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filosofia antiga, mas cujas questões abordadas por ambos são absolutamente
contemporâneas. Enquanto o trabalho de James Arêas trata da verdade no
horizonte do pensamento arcaico e do contexto oral da sua enunciação, verda-
de concebida como uma potência religiosa que se faz presente ou é evocada
pela fala instauradora de um rei, de um sacerdote ou de um poeta, o ensaio
de Alberto Pucheu busca desfazer as caricaturas habituais criadas diante do
Íon, por meio de uma leitura de Platão como poeta e também filósofo.
Algumas das questões que envolvem a Comunicação estão presentes nos
próximos quatro textos. O texto de Potiguara Mendes da Silveira Jr. apresen-
ta o paradigma de “Transformática” como o mais apto, no campo dos estudos
da Comunicação, a um entendimento adequado das ocorrências do século
XXI, também chamado de “Era das próteses”. O trabalho de Ivana Barreto
analisa a relação, cada vez mais próxima, que a escritora Clarice Lispector
estabeleceu com seu público leitor por meio da coluna semanal que assinou
no Jornal do Brasil entre os anos de 1967 e 1973. Em seguida, João Gustavo
Vieira Velloso faz considerações sobre a teoria de comunicação de quatro está-
gios de Stuart Hall, a partir dos escritos de Pierre Bourdieu acerca dos dife-
rentes campos sociais. O trabalho de Velloso é desenvolvido a partir de dados
documentais e etnográficos de manifestações do campo midiático, jurídico e
político sobre um mesmo caso. Para encerrar este bloco de textos, publica-
mos um trabalho assinado por Rosane Araujo sobre como a disseminação
global dos efeitos das transformações decorrentes do desenvolvimento acele-
rado dos meios de comunicação, dos transportes e da informática vem exigin-
do uma redefinição do campo do urbanismo e do conceito de cidade.
Psicologia Social e Educação são os temas dos dois próximos trabalhos. O
texto de Marcos Alexandre aborda o conceito de representação social a partir
da idéia da “representação coletiva”, desenvolvida por Durkheim, apresentan-
do um breve histórico da teoria, sua importância e abrangência no universo da
Psicologia Social. O artigo de Catia Veloso discute as contribuições da família
e da escola para que uma pessoa se torne um ser autônomo, autor, responsá-
vel por seus atos de uma forma ética, comprometida e solidária.
Para fechar este número da revista não podíamos deixar de publicar o de-
poimento de Nuno Velloso colhido por Roberto M. Moura no âmbito do
fechamento da tese de doutorado defendida por Moura, sobre a roda de sam-
ba, na UNIRIO. E, quem é Nuno Velloso? É simplesmente o seguinte:
cearense, sambista, filho adotivo de Cartola e Zica, doutor em filosofia pela
Frein Universitat Berlin – Osteurope Institute sob orientação de Herbert
Marcuse, ex-professor da ECO-UFRJ, ex-presidente da Ala de Composito-
res da Mangueira e professor da Escola Superior de Guerra.
Alberto Pucheu
Poeta e professor de Teoria Literária da UFRJ.
Ivana Barreto
Mestre em Literatura Brasileira pela UFRJ, doutora em Literatura Brasilei-
ra pela PUC-Rio, professora da UERJ e da Universidade Estácio de Sá.
Marcos Alexandre
Mestre em Psicologia, jornalista, assessor de imprensa e professor titular na FACHA.
Catia Veloso
Mestre em Educação pelo ISEP e professora da Facha.
Roberto M. Moura
Mestre em Comunicação e Cultura pela ECO-UFRJ, doutor em Música
pela UNIRIO e professor adjunto da FACHA.
05A imagem arcaica da verdade e as vozes do delírio
James Arêas
63Estudos da Comunicação:
um paradigma para o século XXI
Potiguara Mendes da Silveira Jr.
78Clarice Lispector:
bem perto do coração selvagem da vida
Ivana Barreto
103
A cidade sou eu
Rosane Araujo
122
Representação Social:
uma genealogia do conceito
Marcos Alexandre
139
Tudo o que seu mestre mandar faremos todos....
Catia Veloso
149
Nuno Velloso
Roberto M. Moura
Expediente
Conselho Editorial:
Carlos Deane, Drauzio Gonzaga, Fernando Sá, José Guilherme de Azevedo
Leite, Nailton de Agostinho Maia, Noéli Correia de Melo Sobrinho, Rosângela
de A. Ainbinder.
FACHA
Rua Muniz Barreto, 51 – Botafogo – RJ – Tel./FAX: (021) 2553-0405
E-mail: [email protected]
Diretor Geral: Hélio Alonso
2004
Semestral
156 Páginas
CDD 001.501
A imagem arcaica da verdade
e as vozes do delírio
James Arêas
Consta que a fala é mais antiga que a escritura e que sua fun-
ção arcaica de verdade está estreitamente vinculada à eficácia
religiosa e à realização ritual. A primeira função da fala é uma
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função de realização. Os nomes são forças antes de se torna-
rem palavras e de significarem coisas. A verdade designa, com
efeito, na origem uma potência inseparável das funções soci-
ais, sacerdotais e reais, da autoridade e da soberania.2
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A palavra de verdade, qualquer que seja a forma que venha a assumir na
justiça, na poesia ou na mântica, é sempre do tipo mágico-religioso.
A palavra designa, no contexto do pensamento arcaico, uma ação que
intervém diretamente sobre o real, uma potência de realização. Uma vez
articulada, ela faz brotar as forças que estruturam o mundo físico. Sua
enunciação é, antes de tudo, um comportamento social destinado a modi-
ficar a relação entre aquele fala e aquele que ouve, de modo a demonstrar
a superioridade do primeiro sobre o segundo. A superioridade ou dife-
rença hierárquica do falante sobre o ouvinte decorre da força executória
de seu verbo.
Desse modo a palavra de verdade se caracteriza por ser uma enunciação
“na medida em que tem valor ilocucionário, ‘dá-se’, ‘apresenta-se’, como
fonte de direitos e deveres, ou ainda ‘pretende’ ter esse efeito”.4 Qual-
quer que seja a modalidade de sua enunciação, a palavra de verdade vale
sempre pelo caráter gestual e evocativo, pela situação concreta ou pela
realidade que ela instaura. A palavra, enquanto enunciação, constitui um
espaço de realidade que ela exprime, é uma potência orientada para o
real. É ela que instaura ou realiza a própria realidade, apresenta-a ou
exibe-a sem hesitação.
A palavra de verdade é, com efeito, concebida a partir de sua relação
fundamental com o conjunto de valores simbólicos e religiosos. É uma
potência que age sobre a natureza (physis), mas também sobre o outro.
Enquanto manifestação da verdade, a palavra eficaz não pode ser preteri-
da ou desprezada: é ela que funda o vínculo contratual no direito, corro-
bora a fé na voz oracular ou assegura a distinção no elogio do poeta. O
poder sobre o outro está fundado na transcendência que ela implica.
Aquilo que a palavra de verdade comunica é da ordem de um absoluto,
que ultrapassa o homem comum e se furta à temporalidade ordinária.
Enquanto expressão de visão mágico-religiosa do mundo essa palavra
sem tempo se funda a partir de si mesma – ela habita a esfera do incon-
testável e independe do assentimento ou da aprovação de outros ho-
mens. Ela é, a rigor, manifestação ou demonstração de força. Intempestiva,
irracional, a palavra de verdade supõe a transparência da realidade em
sua enunciação, um plano único de expressividade.
A essa duplicidade de funções, deverá corresponder toda a posterior
problematização de pensamento arcaico. Assim, ao lado da pesquisa filo-
sófica acerca das relações entre a palavra e a realidade desenvolver-se-á,
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igualmente, uma reflexão sobre a palavra tomada como um instrumento
que permite agir sobre os outros. Ao lado da problematização platônica
das relações da palavra como verdade, encontrar-se-á o aprimoramento
das técnicas que permitem influir e convencer através da utilização persu-
asiva do discurso.
Em Platão, por exemplo, a problematização da sabedoria antiga se efe-
tua através da análise da palavra de verdade. É enquanto palavra divina-
mente inspirada que Platão concebe o pensamento arcaico e pretende,
mediante a crítica da intuição, tomada como critério exclusivo de acesso à
verdade, restaurar seu conteúdo. Trata-se para Platão de substituir uma
concepção da verdade, que se apóia sobre um dom excepcional de cunho
irracional e de caráter indemonstrável, pela pesquisa sistemática e racional
das relações da palavra e da realidade. A uma inspiração verborrágica que
pretende exprimir a realidade, Platão opõe a verdade de uma realidade
que transcende a intuição religiosa e a palavra. Desse modo a palavra deixa
de ser o signo mediante o qual a esfera divina, misteriosa e separada, entra
em comunicação com os homens, para se tornar o instrumento de de-
monstração de uma realidade que escapa à própria linguagem.
A tradição oral e o contexto da visão mágico-religiosa do mundo são,
do mesmo modo, problematizados por Platão. Assim, a enunciação da
verdade nos quadros da sabedoria inspirada, esse monólogo sagrado, deve
transformar-se na pesquisa da verdade filosófica em que a palavra se abre
sobre um outro no interior do diálogo racional.
À verdade como privilégio e o atributo de certas funções sociais, deve
substituir-se a conquista progressiva do verdadeiro mediante o esforço
pessoal e metódico de apreensão racional da realidade supersensível. A
“intuição” filosófica, longe de ser um dom concedido pela divindade, diz
respeito ao árduo trabalho demonstrativo de uma verdade abstratamente
concebida. A apreensão imediata do verdadeiro é, doravante, mediatizada
pelo exercício da argumentação dialética.
Assim, a obscuridade da palavra de verdade, em seu estado mítico e
religioso, é substituída pela palavra que demonstra, cuja função é revelar
ou expor as correspondências secretas que unem os dois aspectos funda-
mentais da realidade – a aparência múltipla e mutável no devir e a essência
transcendente e una de seu próprio ser.
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As formas de enunciação
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pressão unívoca tanto da lei que sua voz encarna, quanto da potência que
ela exprime, a palavra do rei se personifica no ato mesmo que a exterioriza.
Palavra realizadora, ela supõe sempre, pela univocidade de sentido que
requer, condições determinadas e situações especiais – sua eficácia é intei-
ramente dependente do contexto de sua enunciação.
O aspecto incontestável da palavra do rei se funda, quanto ao essencial,
na suposição de que ao enunciá-la ela põe em movimento as forças cegas e
obscuras do universo. Sua voz, e o gesto único que a acompanha, podem
intervir diretamente seja no curso dos fenômenos naturais seja no destino
da comunidade humana que preside.
O registro oral de enunciação da verdade configura um sistema de re-
presentação das coisas no qual a palavra, enquanto ato de nomeação, se
torna a condição mesma de existência das coisas.
Nas sociedades de tradição oral onde a utilização da escrita é secundária
ou nem sequer é conhecida, onde o saber acumulado se reduz a um con-
junto de narrativas que se transmite da boca para o ouvido, a palavra que
narra traduz uma forma particular de experimentar a realidade – a exis-
tência das coisas é inteiramente dependente dos atos que as nomeiam.
Assim, o poder de nomear, de retirar as coisas de sua opacidade, confere
sempre autoridade àquele que nomeia.
A palavra do rei é, com efeito, o ato pelo qual as coisas encontram sua
designação e identidade, seu sentido e sua verdade íntima. Tipo particular
de voz iluminante, o dito real presentifica e atesta a superioridade do
nomeante sobre o nomeado. É próprio dessa voz investida de autoridade
decidir sobre o justo e o verdadeiro. Dentre as prerrogativas de que goza o
personagem real, o exercício do direito é, provavelmente, o principal ins-
trumento de sua autoridade. A justiça é inseparável das outras atribuições
do soberano e na medida em que ele unifica em sua figura o saber sagrado e
os fundamentos do direito, ele se torna, ao mesmo tempo, o sacerdote e o
magistrado. Na medida em que identifica o rito litúrgico e os procedimen-
tos judiciários, o rei de justiça é também o sumo-sacerdote – e as transgres-
sões da lei tendem a se identificar com as imprecações ou faltas religiosas. É
da competência desse magistrado supremo decidir legitimamente sobre todas
as pendências, litígios ou disputas que irrompem no seio da vida social, bem
como restabelecer a ordem e o equilíbrio contrariados.
O rei, que instaura a ordem no mundo e diz a verdade das coisas,
concentra em si o poder político, jurídico e religioso. Sua palavra, que
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revela a verdade e a lei, concede aos homens um lugar e um nome, uma
posição e um significado particular na hierarquia de seu reino-universo.
Inflexível, luminosa, imperativa sua palavra é do registro do incontes-
tável. Despótica, monológica deve imperar sobre todas as coisas. A verda-
de e a lei que a imagem real veicula, por palavras e gestos, é para ser
adorada e obedecida. Essa palavra sem eco, ímpar, sucedâneo acústico das
primitivas forças, se caracteriza fundamentalmente por sua condição
irrefutável. Expressão pura de um poder sem limites que se auto-justifica,
ela se impõe, indistintamente, sobre todos os homens inspirando-lhes a
devoção e o silêncio. Objeto de adoração, a voz sem réplica do rei dá a
resposta a uma interrogação que não se ousa formular.
O dito do rei, enquanto palavra de verdade, dispensa a escrita e se
afirma como expressão de um saber cuja eficácia reside no ato que
presentifica e realiza o verdadeiro.
A tradição oral implica um regime de conhecimento por-ouvir-dizer
que condiciona a transmissibilidade do saber à presença daquele que o
comunica. Desse modo, o rei personifica a verdade e se apresenta como o
símbolo vivo que a institui na esfera social. Enquanto fundamento da ins-
tituição real, a verdade que o rei conserva e retém na repetição do seu
saber é que nomeia a identidade coletiva ou revela a origem misteriosa das
coisas. Como a palavra de verdade, o dito do rei representa uma espécie
de ação criadora, que dá ao mundo seu sentido mais profundo: o mundo
no qual deverá perpetuar, silenciosamente, sua imagem.
Cumpre interrogar, a seguir, as demais funções às quais se atribui o
domínio da enunciação da verdade. Sob a configuração geral dos delírios
divinamente inspirados e em detrimento da palavra real, a verdade assu-
me, sem necessariamente excluí-la, novas características. Assim abordare-
mos, segundo a perspectiva platônica esboçada no Fedro, as três principais
formas assumidas pelo saber delirante – a loucura profética de Apolo, o
delírio ritual de Dionísio e por fim a memória inspirada do poeta.
As vozes do delírio
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uma inspiração que lhes é própria, a verdade (aletheia) continua sen-
do, ainda o atributo essencial.
Poetas, profetas, místicos e amantes de todos os tipos gozam, doravante,
dos benefícios que divina inspiração concede a seus eleitos. Estranhos se-
res sobre os quais a loucura (mania) divina recai como um privilégio, reti-
rando-os de si mesmos e os lançando para além das vivências rotineiras
onde habitam o comum dos mortais.
O súbito ímpeto que os abate, a possessão divina que os acossa, qual-
quer que seja a forma assumida, implica sempre o mais alto grau de arre-
batamento e entusiasmo. Êxtase delirante pelo qual a verdade arcaica en-
contra sua forma de expressão e designa seus intérpretes.
A ausência de um rei que personifica a verdade por uma apre-
sentação imediata do verdadeiro, do qual seu dito era a expressão
incontestável, deu lugar ao aparecimento de uma categoria especial
de indivíduos dotados de uma faculdade incomum pela qual podem, à
sua revelia, aceder ao saber sagrado.
A sabedoria enquanto fala inspirada, à semelhança do dito real, con-
cebe a verdade como um atributo e um privilégio, mas na medida em
que pressupõe o acesso à verdade como dependente de um dom pes-
soal, desprendido do exercício real da soberania, não somente atesta
uma efetiva fragmentação da unidade micênica de poder, mas, sobretu-
do, introduz uma nova dimensão do verdadeiro.
À imagem de um monarca monofônico que é, ele próprio, a verda-
de, substitui-se a diversidade polifônica dos delirantes divinos, cuja
função é a de interpretar, celebrar ou consignar sob a ótica de elogio e
da censura o desígnio dos deuses.
A fala inspirada que identifica a sacerdotisa de Apolo, a bacante
frenética de Dionísio ou a palavra laudatória do Poeta tem por objeti-
vo, comunicar, pôr em comunicação ou aproximar o mundo dos deu-
ses e o mundo dos homens.
A heterogeneidade metafísica, que separa e distancia deuses e homens,
faz-se sentir cada vez mais radicalmente a partir do momento em que o
suporte social que corporificava as potências divinas desapareceu com o rei.
Assim, a administração do invisível pelos efeitos visíveis que a ostensi-
va presença do rei assegurava, situando a verdade em um plano unívoco de
visibilidade, deixa de se confirmar em uma palavra que só comportava
uma única direção e um mesmo sentido, para se abrir na direção pluriforme
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das vozes do delírio. Doravante, ao enunciar-se por múltiplas vozes e arti-
cular sucessivos planos, a palavra inspirada deixa transparecer uma con-
cepção do real e uma imagem da verdade cujo estatuto, escapando a uma
determinação única, supõe uma pluralidade de sentidos.
Ao reproduzir o contexto mágico-religioso no qual a palavra retira toda
a sua eficácia do poder que ela tem de acionar a realidade, de realizá-la, as
diferentes formas do delírio divino denunciam já, pela parcialidade que aí
introduz, níveis distintos subjacentes à própria realidade. A verdade única
e incontestável é substituída, agora, por uma verdade heterogênea, de fun-
damentos múltiplos traduzível em diferentes acepções.
Desse modo, a sabedoria inspirada, o delírio ritual ou a possessão po-
ética se apresentam sempre sob o signo da heterogeneidade de sentidos e
comportam uma ambigüidade radical.
14 COMUM 23
meiros passos de recém-nascido o solo da ilha se cobre de ouro, metal
simbólico que assegura a futura opulência.
De Delos, Apolo é conduzido à Terra dos Hiperbóreos no extremo
norte e posteriormente a Delfos. Em Delfos liberta o antigo oráculo de
Themis da influência do dragão Píton para aí fixar seu próprio oráculo.
Apolo é freqüentemente representado “como um Deus muito belo e
alto, notável, sobretudo por seus largos cachos negros azulados como as
pétalas do pensamento”.6
Dentre seus atributos destacam-se a lira que acompanha os cantos e
danças, que embala as preces que os homens endereçam aos Deuses e
inspira o canto elogioso dos poetas; e o arco, símbolo da violência, que
desenvolve a astúcia e concede a eficácia à ação guerreira.
Contudo, sua mais nobre função é aquela que mais contribui para apro-
ximar os deuses dos homens – de fato é a ele que cabe atribuir o domínio
da sabedoria. Patrono do pensamento e da sabedoria é ele que preside o
oráculo de Delfos, onde se manifesta o impulso grego do conhecimento.
Das virtudes que o caracterizam – a beleza, a valentia – parece so-
bressair aquela que reúne todas as outras, o dom da vidência, a sabedo-
ria e o conhecimento do obscuro e do incerto futuro. Apolo é, com
efeito, o sábio por excelência.
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A palavra oracular enquanto palavra de verdade descortina a
temporalidade, traça o destino, antevê a desgraça. Inexorável, implacá-
vel, o saber apolíneo, de decifração difícil, é também possibilidade de
libertação – é via de acesso e de função da verdade divina.“Pelo que diz
respeito à sua função profética, Apolo é Aplous, aquele que fala a verda-
de. Como purificador da alma através de remédios curativos, é o deus
que lava e liberta do mal”.8
A figura de Apolo associa a loucura profética e a purificação ritual. Nes-
se sentido, a intervenção de Apolo diz respeito tanto ao passado e ao pre-
sente (pois sua ação dez expia ou purifica uma falta antiga), como ao futu-
ro. A sabedoria de Apolo, ao revelar a palavra de Zeus, abarca indistinta-
mente todos os aspectos do tempo. A verdadeira sabedoria é assim, aque-
la que desvela o passado, o presente e o futuro.
A sabedoria de Apolo enquanto enunciação da verdade divina é tributá-
ria, ainda, de uma segunda função ou de um aspecto que se desdobra da
natureza mesma do Deus – um elemento de crueldade e violência está
sempre presente na representação apolínea.
O Arqueiro Divino cujas flechas certeiras levam a doença e a morte ao
inimigo traz em seu nome, segundo a etimologia sugerida por Colli, o
sentido de “o destruidor total”. Assim, associa-se à imagem do Deus sua
ação destrutiva e implacável, sua fria crueldade.
O deus de aparência solar que tudo ilumina é também o mais temível
opositor. Guerreiro astucioso que golpeia e fere a distância. Apolo revela,
finalmente, sua face hedionda, seu lado sombrio. A doença mortal que a
ação indireta de seu arco anuncia é marca distintiva da duplicidade radical
de suas funções. A palavra de Apolo que manifesta o conhecimento se
caracteriza também pela forma de sua expressão, pela obscuridade que
define a fala oracular. O vaticínio do oráculo é sempre impiedoso e obscu-
ro, sua predição soa como uma sina da qual não se pode escapar. Inelutável
e sem defesa, o destino atinge o homem e o abate.
A duplicidade da natureza de Apolo é sugerida pela própria representa-
ção que dele dá o mito grego: deus guerreiro e músico, que associa a vio-
lência do arco à doçura da lira, e reproduz na palavra do oráculo a misteri-
osa sabedoria divina aproximando e afastando os homens e os deuses.
O caráter aparentemente antitético de seus atributos, a sombria ambi-
güidade de sua fala diz respeito, a rigor, à separação ou distância metafísica
que se interpõe entre deuses e homens. Ao traduzir em caracteres huma-
16 COMUM 23
nos o divino conhecimento, a voz oracular revela toda sua singularidade –
propõe ao homem o enigma de sua decifração.
A verdade que o deus projeta no mundo pela palavra de Apolo é o
símbolo sensível de sua eficácia ou o signo material de sua exterioridade.
Assim, a palavra de Apolo responde pela antítese de seus atributos – a
hostilidade do arqueiro se confunde com a musicalidade benigna da lira.
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O delírio ritual de Dionísio
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Deus nômade, ele se apresenta sempre sob múltiplas faces, possui sem-
pre múltiplas moradas. Duplo de si mesmo, sua face mascarada revela
sempre a existência de um Outro, de um outro do Outro.
Deus civilizador, que preside o calendário agrícola e que faz jorrar das
fontes a água, o mel e o vinho, ele é também, o patrono da mais selvagem
religiosidade – frenesi e barbárie acompanha sempre seus prodígios.
A experiência religiosa dionisíaca tem no rito sua mais alta forma de
expressão. Religião extática, ela visa unir o deus ao homem pelo transe e
pela possessão.
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Ele confunde as fronteiras entre o divino, e o humano, o hu-
mano e o bestial, o aqui e o além. Ele faz comunicar o que
estava isolado, separado. Sua irrupção, sob a forma do transe
e da possessão regulamentadas, é na natureza, no grupo soci-
al, em cada indivíduo humano, uma subversão da ordem que,
através do jogo dos prodígios, das fantasmagorias, das ilusões,
por uma desorientação desconcertante do cotidiano, bascula
seja em direção ao alto, em uma confraternidade idílica de
todas as criaturas, a comunicação feliz de uma idade de ouro
subitamente reencontrada, seja ao contrário, para quem o re-
cusa e o nega, para baixo, na confusão caótica de um horror
terrificante.12
20 COMUM 23
deirão e segundo alguns, devoram-nos. Uma deusa – Atena,
Réia ou Deméter – recebe, ou salva, o coração e guarda-o
numa caixinha.13
COMUM 23 21
Assim, esse deus dilacerado é dotado de autonomia, como um eterno
vivente ele libera espontaneamente sua própria força.
À diferença dos outros Deuses ou dos déspotas inspirados a ação de
Dionísio não define por ser o exercício de um poder que recai sobre os
outros, mas pela capacidade intrínseca de transmudar-se.
22 COMUM 23
há afinidades e mesmo interferências, que já foram assinala-
das várias vezes. Aedo e advinho têm em comum um mesmo
dom de “vidência”, privilégio que tiveram de pagar pelo preço
dos seus olhos. Cegos para a luz, eles vêem o invisível. O
deus que o inspira mostra-lhes, em uma espécie de revelação,
as realidades que escapam ao olhar humano. Esta dupla visão
age em particular sobre as partes do tempo inacessível às cri-
aturas mortais: o que aconteceu outrora, o que ainda não é.
COMUM 23 23
rememoração poética tem por finalidade despertar o homem do esqueci-
mento das origens, fazê-lo recordar dos tempos invisíveis e dar-lhe a co-
nhecer o mistério dos inícios. Nesse sentido a palavra celebrante do poeta
se afasta da visão premonitória do profeta – apesar de não se furtar ao
presente ou ao futuro, a palavra que celebra mantém sempre um vínculo
essencial com o conhecimento do passado. Quando o canto celebrante
recai sobre o presente e “anuncia” o futuro, ele o faz por um desdobra-
mento de sua primitiva função de narrar a história dos deuses. A própria
narrativa hesiôdica permite entrever o desdobramento da palavra poética,
posto que ao receitar a história das gerações divinas, a teogonia identifica a
ordenação do mundo ao mito de soberania. Desse modo, a narrativa poé-
tica se integra e colabora para a “realização” daquilo que ele enuncia. Nesse
nível, diz Detienne, “o poeta é, antes de tudo, um ‘funcionário da sobera-
nia’: recitando o mito de emergência, colabora diretamente com a ordena-
ção do mundo”.17
A segunda função da palavra poética relaciona-se ao elogio ou à censura,
consagrada às façanhas dos guerreiros tal como se apresenta na sociedade
grega arcaica. Ainda que, a solidariedade entre as Musas e a Memória está
presente na medida em que, por sua influência, a palavra do poeta diz o
que é, o que será e o que foi.
Em uma sociedade como aquela de Esparta, onde o grupo guerreiro se
dedica integralmente aos trabalhos da guerra e reconhece cada um de seus
membros como um igual, a diferença entre eles só se mantém pelo que há
de notável ou criticável em suas ações. Dessa forma, sob o modelo do
elogio e da censura, como um complemento da ação, positiva ou negativa,
a palavra do poeta valoriza e celebra a virtude guerreira.
24 COMUM 23
determina ainda, pelo jogo alternado do louvor e da censura, o imemorial.
Ao pôr em evidência as façanhas “dignas de serem lembradas” ou os feitos
que merecem a “ilustre lembrança”, ela lança uma sombra que condena ao
esquecimento as ações não virtuosas. Palavra celebrante, o canto poético
tem, igualmente, o poder de nomear a realidade. É ela que concede ou nega
a Memória duradoura. Palavra imortalizante ele possui o dom, na medida
em que se identifica com o evento nomeado, de dar às coisas o brilho e o
esplendor ou condená-las, pelo silêncio, à obscuridade e à morte.
A memória inspirada do poeta que revela a verdade e a celebra em seu
canto responde pela dualidade e pela oposição entre a verdade (aletheia) e o
obscuro esquecimento (lethe).
Assim, à sua função celebrante e litúrgica, onde ela se encarrega de
colaborar na ordenação do mundo, se junta aquela do reconhecimento e
do não-esquecimento. A oposição aletheia-lethe é que condiciona, em um
nível mais profundo, toda a sua eficácia de palavra mágico-religiosa. O
poeta é, pois, um “Mestre da Verdade” na medida em que nomeia, por um
dom excepcional, o verdadeiro e o falso. Mas o verdadeiro e o falso não se
contradizem ou se opõe, posto que entre a Memória e o Esquecimento a
relação é antes complementar que contraditória.
A verdade do poeta é antes uma verdade fundamental que não se opõe
ao falso ou ao não-ser. É ela que institui o próprio ser. Ela é, a rigor, o ser
e o não-ser.
Notas
1. A abordagem geral do mito e da mitologia grega aqui referida se refere aos mitos cosmogônicos
e de origem. A definição esboçada e o tratamento da questão inspiram-se nos trabalhos de Jean-
Pierre Vernant.
Cf. a esse respeito as concepções apresentadas em Mythe et société em Grèce ancienne, Paris:
François Maspero, 1982; Mito e Pensamento entre os gregos, São Paulo: Difel/Edusp, 1973 e
Origens do pensamento grego, São Paulo: Difel, 1981.
2. JOLY, Henri. Le renversement platonicien: logos, episteme, polis. Paris: J. Vrin, 1985, p. 111.
3. DETIENNE, Marcel. Les maîtres de vérité dans la Grèce archique. Paris: François Maspero,
1981, p. 33.
4. DUCROT, Oswald. Actos lingüísticos. In: Enciclopédia Einaudi, volume 2. Lisboa: Imprensa
Nacional – Casa da Moeda, 1984, p. 454.
5. GRIMAL, Pierre. Diccionario de mitologia griega e romana. Barcelona: Ed. Paidos, 1984, p. 35.
6. Ibidem, p. 36.
7. COLLI, Giorgio. O nascimento da filosofia. Campinas: Ed. Unicamp, 1988, p. 11.
8. CORNFORD, F. M. Principuim sapientiae, as origens do pensamento filosófico grego. Lisboa:
Calouste Gulbenkian, 1981, p. 141.
COMUM 23 25
9. COLLI, Giorgio. Op. cit., p. 33.
10. ELIADE, Mircea. História das crenças e das idéias religiosas. Tomo I, vol 2. Rio de Janeiro:
Zahar, 1983, p. 199.
11. Ibidem, p. 211.
12. VERNANT, Jean Pierre. Mythe et tragédie en gréce ancienne. Vol. II. Paris: Ed. La Découverte,
1986, p. 246.
13. ELIADE, Mircea. Op. cit., p. 213.
14. COLLI, Giorgio. Op. cit., p. 213.
15. DETIENNE, Marcel. Dionísio a céu aberto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1988, p.
112.
16. Ibidem, p. 76.
17. DETIENNE, Marcel. Les maîtres de vérité dans la Grèce archique. Paris: François Maspero,
1981, p. 18.
18.Ibidem, p. 19.
Resumo
A imagem arcaica da verdade e o contexto oral de sua enunciação evo-
cam o ato de fala através do qual a verdade se expressa personificando-se
nas vozes inspiradas pelos delírios divinos.
Palavras-chave
Imagem, verdade, ato de fala, mania.
Abstract
The archaic image of the truth and the oral context of its enunciation
evoke the speech act through which the truth is expressed and personified
in the voices raptured by the mania of the gods.
Key-words
Image, truth, speech act, mania.
26 COMUM 23
Dois movimentos para o Íon, de Platão
Alberto Pucheu
***
28 COMUM 23
ta, Platão-geômetra, Platão-erótico, Platão-político, Platão-... Estas pala-
vras não deixam de soar. Platão: o nome da filosofia, não-sistemática, em
seu princípio. Que se inaugura como filosofia-poesia, filosofia-sofística,
filosofia-geometria, filosofia-erótica, filosofia-política... Platão aproveita,
renovando-as, todas as possibilidades do pensamento presentes anterior-
mente na tradição e nas ruas: a narrativa mítica, o cantar lírico, o drama
musical trágico, a comédia, a sofística, as expressões religiosas, a, ainda
que artificializada e reinventada no contexto das necessidades internas dos
diálogos, conversação diária etc. Se, para os gregos, origem não é apenas o
momento volátil, que logo se apaga, em que algo se inicia, mas, sobretu-
do, aquilo que permanece enquanto fundamento do que nasce em todo o
seu processo duradouro, a filosofia, grega que é, enquanto durar, há de se
fundamentar pela recepção a outras áreas, e não pela tentativa de excluí-
las. Uma filosofia constantemente aberta ao que, convencionalmente,
não é tido por filosófico. Uma filosofia, artística, sem exclusões, im-
possibilitada de qualquer redução e inauguradora de novas aventuras,
trazendo, sempre, para si, a importância do hipotético não-filosófico.
Desde sua nascença, uma filosofia indiscernível de sua suposta
alteridade, aberta a seu fora, uma filosofia cuja identidade, vazada, se
faz no movimento inestancável de se outrar, no desguarnecimendo de
qualquer fronteira imaginada.
***
***
COMUM 23 29
Para quem, pela expulsão dos poetas da cidade, continuar julgando o
filósofo como o motivo da divergência, pode causar mais surpresa ainda o
fato de o texto mostrar, como justificativa de tal contrariedade, os ataques
desferidos pelos poetas antes mesmo da escrita do respectivo diálogo:
para eles, os filósofos seriam “cadelas que ganem contra seus donos, o
homem superior em tolas tagarelices, o bando que quer se assenhorear de
Zeus, pensadores que, de tão pobres, cortam as idéias em quatro”11. Com
tais frases, além do desacordo, parece se redirecionar o horizonte de tal
oposição, impossibilitando quem quer que seja de o pensar unilateral-
mente, ou seja, de ver no filósofo o censor e no poeta a vítima. A manter
a diferença de denominação, os poetas, em Platão, demarcam, antes mes-
mo dos filósofos, alguma discordância. Neste começo de tratamento, o
jogo de forças se faz proporcional e a tensão, recíproca. Trata-se, ao me-
nos, de uma disputa, onde as intensidades se equiparam. Privilegiando as
disputas e suas aporias, Platão: um dos maiores mestres agonísticos gre-
gos. Platão-atleta, Platão-guerreiro, Platão-conquistador-de-prêmio-de-
bravura, Platão competindo com Xenofonte, Platão, “o primeiro a opor-
se a quase todos os seus predecessores”12. Ou, então, de novo, Nietzsche:
30 COMUM 23
diferenças, através da potência de uma zona de entretecimento, teimam
em se indiferenciar, confundindo-se, obscuramente. Platão, o último
Homero, entretanto paradoxal, ambíguo, enigmático, como o poeta de
Quios conciliado ao pensador de Éfeso?
***
***
COMUM 23 31
incipientes. O próprio ponto de vista cênico, habitualmente pouco avalia-
do como filosófico, já foi, em outros tempos, usado como elemento pri-
mordial de distinção e classificação dos arranjos dialógicos platônicos15. O
privilégio quanto ao modo de escrever se dá pela escolha calcada na exten-
são do limite daquilo que se quer atingir; quanto mais largo este limite,
mais os recursos a serem utilizados têm de o acompanhar. Faz-se necessá-
rio um tipo de uso da linguagem que, resguardado em seu limite, permita
o contato com o ilimitado, beirando-o a cada instante. Tudo isto em nome
da própria criação e de uma pedagogia, ou de uma política, do pensamento
que se quer direta e imediatamente extensiva a seus leitores, exigindo que
eles se transformem, necessariamente, em intérpretes de uma maneira de
escrever e pensar até então imprevista.
***
32 COMUM 23
do-nos a não abrir mão de uma nem de outra. Distinguir, mantendo a
fusão – um dos paradoxos, uma das mais fortes aporias, um dos mo-
tores mais potentes do pensamento platônico.
***
***
COMUM 23 33
cas e escassas páginas, não nos afundamos em uma nova ilegibilidade ne-
cessária que traçasse a possibilidade virtuosa de uma outra interpretação.
Quando um poeta – e, em todos os sentidos, um pensador – do porte de
Goethe afirma que o diálogo, que se quer sobre o poético e fora escrito
por um filósofo, não tem “absolutamente nada a ver com a poesia”20, pode-
se solidificar, enrijecendo-a, uma caricatura: a da filosofia contra a poesia,
em busca de sua hegemonia. E, em contrapartida vingativa, a da poesia
contra a filosofia.
***
***
34 COMUM 23
ria! Provavelmente, por haver, no fim, menção à inspiração
divina! Infelizmente, entretanto, aqui como em vários outros
lugares, Sócrates está apenas falando ironicamente22.
***
COMUM 23 35
um dos fortes vínculos com os quais a antiguidade juntava Platão e a poe-
sia, Platão e o drama. Platão, como artista. Do pensamento. Como poeta.
Filosófico.
***
***
36 COMUM 23
cristã de Platão, ele minimiza a inspiração divina, para ele, mistificadora, em
nome de uma interpretação científica, psicológica, da inspiração, que se afas-
te de “milagres e das operações de poderes estranhos”. Ou seja, onde, em
Stolberg, ao invés de grego, lê-se cristão, em Goethe, ao invés de grego, lê-
se moderno. Por isso, por sua briga não ser primeiramente com Platão, ao
dizer que, no Íon, Sócrates está falando apenas ironicamente, não precisa
investigar aquilo que ele próprio requer ao fim de seu texto:
Mais uma vez: se o próprio Goethe não se lança nesta aventura, é por
sua preocupação ser momentânea, polêmica, querendo tão somente con-
ter a possível propagação da interpretação stolbergiana do diálogo.
***
COMUM 23 37
plicitamente, em relação ao poeta. Assim, no diálogo, tudo seria irônico,
inclusive os elogios socráticos à rapsódia27; mas, apesar de o diálogo ser
basicamente avaliado por sua suposta sobrecarga irônica, curiosamente,
em nenhum momento é explicitado o que se entende por ironia. Parece
que a ironia é confundida com uma pura galhofa.
***
38 COMUM 23
luta das perguntas, constrange-o à nudez total. Só, então, tendo atravessa-
do todos os riscos, sofrendo em seu corpo as dores mais intensas, o antes
não-iniciado está apto a ir embora, mas já é tarde: agora, desnudo, ele se
encontra contaminado pela terrível doença deste peso-pesado da conver-
sação pensativa, tendo de admitir, da existência, o que suas mãos não con-
seguem segurar. Aporética, a ironia é a Musa socrática por excelência – o
percurso abissal de um itinerário impossível de ser levado a termo; a iro-
nia é o próprio caminho da aporia, possibilitando mostrar que, desde o
primeiro passo, desde a primeira indagação, o que sempre se quer é dei-
xar a admiração, espantosa, aparecer. Trocar o ponto de interrogação pelo
de exclamação – eis o objetivo da ironia questionadora e aporética, o pon-
to onde o filósofo e o poeta, sem encontrar roteiros, se encontram, como
que num beco sem saída. É o que o pensador dinamarquês parece dizer:
***
COMUM 23 39
Convém aqui nos referirmos ao que Platão explica no Fedro,
a respeito dos estados superiores, se podemos dizer, da ins-
piração, tais como são produzidos para além do franqueamento
da beleza. Existem diversas formas desse franqueamento, que
não vou retomar aqui. Dentre os meios utilizados por aque-
les que são deomenous, que têm necessidade dos deuses e das
iniciações, há a embriaguez engendrada por uma certa música,
que produz um estado a que se chama possessão. É, nem mais
nem menos, a esse estado que Alcebíades se refere, quando
diz que é isso o que Sócrates produz mediante palavras. Ain-
da que suas palavras sejam sem acompanhamento, sem ins-
trumento, ele produz exatamente o mesmo efeito.
Quando nos acontece ouvir um orador, diz ele, mesmo que
seja um orador de primeira ordem, isso somente nos causa
um certo efeito. Ao contrário, quando é você que se ouve, ou
mesmo suas palavras relatadas por um outro, ainda que quem
as relate seja Pamu phaulos, justamente, um homenzinho de
nada, o ouvinte, seja ele mulher, homem ou adolescente, fica
perturbado, como que atingido por um golpe, e, para falar
propriamente katekhometa – somos possuídos por isso.32
40 COMUM 23
MENON: Sócrates, aprendi por ouvir-dizer, antes mesmo
de te conhecer, que tu não fazias outra coisa senão encontrar
dificuldades por todo canto e fazê-las encontrar aos outros.
Agora mesmo, vejo perfeitamente, por não sei qual magia e
quais drogas, por teus encantamentos, me enfeitiçastes tão
bem que tenho a cabeça repleta de dúvidas. Ousaria dizer, se
me permites uma brincadeira, que me pareces semelhante
absolutamente, pelo aspecto e por todo o resto, ao grande
peixe do mar chamado torpedo (nárke). Este entorpece desde
que alguém se aproxime e o toque; tu me fizestes experi-
mentar um efeito semelhante, [tu me entorpecestes]. Sim,
estou verdadeiramente entorpecido de corpo e alma, e sou
incapaz de te responder [...]. Tens toda razão, crê-me, de não
querer nem navegar nem viajar fora daqui: em uma cidade
estrangeira, com uma tal conduta, não tardarias em ser detido
como feiticeiro [80 a b].33
***
COMUM 23 41
refere tão somente à possibilidade de a poesia e a rapsódia serem encara-
das como technai ou epistemai. Contrariamente à Maria Cristina Franco
Ferraz, por exemplo, que afirma que a ironia socrática já se manifesta, de
maneira evidente, “nos elogios à arte do rapsodo, que praticamente abrem
o texto logo após um breve preâmbulo”!35, entendo que, se, por um lado,
nesta passagem, começa a se esboçar a ironia socrática quanto à alternativa
técnica (e somente em relação a ela!), por outro, os elogios à rapsódia, os
motivos que fazem Sócrates invejar, admirando, os rapsodos, ou seja, tudo
aquilo que, em progressão intensiva, aparece enquanto o conveniente e o
necessário ao respectivo fazer, são inteiramente afirmativos. Traduzo o
belíssimo trecho platônico:
42 COMUM 23
quantitativamente hiper-valorizada nem qualitativamente sub-valorizada
e, com isto, tomada como o rolo compressor do filósofo passando por
cima do poeta ou do rapsodo, esmagando-os. Em vez de comentar toda
esta passagem, gostaria de, reafirmando, salientar tão somente que é ape-
nas no que tange à suposta capacidade técnica da rapsódia, neste momento
lançada ironicamente por Sócrates e, logo em seguida, acatada com serie-
dade por seu interlocutor, que o ateniense mostrará o não-saber do efésio;
exclusivamente neste aspecto, descentrando-o, ele o entorpecerá, o
narcotizará, o confundirá. É como técnico que, conduzido por Sócrates,
Íon mergulhará no vazio, perdendo o suposto conhecimento que hipote-
ticamente havia: “Qualquer pessoa perceberá de pronto que és incapaz de
falar de Homero por meio da técnica ou da ciência” (techne kai episteme, 532
c), diz, mais à frente, Sócrates ao rapsodo. Num diálogo de mais ou me-
nos 15 páginas, esta frase, ou alguma variação bastante próxima dela, é um
autêntico refrão, retornando inúmeras vezes para insistir na única impos-
sibilidade rapsódica ou poética que Sócrates deseja demarcar. Na
paradigmática imagem da pedra heracléia, por quatro ou cinco vezes em
menos de duas páginas, é dito que não é por techne que Íon fala de Homero,
afirmação que, daí por diante, continuará a se repetir mais umas tantas
vezes até o fim do texto. Por, no princípio da conversa ficcional, ter sido
sugestionado a acreditar ser um technikos, e, a partir de então, a levantar
esta bandeira sem, entretanto, conseguir sustentá-la, Íon, ao fim do diálo-
go, é levado a aceitar ter sido injusto ou, melhor e definitivamente, a,
aprendendo, assumir sua impossibilidade técnica. Com esta parte negati-
va, irônica ou desconstrutiva, Sócrates faz a sua atopia – epidêmica, a sua
excentricidade – virótica, contra as quais ninguém, nem mesmo nós, afas-
tados de anos, estamos imunes; com elas, Sócrates nos contamina, deixan-
do-nos sem chão, sem lugar, sem centro: no abismo. Se, ao invés de sábio,
Sócrates é átopos36, é porque a filosofia, ao invés de ser uma sabedoria, é
atópica – dissituada, deslocalizada, deslocada, desassentada, excêntrica, des-
norteada, desorientada, inclassificável; para ela, ele quer conduzir seus
interlocutores, e, mais do que isso, Platão, seus leitores. Resultando no
verdadeiro equívoco do personagem, o que Íon não sabia da rapsódia e da
poesia é que elas não são technai nem epistemai, enquanto ele as acreditava
como tais; desta crença, como já foi dito, Sócrates o conduz ao vazio, ao
nada, de sua antiga opinião. Ao lugar nenhum. À não-ambiência. À aporia.
À perplexidade. À exclamação de quem agora pode também aprender um
COMUM 23 43
fato ainda mais importante: o da não necessidade delas serem encaradas a
partir da fundamentação daqueles elementos de um certo tipo de saber.
Completando, portanto, o processo irônico, perfazendo-o, juntando o
começo e o fim da conversa através de um dos objetivos alcançados, as
derradeiras palavras do diálogo, através das quais Íon é obrigado a uma
demolição de seu suposto saber, a freqüentar a vacuidade, são: “[...] kai me
technikon peri Homeron epaineten: e não de técnico, seus elogios rapsódicos
de Homero”. Fim do diálogo.
***
44 COMUM 23
acusatório a outros discursos, o escritor dos diálogos poético-filosófi-
cos seria, finalmente, o criador de um dos maiores escândalos do pen-
samento, uma covardia má intencionada, uma má-fé em nome de um
só movimento decisivo na história do Ocidente: a hegemonia da filo-
sofia. Com suas novas vias condenatórias. Sua vitória. Sua exclusão.
Sua ironia. Seu ardiloso golpe de mestre. Contra o poético ameaçador.
Contra a incômoda aporia. Um Platão sistemático. Um Platão – não –
dialógico! Um anti-Platão?!
***
***
COMUM 23 45
diálogos platônicos não se encaminham apenas em direção a
algo, mas também contra algo. Seria de maior eficácia se o
tradutor elucidasse esses dois algos e, num grau cada vez mai-
or, os tornasse compreensíveis ao leitor alemão.38
46 COMUM 23
é na cidade que nasce este novo pensamento: a poesia filosófica de Platão,
seu teatro do pensamento. Com Platão, inaugura-se a necessidade de uma
escrita urbana, que acate os novos ruídos, a nova polifonia, as variações de
vozes múltiplas. Que faça, deles, o elogio. E de uma vida que se confunde
com a praça pública, com o esbarro do povo. Mas não apenas isto. É pre-
ciso que estes diálogos da cidade platônica se distingam das conversações
diárias, apesar de, de alguma maneira, delas, manter o ritmo, ou melhor,
aumentar muito mais suas velocidades habituais, acelerá-las. Igualmente
para os diálogos, é necessário erguer muralhas que os protejam do cotidi-
ano, criar uma suspensão do dia-a-dia, ter a força para acatar a forja do que
poderia ter acontecido, mas não ocorreu, senão na própria trama da escrita
desta nova cidade que obriga, então, a olhar o cotidiano a partir das lentes
dos diálogos: com olhos livres, pela primeira vez.
O que se passa diariamente poucas vezes é filosófico ou poético de
modo explícito. Para explicitar o implícito poético-filosófico do urbano,
temos Platão, inaugurando uma escrita acerca da cidade, uma escrita que,
desde a cidade, a cerca, dá-lhe um limite, uma medida, obrigando-nos a
vê-la a partir desta nova possibilidade – Peri poleos, como antes, Peri physeos,
e, simultaneamente, não mais como antes. Ao que não está à altura deste
implícito, ao que se esquiva do poético e do filosófico, ao que não acolhe
a exigência do pensamento, apenas a isto, o riso de Platão sugere o lado
de lá dos muros, da cidade, dos diálogos. Vale dizer, tudo que se apre-
senta nos diálogos platônicos, aparece, ali, como um ápice do pensamen-
to, como merecedor maior do lado de dentro dos muros. Acatando a
conversação diária, a velocidade da escrita platônica ainda lhe é bastante
superior. Numa primeira leitura, pegamos apenas muito pouco do que
está sendo dito, que teima em correr, fugir, escapar; somos obrigados a
parar nossos afazeres, voltar, reler, ser fortes o bastante para permane-
cer nesta cidade, habitá-la. Entrar no diálogo como quem entra numa
cidade, como estrangeiro, sem saber o que pode acontecer, onde se loca-
lizam seus meandros mais obscuros, seus perigos, suas armadilhas, seus
pontos luminosos, suas recreações, suas dádivas... Entrar no diálogo como
quem, a qualquer momento, pode ser seqüestrado ou se deparar com o
límpido estalo das rochas e o mar, como quem, certamente, tem de vi-
ver ambas experiências. Entrar no diálogo como estrangeiro. Até deixar
de ser estrangeiro a esta cidade.
COMUM 23 47
Como estrangeiro, Íon, o entusiasmado, adentra o diálogo – Íon, de Éfeso,
como Parmênides, de Eléia. Como Empédocles, de Agrigento. Como Tales,
de Mileto. Como Demócrito, de Abdera. Como Íon, de Éfeso, com ou
sem a vírgula separadora, ele adentra o diálogo. Como cidadão da cidade
de Heráclito. De Heráclito de Éfeso. O próprio texto avisa que, no mo-
mento, em função da guerra entre Atenas e Esparta, Éfeso é dominada
pelos atenienses [541 c]. Vindo da periferia, da atual colônia, Íon chega à
metrópole como estrangeiro, mas, de alguma maneira, também como
ateniense, já que Atenas controla a famosa cidade do pensamento physiológico.
Apenas por isto, ou seja, não por força da suposta maneira popular de Íon
falar, nem para, ironicamente, mostrar sua falsa-modéstia desfazendo em
seguida uma possível vaidade do rapsodo, no preâmbulo, ambos os perso-
nagens falam na primeira pessoa do plural a respeito do prêmio vencido e
do por ainda a alcançar. Íon afirma: “– Conquistamos o primeiro prêmio,
Sócrates”; enquanto este o instiga: – “Belas palavras! Tratemos, agora, de
vencer também nas Panatenéias” [530 a]. Ganhando os concursos, dando
glória a Éfeso, Íon distingue, simultaneamente, Atenas, que, no momen-
to, engloba Éfeso. Acostumado a disputar com combatentes similares a
muitos Héracles e Teseus [Teeteto, 169 b], Sócrates bem sabe dessas coisas.
Como os personagens, suas temáticas e o a partir de onde eles falam, as
cidades deslizam uma para a outra, criando uma zona de indeterminação,
uma indiscernibilidade.
Apenas enquanto estrangeiros e periféricos que ainda terão de se tor-
nar cidadãos, com Íon, os leitores adentram o jogo realizado na capital,
que, filosófico e poético, reúne, além de Atenas com toda a efervescência
de sua filosofia nascente, a cidade natal de Íon e a poesia à qual ele vital-
mente se dedica. Como Éfeso, como Íon de Éfeso, estrangeira e ateniense
a um só tempo, a poesia entra no respectivo diálogo como periférica e
central, numa confluência com o filosófico, com o filosófico-poético, me-
tropolitano e capital. Como aquela que, tradicionalmente exclusiva no
mundo grego, deixou de o ser, apesar de se manter inerente ao contem-
porâneo inclusivo de todas as possibilidades do pensamento. Participando
do novo estilo, pela primeira vez, ela, a poesia, meio autóctone e meio
estrangeira, é claramente trazida para o âmbito do questionamento de suas
instigações e efetuações. O que é a poesia? Desde onde ela se realiza?
Quais são seus efeitos? Quais as suas possibilidades e impossibilidades?...
Pelo motor dos diálogos, pela filosofia poética ou pela poesia filosófica
48 COMUM 23
platônica, pela intensidade filosófica de sua atualidade, a poesia se pensa a
si mesma, delongada e radicalmente. Mantendo-se sujeito, a poesia se
torna objeto de si mesma.
Desde a primeira fala, quando o personagem Sócrates dá as boas-vin-
das ao seu interlocutor, num duplo sentido, com a mesma frase, Platão
oferece as mesmas boas-vindas a seus leitores, só que, desta vez, ao Íon,
convidando-os ao diálogo homônimo do personagem. Com isto, ele deli-
mita toda a ambiência ficcional, portanto, poética, de sua atividade: assim
como o rapsodo, os leitores são recebidos nessa metrópole, a Atenas
dialógica, a Atenas da mestiçagem entre poesia e filosofia. Também para
os leitores, as simpáticas recepções de hospitalidade são mantidas, já que,
tal qual Íon, eles são convidados para tal cidade: “– Boas vindas ao Íon!”,
diz a primeira frase do diálogo [530 a], simultaneamente de Sócrates ao
rapsodo e de Platão a seus leitores. No pórtico do texto, os leitores ainda
não aprenderam a potência que move o personagem – é-lhes exigido se
confrontarem com esta dinâmica, para poderem, ao menos, vislumbrá-la,
talvez, até, incorporá-la. Repletos de preconceitos históricos, muitos dos
comentadores não conseguiram enxergar todo o vigor que é atribuído ao
rapsodo, contentando-se, numa facilitação da complexidade de tudo o que
envolve este e qualquer outro diálogo, em hiperestesiar a ironia, em vê-la,
indiscriminadamente, por todos os cantos da escrita platônica.
É Íon de Éfeso, como Sócrates, de Atenas? Esta primeira pergunta fica-
rá ecoando. Na abertura do diálogo, no que diz respeito a Íon, sabe-se
que, desta vez, ele não vem, efetivamente, de sua casa, da cidade de Éfeso,
mas de Epidauro, onde, durante o recente festival no qual se realizaram os
concursos de todos os gêneros que dizem respeito às Musas, venceu as
disputas rapsódicas. De lá, como vagamundo, como quem é levado pela
performance poética a se deslocar continuamente em busca de uma nova
apresentação, como quem só se assenta no poético – se é que o poético
oferece algum assentamento –, agora, ele chega, para o meio do povo
ateniense (pothen ta nun hemin epidedemekas, 530 a). Mas não sobrevém de
qualquer maneira. Ele rompe os muros da cidade como uma epidemia.
Como os vírus que vão se reproduzindo no interior de outros corpos,
que, vivos, os hospedam. Através de Íon, algo acomete um grande núme-
ro de pessoas por onde quer que passe. Ainda que não saibamos exata-
mente porquê, por qual vírus ou doença, seus hospitaleiros são todos con-
taminados. Contaminados, pelo menos, pela poesia, veículo condutor de
COMUM 23 49
operadores, sem ela, imperceptíveis. Seus agentes infecciosos acabaram
de contagiar os epidáurios e, pelo jeito, tudo indica que, em breve, toma-
rão conta de Atenas, já que Íon é forte candidato a vencer as Panatenéias, a
difícil competição para a qual ele chega, aparentemente como franco favo-
rito, apesar de a vitória vindoura não estar exclusivamente em suas mãos.
Como Homero, Hesíodo e Arquíloco dependiam das Musas, ele depen-
de da necessária ajuda de uma divindade; só dela, o sucesso poderá proce-
der, garantidamente. Vindo de todo e qualquer lugar e indo para todo e
qualquer lugar, Íon rompe, portanto, os muros da cidade, como uma epi-
demia. Que está contagiando a Grécia: Éfeso, Epidauro, Atenas... Parece
não ter fim, o contágio poético provocado por entre os homens por meio
deste que tem um público habitual de cerca de vinte mil pessoas [535
d]. Nesta situação, de ser, talvez, o melhor ou o primeiro dos rapsodos
gregos do momento, de ser, provavelmente, o aristos rapsodos [541 b],
de sua perambulagem, ele rompe os muros, adentrando a cidade. Des-
de sempre no interior sem nunca sair, reconhecendo-o, Sócrates se
achega dele. Do silêncio inaugural, inicia a obra: de repente, do nada,
subitamente, Sócrates aborda o melhor dos rapsodos gregos – Íon de
Éfeso – no momento exato em que ele, de sua errância, adentra a cida-
de. Explosão inicial do diálogo.
Quem é este que aborda o melhor dos rapsodos gregos, o semi-es-
trangeiro Íon de Éfeso, sem o convocar a uma recitação – que deverá acon-
tecer, futuramente, fora do diálogo, nas Panatenéias –, mas o seduzindo a
uma conversação filosófica, com a qual o rapsodo não é familiar? Quem é
este que nunca sai de Atenas para não se arriscar a ser preso como feiticei-
ro, que enfeitiça, entorpece, narcotiza e encanta seus interlocutores? Quem
é este que não sabe o que ocorre fora de sua cidade, Atenas, que não sabe
nem mesmo que os epidáurios estão promovendo as disputas de rapsodos
em honra ao deus [530 a]? Quem é este que aparentemente se situa sem-
pre na mesma cidade dando as boas-vindas àquele que nunca pára e o
induz a parar? Sócrates, o idiota, o ateniense que, desde o começo, através
do diálogo, tira Íon de seu eixo, de seu centro, que o desloca, o dissitua, o
desassenta, o desorienta, trazendo o estrangeiro para aquilo que a ele é
periférico: ao invés de à poesia com sua recitação, à conversação filosófica.
A conversação filosófica é o estrangeiro do estrangeiro, a periferia do pe-
riférico, onde ele realmente se sente estranho, sem solo, deslocado, des-
norteado, desolado. A ela, pela força, o lutador Sócrates arrasta todas as
50 COMUM 23
pessoas que, porventura, lhe parecem disponíveis, agarrando-as, sem as
deixar facilmente ir embora. Quem é Sócrates? Na Apologia [21 a], em
nome da defesa contra as acusações que almejam sua condenação, Sócrates
conta que um antigo amigo de infância e de toda a vida, Querofonte, foi
uma vez ao oráculo de Delfos, tendo lhe perguntado se havia alguém mais
sábio do que Sócrates. A Pítia declarara ser o ateniense o mais sábio dos
gregos, o melhor dos gregos, o primeiro dos gregos em sabedoria.
O encontro ficcionalizado no Íon não é entre duas pessoas quaisquer do
povo, que, da maneira como se realiza, pudesse ocorrer fora dos pergami-
nhos platônicos. Como bom grego oriundo da tradição agonística homérica,
para colocar a rapsódia, a poesia e a filosofia em questão, Platão lança a
invenção de uma reunião casual entre dois dos melhores homens gregos
de sua época – o número um dos rapsodos e o número um dos sábios,
ainda que este último seja um sábio de uma nova espécie de sabedoria,
que se caracteriza por seu não-saber, por sua idiotia, por sua ironia, pela
philia, ou seja, por uma amizade combativa, por uma abertura questionadora,
por uma disposição que não mais se assenta nem se situa, por um humor
dissituado, desassentado, desorientado em relação à sabedoria, em relação
à poesia. Quem é o melhor dos gregos? Onde está a excelência contempo-
rânea? O que pode a poesia? O que pode a filosofia? Como ambas se
distinguem? Como ambas se confundem? Uma das genialidades constan-
tes, e maiores, da escrita de Platão: trazer o poeta e o filósofo para uma
conversação num diálogo que é, sempre, simultaneamente, poético e filo-
sófico. Poético-filosófico. Filosófico-poético.
De Íon, a cidade ressalta como uma imagem conceitual, como uma
geografia conceitual. Éfeso: a periferia, com sua atual dependência de Ate-
nas. Éfeso: a poesia, ao encontro da filosofia e do poético-filosófico. Éfeso:
a cidade entusiasmada. Há toda uma imbricação neste jogo de cidades.
Íon, o entusiasmado, o rapsodo, de Éfeso, e Sócrates, o idiota, o filósofo, de
Atenas. O que é a Atenas de Sócrates? Atenas: a metrópole. Atenas: a
filosofia derivando-se da poesia e, dela, receptora. Atenas: a pedagogia e a
política. Mas será que, nos diálogos, se trata de uma Atenas geográfica,
política, histórica, que, ainda hoje, pegando um avião ou um navio, poder-
se-ia visitá-la em suas ruínas, revê-la em seus restos arqueológicos, estudá-
la nos atlas geográficos universais e nos livros de história grega, por mais
bem intencionados que sejam? Será a Atenas que encontraríamos, se en-
trássemos num túnel do tempo e voltássemos dois mil e quinhentos anos,
COMUM 23 51
ou quase isto? Será que a Atenas socrática é a da praça pública, dos tribu-
nais, dos conselhos, das leis, dos partidos, dos cargos, dos banquetes, dos
nobres, dos escravos, das heranças familiares...? Sem dúvida, esta Atenas
participa da escrita platônica, mas, de tal forma que se submete a ela. Se,
em Platão, a cidade recebe a medida da escrita, de que modo ocorre tal
transfiguração urbana? Espraiando-se por suas colônias, Atenas é, primei-
ramente, uma cidade de papel e palavras, um reino do pensamento, que
caracteriza qualquer lugar, todo lugar, lugar nenhum. Ou seja: a Atenas
socrática é uma Atenas, primordialmente, filosófica.
O que significa uma cidade filosófica? Como pode uma cidade, por
filosófica, ser atópica? Como o filósofo habita esta cidade? Que cidade
o filósofo habita? Criada pela poética de Platão para ser socrática, Ate-
nas há de ser, portanto, dissituada, tornando o filósofo ignorante de
tudo o que, de Atenas, é apenas localizado, tornando-o desinteressado
por tudo o que, de Atenas, é somente territorializado; mas, se o filó-
sofo se afasta da Atenas topográfica, não é para, através de tal
alheamento, visar à graça de ser estimado, tornando-se, por sua repu-
tação, o mais popular dos homens, ainda que de modo anedótico como
no caso de Tales e sua queda no buraco enquanto contemplava os as-
tros. Tal tipo de abstenção filosófica não acontece tampouco em nome
de uma recusa da cidade, mas pela presentificação de uma possibilida-
de de dar uma medida da cidade, assim como os physiólogos davam uma
medida da natureza – Peri poleos, como antes, Peri physeos, e, simultane-
amente, já pela escolha da cidade, não mais como antes. No Teeteto,
Sócrates fala acerca do modo de o filósofo habitar a cidade:
52 COMUM 23
Nesta passagem, uma das mais difíceis, belas e, no que toca a voltagem
do pensamento, generosas dos diálogos platônicos, há toda uma poética da
habitação, toda uma filosofia da moradia. É lídimo apontar que não há uma
negação do corpóreo, do explicitamente urbano, do que ocorre pelo meio
do povo, mas uma medida para eles, que, através de um deslocamento,
não os deixa fixos nem fechados sobre si. Só a partir desta medida, sob seu
comando, o que diz respeito ao citadino é tomado como “estas pequenices
e coisas de nonada às quais (a diánoia) dá pouca importância”. Em suas
vidas cotidianas gerenciadas pelos afazeres diários não refletidos e imersas
num mundo regrado por tudo o que se encontra, constantemente, de an-
temão legislado e eticamente pré-determinado, os homens são, de modo
habitual, situados, territorializados, localizados, assentados, centralizados,
classificados, norteados, orientados, enfim, tópicos, assentindo em se tor-
narem passíveis de uma pura repetição infindável do que, previamente, já
fora por muitos experimentado. Assim como a chegada do rapsodo efésio
para o meio do povo ateniense se evidencia como uma epidemia, um dos
modos corpóreos de os filósofos estarem na cidade também é epidêmico
(alla toi onti to soma monon em tei polei keitai autou kai epidemei). O repouso
estabelecido e uma errância qualquer por entre o povo de um lado a outro
dos muros da cidade não bastam ao modo de ser do filósofo – como
tampouco um nomadismo corpóreo interurbano é suficiente para assegu-
rar ao rapsodo sua fama de ser o melhor –, que procura o diferencial da
maneira de o homem habitar o mundo.
Ao invés de se tornarem os sedentários do senso-comum habitual ou,
o que dá no mesmo, vagamundos que se contentam exclusivamente com
o perambular de um canto a outro sem se exclamarem com a experiência
do périplo que estão realizando, os filósofos, assim como os poetas (e os
rapsodos), realizam seu pensamento a partir da perplexidade, da admira-
ção ou do espanto provocados pela pregnância disto que, originário, go-
verna a maneira do usual costumeiro se manifestar com tudo que, suposta
e aparentemente, lhe é regular, constante, previsível, legítimo. Assenta-
dos em seus corpos, que por sua vez habitam a cidade, os filósofos, estes
híbridos – meio corpóreos, meio dianoéticos, em outras palavras, corpóreos
enquanto dianoéticos e dianoéticos enquanto corpóreos, ou seja, simultâ-
nea e indiscernivelmente corpóreos e dianoéticos –, mostram, no ordiná-
rio, o extraordinário que o atravessa, no previsível, o imprevisível que o
transpassa, no habitual, o inabitual que o risca, no sólito, o insólito que o
COMUM 23 53
compõe, no contínuo, o descontínuo do qual aquele é apenas um ros-
to... Neles, o aparecido está submetido à ininterrupta força de criação,
tal qual o poeta utiliza as imagens dadas pelo que está à sua volta para,
através delas, deixar ser deflagrada a força poética instauradora que tudo
passa a controlar.
Num livro de Guimarães Rosa, por exemplo, desde a primeira entre
quase seiscentas páginas, o sertão geográfico está explicitamente submeti-
do a uma intensidade única e atópica:
Ou, ainda, mais diretamente atópico: “O sertão é sem lugar”40. ... Ou,
repetindo, o sertão geográfico se encontra explicitamente submetido a
uma intensidade única, atópica e – dianoética: “sertão é onde o pensamen-
to da gente se forma mais forte do que o poder do lugar” 41. Por isto,
também a respeito de Rosa, em suas viagens, realmente, apenas o seu
corpo se situa exatamente ali dentro do sertão empírico, geográfico, va-
gando no meio dos sertanejos que o habitam; o mesmo poderia ser dito
de todo e qualquer poeta, como, por exemplo, de Manoel de Barros em
relação ao Pantanal, em meio aos pantaneiros. É um fato: sejam poetas,
romancistas, filósofos ou quaisquer outros, os pensadores só habitam a
cidade corporalmente: no não-lugar da diánoia, que torna todos os lugares
permeáveis a ela, eles se dissituam, se desassentam, se deslocam, se
54 COMUM 23
desterritorializam, se desnorteiam, se desorientam para darem luz a no-
vas imagens deste desterro. A diánoia se comporta, portanto, enquanto a
cidade filosófica, a cidade atópica. A diánoia é a Atenas filosófica platônica.
Na qual Sócrates, atópica e filosoficamente, habita.
O que a passagem traduzida do Teeteto diz da diánoia? Primeiramente,
que ela voa por todos os lados, dirigindo-se e se entregando a tudo o que
existe, sem se deixar, em pane, cair de seu vôo, fixar-se em nada de sua
vizinhança; a ela, nunca falta combustível para estar em todos os lugares ao
mesmo tempo, já que, desde si mesma, ela queima, liberando energia e o
mais que lhe é conseqüente por fissão e fusão. Apesar da entrega, esta
infixidez volátil, simultaneamente, se retrai; apesar da doação, misturan-
do-se, confundindo-se, também se distancia, distinguindo-se, separando-
se – toda esta movimentação não a deixa se reduzir a uma nova aparência
entre as que existem, nas quais ativamente participa. Comandando os en-
tes em sua multiplicidade, neles, se presenciando, deles, ela se ausenta,
como toda força governante42. Se a diánoia é geômetra, deve-se ao fato dela
dar a medida de toda a superfície da extensão terrestre, que não se resume
ao mundo do sempre visível da planura. Aqui, a extensão não se mede por
fita métrica nem por nenhuma outra unidade quantitativa. É preciso en-
globar o céu com seus astros. Força que lida com o que se comprime entre
o céu e a terra, tudo, ela mede. Quem dá, entretanto, medida ao céu e à
terra, estes dois limites extensivos do mundo sensível? Também ela, que,
geômetra e astrônoma, mede, legisla, cosmogonicamente, como disse
Píndaro, desde os subterrâneos até o para além do céu, atravessando tudo o
que existe, existiu e ainda poderá existir, submetendo, além dos homens,
inclusive, os deuses. Trabalhando na encruzilhada entre o finito e o infini-
to, atravessando tudo o que existe, a medida do céu e da terra se subtrai,
invisível, no que, por imperceptível pela exclusividade dos sentidos, é cha-
mado de subterrâneos e para além do céu. A cada instante, de todas as manei-
ras, na totalidade de cada um dos entes, esta medida perscruta a completude
da natureza, que, integralmente, instaura sua força no todo de qualquer
manifestação possível. Na diánoia, cada um dos entes, na sua totalidade
individual, manifesta a completude da physis. Como instabilidade prolífera
de todo e qualquer acontecimento, como manutenção inclusiva de um
fora comandante dos entes que se queriam exclusivos e auto-regentes,
como encruzilhada do aparecer e do não-aparecer, do finito e do infinito
por toda a planura que o homem habita, esta plenitude, também chamada
COMUM 23 55
de belo por ser a beleza a corporificação da totalidade unitária da natu-
reza em uma singularidade, é o que faz o para além do céu convergir,
para a planura, em uma tensão com os subterrâneos. A planura é a força
convergentemente afirmativa das divergências tensivas que, a cada
momento, geram o movimento de todo o existir. Aqui, a fórmula: diánoia
= métron, medida43. Aqui, outra fórmula: Peri poleos = Peri physeos. Aqui,
mais uma fórmula: Platão = pré-socrático; ou mesmo a fórmula ana-
crônica: Sócrates = pré-socrático.
O Crátilo [396a] oferece uma possibilidade de compreensão para a diánoia
que se harmoniza muito bem com a passagem do Teeteto citada:
56 COMUM 23
outra genealogia, mais adequada ao nome, mostrando que é este quem
governa, comandando, como a diánoia, inclusive, os deuses (o vínculo en-
tre ónoma e diánoia assinala que esta e o logos são o mesmo, como apontado
no Sofista44). Tal o filósofo, a diánoia e a própria compreensão de nome,
Zeus, este nome divino, se mostra híbrido.
Na etimologia poética de Platão, são duas, as ramificações que confir-
mam a perfeição híbrida do nome, o fato dele ter sido corretamente no-
meado: Zeus = Zena + Dia. Zeus = Vida + Através. Pela intermediação do
nome, desdobrar o politeísmo inerente ao significante, exponenciá-lo, jo-
gar com ele. Onde se perguntava por apenas um dos deuses, agora, a nova
equação responde com dois, recém-gerados por meio de um corte ou de
uma cissiparidade, para, a partir deles, confundidos ao próprio nome, di-
zer melhor a natureza total daquele primeiro deus e do próprio ato de
nomear – pois é disto que, efetiva, primeira e ultimamente, se trata, já
que nomear, se poética ou filosoficamente, é um ato híbrido que estetiza
a plenitude métrica do cosmos dianoético, corporificando-a; além de ser a
questão central do Crátilo. Há todo um sutil deslizamento dos deuses,
como modos de manifestação do real, para os nomes, como maneira pri-
vilegiada de configuração do real, como se fosse um redirecionamento da
teogonia à logogenia: de um deus ao nome de um deus, e, deste, à criação
nominal de dois novos deuses, para voltar ao nome do deus inicial,
reconfigurando o que era um antigo deus em um novo sentido, nominal,
até então inaudito. Não é apenas o cosmos que se torna discursivo, mas o
discurso que engendra o cósmico; não é apenas a natureza que repousa nas
palavras, mas estas que movimentam a natureza. A verdade é o desvelamento
que decorre da linguagem e, daí, antecipadora, torna todo o derredor per-
meável a ela. À escuta do nome e do lógos, a filosofia nasce e se fortalece
em todo o seu vigor – fora deles, nada faz sentido por si só.
Esquizogenizar, portanto, para, desdobrando a prole, logo em seguida,
reunir as duas crias, visando a perfeição do nome. Nesta nova equação, “o
governante e rei de tudo o que existe, é a causa da vida, por ser Através
(Dia) dele que todos os vivos sempre alcançam a Vida (Zen)”45. De Zeus,
poder-se-ia dizer, portanto, que é o meio de vivificação de vida, mas, se
não é filho de Cronos, quem é, então, seu progenitor ou sua progenitora?
O texto diz que é bem dito, que é digno de aplausos, que é, sobretudo, de
acordo com o lógos, afirmar que Zeus (Dia) tenha sido gerado por uma
magnífica diánoia. Se o Zeus divino é o meio de vivificação de vida, a diánoia
COMUM 23 57
é a mãe filosófica, à qual os deuses estão submetidos, de o meio de
vivificação de vida, vida geradora de o meio de vida que gera tudo o que é
vivo cortando-o com vida. Diánoia parece ser vida que, em sua
potencialidade máxima, em sua máxima plenitude, vivifica tudo o que é
vivo, arranjando-o em um cosmos vivificado pelo caos como uma de suas
aparências, como um de seus corpos... Submeter a religião e a tradição ao
ónoma e ao logos, indiferenciando estes da atopia dianoética – que estranhe-
za perigosa a uma Atenas territorializada, norteada, orientada, tópica, não
filosófica, realizada pelo mais sábio, entretanto, mais feio dos homens!
Pelo que parece, seria necessário curar a cidade da feiúra desse vírus epi-
dêmico, expulsar Sócrates da cidade... Seria preciso uma nova expulsão, a
dos filósofos... A expulsão do filósofo da cidade. Ou sua morte.
Uma pergunta feita páginas atrás merece ser recolocada: é Íon de Éfeso,
como Sócrates de Atenas? Se a Atenas socrática é dianoética, habita Íon,
o vagante epidêmico, como Sócrates, a diánoia? A presença de ambos na
cidade é mediada pela imediação da diánoia? É a diánoia o vírus infeccioso
que, através de Íon, pelos operadores invisíveis e veículos condutores da
poesia, sempre contamina seus hospedeiros? A rapsódia e a poesia com-
partilham a experiência filosófica, ou melhor, a filosofia se desassenta no
não-lugar em que a poesia sempre se dissituou, prosseguindo e desdo-
brando a experiência da tradição em possibilidades diferenciadas ainda
não testadas? Filosofia, poesia e rapsódia partem todas da mesma empatia
vital, como modos de incorporação da diánoia, ajudando-a a se manifes-
tar? Para se revelar, a diánoia precisa, então, do corpo das palavras, do
corpo do poeta, do corpo do rapsodo, do corpo do filósofo, do corpo do
ator, e de suas vozes? São o corpo e a voz aquilo de que a diánoia, para se
consolidar, tem mais necessidade de afirmar? Estas interrogações antes
exclamam do que indagam.
O vínculo indestrutível que funde o poeta ao filósofo, tornando-os, de
alguma maneira, o mesmo, já estava assinalado na própria passagem citada
do Teeteto, quando, falando da maneira de o filósofo habitar a cidade atra-
vés da diánoia, é um poeta, Píndaro, quem é trazido por Sócrates para
dizer algo desta vivência filosófica. Aqui, Platão indica: o que ele quer
dizer do filósofo pode ser igualmente bem dito a partir do poeta. E quan-
to ao rapsodo? O mesmo parece ser afirmado em uma das principais falas
de Sócrates no Íon, a primeira logo após o breve preâmbulo previamente
abordado, a primeira que introduz o que gostaria de chamar de a parte
58 COMUM 23
proposicional do diálogo, aquela que abre um leque de ambigüidades, va-
riações e planos de intensidade possíveis (530 b 5 – 531 a 1, apenas até o
começo da frase, quando Sócrates adia a escuta da recitação de Íon):
Notas
1. NIETZSCHE, F. Crepúsculo dos ídolos. Traduzido por Marco Antonio Casa Nova. Rio de
Janeiro: Relume Dumará, 2000, p. 112.
2. NIETZSCHE, F. O nascimento da tragédia. Traduzido por J. Guinsburg. São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 1992, p. 88.
3. Id. Ibid.
4. Ibid., p. 89.
5. LAÊRTIOS, DIÔGENES. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Trad. Mário da Gama Kury.
Brasília: UnB, 1988, p. 94.
6. Id. Ibid., p. 86.
7. PLATÃO. La repúblique. Trad. par Émile Chambry. Paris: Les Belles Lettres, 1973. Tome VII,
2e partie, livres VIII-X. 605b, p. 99, 3 volumes, vol. 3.
8. Id. Ibid., 607b, p. 102-103.
9. Ibid.
10. Ibid., 607c, p. 103.
11. Ibid., 607b, p. 103.
12. LAÊRTIOS, DIÔGENES. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Trad. Mário da Gama Kury.
Brasília: UnB, 1988, p. 91.
13. Nietzsche, F. Homer’s constest. In: The portable Nietzsche. Edited and translated by Walter
Kaufmann. New York: Penguin Books (The Viking Portable Library), 1976, pp. 37-38.
COMUM 23 59
14. SCHLEIERMACHER, Friedrich D. E. Introdução aos Diálogos de Platão. Tradução Georg
Otte, revisão técnica e notas Fernando Rey Puente. Belo Horizonte: UFMG, 2002, p. 66.
15. LAÊRTIOS, DIÔGENES. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Trad. Mário da Gama Kury.
Brasília: UnB, 1988, p. 97.
16. ARISTÓTELES. Metafísica. Madrid: Editorial Gredos, 1990. Edición trilingüe por Valentín
García Yebra. 985a10, p. 30; 982b13, p. 14; 987a29, p. 44.
17. PLATÃO. Protágoras. Trad. por Eleazar Magalhães Teixeira. Fortaleza: EUFC, 1986. 316d, p.
101.
18. LAÊRTIOS, Diôgenes. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Trad. Mário da Gama Kury.
Brasília: UnB, 1988, p. 15.
19. Id. Ibid., p. 13.
20. GOETHE, Johann Wolfgang von. Plato as Party to a Christian Revelation. In: Essays on Art
and literature. Edited by John Gearey and translated by Ellen von Nardroff and Ernest H. von
Nardroff. Princeton: Princeton University Press, 1994, p. 201.
21. Id. Ibid., p. 200.
22. Ibid.
23. LAÊRTIOS, Diôgenes. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Trad. Mário da Gama Kury.
Brasília: UnB, 1988, p. 93. LAÊRTIOS, Diôgenes. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Trad.
Mário da Gama Kury. Brasília: UnB, 1988, p. 98.
24. GOETHE, Johann Wolfgang von. Plato as Party to a Christian Revelation. In: Essays on Art
and literature. Edited by John Gearey and translated by Ellen von Nardroff and Ernest H. von
Nardroff. Princeton: Princeton University Press, 1994, p. 203.
25. Id. Ibid., p. 200.
26. FERRAZ, Maria Cristina Franco. O Poeta, como O Sofista: um fingidor. In: Platão - As
artimanhas do fingimento. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999, p. 35.
27. Id. Ibid., p. 41.
28. GOETHE, Johann Wolfgang von. Plato as Party to a Christian Revelation. In: Essays on Art
and literature. Edited by John Gearey and translated by Ellen von Nardroff and Ernest H. von
Nardroff. Princeton: Princeton University Press, 1994, p. 203.
29. KIERKEGAARD, S.A. O conceito de ironia; constantemente referido a Sócrates. Apresentação e
tradução Álvaro Luiz Montenegro Valls. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 42.
30. Vale lembrar que estamos entendendo esta palavra como aquilo que caracteriza o sábio
segundo o próprio Sócrates no diálogo, ou seja, estando vinculado aos poetas, atores e rapsodos.
31. Id. Ibid., p. 96.
32. LACAN, Jacques. O Seminário. Livro 8: a transferência. Versão brasileira de Dulce Duque
Estrada. Revisão de Romildo do Rego Barros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992, p. 155.
33. DERRIDA, Jacques. A farmácia de Platão. Tradução de Rogério da Costa. São Paulo: Iluminuras,
1991, p. 66. (Vale lembrar que torpedo (nárke) é uma arraia que emite descargas elétricas que
causam entorpecimento).
34. KIERKEGAARD, S. A. O conceito de ironia;constantemente referido a Sócrates. Apresentação e
tradução Álvaro Luiz Montenegro Valls. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 42.
35. FERRAZ, Maria Cristina Franco. O Poeta, como O Sofista: um fingidor. In: Platão - As
artimanhas do fingimento. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999, p. 41.
36. Referência esta que, caracterizando Sócrates, atravessa os diálogos platônicos, como, por
exemplo, Fedro 229c, Teeteto 149 a, Górgias 494 d, Banquete 215 a, só para citar alguns.
60 COMUM 23
37. LAÊRTIOS, Diôgenes. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Trad. Mário da Gama Kury.
Brasília: UnB, 1988, p. 93.
38. GOETHE, Johann Wolfgang von. Plato as Party to a Christian Revelation. In:Essays on Art
and literature. Edited by John Gearey and translated by Ellen von Nardroff and Ernest H. von
Nardroff. Princeton: Princeton University Press1994. Ibid. p. 200-201.
39. ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1984, pp.
7-8.
40. Id. Ibid., p. 331.
41. Ibid., p. 24.
42. Mostrando que sua compreensão de diánoia provém do nous de Anaxágoras, o mesmo é dito
no Crátilo [413 c]: “(...) o que diz Anaxágoras, que o nous é autocrata, pois é por si mesmo, não
se mistura com nenhuma das coisas naturais e, atravessando todas elas, as arranja em um
cosmos”.
43. Para métron, conferir o fragmento 30, de Heráclito.
44. Cf. PAES, Carmen Lucia Magalhães. Platão e A mãe do ouriço do mar. In: Kléos - Revista de
Filosofia Antiga, volume 1, número 1. Rio de Janeiro: Programa de Estudos em Filosofia Antiga,
IFCS-UFRJ, julho de 1997, pp. 143-156.
45. As maiúsculas vão apenas por serem designativas de nomes do deus, para salientar as divin-
dades, nominais, da Travessia e da Vida.
Resumo
Através de uma leitura de Platão como, simultaneamente, poeta e
filósofo, o ensaio busca desfazer as caricaturas habituais criadas diante
do Íon. Se, na modernidade, elas começam com o texto de Goethe sobre
o respectivo diálogo, é nele também que vejo uma saída para uma outra
compreensão, que, aqui, parcialmente se mostra. Perguntar pela ironia e
tentar localizar o que no Íon é irônico, eis o primeiro objetivo do ensaio;
o segundo é começar apontar, a partir do prólogo do diálogo, a determi-
nação afirmativa da rapsódia e da poesia, dando destaque à sua incorpo-
ração da diánoia, que as vincula com a filosofia. Publicando estas duas
primeiras partes do ensaio, saliento, apenas, que ainda falta uma terceira
a ser escrita, finalizando uma trilogia sobre o Íon; nela, além do desdo-
bramento do segundo movimento deste texto, virá a explicação do mo-
tivo do próprio Sócrates se dizer um idiota (idiotés) e chamar o persona-
gem Íon de entusiasmado.
Palavras-chave
Platão, Íon, Goethe, ironia, rapsódia, poesia, técnica, diánoia.
COMUM 23 61
Abstract
Throughout an interpretation of Plato as poet and philosopher, this
essay tries to undo the common-sense caricatures established about the
Ion. During the modernity, if they had started with Goethe’s text about
the respective dialogue, it is also there that I see a way to a different
understanding. The first goal of this essay is to ask for irony trying to
determine what really is ironic at Ion; the second aim is, through de
introduction of the dialogue, to begin to show the affirmative
determination of rhapsody and poetry, giving special attention to their
embodiment of dianoia, which makes them united to philosophy.
Publishing these two parts of the paper, I would like to say that there is
still a third one waiting to be written, completing a trilogy about the Ion;
at the third part, besides the continuation of the second movement of this
text, there will be an explanation for the motive that takes Socrates to call
himself an idiot (idiotes) and Ion an enthusiast.
Key-words
Plato, Ion, Goethe, irony, rhapsody , poetry, technique, dianoia.
62 COMUM 23
Estudos da Comunicação:
um paradigma para o século XXI*
64 COMUM 23
da natureza”. Isto é, para ela, uma verdadeira “rebelião contra a existência
humana tal como nos foi dada”. O homem moderno pareceria desejar
trocar um “dom gratuito vindo do nada [...] por algo produzido por ele
mesmo” (1981: 10). O grave dessa operação está em que “o desapareci-
mento do mundo tal como dado pelos sentidos” fez também desaparecer
junto com ele “a possibilidade de transcender-se o mundo material em
conceito e pensamento” (p. 301) – o que é o perigo maior, pois se não há
uma transcendência garantidora para pensar, como pensar?
***
COMUM 23 65
No final do século XX e início do XXI, a via heideggeriana continua
rendendo frutos em muitas tentativas de reflexão a respeito do ambiente
sociotecnológico em que vivemos e somos produzidos. O filósofo francês
Jean-Luc Nancy (1940-) reconhece que estamos numa época de mutação,
em que um tipo de civilização terminou no interior do próprio Ocidente
– o que não deve ser lamentado, pois, na verdade, pode engendrar um
mundo novo a partir do entendimento de que “o mundo não tem outro
sentido ou fim senão ser seu próprio sentido ou seu próprio fim – para o
melhor ou para o pior” (2002a: 54). Entretanto,
66 COMUM 23
Atividades mentais: inflação da razão
COMUM 23 67
aponta para perspectivas bastante diversas daquelas decorrentes das
considerações heideggerianas:
O artificialismo freudiano
68 COMUM 23
Sigmund Freud (1856-1939), o qual, já bem avançado em seu percurso
teórico, ocupado com o Mal-estar na cultura (1930), diz que, “através de cada
instrumento, o homem recria seus próprios órgãos, motores ou sensori-
ais, ou amplia os limites de seu funcionamento” (1976c: 110), o que o
torna “uma espécie de ‘Deus de prótese’”4 (p. 111) e que, no futuro, a
“semelhança do homem com Deus” só tende a aumentar (p. 112). Mesmo
admitindo que o homem não se sente feliz com esta semelhança – é uma
das razões do mal-estar –, sua aposta na psicanálise como terceira revolu-
ção, depois da copernicana e da darwiniana, sempre ressaltou o caráter
protético que a constitui desde o início como nova teoria da mente e cons-
truto prático de intervenção clínica individual e cultural. Basta lembrar
que ele concebe a vida mental como função de um aparelho extenso no
espaço, composto de várias partes e imaginado como “semelhante a um
telescópio, microscópio, ou algo desse gênero” ([1938]1975b: 169).
A difusão tecnológica se dá, portanto, lentamente no início do século
XX, mas bem mais rápido que no século XIX. Até que, como dissemos, a
partir dos anos 1980 passa a acelerar-se em progressão geométrica. É claro
que inúmeros novos problemas surgem e parecem aumentar a cada dia. É
importante retomar agora a questão da técnica, pois, mesmo que soluções
não sejam visíveis a curto ou médio prazo, não vemos por que abordar a
tecnologia e seus efeitos com noções e conceitos claramente inoperantes
diante das ocorrências do mundo contemporâneo. Não cabe, de modo
algum, desdenhar os esforços e os achados de inúmeros pensadores sem
os quais seria impossível entender mesmo isto que estamos colocando
agora, mas a tarefa urgente é de preferencialmente aprofundar tradições
que indiquem vias de aperfeiçoamento das reflexões produzidas nos últi-
mos cinqüenta anos e que efetivamente possibilitem intervir em seus
desenvolvimentos. Só assim, nossa estranheza e nosso mal-estar terão
condições de se manifestar mais adequadamente, e não mediante o refor-
ço de sintomas de caráter retrogressivo que, quando não analisados a tem-
po, instalam-se pesadamente e passam a ser duros empecilhos para trata-
mentos mais desenvoltos dos problemas (e das soluções).
Parece-nos, pois, bem mais produtivo investir no entendimento
das conseqüências do que, por exemplo, escreve Peter Sloterdijk
(1947-) ao tratar dos saberes ligados à teleinformática e às biotecno-
logias do século XXI: “Os seres humanos não se encontram com
nada de novo quando se expõem à própria criação e manipulação, e
COMUM 23 69
não fazem nada perverso quando se auto-modificam tecnolo-
gicamente” (Sibilia, 2002: 130) 5.
O que apresentamos até aqui visa não só recensear minimamente al-
guns enfoques dados ao tema da Técnica, mas, sobretudo, descartar certas
matrizes de pensamento evidentemente sem maior serventia hoje, em-
bora ainda bastante atuantes. Isto, como requisito para considerarmos um
campo que, na década de 1980, reformata o aparelho teórico-clínico da
psicanálise em função da nova dinâmica que permeava todos os setores da
vida mental, social e econômica. Era evidente que a psicanálise não podia
continuar assentada em todas as mesmas bases utilizadas até então. Se,
desde o início do século, estas bases serviram para introduzir um outro
modo de entender e intervir na cultura, nos últimos 20 anos, diante do
que se afigurou como presença planetária da tecnologia, tornou-se neces-
sário repensar tudo. Não havia nada de muito complicado nisto, pois a
psicanálise só foi concebida assumindo-se como processo (infinito) de
análise da própria psicanálise. Assim, depois do início com Freud, veio
Jacques Lacan (1901-1981) continuar o trabalho de abstração buscado por
sua teoria, liberando-a de muitos aspectos comportamentais e circunstan-
ciais que a estavam atravancando. Não foi ele o único a realizar esta tarefa,
mas com ele foi levada a um ponto máximo em seu tempo. Feito este
trabalho, logo após sua morte, muitos viram a necessidade de outros pas-
sos capazes de mais abstração.
70 COMUM 23
Freud (...) podia encontrar algum mistério, alguma ignorância
dele mesmo aqui e ali, mas insistia em que, se refletíssemos,
acabávamos achando como as coisas se comportavam e um
modelo qualquer que pudesse dar conta do processo em cur-
so numa emergência qualquer, e até intervir nesse processo
de maneira a produzir algo da ordem de um artifício eficaz.
Ou seja, ele era um tecnicista no sentido grego arcaico de téchne,
arte, produção, invenção, artificialismo. Enfim, Freud já era
um excelente artificialista e me recuso a entender que qual-
quer via psicanalítica, que possa se sustentar como tal, tenha
qualquer laivo de naturalismo. Se ele fosse um naturalista,
não iria dizer a “asneira” – seria uma asneira do ponto de vista
naturalista – da sexualidade infantil, por exemplo. É preciso
ter toda uma transa técnica artificialista com a criança para sa-
car que aquilo era função sexual (Magno, 1989: 215-6).
COMUM 23 71
clínica psicanalítica – Clínica Geral (das pessoas e da cultura), como
chama a Nova Psicanálise – constata a cada momento são os constan-
tes vazamentos e porosidades entre todos os campos de consideração
dos fatos. Por exemplo, porosidade entre Téchne e Logos, e não sepa-
ração (tecno-logia) como angustiadamente quer sustentar a via de ins-
piração heideggeriana.
Em função da atual disponibilidade de dispositivos de arquivamento
que se aperfeiçoam e se tornam mais acessíveis e acessáveis, podemos
considerar a tecnologia como possibilitadora da implantação de modos
de análise que operam tanto com novos dados que chegam a todo instan-
te, quanto com outros que estariam sendo impedidos de chegar, mas
cujos efeitos também se presentificam ainda que como sintoma (ruído)
denunciador de que é preciso levá-los em conta, caso contrário passam a
ser obstáculos a um melhor fluxo dos dados. Os procedimentos de si-
mulação em uso atualmente são um bom exemplo de como operar com
este segundo tipo de fluxo (recalcado) dos dados, na medida em que
podem criar situações alternativas virtuais sem modificar a situação em
vigor. Isto é importante, pois, em muitos casos, pode funcionar como
eliminador de ódios e raivas dirigidos a certos itens que supostamente
seriam destruidores se lhes fosse permitido entrar em vigor, mas que,
uma vez simulados, podem se revelar mais adequados para a solução de
certos problemas da própria situação vigente. É esta operacionalidade –
de caráter político mesmo – que conceitos como o de Recalque e, sobre-
tudo, o de Retorno do Recalcado, tal qual aperfeiçoados por Freud e
retrabalhados pela Nova Psicanálise, sempre exigiram como condição
para mapear ao máximo os jogos de poder atuantes nas formações mentais
e sociais que se busca analisar.
Daí, tomarmos a Análise clínica das formações – já descrita em outro
artigo (1999) – como o instrumento mais adequado para guiar nossa
abordagem da Técnica. Ela está referida ao axioma pulsional criado por
Freud (1920) e re-lido pela Nova Psicanálise como: “Haver quer não-
Haver” (a vocação de tudo que há [Haver] é movimentar-se no sentido
de sua própria extinção [não-Haver]: como não a atinge, permanece
eternamente revirando em oposições e avessamentos) –, ou seja, está
referida a uma abstração que trata qualquer formação e seus conteúdos,
por mais universais que pareçam, como circunstanciais (ainda que du-
rem milênios), sintomáticos e passíveis de análise, pois são meros efei-
72 COMUM 23
tos de a Pulsão não atingir sua (impossível) anulação absoluta. Esta análise
não pressupõe, no Haver, diferença material entre res extensa e res cogitans,
mas sim “diferença de posição, de arranjo, de região, de séde ou de
aparelho de produção da extensionalidade ou do pensamento”, decor-
rendo daí que: “O que se pensa in factura é análogo ao que se pensa in
natura” (Magno [1991]: 135).
COMUM 23 73
é estacionário e supõe o trânsito por todas as configurações. Quando esta
referência é mantida, as escolhas (quanto a produtos e seu consumo, p.ex.)
podem ser feitas, conforme dissemos no parágrafo anterior, segundo ava-
liações que consideram ao máximo o que é mais adequado às situações em
jogo em dado momento.
Então, para pensar a “Questão da Técnica” nos termos do que nossa
contemporaneidade vem exigindo, não cabe lamentar o esquecimento do
“chamado de uma verdade [grega] mais inicial” (Heidegger) ou o fim da
“possibilidade de transcender-se o mundo material em conceito e pensa-
mento” (Arendt). É mais o caso de se investir no entendimento e na refe-
rência ao processo de In-diferenciação que (queiramos ou não) parece es-
tar se efetivando de modo cada vez mais inevitável atualmente. Este pro-
cesso ocorre (para bem ou para mal) diante da instransponível oposição
última entre Haver e não-Haver. É daí que Próteses podem se discernir
como Criação passível de promover passos (curativos) dentro do movi-
mento geral de tudo que há.
Notas
* Trabalho realizado para o projeto de pesquisa “Artificialismo total: comunicação, psicanálise e
maneirismo na era das próteses”, do “...etc. – Estudos Transitivos do Contemporâneo” (Grupo
de Pesquisa/CNPq).
1. Fundo, mais que estoque, é “a maneira pela qual está presente tudo que é atingido pelo
desvelamento que pro-voca” (p. 23).
2. Essência esta que, como já mencionamos, “em si mesma, não é nada técnica” (p. 28).
3. Esta maneira de entender se baseia nas leituras que Hannah faz do que Werner Heisenberg
(1901-1976) e Erwin Shrödinger (1887-1961), entre outros, escrevem sobre as operações e
condições de conhecimento propiciadas pela física e pela biologia do século XX.
4. Esta indicação freudiana serve de referência a Bruno Mazlich (1993) para propor uma “quarta
descontinuidade”, esta tecnológica, após a cosmológica (Copérnico), a biológica (Darwin) e a
psicológica (Freud).
5. Entender estas conseqüências é o que interessa, e não, como se fez em relação a Sloterdijk,
lançar clichês sobre o ressurgimento de nazismos – que estão ressurgindo, sim, mas nem sempre
onde são identificados como tais. Aliás, se analisarmos os interesses daqueles que insistem em
identificá-los em pensamentos como o de Sloterdijk, talvez encontremos onde estão realmente
ressurgindo. Cf. (Sloterdijk, 2000: 59-63), sobretudo quanto “a irrupção do tablóide no suple-
mento cultural”.
74 COMUM 23
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76 COMUM 23
Resumo
No final dos anos 40 do século XX, delineiam-se (pelo menos) dois
paradigmas para os estudos da Comunicação. Um, crítico, toma a Tecnologia
como causa do “esquecimento do ser” e das verdades humanas essenciais.
Outro, acelerativo, investe na “inflação da razão” e na transformação da
idéia de “natureza” em mero vestígio histórico diante da artificialização
cada vez mais presente em todos os setores da vida. Um terceiro paradigma,
na década de 1980, considera estes dois paradigmas, mas propõe a
“Transformática” como mais apta a um entendimento adequado das ocor-
rências do século XXI (chamado de “Era das Próteses”).
Palavras-chave
Estudos da Comunicação, Tecnologia, Paradigma, Transformática.
Abstract
In the twentieth century’s late 40s (at least) two paradigms for
Communications Studies have been outlined. One – critical – regards
Technology as the cause of the “oblivion of the being” and of the essential
human truths. Another – accelerative – rushes for the “inflation of the
reason” and the transformation of the idea of “nature” into a simple
historical residue in face of the artificiality increasingly present in every
aspect of life. A third paradigm, created in the 80s, considers both of them
but proposes the theory of “Transformatics” as able to produce a better
comprehension of the emerging facts of the 21th century (so called
“Prothesis Era”).
Key-words
Communications Studies, Technology, Paradigm, Transformatics.
COMUM 23 77
Clarice Lispector:
bem perto do coração selvagem da vida
Ivana Barreto
COMUM 23 79
E como era a relação de Clarice Lispector com seus leitores? Mesmo
considerando a hipótese destes leitores terem sido, muitas vezes, criados
pela autora, a relação desenhou-se em um tom de intimidade e constância.
Era como a um confidente que ela se dirigia àqueles que liam seus textos
semanalmente. Pessoas às quais confidenciava dificuldades cotidianas, que
incluíam as angústias de uma mulher às voltas com problemas domésti-
cos. Pessoas às quais confiava, ainda, suas profundas angústias em relação à
vida e ao doloroso e difícil processo da escrita. Embora tenha sido cons-
tante a presença das mulheres no universo dos leitores claricianos, os ho-
mens também foram parceiros fiéis e constantes.
Mesmo reconhecendo o fato de que foi a necessidade de sobrevi-
vência a motivadora de sua experiência na mídia impressa, Clarice
Lispector se empenhou na sua relação com os leitores. E até mesmo
diante do reconhecimento da própria autora de que não se preocupava
muito com os textos a serem publicados no Jornal do Brasil, pois pre-
tendia aproveitar trechos do volume de contos Felicidade clandestina, que
obteve pouca repercussão junto ao público, para ela o leitor sempre
mereceu sua atenção. Era ele seu confidente; era ele com quem desa-
bafava sobre os momentos de repressão pelo qual o Brasil passava no
final dos anos 1960 e início dos 1970.
Assim como o parceiro – quando pensamos na relação amorosa ho-
mem/mulher – pode ser fictício, criado por quem deseja e precisa da pre-
sença do outro, o leitor também pode ter sido criado, em várias situações,
a partir de uma necessidade da alteridade. Contudo, não se deve esquecer
que vários leitores realmente existiram e participaram ativamente da vida
e da obra de Clarice. É o caso de Lúcio Cardoso, amigo fiel e apontado
como possível paixão platônica de Clarice. E também Olga Borelli, que
ajudou a autora na organização do material de um de seus últimos livros.
Ainda com relação à sua experiência em jornal, fica visível o “arejamen-
to” verificado em seus textos. Por serem possivelmente apenas trechos de
romances ou contos, possibilitavam ao leitor mais apressado dos periódi-
cos uma leitura mais leve, por partes, em gotas. Textos que não podem ser
aprisionados em um gênero específico. Até porque a própria conceituação
da crônica dá margem a alguns questionamentos. Por isso, é mais adequa-
do denominar o material publicado na imprensa simplesmente de textos,
ou quase crônicas, ou quase contos.
80 COMUM 23
Além disso, quando se trata de Clarice Lispector qualquer tentativa
de fechá-la em classificações ou denominá-la com rótulos se revelará
infrutífera. Afinal, ela pode ser traduzida como uma autora fugidia,
que ora afirmava, ora negava o que haviam dito ou publicado a seu
respeito. Ela mesma, não se pode esquecer, alertou seus leitores para
que não confiassem nela ou naquilo que criava a partir das suas sensa-
ções do mundo e das pessoas.
Foi por considerar a palavra sua “quarta dimensão”, quase física, quase
materialidade, e acima de tudo por respeitá-la, que Clarice Lispector aca-
bou por sacrificar os elementos narrativos em favor do depoimento psi-
cológico e estético. Com isso, trouxe qualidade artesanal e intensidade de
percepção para o romance e o conto, desde o seu aparecimento na cena
literária brasileira, com Perto do coração selvagem. Por isso, em Clarice nunca
parece falsa ou gratuita a busca que empreende envolvendo um trabalho
de subjetivação da realidade, pela absorção crescente do tu pelo eu. Em
Clarice, todo trabalho empreendido decorreu da sua necessidade de ma-
nusear e expor a um universo maior possível de leitores seu grande
tema: a linguagem.
Para ela, viver, amar, escrever representava criar linguagem. Foi por
isso que fez Lóri, em Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres, se servir do
método mais radical de aprendizagem: o exercício da vida. Mas para isso,
precisou Lóri ultrapassar seu maior obstáculo, que era ela própria e, no
caminho em direção a Ulisses, seu mediador para a compreensão do mun-
do, recolher as lições até o encontro total com a graça, a alegria. Contudo,
com a penosa e alegre história de Lóri, Clarice, mais do que uma história
de amor, do que o encontro linear de duas pessoas, nos apresenta o amor
enquanto revelação do mundo, instauração da linguagem. Linguagem que
não está no homem, mas que é o homem.
Publicado em 1969, Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres conta a his-
tória de Lorely, apelido Lóri, e de Ulisses, professor de filosofia. Depois
de abandonar a casa dos pais, em Campos, a jovem vem para o Rio de
Janeiro em busca de uma liberdade maior. Clarice constitui a personagem
com o anseio que é a busca do mundo feminino: a procura da liberdade e,
mais que isso, da aprendizagem do prazer. Como destaca Silvia Perlingeiro,
na apresentação da 19a edição do romance:
COMUM 23 81
Na busca de Lóri está presente a grande questão que ator-
menta o ser humano desde sempre: a questão da identidade,
do quem sou eu. E essa problemática é mais acentuada ainda
na mulher, por ter sido vedado a ela o acesso ao discurso.
Sujeita a se olhar conforme a ótica masculina, é difícil para a
mulher se ver como pessoa individualizada.1
Já que não tinha sono, foi à cozinha esquentar o café. Pôs açú-
car demais na xícara e o café ficou horrível. Isto levou-a a uma
realidade mais cotidiana. Descansou um pouco de ser. Ouvia
82 COMUM 23
o barulho das ondas do mar de Ipanema se quebrando na praia.
Era uma noite diferente, porque enquanto Lóri pensava e
duvidava, os outros estavam dormindo. Foi à janela, olhou a
rua com seus raros postes de iluminação e o cheiro mais forte
do mar. Estava escuro para Lóri. Tão escuro. Pensou em di-
versas coisas: estavam dormindo ou se divertindo. Algumas
estavam tomando uísque. Seu café então se transformou em
mais adocicado ainda, em mais impossível ainda. E a escuri-
dão dos solitários se tornou tão maior. Estava caindo numa
tristeza sem dor. Não era mau. Fazia parte, com certeza. No
dia seguinte provavelmente teria alguma alegria, também sem
grandes êxtases, só um pouco de alegria, e isto também não
será mau. Era assim que ela tentava compactuar com a medi-
ocridade de viver.3
COMUM 23 83
E há uma bem-aventurança física que à nada se compara. O
corpo se transforma num dom. E se sente que é um dom
porque se está experimentando, numa fonte direta, a dádiva
indubitável de existir materialmente.
No estado de graça vê-se às vezes a profunda beleza, antes
inatingível, de outra pessoa. Tudo, aliás, ganha uma espécie de
nimbo que não é imaginário: vem do esplendor da irradiação
quase matemática das coisas e das pessoas. Passa-se a sentir
que tudo que o existe – pessoa ou coisa – respira e exala uma
espécie de finíssimo resplendor de energia. A verdade do
mundo é impalpável.
Não é nem de longe o que mal imagino deva ser o estado de
graça dos santos. Esse estado jamais conheci e nem sequer
consigo adivinhá-lo. É apenas o estado de graça de uma pessoa
comum que de súbito se torna totalmente real porque é co-
mum e humana e reconhecível.4
84 COMUM 23
diava de pessoas lembradas e de coisas, havia uma lucidez que
Lóri só chamava de leve porque na graça tudo era tão, tão
leve. Era uma lucidez de quem não adivinha mais: sem esfor-
ço, sabe. Apenas isto: sabe. Que não lhe perguntassem o que,
pois só poderia responder do mesmo modo infantil: sem es-
forço, sabe-se.
E havia uma bem-aventurança física que a nada se comparava.
O corpo se transformava num dom. E ela sentia que era um
dom porque estava experimentando, de uma fonte direta, a
dádiva indubitável de existir materialmente.
No estado de graça, via-se a profunda beleza, antes inatingí-
vel, de outra pessoa. Tudo, aliás, ganhava uma espécie de ni-
nho que não era imaginário: vinha do esplendor da irradiação
quase matemática das coisas e das pessoas. Passava-se a sentir
que tudo o que existe – pessoa ou coisa – respirava e exalava
uma espécie de finíssimo resplendor de energia. Esta energia
é a maior verdade do mundo e é impalpável.
Nem de longe Lóri podia imaginar o que devia ser o estado
de graça dos santos. Aquele estado ela jamais conhecera e nem
sequer conseguia adivinhá-lo. O que lhe acontecia era apenas
o estado de graça de uma pessoa comum que de súbito se
torna real, porque é comum e humana e reconhecível e tem
olhos e ouvidos para ver e ouvir.5
COMUM 23 85
coração me tivesse sido tirado, e em lugar dele estivesse agora
a súbita ausência, uma ausência quase palpável do que era an-
tes um órgão banhado da escuridão diurna da dor. Não estou
sentindo nada. Mas é o contrário de um torpor. É um modo
mais leve e mais silencioso de existir.
Mas estou também inquieta. Eu estava organizada para me
consolar da angústia e da dor. Mas como é que me consolo
dessa simples e tranqüila alegria? É que não estou habituada a
não precisar de consolo. A palavra consolo aconteceu sem eu
sentir, e eu não notei, e quando fui procurá-la, ela já se havia
transformado em carne e espírito, já não existia mais como
pensamento.
Vou então à janela, está chovendo muito. Por hábito estou
procurando na chuva o que em outro momento me serviria
de consolo. Mas não tenho dor a consolar.6
Outro texto do livro que aparece no Jornal, sob o título “As águas do
mar” (JB, 13.10.73), é a experiência de Lóri diante do mar, na verdade uma
maneira que Clarice Lispector encontrou para falar do encontro da mu-
lher, do ser humano diante do desejo:
86 COMUM 23
entregasse ao outro: a entrega de dois mundos
incognoscíveis feita com a confiança com que se entregari-
am duas compreensões.
Ela olha o mar, é o que pode fazer. Ele só lhe é delimitado
pela linha do horizonte, isto é, pela sua incapacidade humana
de ver a curvatura da terra.8
Meu pai acreditava que todos os anos se devia fazer uma cura
de banhos de mar. E nunca fui tão feliz quanto naquelas tem-
poradas de banhos em Olinda, Recife.
Meu pai também acreditava que o banho de mar salutar era o
tomado antes do sol nascer. Como explicar o que eu sentia de
presente inaudito em sair de casa de madrugada e pegar o
bonde vazio que nos levaria para Olinda ainda na escuridão?9
Como Clarice, Lóri é uma mulher solitária, incapaz de se dar aos ou-
tros, distante do mundo e vivendo em um certo isolamento. Contudo,
parece que a autora resolveu dar a ela o “final feliz”, encontrando-se e
encontrando o amor a partir do aprendizado com Ulisses. O aprendizado
de sua personagem vem a partir das simples experiências, como entrar no
mar ou sentir os cheiros do dia a dia, do mesmo modo que para Clarice.
Também os cenários do romance são os mesmos descritos por Clarice nas
crônicas do JB. Novamente recorrendo a Lícia Manzo: “Lóri irá descortinar
a vida nas areias de Copacabana, nas ruas antigas do bairro da Glória, nas
esquinas do centro, em Santa Thereza, no Museu de Arte Moderna, sen-
do comum a ambas a passagem por Berna e Paris.10
Merece ainda destaque quando se trata da ligação inconteste entre a
voz de Clarice e a voz das personagens que criou, a referência à dor de que
ambas foram feitas. Contudo, se para Lóri, Ulisses representou a saída da
COMUM 23 87
dor e do mundo sombrio, para Clarice as palavras, a linguagem e o diálogo
com seus leitores representaram a possibilidade da saída da terra das som-
bras. Ambas, Lóri e Clarice, vieram de terras distantes para habitar o es-
paço da cidade grande. Guardadas as devidas proporções, é claro, uma vez
que a personagem veio do interior do estado, da cidade de Campos, para o
Rio de Janeiro, enquanto Clarice da longínqua Ucrânia, passando pelo
Recife, onde viveu a infância:
Assim, a terra de que fala Lóri, sinônimo de Ulisses, com quem ela
deseja a ligação extrema, deve ser entendida, no caso de Clarice, como
sinônimo dos seus leitores, tanto era importante para ela o diálogo com
aqueles que acompanhavam seus textos.
Lóri, assim como Clarice, mantinha o seu diálogo com a empregada
antiga que arrumava a casa e deixava o jantar pronto, além de visitar
uma cartomante de vez em quando. Mais do que isso, Lóri mantinha o
diálogo com Ulisses, e desse diálogo, dessas palavras, e de outras lidas,
tudo se modificava para ela: “sou um monte intransponível no meu
próprio caminho. Mas às vezes por uma palavra tua ou por uma palavra
lida tudo se esclarece”.12
Assim como Lóri, Clarice entendia que o seu caminho era os outros, e
para chegar a eles, e obviamente ao seu caminho, a necessidade que a levou
a escrever na imprensa para sobreviver parece ter sido fundamental, fun-
cionando mesmo como mola propulsora. Do mesmo modo que Ulisses
foi, aos poucos, se tornando íntimo, conselheiro e companheiro, os leito-
res com os quais dialogava na coluna semanal do JB desempenharam o
mesmo papel para a autora.
Talvez pelo fato inconteste de não oferecer aos seus leitores a realidade
como um dado imóvel, acabado, mas como dinamismo, processo, Clarice
Lispector tenha atraído um público constante e cativo para os seus textos.
88 COMUM 23
Notas
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prazeres. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993, p. 7.
2. LISPECTOR, Clarice. __________. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco,
1999, p.140.
3. __________. Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993,
pp. 79-80.
4. __________. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p. 91.
5. __________. Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993,
pp. 154-155-156.
6.__________.A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p. 98.
7. MANZO, Lícia. Era uma vez: eu: a não ficção na obra de Clarice Lispector. Juiz de Fora: Editora
UFJF, 2001, p. 107.
8. LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p. 470.
9. Idem, Ibidem, p. 169.
10. MANZO, Lícia. Era uma vez: eu: a não ficção na obra de Clarice Lispector. Juiz de Fora: Editora
UFJF, 2001, p.109-110.
11. LISPECTOR, Clarice. Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres. Rio de Janeiro: Francisco
Alves, 1993, p. 51.
12. Idem, Ibidem, p. 64.
Resumo
Este texto analisa a relação que Clarice Lispector estabeleceu na coluna
semanal que assinou no Jornal do Brasil entre os anos de 1967 e 1973, veri-
ficando como ocorreu uma aproximação cada vez maior de Clarice com
seu público leitor. Com o arejamento propiciado pela mídia impressa, os
escritos claricianos – muitos deles trechos de romances e contos da autora
- foram definitivamente se transformando de palavras de exílio em pala-
vras de encontro. Nesta travessia, da clandestinidade à liberdade, Clarice
Lispector foi seu principal personagem e, em diversas situações, pode ter
figurado os próprios leitores com quem afirmava trocar correspondênci-
as. Os textos desta fase, reunidos em A descoberta do mundo, são objeto de
análise deste texto, que verifica como a autora aproveitou o espaço
jornalístico para exercer a intratextualidade em sua obra, fazendo a releitura
e reescrita de seus textos. Analisa como a obra de Clarice Lispector repre-
senta uma reflexão sobre a linguagem e as dificuldades que permeiam o
processo criativo. Foi tema recorrente da autora a discussão sobre a pala-
vra, a escrita, seus obstáculos e suas conquistas.
Palavras-chave
Clarice Lispector, linguagem, leitores.
COMUM 23 89
Abstract
This text analyses the connection that Clarice Lispector developed
through the weekly section she used to write for the Jornal do Brasil
Newspaper between 1967 and 1973, observing how it have been established
an increasing affinity between Clarice and her public. After undergoing
the softening aspects of the press, her works – many of them extracts of
her novels or her short stories – definitely started a process of changing
since isolating words were gradually replaced by sharing words. Throughout
this path from clandestineness to liberty, Clarice Lispector herself was
her main character. She may have frequently invented the readers described
as the ones she used to exchange letters with. The works produced during
this period , collected in “The Discovery Of The World”, are the object of
analysis of this thesis which studies how the author used the newspaper as
a source of mass communication in order to carry out the intratextuality
in her literary production thus rereading and rewriting her pieces. Analyses
as her work as a reflection on language and the difficulties inherent to the
creative process. The discussion on the effects caused by the using of
words and forms of language, its obstacles and achievements, have been a
constant theme for the author.
Key-words
Clarice Lispector, language, readers.
90 COMUM 23
Sobre a circulação restrita
e a circulação ampliada:
analisando a recepção em campos sociais
92 COMUM 23
Sobre a idéia de campo
COMUM 23 93
das regras presentes no jogo, “acordos” (aceitos em algum nível, mesmo que
por imposição) localizados que permitem o agir como algo possível.
Outras considerações poderiam ser feitas sobre a noção de campo, sobre-
tudo em relação a especificidades dos campos jurídico e político, são perti-
nentes, mas não cabe o desenvolvimento neste artigo. Por outro lado, pode-
se pensar que o que fora brevemente exposto sobre campo é de certa forma
abordada por Stuart Hall (vide conceitos da seção anterior) e que outros auto-
res (Norman Fairclough, por exemplo) trabalham tais abordagens de forma
combinada. No entanto, é importante fazer estas considerações sobre a idéia
de campo para entender de maneira mais adequada os motivos pelos quais a
proposta de Hall deve ser problematizada quando se trabalha a recepção de
produtos midiáticos em um ou mais campos. A recepção se dá de uma manei-
ra diferenciada, é o que veremos na seção a seguir.
94 COMUM 23
Enfim, a partir de tais considerações ele descreve três hipotéticas posi-
ções de decodificação: dominant-hegemonic position, negotiated code, e oppositional
code; onde audiência pode estar operando a partir dos mesmos códigos
previstos e/ou agenciados na codificação, negociando ou se opondo a tais
códigos. Em linhas gerais, esta é a proposta de Hall e que orientou, e ainda
orienta, vários estudos de recepção.
Cabem alguns comentários: proponho-me a realizar dois, tendo em
vista a situação empírica da pesquisa que realizo e a idéia de campo. O
primeiro deles diz respeito ao fato dos enunciados serem de certa forma
codificados, tendo em vista a decodificação e que as considerações de Hall
são sobre o processo comunicacional televisivo. Durante o momento da
produção há uma tentativa de se antecipar o momento de consumo, o que
(como o próprio Hall afirma) não é garantido — tenta-se veicular algo
estruturado da maneira mais próxima possível daquilo que a audiência
interpretaria, buscando uma comunicação bem sucedida, uma correspon-
dência, um reconhecimento. Por outro lado, é característico do televisivo
a produção de um discurso pensado para uma circulação ampliada que se
processa em termos públicos e difusos.
O campo midiático fala “para fora”, busca hegemonia e reconhecimen-
to em um outro estranho ao que produz os enunciados, o discurso é ela-
borado para uma realização que se dá, a princípio, fora do campo. Isso não
significa que não existam discursos restritos, de realização interna ao cam-
po midiático. Existe sim: pautas, relatórios, pareceres etc.; no entanto,
podemos considerar não se tratam de fins discursivos do campo midiático
e sim meios que objetivam um produto ou bem cultural reconhecido como
midiático: reportagens, campanhas publicitárias, livros etc. O que geral-
mente nós analisamos em estudos de recepção é o falar para os outros,
não o falar para si.
Já o segundo, refere-se à possibilidade de extensão do modelo de aná-
lise de Hall a outros campos ou sistemas simbólicos, ou seja, a considera-
ção de outros medias que não os meios de comunicação de massa — como,
por exemplo, o judiciário ou o político. É possível isto? A resposta é sim e
não. Se por um lado podemos pensar como Hall: quatro momentos, pos-
síveis decodificações, desentendimentos a partir da independência do
decoding em relação ao encoding etc. Por outro, os seus programas (produ-
tos, bens culturais) não são de circulação ampliada, eles são elaborados
para seus pares, para uma circulação interna ao campo em questão. Isso
COMUM 23 95
muda muita coisa; não é só elaborar uma sentença do tipo “encoding =
decoding” tentando resolver matematicamente a questão. O código é
compartilhado, o reconhecimento e realização se dão internamente, há
uma certa circularidade do processo de comunicação. Opto por dife-
renciar esta dinâmica da primeira das posições hipotéticas de Hall
(dominant-hegemonic) porque ela se processa em outros termos: a medi-
ação em jogo está muito mais associada às práticas e regras do campo
do que às discursivas.
Um processo não é produzido para sair do campo jurídico, é
estruturado a partir e para uma circulação restrita. Se porventura ele
circular “fora”, de uma maneira mais ampliada, lamento por quem re-
cebe; aquilo não é feito para se comunicar com este eventual receptor.
É óbvio que existe uma recepção, podendo até ser pensada em termos
de oppositional code. Entretanto, o que desejo frisar é que, ao contrário
do que ocorre em uma circulação ampliada, o que foi codificado não é
destinado a comunicar de maneira pública e difusa. Na circulação res-
trita, o produto é dotado de significado no e para o campo no qual ele
foi produzido (consumido e reproduzido); fora do campo de origem
ele não é necessariamente um objeto de comunicação, compreensível
e/ou significativo9.
Pelo o que foi visto até aqui, temos, portanto, no caso estudado, um
processo de comunicação que pode ser analisado até certo ponto a partir
de Hall. Produção, circulação, consumo, reprodução. A reportagem, que
circula de uma forma ampliada, é decodificada por diversos agentes, inclu-
sive dos campos já descritos. No entanto, através de vários motivos, isso
acaba derivando para novas representações.
Inicialmente pensei que estas novas representações seriam associadas
ao momento da reprodução; sim, mas não se trata da reprodução no cam-
po do que os seus agentes consumiram. Uma coisa são os agentes do
campo, outra coisa é o campo. Há uma reprodução realizada pelos agentes
e uma (re)produção do campo. Existe um momento de consumo no cam-
po, e esta recepção se dá de uma maneira diferenciada. A decodificação
do bem simbólico de circulação ampliada é associada à codificação de um
bem de circulação restrita. Pensar recepção nos campos (jurídico e polí-
tico) é ir além do “encoding, decoding”, considerando o decoding como um
decoding/encoding — uma recodificação, onde o entendimento das dinâmi-
cas do campo é essencial.
96 COMUM 23
Nas seções anteriores abordamos o caso, os fluxos, a idéia de campo, e
agora começa a ficar mais claro o porquê. A reportagem é recebida juridi-
camente ou politicamente, tendo em vista suas respectivas produções. A
recepção se dá no processo cível e no criminal em relação ao jurídico, e na
CPI e na CPP no caso do político (legislativo municipal). Ao longo de
tais práticas de construção de saber ocorrem feedbacks solicitando novos
fluxos que estendem o processo de recepção, assim como hibridizações
do fluxo inicial (a reportagem), associando-o ao regime de produção do
campo. Para analisar de maneira adequada a recepção em determinado
campo é preciso “entrar no campo”, perceber sua lógica e procedimen-
tos de produção de sentidos, atentando-se para estes novos fluxos. Acre-
dito que a capacidade da execução destes feedbacks com refluxos sejam
peculiaridades dos campos político e jurídico, não sei até que ponto ou-
tros campos possuem tal capacidade de solicitar novos fluxos (“esclare-
cimentos”) e serem atendidos.
Algumas manifestações deste processo de recepção mais extenso po-
dem ser percebidos através de diálogos documentados entre o pólo da
audiência e o da produção. Uma cópia da reportagem é solicitada, é assis-
tida, vai para a perícia, volta, é assistida novamente, chamam o jornalista
para maiores explicações, são solicitadas as fitas brutas, chamam o vere-
ador e o secretário para esclarecerem o envolvimento de ambos na re-
portagem, chamam o jornalista novamente, e assim em diante. Estes
diálogos ocorrem em diferentes momentos da produção de narrativas
do campo jurídico e político, de acordo com as peculiaridades de cada
caso. Ao longo do processo (re)produção do campo, a reportagem vai
sendo consumida pelo campo, considerando refluxos dos feedbacks (da
ordem do encoding)e o decoding/encoding, e de certa forma identificando
características da produção da reportagem inicial.
Comentários finais
COMUM 23 97
etnográficos (acompanhamento de audiências jurídicas e sessões
legislativas), que foi possível a análise da recepção do material jornalístico
e seus usos pelos campos político e jurídico; orientando tanto uma inter-
pretação mais adequada dos documentos, quanto a realização de entrevis-
tas. Sem este instrumental, fica muito difícil ir adiante na pesquisa (ainda
em realização) a fim de se perceber até que ponto tais processos são ou
não instruídos pela mídia e até que ponto estas hibridizações alteram as
práticas jurídicas e legislativas.
As respostas a estas indagações não são apresentadas neste artigo, em
parte porque a pesquisa ainda se encontra em aberto e também por
extrapolar as propostas deste grupo de trabalho. O que fica sugerido neste
estudo é que por um lado a mudança de determinadas práticas sociais (as
dos planos institucionais por exemplo) não se processam simplesmente
através de alterações no plano discursivo como sugerem alguns trabalhos;
e por outro, que o político e o jurídico não operam como um sistema
autopoiético, eles estão abertos a influências “externas” (mesmo que su-
jeitas a interpretações e traduções) que podem ou não ser mediações con-
sideradas pelos seus agentes.
Notas
1. Isto pode ser percebido, por exemplo, através da solicitação do material gravado e pedidos de
esclarecimento sobre a reportagem. Vale ressaltar que nos estudos de recepção de caráter mais amplo
e/ ou imediato isso não se faz presente, a negociação não se dá nestes termos e com esta temporalidade.
É de fato peculiar uma dinâmica de recepção que dura meses (ou anos) por estar associada a um
outro processo de produção; o entendimento é jurídico, o entendimento é político.
2. “A regio e as suas fronteiras (fines) não passam do vestígio apagado do acto de autoridade que
consiste em circunscrever a região, o território (que também se diz fines), em impor a definição
(outro sentido de fines) legítima, conhecida e reconhecida, das fronteiras e do território, em
suma, o princípio de di-visão legítima do mundo social. Este acto de direito que consiste em
afirmar com autoridade uma verdade que tem força de lei é um acto de conhecimento, o qual,
por estar firmado, como todo poder simbólico, no reconhecimento, produz a existência daquilo
que enuncia” (Bourdieu, 1998a : 114).
3. “O poder simbólico como poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer,
de confirmar ou de transformar a visão do mundo e, deste modo, a ação sobre o mundo, portanto
o mundo; poder quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força
(física ou econômica), graças ao efeito específico de mobilização, só se exerce se for reconhecido,
quer dizer, ignorado como arbitrário” (Bourdieu, 1998a : 14).
4. Meios de di-visão é um termo formado por uma combinação de palavras que é de certa forma
até óbvia (ou ao menos bastante aparente): visão e divisão; e enquanto conceito, trata-se de algo
que não é nada original. Ver e dividir, representar e classificar; é possível encontrar noções bem
próximas a esta em Émile Durkheim, Marcel Mauss e Lévi-Strauss, dentre outros.
98 COMUM 23
5. Digo em seus escritos porque é relacionado com os conceitos de região (espaço social), poder
simbólico e meios de di-visão que habitus surge em seu esquema teórico. Se pensarmos em termos
mais genealógicos teríamos que percorrer o mesmo caminho que ele mesmo faz em “A gênese dos
conceitos de habitus e de campo” (Bourdieu, 1998a), passando por autores como: Noam Chomsky,
Edward Panofsky, Norbert Elias, dentre outros (mas sobretudo estes três).
6. “A cada classe de posições corresponde uma classe de habitus produzidos pelos condicionamen-
tos sociais associados à condição correspondente e, pela intermediação desses habitus e de suas
capacidades geradoras, um conjunto sistemático de bens e de propriedades, vinculadas entre si
por uma afinidade de estilo. Uma das funções da noção de habitus é a de dar conta da unidade de
estilo que vincula as práticas e os bens de um agente singular ou de uma classe de agentes. O
habitus é esse princípio gerador e unificador que retraduz as características intrínsecas e relacionais
de uma posição em um estilo de vida unívoco é, em um conjunto unívoco de escolhas de pessoas
de bens, de práticas. Assim como as posições das quais são o produto, os habitus são diferenciados;
mas também são diferenciadores. Distintos, distinguidos, eles também são operadores de distin-
ções: põem em prática princípios de diferenciação diferente ou utilizam diferenciadamente os
princípios de diferenciação comuns. Os habitus são princípios geradores de práticas distintas e
distintivas; mas também esquemas classificatórios, princípios de classificação, princípios de visão
e divisão e gostos diferentes” (Bourdieu, 1997: 21-22).
7. “ (...) o campo intelectual, da mesma maneira que um campo magnético constitui um sistema
de linhas de força: isto é, os agentes ou sistemas de agentes que o compõem podem ser descritos
como forças que se dispondo, opondo e compondo, lhe conferem sua estrutura específica num
dado momento de tempo. Por outro lado, cada um deles é determinado pelo fato de fazer parte
deste campo (...), seu poder (ou melhor, sua autoridade) dentro do campo, não pode ser definido
independentemente da posição que ocupa no campo” (Bourdieu, 1968: 105-106).
8. “Se cada uma das partes do campo intelectual depende de todas as outras, nem todas dependem
no mesmo grau: como num jogo de xadrez, onde a sorte da rainha pode depender do menor dos
peões, sem que por isso deixe de ter um poder infinitamente maior que qualquer outra peça, as
partes constitutivas do campo intelectual, colocadas numa relação de interdependência funcio-
nal, são, no entanto, separadas por diferenças de peso funcional e contribuem de maneira
desigual para dar ao campo intelectual a sua estrutura particular. De fato, a estrutura dinâmica do
campo intelectual não é outra coisa senão o sistema de interações entre uma pluralidade de
instâncias, agentes isolados, como o criador intelectual, ou sistemas de agentes, como o sistema
de ensino, as academias ou círculos literários, que são definidos, ao menos no essencial, no seu ser
e na sua função, por sua posição nesta estrutura e, pela autoridade, mais ou menos reconhecida,
isto é, mais ou menos forte e mais ou menos extensa, e sempre mediatizada por sua interação, que
elas exercem ou pretendem exercer sobre o público, ao mesmo tempo capital e, em certa medida,
árbitro da competição pela consagração e legitimidade” (Bourdieu, 1968: 126).
9. Isso pode ser articulado com a idéia de sistema perito (e perícia) em Anthony Giddens (1991 e
1996) ou até mesmo a de caixa preta em Bruno Latour. Não se busca a compreensão, o enten-
dimento ou coisa do gênero; não há interpretação, mas confiança, crença.
COMUM 23 99
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Resumo
Considerações sobre a teoria de comunicação de quatro estágios de
Stuart Hall a partir dos escritos de Pierre Bourdieu acerca dos diferentes
campos sociais. O trabalho é desenvolvido a partir de dados documentais
e etnográficos de manifestações do campo midiático, jurídico e político
sobre um mesmo caso. O objetivo é identificar narrativas qualitativamen-
te diferentes dentro de cada campo e problematizar condições de consu-
mo dos produtos midiáticos nos contextos dos outros campos em ques-
tão. As estruturas de sentido envolvidas no processo de decodificação do
discurso midiático estão diretamente associados aos princípios de organi-
zação da realidade dos campos jurídico e político (os “receptores”), sendo
tal discurso agenciado pelos agentes destes campos na e para a produção
(encoding) dos discursos de seus campos (CPI, CPP e processos).
Palavras-chave
Recepção, campo jurídico, campo político, campo midiático, estruturas
de conhecimento, Pierre Bourdieu, Stuart Hall.
COMUM 23 101
Abstract
The restricted circulation and the amplified circulation: analysing
reception in social fields.
Reflections on Stuart Hall’s four-stage theory of communication based
on the writings of Pierre Bourdieu on the different social fields. This
paper uses documentary sources and ethnographic data on the treatment
given by the mediatic, juridical and political fields of one single case. The
objective is to identify narratives qualitatively different in each field and to
problematize the conditions of consumption of media products in the
context of the other two fields. The meaning structures which are involved
in the process of decoding media discourse are directly associated with
the social organization rules of the juridical and political fields (the
“receptors”). The media discourse is used by the agents in these fields in,
and for, the production (encoding) of fields’ discourses (Parliamentary
Commission of Inquiry – CPI, Parliamentary Commission of Process –
CPP, and legal processes).
Key-words
Reception, juridical field, political field, mediatic field, meaning
structures, Pierre Bourdieu, Stuart Hall.
102 COMUM 23
A cidade sou eu*
Rosane Azevedo de Araujo
1. Introdução
2. Antecedentes
104 COMUM 23
perde sua realidade geopolítica em benefício único de sistemas instantâ-
neos de deportação, cuja intensidade tecnológica perturba incessantemen-
te as estruturas sociais e promove uma concentração “pós-urbana” e
transnacional. Estaríamos passando da estética do aparecimento progres-
sivo de uma imagem estável (analógica), onde formas e volumes eram
constituídos por seu suporte material para a estética do desaparecimento
de uma imagem instável (digital), cuja duração é a do “tempo de
sensibilização” promovido pela interface com a tela, onde tudo se mos-
tra na imediatez de uma transmissão instantânea. Neste contexto a dis-
tância-velocidade supera as distâncias de espaço e de tempo, e passamos
a considerar um espaço-tempo tecnológico. Como conseqüência temos
a dimensão física relativizada.
COMUM 23 105
têm como característica o fato de estarem física e socialmente conectadas
com o globo e desconectadas do local.
106 COMUM 23
Cidade Digital12 – Cidade provida de cabo de fibra ótica que possibilita
uma enorme velocidade na Internet, habitada pelos tele-trabalhadores e
pelas tele-comunidades que usam informação e comunicação tecnológica
para trabalhar e se comunicar a distância. Não pode ser definida pelos
parâmetros convencionais administrativos ou geográficos comumente
usados para identificar os limites físicos da cidade. É formada por um
sistema de espaços virtuais interconectados pela expansão da supervia da
informação. Podemos exemplificar com a intranet entre os empreende-
dores bancários, ou a discussão on-line interativa entre membros liga-
dos ao meio-ambiente.
COMUM 23 107
A noção de cidade sustentável é particularmente relacionada a esforços
internacionais para promover o desenvolvimento sustentável, um concei-
to primeiramente popularizado pela Comissão de Brundtland, “Nosso
futuro em comum (1987)” e a “Eco 1992”, no Rio de Janeiro.
A aplicação dos princípios de desenvolvimento sustentável para os seg-
mentos humanos em geral, e para as comunidades urbanas em particular,
tem sido liderada por vários programas de ação, como comunidades de
saúde local ou campanhas de comunidades para a qualidade de vida e as
iniciativas como Habitat e Agenda 21. Essas diversas iniciativas são
freqüentemente agrupadas no termo genérico de desenvolvimento de “seg-
mentos sustentáveis”.
108 COMUM 23
O espaço servido eletronicamente para o trabalho na informação não tem
que estar concentrado em grandes áreas contíguas, como nas áreas indus-
triais e comerciais das cidades atuais, e, ao contrário das instalações indus-
triais, não afeta negativamente a qualidade das zonas de entorno.
3. Configuração
COMUM 23 109
tiva do espaço urbano. Deste modo, vemos uma ascendência da “política
da diferença” sobre a “política da identidade”, e a consideração da “cidade
do dissenso e da diferença”. Cidadania, além da identidade e reconheci-
mento de pertença a grupos, diz respeito a direitos sociais, econômicos,
civis e culturais a serem reconhecidos e representados na esfera pública. É
comum admitir que há uma generalizada crise de cidadania, entendida como
uma não-identificação com o que está próximo e resultante dos diferentes
modos de coabitação impostos pela heterogeneidade social.
Vivemos uma época de habitantes de entorno eletrônico. Nossas ações
no espaço físico estão associadas a nossas ações no ciberespaço. As
edificações estão incorporando sistemas nervosos artificiais, sensores, te-
las e equipamentos controlados por computador. Diversos sistemas ele-
trônicos têm um papel cada vez mais importante na resposta da necessida-
de de seus moradores. Os satélites de comunicação geoestacionários e os
sistemas globais dos satélites LEO (low earth orbit – sistema que cobre a
Terra uniformemente) cobrem grandes extensões de terra e mar, trans-
formando a superfície do planeta em um lugar inteligente de cobertura
total. Essa proliferação de espaços inteligentes produzirá um novo tipo de
tecido urbano e reformará radicalmente nossas cidades22. Nosso futuro é,
portanto, informacional-inteligente.
O espaço é um conceito que, como tal, é produzido de acordo com os
sintomas de uma época. Ao longo da história do homem, este conceito se
modifica e modifica a visão de mundo. A concepção de arquitetura e urba-
nismo está estreitamente vinculada à concepção de espaço.
O urbanismo é elaborado a partir de ferramentas/pensamentos uni-
versais que são aplicados à consideração da cidade. Na verdade, não há
pensamento original no urbanismo, sendo que seus desenvolvimentos
e suas aplicações são sempre, ou quase sempre, tributários de pensa-
mentos de outros campos, como a filosofia, a sociologia, a antropolo-
gia, etc.. Para exemplificar, podemos citar Joseph Rykwert 23 quando
afirma que os urbanistas se dividem em dois grupos: os “cronistas dos
grandes movimentos da história” – aqueles que trabalham na linha de
Hegel – de Karl Marx a Joseph Alois Schumpeter, até Francis Fukuyama
e Jean Baudrillard; e os “paladinos do livre mercado”. Em cada autor,
podemos em última instância localizar sua fonte de inspiração e dou-
trina. Mesmo aqueles “paladinos do livre mercado” conhecem muito
bem suas fontes doutrinárias, provinda de alhures.
110 COMUM 23
Seguindo este recorte, duas questões causam inquietação: quais pen-
samentos/ferramentas estão sendo produzidos sob a influência da mudan-
ça qualitativa a que nos referimos no início do texto, que possam ser apli-
cados à consideração da cidade? Quais as concepções de cidades já sob a
égide dessa enorme transformação?
Lewis Mumford abre sua obra, hoje clássica, sobre A cidade na história,
resumindo um percurso que começa com “uma cidade que era, simbolica-
mente, um mundo” e termina com “um mundo que se tornou (...) uma
cidade”24. Em sua análise do papel da cidade como “ímã, recipiente e trans-
formador, na cultura”25, ele prenunciava o que vemos ocorrer atualmente,
para além da migração do homem para a cidade: “a disseminação da cultura
urbana em todo o planeta”, independente de qualquer situação geográfica,
cultural, econômica ou política. Muitos autores contemporâneos ratifi-
cam este percurso. Exemplificando, podemos citar Octavio Ianni quando
afirma que, desde que o capitalismo se universaliza em fins do século XX,
“verifica-se uma simultânea generalização do modo urbano de vida, da
sociabilidade urbana, de padrões e valores culturais urbanos, (...) invadin-
do meios rurais, modos de vida agrários. (...) O mundo agrário se altera,
modifica, dilui”26.
Podemos fazer um recorte e considerar que, no mundo contemporâ-
neo, ser urbano é ser conectado, não somente no sentido informacional,
mas no sentido lato de todas as possibilidades e usos de conexões dispo-
níveis. Ao invés de cidadão ou citadino, nesse contexto é mais apropria-
do retomar o antigo conceito de Cosmopolita, “cidadão do mundo”. Os
acontecimentos das trocas materiais, pessoais, mentais e financeiras, do
estabelecimento dos vínculos sociais, da inserção social, política e eco-
nômica, se darão mediante a interface gerada pela disponibilidade men-
tal, social, pessoal e dos equipamentos disponíveis. Como a cidade é o
local destes acontecimentos, podemos dizer que ela estará onde o cos-
mopolita estiver. Urbanismo, neste caso, seria o Orbanismo27 do século
XXI, onde, não mais tendo como referência fronteiras ou limitações,
estaríamos tratando como nossa cidade não só o mundo, mas também o
universo conhecido e por conhecer.
Alguns autores, em diferentes campos do conhecimento, já apontam
para esta direção. Por exemplo, o diretor do Instituto McLuhan de
Tecnologia e professor da universidade de Toronto, Derrick de Kerckhove,
afirma que, no contexto informacional que vivemos, a arquitetura e o pla-
COMUM 23 111
nejamento urbano começarão a ser pensados em termos da acessibilidade
de comunicação, e não em termos de infra-estruturas viárias e hídricas28.
Para dar sentido ao que quer dizer, ele produz uma nova terminologia e
afirma que o trabalho do cyberteto29 é criar caminhos confiáveis e ambien-
tes proveitosos no cyberespaço e entre o cyberespaço e o espaço real30.
Podemos aí acrescentar que estamos então falando da cybertetura, que é a
concepção de uma arquitetura em que as ferramentas e questões em jogo
estão imersas no novo ambiente tecnológico e digital que estamos come-
çando a habitar. Não é o mundo que está se globalizando, somos nós. A
cibercultura implica “ver através” da matéria, do espaço e do tempo com
nossas técnicas informacionais. Quando a tecnologia nos possibilita ter o
acesso físico e deslocamento a distantes regiões, nesta situação estamos
contidos na esfera global. Quando pensamos globalmente, nos comunica-
mos e fazemos trocas a partir do lugar que ocupamos, contemos a esfera
global internamente, “contemos a Terra nas nossas mentes e redes”31.
4. Teoria
112 COMUM 23
Os conceitos utilizados até agora não são mais suficientes para traduzir
as questões surgidas hoje. Queiramos nós ou não, o ponto de vista e as
referências estão mudando. É preciso, portanto, situar as questões dentro
da nova perspectiva que se instalou no mundo.
Segundo Manuel Castells33, atualmente, estamos num estágio em que,
após termos suplantado a natureza a ponto de nos obrigar a preservá-la artifi-
cialmente como uma forma cultural, a cultura passa a referir-se sobretudo à
própria cultura. Neste sentido, após termos alcançado o nível de sabedoria e
organização social que nos leva a viver um mundo predominantemente social,
a história estaria começando, e não terminando como quiseram alguns auto-
res do final do século XX. Estamos, sim, no início de uma nova era.
Podemos, portanto, especular que estamos imersos num contexto
comparativamente novo de existência. Está por ser construída uma nova
humanidade, que representará conseqüentemente uma nova sociedade e
uma inédita concepção de cidade. Um novo mapeamento, provavelmente
não mais geográfico, irá constituir as cidades e as bases de relacionamento
e troca que nela ocorrerão.
O mundo mudou. Conseqüentemente estamos tentando dar significação às
modificações que estão em curso. Para isto, é necessário utilizar novas ferra-
mentas, assim proponho uma análise de conceitos que estudará o urbano não
mais através das oposições entre cidade x campo ou urbano x rural, mas enten-
dendo que podemos classificá-lo através do conceito de polarização. Isto signi-
fica que trabalharemos com as idéias de zona focal e de zona franjal (segundo
MD Magno). Digamos que o pólo é urbano, seus graus variando de acordo
com a localização mais ou menos próxima do foco. A franja definirá, de acordo
com a distância do foco, os diferentes graus de urbanização (ver figura). Partin-
do deste princípio, e considerando que a cultura urbana se estabeleceu em todo
o planeta, o máximo que podemos distinguir são os diferentes graus de urbani-
zação que encontraremos nas situações/regiões que estudarmos.
COMUM 23 113
Se estabelecermos que o pólo urbano será definido por diferentes e
fortes conexões34 entre formações, o grau de urbanização dependerá do
grau de aproximação da zona focal dos pólos existentes. No contexto
deste trabalho, este grau se refere ao conceito de Eu como Pessoa tal
como trazido pela Nova Psicanálise35, o qual não é necessariamente co-
incidente com o indivíduo. Portanto não é nem individual nem coletivo,
nem sujeito nem objeto, e sim um conceito de Pessoa compatível com o
conceito de Rede. Neste caso, Pessoa é uma malha de formações com
foco e franja, composta de uma pletora de formações primárias36, secun-
dárias37 e originárias38 situadas não apenas no corpo de um indivíduo,
mas em tudo que existe.
5. Conclusão
Neste sentido, cada Pessoa é a própria constituição que vai situá-la num
certo grau de urbanização. E o grau de urbanização de uma Pessoa não
coincide com o grau de urbanização do espaço geométrico o urbano que
ela freqüenta. Assim sendo, este espaço geométrico funciona como ape-
nas mais uma de suas conexões. Seguindo este raciocínio podemos espe-
cular que, no conceito clássico de cidade afirmava-se que as cidades conti-
nham pessoas, agora podemos afirmar que o que temos é que as Pessoas
são as cidades. Muda, portanto, a referência para o entendimento da cida-
de: a cidade (de) uma Pessoa não será igual à (de) nenhuma outra. Por mais
semelhantes ou coincidentes que sejam em algumas formações, sempre
dependerão da formação resultante de um conjunto enorme de forma-
ções, cada uma com seus vetores próprios. As pessoas podem sim com-
partilhar algumas ou várias formações: neste caso, podemos dizer são par-
tes de pessoas que constituem cidades bastante semelhantes. A cidade (Pes-
soa) neste contexto é definida pelo conjunto de formações (materiais, ge-
ográficas, mentais, intelectuais, informacionais, históricas, etc.) que cons-
tituem a morada de uma cidadania. A cidade são as injunções de uma Pes-
soa. As conexões entre formações de cada uma é que recortam o mundo.
Cada Pessoa constitui a cidade resultante de diferentes formações e arti-
culações (financeiras, mentais, tecnológicas, sintomáticas, geográficas, etc.).
Esta via de entendimento 39 inclui e acolhe toda e qualquer Pessoa,
a partir das suas diferenças intrínsecas. A tarefa é enorme, mas se nos
propusermos a considerar a realidade como um fato, serão enormes
114 COMUM 23
as considerações a serem desenvolvidas para pensarmos este novo
conceito de cidade.
Assim, a cidade que EU sou – as conexões, a forma de olhar, os sinto-
mas que filtram as informações que me constituem, o aproveitamento do
espaço que eu produzo, minha condição material e a capacidade de
otimização desta condição, etc., e toda a gama de articulações que faz parte
da minha história específica – não é a cidade que você é.
Notas
* Os argumentos apresentados neste artigo estão sendo desenvolvidos em 2004, na minha tese
de doutorado, no PROURB – Programa de Pós- Graduação em Urbanismo da Universidade
Federal do Rio de Janeiro.
1. KOOLHAAS, Rem. In: OESTE, 2002: 2-7.
2. Conceito = representação mental de um objeto abstrato ou concreto, que se mostra como um
instrumento fundamental do pensamento em sua tarefa de identificar, descrever e classificar os
diferentes elementos e aspectos da realidade; noção abstrata contida nas palavras de uma língua
para designar, de modo generalizado e, de certa forma estável, as propriedades e características de
uma classe de seres, objetos ou entidades abstratas.
3. MAGNO, MD, 2004:153.
4. NIETZSCHE, Fragmentos Póstumos 16[32]primavera – verão de 1888
5. CASTELLS, Manuel, 1995.
6. VIRILIO, Paul, 1993.
7. ASCHER, François, 1998.
8. CASTELLS, Manuel, 1999a:428-435.
9. SASSEN, Saskia, 1998:16-36.
10. HARDT, Michael. NEGRI, Antonio, 2001: 318.
11. HARDT, Michael, 1996.
12. MITCHELL, William. Vivendi – Future of Cities, 2001:13.
13. Vivendi – Future of Cities, 2001:13.
14. Vivendi – Future of Cities, 2001:14.
15. Vivendi – Future of Cities, 2001:14-15.
16. Vivendi – Future of Cities, 2001:18.
17. MITCHELL, William, 2001:155-164.
18. Decano da Escola de Arquitetura e Planejamento Urbano do Massachusetts Institute of
Techonology, autor de vários livros e estudioso contemporâneo do assunto.
19. KOOLHAAS, Rem. In: OESTE. Cultivos Urbanos, 2002: 2-7.
20. SOLÀ-MORALES, Ignasi de, 2002: 79-105.
21. PALLAMIN, Vera M., A Cidade do Dissenso e da Diferença. PÓS-9: 26-34
22. MITCHELL, William, 2001:74-75.
23. RYKWERT, Joseph, 2004: 10-11
24. MUMFORD, Lewis, 1991: 3
25. MUMFORD, Lewis, 1991: 570
26. IANNI, Octavio, 1997: 80
COMUM 23 115
27. Urbe = cidade; Orbe = globo, mundo, universo.
28. De Kerckhove, Derrick,1997: 98-123.
29. Do mesmo modo que, etimologicamente, o termo arquiteto vem do grego arche, ‘primeiro’
ou ‘origem’, e tékton, ‘carpinteiro’ ou ‘construtor’, substituindo-se arche por kyber, ‘leme’, ‘ti-
mão’, ‘governo’, ‘direção’, mantém-se o elemento construtor, mas adiciona-se o novo campo da
navegação interativa à função daquele que seria não mais o arquiteto, e sim o cyberteto.
30. De Kerckhove, Derrick, 2001: 70.
31. De Kerckhove, Derrick,1997: 193
32. MAGNO, MD, 1999: 206.
33. CASTELLS, Manuel. 1999a: 505.
34. Neste trabalho, o termo conexão é entendido em sentido amplo: informacional, mental,
cultural, político, sintomático, situacional, financeiro, intelectual, geográfico, ato ou efeito de
conectar, ligação social, ligação profissional, ligação de interesses, ligação de amizades, acessos,
sistema de comunicação e telecomunicação, meio de transporte, meio de comunicação, vínculo,
o que une de um ponto a outro os diversos setores da vida de um indivíduo, etc.
35. Teoria criada em 1986, por MD Magno na linhagem de Freud e Lacan, é uma reedificação
da psicanálise com base nos mais importantes achados desses dois mestres, que têm se mostrado
à altura de orientar uma teoria compatível com a situação atual do mundo. Coaduna-se com as
teorias científicas contemporâneas e freqüentemente demonstrou antecipá-las em diversos pon-
tos cruciais.
36. Magno, MD, 2004: 91-101.
37. Magno, MD, 2004: 91-101.
38. Magno, MD, 2004: 91-101.
39. Baseada na Teoria da Nova Psicanálise
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Resumo
A disseminação global dos efeitos das transformações decorrentes do
desenvolvimento acelerado dos meios de comunicação, dos transportes
e da informática vem exigindo uma redefinição do campo do urbanismo
e do conceito de cidade. Redefinição esta que deve ser capaz de abranger
a nova interação entre espaço, tecnologia e sociedade, e também a ação
de novos atores, tipos de relações sociais e usos e funções da cidade. Ser
urbano, hoje, é ser conectado às possibilidades abertas pelas trocas ma-
teriais, pessoais e mentais mediadas por interfaces e dispositivos
tecnológicos que se renovam a cada dia. A cidade como local destes acon-
tecimentos não mais se deixa circunscrever a fronteiras geográficas, mas
se desloca conforme os movimentos globais do cidadão (considerado
como cosmopolita). Este artigo busca explorar a idéia de que as cidades
não podem mais ser definidas como lugares com pessoas dentro. Atual-
mente, as pessoas são cidades.
Palavras-chave
Urbanismo, cidade, tecnologia, polarização, pessoa.
120 COMUM 23
Abstract
The global dissemination of the effects of transformations due to the
accelerated development of communication media, transportation and
informatics demands a redefinition of Urbanism and the conception of
City. Redefinition which must be able to include the new interaction
between space, technology and society, and also the action of new actors,
types of social relationships and uses of the city’s functions. Being urban
today means to be connected to the possibilities of material, personal and
mental exchanges through interfaces and technological devices which are
constantly renewed. The city as a locus of these events is no longer locked
up inside geographical boundaries, but changes according to the global
movements of its citizens (considered as cosmopolitans). The present
paper aims to inquire into the idea that cities cannot continue to be defined
as places with persons inside. Nowadays, each person is the city.
Key-words
Urbanism, city, technology, polarization, person
COMUM 23 121
Representação Social:
uma genealogia do conceito
Marcos Alexandre
Introdução
O processo histórico é contínuo, porém não linear. Ele não pode ser
comparado a uma linha reta, pois possui avanços e recuos, mudanças de
rumos, idas e vindas. Os acontecimentos de hoje possuem relações com
os fatos passados, as rupturas históricas não surgem da noite para o dia,
mas sim através de um lento e gradual processo, o qual chamamos de
histórico1. Correlacionar passado, presente e futuro, de uma maneira li-
near, na maioria das vezes mais obscurece o desenvolvimento de determi-
nada questão do que esclarece. Por isso optamos por apresentar a evolu-
ção das representações sociais através de um relato fragmentado, procu-
rando demarcar os pontos de maior e menor convergência com a sociolo-
gia e a teoria crítica da escola de Frankfurt.
A partir de uma visão reducionista e de uma perspectiva de dicotomia
entre o individual e o social, a Psicologia ficou com o estudo do indiví-
duo e a Sociologia com o estudo da sociedade. Esta visão foi consolida-
da ao longo dos anos, de tal forma que inúmeros teóricos conhecem o
estudo de Wundt (considerado o precursor da Psicologia como ciência
independente) sobre Psicologia Individual, mas desconhecem os tra-
balhos desse mesmo estudioso sobre os temas hoje classificados como
Psicologia Social2.
O conceito de representação coletiva nasceu na sociologia, nos estudos
de Durkheim. Foi empregado na elaboração de uma teoria da religião, da
magia e do pensamento mítico. O sociólogo argumentou que esses fenô-
menos coletivos não podem ser explicados em termos de indivíduo, pois
ele não pode inventar uma língua ou uma religião. Esses fenômenos são
produto de uma comunidade, ou de um povo3.
A separação entre o indivíduo e o social não é um processo exclusivo da
Psicologia. Durkheim4, ao propor tal divisão procurava dar conta de um
todo, mas se fundamentava em uma concepção de que as regras que co-
mandam a vida individual (representações individuais) não são as mesmas
que regem a vida coletiva (representações coletivas).
Mas devemos fazer uma distinção entre representações sociais e cole-
tivas, como definidas por Durkheim. Sperber5, faz uma analogia com a
medicina, dizendo que a mente humana é susceptível de representações
culturais, do mesmo modo que o corpo humano é suscetível a doenças.
Ele apresenta a seguinte classificação: coletivas - representações duradou-
COMUM 23 123
ras, tradicionais, amplamente distribuídas, ligadas à cultura, transmiti-
das lentamente por gerações, comparadas à endemia; sociais - típicas
de culturas modernas, espalham-se rapidamente por toda a população,
possuem curto período de vida, semelhante aos “modismos” e se com-
param à epidemia.
Para Moscovici6, o conceito de representação social tem origem na So-
ciologia e na Antropologia, através de Durkheim e Lévi-Bruhl. Também
contribuíram para a criação da teoria das representações sociais, a teoria da
linguagem de Saussure, a teoria das representações infantis de Piaget e a
teoria do desenvolvimento cultural de Vigotsky.
A teoria das representações sociais pode ser considerada como uma
forma sociológica de Psicologia Social7. A expressão é mencionada pela
primeira vez por Moscovici, em seu estudo sobre a representação social
da psicanálise, que recebeu o título de Psychanalyse: son image et son public.
Nesta obra, Moscovici apresenta um estudo onde tenta compreender de
que forma a psicanálise, ao sair dos grupos fechados e especializados, ad-
quire uma nova significação pelos grupos populares. O que motivou
Moscovici a desenvolver o estudo das representações sociais dentro de
uma metodologia científica foi sua crítica aos pressupostos positivistas e
funcionalistas das demais teorias que não explicavam a realidade em ou-
tras dimensões, como é o caso da dimensão histórico-crítica.
Grande parte dos teóricos da Psicologia Social, anteriores à Segunda
Guerra Mundial, fez distinção entre o individual e o coletivo (compreen-
dido como cultura ou sociedade). A razão para tal procedimento era a
crença, por parte dos estudiosos, de que as leis que explicavam os fenô-
menos coletivos eram diferentes do tipo de leis que explicavam os fenô-
menos individuais.
Os psicólogos sociais reconhecem a ênfase cognitivista dada aos seus
estudos e pesquisas, após a Segunda Guerra Mundial, em detrimento da
orientação behaviorista existente no período que antecedeu o maior con-
flito militar do século XX.
A mudança dos conceitos teóricos, do behaviorismo para o cognitivismo,
é decorrente das pesquisas de vários estudiosos, com destaque ao impacto
trazido pelas idéias gestaltistas elaboradas por Fritz Heider, Solomon Asch
e Kurt Lewin8. A eles é creditado o pioneirismo de iniciadores da Psicolo-
gia Social moderna, assim como a formação de um ramo da produção
científica, a cognicão social.
124 COMUM 23
A contribuição de Asch à Psicologia Social é reconhecida a partir de
suas pesquisas sobre a influência social e percepção de pessoas. Para ele, a
influência social é entendida como um conflito cognitivo, isto é, conflito
que se origina entre informações adquiridas diretamente pelo indivíduo e
aquelas transmitidas por seu ambiente social. No que diz respeito à per-
cepção de seres humanos, Asch iniciou uma extensa linha de trabalhos,
além de promover estudos sobre diversos temas, como representação de
conjuntos, suas complexidades e diferenciações.
A Lewin é creditada a proeza de considerar, nas explicações do com-
portamento, as representações subjetivas das situações estimuladoras. Ele
destacou a maneira individual de como as informações sobre o meio am-
biente são tratadas por um sistema cognitivo e como sujeito a elas dá um
significado pessoal9.
A concepção de ciência que rege o nascimento da Psicologia como dis-
ciplina independente, a qual apresenta os chamados processos psicológi-
cos como passíveis de experimentação, procura romper com um certo
romantismo filosófico que acompanhou as pesquisas sobre o sujeito e o
subjetivo ao longo do processo histórico.
Para Forgas10, os postulados que orientam a “moderna” Psicologia So-
cial são aqueles baseados numa visão do homem como ser pensante e
processador de informações geradas no meio social. Essas informações
seriam produzidas diretamente por nós, por terceiros, por nossa memó-
ria, veiculadas ou não pela linguagem, fornecidas no percurso de nossas
relações com outras pessoas ou grupos.
Na Psicologia, o conceito de representação social foi resgatado pela
vertente sociológica da psicologia européia. O estudo da representação
social marca uma mudança no eixo tradicional das pesquisas em Psico-
logia Social, que se concentravam, principalmente, na tradição
behaviorista (legado de Watson) de verificação de comportamentos
observáveis. Durante muitos anos, os conteúdos implícitos do com-
portamento humano foram pouco trabalhados pela Psicologia por, su-
postamente, não estarem dentro do âmbito de estudo desta ciência. A
corrente behaviorista detinha a hegemonia não só da Psicologia Social
como em todas as áreas da ciência psicológica.
A contribuição da vertente francesa à Psicologia está fundamentada na
ampliação dos objetivos e limites da Psicologia Social, alcançando bons
resultados na compreensão do processo da elaboração psicológica e social
COMUM 23 125
da realidade, integrando aspectos explícitos e implícitos do comportamento
à explicação das condutas.
Moscovici resgata do emaranhado de conceitos sociológicos e psicoló-
gicos a definição de representação social, que para ele é “uma modalidade
de conhecimento particular que tem por função a elaboração de compor-
tamentos e a comunicação entre os indivíduos.”11.
Os estudos teóricos têm dado ênfase aos temas relacionados ao indiví-
duo, quase sempre isolado do seu contexto sócio-cultural e histórico. Esse
procedimento limita a solução dos problemas que afetam as populações
dos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, prejudicando a sis-
tematização de novos conhecimentos no campo da psicologia social e co-
munitária, os quais seriam importantes para a melhoria da realidade só-
cio-econômica e cultural dessas nações12.
126 COMUM 23
social na fase adulta e as idéias, conhecimentos e representações são cria-
das e recriadas tanto ao nível social quanto individual.”14.
É uma modalidade particular porque não é todo “conhecimento”
que pode ser considerado representação social, mas somente aquele
que faz parte da vida cotidiana das pessoas, através do senso comum,
que é elaborado socialmente e que funciona no sentido de interpretar,
pensar e agir sobre a realidade. É um conhecimento prático que se
opõe ao pensamento científico, porém se parece com ele, assim como
aos mitos, no que diz respeito à elaboração destes conhecimentos a
partir de um conteúdo simbólico e prático.
Aproveitando a oportunidade, também podemos ressaltar a preocupa-
ção assinalada por Farr15 sobre o perigo a que os psicólogos estão expos-
tos, ao não darem atenção à natureza social das cognições, quando teorizam
sobre o comportamento social, restringindo-se a estratégias cognitivas
individuais de processar informações do meio social. Uma solução encon-
trada pelo autor, no sentido de prevenir limitações teóricas do conheci-
mento psicológico na área social, seria a busca de interligação do modelo
de psicologia de relações interpessoais de Heider às idéias de Mead, sobre
a significação social da linguagem. Através desse posicionamento, onde a
linguagem seria a chave para a Psicologia Social, os estudos apontam para
os meios de comunicação entre os indivíduos, e não apenas para o
processamento individual de informação, como acontece com a maioria
das teorias sociais elaboradas sob a orientação cognitivista.
Sendo assim, a cognição social, isto é, o estudo das dimensões de nature-
za social que penetram os processos cognitivos, passaria a ser uma alternati-
va para recuperar a essência e a identidade da Psicologia Social moderna.
Nesse movimento de ordenação do mundo, a linguagem exerce papel
de destaque, à medida que tipifica as experiências, dota-as de significado,
categorizando-as numa totalidade dotada de sentido, através da constru-
ção de campos semânticos, que vão determinar o acervo social de conheci-
mento, o que por sua vez permite a “localização” e “manejo” dos indivídu-
os no campo social16.
A linguagem, por ser flexível e expansiva, fornece a imediata possibili-
dade de objetivação de experiências. A ordem da linguagem, decorrente
de seu processo de estruturação, acaba por imprimir uma ordenação às
experiências e exteriorizações humanas. Ela tem origem e encontra sua
referência primária na vida cotidiana. Das primeiras palavras e pinturas
COMUM 23 127
rupestres, até às línguas atuais e suas formas escritas, podemos constatar a
dimensão histórica e social dessa manifestação do saber humano.
Outro elemento essencial da realidade na vida cotidiana é a estrutura
social. É através da sociedade, da interação e das relações pessoais, que o
indivíduo encontra a expressão de sua subjetividade. No compartilhar da
intersubjetividade, o ser humano adquire a certeza da realidade vivida e
percebe a diferença entre a sua realidade e as outras. A estrutura social é
compartilhada pela consciência do senso comum, porque se refere a um
mundo que é comum a muitos indivíduos.
Outra contribuição ao desenvolvimento das ciências sociais e da Psico-
logia Social foi a linha de pesquisas da Escola de Frankfurt, através de um
conjunto de idéias e interpretações da sociedade elaboradas durante a dé-
cada de 1930 por um grupo de pesquisadores alemães, alguns dos quais
haviam fundado em 1923 o Instituto de Pesquisa Social. Exilados a partir
de 1933, espalharam-se pela Europa e alguns emigraram para os EUA,
passando o Instituto a funcionar na Universidade de Colúmbia, em Nova
Iorque, atualmente considerada uma das melhores no mundo nos estudos
sobre a influência da comunicação de massa na sociedade. Entre eles en-
contravam-se grandes nomes das ciências sociais alemãs do século XX,
como Max Horkheimer, Theodor Adorno, Herbert Marcuse e o psicólo-
go Erich Fromm, entre outros, em sua maioria procedentes de famílias
judias, todos fugindo da perseguição nazista. Alguns dos antigos fundado-
res voltam para à Alemanha após a queda do regime nazista, retomando as
atividades do Instituto em 1950. Entre os mais recentes membros da “es-
cola” encontra-se Jürgen Habermas.
As idéias da Escola de Frankfurt giravam em torno de uma reavaliação
e análise do marxismo que permaneceu no pensamento de quase todos
como dominante na interpretação dos fatos sociais sem, no entanto, con-
verter-se em posição dogmática. A “escola” não é uma escola no sentido
tradicional. O termo representa, ao mesmo tempo, um grupo de intelec-
tuais e uma teoria social específica, de origem marxista. Para eles, o valor
de uma teoria depende de sua relação com a prática, ou seja, para ser rele-
vante uma teoria social tem de estar relacionada a uma ação criadora, di-
versa do comportamento resultante da pressão de forças externas, remo-
tas ao controle do homem, situação considerada característica do sistema
capitalista. A prática se oporia, dessa maneira, à simples ação pela ação e
estaria numa relação dialética com a teoria. É Horkheimer17 que estrutura
128 COMUM 23
os pontos fundamentais dessa linha de pesquisa ao publicar em 1937 o
artigo “Teoria tradicional e teoria crítica”, onde apresenta os princípios
básicos da “teoria crítica”.
A “teoria crítica” inicialmente repele os sistemas filosóficos tradicio-
nais, dos quais o positivismo seria a expressão mais acabada. Basicamente,
resultou das tentativas de vários pesquisadores, marxistas e não-marxis-
tas, de recuperar as idéias filosóficas contidas na obra de Karl Marx, so-
bretudo as influências hegelianas de seu pensamento. Horkheimer apon-
ta o conflito entre o positivismo e a visão dialética, denunciando o caráter
conservador da filosofia de Augusto Comte e realçando a natureza
emancipatória da sua teoria.
Qualquer que seja a diversificação na obra de cada um de seus repre-
sentantes, a “teoria crítica” representa implícita ou explicitamente uma
tentativa de superação das contradições e inconseqüências do marxismo
ortodoxo, através de um retorno a Hegel e de um enriquecimento de
algumas posições marxistas como: a dialética, a interpretação totalizante e
o objetivo revolucionário de subversão do capitalismo e da classe burgue-
sa. Seus pesquisadores, no entanto, distanciaram-se do marxismo em pontos
essenciais, como o conceito central do trabalho, a ênfase na autonomia
relativa da arte e da cultura, a rejeição da sucessão necessária do socialismo
ao capitalismo, o abandono da idéia da consciência de classe proletária,
por julgarem que o proletário como tal se diluía, ou se transformava numa
categoria conformista e que devia ser substituída por outras forças pro-
gressistas, dentre as quais estavam os intelectuais.
O ponto fraco da “escola” foi sua rejeição, principalmente através de
Adorno, de qualquer ontologia e da busca de um absoluto na história, o
que explica muitas falhas na linha de pesquisa do Instituto. A migração
para os EUA obrigou seus integrantes a algumas concessões. Por outro
lado, o convívio com a sociedade norte-americana levou alguns, como
Fromm e Marcuse, a modificarem seu pensamento. De qualquer manei-
ra, a integridade intelectual do grupo marcou as ciências sociais e sua revi-
são do marxismo antecipou as de Sartre e Merleau-Ponty, alargando o
âmbito da polêmica marxista na atualidade.
Dessa forma, a cognição social, isto é, o estudo das dimensões de natu-
reza social dos processos cognitivos, passaria a ser uma alternativa para
recuperar a essência e a identidade da Psicologia Social moderna.
COMUM 23 129
Moscovici18 definiu a Psicologia Social como a ciência do conflito entre
o indivíduo e a sociedade. O indivíduo só existe dentro da rede social e
toda sociedade é resultado da interação de milhares de indivíduos. Segun-
do Moscovici, são objetos de estudo da Psicologia Social: os fenômenos
da ideologia (cognição e representações sociais) e os fenômenos de comu-
nicação, todos vinculados aos diversos níveis das interações humanas.
O fundamental no estudo da Psicologia Social é o que ela tem de origi-
nal, que é questionar a separação entre o individual e o coletivo, contes-
tando a dualidade entre o psíquico e o social, sem deixar de compreendê-
los como campos interdependentes.
A representação social torna-se um instrumento da Psicologia Social,
na medida em que articula o social e o psicológico como um processo
dinâmico, permitindo compreender a formação do pensamento social e
antecipar as condutas humanas. Ela favorece o desvendar dos mecanismos
de funcionamento da elaboração social do real, tornando-se fundamental
no estudo das idéias e condutas sociais.
Para Durkheim19, o papel da Psicologia Social seria o de estudar “de
que modo as representações se atraem e se excluem, se fundem umas
com as outras ou se distinguem.” Por intermédio do aporte teórico da
representação social, torna-se possível penetrar no cotidiano dos indiví-
duos, considerando seus valores e identidades culturais, buscando suas
verdadeiras raízes e origens, proporcionando o descobrimento de aspec-
tos antigos e novos de sua identidade.
As representações do mundo social são sempre determinadas pelos
interesses dos grupos que as forjam. As lutas de representações têm tanta
importância quanto as lutas econômicas para compreender os mecanis-
mos pelos quais um grupo impõe, ou tenta impor, a sua concepção do
mundo social, os seus valores, o seu domínio.
A representação social, enquanto objeto de estudo da Psicologia
Social, permite a articulação do social e do psicológico, tornando-se um
instrumento de compreensão e de transformação da realidade.
130 COMUM 23
do pensamento teriam origem na sociedade, e que o conhecimento só pode-
ria ser encontrado na experiência social, ou seja, a vida social seria a condição
de todo pensamento organizado e vice-versa. As representações coletivas de-
signavam um conjunto de conhecimentos e crenças (mitos, religião, ciência...),
que para Jodelet, trata-se de um conjunto, atualmente reconhecido pelos psi-
cólogos sociais, para designar “... fenômenos múltiplos que se observam e
que se estudam aos níveis de complexidade, individuais e coletivos, psicológi-
cos e sociais variados.”21. Durkheim propôs, como condição essencial na ela-
boração do conhecimento, a formação de conceitos que são repartidos pelos
membros do grupo, com origem nas características da vida na coletividade.
Para o sociólogo, a individualidade humana se constitui a partir da soci-
edade. A “representação coletiva”, segundo Durkheim22, não se reduz à
soma das representações dos indivíduos que compõem a sociedade, mas
são, mais do que isso, um novo conhecimento é formado, que supera a
soma dos indivíduos e favorece uma recriação do coletivo. Uma função
primordial da “representação coletiva” seria a transmissão da herança co-
letiva dos antepassados, que acrescentariam às experiências individuais tudo
que a sociedade acumulou de sabedoria e ciência ao passar dos anos.
É justamente nessa questão que Moscovici diverge de Durkheim e acres-
centa novos elementos à elaboração do conceito de representação social.
Para ele, não é apenas uma herança coletiva dos antepassados, que é trans-
mitida de maneira determinista e estática. O indivíduo tem papel ativo e
autônomo no processo de construção da sociedade, da mesma forma que
é criado por ela. Ele também tem participação na sua construção23.
As representações sociais são “um conjunto de conceitos, frases e ex-
plicações originadas na vida diária durante o curso das comunicações
interpessoais”24. Segundo a definição apresentada por Jodelet25, são moda-
lidades de conhecimento prático orientadas para a comunicação e para a
compreensão do contexto social, material e ideológico em que vivemos.
São formas de conhecimento que se manifestam como elementos cognitivos
(imagens, conceitos, categorias, teorias), mas que não se reduzem apenas
aos conhecimentos cognitivos. Sendo socialmente elaboradas e comparti-
lhadas, contribuem para a construção de uma realidade comum, possibili-
tando a comunicação entre os indivíduos. Dessa maneira, as representa-
ções são fenômenos sociais que têm de ser entendidos a partir do seu
contexto de produção, isto é, a partir das funções simbólicas e ideológicas
a que servem e das formas de comunicação onde circulam.
COMUM 23 131
Sendo formas de conhecimento, as representações sociais formam uma
vertente teórica da Psicologia Social que faz contraponto com as demais
correntes da Sociologia, Antropologia, Filosofia, História e Comunicação
Social, que pesquisam sobre as questões do conhecimento. O interesse
dessas disciplinas pelas questões da realidade e conhecimento é justificado
pela existência de uma realidade social. Assim, o que é real para uma de-
terminada cultura pode não ser para outra. O conhecimento classificado
como verdadeiro pode ser visto diferentemente por categorias profissio-
nais distintas. Conhecimento e realidade deverão ser compreendidos dentro
de contextos sociais específicos e suas relações analisadas a partir destes
contextos. A importância dessas disciplinas, para as representações soci-
ais, se dá pelas diferenças observadas entre as sociedades em termos da-
quilo que é admitido como conhecimento.
O grande avanço na elaboração do conceito e teoria das representações
sociais por Moscovici26 foi a partir dos resultados de uma pesquisa realiza-
da em Paris, com o objetivo de levantar as representações sociais de algu-
mas categorias da população parisiense sobre a psicanálise. A escolha da
Psicanálise, enquanto objeto de estudo das representações sociais, foi de-
corrência da sua grande difusão na Europa e nos Estados Unidos, pro-
porcionando ao público um nível de informação ideal para a elaboração de
opiniões e de representações sociais. A pesquisa comparou distintas cate-
gorias da população, englobando amostras representativas da população
em geral, profissionais liberais, estudantes secundaristas e universitários.
Outro aspecto da compreensão do conceito de representação social é o
seu papel na formação de condutas. É ela que modela o comportamento e
justifica sua expressão. Moscovici27 diz que a representação social é uma
preparação para a ação, tanto por conduzir o comportamento, como por
modificar e reconstituir os elementos do meio ambiente que o comporta-
mento deve ter lugar. Para ele, o ser humano é um ser pensante que for-
mula questões e busca respostas e, ao mesmo tempo, compartilha realida-
des por ele representadas. Com esta visão, Moscovici assinala sua concep-
ção do social; uma coletividade racional, que não pode ser concebida ape-
nas como um conjunto de cérebros processadores de informações que as
transforma em movimentos, atribuições e julgamentos sob a força de con-
dicionamentos externos.
Moscovici não aceita a idéia de que grupos e indivíduos estejam sempre e
completamente sob o domínio ideológico de classes sociais, do estado, da igreja
132 COMUM 23
ou de escolas. A verdadeira dimensão dos seres humanos seria a de pensadores
autônomos e produtores constantes de suas representações, para quem as “ci-
ências e as ideologias não são mais que alimentos para o pensamento”28.
Explicitar como as cognições, no nível social, permitem a uma coletivi-
dade processar um dado conhecimento, veiculado pela linguagem, trans-
formando-o numa propriedade impessoal, pública, permitindo a cada in-
divíduo seu manuseio e utilização de forma coerente com os valores e as
motivações sociais da sociedade à qual pertence, foi mais um trabalho re-
alizado por Moscovici29. Para ele, a Psicologia Social deve se interessar
pela cognição social, isto é, pela criação, entre os seres humanos, das re-
presentações consensuais do universo.
O autor pressupõe a existência de dois universos de conhecimentos
reconhecidos pela sociedade: um em que a sociedade vê a si mesma repre-
sentada por especialistas em certas áreas do saber (físicos, psicológicos...)
aos quais ela restringe o poder de falar sobre estes conhecimentos. De
outro lado, reconhece a liberdade individual de seus membros se expres-
sarem em diversas áreas do conhecimento (religião, política, educação...) e
de se agruparem a partir de suas idéias em comum. Assim, enquanto o
saber científico é estruturado como um universo onde os integrantes só
possuem acesso a partir do nível pessoal de qualificação, o mundo onde
predomina o senso comum é integrado por todos, amadores ou curiosos,
que compartilham idéias e interpretações do mundo. É sobre este univer-
so consensual que Moscovici30 demarca a área de interesse da Psicologia
Social, principalmente da cognição social, estudando a criação das repre-
sentações consensuais.
COMUM 23 133
vamente dotado de sentido coerente. O mundo da vida cotidiana tem ori-
gem no pensamento e na ação dos homens, sendo apreendido como uma
realidade ordenada segundo certos padrões que se impõem à cultura hu-
mana. Qualquer acontecimento que rompa essa ordenação é integrado a
um setor que não pertence à realidade do dia a dia. Essa “integração” pro-
moveria a distorção das “realidades estrangeiras”33, na medida em que a
linguagem utilizada para interpretá-las está apoiada nos campos de signi-
ficação adquiridos através da experiência cotidiana.
A realidade da vida cotidiana é um mundo intersubjetivo, o mundo
de que cada um participa junto com outros indivíduos. Essa participa-
ção inclui o compartilhar de atitudes naturais em relação ao mundo.
“O mundo cultural não é só produzido coletivamente, como também
permanece real em virtude do conhecimento coletivo. Estar na cultura
significa compartilhar com outros de um mundo particular de objetivi-
dades” 34.
A estrutura social é outro elemento essencial da realidade da vida
cotidiana. É por intermédio da sociedade, da interação e das relações
pessoais que o indivíduo encontra a expressão de sua subjetividade.
No compartilhar da intersubjetividade, o indivíduo adquire a certeza
da realidade vivida e diferencia a realidade da vida cotidiana de outras
realidades de que tem consciência. A atitude natural é aquela que é
compartilhada pela consciência do senso comum, porque se refere a
um mundo que é comum a muitos homens.
A formação das representações sociais a partir da realidade da vida
cotidiana constitui uma grande força para que estas possam ser tratadas
e reconhecidas como conhecimento pela sociedade. Isto porque a rea-
lidade da vida cotidiana apresenta-se como a realidade por excelência,
já que, sendo decorrente das relações que o ser humano mantém no
dia a dia com o mundo, possui um caráter predominantemente
impositivo e urgente para a consciência. Sendo assim, o indivíduo ex-
perimenta a vida diária num estado total de atenção, que lhe permite
apreendê-la de forma normal e natural35.
Considerações finais
134 COMUM 23
micro-teorias, Serge Moscovici formulou um conjunto amplo de pro-
posições e integrou-as sob a denominação de representações sociais.
Discordando do modelo da Psicologia Social americana, cuja ênfase recai
sobre os processos individuais de trabalhar as informações, Moscovici
busca decifrar os processos através dos quais o pensamento, um ele-
mento primordial da cognição, torna-se consensual entre integrantes
de um grupo ou comunidade.
Um dos primeiros desafios que se apresentam aos estudiosos das
representações sociais é a sua conceituação. Diversos autores, que a ela
se referem, citam trechos diferentes da obra de Moscovici para justifi-
car e apoiar suas idéias ou então para fundamentar críticas dirigidas à
teoria das representações. Assim, a complexidade, a abrangência e au-
sência de consenso, ao redor do conceito de representação social, faci-
litam críticas e oposição às formulações teóricas que buscam
fundamentá-la.
Os estudos realizados por Moscovici e por outros autores da cor-
rente da Psicologia Social Francesa, sobre o conteúdo, sentido e fun-
ções assumidas pela representação social como instrumento da avalia-
ção dos grupos sociais, vêm reforçar a compreensão operacional de
como as representações sociais são elaboradas coletivamente a partir
da realidade cotidiana.
Quanto à investigação das condições sob as quais são produzidas as
representações, parecem não existir maiores problemas. A este res-
peito deve-se ter o cuidado de investigar as origens e a quantidade de
informações veiculadas num grupo ou comunidade, sobre um dado
objeto social, bem como o conjunto de idéias dominantes, utilizado
pelos integrantes, para se referir ao objeto. Estes estudos fornecem
subsídios para que o cientista social possa desenvolver pesquisas com a
finalidade de desvelar o pensar e o agir de grupos sociais, tendo como
referencial a teoria das representações sociais.
COMUM 23 135
Notas
1. BORGES, V. P. O que é história. 12a. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987.
2. KUCHARSKI, S. Durante as aulas de Sociolingüística, no curso de mestrado em Psicologia
Social da UGF, 1997.
3. Idem.
4. DURKHEIM, E. Formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália. São Paulo:
Paulinas, 1989.
5. SPERBER, D. Anthropology and psycology: towards na epidimiology of representations. Mann
(news series), 1985, pp. 73-89.
6. MOSCOVICI, S. Prefácio. In: GUARESCHI, P. & JOVCHELOVITCH, S. (org.). Textos em
representações sociais. Petrópolis: Vozes, 1994.
7. FARR, R. Representações sociais: a teoria e sua história. In: GUARESCHI, P. &
JOVCHELOVITCH, S. (org.). Textos em representações sociais. Petrópolis: Vozes, 1994.
8. KRÜGER, H. Durante as aulas de Teorias da Psicologia Social, no curso de mestrado em
Psicologia Social da UGF, 1998.
9. Idem.
10. FORGAS, J. P. What is social about social cognition. In: FORGAS, J. P. (ed.). Social cognition.
London: Academic Press, 1981, pp.1- 26.
11. MOSCOVICI, S. A representação social da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
12. GUARESCHI, P. A . & JOVCHELOVITCH, S. Textos em representações sociais. Petrópolis:
Vozes, 1994.
13. FORGAS, J. P. What is social about social cognition. In: FORGAS, J. P. (ed.). Social cognition.
London: Academic Press, 1981, pp.1- 26.
14. Idem, p. 2.
15. FARR, R. The social origins of the human mind: a historical note. In: FORGAS, J. P. (ed.).
Social cognition. London: Academic Press, 1981, 247-258.
16. BERGER, P. L. & LUCKMANN, T. A construção social da realidade. Petrópolis: Vozes, 1987.
17. HORKHEIMER, M. Teoria tradicional e teoria crítica. In: CIVITA, V. (coord.). Textos
escolhidos. Benjamin, Horkheimer, Adorno e Habermas. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
18. MOSCOVICI, S. Introduccion a el campo de la psicologia. In: MOSCOVICI, S. (ed.),
Psicologia social: influencia y cambios de actitudes, individuos y grupos. Barcelona: Paidós, 1985.
19. DURKHEIM, E. As regras do método sociológico. In: Durkheim, vida e obra (Os pensadores).
São Paulo: Abril Cultural, 1983, 203-245.
20. Idem.
21. JODELET, D. La representación social: fenômenos, concepto y teoria. In: MOSCOVICI, S.
(ed.). Psicologia social. Paris: Press Universitaires de France, 1984, pp. 31-61.
22. CHARTIER, R. A história cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 1990.
23. MOSCOVICI, S. A representação social da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
24. MOSCOVICI, S. On social representation. In: FORGAS, J. P. (ed.). Social cognition. London:
Academic Press, 1981, p. 181.
25. JODELET, D. La representación social: fenómenos, concepto y teoria. In: MOSCOVICI, S.
(ed.). Psicologia social. Paris: Press Universitaires de France, 1984, pp. 31-61.
26. MOSCOVICI, S. A representação social da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
27. Idem.
136 COMUM 23
28. MOSCOVICI, S. On social representation. In: FORGAS, J. P. (ed.). Social cognition. London:
Academic Press, 1981, p. 183.
29. MOSCOVICI, S. Introduccion a el campo de la psicologia. In: MOSCOVICI, S. (ed.).
Psicologia social: influencia y cambios de actitudes, individuos y grupos. Barcelona: Paidós, 1985.
30. MOSCOVICI, S. On social representation. In: FORGAS, J. P. (ed.). Social cognition. London:
Academic Press, 1981, pp. 181-209.
31. BERGER, P. L. & LUCKMANN, T. A construção social da realidade. Petrópolis: Vozes, 1987.
32. Idem, p. 76.
33. Ibidem, p. 52.
34. BERGER, P. L. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo:
Edições Paulinas, 1985, p. 23.
35. BERGER, P. L. & LUCKMANN, T. A construção social da realidade. Petrópolis: Vozes, 1987.
COMUM 23 137
Resumo
O artigo aborda o conceito de representação social a partir da idéia da
“representação coletiva”, desenvolvida por Durkheim, apresentando um
breve histórico da teoria, sua importância e abrangência no universo da
Psicologia Social, através de uma visão panorâmica de sua evolução, pas-
sando pela Escola de Frankfurt, até chegar aos dias de hoje com Moscovici.
Dentro de uma perspectiva transdisciplinar, as representações sociais,
no presente artigo, surgem como um campo multidimensional, possibili-
tando questionar a natureza do conhecimento e a relação indivíduo-socie-
dade. A contribuição da Psicologia Social é analisada, sendo focalizada a
vocação dessa disciplina para estudar as representações simultaneamente
como campo socialmente estruturado e núcleo estruturante da realidade
social.
Palavras-chave
Representação Social, Psicologia Social, natureza do conhecimento.
Abstract
The article approaches the concept of social representation from the
idea of the “collective representation”, developed for Durkheim, presenting
a historical briefing of the theory, its importance and comprehensiveness
in the universe of Social Psychology, through a panoramic
vision of its evolution, passing for the School of Frankfurt, until arriving
at the present with Moscovici.
Inside of a perspective to transdisciplinar, the social representations, in
the present article, appear as a multidimensional field, making possible to
question the nature of the knowledge and the relation individual-society.
The contribution of Social Psychology is analyzed, being focused the
vocation of this it disciplines to study the representations simultaneously
as field socially structuralized and nucleus estruturante of the social reality.
Key-words
Social Representation, Social Psychology, nature of the knowledge.
138 COMUM 23
Tudo o que seu mestre mandar faremos todos....
Catia Veloso
Introdução
O que dizer se não concordar com esta citação? Que espaço é este? Ou
será melhor dizer: será este mais um espaço onde se transformam crian-
ças em seres pré-programados?
Escola como espaço de inter-relação ou de perpetuação da
estratificação de papéis?
Postos a galgar. Lugares a conquistar. Desafios.
E o espaço de troca, de real troca de vivências onde trabalho, con-
vivência, educação acontecem, onde está? Ainda temos no espaço es-
colar um lugar onde possamos transitar com estes questionamentos?
O que ensinamos pode ser significativo para nossos alunos viverem
nesta nova realidade?
Reconhecemos neles a desmotivação, o estranhamento que também
sentimos como um sintoma de uma sociedade doente, insana, fragmenta-
da, onde cada vez mais sabemos muito de quase nada?
Refletindo sobre estas questões vimos, em Maraschin (2000: 109), que:
140 COMUM 23
rer, extravasar as energias; explorar seu corpo e ser ela mesma. Vemos
crianças que não se enquadram nos padrões. E vemos pais, professores ou
alguém responsável buscando por meio da autoridade, autoritarismo, que
elas se encaixem nos papéis sociais já pré-estabelecidos.
A obediência à autoridade – que, para a criança, são todas as outras
pessoas – é a aceitação do destino; e o destino é a vontade dos outros, dos
que possuem mais poder, nos diz Adoum (1973).
Concordamos, portanto, com a afirmativa de Carrara (1996: 16),
quando ele diz:
COMUM 23 141
dos seus afazeres? Somente através dos relógios-objetos, ou escutam o
seu corpo como relógio biológico marcando o tempo de vida e desejos?
Essa preocupação com o tempo vem desde a Grécia Clássica, quando para
ele existiam noções diferentes: chronos e aion. Chronos, nome escolhido para de-
signar o tempo de lei, da repetição ordenada, da determinação, do encadeamen-
to lógico ou cronológico entre o antes e o depois. E o aion, que é o tempo de
criação, liberto do aprisionamento da ordem e que possibilita o devir.
Ainda hoje vemos, todavia, a criança delimitada em seu tempo, preocu-
pada, prisioneira de um tempo que não mais lhe pertence. Cantam, criam
histórias, trocam fatos e afetos do seu cotidiano com seus companheiros,
com seus professores? Creio que não. Não há tempo para o prazer.
Sabemos quanto é importante a experiência passada de pessoa a pes-
soa, a pluralidade do humano, narrativas impregnadas pela vivência anôni-
ma, tão repleta de fatos, tradições e saberes que marcam a cultura de um
povo. Saber este que trazia o senso prático, o dia a dia, riquezas de narra-
tivas que, através de uma história, um conto, uma lenda, informavam,
formavam e aconselhavam com sabedoria e autoridade. Autoridade esta
que se perdeu nos dias de hoje. Não mais importa um saber que se encon-
tra impregnado de experiências que falam de uma tradição distante, no
tempo e no espaço. Hoje o que se valoriza é a notícia atual. O que interes-
sa não são as reminiscências, memórias, fatos a serem revistos,
rememorados, espaço de criação, de invenção.
Assim sendo, a todo momento há fatos que desbancam o que ocorrera
a segundos, a minutos, a horas atrás. Pelo ontem, poucos se interessam.
Tudo se passa no aqui e agora. Tudo é on-line, é instantâneo. Tudo deve se
encontrar pronto, sem margens a retoques, a lapidação, pleno de imagens
que não nos deixam espaço para a imaginação. A imagem que fixa, que
encerra, que castra, interdita a possibilidade de inventar-se. O mundo se
presta ao real-time. Contudo o que vemos são posições fragmentadas, uni-
laterais, que não permitem a compreensão dos fatos, pois o que se reforça
são explicações. Fidelidade de fatos? Narrativas presas aos fatos? E está
longe o tempo em que não havia, como diz Benjamin (1987: 209), a preo-
cupação “com o encadeamento exato de fatos determinados, mas com a
maneira de sua inserção no fluxo insondável das coisas”.
Cada vez elaboramos metas, prazos, testes, provas a cumprir, sem
mesmo nos atermos aos conteúdos do que aprendemos, ou ensinamos,
lemos ou vemos.
142 COMUM 23
O que aprendemos/compramos na escola? O que trocamos?
Temos é que chegar aonde mesmo? Não sabemos, nos perdemos nas
encruzilhadas, o caminho virou uma teia e acabamos por nos enroscar
nela. Tem saída. É difícil e trabalhosa. Zonas de perigo. Placas de “é preci-
so parar e voltar”, “retornar”; área limítrofe; de livre trânsito; local de
interseção; local de bagunça; de brincadeiras de jogos reais e virtuais; de
exploração; de apropriação; zona de desenvolvimento proximal..., transi-
tar em todos os espaços possíveis superando o biológico, o psicológico, as
imposições, as fronteiras que nos fazem olhar para as bordas que formam
os nossos devir a ser. O que importa sempre é o que não foi dito, visto,
lido. É o mais além. É a parada para a reflexão do que poderia ter sido
feito, realizado, conquistado, falado e deixamos em suspenso. O que não
foi revelado e o que se pensa adivinhar. Daí a importância das histórias
interrompidas. Dessa brecha que suspende, desse espaço entre o que se é
e o que pode vir a ser.
Ser este ou aquele, ser completo na incompletude, ser para quem ainda
faltam tantos caminhos a percorrer. E o bom é poder fazer o caminho
levando conosco a nossa história, porque estamos sós ou acompanhados
em grande parte do nosso percurso.
Nesse sentido, então, qualquer espaço é um espaço educativo (a rua, a
casa, o pátio, o corredor,...), locais de construção de identidade, pluralidades,
convergências e divergências, de conhecimentos. Nos conhecemos em
contraponto com os “Outros”.
Ora, para Silva (2000: 97):
COMUM 23 143
a voltar – reforçado e multiplicado. E o problema é que esse
“outro”, numa sociedade em que a identidade torna-se, cada
vez mais, difusa e descentrada, expressa-se por meio de muitas
dimensões. O outro é o outro gênero, o outro é a cor diferen-
te, o outro é a outra sexualidade, o outro é a outra raça, o outro
é a outra nacionalidade, o outro é o corpo diferente.
Por outro lado, a descoberta dos espaços internos pode ser uma andança
muito rica, significativa, densa, importante na conquista da própria identida-
de. Pois somente fazendo, mexendo, incorporando, alterando, olhando, chei-
rando, saboreando, sendo com o outro, construímos as nossas identidades.
Vemos o espaço que a criança encontra ao nascer, e que no decurso de seu
desenvolvimento é estruturado pelos outros. São eles que lhe atribuem valo-
res de acordo com a classe social a que se pertença, já que “não se nasce orga-
nismo biológico abstrato, mas aristocrata ou camponês, burguês ou proletá-
rio” e isto é um ponto capital (Bakhtin, 1980 apud Jobim e Souza, 1994: 60).
Então, o espaço que autorizamos a criança a ocupar ou não, a função que
lhe atribuirmos junto a um outro, constituem os elementos de um jogo de
xadrez que se joga com a família e com as outras instituições. Espaço de co-
municação, onde é necessário se ler nas entrelinhas, buscar informar-se, ajus-
tar-se aos diferentes contextos.
Assim como a linguagem oferece os meios pelos quais as crianças podem
estruturar o mundo, ela também é um dos fatores importantes na construção
da experiência e da subjetividade nas escolas. A linguagem não apenas posiciona
professores e alunos, mas também funciona como veículo por meio do qual
eles se definem, mediatizam e compreendem suas relações uns com os ou-
tros e com a sociedade.
Levam a pensar com o outro, por causa do outro, apesar do outro. Confiar.
Desconfiar. Refletir. Refletir. Reestruturar, modificar, mudar.
Mudar sim, quando necessário for. Enfrentar situações novas. Desafios.
Abismos. Mudar de pele, de gosto, de amor. Metamorfoses. Colocar-se em
xeque.
Transgredir sim, quando preciso for. Quebrar a rotina, a mesmice, o
óbvio, o habitual. O difícil é o equilíbrio entre o real e o ideal. É difícil,
sabemos que sim.
Quantas vezes nos pegamos reproduzindo, imitando um comportamen-
to, um modelo que julgávamos enterrado? O retorno do recalcado1.
144 COMUM 23
Fomos convencidos, apanhados inconscientemente pelo fascínio da su-
perioridade do colonizador. Tenta-se agora, na nossa sociedade, além de se
aprisionar os corpos, aprisionar a alma através da invasão de privacidade, da
invasão de imagens, sons.
Condicionou-se os jovens, as crianças, à massificação de um gosto co-
mum através da mídia. Vemos que o poder político entra e marca tudo o
que consumimos. Como diz Rose (1986 apud Hall, 2000: 113), “se a ideo-
logia é eficaz é porque ela age nos níveis mais rudimentares da identidade
e dos impulsos psíquicos”.
Sempre tentaram nos fazer crer que o natural é obedecer à autoridade,
obedecer e esperar a recompensa, como nos contos da Cinderela, Pele de
Asno e Branca de Neve, nas quais o que se considerava virtude e se exaltava
eram a resignação, a submissão e o conformismo. A ideologia ocidental bur-
guesa sempre a favor do conformismo social! Em que momento conseguire-
mos estabelecer a ideologia vista por Bakhtin – “ideologia como espaço de
contradição e não apenas de ocultamento”? (Freitas, 2000: 127).
Como fugir desta situação que empurra o cidadão a se sentir inferior, pe-
queno, marginal para exercer sua autoridade, autoria de seu ser, se ele se sente
impotente, se é tão difícil lutar contra quem o oprime?
Como, se há uma forte tendência à homogeneização das consciências e à
tentativa de abolir as diferenças, como se isto fosse possível acontecer? Deve-
mos rejeitar a idéia de homogeneidade. O ser humano necessita biológica e
ontologicamente de auto-construção e de produção da diferença.
Heterogênese. Daí as tatuagens, os piercings, cabelos coloridos, tererês, ten-
tativas de marcas visíveis das várias possibilidades de ser, viver, organizar e
legitimar as múltiplas realidades que se vivenciam, sem que com isso se ne-
guem as várias formas de expressão, segundo as quais o importante é respei-
tar e tratar a todos não como iguais, mas como diferentes que somos. Com
produções diversas, histórias, memórias e experiências, tanto individuais quanto
coletivas, que são carregadas de um saber que tem sido muito desvalorizado e
desprezado pela sociedade capitalista.
De acordo com Silva (2001: 25), “a diferença, e portanto a identidade, não é
um produto da natureza: ela é produzida no interior de práticas de significa-
ção, em que os significados são contestados, negociados, transformados”.
Portanto, a ação de buscar e de apropriar-se dos conhecimentos exige
que tanto professores quanto alunos se esforcem, participem, indaguem,
reflitam sobre todas as questões, o que não admite uma postura ingênua,
COMUM 23 145
apolítica e alienada com relação à vida. A sala de aula deve ser utilizada como
um espaço político de atuação. Como se posicionar com compromisso e
coerência, trazendo para a sala de aula o espaço de relações e conflitos, de
tensões e de vida? Como contribuir para que o aluno seja autor e não
reprodutor? Como combater a idéia de perfeição, do pronto, do acabado
que não permite que se instale o diálogo, e que se possa recriar um novo
texto onde se possa resistir, criticar e analisar?
Roqueplo (1983 apud Sacristán, 1998: 72) afirma que:
Isto nos leva a crer que também devemos colocar a tecnologia a serviço
de políticas comunitárias, empregar a mídia para informar, educar e pres-
tar serviços à população, através do fortalecimento da produção cultural
local, da linguagem da comunidade. Encontrar o saber e partilhá-lo, junto
aos meios de informação. Acessá-lo, transformá-lo e utilizar este conheci-
mento para que se possa combater o medo, o conflito, a solidão e a rotina.
Não podemos esquecer, todavia, que devemos levar em conta as experiênci-
as de outros países com estas questões, pois muitos deles utilizam a escola
como espaço público para reflexão crítica, resgate e contribuição, oferecendo
apoio, segurança e dignidade para que todos se sintam cidadãos, e não meros
joguetes nas mãos de uns poucos que os governam. Assim sendo, acreditamos
que cabe ao professor atuar consciente do seu papel profissional, aprimorando
a formação de seu aluno, possibilitando um pensamento crítico, curioso, autô-
nomo, que não forme mais Pinóquios e sim pessoas interessadas na vida, agin-
do com honestidade consigo mesmas e com solidariedade para com os outros.
Que a nossa escola não forme jovens que aprendam a mentir e a fingir
como no conto “A escola”, de Machado de Assis, mas que os tornem pes-
soas dignas, “ativas na construção e na determinação de sua própria vida
social, da vida daqueles à sua volta e das sociedades nas quais vivem” (Cobb,
1977 apud Hutchison, 2000: 73).
Conforme nos diz o mesmo autor (Ibid.: 106), “Para a criança, o mun-
do revela não apenas seus mistérios, mas também suas leis, aprender que
se pode fazer uso dessas leis é uma lição importante da infância.”
146 COMUM 23
Debruçando sobre esta questão, sentimos necessidade de refletir mais
profundamente sobre a importância da família na estruturação dessa auto-
nomia que buscamos construir ao longo de nossa vida, e se existe em
outros espaços, como a escola, alguma contribuição para que esta autono-
mia venha a se estabelecer.
A família, é claro, deve contribuir, e muito, para a formação desse novo
cidadão. O que se busca não é criar filhos autômatos, filhos obedientes,
subservientes. Não desejamos produzir monstros treinados, porém criar
crianças mais humanas. Crianças com um curriculum vitae que traga uma
conquista importantíssima para a sua autobiografia: o respeito pela vida,
sua e do seu próximo.
Conclusão
Portanto, chegamos à conclusão de que a responsabilidade pela for-
mação de seres autônomos, responsáveis pelos seus atos, comprome-
tidos com sua própria autoria por esta formação que estamos aqui pro-
pondo venham a possibilitar que a criança se torne um cidadão autor,
autônomo, responsável por seus atos e comprometido com a sua co-
munidade. Tarefa difícil, mas sem dúvida reservada àqueles que dese-
jam promover um país comprometido com o homem do novo milê-
nio, um ser solidário, consciente e ético.
Nota
1. Recalcamento ou recalque – A) No sentindo próprio: operação pela qual o indivíduo procura
repelir ou manter no inconsciente representações (pensamentos, imagens, recordações) ligadas a
uma pulsão. B) Num sentido mais vago: o termo “recalcamento” é muitas vezes tomado por
Freud numa acepção que o aproxima de “defesa”; por outro lado, na medida em que a operação
de recalcamento tomada no sentido A se encontra, pelo menos como uma etapa, em numerosos
processos defensivos complexos (a parte é então tomada pelo todo), e, por outro lado, na medida
em que o modelo teórico do recalcamento é utilizado por Freud como protótipo de outras
operações defensivas (Laplanche; Pontalis, 1970: 553).
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Resumo
Este artigo procura discutir as contribuições da família e da escola para
que uma pessoa se torne um ser autônomo, autor, responsável por seus
atos de uma forma ética, comprometida e solidária.
Palavras-chave
Autoria, autonomia, autoridade, família, escola e pensamento crítico.
Abstract
This article trie to discuss who contributes to a person turns into a
person with autonomy, authority and responsability for his/her acts under
obligation, ethical and in solidarity behaviours.
Key-words
Authorship, authority, autonomy, reponsability, parents, school and
critical thoughts.
148 COMUM 23
Nuno Velloso
O “crioulo” de olhos azuis que estudou
com Marcuse relembra o Zicartola
Roberto M. Moura
150 COMUM 23
dupla levou Nuno quase simultaneamente à Faculdade de Filosofia e à Ala
de Compositores da Mangueira, da qual chegou a presidente, entre 1957 e
1960 – e as duas unções devem-se ao estímulo de Cartola.
Além de parceiro, o então universitário era fã de Cartola e lhe agradava
muito participar daquele ambiente humilde que lhe garantia privilégios
como ser testemunha das visitas de Villa-Lobos:
– Cartola só o chamava de Heitor e algumas vezes vi o maestro
transcrevendo seus sambas para a partitura. Transcrevia e dizia: “está
tudo errado, mas é lindo”. Aliás, muitas vezes se reduz a obra de Car-
tola, mas ele não era só sambista. Fazia canções, baladas, quase valsas –
e para ser sincero me lembro muito pouco dele na quadra, cantando
com a bateria tocando. Cartola sempre foi mais da roda, do ambiente
menor do regional. Na sua música, costumava repetir, só podia ter
corda e couro. Metal, nem o sax do Pixinguinha. Não que ele não gos-
tasse, só achava que não era para a sua música.
O envolvimento de Nuno com a Mangueira, a essa altura, era de tal
ordem que lhe motivou uma temeridade:
– No desfile de 1960, o julgamento era feito embaixo da ABI, na Rua
Araújo Porto Alegre. Houve uma confusão, porque queriam dar a vitória
à Portela, alegando-se pontos negativos de outras escolas em função do
regulamento. Não tive dúvida: roubei a urna com os votos e saí correndo.
A comissão acabou considerando, então, cinco escolas como campeãs:
Portela, Mangueira, Salgueiro, Unidos da Capela e Império Serrano.
Terminada a faculdade, um irmão mais velho de Nuno ajudou-o a fazer
mestrado em Filosofia da Arte, na Inglaterra. De volta ao Rio, foi estudar
Direito, na antiga UEG, na Rua do Catete. Também por insistência de
Cartola, que chegou a ir com ele fazer a inscrição para as provas. Foi nessa
época que Nuno se tornou redator da revista A Ordem, de orientação
tomista, dirigida por Alceu Amoroso Lima e Gustavo Corção.
Depois de formado, tentou exercer a advocacia, mas logo viu que a
atividade não combinava com o exercício da presidência da Ala dos Com-
positores da Mangueira. Nuno já participara, como cantor e compositor,
do primeiro elepê com os sambistas da escola e, apesar da pele e dos
olhos claros, era um d’Os 5 Crioulos, dos primeiros grupos a cultuar o
samba de quadra – num momento em que os sambas-enredo já ganha-
vam espaço (os outros quatro eram Anescar, Nelson Sargento, Mauro
Duarte e Jair do Cavaquinho).
COMUM 23 151
Quando o conjunto foi contratado para gravar, veio o impasse: o
nome não combinava com a pele de um dos cinco. Nuno chegou a
participar da gravação, mas não apareceu na capa. Fez parte também da
formação original do conjunto A Voz do Morro, com Zé Kéti e Elton
Medeiros, mas com eles não adentrou estúdios. Tornou-se
gradativamente mais da academia que do samba, a não ser pela convi-
vência permanente com Cartola e Zica.
Foi nessa época que entrou em sua vida a Frein Universitat Berlin –
Osteurope Institute, para onde ele foi em 1963 fazer o Doutorado em
Filosofia. Ali, tornou-se assistente de um filósofo mundialmente conheci-
do e cuja obra teria enorme repercussão no desbunde dos anos 1970:
Herbert Marcuse. Judeu alemão, perseguido pelo nazismo, Marcuse bus-
cava reinterpretar Marx e Freud à luz da sociedade industrial.
É com essa bagagem que Nuno agora reinterpreta a relação de grande
intimidade que teve com os dois endereços do casal mangueirense no cen-
tro da Cidade. Nuno praticamente morou com Cartola e Zica na Rua dos
Andradas e muitas vezes dormiu na Rua da Carioca.
– A diferença básica entre os dois endereços é que na Rua dos Andradas
tudo era estritamente amador. Não havia nenhum tipo de couvert artísti-
co ou coisa semelhante. Quando o Zicartola foi inaugurado, já era mesmo
uma casa de samba.
Obviamente, Nuno não acompanhou o ocaso do Zicartola. Mas, de
volta da Alemanha, já doutor, Cartola e Nelson Cavaquinho estavam a
esperá-lo no cais da Praça Mauá.
– Durante todo o tempo em que estive na Alemanha, Cartola me es-
crevia toda semana. Quando chegava o carnaval, mandava pelo correio a
fantasia da ala – eu, naquele frio alemão, chorava abraçado à fantasia. Quando
desci do navio, vi Cartola e Nelson e não tinha a menor idéia de onde ia
morar. Nelson disse que tinha conseguido uma casa, no Jardim América, e
teria prazer em me receber. Respondi-lhe que não queria incomodar e ele
respondeu: “me incomodar? Ora, a minha casa é o último lugar onde eu
posso ser encontrado”. Acabei aceitando.
Nuno retornou ao Brasil casado com a mãe de suas duas filhas, Maria Adelaide
(“o casamento durou só dois anos, com o detalhe de que eu morava na Alema-
nha e ela na França, namorávamos nos fins de semana”). Como o casamento,
também a relação com o samba foi se esvanecendo. A mulher foi trabalhar na
revista Ele & Ela e ali conheceu Muniz Sodré, jornalista, professor e escritor.
152 COMUM 23
Muniz já estava na Escola de Comunicação da UFRJ, a ECO. Sabendo
que o marido da colega trabalhara na Alemanha com Marcuse, um dos
ícones da Comunicação daquele período, apresentou-o a Simeão Leal, o
diretor da faculdade – de modo que Nuno Velloso tornou-se então pro-
fessor de Teoria da Comunicação.2
Posteriormente, ao lado do mesmo Muniz Sodré, Nuno fez prova para
professor da UFF. Os dois foram aprovados.
Nuno e eu saímos da ECO quase ao mesmo tempo: formei-me em
1974 e ele foi cedido à Escola Superior de Guerra em 1975, embora tenha
tido os seus salários pagos pela UFRJ até a aposentadoria.
Por causa de artigos publicados na época no Jornal do Brasil (o que
talvez explique o índex a que foi relegado), Nuno foi acusado de ser “há
muito tempo agente da CIA” por dois colunistas de peso: Leandro Konder,
no próprio Jornal do Brasil, e Paulo Francis, no Pasquim. Como é de seu
temperamento, ironizou a acusação, dizendo que “não tinha nada contra
ser agente, desde que o salário fosse em dólar e os colunistas dissessem há
quanto tempo ele exercia a função, para poder cobrar os atrasados.”
Certo dia, conversando na redação com o falecido jornalista Juarez Bar-
roso, Muniz perguntou-lhe se havia alguma chance de Nuno ser o reacio-
nário de que o acusavam. Juarez observou que já falara sobre o assunto
com a Dona Zica: “agente da CIA, o Nuno? O que o Nuno é, é maluco.”3
Pode ser, mas um maluco beleza, de pensamento ágil e capaz de en-
frentar um mito:
– Dizem que Cartola nunca quis sair de Mangueira, mas isso não é
verdade. Em todas as saídas do casal , foi ele que quis. Sempre quem quis
ficar ou voltar foi a Zica. As mulheres mangueirenses sempre foram
agarradíssimas com o morro. Lembra do Jordan, que jogava no Flamengo
e chegou a ser convocado para a seleção brasileira, apesar de lateral e ter
que marcar o Garrincha? Pois é, ganhou um dinheirinho e comprou um
apartamento para a mãe, ali pertinho em Vila Isabel. A velha foi? Que
nada, disse que não ia abrir mão da roda de lavadeiras da qual fazia parte e
onde a comunidade sabia de tudo. Mas isso era no tempo em que o morro
só tinha uma bica d’água, as mulheres todas em volta dela.
O grande legado do Zicartola, para Nuno, foi ter aberto para toda uma
geração de sambistas a estrada que levaria ao disco e à carreira profissional.
Tradução livre, usando a terminologia de Roberto DaMatta: foi quando
quis restabelecer a “casa”, reinventando a roda em outro espaço, que o
COMUM 23 153
compositor do morro pôde afinal chegar à “rua”, isto é, ao mercado e ao
consumo. Mas, o mais importante do Zicartola foi ter estimulado o velho
mangueirense a fazer acordar a sua veia criativa, dando início à série de
composições mais relevantes de sua discografia. Com o bar, sambistas,
jornalistas e intelectuais descobriram que Cartola estava muito vivo e, lem-
brando Guimarães Rosa, “existia de se pegar.”
Nuno e o Zicartola
154 COMUM 23
a boa música. Prossegue Sergio: “naquela casa conheci o talento de Dona
Zica como cozinheira. Aparecia sempre lá para ouvir os sambas de Cartola
e saborear o feijão, a carne assada, a carne seca com abóbora e tantos ou-
tros pratos que ela fazia com engenho e arte”.
Batiam ponto por lá, além do próprio Sergio Cabral, o crítico Lúcio
Rangel, os cronistas Sergio Porto (o Stanislaw Ponte Preta) e Jota Efegê, o
caricaturista Lan e o pintor Raimundo Nogueira. Entre os sambistas, não
era difícil encontrar Zé Kéti, Elton Medeiros, Nelson Cavaquinho e este
doublé de sambista e professor universitário Nuno Velloso, figura muito
querida de Cartola, que o tinha como um filho adotivo, e um dos inte-
grantes “da primeira formação do conjunto A Voz do Morro, que nasceu
naquela casa” (Cabral, 2003: 12).
Notas
1. Entrevista ao autor, na Escola Superior de Guerra, em 11 de fevereiro de 2003.
2. Foi nesta cadeira que o conheci, em 1970, quando fiz meu vestibular para lá (a ECO ainda na
Praça da República, ao lado da Delegacia de Polícia).
3. Muniz Sodré, por telefone, ao autor, em 11/02/2003.
4. Denominação de uma parte do alto do Morro da Mangueira onde os sambistas costumam se
reunir em, rodas de partido-alto e onde Stokowski conheceu os sambas de Cartola, levado por
Villa-Lobos, nos anos quarenta.
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A Revista Comum aceitará contribuições sem restrição de procedência,
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