Rangel de Macedo. Também Antonia de Mariz, neta do mesmo Antonio de Mariz
casou-se com Antonio Muniz Barreto, sinalizando em duas gerações a aliança da
família Mariz com duas famílias distintas: Rangel de Macedo e Muniz Barreto. Maria
de Mariz e Izabel de Mariz, filhas de Antonio de Mariz casaram-se também com
membros de outras famílias principais da terra: A primeira com Thomé de Alvarenga
e a segunda com Crispim da Cunha Tenreiro. A neta Maria de Alvarenga contraiu
núpcias com o Capitão Manoel Correia, da família Correia de Sá.
Já Domingos de Azeredo Coutinho casou-se com Ana Tenreira da Cunha, filha
de Crispim da Cunha Tenreiro e de Izabel de Mariz. Neste caso, três das famílias
mais importantes estão realizando alianças matrimoniais entre si: Mariz, Azeredo
Coutinho e Cunha Tenreiro. Por seu turno, o filho primeiro do casal Domingos e
Ana, o capitão Marcos de Azeredo Coutinho casou-se com Paula Rangel, filha de
Julião Rangel de Macedo, de outro ramo de conquistadores.
Já João de Castilho Pinto, filho de Manoel de Castilho Pinto chegado ao Rio de
Janeiro nos anos finais do século XVI, contraiu núpcias com Margarida Soares, filha
de Miguel Aires Maldonado e de Maria de Medeiros, enquanto que sua irmã Catarina
Pinta de Castilho contraiu núpcias com Domingos Machado Homem, filho de
Sebastião de Sampaio e Antonia da Costa. Não pode afirmar ao certo, mas a idade
dos pais regula a do filho de Antonio de Sampaio, sobre o qual as informações são
bastante escassas. Posteriormente, o mesmo Miguel Aires Maldonado casou-se com
Barbara Pinta, uma outra irmã de João de Castilho Pinto, mantendo os laços entre as
duas famílias com o falecimento da primeira esposa do dito Miguel.
Por sua vez, Aleixo Manoel, patriarca de outra linhagem de capitães da terra
casou-se com Francisca da Costa Homem, filha do capitão Jordão Homem da Costa
e de Apolonia Domingues. Aleixo Manoel, o moço primeiro filho do casal teve com
Isabel Cabral, sua mulher, uma filha por nome Maria Cabral que contraiu
matrimônio com Antonio Muniz Barreto, o mesmo que havia se casado com
Antonia de Mariz (como me referi anteriormente). Já Brites da Costa Homem, irmã
de Aleixo, o moço, casou-se com o Doutor Jorge Fernandes da Fonseca e teve por
filho a Francisco da Fonseca Diniz, que posteriormente contraiu núpcias com Dona
Isabel Rangel de Macedo, filha de Balthazar de Abreu e de Izabel Rangel, filha de
Julião Rangel de Macedo.
De tudo isto dito, pode-se confirmar a existência de uma intrincada rede de
casamentos que interligava esta “nobreza da terra” no Rio de Janeiro e que os
tornava um grupo bastante endogâmico em termos de práticas maritais. As várias
gerações se entrecruzaram através desta prática, que possibilitou o encerramento do
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Padrinhos
Partindo de tudo o que já foi dito sobre a formação da “nobreza da terra” do Rio
de Janeiro e buscando uma inserção mais profunda na organização social das famílias
estudadas, deve-se destacar a existência de uma outra forma de interrelação muito
comum, chamada de “parentesco fictício”. Esse termo se refere à existência de
relações para além dos laços de consanguinidade e que levam a formação de redes
muito mais complexas de alianças, já que colocam em cena um número muito maior
de indivíduos que se relacionam entre si que podem ser inclusive oriundos de
diferentes núcleos parentais extensos. E muito mais do que isso: Deve-se enfatizar
que a escolha dos padrinhos reforçava laços de amizade e reciprocidade, muito
característicos das sociedades do Antigo Regime. E Como já afirmou Barth: “The
general notion of reciprocity is of course old and familiar in anthropology; indeed, it
seems to be fundamental to our view of social relationships”.12 A ideia de
reciprocidade é fundamental no estudo de redes de relações, principalmente na
formação das sociedades do início da época moderna, como é o caso do Rio de
Janeiro colonial. A própria ideia de uma sociedade corporativa, baseada na existência
de estatutos sociais, pressupunha a existência de atos de dar e receber entre pessoas
de um mesmo estatuto ou de estatutos diferenciados. Isso porque, para Barth as
pessoas não podem viver isoladamente, necessitando manter relações umas com as
outras na sua vida cotidiana.
Dito isto, pode-se afirmar que a construção de redes de alianças via parentesco
fictício é uma característica que ultrapassa a formação da “nobreza da terra” no Rio
de Janeiro, tornando-se propriamente uma característica das sociedades da época
moderna, especialmente a sociedade portuguesa baseada na ideia de dom. Desta
forma, ao lançarmos um olhar sobre outros trabalhos que tratam do mesmo tema,
percebe-se que realmente, a formação destas redes de reciprocidades não pode ser
ignorada:
Para além das alianças matrimoniais, da endogamia e da
consanguinidade, outras práticas reflectiam as estratégias de
coesão interna e a vontade de estreitar cada vez mais os laços
entre as diferentes famílias das oligarquias micaelenses, laicas e
eclesiásticas, ou entre os membros de uma mesma família. Uma
das práticas mais divulgadas era o recurso ao parentesco
12BARTH, Fredrik. Process and form in social life. London: Routlegde & Kegan Paul,
vol.1, 1981, p. 38.
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Partindo desta definição, deve-se ter em mente que o estudo das redes
sociais exige, pelo menos, que levemos em conta a diversidade de ligações e vínculos
que esses atores possuem entre si e que são fundamentais na sua organização social
enquanto grupo. Como já afirmou Barth, cada indivíduo age de acordo com um
conjunto de possibilidades que se lhe apresentam e com os valores com os quais se
reconhece. No caso da “nobreza da terra” do Rio de Janeiro, isso se materializava
entre outras coisas já apresentadas ao longo deste trabalho, pelas escolhas maritais e
também pela escolha dos padrinhos. No entanto, isso se torna um todo bastante
mais complexo quando pensamos que as redes de relações não se constituíam
somente entre pessoas de um mesmo grupo social, como a “nobreza da terra”, mas
também incluíam indivíduos de diferentes segmentos sociais. Daí falar-se na
existência de redes horizontais (entre pessoas de um mesmo status social) e de redes
de relações verticais (entre pessoas de segmentos socais diferentes). Na prática,
ambas acabavam por consolidar a existência de diferentes grupos, já que essas
relações acabavam por tornar as diferenças ainda mais marcantes. No caso das
sociedades do Antigo Regime, onde existe uma hierarquia social bem demarcada, a
existência de redes verticais e horizontas não interfere em nada na ordem
cosmológica apresentada por Antonio Manuel Hespanha. Isso porque essas redes de
sociabilidade acabam por corroborar as relações corporativas que tanto marcam estes
tipos de sociedade da época moderna. O fato é que, entre a “nobreza da terra” nos
anos iniciais aqui estudados, a vinculação via parentesco fictício com indivíduos de
outros segmentos sociais foi praticamente inexistente. A opção predominante dos
pais que eram oriundos de famílias da própria “nobreza” foi a de batizar seus
rebentos selecionando padrinhos dentro das famílias da própria elite.
Dito isto, nota-se que as formas sociais observadas podem ser definidas então
como regularidades decorrentes de decisões comuns que os indivíduos tomam e é
através da sua repetição que elas tornam-se estratégias de ação socialmente
reconhecidas. É justamente a adoção dessas estratégias comuns o que permite
delimitar a existência de um determinado grupo social. Por isso, a adoção da técnica
prosopográfica, que permitiu levar em conta a existencia de vínculos pessoais,
buscando compreender as diferentes conexões entre os agentes, além de explicar as
escolhas dos atores sociais por eles mesmos sem a inteferência direta de estruturas
que determinem suas ações, torna-se tão importante.15
Dito isto, fiz um levantamento dos batismos e pude confirmar algumas das
hipóteses levantadas e retiradas de outros trabalhos sobre o Antigo Regime
português e que tratam do papel do parentesco fictício entre a formação de
“nobrezas”. Nestes estudos, como pude constatar para o Rio de Janeiro, aparece
15 GINZBURG, Carlo. & PONI, Carlo. O nome e o como: troca desigual e mercado
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claro que entre as famílias principais da terra, os padrinhos e madrinhas não eram
selecionados aleatoriamente.
Por exemplo, no dia 25 de outubro de 1661, Salvador Correia de Sá é Benevides
batizou uma menina chamada Tereza, filha do Capitão Francisco Machado e de sua
esposa Dona Ana. Ao realizar os devidos cruzamentos, descobri que Dona Ana é na
verdade Ana Tenreira da Cunha, filha de Domingos de Azeredo Coutinho e de Ana
Tenreira da Cunha (homônimas). A mãe de Tereza, Dona Ana era então descendente
de dois ramos de famílias conquistadoras do Rio de Janeiro: A família Azeredo
Coutinho, oriunda do Espírito Santo e a família cujo patriarca é Crispim da Cunha
Tenreiro. Eles escolheram como cumpadre ninguém menos que Salvador Correia de
Sá e Benevides (que era governador da cidade no ano de 1661) e Maria Coutinha,
que era tia de Tereza (irmã de Dona Ana, a mãe). Nesse caso, percebe-se a existência
de uma ligação de parentesco, entre a madrinha e a criança, mantendo laços dentro
da própria família e aliando-se esta mesma família a dos Correia de Sá.
Por seu turno, Manoel Correia (tio de Salvador) já havia batizado em julho de
1648 uma menina de nome Maria que era filha de Francisco Frazão de Sousa e Maria
Barbosa de Alvarenga. Ela, a mãe, era filha de Antonio de Alvarenga Mariz e de
Isabel Barbosa. Os avós da mãe (ou seja, bisavós da menina Maria) por parte de pai
eram Tomé de Alvarenga e Maria de Mariz, este conquistador e ela neta do
conquistador quinhentista Antonio de Mariz. Sobre o marido Francisco não pude
encontrar referências, suponho que deva ser oriundo de outra região da América.
Entretanto, o mais importante é destacar que Francisco e Maria escolheram para
apadrinhar sua filha duas pessoas também de uma das principais famílias da terra:
Manoel Correa, aparentado de Salvador Correia de Sá e Benevides e sua esposa
Maria de Alvarenga que era irmã de Ana e portanto tia da criança. Neste caso,
percebe-se que há uma aliança entre três famílias distintas: A família Alvarenga,
Mariz e Correia de Sá. O mesmo Manoel Correia e sua esposa Maria de Alvarenga
tiveram Izabel em 11 de junho de 1616. Os padrinhos escolhidos por eles foram: Os
próprios avós, Tomé de Alvarenga e Maria de Mariz, filha de Antonio de Mariz. E as
alianças entre essa “nobreza” não terminam por aqui.
Marcos de Azeredo e sua esposa Paula Rangel, ambos descendentes de dois dos
primeiros conquistadores: Domingos de Azeredo Coutinho e Julião Rangel de
Macedo, respectivamente, tiveram a Ana aos 7 dias de fevereiro de 1646. Escolheram
como padrinhos João Correia da Silva e Paula Rangel, a velha. Pela genealogia,
descobri que Paula é na verdade, a própria avó da criança. Quanto ao padrinho
escolhido, cheguei ao impasse causado pela repetição dos nomes, pois encontrei três
opções para o nome João Correia da Silva. O Primeiro era o marido de Helena da
Silva, filha de Maria de Mariz e de João Gomes da Silva, que neste caso denotaria
uma aliança com a família Mariz. Um outro João Correia da Silva (homônimo) foi
marido de Ana Tenreira da Cunha, filha de Cosme de Azeredo Coutinho e de
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Conclusão
Em resumo, a análise dos registros acima analisados pode nos fazer acrescentar a
tudo que já foi dito mais algumas observações: O uso dos títulos de hierarquia social
costumeira mais comuns, diga-se de dona e capitão, eram recorrentes nestes registros
de batismo e demarcavam a participação do padre e consequentemente da Igreja na
aplicação destas designações socialmente aceitas. Além disso, percebe-se que ademais
das alianças matrimoniais, aquelas formadas via apadrinhamento também aliavam as
famílias principais da terra entre si e acabavam por reforçar os laços parentais pré-
existentes. Outra questão interessante e recorrente é que nesses registros as mulheres
estavam sempre vinculadas a alguma outra pessoa, podendo ser este o marido, o pai,
a mãe, e ao lado a especificação do estado civil. Caso a mulher, mãe ou madrinha não
estivesse vinculado a outro nome era, em geral, porque era viúva. Também era
corriqueira a omissão do sobrenome da mulher, que muitas das vezes era chamada
apenas pelo termo Dona, acompanhado do primeiro nome. Desta maneira, pode-se
afirmar que os valores e usos cotidianos eram assimilados nestes registros de tal
forma que a mulher “nobre” deveria estar sempre vinculada a uma família e só
recebia sua distinção socialmente aceita, a partir desta ligação.
Além desta “nobreza da terra” estar toda interligada por diversos graus de
parentesco via matrimônios, também lhe caracterizava o parentesco fictício,
possibilitado pelo nascimento dos filhos e pela brecha concedida pela Igreja, tonando
a escolha dos padrinhos algo singular, pois deveria ser alguém de confiança dos pais
que pudessem substituí-los em alguma eventualidade, o que os levava a fazer
escolhas dentro das suas próprias redes parentais, afetivas e muitas vezes clientelares.
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3 BERSTEIN, Serge. “Cultura Política”. In: RIOUX, Jean Pierre; SIRENELLI, Jean (org.).
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28 Conflitos, revoltas e insurreições na América Portuguesa
Administração e colonização
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30 Conflitos, revoltas e insurreições na América Portuguesa
um grupo da elite local. Foi denunciado por “mau proceder” e obrigado a retornar à
Bahia. Enquanto seu substituto não se apresentava, Pestana de Brito liderou uma
revolta, convocando os habitantes de São Cristóvão a romperem os laços de
subordinação ao governo colonial, não atenderem mais às suas determinações e
estabelecer um governo livre do governo-geral. Foi apoiado por homens-bons,
motivados pela insatisfação com a determinação de fintar o gado que o Governador-
Geral havia mandado executar em 26 de agosto de 1656. Há indícios, portanto, para
analisar o movimento como uma rebelião antifiscal, mas certamente, dada a
complexidade de suas reinvindicações, pode-se aventar que não se resumia
pontualmente a uma questão tributária.
Após a revolta de Manoel Pestana de Brito em 1657, o Governo-Geral percebeu
a necessidade de acompanhar mais de perto a vida dos colonos na localidade,
reforçando seu controle e vigilância, função atribuída a Jerônimo de Albuquerque,
enviado para administrar a capitania de Sergipe. Prestigiado participante das lutas
contra os holandeses, teve sérios problemas de desobediência, desacato e desrespeito
por parte do grupo que participou e apoiou a rebelião de Pestana de Brito. O
governador da Bahia advertiu o Capitão-mor por sua postura “branda” em relação
aos “abusos dos habitantes”, e recomendava: “vossa mercê se faça respeitar e
obedecer, que se esses moradores não experimentassem tanta brandura em vossa
mercê não teriam eles tanto ânimo”.5
Para reforçar a autoridade e manter a ordem na sede da capitania, o capitão mor
requisitou força militar por medo que “os excessos de dezembro de 1657”
ocorressem novamente. Nisso visualiza-se uma importante estratégia para serenar o
espírito contestador de certos grupos da elite local. As constantes fugas de negros e
os ataques de índios à cidade de São Cristóvão tiravam o sono dos produtores locais.
Por iniciativa de Jerônimo de Albuquerque, foram realizadas expedições aos sertões
em busca de cativos índios e negros, além de destruídos os quilombos.
Aventa-se, assim, que a iniciativa foi motivada por constatar a insatisfação dos
colonos, o que podia levar ao aprofundamento da rejeição à autoridade do governo
local. A dificuldade de se obter e manter a submissão de cativos negros e indígenas
(os dois grupos cujo descontrole alimentava o medo senhorial) deixava os
proprietários mais propensos a elaborar críticas sobre a fragilidade do governo e a ter
dúvidas sobre sua capacidade de mando e resolução de problemas cotidianos. As
medidas para assegurar a manutenção da ordem e o fornecimento de mão-de-obra
podem ser vistas como estratégias integradas de reforço dessa autoridade e
construção de seu respeito perante a elite local.
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IV Encontro Internacional de História Colonial 31
resposta a Provisão Régia, do Rei [D. João V], referente a divisão das comarcas e jurisdição.
Dividindo a comarca de Sergipe del Rey até Itapoã pela parte sul, a parte norte até o rio São
Francisco. 24 de fevereiro de 1726. BRASIL. MINC. Sergipe. Documentação do Projeto
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32 Conflitos, revoltas e insurreições na América Portuguesa
Resgate – Arquivo Histórico Ultramarino. Inventário: 159, Caixa: 03, Documento nº 28. CD
01.
8 CARVALHO JR, Francisco Antônio de. Os capitães-mores de Sergipe (1590-1820).
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34 Conflitos, revoltas e insurreições na América Portuguesa
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13 Carta da Câmara de São Cristóvão, 05 de abril de 1711. In: FREIRE, Felisbelo. História
de Sergipe…, p. 198.
14 Carta do governador geral, D. Lourenço de Almada, para a Câmara de São Cristóvão. 15 de
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36 Conflitos, revoltas e insurreições na América Portuguesa
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38 Conflitos, revoltas e insurreições na América Portuguesa
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IV Encontro Internacional de História Colonial 39
2 RODRIGUES, Gefferson Ramos. A arraia miúda: Índios, negros e homens pobres livres
nas rebeliões da América portuguesa - Minas Gerais, Pernambuco e São Paulo 1707-1718. In:
XXVI Simpósio Nacional de História - ANPUH. São Paulo, 17 a 22 de julho de 2011. Anais
eletrônicos… São Paulo: ANPUH, 2011. Disponível em:
http://snh2011.anpuh.org/site/anaiscomplementares. Acesso em: 25/05/2012.
ISBN 978-85-61586-62-1
40 Conflitos, revoltas e insurreições na América Portuguesa
3 SANTOS, Cristiane Alves Camacho dos & FERREIRA, Paula Botafogo Caricchio. Povo e
Povos, p. 1 (mimeo).
4 FERREIRA, Fátima Sá e Melo. Pueblo – Portugal. In: SEBASTIÁN, Javier Fernández
Gianfranco. Dicionário de Política. Tradução Carmen C. Varriale et al. Brasília: UNB, 13a
ed., 2007, vol. 2, p. 986.
6 FERREIRA, Fátima Sá e Melo. Pueblo – Portugal…, p. 1228.
7 BLUTEAU, Raphael. Vocabulário Portuguez & Latino. Lisboa: Officina de Pascoal da
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42 Conflitos, revoltas e insurreições na América Portuguesa
9 MACEDO, Jorge Borges de. Povo – Na época moderna. In: SERRÃO, Joel. Dicionário de
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IV Encontro Internacional de História Colonial 43
Frederick (org.). A Outra História. Ideologia e protesto popular nos séculos XVII a XIX.
Tradução Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990, p. 34-37.
ISBN 978-85-61586-62-1
44 Conflitos, revoltas e insurreições na América Portuguesa
16
THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em comum…, p. 176.
17JULIA, Dominique. A Violência das Multidões: é possível elucidar o desumano? In:
BOUTIER, Jean e JULIA, Dominique. Passados Recompostos: Campos e Canteiros da
História. Rio de Janeiro: UFRJ - FGV, 1998, p. 217-220.
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46 Conflitos, revoltas e insurreições na América Portuguesa
223.
26 Ver página 7 do artigo.
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Apresentação
Starling com o título: O acaso não existe. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz (org). Leituras
Críticas sobre Evaldo Cabral de Mello. Belo Horizonte: UFMG, 2008.
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48 Conflitos, revoltas e insurreições na América Portuguesa
A primeira impressão ao a ler a obra é de ausência; parece que Rubro Veio é parte
de outro texto, é o próprio, ao mesmo tempo continuação e deve ser continuado;
mas isso, longe de ser um problema, é ao contrário, um estímulo, para não apenas ler
Rubro Veio, mas ver se assentaria como real a impressão primeira, e é nesse caminho
que descobrimos um conjunto de obras de Evaldo Cabral de Mello, que se inter-
relacionam e o confirmam como um Historiador de “mão cheia” que o é.
As obras são “Olinda restaurada” (1975); “O Negócio do Brasil” (1998); “Em
afronda dos Mazombos” (1995); “O norte agrário e o Império” (1984); “o nome e o
sangue” (1989).
Stuart Schwartz, diz: “Em um sexteto de monografias inter-relacionadas, Evaldo
Cabral de Mello, produziu uns dos projetos históricos brasileiros mais ambiciosos e
5 Ibidem, p. 158.
6 Ibidem, p. 15.
7 Ibidem, p. 154.
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Nordeste. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz (org). Leituras Críticas sobre Evaldo Cabral de
Mello…, p. 13-33.
9 Entrevista de Evaldo Cabral de Mello concedida a Lilia Schwarcz e Heloísa Maria Murgel
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50 Conflitos, revoltas e insurreições na América Portuguesa
Mas qual a História narrada em Rubro Veio…? Sim, porque o que faz o
Historiador é narrar! É o que pensa e executa na sua escrita Cabral de Mello: “O que
o Historiador faz: ele narra. Estabelece conexões no tempo, busca uma concatenação
rigorosa, narra uma trama […]”.17 A trama narrativa, em Rubro Veio, circula em
certa cronologia central que amarra a ideia do autor, vejamos, o livro trata do período
da formação do imaginário forjado durante a “Guerra de Restauração” (1645-54) e
retrabalhado durante os Setecentos e Oitocentos diante das necessidades instituídas
pelas respectivas representações das sociedades de cada período.
Desse universo, delineiam-se, nos parece, a tese do autor, aspectos da relação da
província de Pernambuco, primeiro com a Coroa Portuguesa e depois com o
Império brasileiro. Para compreensão da problemática, imperativo acrescentar à
cronologia, 1808, data da vinda família real para o Brasil, esse acontecimento que
sinaliza para Cabral uma mudança radical posta à América Portuguesa,
principalmente no que concerne a futura fixação de fronteiras territoriais, ou seja, a
unidade nacional. Diz-nos Mello:
14 Ibidem, p.14.
15 Ibidem, p. 156.
16 Entrevista de Evaldo Cabral de Mello. In: Conversas com Historiadores Brasileiros.
Moraes, J. G & REGO, J.M. (Org). Rio de Janeiro: editora 34, 2002, p.145-62.
17 Entrevista de Evaldo Cabral de Mello concedida a Lilia Schwarcz e Heloísa Maria Murgel
Starling com o título: O acaso não existe. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz (org). Leituras
Críticas sobre Evaldo Cabral de Mello…, p. 161.
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52 Conflitos, revoltas e insurreições na América Portuguesa
Os donos dos engenhos deviam aos comerciantes de Recife, que por sua vez,
deviam ao governo da Holanda, intermediado pelo Conselho duramente atacado, em
Pernambuco pelos luso-brasileiros, como demonstra a fala do futuro “herói” da
guerra da restauração, João Fernandes Vieira, “Leve o diabo os engenhos que não
podem produzir tanto quanto é necessário para pagar os senhores governadores!,23
daí a ironia retratada por Mello, em Rubro Veio, quando o nativismo do século XIX,
de acordo com as suas necessidades, vai ler o Seiscentos como algo positivo para os
pernambucanos e utilizá-lo para carregar o anti-lusitanismo dos Novecentos, algo
inexistente no século XVI, mas isso não impediu os “filhos” do Dezenove de se
fazerem de rogados ao se apropriaram do discurso de seus “pais” e “avós” para
revigorarem forças.
“… certo(s) “imaginário(s)”
22 MELLO, E. C. O Brasil holandês. São Paulo: Piguin & Cia das Letras, 2010, p. 331-32.
23 Ibidem, p 335.
24 MELLO, Evaldo Cabral. Rubro Veio. O imaginário da restauração pernambucana.
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IV Encontro Internacional de História Colonial 53
26 Ibidem, p. 147.
27 MELLO, Evaldo Cabral. Rubro Veio…, p. 285.
28 Ibidem, p. 280.
29 CASTORIADIS, C. A Instituição do Imaginário da Sociedade…, p. 154
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54 Conflitos, revoltas e insurreições na América Portuguesa
necessidade de justificar a presença concreta dos santos, dar-se pela sua inserção em
um mundo simbólico que lhe permitia assim escrever.
E Cabral de Mello (2008), no capítulo em destaque, reconstrói o “mundo social-
histórico” dos Seiscentos inserindo autor feito Calado, na rede que denomina de
“religião popular”, aquela a pouco referida no presente texto, enquanto mistura
diferentes encontros e desencontros, um catolicismo híbrido, repleto de imagens e
aprendizagens, já postas em prática pelos portugueses no próprio Portugal, pois o
historiador nos lembra que a guerra de Pernambuco (1645-54) e a guerra da
independência de Portugal contra a Espanha (1641-68) relacionam-se diretamente,
pois ele arrisca dizer que sem a autonomia portuguesa, provavelmente o nordeste
brasileiro estaria em outras mãos que não da coroa lusitana, pois naquele momento,
já havia um acordo da Espanha com os Países Baixos para oficializar a posse dos
neerlandeses sobre o nordeste do Brasil.
Na disputa com os espanhóis, os restauradores portugueses realizaram intensa
campanha “publicitária” para mobilizar os ânimos da população, tanto de Portugal
como de outras possessões que marcariam as representações dos portugueses de
todas as ordens sociais e a religião coube papel de destaque. Voltemos a Castroriadis:
30 Ibidem, p.162.
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IV Encontro Internacional de História Colonial 55
Nada mais “natural” que, na avaliação dos porquês dos cronistas Seiscentistas à
guerra com os holandeses, apareça na perspectiva de que Pernambucano caíra nos
braços dos “hereges” (cap. 8), daí a guerra ser percebida a partir do discurso
providencialista, em que o panteão católico venha socorrer os seus fiéis.
Já no Dezoito, as necessidades do grupo social que alimentava o imaginário
nativista, muda diante da conjuntura evidenciada, por exemplo, pelo fim do
monopólio colonial, Inglaterra hegemonizando, Independência dos EUA, além dos
pernambucanos se ressentirem do preço, por eles pago à burocracia, primeiro para
com a coroa portuguesa e depois com a independência, para com o Império
Brasileiro. E conclui Mello:32 “O movimento (guerra de restauração) foi antes a
reação da consciência portuguesa dos colonos […] num casulo religioso e dinástico
[…] somente após a expulsão do invasor, o episódio passou a ser interpretado em
termos nativistas […] e depois nacionalista.33
Rubro Veio e Evaldo Cabral de Mello se enroscam cada um em aspectos
diferentes, mas complementares, em torno do conceito de “imaginário” para
responderem a nossa pergunta de partida do artigo, teria o autor um “horizonte de
expectativas” para pensar o presente/futuro?
Pensamos que sim! Expectativas que surgem de duas formas diferentes:
inicialmente, na obra Rubro Veio em que, em meio a narrativa amarrando os pontos
saídos da construção de um corpo documental devidamente selecionado, o
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56 Conflitos, revoltas e insurreições na América Portuguesa
34 MELLO, Evaldo Cabral. Entrevista. In: MORAIS, José Geraldo Vinci & REGO, José
Márcio (org). Conversas com Historiadores Brasileiros. Rio de Janeiro: editora 34, 2002,
p. 156.
35 HOLLANDA, Sergio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympo, 7ª ed,
1973, p. 160.
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58 Conflitos, revoltas e insurreições na América Portuguesa
38 MELLO, Evaldo Cabral. Entrevista. In: MORAIS, José Geraldo Vinci & REGO, José
Márcio (org). Conversas com Historiadores Brasileiros…, p. 154.
39 MORAIS, José Geraldo Vinci & REGO, José Márcio (org). Conversas com
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IV Encontro Internacional de História Colonial 59
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60 Conflitos, revoltas e insurreições na América Portuguesa
Quando optou por punir Filipe dos Santos com a pena capital como forma de
conter os levantamentos que tomavam conta de Vila Rica durante quase um mês, o
Conde de Assumar certamente conhecia muito bem as conseqüências que tal atitude
poderia ter para a sua carreira ultramarina e o quanto sua ação corria o risco de ser
condenada não só pelos habitantes das Minas, mas também pelos seus pares,
estivessem estes a serviço da Coroa no Brasil ou em outras partes do Império
Português.
Ao contrário do que tradicionalmente se pensa, castigos como o aplicado pelo
Conde de Assumar eram raros e costumavam ter uma repercussão negativa na
carreira dos oficiais que optavam por este expediente. Foi o caso, por exemplo, de
Salvador Correia de Sá, oficial que ousou impor o castigo aos líderes da Revolta da
Cachaça de 1655 e que condenou o líder do movimento, Jerônimo Barbalho, à pena
capital.
Segundo Charles Boxer, tal decisão custou caro para Salvador de Sá e as
consequências desta decisão para sua carreira no ultramar se fizeram sentir pouco
tempo depois, pois o governador do Rio de Janeiro, muito embora “tenha esmagado
completamente a revolta, a execução de Barbalho, em vingança, ficou tristemente na
memória dos habitantes do Rio de Janeiro e não lhe criou atmosfera favorável na
corte de Lisboa”.2
A aplicação de penas capitais, aliás, era pejorativa não só para os oficiais que
adotavam tal procedimento, mas até mesmo para reis que optavam por este caminho
para combater seus inimigos. O exemplo mais significativo é o de D. João II que, ao
descobrir que alguns duques conspiravam contra a sua pessoa, “os castigou de modo
exemplar, num ato de justiça”.3
Muito embora não tenha sido reprimido por sua atitude e tenha seguido no trono,
D. João II jamais gozou do prestígio alcançado por outro monarca de mesmo nome,
D. João III, cuja ação pautava-se justamente pela concessão de perdões o que o
tornou modelo para seus sucessores, como prova uma “colecção de ditos
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IV Encontro Internacional de História Colonial 61
memoráveis, diversas vezes impressa no século XVIII (…) (na qual) definia o seu
ofício, perante os vedores da Fazenda, como equivalente a fazer mercês e perdoar”.4
Tanto o caso de Salvador Correa de Sá como o culto da figura de D. João III
como um rei virtuoso por atuar concedendo perdões são situações que nos ajudam a
desmistificar a idea de que a aplicação de pena capital era atitude recomendável pela
monarquia lusa. António Manuel Hespanha foi um dos que percebeu esta situação ao
enfatizar que a Coroa portuguesa estabelecia “como regra de ouro que, ainda mais
frequentemente do que punir, devia o Rei ignorar e perdoar”.5 Todavia, tais
situações, ao menos a princípio, não nos ajudam a entender a ação de Assumar na
contenção da Revolta de Vila Rica, afinal, se era tão questionável a aplicação de
penas capitais na Coroa lusa, porque o governador agiu assim e não perdoou Filipe
Santos? Esta é uma das questões que este texto se propõe a investigar.
Ainda hoje, boa parte da historiografia nacional considera a atitude de Assumar
como resultado de sua personalidade intempestiva, derivada de sua formação política
distante da tradicional cultura escolástica e mais calcada na cultura política
pragmática da Renascença. Para exemplificar esta formação, Marcos Aurélio Pereira
lembra que, ao justificar sua conduta em Vila Rica, Assumar “baseou seus
argumentos em teóricos que discutiam uma prática política marcada pelo calculismo,
pela técnica e pela necessidade”.6
Pereira, no entanto, é ainda mais feliz ao extrapolar a percepção de que tal
postura se explicava pela personalidade do Conde e mostrava, mais que isso, os
“sintomas da transformação que o Estado vivia, uma mudança silenciosa da Razão
de Estado”.7 Transformação também captada por Angela Barreto Xavier, que
percebe que desde o pós-Restauração “a prudência política seiscentista apesar de
continuar a ser mediatizada pelos intérpretes do direito, os juristas, incomodava
novos saberes. Nesta altura, a ética aristotélica já fora plasmada pelos saberes
maquiavélicos, por Tácito, Lipsius, por Botero”.8
O que Pereira e Xavier sinalizam com estes postulados é que a partir da segunda
metade do século XVII, uma literatura política mais pragmática entrava em diálogo
com a tradição escolástica portuguesa e modificava os valores da política no Império
2001, p. 18.
5 HESPANHA, António. A Punição e a Graça. In: MATTOSO, José (org). História de
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62 Conflitos, revoltas e insurreições na América Portuguesa
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IV Encontro Internacional de História Colonial 63
12 Ibidem, p. 40.
13 Ibidem.
14 O conceito, utilizado para explicar o costume da Coroa Portuguesa de remunerar os seus
Revolta Mineira de Vila Rica (c.1709-1736). Rio de Janeiro: UFRJ – PPGHIS (Dissertação
de mestrado), 2005, p. 69.
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64 Conflitos, revoltas e insurreições na América Portuguesa
Diante deste cenário, dediquei-me nos últimos anos a estudar a forma que o
Conde de Assumar lidou com as revoltas ocorridas nas minas indo além da repressão
à sedição de 1720 que tanto marcou a sua história e as biografias construídas
posteriormente sobre este personagem. E para surpresa de muitos, mais do que um
oficial defensor do castigo dos inimigos da Coroa e ligado a valores políticos mais
pragmáticos, na maioria destes eventos Assumar demonstrou-se respeitoso dos
costumes de perdoar e de conceder mercês, ainda que em alguns momentos os
questionasse como já demonstraria logo em sua chegada à capitania.
Em sua viagem em direção às minas no ano de 1717, Assumar encontrou-se com
“três homens dos principais da freguesia da Piedade, distante três léguas desta vila a
representar a Excelência as razões, que tinham para não pagar a passagem do Rio
Paraíba”.16 Ciente do expediente violento que tais homens haviam usado para
conseguir tal direito, a saber, “de que eles mesmos tinham vindo com 30 armas
poucos dias antes para obrigar ao Juiz a fazer um termo em que os livrasse de
pagar”,17 o governador rompeu com a tradição de conceder aos anseios dos
potentados locais e de perdoar, principais marcas dos governos de seus antecessores,
e “mandou a João Ferreira, que os prendesse, e os remetesse logo para Parati”.18
Assim como a ação na sedição de 1720, esta atitude se tornou um dos momentos
símbolos para considerar Assumar como um homem fechado à negociação. No
entanto, tal análise esquece-se que “a firmeza de ação e as intenções do Conde de
Assumar, não intimidaria as ações futuras de Pascoal [líder da revolta de 1720] em
Vila Rica, daí a três anos”19 e, principalmente, que o governador cansou-se de ceder
às reivindicações de súditos levantados nas mais diversas regiões da capitania em
outros momentos.
Ao chegar às minas, o Conde de Assumar não tinha jurisdição para punir os
revoltosos sem julgamento justo e o máximo que poderia fazer sumariamente era
prender e encaminhar para julgamento no Rio de Janeiro, como fez no caso da
passagem do Rio Paraíba. Diante desta limitação, o governador, por mais defensor
que fosse do castigo aos súditos rebeldes, optou por conceder perdões à maioria das
revoltas que enfrentou e, mais do que isso, seguiu negociando com os principais
líderes de levantamentos na região como, por exemplo, Manuel Rodrigues Soares,
16 Diário da jornada, que fez o Exmo Senhor D. Pedro desde o Rio de Janeiro athé a cidade.
de São Paulo, e desta athe as Minas anno de 1717. Revista do Serviço do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional, n. 3, p. 295-309. Apud FONSECA, Alexandre Torres. A
Revolta de Felipe dos Santos. In: RESENDE, Maria Efigênia Lage & VILLALTA, Luiz
Carlos (org). História de Minas Gerais: As Minas Setecentistas. Belo Horizonte:
Autêntica/Companhia do Tempo, 2007, p. 554.
17 Ibidem.
18 Ibidem.
19 FONSECA, Alexandre Torres. A Revolta de Felipe dos Santos…
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IV Encontro Internacional de História Colonial 65
20 CAMPOS, Maria Verônica. Governo de mineiros: “de como meter as Minas numa
moenda e beber-lhe o caldo dourado” 1693 a 1737. São Paulo: USP-FFLCH, 2002, p. 175.
21 Ibidem, p. 394.
22 Ibidem.
23 Ibidem.
24 Ibidem.
25 Ibidem.
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66 Conflitos, revoltas e insurreições na América Portuguesa
a partir da “nomeação de Manuel da Costa Fragoso para fazer nova partilha das
lavras e impor a ordem no local” e da emissão de “ordem a Manuel Mosqueira da
Rosa para tirar devassa”.26
Mais uma vez temos diante de nós um cenário que parece configurar a tendência
de Assumar em agir com violência na repressão dos motins ocorridos nas terras
sobre a sua jurisdição, mas, apesar do intuito, a ação do Conde na região não assumiu
caráter violento, não passando de mais uma nomeação de oficial da Coroa para atuar
junto dos potentados.
Curiosa neste momento é a participação de Mosqueira como oficial da repressão.
Um dos responsáveis pela sedição de 1720, o então ouvidor de Vila Rica protelou
enquanto pode a realização da devassa e adotou métodos violentos que não
agradaram ao Conde. A ação de Mosqueira, portanto, o indispôs pela primeira vez
com Assumar que entendeu que a postura do oficial durante a inspeção em Catas
Altas para tirar devassa do motim
26 Ibidem.
27 Para o Tenente General Manuel da Costa Fragoso. APM – SC-11. Cartas, ordens,
despachos, bandos ou editais do Governador das Minas Gerais, p. 69. 05/11/1718.
28 Ibidem.
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IV Encontro Internacional de História Colonial 67
29 Ibidem.
30 Ibidem.
31 AHU – ACL – CU, 005, cx. 10, d. 872. Projeto Resgate Barão do Rio Branco – Avulsos da
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68 Conflitos, revoltas e insurreições na América Portuguesa
foi resolvido apenas com “uma nova ordem para a arrematação das passagens e
ereção de vila no local [e] nomeação de Faustino Rebelo Barbosa para nova
expedição no sertão”.38
A exceção ficou por conta de um motim ocorrido em Vila Nova da Rainha em
dezembro de 1718 liderado pelos “oficiais mecânicos João Barreiros e Frutuoso
Nunes (…) contra o boato de 10% adicional sobre a finta do quinto do ouro (…)
[com] armas fornecidas pelos comparsas de Nunes Viana para os levantados”.39
Naquele espaço em especial, o Conde realizou a “nomeação de Bento Ferraz para
reprimir o movimento [que terminou com a] prisão de líderes e camaristas”.40
A repressão, porém, ficou apenas na prisão dos seus líderes e alguns camaristas
que deram suporte ao movimento. Assumar não ousou extrapolar sua jurisdição e ir
além dessa medida, afinal concedia aos culpados pelo levantamento o direito a um
julgamento justo. Constata-se, portanto, que durante a maior parte do seu período na
capitania, foi o Conde respeitoso das tradições e, principalmente, da sua jurisdição,
mantendo as tradicionais concessões e perdões. Como explicar, no entanto, o
desfecho cruel da revolta ocorrida em Vila Rica apenas um ano e meio depois, se a
chave para o entendimento desta situação não está meramente na personalidade do
Conde que, como visto neste texto, não ousara antes daquele momento modificar as
tradicionais formas de negociação?
A resposta passa por um documento pouco conhecido pela historiografia
brasileira com o qual lidei tanto em minha monografia de conclusão de curso41 como
na minha recente dissertação de mestrado42 e que praticamente obrigava os
governadores espalhados pelo Império Português a rever sua estratégia de ação na
contenção das revoltas que assolavam, principalmente, o Estado do Brasil naquele
período.
Em carta datada de 11 de janeiro de 1719, D. João V mostraria pela primeira vez
disposição em alterar a forma com que os oficiais da Coroa tradicionalmente
resolviam as revoltas ocorridas pelo Império e, principalmente, com a política de
concessões de perdões que vinha sendo pratica pelos governadores do Estado do
Brasil. Alegando “ter mostrado a experiência que a (…) com que em todo esse
Estado costumam os governadores concederem perdões das sublevações, dá
38 Ibidem.
39 Ibidem.
40 Ibidem.
41 CASTRO, João Henrique Ferreira de. Perdão e Castigo na Revolta de Vila Rica.
Perdão e Punição sob a Ótica da Justiça no Império Ultramarino Português. Rio de Janeiro:
UFRJ-PPGHIS (Dissertação de mestrado), 2012.
ISBN 978-85-61586-62-1
IV Encontro Internacional de História Colonial 69
43 Carta de Sua Magestade, escrita ao Governador sobre não poder dar perdoens a nenhum
culpado com se declara. In: Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção de Microfilmes.
Ordens Régias. Nº 6. Flash 4 Documento 3. 11/01/1719.
44 Ibidem.
45 Ibidem.
46 Ibidem.
47 CARTA de Sua Magestade, escrita ao Governador sobre não poder dar perdoens a
nenhum culpado com se declara. BNRJ-SM, I – 12, 03, 021, p. 26. 11/01/1719.
48 Seguem-se as razões que teve o Conde-General para proceder sumariamente ao castigo. In:
SOUZA, Laura de Mello e. Discurso Histórico e Político sobre a sublevação que nas
Minas houve no ano de 1720: Estudo crítico. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro,
Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1994, p. 177.
ISBN 978-85-61586-62-1
70 Conflitos, revoltas e insurreições na América Portuguesa
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IV Encontro Internacional de História Colonial 71
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72 Conflitos, revoltas e insurreições na América Portuguesa
em 1720 reforça ainda mais tal situação, é que Assumar não ousou em momentos
anteriores romper com a cultura política portuguesa e isto fica nítido em outros
contextos de negociação com revoltosos em que o Conde abriu mão de uma punição
mais rigorosa.
A conjuntura específica de Vila Rica em 1720, criada a partir principalmente da
proibição do perdão sem aprovação do rei, no entanto, construiu uma nova realidade
de negociação e abriu brecha para que o Conde pudesse punir seus inimigos, mas
somente se eles não aceitassem o perdão de acordo com as novas regras.
Ao manter o fogo da sublevação aceso, foi justamente este cenário que se
desenhou e que permitiu que o governador agisse diferentemente do que era
costume e punisse as lideranças do movimento. Todavia, e este equívoco foi o que
busquei aqui desconstruir, tal decisão praticamente silenciou os momentos em que o
Conde negociou com rebeldes durante sua passagem pelas Minas e acabou por
construir a imagem que o personagem carregou, e ainda carrega, na posteridade de
um agente pouco afeito à negociação e sempre disposto a punir aqueles que
enfrentassem suas decisões, uma visão reduzida de ações que envolvem, certamente,
uma personalidade muito mais complexa.
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IV Encontro Internacional de História Colonial 73
Introdução
Zahar, 2002.
4 FIGUEIREDO, Luciano. Rebeliões no Brasil Colônia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
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74 Conflitos, revoltas e insurreições na América Portuguesa
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IV Encontro Internacional de História Colonial 75
Como podemos ver no início do Discurso histórico e político sobre a sublevação que houve
no ano de 1720,11 os contemporâneos enxergavam esse clima de instabilidade social.
9 Ibidem.
10 SOUZA, Laura de Melo e. Desclassificados do ouro…, p. 66.
11 Sobre o documento: “O discurso histórico e político sobre a sublevação que nas Minas
houve no ano de 1720 é um texto anônimo e se divide em duas partes principais. A primeira
narra os episódios que envolveram o levante de Vila Rica e a subseqüente execução do
português Felipe dos Santos; a segunda justifica a necessidade da execução, feita sem
julgamento, e a fundamenta quase sempre nas ações e escritos de autores e personagens
históricos do mundo antigo. O texto foi publicado duas vezes: entre 5 e 19 de fevereiro de
1898, no jornal Minas Gerais, órgão oficial do Estado; logo a seguir, pela Imprensa Oficial de
Minas Gerais”. SOUZA, Laura de Mello e. Discurso histórico e político sobre a
sublevação que nas Minas houve no ano de 1720. Belo Horizonte: Fundação João
Pinheiro, 1994, p.13.
12 “O discurso foi escrito com o intuito óbvio de justificar a execução sumária de Felipe dos
Santos, que na qualidade de homem branco e livre, deveria ter sido julgado por uma Junta de
Justiça”´. SOUZA, Laura de Mello e. Discurso histórico e político…, p. 59.
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76 Conflitos, revoltas e insurreições na América Portuguesa
dos Santos sem um julgamento.13 Inclusive esse é um dos elementos que fazem
vários historiadores atribuírem a autoria do documento ao Conde de Assumar ou ao
jesuíta Antonio Correia e ao padre José Mascarenhas, ambos ligados ao
governador.14 Diante dessa visão, colocar os povos das minas como um povo
propenso a rebeliões é conveniente.
Com a maior centralização do poder pela Coroa na primeira metade do século
XVIII os conflitos intensificaram-se na região mineradora.15 Um dos grandes
problemas era a forma de arrecadação de tributos.16 Desde o início a Coroa
enfrentou diversos obstáculos impostos pelos mineradores para achar a melhor
forma de garantir essas rendas. As taxas sobre o ouro sempre foram um ponto de
conflito entre Coroa e mineradores. A sedição de Vila Rica em 1720 foi o resultado
do acúmulo dessas tensões. Antes de nos aprofundarmos nesse evento, se faz
necessário explicar quais eram os impostos e como a cobrança era realizada nessa
região.
Tributos
13“O discurso foi escrito com o intuito óbvio de justificar a execução sumária de Felipe dos Santos, que na
qualidade de homem branco e livre, deveria ter sido julgado por uma Junta de Justiça”. SOUZA, Laura de
Mello e. Discurso histórico e político…
14 A única informação encontrada sobre esses religiosos é que eles viviam junto com Assumar
2005.
17 Esse documento apresentava 62 artigos e foi registrado apenas em 1652. Ao longo do
tempo, diversas cartas régias foram sendo publicadas conforme a necessidade. “Partindo de
um regimento simples, aplicado inicialmente às minas do Sul, a legislação mineira avolumou-
se na medida em que os grandes centros mineiros do Planalto Central começaram a ser
explorados, e por ensaio e erro foi-se adaptando às novas situações”. PINTO, V. N. O ouro
brasileiro e o comércio anglo-português. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1979, p. 59.
Apenas em 1750 houve uma mudança estrutural na arrecadação realizada por Pombal. Cf.
PAULA, João Antônio de Paula. A mineração de Ouro em Minas Gerais no século XVIII.
In: RESENDE, Maria Efigênia Lage de & VILLALTA, Luiz Carlos (Coord.). História das
Minas Gerais. As minas setecentistas. Belo Horizonte: Autêntica, Companhia do Tempo,
vol. 1, 2007.
18 PINTO, V. N. O ouro brasileiro e o comércio anglo-português…
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IV Encontro Internacional de História Colonial 77
19 Nas Minas havia o costume da circulação de ouro em pó. Uma das reclamações dos
sediciosos de Vila Rica em 1720, era a proibição dessa forma do metal pela carta régia de
1719. Essa determinou que: a partir de 1720, todo ouro deveria ser transformado em barras
como o selo da Coroa pelas Casas de Fundição. Cf. Ibidem, p. 46.
20 SOUZA, Laura de Melo e. Desclassificados do ouro…
21 PINTO, V. N. O ouro brasileiro e o comércio anglo-português. …, p. 60
22 Ibidem.
23 “Das diversas modalidades de dízimos no Brasil foram cobrados os dízimos eclesiástico,
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78 Conflitos, revoltas e insurreições na América Portuguesa
religioso,24 aplicado nas Minas, que visava à manutenção das paróquias25. Diferente
do quinto, esses impostos não eram cobrados por funcionários régios, e sim, por
particulares. Esses arrematavam os contratos26 que conferiam o privilégio de cobrança.
Os contratadores possuíam grande liberdade de atuação.27
Mesmo com todo aparato administrativo e fiscal instalado nas Minas, o extravio
de rendas da Coroa era constante.
funcionários régios, mas também dos contratadores na cobrança de impostos. Cf. Ibidem.
28 Participaram ativamente da sedição de Vila Rica, 1720.
29 FONSECA, Alexandre Torres. A Revolta de Felipe dos Santos. In: RESENDE, Maria
Efigênia Lage de; VILLALTA, Luiz Carlos (Coord.). História das Minas Gerais…, p. 556.
30 SOUZA, Laura de Mello e. Discurso histórico e político…
31 FONSECA, Alexandre Torres. A Revolta de Felipe dos Santos. In: RESENDE, Maria
Efigênia Lage de; VILLALTA, Luiz Carlos (Coord.). História das Minas Gerais…, p. 551.
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IV Encontro Internacional de História Colonial 79
Agora que construímos um quadro geral das Minas setecentistas, podemos falar
sobre o palco onde discutiremos as diferentes visões historiográficas sobre o conflito
no Brasil Colonial no século XVIII. Na sedição de Vila Rica poderemos ver por um
lado os interesses dos colonos em manter as regras do jogo colonial e por outro os
potentados locais tentando manter seu poder.32
diversas reivindicações. Pelo “Termo que se fez sobre a proposta do povo de Vila Rica na
ocasião em que veio amotinado a Vila do Carmo”, percebe-se clara insatisfação dos rebelados
em relação ao excesso de impostos e taxas que eram cobrados pelo Rei. (…) Esse “Termo”
apresentava quinze condições para se por fim à rebelião; os rebelados eram contra as Casa de
Fundição; contra os contratos novos; contra o registro de Borda do Campo; defendiam o
controle sobre o processo de aferição; e reclamavam dos abusos de poder do Senado da
Câmara, e do pagamento do aboletamento das companhias de dragões.” FONSECA. A
Revolta de Felipe dos Santos…, p. 558.
34 Cf. SOUZA, Laura de Mello e. Discurso histórico e político…
35 “O nosso Conde nasceu a 29 de setembro de 1688. Era um rapazinho quando foi para a
Catalunha com o pai e guerreou contra Castela dos 16 aos 25 anos. sempre dando mostras de
qualidades de comando nos vários postos que galgou, até o de General de Batalha. Participou
das batalhas de Saragoça e de Vila Viçosa; até o fim da guerra, (…). Comandou a retirada das
tropas portuguesas da Catalunha, (…). Para os Assumar. como para Portugal, o resultado da
guerra foi desastroso. Os seus bens de morgadio tiveram de ser hipotecados a fim de honrar
as dívidas contraídas durante oito anos de permanência no estrangeiro . Talvez para remediar
tal situação, o Conde se casa, pouco tempo depois de voltar da campanha, com D. Maria José
Nazaré de Lencastre, filha do quarto conde de Vila Nova de Portimão. Do casamento,
celebrado na freguesia de Santos-o-Velho (29/2/1715), nasceriam 11 filhos, dos quais 3
morreram pequeninos. Quando partiu para Minas em 1717. Procurando talvez alívio para as
dificuldades financeiras (recebia 10 mil cruzados de ordenado), deixou a mulher e um menino
pequeno, o segundo, que não tornaria a ver, pois morreu logo depois”. SOUZA, Laura de
Mello e. Discurso histórico e político…, p. 29-30. Cf. Ibidem, p. 57.
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80 Conflitos, revoltas e insurreições na América Portuguesa
36 “Pascoal da Silva Guimarães – O principal chefe do levante de 1720 em Vila Rica. Viera
pobre de Portugal, lendo sido caixeiro no rio e passado as minas como mascate. Minerou em
Ouro Preto, onde introduziu o método de conduzir “as águas em regos para se desbancar a
terra vegetal e os montes a talho aberto” (VASCONCELOS, Diogo de. História antiga de
minas gerais. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1904, p. 173-174). Passou depois a minerar
em Antônio Dias, indispondo-se com os paulistas e se firmando como liderança entre os
portugueses; teve papel importante na “guerra dos emboabas”, quando armou 2 mil homens
para Manuel Nunes Viana. Ocupou postos importantes sob os governos de Antonio de
Albuquerque Coelho de Carvalho e D. Brás Baltasar da Silveira. Após o levante, foi remetido
preso para Lisboa , onde moveu processo de responsabilidade contra o Conde de Assumar”.
SOUZA, Laura de Mello e. Discurso histórico e político…, p. 66. (nota de rodapé escrita
por Laura de Mello e Souza).
37 Ex-ouvidor da Capitania. Cf. FONSECA, Alexandre Torres. A Revolta de Felipe dos
Santos. In: RESENDE, Maria Efigênia Lage de; VILLALTA, Luiz Carlos (Coord.). História
das Minas Gerais…
38 Apesar de ser colocado como grande líder da sedição de 1720, estudos mais recentes
mostram que Felipe dos Santos agiu a mando de Pascoal da Silva Guimarães. Cf. Ibidem.
39 SOUZA, Laura de Mello e. Discurso histórico e político…, p. 228.
40 Cf. nota de rodapé 58.
41 Cf. Ibidem, p. 63.
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IV Encontro Internacional de História Colonial 81
homens suficientes, Assumar resolveu escrever uma carta a Câmara dizendo que se a
ordem fosse restabelecida, atenderia às reivindicações dos amotinados e concederia o
perdão.42 Entretanto, Pascoal possuía outras intenções.
42 Ibidem.
43 FONSECA, Alexandre Torres. A Revolta de Felipe dos Santos. In: RESENDE, Maria
Efigênia Lage de; VILLALTA, Luiz Carlos (Coord.). História das Minas Gerais…, p. 561.
44 Ibidem.
45 Ibidem.
46 SOUZA, Laura de Mello e. Discurso histórico e político…, p. 131.
47 Ibidem.
48 “Esta informação é de extrema importância, pois permite inferir que, de fato, o Conde
caíra em um certo ostracismo quando voltou a Corte, (…) Todo administrador colonial
deveria apresentar declaração de bens ao deixar o posto – era a chamada “residência” – e tê-
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82 Conflitos, revoltas e insurreições na América Portuguesa
Ao longo do século XVIII, o governo do conde serviu como exemplo para os outros
governadores das Minas do Ouro.49
las julgadas; tal não poderia acontecer, entretanto, caso houvesse devassa ou processo contra
o governante: a tradição reza e tal evidência corrobora que era este o caso de Assumar,
processado em Lisboa devido à queima de suas casas no Morro do Ouro Podre.” SOUZA,
Laura de Mello e. Discurso histórico e político…, p. 32.
49 Cf. FURTADO, João Pinto. “Viva o rei, viva o povo, e morra o governador”: tensão
política e práticas de governo nas Minas Setecentistas. In: BICALHO, Maria Fernanda
Baptista & FERLINI, Vera Lúcia Amaral (Coord.). Modos de governar….
50 FIGUEIREDO, Luciano. Rebeliões no Brasil Colônia…, p. 7-8.
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IV Encontro Internacional de História Colonial 83
51Ibidem, p. 56-57.
52FURTADO, João Pinto. “Viva o rei, viva o povo, e morra o governador”: tensão política e
práticas de governo nas Minas Setecentistas. In: BICALHO, Maria Fernanda Baptista;
FERLINI, Vera Lúcia Amaral (Coord.). Modos de governar…, 2005.
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84 Conflitos, revoltas e insurreições na América Portuguesa
Laura de Mello e Souza escreveu diversos trabalhos sobre o conflito nas Minas.
No livro Desclassificados do Ouro55 a autora buscou mostrar, com base em diversos
documentos como correspondências entre autoridades e escritos de viajantes, o
pobre livre dentro da sociedade mineradora. No terceiro capítulo, intitulado Redes de
poder, Souza baseia-se nas visões de Raymundo Faoro e Caio Prado Júnior para
reconstruir a atuação do Estado português nas minas setecentistas.56 Para a autora, os
governantes usavam tanto a negociação quanto a violência para submeter os colonos
às necessidades da Coroa.
53Ibidem, p. 408-409.
54Cf. ANASTASIA, C. M. J. Vassalos Rebeldes…
55 SOUZA, Laura de Mello e. O sol e a sombra: política e administração na América
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IV Encontro Internacional de História Colonial 85
Nessa visão a negociação não era uma estratégia dos colonos, e sim dos
governantes. Quando os funcionários régios não conseguem conter os colonos com
a negociação, usavam a violência.
Já no livro O sol e a sombra,58 Laura de Mello e Souza usou a metáfora do padre
Antonio Vieira, para explicar a relação de poder entre rei e funcionários régios.59 A
autora procurou evidenciar como a distância do monarca influenciou na forma como
seu poder foi exercido na colônia pelos funcionários régios. Ao definir os objetivos
do livro, Souza coloca,
o rei quando está no centro do reino tem seu poder aumentado sobre os funcionários que
têm o papel de representá-lo junto aos súditos. Mas uma vez distantes desse centro, no ocaso
e no nascente, como o sol que alonga sua sombra, nos distantes cantos do império português,
especialmente no além mar - nas colônias do oriente e do ocidente -, o mesmo ocorre com o
rei. Este vê seu poder interposto por tantos e tão poderosos agentes, que impõem seus
interesses de natureza privada e chegam, muitas vezes, a inverter a vontade de quem lhes
revestira o poder. É esse império de sombras longas que esse livro se propõe a desvendar.”
FURTADO, Júnia Ferreira. Resenha de SOUZA & Laura de Mello e. O sol e a sombra:
política e administração na América portuguesa do século XVIII. Almanack Braziliense
[online], n. 5, 2007, p. 137-139.
60 SOUZA, Laura de Mello e. O sol e a sombra …, p. 13-14.
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86 Conflitos, revoltas e insurreições na América Portuguesa
61“Nas colônias ressoaria o eco dessa ideologia, validada para outros níveis de governo.
Nunca mais governantes puderam dispor de poderes sem respeitar as autonomias locais ou os
direitos dos súditos”. FIGUEIREDO, Luciano. Tradições Radicais: aspectos da cultura
política mineira setecentista. In: RESENDE, Maria Efigênia Lage de & VILLALTA, Luiz
Carlos (Coord.). História das Minas Gerais…, vol. 1, 2007, p. 254.
62 Ibidem, p. 256.
63 “Tratava-se, aí se vê, de súditos sensíveis a excessos da fiscalidade régia, mas fiéis a seu
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IV Encontro Internacional de História Colonial 87
de outra Coroa presente nos discursos das autoridades coloniais e dos agentes metropolitanos
quando se referem às rebeliões de grande vulto, conduze ao paroxismo o perigo atribuído a
esses movimentos.” FIGUEIREDO, L. Tradições Radicais. In: RESENDE, Maria Efigênia
Lage de; VILLALTA, Luiz Carlos (Coord.). História das Minas Gerais…, p. 263.
66 FIGUEIREDO, Luciano. Tradições Radicais: aspectos da cultura política mineira
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88 Conflitos, revoltas e insurreições na América Portuguesa
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IV Encontro Internacional de História Colonial 89
ser tratados dessa maneira. Além disso, existia a imagem do rei traído. Esse não era
responsabilizado pela maior cobrança de tributos, pois não fazia parte do caráter do
soberano.70 O rei era justo. Os funcionários régios é que exerciam o poder do rei de
forma tirânica porque, devido à distância, o soberano não conseguia controlá-los. Na
sedição de Vila Rica isso fica claro. Segundo Luciano Figueiredo, isso fica claro nas
queixa e também nos gritos proferidos durante as manifestações que glorificavam o
rei e reclamavam dos funcionários régios. Outro exemplo é a atuação dos potentados
locais. Esses aproveitaram a oportunidade, não para romper com a Coroa, e sim,
para substituir ouvidor de Vila Rica e o Conde de Assumar.
A repressão do movimento também é uma questão importante. A dificuldade de
comunicação com o Reino e a distância71 contribuíram para a atitude do Conde de
condenar e enforcar Felipe dos Santos sem um julgamento justo. As ordens régias
não conseguiam suprir as necessidades do cotidiano mineiro, conferindo aos
funcionários régios liberdade para atuarem a sua maneira.
Carla Anastasia, no livro Vassalos Rebeldes, possui um capítulo dedicado a Rebelião
de Vila Rica. Utilizando sua tipologia, a autora classifica a revolta como hibrida.
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90 Conflitos, revoltas e insurreições na América Portuguesa
Conclusão
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IV Encontro Internacional de História Colonial 91
Questões iniciais
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92 Conflitos, revoltas e insurreições na América Portuguesa
Considerações teóricas
3 GREEN, Jack P. & BUSCHNELL, Amy T. Peripheries, centers, and the Construction of
Early Modern American Empires. In: DANIELS, Christine & KENNEDY, M. (ed.)
Negotiated Empires. Centers and Peripheries in the Americas, 1500-1820. New York &
London: Routledge, 2002.
4 SHILS, Edward apud Ibidem, p. 3-4.
5 WALLERSTEIN, Immanuel apud Ibidem, p. 4-5.
6 Ibidem, p. 5.
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IV Encontro Internacional de História Colonial 93
7 Ibidem, p. 6.
8 Ibidem, p. 6.
9 Ibidem, p. 9-10.
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94 Conflitos, revoltas e insurreições na América Portuguesa
10 FLORY, Rae & SMITH, David Grant. Bahian Merchants and Planters in the Seventeenth
and Early Eighteenth Centuries. Hispanic American Historical Review, vol. 58, n. 4,
1978, p. 571-594.
11 Dados retirados a partir de RIBEIRO Jr., José. Colonização e monopólio no nordeste
brasileiro. São Paulo: HUCITEC, 2004; VERGER, Pierre. Fluxo e refluxo do tráfico de
escravos entre o Golfo do Benin e a Bahia de Todos os Santos. São Paulo: Corrupio,
1987.
12 Para um exame do papel dos cristãos novos nas companhias de comércio do Império Português
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IV Encontro Internacional de História Colonial 95
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96 Conflitos, revoltas e insurreições na América Portuguesa
da Costa da Mina.13
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IV Encontro Internacional de História Colonial 97
Para melhor entender a relação entre estas duas ricas regiões no Império, cabe
a análise de dois excertos documentais, ambos constituindo um diálogo por cartas
entre a Direção de Pernambuco e a metrópole portuguesa. O primeiro trecho
consiste em uma sugestão de Lisboa, em 24/11/1759, para que, por meio da
contratação de um especialista baiano em lavoura de tabaco, a Companhia
Pernambuco e Paraíba aprendesse a desenvolver tal cultura e, por conseguinte,
inserir-se no tráfico com a costa africana.15 O mais interessante do discurso
metropolitano é o reconhecimento, ao final, de que, de fato, os comerciantes
baianos já levam grande vantagem na produção do tabaco e, consequentemente,
no tráfico negreiro:16
O negocio da Costa de Africa em quanto deve ser feito com os generos e
produçoens deste Paiz, hão de dirigir V.M. com sua costumada prudencia,
como quem tem prezentes todas as circunstancias delle; e nos darão parte do que
obrarem com individuação, dos Navios que ocupão no dito negócio, do importe
das carregaçoens, e deu producto, e o mais que julgarem nos pode servir para o
governo a respeito de quaesquer determinações que nos ocorrão.
Offerece-nos por hora recomendar a V.M. que fação particular estudo em ver
os generos que se podem milhor adaotar a o dito negocio de Africa, e em fazer
experiencia de preparar o tabaco pelo modo que ali mais se estima.
Para este fim parece muito necessario que V.M. procurem por conta da
Companhia hum Mestre os milhores da Bahia, a quem fação a convenience que
bastar para que effectivamente se rezolva a passar a esse Recife, a preparar, e
ensinar a preparar o dito genetro, do mesmo modo que se prepara na Bahia. E
parece-nos desnecessario declarar, que se nisto houver algum segredo ignorado
pelos estranhos, o devem resguardar V.M com o maior ciume, seguindo nesta parte
aquella politica, em que os mesmos estranhos nos levão muita ventagem.
A resposta colonial, datada de 30 de junho de 1760, é reveladora, pois, além de
argumentar que já haviam sido feitos estudos na tentativa de adaptar o cultivo do
tabaco em Pernambuco explicita a importância de dispor de tabaco para venda: a
desigualdade comercial na compra de escravos graças ao predomínio baiano na
compra de escravos Mina. O documento revela também que os administradores da
Companhia Pernambuco constatavam haver limitações de solo e de clima ao
sucesso do tabaco fora da Bahia. Ao final, sugerem a regulamentação metropolitana
do comércio entre mercadores baianos e africanos, ingleses e holandeses na Costa
da Mina. A longa citação revela que os planos dos diretores da Companhia, em
15Os grifos em ambos são meus. A escrita por parcialmente adaptada pela facilitar a leitura.
16 Documento n. 2. In: SARAIVA, José M. da Cunha. Companhia Geral de
Pernambuco e Paraíba. Lisboa: Publicações do Arquivo Histórico do Ministério das
Finanças, 1971, p. 20.
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98 Conflitos, revoltas e insurreições na América Portuguesa
17 Documento Nº 4. Ibidem, p. 36
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IV Encontro Internacional de História Colonial 99
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100 Conflitos, revoltas e insurreições na América Portuguesa
Considerações finais
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IV Encontro Internacional de História Colonial 101
Introdução
1 Mestranda em História Social pela Universidade Federal Fluminense – UFF – RJ. Este texto
lhes fazer mercê e em memoria dos muitos e honrados serviços que Salvador Corrêa de Sá e
Benevides tem feito a ésta Corôa hei por bem e me apras de fazer mercê ao dito Visconde de
Asseca. Carta de confirmação da doação ao Visconde de Asseca. Transcrita em FEYDIT,
Julio. Subsídios para a História dos Campos dos Goitacazes: desde os tempos coloniais
até a proclamação da república. Rio de Janeiro: Editora Esquilo, 1979, p. 52.
3 Ibidem.
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102 Conflitos, revoltas e insurreições na América Portuguesa
Delineando um conflito
4 O termo principal, muitas vezes atrelado aos membros desta família, segundo Evaldo Cabral
de Mello, “denotava riqueza, afluência, e posse de grandes cabedais”. Ao mesmo tempo era
relacionado aos indivíduos que detinham “uma parcela do poder político”. MELLO, Evaldo
Cabral de. Rubro Veio. O imaginário da restauração pernambucana. Rio de Janeiro:
Topbooks, 1997, p. 160-162.
5 LAMEGO, Alberto. A Terra Goytacá: à luz de documentos inéditos. Paris: L’édition d’art
Arquivo Histórico Ultramarino. In: LAMEGO, Alberto. A terra Goytacá…, tomo II, p. 342.
7 (…) dando nós a dita resposta ao dito Manoel Manhães, tambem lhe dissemos: que não
despachava-mos mais couza alguma e mandava-mos ordem para que se retirassem para sua
casa socegadamente, que ao seu tempo tudo se havia de deferir. E logo ao mesmo tempos
entraram pela porta da casa da Camara um borbotão de homens e mulheres requerendo-nos
que não querião ao Donatario o Exmº Visconde de Asseca, e que lhe mandassem-mos
despejar logo fora dessas terras ao dito procurador. Livro de registros da Câmara da Parahyba
do Sul. 16 de julho de 1749. In: FEYDIT, Julio. Subsídios para a História dos Campos
dos Goitacazes…, p. 190.
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IV Encontro Internacional de História Colonial 103
que expõem as suas queixas contra o Donatário e os procuradores e officiais de justiça por
ele nomeados – 1750. Anais da Biblioteca Nacional, vol. 50, 1928, p. 145.
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104 Conflitos, revoltas e insurreições na América Portuguesa
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2009, p. 189-190.
19 FARGE, A. Agitadoras notórias. In: PERROT, Michelle & DUBY, Georges
(orgs.). História das mulheres no ocidente. Porto: Afrontamento; São Paulo: Ebradil,
1991, vol. 3, p. 569.
20 Ibidem, p. 559.
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106 Conflitos, revoltas e insurreições na América Portuguesa
que estes espaços não sejam as principais formas de atuação política feminina, em
diversos momentos, estas estão presente.
A articulação feminina nas contestações em Portugal segundo Margarida Sobral
Neto ocorreu tanto no mundo urbano como no rural, a autora afirma que essas
mulheres se envolviam nos conflitos sociais principalmente em casos de injustiças
que afetavam os interesses de sua comunidade.21
Esses estudos realizados para a Europa nos permitem perceber como a presença
feminina nos motins ocorria por motivos e em momentos diversos, contudo, no que
respeita às revoltas no período colonial brasileiro, relacionadas ao universo feminino,
percebemos certo silêncio historiográfico interrompido por poucos trabalhos na
área. Em recente estudo Alexandre Rodrigues procurou mapear a presença feminina
nos motins do sertão, durante a revolta de 1736, através do caso de D. Maria da
Cruz. Ao estudar a trajetória desta personagem e de sua família, nos protestos
ocorridos na região sertaneja de Minas Gerais, nos dá outro exemplo como é
possível encontrarmos a participação e articulação feminina em momentos de
necessidade.
Sendo assim percebemos como que Benta Pereira e sua filha Marianna, cumprem
o papel que lhes era esperado em momentos de crise. A participação destas no
levante da Capitania da Parahyba do Sul, pode servir de base para entendermos
como em determinados momentos as mulheres conseguem se destacar por seus
trabalhos e sua atuação em diversos âmbitos da sociedade, deslocando-se dos
espaços domésticos e indo de encontro com os ambientes públicos e tipicamente
masculinos.
Conclusão
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A primeira, a saber, diz respeito ao isolamento dos Braganças em Vila Viçosa. Para alguns
historiadores, como Eduardo d´Oliveira França na obra “Portugal na Época da Restauração”,
os Bragança viviam em Vila Viçosa isolados, constituindo uma corte de aldeia e longe de
qualquer envolvimento com a política filipina. Essas ponderações vem sendo revisadas e
rebatidas por novos estudos como a bibliografia de D. João IV feita por Leonor Costa Freire
e Mafalda Soares da Cunha. Cf. FRANÇA, Eduardo D’ Oliveira. Portugal na época da
Restauração. São Paulo: HUCITEC, 1997; COSTA, Leonor Freire & CUNHA, Mafalda
Soares da. D. João IV. Lisboa: Circulo de Leitores, 2006; ALVARES, Fernando Bouza.
Portugal no tempo dos Filipes: Política, cultura e representações. Lisboa: Cosmo, 2000.
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4 Compreende-se aqui a segunda nobreza no sentido desenvolvido por Enrique Mesa, para a
divisão da nobreza em alta, média e baixa em Espanha, mas que também é valido para
Portugal. MESA, Enrique Soria. La nobleza en La España moderna: cambio y
continuidad. Madrid: Marcial Pons Historia, 2007, p. 41. Rafael Valadares também usa o
termo média nobreza, mas não cunha nenhuma definição para esse grupo. VALLADARES,
Rafael. Independência de Portugal: guerra e restauração, 1640-1680. Trad. Pedro Cardim.
Lisboa: A Esfera do Livro, 2006.
5 Cf. WAGNER, Mafalda de Noronha. A Casa de Vila Real e a conspiração de 1641
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110 Conflitos, revoltas e insurreições na América Portuguesa
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IV Encontro Internacional de História Colonial 111
Nuno Gonçalo F. Monteiro, que conta com a colaboração de Pedro Cardim, Mafalda Soares
da Cunha e Fernando Dores da Costa. Desse projeto resultou o livro Optima Pars: Elites
Ibero-Americanas do Antigo Regime, onde se encontra o artigo A diplomacia portuguesa no
Antigo Regime: perfil sociológico e trajectórias, lugar de onde se retiram os dados e tabelas
transcritos neste trabalho. Cf. MONTEIRO, Nuno G. F.; CARDIM, Pedro & CUNHA,
Mafalda Soares da. (orgs). Optima Pars …
11 CARDIM, Pedro; MONTEIRO, Nuno G. F. & FELISMINO, David. A diplomacia
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112 Conflitos, revoltas e insurreições na América Portuguesa
23,91%
Cânones 6 5 6 1 4 22
43,48%
Civil 13 10 6 4 7 40
28,26%
Outros 3 2 4 1 15 26
100%
Total 26 17 16 7 26 92
Percentagem
50,98
de indivíduos 47,22% 45,71% 25% 26,26% 36,95%
%
licenciados
Fonte: CARDIM, Pedro; MONTEIRO, Nuno G. F. & FELISMINO, David. A diplomacia
portuguesa no Antigo Regime, p. 324.
Por sua vez a formação do corpo diplomático passa por duas premissas
norteadoras no seu desenvolvimento. A primeira remete à ideia que amadureceu ao
longo do século XVII, na qual o Rei devia cada vez mais permanecer na corte, no
reino, delegando a outros o papel de serem seus representantes diante das cortes,
estrangeiras ou até mesmo nas localidades mais remotas do reino. Assim, por mais
inclinado que o rei fosse a fazer viagens, esse devia permanecer na corte, no centro
do poder, ausentando-se somente em caso de guerra, se necessário.14
Ao assumir o papel de representante do soberano de seu país, o diplomata torna-
se o reflexo do monarca, o que parece óbvio, mas necessário de ser expresso, na
medida em que passa a tomar posições anteriormente somente ocupadas pelo seu rei
ao lado dos soberanos estrangeiros nas negociações e em eventos sociais como
jantares, procissões, funerais. Logo, os embaixadores deviam não apenas ser
reconhecidos como tais pelo rei do país onde iriam servir,15 como também serem
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anunciados e realizar sua entrada na corte com toda a pompa e circunstância exigidas
pela etiqueta local.
A segunda premissa era a habilidade para tratar de negócios junto aos reis e cortes
estrangeiras que implicava, sobretudo na primeira metade do século XVII, em
conhecer as leis e normas internacionais que regiam os acordos entre as nações. O
que não passa necessariamente por uma formação acadêmica, como é o caso de
Francisco de Sousa Coutinho. Com a família ligada à Casa de Bragança, desde os
tempos de Vila Viçosa, à qual vai servir desde os tempos de ducado D. João IV,
primeiro como representante na corte espanhola e depois, 1641, como embaixador
na Suécia, tornando-se um dos mais importantes embaixadores da nova dinastia.16
Em Portugal pesava também na escolha dos legados o tamanho e disponibilidade
das fazendas pessoais, as quais muitas vezes os adidos eram obrigados a recorrer,
dada a crise econômica que assolava o reino. Isso pode ser a causa para que nos
primeiros anos da Restauração a maioria dos diplomatas fosse de representantes da
alta e media nobreza do reino. Os custos de algumas embaixadas, como a de Roma,
eram tão elevados que “os fluxos financeiros registrados em correspondência
diplomática mal reconstituem os custos desta representação”.17 A diversidade de
despesa era tamanha que muitas vezes nem mesmo recorrer às finanças pessoais
resolvia os problemas econômicos, como relata Sousa Macedo, embaixador em
Londres, diante dos elevados custos gerados pelo pagamento dos soldados
portugueses desertores das armas de Filipe IV, em Flandes.18
O estudo da diplomacia em Portugal esbarra em algumas questões práticas e
conceituais, sobretudo no período entre 1640-1668, dado o contexto de
reorganização do reino e das instituições. De certo modo, somente com o Marquês
de Pombal no século XVIII Portugal passa a ter uma chancelaria centralizadora de
toda a ação diplomática; antes disso, a coordenação das missões ficava a cargo de
outras jurisdições como, por exemplo, a Secretaria de Estado, no período entre 1643-
1736.19
As principais dificuldades encontradas para desenvolver um estudo sobre a
diplomacia portuguesa são referentes à conceitualização dos cargos com suas
16 CUNHA, Mafalda Soares da & FREIRE, Leonor da Costa. D. João IV…, p. 172-173.
17 Ibidem, p. 172
18 Ibidem, p. 172. Segundo Edgar Prestage, alguns dos representantes do rei no exterior
tiveram suas economias pessoais perdidas com as elevadas despesas das missões.
PRESTAGE, Edgar. Ministros portugueses nas cortes estrangeiras no reinado de D. João IV
e a sua correspondência. Revista de História, 4° volume, 1915, p. 219.
19 SAMPAYO, Luiz Texeira de. O Arquivo histórico do Ministério dos Negócios
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hierarquias, que advêm justamente do caráter recebido pelo enviado.20 O que remete
às diversas listas de diplomatas elaboradas por historiadores ao longo do tempo em
Portugal e implica em um segundo problema. O terceiro diz respeito à função que
cada caráter devia exercer e seus direitos.
Será abordada, primeiramente, a questão das listas de diplomatas de Portugal. De
um modo geral, a variação entre elas é pequena, mas significativa para determinar
algumas questões relativas às representações e caráter assumidas na medida em que
boa parte da documentação se perdeu com o terremoto de 1775, ou mesmo pela
falta de organização, como lembra Luis T. Sampayo,21 que, com base nos arquivos
do Ministério das Relações Exteriores e na obra do Conde da Ericeira, elabora uma
lista dos representantes de Portugal nas mais diversas nações no período entre 1640-
1834, balizando as missões no tempo, localização e caráter.
Inúmeras listagens sobre os legados portugueses foram elaboradas sendo que
poucas trazem consigo indicação das bases de dados ou arquivos percorridos. As
mais relevantes, no sentido de possuírem uma pesquisa documental, são as
elaboradas por Edgar Prestage, para o período de 1640-1668, a de Luis Teixeira
Sampayo, dez anos posterior à de Prestage, e a de Eduardo Brazão. Anteriormente a
esses trabalhos, elaborados no século XX, encontra-se alguns inventários sobre os
diplomatas portugueses, a exemplo da Bibliotheca de Diogo Barbosa Machado, que
apresenta em meio “dos índices os literatos que possuíam ‘a dignidade de
Embaixadores’” e o” Memorial de Ministros”, escrito pelo Frei Luís de Bento, onde
se encontra o” Cathalogo dos […] que tem sido Embaixadores, Enviados e
Secretários de Embaixadas”.22
Para a elaboração do seu índice, Edgar Prestage utilizou-se de documentos, que
não indica com precisão quais são, e dos trabalhos do Visconde de Santarém23 e do
Conde da Ericeira. Mas não deixa de reconhecer possíveis falhas e lacunas no estudo
que faz.24 Sampayo baliza seu trabalho em cima da documentação do Ministério dos
Negócios Estrangeiros e em alguns outros autores não nomeados, como bem lembra
IV e a sua correspondência…
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30 Ibidem, p. 6-7.
31 Ibidem, p. 14.
32 Ibidem, p. 12.
33 CLUNY, Isabel. O conde de Tarouca e a diplomacia na Época Moderna…, p. 43.
Pedro Cardim afirma que no mundo ibérico muito se valorizou a diplomacia, e o cargo de
embaixador era equivalente às mais elevadas colocações de governo da Coroa. Cf. CARDIM,
Pedro. Embaixadores e representantes diplomáticos da coroa portuguesa no século XVII.
Cultura: revista de História e Teoria das Idéias, IIª série, volume XV, 2002, p. 49.
34 Ibidem, p. 55.
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IV Encontro Internacional de História Colonial 117
35Ibidem, p. 43.
36MACHADO, Diogo Barbosa. Biblioteca lusitana. Lisboa, tomo II, 1933, p. 247-248 e
VALLADARES, Rafael. Independência de Portugal: guerra e restauração, 1640-1680.
Trad. Pedro Cardim. Lisboa: A Esfera do Livro, 2006, p. 244.
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