Tese - Anna Paula Teixeira Daher - 2022
Tese - Anna Paula Teixeira Daher - 2022
Tese - Anna Paula Teixeira Daher - 2022
FACULDADE DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
Goiânia-GO,
2022
UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS
FACULDADE DE HISTÓRIA
Na qualidade de titular dos direitos de autor, autorizo a Universidade Federal de Goiás (UFG)
a disponibilizar, gratuitamente, por meio da Biblioteca Digital de Teses e Dissertações (BDTD/UFG),
regulamentada pela Resolução CEPEC nº 832/2007, sem ressarcimento dos direitos autorais, de acordo com
a Lei 9.610/98, o documento conforme permissões assinaladas abaixo, para fins de leitura, impressão e/ou
download, a título de divulgação da produção científica brasileira, a partir desta data.
Goiânia-GO,
2022
Ficha de identificação da obra elaborada pelo autor, através do Programa de
Geração Automática do Sistema de Bibliotecas da UFG.
CDU 94(81)”1889/...”
UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS
FACULDADE DE HISTÓRIA
ATA DE DEFESA DE TESE
Ata nº 010/2022 da sessão de Defesa de Tese de ANNA PAULA TEIXEIRA DAHER, que
confere o título de Doutor(a) em História, na área de concentração em Culturas, Fronteiras
e Identidades.
Ao/s sete dias de abril do ano de dois mil e vinte e dois, a partir da(s) 14h00,
via videoconferência, realizou-se a sessão pública de Defesa da Tese intitulada "O Abysmo
das Suspeitas": as narrativas da Tragédia da Piedade (1909) e a construção do mito de
Euclides da Cunha (1866-1909). Os trabalhos foram instalados pelo(a) Orientador(a),
Professor(a) Doutor(a) Heloisa Selma Fernandes Capel (PPGH/UFG) com a participação
dos demais membros da Banca Examinadora: Professor(a) Doutor(a) Rosangela Patriota
Ramos (UPM), membro titular externo; Professor(a) Doutor(a) Rodrigo de Freitas Costa
(UFTM), membro titular externo; Professor(a) Doutor(a) Ademir Luiz da Silva (UEG),
membro titular externo; Professor(a) Doutor(a) Ana Carolina Eiras Coelho Soares
(PPGH/UFG), membro titular interno. Durante a arguição os membros da banca não
fizeram sugestão de alteração do título do trabalho. A Banca Examinadora reuniu-se em sessão
secreta a fim de concluir o julgamento da Tese, tendo sido(a) o(a)
candidato(a) aprovada(o) pelos seus membros. Proclamados os resultados pelo(a) Professor(a)
Doutor(a) Heloisa Selma Fernandes Capel, Presidente da Banca Examinadora, foram
encerrados os trabalhos e, para constar, lavrou-se a presente ata que é assinada pelos Membros
da Banca Examinadora, ao(s) sete dias de abril do ano de dois mil e vinte e dois.
TÍTULO SUGERIDO PELA BANCA
Documento assinado eletronicamente por Ana Carolina Eiras Coelho Soares, Professor do
Magistério Superior, em 18/04/2022, às 15:22, conforme horário oficial de Brasília, com
fundamento no § 3º do art. 4º do Decreto nº 10.543, de 13 de novembro de 2020.
Sou tão grata a minha mãe, Magali, e a minha irmã, Luisa, minhas melhores companheiras de
caminhada. Também sempre grata ao meu pai, Otávio, que se já não caminha mais ao meu lado,
segue sempre comigo. Agradeço, ainda, a família e aos amigos, em nome de Ricardo e Silvia
Piccolo Daher, que são os dois.
Grata a minha orientadora, Prof. ª Dr. ª Heloisa Selma Fernandes Capel, pelos rumos traçados
com paciência e gentileza, e por tantos aprendizados ao longo do caminho.
Aos professores do PPGH/UFG agradeço em nome da Prof.ª Dr. ª Raquel Campos, cuja
disciplina em muito ajudou as leituras desse trabalho. Aos colegas do PPGH/UFG agradeço em
nome de Krisley Oliveira, que tantas vezes me socorreu.
A Prof. ª Dr. ª Rosângela Patriota, Prof. ª Dr. ª Ana Carolina Coelho e ao Prof. Dr. Rodrigo de
Freitas, agradeço a leitura generosa da qualificação, fundamental para a versão final deste
trabalho. Aos três professores e também ao Prof. Dr. Ademir Luiz da Silva, agradeço por
participarem da banca examinadora da tese. Igualmente, agradeço ao Prof. Dr. Eliézer Cardoso,
Prof. ª Dr. ª Raquel Miranda, Prof. ª Dr. ª Sônia Magalhães e ao Prof. Dr. Leandro Rocha por
se colocarem à disposição como suplentes.
Agradeço a CAPES pela bolsa concedida, que me permitiu uma dedicação muito maior a essa
pesquisa.
RESUMO
O escritor Euclides da Cunha foi morto em razão de uma série de acontecimentos envolvendo
Dilermando de Assis, amante de sua esposa, Ana Emília, por ele interpelado a fim de recuperar
a honra, em circunstâncias que foram narradas de diferentes maneiras, a partir de diferentes
memórias e ficaram conhecidas como “Tragédia da Piedade”. Parte-se desse acontecimento
para compreender como as suas disputas narrativas e de memória contribuem para erigir a
imagem de Euclides como ideal de homem e de intelectual, um mito – e como essas construções
advém das conjunturas históricas e da recepção de sua vida, morte e obra articuladas a partir da
atuação e criação de tradições das instituições culturais das quais ele fazia parte. Estar entre
esse grupo de homens pensantes a serviço de uma mesma causa (a instituição da República
como o regime vigente no Brasil e, então, a sua solidificação), é o que vai franquear a Cunha o
espaço do mito. Neste trabalho, pretende-se entender como a mitificação de Cunha se torna
possível em razão da sua posição nas instituições (vivo e depois de morto), não apenas a partir
do seu lugar no cânone ou somente do lugar da crítica literária. Isso se dá a partir da análise da
construção de narrativas que afirmam o seu lugar de “homem de família honrado”, de grande
pensador, culminando com sua mitificação pessoal e a inscrição do seu nome entre os “grandes
da pátria”. Isso se dá não só pela qualidade de sua obra ou as circunstâncias de sua morte, mas,
também, porque seus pares o reconheceram e o defenderam tendo em vista que, entre eles, já
estava determinado o valor das tradições culturais que eles protegiam, em um contexto que eles
também ajudavam a construir – o da República, em uma narrativa sobre a qual eles detinham o
controle (das informações, da linguagem, do vocabulário) a partir das mesmas sensibilidades e
visões de mundo.
The writer Euclides da Cunha was killed due to a series of events involving Dilermando de
Assis, the lover of his wife, Ana Emília, whom he tried to kill to recover his honor, in
circumstances that were narrated in different ways, from different memories and became known
as the “Tragédia da Piedade”. From this event on, we begin to understand how his narrative
and the memory disputes that rise from them contribute to erect Cunha´s image as an ideal of
man and intellectual, a myth - and how these constructions come from historical circumstances
and the reception of his life, death and work articulated with the performance and creation of
traditions of the cultural institutions of which he was part. Being a part of this groups of
intellectuals at the service of the same cause (the institution of the Republic as the oficial
brazilian regimen and its solidification), is what will allow the space of the myth to Cunha. This
work intends to understand how Cunha's mythification become possible due to his position in
this institutions (alive and after death), not only from his place in the literary canon or only
from the place of literary criticism. This is possible with the analysis of the construction of
narratives that affirm his place as an honorable family man, a great intellectual, culminating
in his personal mythification and the inscription of his name among the greats of the country.
This is due not only to the quality of his work or the circumstances of his death, but also because
his peers recognized him and defended him considering that, among them, the value of the
cultural traditions they protected was already determined, in a context that they also helped to
build – precisely that of the Republic, in a narrative over which they held control (of
information, language, vocabulary) from the same sensibilities, the same worldviews.
L'écrivain Euclides da Cunha a été tué à cause d’une série d'événements dans lesquels
Dilermando de Assis, l'amant de sa femme, Ana Emília, a été impliqué et à qui il a demandé de
recouvrer son honneur, dans des circonstances qui ont été racontées de différentes manières,
depuis différents souvenirs et sont devenues connues comme la “Tragédia da Piedade”. Nous
partons de cet événement pour comprendre comment ses disputes narratives et mémorielles
contribuent à ériger l'image d'Euclides comme un idéal de l'homme et de l'intellectuel, un mythe
- et comment ces constructions proviennent des circonstances historiques et de la réception de
sa vie, de sa mort et de son œuvre articulée de la performance et de la création des traditions
des institutions culturelles dont il faisait partie. Appartenir à ce groupe d'hommes pensants au
service d'une même cause (l'institution de la République comme régime en vigueur au Brésil et,
ensuite, sa solidification), c'est ce qui ouvrira l'espace du mythe à Cunha. Ce travail cherche
comprendre comment la mythification de Cunha devient possible compte tenu de sa position
dans les institutions (avant et après sa mort), ne pas seulement depuis sa place dans le canon
ou seulement depuis la place de la critique littéraire. Cela passe par l'analyse de la construction
de récits qui affirment son rôle de père de famille honorable, de grand penseur, aboutissant à
sa mythification personnelle et à l'insertion de son nom parmi les grands du pays. Ceci est dû
non seulement à la qualité de son travail ou aux circonstances de sa mort, mais aussi parce
que ses pairs l'ont reconnu et l'ont défendu considérant que, parmi eux, la valeur des traditions
culturelles qu'ils protégeaient était déjà déterminée, dans un contexte qui ils ont aussi contribué
à construire – précisément celui de la République, dans un récit dont ils avaient la maîtrise (de
l'information, du langage, du vocabulaire) fondé sur les mêmes sensibilités, les mêmes visions
du monde.
Imagem 1. Fac Símile de manchete do Jornal do Brasil de 16 ago 1909. Fonte: BN ..................31
Imagem 2. Charge da morte de Euclides da Cunha. Revista O Malho, n. 363. Fonte: BN .........35
Imagem 3. Manoel Pimenta da Cunha. Fonte: Cadernos de Literatura Brasileira .....................53
Imagem 4. Eudóxia Alves Moreira. Fonte: Cadernos de Literatura Brasileira ..........................53
Imagem 5. Euclides da Cunha aos 10 anos de idade. Fonte: Cadernos de Literatura Brasi-
leira ...........................................................................................................................................53
Imagem 6. Euclides da Cunha aos 25 anos de idade. Fonte: Museu da República .....................53
Imagem 7. Euclides da Cunha em cerimônia na Escola Militar. Fonte: PONTES, 1938 ...........56
Imagem 8. Euclides da Cunha com membros da missão de reconhecimento do Alto Purus.
Fonte: ELUF, 2009 ...................................................................................................................66
Imagem 9. Corpo de Euclides da Cunha é velado na ABL. Fonte: O Malho ..............................72
Imagem 10. Ana Emília Sólon Ribeiro (de Assis) em São João Del Rey. Fonte: Euclidesite ....77
Imagem 11. Dilermando de Assis. Fonte: Euclidesite ...............................................................88
Imagem 12. Dilermando e Dinorah de Assis. Fonte: Dirce Cavalcanti para BBC Brasil ...........89
Imagem 13. Capa do processo instaurado para apurar a morte de Euclides da Cunha. Fonte:
Museu da Justiça do Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro ...........................................93
Imagem 14. Fac Símile manchete do Correio da Manhã de 18 ago de 1909. Fonte: BN ..........100
Imagem 15. Fac Símile manchete d’ O Paiz de 16 ago 1909. Fonte: BN .................................100
Imagem 16. Jornalistas cercam o corpo de Euclides da Cunha no necrotério. Fonte: Revista do
Livro da BN ............................................................................................................................101
Imagem 17. Esquema das lesões encontradas no corpo de Euclides da Cunha (frontal). Fonte:
Museu da Justiça do Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro .........................................116
Imagem 18. Esquema das lesões encontradas no corpo de Euclides da Cunha (costas). Fonte:
Museu da Justiça do Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro .........................................116
Imagem 19. Fac símile da capa da Revista Diretrizes de 06 nov 1941. Fonte: BN ...................128
Imagem 20. Ana, Sólon e Euclides Filho, no quintal da casa de São José do Rio Pardo, 1900.
Fonte: Euclidesite ...................................................................................................................133
Imagem 21. Euclides da Cunha Filho, aspirante da Marinha. Fonte: Euclidesite ....................135
Imagem 22. Fac Símile de manchete da Gazeta de Notícias de 06 jul 1916. Fonte: BN ..........137
Imagem 23. Fac Símile de manchete d´ O Paiz. Fonte: Euclidesite .........................................137
Imagem 24. Fac Símile capa da Revista Careta nº 420, de 08 jul de 1916. Fonte:
Estadão....................................................................................................................................138
Imagem 25. Fac Símile da primeira página da entrevista de Dilermando de Assis a David Nasser
na Revista O Cruzeiro, novembro de 1951. Fonte: BN ...........................................................149
Imagem 26. David Nasser observando o dorso nu de Dilermando de Assis. Revista O Cruzeiro,
novembro de 1951. Fonte: BN ................................................................................................149
Imagem 27. Dilermando de Assis e sua filha caçula, Dirce. Revista O Cruzeiro, novembro de
1951. Fonte: Biblioteca Nacional ............................................................................................149
Imagem 28. Fac-símile da carta de agradecimento de Euclides da Cunha por sua eleição com
sócio do IHGB. Fonte: Site do IHGB .....................................................................................155
Imagem 29. Fac-símile da folha de rosto do livro da Exposição Comemorativa do Centenário
de Nascimento de Euclides da Cunha, realizada pela BN em 1966. Fonte: BN .....................156
Imagem 30. Escrivaninha utilizada por Euclides para escrever Os Sertões. Por JR Diorio para
Estadão, 2016 ..........................................................................................................................174
Imagem 31. Grupo de pessoas em torno da cabana de zinco, em homenagem a Euclides no ano
de 1912. Fonte: Site São José On line ......................................................................................175
Imagem 32. Cabana de zinco de Euclides da Cunha protegida por uma redoma de vidro. Por JR
Diorio para Estadão, 2016 .......................................................................................................176
Imagem 33. Propaganda de consultório odontológico em São José do Rio Pardo, 1992. Fonte:
ABREU, 1994 .........................................................................................................................177
Imagem 34. Propaganda da Cia Paulista de Energia Elétrica no Jornal Gazeta de Rio Pardo,
1993. Fonte: ABREU, 1994 ....................................................................................................177
Imagem 35. Desfile Cívico da Semana Euclidiana. Fonte: Site São José On line ....................178
Imagem 36. Banner dos jogos da Semana Euclidiana. Fonte: Site Rádio Difusora..................179
Imagem 37. Estudantes de Cantagalo (RJ) participam da Maratona Euclidiana de 2017. Fonte:
Assessoria de Comunicação da Prefeitura de Cantagalo .........................................................180
Imagem 38. Fac Simile da Certidão de Óbito de Euclides da Cunha. Fonte: Museu da Justiça
do Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro .....................................................................181
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.......................................................................................................................14
BIBLIOGRAFIA...................................................................................................................189
INTRODUÇÃO
Propor uma pesquisa sobre Euclides da Cunha (1866-1909) trouxe duas inquietações
recorrentes. A primeira delas foi o certo desânimo que se nota nas pessoas, uma vez que, dada
a grandeza do nome, sobre ele muito já se falou. Parece, a princípio, mais do mesmo; logo, é
importante ressalvar que não é. E aqui não se escreveu uma tese sobre Os Sertões, o que trouxe
a segunda instigação: por ser o título tão ligado ao autor, ainda é preciso esclarecer ser possível
tratar sobre Euclides sem discutir, como principal assunto, sua grande obra.
No que diz respeito a esta tese, parte-se da “Tragédia da Piedade”, o nome dado pela
imprensa1 aos acontecimentos que levaram à morte de Euclides da Cunha, que faleceu em razão
de tiros dados por Dilermando de Assis (1888-1951), amante da esposa de Cunha, Ana Emília2
(1872-1951), a S´Anninha3; para compreender como as suas disputas narrativas e de memória
contribuíram para erigir a imagem de Euclides como ideal de homem e de intelectual, um mito
– e como essas construções míticas advêm das conjunturas históricas e da recepção de sua vida,
morte e obra articuladas desde a atuação de instituições culturais, inclusive das quais ele fazia
parte (como a ABL e o IHGB).
Mas, antes de se chegar a Euclides e as circunstâncias de sua morte, cumpre traçar o
caminho que trouxe a pesquisa até aqui. Minha trajetória pelos caminhos da História começa
pelos caminhos do Direito, primeiro curso superior que frequentei. O ingresso na graduação em
História na UFG aconteceu em 2012, mesmo ano de adesão ao GEHIM/UFG, onde se iniciaram
leituras que levaram ao trabalho e à vida do pintor José Ferraz de Almeida Jr. (1850-1899)4,
1
Evaristo de Moraes, o advogado de defesa de Dilermando de Assis, conta em seu livro Reminiscências de um
Rábula Criminalista, que o fato foi apelidado de “Tragédia da Estrada de Santa Cruz” (MORAES, 1922, p. 211),
mas não se encontra outro registro desse apelido na documentação levantada. Jefferson Andrade recorda ”a
imprensa brasileira da época fartou-se com a repetida chamada: a tragédia da Piedade” (ANDRADE, 2009, p. 55).
2
A grafia do nome de Ana aparece algumas vezes, com apenas uma letra “n” e muitas vezes com duas letras “n”.
A opção pela grafia com apenas uma letra “n” se dá porque essa é a forma da documentação oficial - como a
certidão de casamento de Ana e Euclides, transcrita por Roberto Ventura (2003, p. 271). Anote-se, por oportuno,
que Brandão (1990, p. 131) apresenta um fac-símile da certidão de batismo de Ana, lavrada em Jaguarão - RS, na
qual o nome está grafado com dois “n”. No decorrer desse trabalho, quando a grafia é vertida com duas letras “n”
trata-se de transcrição.
3
A grafia do apelido de Ana, S´Anninha, também não aparece de maneira uniforme nas obras consultadas para
esse trabalho – às vezes com um “n”, às vezes com dois “n”. Optou-se pela grafia apresentada em Anna de Assis:
história de um trágico amor (ANDRADE, 2009), que usa dois “n”, porque, por se tratar de apelido familiar,
pretendeu-se seguir justamente a forma como a família a chamava.
4
Nascido em Itu – SP, foi aluno da Academia Imperial de Belas Artes (AIBA) e, como bolsista do Imperador Dom
Pedro II, aluno da Escola de Belas Artes de Paris. Tem obras espalhadas por diversos museus nacionais, como o
Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro (MNBA), o Museu Paulista (MP), o Museu de Artes de São
Paulo (MASP) e a Pinacoteca do Estado de São Paulo (PESP), a grande guardiã de sua produção. Em um período
15
que morreu pela faca do marido de sua amante, que buscava lavar a honra ferida pela traição.
Desses estudos e buscando o diálogo entre minhas formações é que surgiu a dissertação de
mestrado A cultura da violência entre traços e tramas: o caso do pintor Almeida Jr. (1850-
1899), defendida no PPGH/UFG em 20175.
Nas leituras para o mestrado foi possível encontrar diversas menções à “Tragédia da
Piedade”. Euclides e Almeida Jr. morreram em lados opostos – o escritor como o marido traído
cuja vida foi ceifada pela bala do amante que se defendia do ataque, e o pintor como o amante
que não revidou a tempo e cujo sangue lavou a honra ferida de seu agressor. Ambos são nomes
importantes em seus campos e, talvez mais que isso, nomes importantes na construção da
identidade brasileira6. Não há aqui qualquer pretensão de comparar o lugar de Euclides da
Cunha e Almeida Jr. nesta empreita, são circunstâncias e papeis absolutamente diferentes.
Almeida Jr. tem, em resumo, sua produção resgatada pelos modernistas da Semana de 22, que
veem nele o grande pintor nacional, ou, como diz Monteiro Lobato (CHIARELLI, 1995),
aquele que pinta não um homem, mas o homem – o homem da terra. Euclides é base dessa
construção, ao lado de nomes como Oliveira Viana, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de
Holanda.
Ainda que aqui se debruce em circunstâncias mais pessoais da vida de Euclides, é
sempre bom lembrar o que Walnice Galvão (1981) foi cuidadosa em destacar, que esse lado
mais explícito da vida do escritor não deve fazer sombra ao seu papel de homem público. De
fato, aos seus papeis de homem público, que foram muitos: como escritor/intelectual (e a partir
daí como jornalista e atuante defensor da implantação da República) e também como
engenheiro, profissão instrumental no desenvolvimento de um país que, no final do século XIX,
relativamente curto de trabalho, deixou quadros de temática variada: retratos, paisagens, natureza morta, pinturas
de gênero, históricas, religiosas e alegóricas (DAHER, 2017).
5
Seu objetivo era investigar os sintomas de violência no interior do Brasil oitocentista por meio da vida e da obra
de Almeida Jr., especialmente o crime de honra que o matou. Para tal, constatadas tanto sua produção quanto as
(re) interpretações contemporâneas de seu universo pictórico, bem como as circunstâncias de sua morte narradas
no processo crime que apurou o fato. Considerava-se a hipótese de violência como traço cultural do séc. XIX a
partir da chave de leitura apontada por Jorge Coli (2005) e suas premissas sobre o pensamento do artista (2010)
na inter-relação entre a obra e a vida do pintor. Nesse trabalho foram examinados, igualmente, a retórica e
argumentação constantes do processo-crime, mecanismos que tornam o texto jurídico uma prática social
discursiva, considerando a escrita jurídica também em sua experiência cultural, lançando novas luzes sobre a
análise dessas narrativas, especialmente a partir das reflexões advindas do culturalismo jurídico e seus
desdobramentos teóricos. Os indícios de violência na obra de Almeida Jr. foram associados à violência em torno
de seu cotidiano e às sensibilidades jurídico-culturais que motivaram o artista e suas circunstâncias (DAHER,
2017).
6
A crítica se preocupa em ressaltar a discussão sobre a nacionalidade na obra de Cunha, conforme se vê com
Gilberto Freyre (1944), quando destaca que Euclides sempre se interessou com mais profundidade pela expressão
social e pela significação brasileira ao se debruçar sobre os documentos que viria a estudar, interpretar e esclarecer;
ou com Silvio Rabelo (1948, p. 10), que apontou que a preocupação nacionalista de Euclides era “uma antecipação
que, para o Brasil dos começos do século XX foi mais que uma simples preocupação literária”.
16
7
Segundo o e-dicionário de termos literários de Carlos Ceia, cânone deriva da palavra grega kanon (espécie de
vara com funções de instrumento de medida; cujo significado evoluiu para o de padrão ou modelo a aplicar como
norma). O termo é inicialmente utilizado no séc. IV para nominar uma lista de Livros Sagrados (homologados pela
igreja como transmissores da palavra de Deus), tornando o cânone bíblico inalterável, distinguindo-se neste
aspecto do outro referente do cânone teológico, o conjunto de Santos Padres a que a Igreja Católica periodicamente
acrescenta novos indivíduos através de um processo chamado canonização (e aqui o que importa é a ideia de que
“canônica” é uma seleção materializada em lista de textos e/ou indivíduos adotados como lei por uma comunidade
e que lhe permitem a produção e reprodução de valores, (normalmente ditos universais) e a imposição de critérios
de medida que lhe possibilitem, num movimento de inclusão/exclusão, distinguir o legítimo do marginal, do
heterodoxo, do herético ou do proibido. Neste sentido, torna-se claro que um cânone veicula o discurso normativo
e dominante num determinado contexto, teológico ou outro, e é isso que subjaze a expressões como "o cânone
aristotélico", "cânones da crítica", etc. Acompanhando o processo de secularização da cultura, a partir do
Renascimento, o conceito e o termo vieram progressivamente a ser aplicados ao domínio da literatura, muitas
vezes sob a forma de expressões como "os clássicos" ou "as obras-primas". É possível fazer remontar o
estabelecimento do cânone literário enquanto instituição social à escolarização da literatura moderna, que ocorre
durante o século XIX, primeiro à margem das universidades, onde se privilegiava o estudo dos clássicos da
Antiguidade canonizados por séculos de imitação e comentário, depois, já no início do século XX, na própria
academia, onde se concretizava através de listas de textos a serem lidos e interpretados pelos alunos. Com a
generalização da escolaridade obrigatória nas sociedades ocidentais, a escola passou a funcionar como o fator
determinante de fixação e transmissão de cânones. Mais recentemente, porém, o conceito de cânone adquiriu
visibilidade crítica no seio dos estudos literários organizados como disciplina e acedeu, de forma espetacular, à
condição de problema central, não só do campo de conhecimentos, como também da estrutura institucional que o
suporta. Tal fenômeno, que fez do cânone simultaneamente um termo técnico e uma fonte de disputa, tem origens
diversas, se bem que inter-relacionadas, entre as quais: a desvalorização da grande literatura como componente do
capital cultural das sociedades pós-modernas (obrigada a competir com outros saberes e produtos culturais), a nova
reivindicação de representatividade cultural por parte de estratos sociais discriminados (mulheres, minorias
étnicas) e a sua repercussão no meio académico, a ascensão de modelos funcionalistas e relativistas do
conhecimento na filosofia e outras áreas do saber. Verbete de João Ferreira Duarte, 2009, disponível em
https://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/canone/. Acesso em 20 jul 2021.
8
Observando a intelligentsia brasileira, Martins faz uma ressalva, a de que esses intelectuais professam
competências específicas e, por terem uma socialização comum estabelecem mais facilmente laços de afinidade
entre si, entre os membros desta intelligentsia, o que os une, normalmente superando divergências e rivalidades
existentes. Segundo ele, “normalmente, esses laços comuns, esse sentimento de pertencer a um certo “nós”
(wefeeling), se traduzem em símbolos próprios, numa linguagem e em hábitos mais ou menos compartilhados, por
intermédio dos quais os membros da intelligentsia se reconhecem e são reconhecidos enquanto tais. ” (MARTINS,
1987).
9
O termo, de origem latina, foi famosamente empregado para determinar um grupo distinto de pessoas na Rússia
da segunda metade do séc. XIX e que não se encaixavam nas distinções sociais então existentes. Desde então, por
extensão, é geralmente utilizado para determinar um grupo de intelectuais de um país (KIMBALL, s/d), um grupo
bem-educado da sociedade, que defende os interesses da pátria e do povo a partir da razão e do conhecimento
(VIEIRA, 2008).
17
literário, o começo da análise científica aplicada aos aspectos mais importantes da sociedade
brasileira”. Essa recepção da obra por nomes de peso para a compreensão (e construção) do
lugar do intelectual no Brasil é arrematada pela afirmação de Regina Abreu (1998) quando
refletiu que a obra de Euclides se tornou um símbolo nacional, por si só um lugar de memória,
o mesmo efeito de um bem tombado pelo patrimônio histórico – um monumento.
Acerca da formação do cânone nacional10, isso se deu sob a luz do romantismo, a partir
do desejo de afirmação nacional e de independência cultural da metrópole apesar do monarca
que os unia (CÂNDIDO, 2000). É importante fazer a ressalva de que a formação do cânone não
está necessariamente ligada aos estilos literários, está ligada à política e às escolhas feitas por
um grupo considerado apto para tal (como é o caso dos já citados Antônio Cândido ou Florestan
Fernandes, por exemplo), apto para determinar quais as leituras vão construir as percepções de
identidade, memória e formação do Brasil. Vem justamente dessas dinâmicas o esforço de
muitos autores e pensadores para ampliar a leitura para além das obras consideradas clássicas.
Harold Bloom (1994), autor da mais tradicional obra acerva da formação do cânone chama isso
de “escola do ressentimento” – ele condena o esforço de leitura e apreciação do mundo a partir
de aspectos sociais e políticos (pautas como o feminismo, o colonialismo, por exemplo) em
detrimento da essência da literatura.
A narrativa de Euclides serve a outro regime, mas busca as mesmas necessidades: o
desejo de afirmação nacional e a independência da monarquia que os antecedia. De modo que
“a escolha do elenco de autores e obras termina por se definir pela maior ou menor capacidade
em funcionar como instrumento de representação do país” (BARBOSA, 1996, p. 33), e quando
Cunha publicou Os Sertões, os intelectuais, escritores, atores da República encontravam-se
prontos para a crítica da sua formação e atuação – em Canudos11 e de modo geral (GALVÃO,
10
Quanto ao cânone nacional em relação ao internacional, Barbosa faz a observação: “se, no caso das literaturas
européias e norte-americana a fixação de cânones literários resultou do aparecimento de grandes ensaios de
interpretação da herança cultural do Ocidente, quase sempre movidos por um forte apelo classicizante, dando como
resultado uma rígida hierarquização de gêneros, raças e modelos culturais, que somente será abalada pelos
movimentos multiculturais de anos recentes, no caso brasileiro a formação do cânone literário seguiu, de bem
perto, o próprio desenvolvimento de nossas relações de dependência e de autonomia com vistas às fontes
metropolitanas” (BARBOSA, 2001, p. 17).
11
A Guerra de Canudos, em resumo, foi um confronto entre o Exército e os participantes de um movimento popular
de fundo religioso liderado por Antônio Conselheiro, ocorrido na comunidade de Canudos, no interior da Bahia,
em 1897. Conselheiro chegou ao sertão baiano no final da década de 1870, mas não despertou maior preocupação
no Império, que entendia ser aquele um problema local. Mas a nascente República via a atuação messiânica do
Conselheiro de modo diferente, como uma ameaça à ordem. (Conforme informações constantes de
https://tinyurl.com/2p82mzk9. Acesso em 12 out 2021).
18
2009b), que é o que nessa obra se via. Era o primeiro passo para que ela se inserisse na lista das
obras que fazem a nação, a partir do trabalho de nomes como Sílvio Romero e José Veríssimo 12.
Ao longo do tempo a crítica se repetiu: Euclides era brilhante na forma e no estilo, rico
na linguagem, e abordava tema histórico de relevância considerando as consequências dos atos
do governo brasileiro nos habitantes dos sertões – que este mesmo governo parecia sempre
ignorar (LIMA, 1997, p. 21). Mas a permanência de Euclides nesse Olimpo não se deu sem
julgamento ao longo dos anos, é bom ressaltar. Cândido (2000) nominou o texto de Cunha como
de um barroquismo exagerado e de mau gosto. Mário de Andrade discordava da visão da obra
que Cunha ganhou pelo público e grande parte da crítica ao atestar que “Euclides da Cunha
transformou em brilho de frase sonora e imagens chiques o que é cegueira insuportável deste
solão; transformou em heroísmo o que é miséria pura” (LIMA, 1997, p. 22). Sevcenko, por sua
vez, via a questão por um ângulo diferente do de Mário de Andrade, ele refletiu sobre a posição
de Euclides diante de diferentes correntes de pensamento que faziam parte de sua vida e
formação: o idealismo romântico e o realismo científico: “sem ligar-se em particular a nenhuma
dessas correntes (romantismo, realismo, parnasianismo), Euclides entreteceu-as todas,
imprimindo-lhes a unidade de uma trama tensa a serviço de suas convicções filosóficas e
científicas. ” (SEVCENKO, 1983, p. 159).
Também como sua obra vai além de Os Sertões13, a sua contribuição para o pensamento
brasileiro ultrapassa este marco14: Cunha em muito favoreceu a inserção da Amazônia na
questão da formação nacional, e, mais que isso, inaugurou um novo modo de perceber a história
da região, ao observar a vivência da população amazonense à margem a história (PINTO, 2012).
Neste ponto, seja no Alto Purus, seja em Canudos, o que é importante destacar é como Euclides
enxergava o fato de que a discussão da identidade e da nacionalidade no Brasil deveria passar
pelas figuras tanto do sertanejo quanto do caboclo15 (FERREIRA, 2019).
12
Euclides vem permanecendo firmemente no cânone literário nacional também a partir do trabalho e das
conclusões de críticos mais contemporâneos (e ainda tradicionais) como o próprio Antônio Cândido e Alfredo
Bosi, por exemplo, que entendem a crítica (e, consequentemente, a ascensão do autor ao cânone nacional)
observada a partir de valores estéticos.
13
Sobre este livro, uma das mais recentes e completas análises de sua fortuna crítica está em BARBOSA FILHO,
Hildebrando. Os sertões: Historiografia e esteticidade. In: FERNANDES, Rinaldo de (org.). O clarim e a oração,
cem anos de Os sertões. São Paulo: Geração Editorial, 2002.
14
Note-se que Berthold Zilly, trabalhando Os Sertões, entende que a grande força e maior importância da obra
está no fato de que Cunha constrói sua narrativa para interligar história natural e história social: “Euclides da
Cunha narra uma espécie de gênesis, a origem do hinterland e da sua população, mais ainda, as origens da terra e
nação brasileiras. Estuda os traços distintivos, as deficiências e potenciais de desenvolvimento do sertão e de todo
o Brasil, bem como a posição do país num mundo cada vez mais homogeneizado por aquilo que mais tarde se
chamaria de globalização, e ao mesmo tempo profundamente cindido pelo darwinismo social, defendido e ao
mesmo tempo criticado pelo próprio autor” (ZILLY, s/d).
15
Acerca das diferenças entre os termos “sertanejo” e “caboclo”, Silva é cristalino ao trazê-la, enquanto pondera
sobre a definição de outro termo de múltiplas explicações, o “caipira”: “Estudos no campo acadêmico, como o
19
Euclides e seus pares não se reconheciam apenas nas agremiações de intelectuais, eles
se agrupavam no mundo da política republicana16 e do trabalho, eles atuavam juntos, como
engenheiros, médicos, professores, membros das forças armadas, advogados, jornalistas,
funcionários públicos17, muitas vezes perpetuando nas profissões escolhidas tradições de
família. Essas pessoas, geralmente educadas formalmente nos mesmos lugares18, se agregavam
para servir ao Estado– no caso, a República, essencialmente como mediadores culturais, e a sua
produção atuava, como já foi dito, na formação da identidade dessa República, no ideal do que
explica Castoriadis, quando fala que nação e nacionalismo são mais que conceitos elaborados
dentro de parâmetros de racionalidade, mas são também “coisas inventadas” no âmbito da
imaginação social, a partir de uma extensa rede simbólica que lhes confere vigência diante de
indagações como “quem somos nós? ” e “quem somos nós diante do mundo? ”. É a construção
dessa resposta, a partir desses ideais que também são edificados que se define, se oferece ao
clássico Os parceiros do Rio Bonito, de Antônio Candido, consagraram o termo caipira não como sendo o caboclo,
que antes de tudo exprime a idéia de mistura de raças, ou sertanejo, que graças a Euclides da Cunha, de Os Sertões,
passou a ser identificado com o homem do interior nordestino. Caipira, no entender de Candido, é um tipo de vida,
um modo de cultura proveniente de grupos sociais herdeiros da expansão bandeirante dos séculos XVII e XVIII,
a partir da província de São Paulo. ” (SILVA, 2008, p. 23).
16
Embora Euclides, ao longo dos anos, tenha ficado a cada dia mais desapontado com os rumos do Brasil
República, “estou nessa reserva desde os vinte anos, quadra que me assaltou o pessimismo incurável com que vou
atravessando esta existência no pior dos piores países possíveis e imagináveis. ” (CUNHA, 1909 apud GALOTTI
e GALVÃO, 1997, p. 423).
17
Miceli (2001) aponta o serviço público como um meio de perpetuação das elites regionais, uma ferramenta para
a manutenção da influência e do status familiar.
18
Seguir a profissão do pai era uma tradição das elites do início do século XX e mais uma forma de perpetuar seu
poder (MICELI, 2001).
20
19
Na esteira das argumentações do meu mestrado.
20
Luiza Eluf (2002, p. 111) explica que embora todo crime seja passional de alguma forma, pois resulta da paixão
no seu sentido mais amplo, juridicamente são chamados de passionais os crimes cometidos em razão de
relacionamento sexual ou amoroso. Portanto, o homicida era passional quando agia imbuído de uma paixão social,
declarando defender os princípios da família, a honra, o bom nome - dele, o dono da mulher e dela, a guardiã do
nome da família, cometendo um crime tomado por sentimentos intensos - ira, ciúme, inveja.
21
21
Veja-se, por exemplo, o artigo 14 do Regulamento Disciplinar do Exército (Dec. 4.346/2002): “Transgressão
disciplinar é toda ação praticada pelo militar contrária aos preceitos estatuídos no ordenamento jurídico pátrio
ofensiva à ética, aos deveres e às obrigações militares, mesmo na sua manifestação elementar e simples, ou, ainda,
que afete a honra pessoal, o pundonor militar e o decoro da classe. ”. Veja-se o art. 31 do mesmo diploma legal,
“O serviço ativo das Forças Armadas será interrompido: [...] c) pela expulsão; [...] § 3º A expulsão, ocorrerá: [...]
b) pela prática de ato contra a moral pública, pundonor militar ou falta grave que, na forma da Lei ou de
Regulamentos Militares, caracterize seu autor como indigno de pertencer às Forças Armada [...]”. (Disponível em
https://tinyurl.com/ycks5zu3. Acesso em 24 jan 2022).
22
Nascido na Bahia em 17 de junho de 1871, João Moniz Barreto de Aragão era filho do Barão e da Baronesa do
Mataripe. Formou-se em Medicina pela Faculdade de Medicina da Bahia, em 1895. Em 1897 chegou a Canudos
como médico voluntário do Exército. Nunca mais deixou a corporação, onde construiu uma sólida carreira (Com
informações da Academia Nacional de Medicina. (Disponível em https://tinyurl.com/2p8rzvdm. Acesso em 24 jan
2022).
22
23
Com 17 capítulos, escrita por Glória Perez com colaboração de Margareth Martins e dirigida por Wolf Maya e
Denise Saraceni, veiculada pela Rede Globo de Televisão entre 27 de maio e 22 de junho de 1990. Ficha técnica
informada na página Memória Globo (Disponível em https://tinyurl.com/2p927bxf. Acesso em jan 2019).
23
conjunto, não apenas a partir do trabalho historiográfico. Importante ressaltar que reconhecer
que as narrativas memorialísticas podem ser fontes relevantes no campo da historiografia não
significa deixar de aquiescer aos problemas existentes na utilização dessa documentação. É
como argumenta Sbrana, ao apontar que se apoiar, por exemplo, em biografias na pesquisa
historiográfica é importante para romper o “excesso de coerência do discurso histórico,
permitindo indagar não somente o passado, mas, primordialmente, todas as outras
possibilidades perdidas” (SBRANA, 2016, p. 330).
Neste sentido, alinha-se este trabalho à visão de que o extenso debate sobre a narrativa
histórica serve também para indicar uma mudança nas discussões sobre a natureza do
conhecimento histórico, considerando-se que “o problema da narrativa ultrapassa o plano da
produção textual e remete para os fundamentos do pensamento histórico como experimentado
na vida humana prática” (MARCELINO, 2012). É a partir dessa premissa que esse trabalho se
volta para as narrativas da “Tragédia da Piedade” justamente nesse esforço de ver Euclides (e
os demais envolvidos) no mundo em que viveu, no mundo dos textos que foram produzidos por
eles e sobre eles, e as visões que eles – e os outros leitores, tiveram daquele caso, e daquela
época, compreendendo, assim, as bases da mitificação de Cunha que vemos já cimentada (mas
ainda não terminada) nos dias de hoje. O historiador trafega entre passado e futuro, escrevendo
no presente interrogando o passado. Ele é um narrador, e o texto é meio do qual ele se utiliza
para dar a ver um passado mais próximo possível do real.
Essa narrativa, no campo historiográfico, se mistura com a noção de memória que, na
visão de Nora (1993, p. 9), “é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente; a
história, uma representação do passado”, elemento pertencente aos que vivem e, assim, sujeito
às armadilhas e questões dos seus próprios esquecimentos e das suas lembranças24. No caso da
“Tragédia da Piedade” há o esforço de terceiros pela preservação da memória (deles) de
Euclides. A recusa de Ana em compartilhar as suas memórias. O esforço de Dilermando em
lembrar que memórias são diversas e as dele diferem das atribuídas a Euclides. Nas famílias
deles também há uma diversidade de recordações e narrativas, memórias conflituosas25 – e
certezas, trata-se de uma luta de construção da verdade do papel de cada um deles (e, ao fim,
24
Dois componentes são importantes para recuperação do passado: a memória como depositária da ação humana
no tempo e a lembrança como rememoradora dessas ações. É por meio da memória e da lembrança que resulta o
tempo refletido, a história. A memória é individual e coletiva, sendo objeto de manipulação política e ideológica
é integrante do território do historiador. A memória é feita de reconstruções de lugares de memória, de recriações
de algo que não existe mais (NORA, 1993). E até o que não existe pode ser muito pessoal, é comum que a memória
seja vista como algo que pertence só a si mesmo – o que pode criar conflitos como os que são vistos quando se
busca as memórias da família de Euclides, Ana e Dilermando (especialmente no capítulo 2). É como resume
Ricoeur (2007, p. 107), “ao lembrar de algo, alguém se lembra de si”.
25
Característica esta já apontada Pollack (1989) ao tratar da memória coletiva.
24
também uma luta pela preservação da memória de um homem, como se vê com Dirce 26 em
relação a Dilermando).
E a ressalva dos conflitos dessas memórias aqui se torna importante porque, ao focarmos
em indivíduos (a partir dos documentos, especialmente as biografias e livros sobre a “Tragédia
da Piedade”) fica fácil perder de vista de que se trata, também, de uma memória coletiva, de
um país impressionado pela sua maior tragédia, e que envolveu escritores, jornalistas, militares,
uma sociedade lutando pelos seus ideais de República e honra. A partir disso, destaque-se o
pensamento de Halbwachs (1990), da seletividade da memória – e do processo de negociação
que disso advém: a negociação entre memória coletiva e memória individual na busca de uma
conciliação.
A construção da memória só se faz com a recepção27 do fato de maneira narrativa. É a
recepção que constrói o sentido atribuído aos fatos. O fenômeno da recepção foi tratado pela
literatura28 por meio dos estudos culturais. Por meio de tais estudos, considerou-se que há um
peso na maneira como os textos são recebidos em seu conteúdo e forma.Isso se traduz em crítica
literária, mas, no nosso caso em específico, tratando-se da recepção de um acontecimento e não
de uma obra literária, a tradução desse envolvimento e dessa reação do leitor se dá em notícias
de jornal, por exemplo, ou em biografias, ou em livros que tratam da tragédia, em capítulo de
biografia, em testemunhas judiciais que não deveriam fazer juízo de valor, mas fazem. Enfim,
analisar a recepção29 é entender como essa narrativa se dá e como ela continua, porque até hoje
as histórias e impressões sobre a Tragédia da Piedade se repetem.
26
Em entrevista, ela afirmou, “'o que eu mais quero, todo o meu empenho, é tirar essa palavra (assassino) de sua
biografia, que é tão pesada, tão feia” (CARNEIRO, 2019).
27
A estética da recepção, por sua vez, “pressupõe um desdobramento essencial entre a recepção propriamente dita
e uma análise do chamado efeito estético” (RAMOS, 2006, p. 4), famosamente tem como marco inicial "O que é
e com que fim se estuda História da Literatura?”, a conferência de Hans Robert Jauss na Universidade de Constança
em 1967, e chega ao Brasil no final da década de 1970, pelas mãos de Luiz Costa Lima, que organiza uma coletânea
de ensaios da Escola de Konstanz com autores como Stierl, Iser e o próprio Jauss, entre outros. Contudo, a
sistematização do pensamento crítico no âmbito da estética é anterior, data da segunda metade do séc. XIX,
especialmente por literatos e intelectuais à altura de estabelecer o que seria o padrão do gosto (ARGAN, 1988) e
também de discutir o objeto da arte em si (seja ela literária, cinematográfica, plástica). Aliás, é justamente aí que
repousa a grande importância da crítica (e da sua observância no momento da pesquisa), essa discussão liderada
pela crítica cria diálogo com o próprio objeto artístico e enriquece a sua existência e a sua influência.
28
No que tange à recepção no âmbito da literatura, Jauss explica, segundo Zilbermann, que “entre a obra e o leitor,
estabelece-se uma relação dialógica. Essa relação, no que lhe toca, não é fixa, já que, de um lado, as leituras
diferem a cada época, de outro, o leitor interage com a obra a partir de suas experiências anteriores, isto é, ele
carrega consigo uma bagagem cultural de que não pode abrir mão e que interfere na recepção de uma criação
literária particular”. (ZILBERMANN, 2008, p. 92). Ela se volta para o papel do leitor, a forma como lê e entende
a obra, não somente como espectador, mas como parte dela.
29
Considerada a ideia que “a perspectiva recepcional visa a identificar claramente as condições históricas que
moldaram a atitude do receptor num dado período da história” (ROCHA, 1996, p. 20), cumpre lembrar que a
historicidade de uma obra não se esgota em análises estruturais, porque a obra só exerce completamente seu papel
histórico no contato com o público, interessando aos historiadores a leitura desses textos nos mais diversos
contextos históricos (RAMOS, 2006).
25
30
Existem sítios que se dispõem a sistematizar essa produção, tais como o https://euclidesite.com.br/ e o
http://www.euclidesdacunha.org.br/.
31
O euclidianista Leopoldo Bernucci argumenta que a vida de Euclides está longe de ter sido sistematizada, sendo
necessários ajustes de datas, nomes, versões, etc. (VENTURA, 2003).
32
Araripe Júnior, ao escrever sobre Euclides, destaca: “há oito anos, no seu esplêndido ensaio biobibliográfico,
Venâncio Filho arrolava mais de duzentos artigos e estudos sobre o autor d´Os Sertões. A lista era lacunosa ainda,
a despeito da severa vigilância daquele ensaísta. De lá para cá muita água tem passado sob a ponte! ” (PONTES,
1938, p. 296).
26
33
Euclides chama Os Sertões de livro vingador justamente porque aponta os erros do governo. Em carta a
Francisco Escobar, discorreu, “alenta-me a antiga convicção de que o futuro o lerá. Nem outra coisa quero. Serei
um vingador e terei desempenhado um grande papel na vida – o de advogado dos pobres sertanejos assassinados
por uma sociedade pulha, covarde e sanguinária” (GALVÃO E GALOTTI, 1997, p. 133).
27
progredindo, se o passado está dado, o seu conhecimento sempre pode ser transformado,
aperfeiçoado.
Note-se, por oportuno e como já foi dito, não se tratar de estabelecer hierarquias entre
narrativas, mas sim entender como os discursos de memória, os biográficos e os oficiais
trabalham para o mesmo fim: a preservação do nome de Euclides diante das circunstâncias da
sua morte e dos acontecimentos dela decorrentes, e o fato de que essas narrativas identificam-
se com projetos políticos, com um projeto político: o da República, que a vida de Euclides acaba
por representar, por ter, em sua formação e vida profissional, ter estado ligado a ela o tempo
todo, mesmo que em razão de críticas (a maior delas a que consta de Os Sertões).
A República, e seus construtores e pensadores (assim como foi Euclides), têm
encontrado desafios tão tumultuados quanto aqueles de 130 anos atrás. É como argumenta
Vesentini (1997), a produção humana deve ser pensada dentro de um processo histórico, como
uma teia que abarca interpretações que são conflitantes e buscam se sobrepor e, na verdade, não
podem explicar aquela cultura em sua totalidade, “qualquer cultura, por mais complexa e
elaborada que seja, pode expressar e vivenciar somente um leque estreito de opções oferecidas
à espécie humana como um todo [...]. ” (VESENTINI, 1997, p.15).
Quanto mais se mergulha na vida de Euclides, mais se vê a importância do seu
republicanismo na formação de seu pensamento e, por consequência, na maneira como
conduziu sua vida. Essa República nascida em um Império mergulhado em conflitos locais e
que nunca conseguiu, efetivamente, estar presente na sociedade brasileira em toda sua
amplitude. O discurso republicano preenche essas lacunas e embora o novo regime seja
instaurado com um golpe militar sem maior participação popular, não é prudente dizer que a
nascente República é apenas uma filha do exército, ela surge também porque o regime imperial
tinha problemas de estrutura, de formação, que nada tinham a ver com o novo regime, “[...]
embora longe de revolução popular, a República tampouco foi simples quartelada. Resultou de
mobilização social e de crises sobrepostas a que as instituições monárquicas foram incapazes
de responder. ” (ALONSO, 2019, p. 171).
A fim de tecer essa trama e apresentar suas narrativas - “historiadores narram tramas,
que são tantas, quantos forem os itinerários traçados por eles” (VEYNE, 1998, p. 45), buscou-
se um grande escopo documental. Logo, a partir dessas ideias de narrativa, essa pesquisa parte
de biografias sobre Euclides da Cunha, especialmente34 A vida dramática de Euclides da
34
São muitas as biografias contemplando a figura do escritor. Em um rol exemplificativo, temos: A vida dramática
de Euclides da Cunha (1938), de Elói Pontes (é obra que Dilermando pretende contra-arrazoar quando escreve A
tragédia da Piedade); Euclides da Cunha e a Amazônia (1949), Francisco Venâncio Filho; Estilo e Personalidade
28
Cunha, de Elói Pontes (1938), Euclides da Cunha, esboço biográfico, de Roberto Ventura
(2003), além dos livros escritos pelo próprio Dilermando de Assis, Um Conselho de Guerra. a
morte do Aspirante da Marinha Euclydes da Cunha Filho (1916) e Tragédia da Piedade (1952).
Utiliza-se, de igual forma, de obras de cunho memorialístico que tratam do triângulo
amoroso. Águas de Amargura, o drama de Euclides da Cunha e Anna (1990), depoimento de
Joel Bicalho Tostes35 a Adelino Brandão e Anna de Assis, história de um trágico amor: Euclides
da Cunha, Anna e Dilermando de Assis (2ª ed. 2009), um depoimento de Judith de Assis, filha
de Ana e Dilermando a Jefferson de Andrade; além de O Pai (1998), de Dirce de Assis, filha
de Dilermando em seu segundo casamento.
Para apoiar a estrutura narrativa que se tece a partir desses livros, também se apoia nas
obras que tratam do episódio da Piedade em si, A tragédia da Piedade, o grande drama da
República, de Luiza Nagib Eluf (2009); Matar para não morrer: a morte de Euclides da Cunha
e a noite sem fim de Dilermando de Assis, de Mary Del Priore (2009), que são comentadoras,
não diretamente envolvidas no embróglio e partem de um ponto de vista mais acadêmico.
Da extensa produção sobre Euclides, esses são livros marco para a narrativa que aqui se
discute: Elói Pontes por ter sido a primeira biografia escrita após a morte de Euclides – e
também por ser o livro que fez com que Dilermando acabasse publicando a sua própria versão
do fato. E a obra de Roberto Ventura porque, ainda que inacabada, relaciona as inúmeras
versões e alegações sobre a vida e a morte de Euclides com um levantamento documental
importante. E os livros escritos por Dilermando por se tratar de pessoa diretamente envolvida
nos acontecimentos que aqui se discute.
O que se busca em uma biografia? O que um historiador pretende ao explorar, mais do
que sólidas e visíveis construções de uma vida, os seus desvãos? Se a vida é feita dos grandes
feitos e das pequenas coisas, e o que é importante para a história, o que fica? Cumpre lembrar
que não existe uma única história, haja vista que não existe uma única verdade. Existem fatos,
existem documentos, existem lembranças, tintas e pinceladas, existem laudos, conflitos, morte,
absolvição, redenção e a junção de todos esses fatos torna possível uma visão de uma vida.
Portanto, ao que dar importância, e por que dar importância? A divisão tradicional dos gêneros
de Euclides da Cunha (1963), de Modesto Dias de Abreu; Introdução ao pensamento de Euclides da Cunha (1964),
de Clóvis Moura.; Euclides da Cunha (2ª ed.,1966), de Sylvio Rabelo; Euclides da Cunha e o paraíso perdido
(1968), de Leandro Tocantins; Euclides da Cunha: Engenheiro de Obras Públicas no Estado de São Paulo (1896-
1904) (1970), de Antônio da Gama Rodrigues; Bibliografia de Euclides da Cunha (1971), de Irene Monteiro Reis;
Euclides da Cunha: História (1984), organizado por Walnice Nogueira Galvão; Euclides Cunha: uma vida
gloriosa, de Moisés Gicovate; Cadernos de Literatura Brasileira: Euclides da Cunha (2002), Madalena Leia
Barbosa Correia; De olho em Euclides da Cunha: Escritor por acidente: Repórter do Sertão (2009), de Lúcia de
Garcia.
35
O Sr. Tostes é viúvo de uma das netas de Euclides e Ana, Eliethe, que é filha de Manoel Afonso.
29
literários abrange três itens: o gênero épico/narrativo, o gênero lírico (poesia) e o gênero
dramático (teatro).
A biografia seria uma espécie do gênero narrativo, assim como a tragédia é espécie do
gênero dramático. Trata-se a narração de um tipo. Romance, conto, novela, fábula, parábola,
apólogo, mito, lenda, caso, fofoca, notícia, ata, biografia são gêneros (TRAVAGLIA, 2007).
Mas a biografia simplesmente como gênero literário não é o principal foco, mais importante é
o papel da biografia como documento histórico. A apropriação das biografias como documentos
históricos não foi feita sem críticas, mesmo que atualmente não haja qualquer dúvida quanto à
possibilidade de se enfrentar uma delas como um problema historiográfico. Ao biografar São
Luís, Le Goff nos lembra ser aquela uma obra que “trata de um homem e não fala de seu tempo
a não ser quando isso permita esclarecê-lo”, seguindo assertivamente a dizer ser “falsa e
pretensa oposição entre o indivíduo e a sociedade”, e que há que se observar como o biografado
“construiu a si próprio e a sua época, tanto quanto foi construído por ela” (LE GOFF, 2019, p.
23).
Tratando especificamente de Euclides, Roberto Ventura discorre que toda biografia é
“uma versão de fatos criada a partir de depoimentos e documentos”, mas ressalta que “o
biógrafo precisa ter a coragem e a ousadia de dar a sua versão dos fatos” (VENTURA, 2003, p.
13). No que tange a Euclides da Cunha, alguns aspectos dificultam a empreita, pois ali jaz,
como já se destacou, apesar do volume da produção em torno do seu nome, “uma vida repleta
de lacunas” (CARVALHO, 2003, p. 11); e, na ânsia da narrativa da sua vida novelesca ou da
sua obra festejada, é preciso o cuidado de, ao buscar tantas biografias para construir esse
triângulo amoroso, manter em mente a ressalva de “respeitar [...] falhas, as lacunas que a
documentação deixa, não querer reconstituir o que os silêncios [...] escondem, também as
descontinuidades e as disjunções, que rompem a trama e a unidade aparente de uma vida” (LE
GOFF, 2019, p. 21).
Walnice Galvão, em texto que se propõe a tratar de Os Sertões, anota um desvio para a
vida de Euclides. Segundo ela, as décadas de reflexões sobre a obra arrebanharam grupos
apaixonados e odiosos, e esses sentimentos facilmente se transmitem ao próprio autor, e esses
críticos cheios de sentimento muitas vezes se espantam com as ocorrências da vida do autor.
Mas a pesquisadora também já se adianta, “não é que o que ocorreu com Euclides da Cunha
tenha sido tão extraordinário. Nos quadros habituais da família patriarcal brasileira, os feitos
são perfeitamente compreensíveis”, mas ela reconhece, e externa, “talvez se tornem chocantes
quando se constata como, num autor de postura tão científica, a vida seja ao contrário tão pouco
científica, sua ação pessoal seja tão irracional” (GALVÃO, 1981).
30
36
Segundo o Pretório Excelso, “O direito de informação, constitucionalmente garantido, contém a liberdade de
informar, de se informar e de ser informado. O primeiro refere-se à formação da opinião pública, considerado cada
qual dos cidadãos que pode receber livremente dados sobre assuntos de interesse da coletividade e sobre as pessoas
cujas ações, público-estatais ou público-sociais, interferem em sua esfera do acervo do direito de saber, de aprender
sobre temas relacionados a suas legítimas cogitações [...] O recolhimento de obras é censura judicial, a substituir
a administrativa. O risco é próprio do viver. Erros corrigem-se segundo o direito, não se coartando liberdades
conquistadas. A reparação de danos e o direito de resposta devem ser exercidos nos termos da lei. [...] Para a
coexistência das normas constitucionais dos incs. IV, IX e X do art. 5º, há de se acolher o balanceamento de
direitos, conjugando-se o direito às liberdades com a inviolabilidade da intimidade, da privacidade, da honra e da
imagem da pessoa biografada e daqueles que pretendem elaborar as biografias” ADIN 4815. Relatora: Min.
Cármen Lúcia, Tribunal Pleno, julgado em 10/06/2015. Processo Eletrônico DJe-018. (Disponível em
https://tinyurl.com/4e438dax. Acesso em 02 fev 2022).
37
Documento que o cartório emite quando os noivos dão entrada na habilitação para o casamento civil, que é o
procedimento exigido por lei para falar que duas pessoas estão aptas a contrair matrimônio.
38
A União foi condenada a pagar R$ 30 mil de indenização pelo desaparecimento do processo criminal que apurou
a morte de Euclides da Cunha Filho, em processo iniciado por representação proposta por Joel Tostes junto ao
Ministério Público Federal do Rio de Janeiro (Proc. 2001.51.01.007679-9 – TRF2).
39
Jornais Gazeta de Notícias, O Paiz, Jornal do Brasil, Correio da Manhã, O Século, A Rua, A Época, A Noite.
31
inicial do título desse trabalho, O Abysmo das Suspeitas, frase retirada de uma das manchetes
que tomaram conta dos jornais do dia 16 de agosto de 1909, neste caso, do Jornal do Brasil.
40
Euclides da Cunha Filho, o Quidinho, ao tentar vingar a morte do pai, acaba morto pelas mãos de Dilermando
de Assis no ano de 1916, conforme se vê do Capítulo 3.
32
traz dados mais específicos: entre 1880 e 1930 a população brasileira cresceu a uma taxa média
de 2,5% ao ano, enquanto a população das cidades de 50 mil ou mais habitantes cresceu 3,7%
e as de 100 mil ou mais habitantes 3,1%. No entanto, esses números expressivos não alteram
uma realidade: o desenvolvimento urbano é grande, a busca da modernidade se une ao
desenvolvimento urbano, mas o país segue sendo eminentemente rural. Mais uma vez são dados
trazidos por Schwarcz (2012) que corroboram a informação: o censo de 1920 apontava que das
9,1 milhões de pessoas em atividade, 6,3 milhões se dedicavam à agricultura.
Esta tese, como é natural, trabalha com uma grande quantidade de conceitos importantes
para a coesão e justificativa da documentação. Algumas dessas ideias teóricas permeiam o
trabalho todo, como a narrativa, a memória ou a recepção, e foram citadas na introdução.
Enquanto outras ideias, que são mais relacionadas aos capítulos em específico, estão
apresentadas e explicadas nas respectivas introduções aos capítulos, como é o caso do conceito
de virilidade no primeiro capítulo ou o de intelectual no quarto capítulo.
Assim, sendo aqui utilizados diversos conceitos que seriam por si só suficientes para o
desenvolvimento de uma tese, sem deixar de aquiescer às nuances que lhes são próprias bem
como aos conflitos doutrinários existentes, o que é feito em uma série de notas de rodapé ao
longo do texto, existem opções escolhidas a fim de centralizar este trabalho na discussão a qual
se propõe, qual seja, entender como as narrativas da “Tragédia da Piedade” reforçam as visões
sobre o ideal de homem e intelectual republicano que foi Euclides da Cunha e como alicerces
para a sua mitificação. Para tal, essa tese é composta de introdução, quatro capítulos e
considerações finais.
No primeiro capítulo, “Euclides, Ana e Dilermando: personagens em um cenário
republicano”, desvenda-se a construção biográfica dos três vértices desse triângulo amoroso:
Euclides, Ana e Dilermando, cujas vidas culminam, como já se sabe, em um episódio conhecido
como “Tragédia da Piedade”. A despeito desse trabalho orbitar especialmente, como já se
destacou algumas vezes, em torno desse acontecimento e a sua relação com a mitificação da
figura de Euclides, não é possível essa análise sem esquadrinhar os caminhos dessas três
pessoas até os seus encontros e escolhas que dali resultaram. E percorrer os caminhos dessas
três pessoas é entender o contexto no qual eles construíram suas vidas – porque nenhuma
escolha se faz divorciada de ideais e expectativas que pertencem ao tempo (e lugar) dessas
anuências. Igualmente, as memórias e percepções dessas pessoas e de suas tragédias e alegrias
são tecidas a partir de expectativas eivadas de ideias que vão mudando, às vezes retornam, às
vezes fenecem. Essas personagens inserem-se em um contexto com muitas particularidades
interessantes: o do nascimento da República brasileira, da educação militar, da honra, o da Belle
33
Époque, e entender esse cenário sócio político é compreender algumas das escolhas narrativas
que constroem esta história e estes personagens, inclusive sua educação, voltada à virilidade, à
honra, ao papel da mulher como apoiadora do homem e o papel do homem como líder,
provedor, protetor.
No segundo capítulo, “Narrativas em Primeiro Ato: nas tramas do fato e da escrita”,
observa-se a atuação dos jornalistas e a cobertura da imprensa, a construção da narrativa oficial,
com a apuração do crime por meio de um processa que culmina em um júri que absolve
Dilermando, e a reação dos amigos, colegas e admiradores de Euclides diante desse desfecho –
e a construção das bases da mitificação do autor com a fundação do Grêmio Euclides da Cunha
do Rio de Janeiro, e é perceptível que os ideais de virilidade e masculinidade têm muito peso
no desfecho da Piedade, tendo que vista que os homens que Euclides e Dilermando eram (e
aqueles que o cercavam) foram erigidos a partir destes norteadores tão pungentes no final do
dezenove e início no vinte, tanto fora da caserna quanto dentro dela.
No terceiro capítulo, “Narrativas em Segundo Ato: enredos da memória”, vê-se os
desdobramentos da Piedade a partir da perspectiva familiar. A necessidade por lavar a honra
ferida, que leva Euclides da Cunha Filho, o Quidinho, a morrer pelas mãos do algoz do pai,
Dilermando. Uma família que se claramente se divide entre os descendentes de Euclides e os
descendentes de Ana e Dilermando, como se Ana também não fosse mãe dos filhos de Euclides.
Além disso, o caminho de penitência de Dilermando, que por toda vida vai pagar caro por ter
matado o grande autor e cujo ato sempre vai ser retomado, relembrado e atacado, especialmente
por euclidianistas, considerados como tais aqueles envolvidos nos esforços de preservação da
memória de Euclides além da pesquisa científica, para Regina Abreu (1994), “os euclidianistas
percebem-se como apóstolos e discípulos, pregando e difundindo as lições do mestre. São
também continuadores de sua missão intelectual, acrescentando com novos trabalhos”, e que
são observados de forma mais próxima no capítulo 4.
No quarto capítulo, “Cai o pano e nasce um mito: a construção cultural de Euclides”,
verifica-se a construção da figura mítica de Euclides, especialmente a partir das narrativas de
sua morte, apropriadas por instituições como a ABL, o IHGB e o Grêmio Euclides da Cunha
de Rio Pardo – todos confrades de Euclides, e, nesta posição, interessados na manutenção da
narrativa de Cunha no cânone, fortalecendo as agremiações intelectuais e os ideias da
República, pelos quais todos eles trabalhavam então.
Busca-se, a partir desse esforço de recuperação da honra euclidiana, ano após ano, do
comportamento exigido ao falecido, a Dilermando entender o papel das expectativas sobre a
masculinidade e sobre o comportamento feminino na convivência social, na política, no
34
casamento, no mundo do início do séc. XX, e como essas expectativas influenciaram não só na
morte de Euclides, mas também na forma como a sua história é contada e a sua obra
recepcionada até os dias de hoje.
Sendo assim, o trabalho que ora se introduz dialoga com as narrativas dessa tragédia,
desse grande drama da República, não apenas com o intuito de entender as diversas construções
que dele advieram, as várias versões da história; como se costurar essa colcha de retalhos fosse
tornar possível distribuir culpas e perdões e contar uma versão definitiva. Não se trata de tomar
lados e absolver os mortos ou adotar a narrativa dos vivos, mas de compreender, nas nuances
de todos esses registros, na forma de construção dessas narrativas todas (as biográficas, as
jornalísticas, a jurídica, as memórias familiares), as influências que os ecos da tragédia tiveram
na construção da própria imagem de Euclides para o mundo, como um escritor sem par, um
homem que viu e viveu o Brasil profundo, indignou-se e preocupou-se em contar a história, um
mito.
35
Ainda que a Belle Époque não tenha se aperfeiçoado de maneira uniforme em todo
mundo, os seus ideais e perspectivas de mudanças espalharam-se. No caso do Brasil,
especialmente com a chegada da República e a partir de transformações que foram visíveis
particularmente em sua capital, um “espaço de experiência do progresso”, no qual o ideal do
desenvolvimento era “autonomizado, desvencilhando-se de sua subordinação à ideia de
civilização, e subordinando todos os demais valores a si” (AZEVEDO, 2016, p. 74). O Rio de
Janeiro era, ainda, a cidade mais importante do país, mas não se concentrava ali todo o poder
de decisão, não mais. Com a república emergiu o federalismo 42 que, por sua natureza,
41
É comum encontrar o final da Guerra Franco Prussiana, em 1871, como sua baliza inicial.
42
Fausto (1985) lembra que o federalismo foi uma resposta do governo à insatisfação das elites locais nos primeiros
anos da República, diante da perda de influência. Era preciso garantir a governabilidade e a resposta foi o pacto
37
desconcentrava o poder das mãos de uma unidade central e pretendia distribui-lo localmente,
ou seja, “a cidade, que anteriormente era o lugar por excelência da formulação de políticas em
nível nacional, passava então a ver, cada vez mais, essa sua função histórica esvaziada diante
do aumento do poder político local”. (AZEVEDO, 2016, p. 78).
Igualmente, o início do séc. XX foi marcado por profundas modificações43 no
relacionamento44 entre homens e mulheres45, sendo que estas cada vez mais lutavam para deixar
o âmbito doméstico e acompanhar os homens em sua atuação, fora da convivência meramente
familiar. Entender o desenrolar da Belle Époque, especialmente na cidade do Rio de Janeiro, é
entender como se forjava a sociedade na qual conviviam Ana, Dilermando, Euclides e seus
pares, o que deles se esperava e como eles viviam.
Tratava-se de momento de ruptura na sociedade como um todo, em suas diversas
instâncias, e as mudanças nas relações pessoais/sociais refletiam as alterações que vinham da
economia, da administração do país, da política, das ideologias reinantes. Um momento de
fissura em um país cujo regime monárquico nunca havia alcançado a coesão no seu território,
haja vista que nunca penetrou com a força e a extensão necessárias em sua totalidade,
provavelmente por nunca ter, de fato, retirados os poderes das mãos das elites regionais e o
centralizado em si. (ALONSO, 2019).
O sistema econômico brasileiro viu uma grande mudança de eixo, com a transição da
mão de obra escravizada para o trabalho assalariado, o que trouxe, por seu turno, uma grande
onda de imigrações de países europeus como Portugal, Itália e Alemanha (em um primeiro
momento; uma segunda onda traria, ainda, imigrantes libaneses e japoneses, entre outros).
Também há uma incipiente indústria nacional, especialmente a partir de 1880, em um país que
federativo e a medida de independência que ele dava aos estados e, por consequência, aos líderes locais
(RESENDE, 2003).
43
Therborn (2006) mostra que essas modificações são bem visíveis nas mudanças legais no que tange a família,
mas também apresenta ocorrências (aparentemente) mais prosaicas, como o fato de que o III Congresso
Internacional sobre as Condições e os Direitos das Mulheres aconteceu concomitantemente com a Feira Mundial
de Paris de 1900.
44
Como aponta Blom (2015), Le Play já dizia em 1866 que a autoridade paterna era um poder social não só
legítimo (o mais legítimo, segundo ele), mas também muito necessário. Essa mudança de prumos, ainda que
relativamente lenta, traz, desde meados do séc. XIX, por exemplo, o surgimento de uma reação belicosa dos
homens, que sofrendo de esgotamentos e um incomum nervosismo se agarram a antigos valores e a sinais de sua
masculinidade como uniformes ou duelos.
45
Não existe uma uniformidade de homens e mulheres na sociedade brasileira do período. Aqui se fala mais
especificamente de homens majoritariamente brancos, filhos de famílias abastadas, da ascendente burguesia
(comerciantes, banqueiros, industriais, profissionais liberais, proprietários de terras e funcionários públicos dos
escalões menores) ou, pelo menos, das famílias militares com alguma colocação social, e as mulheres de suas
famílias e com quem eles se casavam.
38
46
A Guerra do Paraguai (ou Guerra da Tríplice Aliança) foi travada entre Paraguai, Brasil, Uruguai e
Argentina. Sua semente está nos conflitos pela livre navegação no Rio Paraguai, especialmente por volta
de 1850 com Carlos López, então presidente do Paraguai, além de di scussões sobre a delimitação de
territórios entre os países envolvidos na guerra - na segunda metade do dezenove, Brasil e Argentina
eram as duas maiores potências do continente, e o Paraguai queria ser a terceira maior. A chegada de
Solano Lopez ao poder em 1862 não melhorou essas relações com o Brasil, especialmente com a
aproximação do governo paraguaio com os federalistas argentinos e uruguaios integrantes do Partido
Blanco. Eventualmente, brasileiros, argentinos e uruguaios se uniriam contra o Paraguai , culminando
em uma guerra longa, com uma quantidade de mortos que até hoje é discutida e, para o Brasil, uma
enorme dívida com bancos ingleses. Com informações da Biblioteca Nacional, disponíveis em
https://tinyurl.com/5n7866nn. Acesso em 28 fev 2022.
47
Por volta de 1880, alguns militares ignoraram a proibição de que se manifestassem na imprensa., e o Tenente
Coronel Sena Madureira e o Coronel Cunha Matos, ambos lotados no Rio Grande do Sul, acabaram punidos pelo
Imperador. Houve uma crise diante da recusa do Gal. Deodoro da Fonseca, presidente da Província do RS, de
puni-los, e os militares acabaram seguindo ao Rio de Janeiro, onde foram recebidos como heróis por um grupo
militar republicanista liderado por Benjamin Constant (COSTA, 2007).
39
questão48, a religiosa: com relações cada vez mais desgastadas entre Igreja e Estado devido a
conflitos entre religiosos tradicionais e a maçonaria, por exemplo.
A proclamação da República brasileira é de 1889, contudo, ideias republicanas por aqui
já circulavam de antemão. Realmente, movimentos como a Confederação do Equador (1824),
Inconfidência Mineira (1789) ou a Conjuração Baiana (1789) traziam propostas republicanas.
O republicanismo brasileiro teve o seu marco oficial no ano de 1870, com a divulgação49 do
Manifesto Republicano pelo Partido Republicano do Rio de Janeiro. Outro marco importante
foi a Convenção de Itu de 187350, com a consequente formação do Partido Republicano
Paulista. Mas, mesmo que concordassem com a mudança de regime, esses republicanos não
formavam um grupo homogêneo. Havia os abolicionistas convictos defensores de um
movimento popular, liderados por Lopes Trovão51 e Silva Jardim52; havia o grupo
evolucionista, guiado por Quintino Bocaiúva53, que almejava uma transição gradual e pacífica
48
A raiz da questão religiosa está na Constituição de 1824, que deu ao imperador o padroado (direito de nomear
religiosos para os principais cargos eclesiásticos) e o beneplácito (direito de aprovar ou não as bulas papais). A
bula Syllabus condenava a maçonaria, o que entrava em rota direta de conflito com as visões de D. Pedro II, que
com esse grupo sempre mantivera relações próximas. Bispos do Nordeste (notadamente Olinda e Pará)
determinaram a expulsão dos maçons das irmandades, mas o Imperador fez valer o seu direito e não aprovou a
bula, instaurando o conflito entre o Estado e a Igreja.
49
Divulgado pelo jornal A República em 03 dez 1870, via o regime monárquico como “uma instituição decadente”
e propunha uma federação baseada “na independência recíproca da Província, elevando-a à categoria dos Estados
próprios unicamente ligados pelo vínculo da nacionalidade e da solidariedade dos grandes interesses da
representação e defesa exterior...” (Íntegra do Manifesto Republicano de 1870 disponível em
https://tinyurl.com/2p934m8c. Acesso em 15 jun 2021).
50
Considerada a primeira reunião dos líderes republicanos paulistas, aconteceu em 18 de abril de 1873, em Itu, na
residência de Carlos de Vasconcelos de Almeida Prado. A congregação de políticos e proprietários de fazendas de
café marcou o início da campanha republicana e do próprio partido em São Paulo. Poucos dias depois, na edição
de 28 de abril, o Jornal A República apontou que a Convenção de Itu poderia ter sido maior, haja vista a ausência
de outros núcleos republicanos importantes espalhados pelo interior de São Paulo: Itapetininga, Pirassununga e
Rio Claro, por exemplo. Disponível em http://acervo.bndigital.bn.br/sophia/index.html. Acesso em 02 ago 2021.
51
José Lopes da Silva Trovão (Angra dos Reis, 23 de março de 1848 – Rio de Janeiro, 17 de julho de 1925) foi
um médico, jornalista e político brasileiro. Era um ativo defensor da República, além de abolicionista. Ainda na
Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, envolveu-se com o movimento pela derrubada da monarquia, assinou o
Manifesto Republicano de 1870 e frequentou o Clube Republicano, juntamente com José do Patrocínio e Quintino
Bocaiúva. Quando da Proclamação da República, liderou uma comitiva de republicanos até a casa do Mal. Deodoro
da Fonseca para apresentar o que defendiam como a nova bandeira constitucional do Brasil. Serviu como deputado
por diversos mandatos após a proclamação da República, e também atuou como diplomata. (Conforme
informações disponíveis em https://tinyurl.com/498xyjtc. Acesso em 12 ago 2021).
52
Antônio da Silva Jardim (1860 - 1891) foi advogado, jornalista e ativista político. Estudou Direito em São Paulo.
Ingressou no Clube Republicano, aproximando-se dos estudantes abolicionistas e sobressaiu-se como orador.
Posteriormente, como a grande maioria dos republicanos, aderiu ao positivismo. Participou da fundação do Clube
Republicano de Santos, condicionando sua participação à inclusão do abolicionismo no programa político da
entidade. Em 1888 proferiu, em apoio à proposta plebiscito para decidir sobre a conveniência de, em caso de
falecimento do imperador dom Pedro II assumir o trono a princesa Isabel, a conferência A pátria em perigo. Esta
manifestação lhe trouxe certa notoriedade, projetando-o como pioneiro de uma nova fase da propaganda
republicana. (Conforme informações disponíveis emencurtador.com.br/cqtS7. Acesso em 12 ago 2021).
53
Quintino Antônio Ferreira de Sousa (1836-1912) estudou no curso de humanidades anexo à Faculdade de Direito
do Largo de São Francisco, em São Paulo, cidade na qual também iniciou sua carreira jornalística, também como
teatrólogo e editor ali e no Rio de Janeiro. Durante a guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai (1865-1870),
foi correspondente na Argentina, consolidando suas convicções republicanas. Fundou o Clube Republicano da
cidade do Rio de Janeiro, o jornal A República, em cuja primeira edição foi lançado, em 3 de dezembro, o
40
para a República. Por fim, os militares que, seguidores da doutrina positivista, viam a
Monarquia como um regime contrário ao progresso (CASTRO, 2000), e tinham à frente nomes
como Benjamin Constant54, que teve papel fundamental na formação de Euclides, e é um dos
nomes mais destacados da epopeia republicana do Brasil55.
Foi justamente dos militares que Quintino Bocaiuva se aproximou, o que trouxe para o
seu grupo, por exemplo, o Marechal Deodoro da Fonseca, ao mesmo tempo em que os grupos
paulista e carioca se uniram na ideia de um golpe que proclamasse a República. Mas um
desencontro de informações fez com que uma parte dos militares antecipasse a data do golpe,
que aconteceu em 15 de novembro de 1889, diante de uma população que a nada entendia.
Deodoro depôs o gabinete monárquico e, como narrou José Murilo de Carvalho (2019, p. 30)
citando Aristides Lobo, o povo assistiu aos acontecimentos “bestializado, sem compreender o
que se passava, julgando ver talvez uma parada militar”. Foi necessária a ida de lideranças
republicanas à Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro para anunciar que tinha sido dado um
fim à Monarquia no Brasil.
Manifesto Republicano, redigido por ele e Salvador de Mendonça. Em maio de 1889, o Congresso Republicano,
reunido em São Paulo, consagrou a tese, da qual Quintino era o mais expressivo defensor, de que se deveria
privilegiar uma campanha doutrinária pela imprensa como caminho para o advento gradual da República.
Proclamada a República, assumiu Ministério das Relações Exteriores e teve como primeira tarefa a negociação do
reconhecimento diplomático do novo regime. Em dois meses, praticamente todos os países da América e da Europa
já haviam normalizado as relações oficiais com o Brasil. (Conforme informações constantes de
https://tinyurl.com/2p8zkrxp. Acesso em 03 out 2021).
54
Benjamin Constant era um positivista de primeira hora. Juntou-se às fileiras do exército por necessidade
financeira, órfão de pai muito jovem, tinha na Escola Militar oportunidade de educação e de sustento para si e a
família. Mergulhou, então, em um ambiente cientificista, no qual teve o primeiro contato com as teorias de Comte.
Atuou muitos anos como professor de matemática, ao tempo em que completava sua formação como Engenheiro.
Lutou na Guerra do Paraguai, onde padeceu de malária e galgou degraus importantes na carreira de militar. O
agravamento do quadro de saúde levou-o de volta ao Brasil, e ao trabalho como professor no Imperial Instituto
dos Meninos Cegos e também na Escola Militar. Em 1º de abril de 1876, Benjamin Constant fundou com amigos
a primeira associação positivista brasileira, que foi seguida em 1878 pela Sociedade Positivista e em 1881 pela
Igreja Positivista Brasileira. Constant atuou diretamente na politização de seus alunos da Escola Militar, e era
combatente de primeira linha do regime monárquico. Ao longo da carreira, Benjamin Constant acumulou
experiências negativas com a máquina governamental, como militar, professor e cidadão, e se identificava com a
doutrina do soldado-cidadão (“O soldado deve ser, de hoje em diante, o cidadão armado, corporificação da honra
nacional e importante cooperador do progresso com garantia da ordem e da paz públicas, apoio inteligente e bem
intencionado das instituições republicanas, jamais instrumento servil e maleável por uma obediência passiva e
inconsciente que rebaixa o caráter, aniquila o estímulo e abate o moral”). Atuou, ainda, com abolicionistas,
testemunhou o andamento da aprovação da Lei Áurea e também participou da reformulação do sistema de ensino
militar. Constant foi membro da comissão de militares que decidiu sobre a exclusão de Euclides da Cunha da
Escola Militar, por ocasião do incidente com o Ministro de Dom Pedro II, e o seu voto pessoal (vencido) foi
favorável à Cunha. (Conforme informações disponíveis em: https://tinyurl.com/vm7wpw6h. Acesso em 20 out
2019).
55
Como se vê da impressão dos intelectuais contemporâneos a Constant, que o consideravam uma “figura saliente,
mais do que qualquer dos seus colegas e camaradas, na obra da revolução, da qual foi não só a cabeça que elaborou
o plano, como o espirito que semeou na força pública a ideia republicana, compreende-se o prestigio que o rodeava
no seio do governo e o peso moral com que sua palavra influía nas deliberações da ditadura” (FREIRE, 1894, p.
71).
41
Mas, o que era essa República? O resultado de grupos que se uniram pelas
circunstâncias, pela busca de destituir a monarquia e instituir um regime que dialogasse melhor
com as necessidades das elites regionais, das visões de mundo dos intelectuais do período, que
servissem à base da sociedade brasileira (que não se altera drasticamente com a mudança de
regime). É como desenvolveu Raimundo Faoro (2001), quando concluiu que a sociedade
brasileira se moldou em um estamento patrimonialista (funcionários da Coroa funcionários
da República) que trabalhava para garantir a dominação política do regime ao qual servia
(exatamente o papel de intelectuais e instituições ao longo deste trabalho discutidas, diante do
nascente regime). Para eles, argumenta Faoro (2001), não há nada de público a serviço do poder
instituído – ao contrário, dele o grupo acaba por se apropriar para servir aos seus interesses
privados. Como isso se dá? Viscardi ajuda nessa compreensão:
Entre as características dos regimes oligárquicos que estiveram presentes na
Primeira República podemos destacar: o parentesco e a lealdade pessoal como
critérios de relacionamento político; a estabilidade baseada na contenção de
minorias oposicionistas; o uso de instrumentos extralegais para a manutenção
de privilégios e benesses [...] expedientes autoritários, usados com o fim de se
manter o poder concentrado nas mãos dos mesmos grupos; e, por fim, a
presença de uma maioria politicamente apática [...]. Todas essas
características compunham em parte o universo político da Primeira
República [...] a associação de todas elas em um só período funcionava como
um poderoso alicerce do regime republicano em suas primeiras décadas”.
(VISCARDI, 2019, p. 291).
Instaurada a República, o fim do séc. XIX viu o fortalecimento de elites regionais56 que
acabaram por transformar de forma mais ampla a sociedade e a cultura brasileiras. E, ainda que
se leve em conta a observação de Sevcenko (2012, p. 27), de que na sua ânsia modernizadora,
as elites “se empenhavam em reduzir a complexa realidade social brasileira, singularizada pelas
mazelas herdadas do colonialismo e da escravidão”, sabe-se que isso não se deu a partir de uma
ruptura completa com os ideais imperiais. Esses líderes eram republicanos, mas foram formados
na escola do Império; os seus esforços eram direcionados a um novo regime, mas perpetuavam
as bases dos poderes político e econômico que vigiam há tempos (SCHWARCZ, 2019) e que
os sustentavam.
Na ocasião, diante de uma moeda fortalecida e apoiadas no sucesso do mercado cafeeiro,
eram muitas as famílias abastadas que atravessavam o Atlântico em direção a Paris. Voltavam
cheias de novas ideais e comportamentos modernos, que aos poucos também passaram a fazer
parte do dia a dia local, notadamente no Rio de Janeiro, uma cidade que era “uma ilha cercada
56
A própria instituição do Federalismo é fundamental nesse fortalecimento, a mudança na estrutura de distribuição
do poder é auxiliar na ascensão das elites locais. Vide nota 44.
42
pelo ambiente rural por todos os lados” (SCHWARCZ, 1999, p. 116) e que aspirava ser a
Cidade Luz, aqui replicando o costume da vida nos cafés, com a Confeitaria Colombo, por
exemplo; e a moda parisiense, em lojas como a Parc Royal (SOUZA, 2008).
Era essa a realidade de Ana e Euclides que, além disso, viveram no âmbito de influência
direta do Positivismo, que teve sua gênese na França e na Inglaterra do séc. XVIII57. Buscando
representações exatas e precisas, científicas, a filosofia positivista, conforme Gomide (1999),
fundamentava-se no fato de que toda proposição científica devia ser empiricamente significante
e que toda premissa universal devia ter origem indutiva; além de ser teoria teve origem em
proposições certíssimas obtidas mediante indução e com leis científicas não forneciam os
‘porquês’ dos fenômenos. Consolidado na França do séc. XIX, pelas mãos de Auguste Comte,
como um pensamento filosófico e social de valorização da humanidade, o positivismo pode ser
explicado como um método científico que entende ser todo “axioma racional” suscetível de
explicação a partir de uma lógica matemática, “as leis da ciência regem o mundo, fugindo de
explicações espiritualistas. Comte substituía a religião católica oficial, então tradicional, pela
‘Religião da Humanidade’” (GÓIS JR., 2003, p. 22-23).
Dois dos seguidores de Comte que se tornaram dissidentes, Littré, e Laffite, foram os
primeiros grandes influenciadores dos grupos positivistas que se desenvolveram no Brasil58 -
sem prejuízo de novas sugestões e grupos:
Os ‘Positivistas Ortodoxos’ apresentavam um projeto para a formação de um
‘Novo Estado Republicano’, enquanto os demais grupos tinham mais cautela
na sua militância. Enquanto os demais grupos baseavam-se no cientificismo,
os Ortodoxos com o intuito de tornar o grupo mais homogêneo e disciplinado
incluíam práticas religiosas ao pensamento (MELLO, 2010, p. 03).
57
Silva (1999) estabelece duas fases no positivismo: o pré-positivismo ou positivismo do século XVIII e o
positivismo de Comte, no início do século XIX.
58
Rafael Sêga lembra que, no Brasil, “a marca inicial do positivismo mais aceita é a publicação do livro de Luís
Pereira Barreto, As três filosofias, em 1874, e também, dois anos mais tarde, a fundação da Sociedade Positivista
Brasileira (origem da Igreja da Humanidade) no Rio de Janeiro. Contudo, o núcleo irradiador do positivismo seria
transferido para Recife, por iniciativa de Tobias Barreto e, depois, Silvio Romero e Clóvis Bevilácqua” (SÊGA,
2004, p. 2).
43
liderado por Miguel Lemos e Raimundo Teixeira Mendes, criou o “Templo da Humanidade”
(Igreja Positivista do Brasil) em 188159.
Estas duas figuras de proa do positivismo ortodoxo, aliás, foram expulsas da Escola
Politécnica pela posição extremamente crítica frente à Reforma do Visconde do Rio Branco60
(ALONSO, 2002). No Brasil, o positivismo, como outros movimentos tais como o darwinismo,
o spencerianismo e o liberalismo61 sofreram apropriações e tiveram seus usos políticos
redefinidos (ALONSO, 2002). De fato, na história do Brasil pontuaram apropriações das mais
diversas ideologias de modo a atenderem aos anseios das elites que, ao tempo em que
advogavam mudanças, precisavam manter a estrutura que as mantinha de pé, e no topo:
Se é certo que a nossa história intelectual tem sido, em grande parte, um
variado tecido das vicissitudes da importação transoceânica de idéias, não
menos certo é que os dados dessa importação aqui se conformam ou deformam
em face das circunstâncias próprias ao ambiente, que é complexo e rico de
contrastes. E é para isso que é preciso atender e atentar, pois talvez aí resida a
nossa originalidade. (COSTA, 1953, p. 98)
Sabe-se que o campo mais fértil para a disseminação da doutrina positivista no Brasil
foi o dos bancos escolares, em instituições como a Escola Militar da Praia Vermelha e a Escola
Politécnica (de fato, foi o intercâmbio entre estudantes da Escola Politécnica da França e do
Brasil que trouxe a doutrina ao conhecimento dos brasileiros), ambas no Rio de Janeiro.
59
Foi a partir do encontro de Comte com Clotilde de Vaux, sua famosa musa inspiradora, que houve uma
reformulação da doutrina, passando esta a observar também aspectos religiosos – a dita “Religião da Humanidade”.
O que Comte chama de sua “regeneração moral” traz aspectos religiosos a uma abordagem até então cívica, com,
por exemplo, a adoração a grandes homens como se fossem santos. “A Religião da Humanidade criada por Comte
era uma religião da História e um culto aos mortos, no sentido memorial. Era composta por um culto privado e um
culto público. O primeiro ocorria no espaço doméstico e era voltado para a lembrança dos familiares mortos,
estimulando diariamente a rememoração da história dos antepassados e sua transmissão. O culto público ou
coletivo ocorria nos templos positivistas, era destinado a celebrar a Humanidade e seu passado e dirigido pelos
sacerdotes (filósofos). ” (LEAL, 2006, p. 66).
60
José Maria da Silva Paranhos (1819-1880), o Visconde do Rio Branco, era pai do Barão do Rio Branco e, embora
um pouco menos conhecido que o filho, teve papel muitas vezes central nas questões políticas brasileiras. Atuou
nas questões relacionadas ao Prata, organizou o Governo Provisório do Paraguai após a guerra (1869-1870,
compôs o chamado Gabinete Rio Branco e tomou a frente em reformas consideradas essenciais para o país. Foi
sob sua batuta, por exemplo, que foi aprovada, em 1871, a Lei do Ventre Livre. Conforme informações disponíveis
em https://tinyurl.com/2p8bjecp. Acesso em 10 abr 2021.
61
Desde 1876 nota-se a substituição do positivismo comteano pelo darwinismo, spenciarianismo (LOPES, 1997).
Para o darwinismo, algumas raças não eram aptas a se desenvolverem (ou se adaptarem) aos padrões civilizatórios.
Quando Darwin publica “A Origem das Espécies” (1859) ele não usa a palavra “evolução”. É Spencer quem faz
uso do termo, a partir do ensaio “Gênese da Ciência” (1854) até ao ponto de definir a evolução como a passagem
do homogêneo ao heterogêneo. O que Spencer fez foi aplicar o darwinismo ao contexto social, determinando que
o universo evolui e que a evolução é progresso, considerando, como Comte, que a ordem é necessária para o
progresso. O liberalismo, por sua vez, parte da ideia de que o indivíduo é o centro do progresso da humanidade, e
por isso deve ter liberdade direitos e propriedade garantidos pelo Estado. Mas a verdade é que quando se pensa no
âmbito do Brasil, como lembra Castro (2000), mais do que cada uma dessas correntes com sua particularidade, o
que importava era a fé na ciência e no progresso.
44
62
Instalada inicialmente no prédio que hoje abriga o Museu Histórico Nacional do Rio de Janeiro e transferida em
1812 para o largo de São Francisco (CASTRO, 2000).
63
Concomitantemente, no Rio Grande do Sul também se desenvolvem centros de formação do Exército. Desde
1851 a província de São Pedro do Rio Grande do Sul contava com Cursos de Infantaria e Cavalaria, posteriormente
instalados em Porto Alegre, que depois ganhou o nome de Escola Militar Preparatória da Província de São Pedro
do Rio Grande do Sul, onde os alunos eram preparados para cursos das diferentes Armas e práticas de exercícios
militares (CASTRO, 2000).
45
Ser militar64 abarcava, portanto, ser engenheiro, cartógrafo, ser uma frente ativa no
papel de civilizar o vasto interior, trazendo a moralidade e a organização social, além de
garantir, ao mesmo tempo, a paz necessária para o bom crescimento da nação. E isso tudo
observando os princípios da honra e do pundonor65 militares. E é nesse terreno que Euclides se
desenvolve, se forma e convive. A família de Ana era de militares, seus amigos foram feitos
principalmente nas fileiras da Escola Militar e todos eles estiveram envolvidos com o Exército
ao longo daqueles primeiros anos da República. Dilermando era militar. José Murilo de
Carvalho (2017) lembra que o exército fez frente a dois momentos fundamentais da vida de
Cunha: o episódio da espada66 na Escola Militar e a sua própria morte (pelas mãos de um oficial
do Exército). Também é Carvalho (2017) a lembrar outra função muito importante da estrutura
militar na vida de Euclides: incutir-lhe um senso de brasilidade – o que, ao final, foi
fundamental para que ele escrevesse Os Sertões e passasse a ocupar os lugares que ocupou, em
vida e na morte.
Portanto, essa ressalva se repete ao longo do texto porque a influência desse período na
vida de Euclides é muito grande e, de certa forma, muito aparente em seu trabalho. De tal forma
que, noticiando sua morte, logo após narrar o nefasto ocorrido, ao começar o exercício de
explicar Euclides ao leitor, o Jornal O Paiz destaca a sua formação militar:
A Escola Militar era como um arsenal em que se fundiam e se modelavam as
idéias avançadas, em que crepitava a chama viva das aspirações generosas e
em que ao mesmo tempo o ardor desses impulsos da mocidade se temperava
no trato severo da ciência. Para esse meio transplantou-se Euclides da Cunha;
e lá, como planta em uma estufa, se desenvolveram as suas faculdades
intelectuais rápida e vigorosamente. [...] E assim, nessa aliança entre as
positividades cruas da ciência e as sedutoras perspectivas da arte, o seu
espírito foi se fortalecendo e adquirindo a feição original, que o havia de elevar
mais tarde às culminâncias da intelectualidade brasileira. (O PAIZ, 16 ago
1909).
Os bancos militares formavam um homem para muitos papéis, de força moral e de força
física, um homem viril. Mas, afinal, para aquela sociedade do início do séc. XX, quem é o
homem viril? É apenas o militar? Deve-se levar em conta, é bom recordar, que a persuasão da
64
Fernanda Nascimento, analisando a imprensa periódica militar no séc. XIX, aponta que sendo aquele um “espaço
de discussão de valores, de construção de discursos sobre o que é ser militar” (2015, p. 14), verifica-se que os
militares se veem, “[...] por volta de 1855, como briosos, honrados, cônscios de seus deveres constitucionais, e
exemplo de obediência e sofrimento nas páginas do periódico O Militar Brioso” (2015, p. 14).
65
Oliveira Viana é outro intelectual que reconhece a presença do espirito de classe e de honra entre os militares.
Segundo ele, entre pares que demonstram “sensível espírito de corpo e um vivo pundonor profissional” (VIANA,
2010, p. 116).
66
Conforme p. 58 e ss.
46
ética militarista vai muito além dos quarteis. Como lembra o General Lyra Tavares67 (1965, p.
15), a construção de uma nacionalidade brasileira vem dos tempos da colônia e progride ao
longo dos séculos seguintes com o apoio do Exército, que tem o papel de incorporador das
características nacionais, é peça ativa na formação cívica do povo brasileiro. Não é diferente
com a ideia de virilidade. Virilidade e honra68, virilidade e pundonor69, se entrelaçam de tal
forma que significam basicamente a mesma coisa.
Característica masculina, é verdade, mas de início já se faz uma ressalva, a de que a
virilidade vai além da masculinidade70, ela é qualidade do homem que alcança o “ideal de força
e de virtude, segurança e maturidade, certeza e dominação” (CORBIN, COURTINE e
VIGARELLO, 2013, p. 07). Já na Grécia antiga construía-se o homem de forma diferente da
mulher, reservando-se a ele os espaços da eloquência, da política, da sociabilidade (e também
uma introdução na vida adulta, como homem viril, a partir de aprendizados com um mestre,
acompanhados de perto pela comunidade). A Roma antiga traz um conceito um pouco diferente
da virilitas (era viril o jovem que mantivesse relações com uma mulher, e não somente com
garotos ou homens – ou seja, quem fazia do homem um homem era a mulher). Ou seja, a
sexualidade é fundamental para a noção de virilidade. Thuillier (2013) aponta, contudo, que
possuir virilidade, em Roma, nao era apenas ser sexualmente assertivo, procriador, mas ainda
um homem “equilibrado, vigoroso mas deliberado, corajoso mas contido” (THUILLIER, 2013,
p. 75). Atingir a virilitas não era tarefa fácil. Esse homem além de ter visíveis atributos físicos
67
Aurélio de Lyra Tavares (João Pessoa, 1905- Rio de Janeiro, 1998) estudou na Escola Militar do Realengo
(1923-1925), além de se graduar em Direito e em Engenharia Civil. Teve destacada carreira militar, ocupando
importantes postos de chefia, entre outros, membro do Estado-Maior Especial para a organização da Força
Expedicionária Brasileira, de outubro de 1943 a maio de 1945; Subchefe da Missão Militar Brasileira na Alemanha
durante a ocupação daquele país, de dezembro de 1945 até 1950Foi membro do Instituto de Geografia e História
Militar do Brasil, do IHGB e da ABL. Com informações da ABL. Disponíveis em https://tinyurl.com/yc3fcx83.
Acesso em 31 jan 2022.
68
Aqui cabe uma observação que se aplica ao longo de todo o texto. Diante dos comportamentos de Euclides, Ana
e Dilermando é bom manter em mente o peso da honra na vida deles. Como aqui se vê, o peso da ética militar na
vida dos três é muito grande e, sendo assim, a noção de honra, o valor dado a ela, a importância ao seu respeito,
tem quase valor duplo: enquanto civis e enquanto militares (ou, no caso de Ana, da condição de filha e esposa de
militar).
69
Outra observação importante, especialmente para observar a dinâmica da relação entre Euclides e Dilermando,
é a de Pitt-Rivers (1968, p. 519), que lembra que o pundonor surge nas cortes renascentistas da Itália, estabelecendo
códigos comportamentais para regular as competições que envolviam o valor da honra. Ali, se houvesse qualquer
dúvida pairando sobre a honra de alguém, qualquer comportamento a ela deletério, não havia escolha, o ofendido
não podia deixar de responder ao insulto, sob pena de banimento do grupo.
70
A partir da ressalva de Foucault (1986), que nos lembra que o termo sexualidade surge apenas no séc XIX, note-
se que a preocupação com uma oposição entre o masculino e o feminino advém dessa diferenciação, uma vez que
até então a visão se focava na perfeição do corpo do homem, o modelo para todos os padrões, e a consideração de
que a anatomia feminina era inferior. O séc. XIX traz a noção do two sex model, uma visão político-ideológica na
diferenciação dos sexos, “justificando e impondo diferenças morais aos comportamentos femininos e masculinos,
de acordo com as exigências da sociedade burguesa, capitalista, individualista, nacionalista, imperialista e
colonialista implantada nos países europeus” (COSTA, 1995, p. 111).
47
(ser alto, musculoso, bonito, bem dotado) precisava ser inteligente, confiante e engajado
politicamente. O laço a amarrar todo esse presente era um só: o autocontrole. O homem viril
não podia pecar por nenhum excesso em nenhuma de suas fundamentais caracteristicas
(THUILLIER, 2013). A essa visão, com o intuito de compreender melhor as noções e
exigências de virilidade que chegam até Euclides e Dilermando, cabe aqui a observação de
Rothman, quando destaca que:
Do nosso ponto de vista moderno, o aspecto mais estranho da virilitas era que
ela contrastava com a masculinidade. A masculinidade e a virilidade eram
maneiras de ser separadas e até opostas. Comparada à virilitas, a mera
masculinidade ou masculinidade “básica” era um pouco desprezível. Foi
indisciplinado e, pior, imerecido, pois, enquanto os homens nascem
masculinos, devem alcançar a virilidade por meio da competição e da luta.
(ROTHMAN, 2016).
Uma tarefa difícil sustentada pelos mesmos pilares71 vindos de outros tempos: religião,
família e comunidade. Esse tripé, de certa forma, também impeliu o homem medieval, mas,
para ele, diferentemente, a virilidade era sinônimo de castidade, perder a vida em uma batalha
sangrenta era viril, envolver-se com mulheres não. Quando o homem medieval empunhou
armas para defender a família e o seu meio, a virilidade ganhou novos adjetivos: o escudo, a
lança, a coragem – a disciplina daquele que luta, e a castidade era uma qualidade desse controle,
dessa hombridade. A virilidade estava no comportamento, e ser casto enquanto se era guerreiro,
enquanto não se buscava um casamento, era um sinal de dignidade (THOMASSET, 2013)
Na modernidade, essa mistura vai se traduzir em uma virilidade delicada, representada
especialmente pelos reis. A noção de delicadeza como um sinal de cortesia, de educação,
gentileza, surge com a modernidade e, nessa gênese, é vista também como uma virtude
masculina, um sinal que se mostrava de especial forma nas figuras reais, a partir dos sinais
externos de sua riqueza e do local que ocupavam: riqueza, os perfumes, as luvas com anéis e os
cabelos frisados – adjetivos distantes do escudo e da espada, mas os novos indicadores da
virilidade, ou pelo menos indicadores de um novo tipo de virilidade – a nobre, em oposição a
uma suposta virilidade vulgar, um sinal para distinguir o homem delicado do rude (CORBIN,
COURTINE e VIGARELLO, 2013).
São inúmeras mudanças até chegarmos à virilidade que sustentava Euclides e
Dilermando, do homem que é viril em oposição ao homem fraco, e que se mostra assim de
especial maneira quando está entre as fileiras militares, onde a virilidade se mostra na destreza
71
Outra questão a os unir era o poder do falo. Kristzman (2013, p. 219) destaca a simbologia viril do órgão sexual
masculino, a representação do poder do macho.
48
na batalha, nas habilidades em campo, no vigor, na coragem, na força física e, por extensão, na
vida em família, na maturidade e autocontrole, na fertilidade. (CORBIN, COURTINE e
VIGARELLO, 2013), embora a essa altura masculinidade e virilidade apresentem-se quase
como sinônimos, ainda assim o homem precisa se mostrar, diante da sociedade e de sua família,
com um comportamento honrado, cavalheiro, ciente da própria força, especialmente diante da
(então vista) fragilidade feminina. Um soldado lutador, mas sempre ciente da sua força, tendo
controle da sua própria força.
É natural que as aspirações de uma sociedade acerca da virilidade mudem. É como
aponta Vigarello, ao dizer que a virilidade muda porque a história não pode permanecer estática
e as qualidades são redefinidas com o tempo, “ uma sociedade de comerciantes não tem os
mesmos ideais em relação à virilidade que uma sociedade militar; um cortesão não tem a mesma
definição que um cavaleiro” (VIGARELLO, 2013a, p.155).
Mas, a verdade é que desde a Antiguidade a base para o ideal de virilidade é construído
a partir dos modelos de comportamento definido para os soldados, para a guerra. No séc. XIX
esse ideal não vai mudar – ainda que com certas adaptações para a sociedade civil. De fato,
como lembra Vigarello, o dezenove é o pico da virilidade europeia, e aqueles que não pegavam
em armas tentavam, de fato, passar o maior tempo possível em ambientes que, de certa forma,
replicavam aquele dos quarteis, “ faculdade, internato, seminário, a adega do clube de canto, o
bordel, a sala da guarda, sala de armas, sala de fumantes, várias oficinas e cabarés e salas de
espera ” (VIGARELLO, 2013, p. 15).
A religião, a família e a comunidade seguem constantes, mesmo que vistas de diferentes
prismas. Para Euclides, por exemplo, a religião é a ciência, mas essa base do positivismo
sustenta a visão de família defendida pela República, que segue como o núcleo liderado pelo
homem e que tem na figura da mulher o seu coração e o seu referencial de honra. Se não é o
encontro carnal entre homens e mulheres que constrói o chefe da família, é o comportamento
da mulher e a forma como ela conduz a família, a sua atuação do núcleo familiar que permite o
(bom) crescimento do homem. Ou seja, a honra da família estava nas mãos da mulher, logo, a
própria virilidade e a masculinidade do marido, em um mundo onde as noções se misturavam
com o poder sexual masculino, também.
A partir dessas oposições é possível ver que, ao longo do dezenove e no início do século
vinte, ser homem significava não ser o que uma mulher era. Gay (1999) já destacou que a
identidade sexual e de gênero do homem vitoriano estava diretamente ligada ao seu papel na
49
sociedade: o homem devia comportar-se como tal, parecer másculo, parecer viril72. A questão
é que no seu comportamento público se refletia a sua vida familiar, e aí vem o grande conflito
entre Euclides e Ana: o comportamento dela não era condizente com a necessidade de erigir o
bom nome dele. Quando ela o trai, ela destrói a sua imagem pública e a imagem de sua
virilidade, especialmente se considerarmos, como já se apontou, que as noções de
masculinidade e a virilidade também passavam pelo corpo que devia ser forte, musculoso,
vigoroso, elegante. Tudo o que Dilermando era, e Euclides não.
Dessa forma, na esteira da discussão de Badinter (1998), a masculinidade é algo a ser
construído e conquistado, geralmente “à custa de grandes sacrifícios, que incluem ritos de
passagem, suportando dor e humilhação”, acaba-se por se definir o que é essa masculinidade
“através da afirmação da heterossexualidade, da negação do que é propriamente feminino, da
homofobia e da dominação sobre as mulheres” (BADINTER, 1998, p. 191). Note-se que a
construção dessa ideia, dessa percepção do que seja a masculinidade vai passar por
contraposições (homossexual x heterossexual, por exemplo) e graus de intensidade (ter
comportamentos mais ou menos masculinos, fazer parte das Forças Armadas é, nessa lógica,
um forte sinal de masculinidade). De igual forma, para o fim da discussão ora apresentada,
cumpre reconhecer que a noção de masculinidade, conceituada por Connell (1995a) como “uma
configuração de prática em torno da posição dos homens na estrutura das relações de gênero”,
é construída também a partir dos ideais de virilidade.
Igualmente, ainda cabia à esposa ser fiel ao seu marido, a punição do adultério recaía
essencialmente sobre a figura da mulher, porque era dela a obrigação de guardar a honra do
marido, da família. Segundo Halvor Moxnes (1993), a noção de honra é universal, mas a forma
como ela se apresenta varia entre culturas, por se tratar de uma construção social e, como tal,
sua compreensão passa pelo entendimento de contextos mais amplos, como o religioso, o social
e o econômico73.
Essas concepções de honra, respeito ao casamento, eram determinadas por homens, o
desrespeito a elas também por eles punido. E eram homens do séc. XIX, do início do séc. XX,
72
A sociedade patriarcal vê o homem a partir de dois prismas, um negativo e outro positivo: homem é aquele que
não chora, que não mostra seus sentimentos, que não é fraco. O homem também é aquele que é corajoso e forte,
um provedor que, sendo viril, pode até ter um comportamento agressivo (PINTO ET AL, 2017),
73
Essa observação vai ao encontro do pensamento de Cairns, quando ele elabora que “a noção de honra passou
por uma série de transformações: nas obras mais antigas do cânon literário ocidental, os poemas homéricos, existe
em algo como uma forma primitiva ainda encontrada nas sociedades muçulmanas, mas uma tradição de ceticismo
relativamente sobre a honra surgiu no pensamento clássico romano grego, e a cristandade exerceu uma forte
pressão no sentido de moralizar a noção que se tornava cada vez mais forte no Renascimento que alcançou seu
auge no século XIX, quando a honra tinha como cerne um vínculo com a moralidade cristã, com a integridade
pessoal, com ideais de lealdade, de boas maneiras com a do patriotismo” (CAIRNS, 2011, p. 24).
50
74
O Código Civil de 1916 considerava erro essencial sobre a pessoa do outro cônjuge (o que era causa para
anulação do casamento), o defloramento da mulher ignorado pelo marido.
75
No final do séc. XIX, especialmente na Inglaterra, surgem os primeiros movimentos de reconhecimento de
direitos das mulheres, como a busca pela igualdade pelo direito ao voto. A ascensão do movimento feminista se
dá especialmente na segunda metade do século XX e, no Brasil, a partir da década de 1970.
51
A honra de Euclides pertencia a Ana, guardiã do bom nome da família. A ele cabia o
direito/dever de exigir o bom comportamento da esposa. É como reverbera Mariza Corrêa
(1983, p. 192), “o dever mais enfatizado nesses casos tem sido o da fidelidade da mulher ao
homem [...] sua possível infidelidade absolvendo ou atenuando o ato agressivo cometido pelo
acusado”. A mesma autora arremata, “esse dever da mulher corresponde a um direito do homem
que pode, além de exigir o seu cumprimento, punir o seu não cumprimento”. (CORRÊA, 1983,
p. 192).
Pode-se argumentar que, ao final do dezenove, as bases do masculino eram a
sexualidade, a família e o trabalho. Dilermando e Ana, ao se tornarem amantes, feriram a base
do que tornava Euclides o que ele era: a esposa procura em outro homem a satisfação sexual, e
constrói com esse homem uma nova família que, de certa forma, é imposta a Euclides. A este
restou o orgulho do trabalho e a chance de lavar a honra ferida, diante de um homem que, à
primeira vista, tinha tudo aquilo que ele, Euclides não conseguira alcançar: a constituição
máscula, a beleza, o temperamento para a vida na caserna, o amor de Ana. Até que ponto essas
diferenças entre eles, que tornavam tão visíveis as ausências em Euclides, realmente o
incomodavam, é difícil dizer. Mas, cumpre lembrar a ressalva de Badinter (1998) para quem
nos definimos por processos de identificação e de diferenciação, reconhecendo a nós mesmos
não só pelas semelhanças, mas também pelas diferenças que encontramos no outro.
De outro lado, a fim de olhar para essa relação entre Euclides e Dilermando, é bom
lembrar que, como nos ensina Connell (1995b), há diferentes tipos de masculinidade em um
mesmo contexto social, desenvolvidas em torno da masculinidade hegemônica que reflete o
padrão idealizado do homem. Morto Cunha no duelo, ao final, são a sua inteligência e produção
literária que “salvam” o seu bom nome, por vezes parecendo que a vida de Euclides foi uma
busca dessa noção de virilidade que o formou e o educou, mas que nunca lhe foi natural - ele
não tinha especial apreço pela vida militar:
A experiência da Guerra de Canudos, para Euclides, confere uma dimensão
especial ao sentido da viagem, que, embora não negue implicações
românticas, assume contornos próprios. O tema, para ele, tem o cunho de um
outro mito, o mito da busca da autenticidade na aventura viril. É antes indo
rumo ao inóspito que o caráter é temperado, como o aço, através de provações
quase sobre humanas. (GALVÃO, 2010, p. 63).
Como se vê do item 1.1, o próprio Euclides narrou como acabou por se moldar no dia a
dia da vida militar, mas é interessante a ótica dessa incapacidade de se adaptar às exigências
físicas do exército se pensarmos que uma das bases da vida entre armas é a hierarquia, e a sua
existência em muito se fiava na capacidade de subordinação e instrumentalização desses corpos,
52
que são armas, máquinas (FOUCAULT, 1987). Euclides não se encaixava, em pouco ele se
encaixa ao longo da vida, apesar dos lugares de importância que acaba por ocupar: encontrou
pouca satisfação na função de Engenheiro, que por tantos anos ocupou, por exemplo, e que foi
seu passaporte para uma vida longe do Exército. Roberto Ventura conta que Euclides “detestava
as tediosas e intermináveis tarefas que lhe cabiam como engenheiro do estado” (VENTURA,
2019, p. 22).
Assim, ao longo deste capítulo, a partir desses ideais de virilidade, honra, família, a
partir dessa sociedade mergulhada em novidades e enraizada nas tradições, observa-se como se
formam os vértices desse triângulo, enquanto indivíduos, enquanto profissionais (no caso de
Euclides e Dilermando), enquanto casais. O que se pergunta é: como a Belle Epóque, o
pensamento republicano, a cultura da virilidade e os códigos de honra, além das experiências
pessoais, formaram esse homem, Euclides, e as outras personagens?
Euclides nasceu na Fazenda Saudade, Santa Rita do Rio Negro, distrito de Cantagalo-
RJ77, no dia 20 de janeiro de 1866, na segunda metade de uma década movimentada para o
Brasil, com a divisão no Partido Liberal ocasionando o surgimento de uma ala radical defensora
da República como única solução política (CARVALHO, 2009, p. 21). Filho de Eudóxia
Moreira da Cunha e do guarda-livros78 Manuel Rodrigues Pimenta da Cunha, por tornar-se
órfão79 de mãe aos três anos de idade, o menino de saúde frágil (contraiu ainda na infância
tuberculose, a doença que matou sua mãe), passou os primeiros anos de vida sob os cuidados
de parentes80.
76
Apresenta-se, a título de informação, a grafia do nome de Euclides da Cunha como era na ocasião do seu
nascimento, mas, no decorrer do trabalho utiliza-se a grafia contemporânea. De fato, nas transcrições de
documentos do final do séc. XIX e do início do XX optou-se por verter a grafia contemporânea, a fim de facilitar
a leitura.
77
Desde 1943 o distrito leva o nome de Euclidelândia, em homenagem ao ilustre filho (DOLZAN, 2016).
78
Nas fazendas de café que então tomavam o Vale do Paraíba (ABREU, 1998).
79
O pesquisador Antenor da Silva Ferreira destaca que, dos aspectos na trajetória pessoal de Euclides, a orfandade
é fator preponderante para o resultado de seu engajamento social e político. Segundo ele, tamanha perda foi de
grande influência para a "personalidade quixotesca” de Cunha, com sua propensão a tomar a defesa dos oprimidos.
(FERREIRA, 2019, p. 17).
80
A partir de 1869 em Petrópolis (RJ), com os tios maternos Rosinda e Urbano Gouveia e, com a morte de Rosinda
em 1871, sob os cuidados dos tios maternos Laura e Cândido José de Magalhães Garcez em São Fidelis - RJ. Além
disso, em 1877 passou um breve período com a avó paterna em Salvador - BA (VENTURA, 2003)
53
Imagem 3. Manoel Pimenta da Cunha, pai de Imagem 4. Eudóxia Alves Moreira, mãe
Euclides. Foto seu autor e sem data. Fonte: de Euclides. Foto seu autor e sem data.
Reprodução Cadernos da Literatura Brasileira. Fonte: Reprodução Cadernos da
Literatura Brasileira.
Imagem 5. Euclides da Cunha aos 10 anos de Imagem 6. Euclides da Cunha aos 25 anos de
idade. Foto seu autor e sem data. Fonte: idade. Foto seu autor e sem data. Fonte: Museu
Reprodução Cadernos da Literatura da República.
Brasileira..
Voltou ao Rio para estudar, em 187981, e adulto se fez em um tempo onde muito
mudava, e mudava rápido. Durante o seu breve período de vida - morreu aos 43 anos em 15 de
agosto de 1909 - o Brasil passou por grandes mudanças e também permaneceu o mesmo:
abolida a escravidão, proclamada a República, exilado o Imperador, fortalecido o exército; os
costumes e ideais que construíram o regime republicano tinham, muitas vezes, as mesmas
81
Nessa ocasião Euclides foi acolhido pelo tio paterno, Antônio Pimenta da Cunha.
54
aspirações daqueles que costumavam manter a monarquia. É muito querido e sempre repetido
entre os estudiosos desse período um trecho da obra Esaú e Jacó, de Machado de Assis, no qual
o Conselheiro Aires traduziu bem essa realidade ao declarar que, com a República, “nada se
mudaria; o regime, sim, era possível (mudar), mas também se muda de roupa sem trocar de
pele” (ASSIS, 2012, p. 71).
Olímpio de Souza Andrade (2002), autor de diversas publicações relacionadas à vida e
obra de Euclides, dizia que o autor era filho da roça, tocado pela natureza quando viveu no Vale
do Paraíba. Nesse ponto, cabe lembrar a observação de Nelson Werneck Sodré (1959) sobre a
família de Euclides: o seu pai era guarda-livros, e o seu avô paterno comprava e vendia africanos
escravizados, o que acabou por colocar Cunha em uma situação peculiar: conhecedor tanto da
crescente classe média, na qual as reformas da Abolição e da República ecoavam, e também do
meio rural que a essas mesmas mudanças fortemente resistia.
Mas é fato que do tempo vivido entre fazendas, Euclides da Cunha levaria o gosto pela
vida do campo. Oswaldo Galotti, reconhecido euclidianista, ao desenvolver argumentos sobre
o que ele chamou de “o sentido da vida de Euclides da Cunha”, apontou seis áreas chave que
trariam as respostas para essa indagação. A primeira delas? “[...] o primeiro aspecto que
impressiona em Euclides é a valorização que ele dá à natureza”. (GALVÃO, 2009b, p. 29). O
pesquisador Helder Silva Lima (2013) trouxe a lume as percepções de dois importantes
biógrafos de Euclides da Cunha – além do próprio Olímpio, Roberto Ventura – para explicar a
importância desse passado rural da formação e na vida do escritor. Lima lembrou que essa
dicotomia campo cidade, serra e rua, marca contrastes entre a infância e a vida adulta de Cunha,
e que o campo seria “[...] uma fase infantil que retornaria como lembrança longínqua de uma
amena natureza, que se contraporia à turbamulta urbana e a dureza da vida adulta”. E o
pesquisador segue, apontando que “mais do que um dado biográfico é a indicação de uma
condição social” (LIMA, 2013, p. 27-28), naquele período de considerável crescimento da vida
urbana e consequentes modificações da sociedade, com a chegada de nova mão de obra do
campo, de nova mão de obra do exterior, a absorção dos negros, agora não mais escravizados,
como mão de obra remunerada e os novos (antigos) papéis das classes superiores, donas do
dinheiro e do poder político.
Mesmo com a memória do campo foi na cidade que Euclides buscou o futuro e ergueu
seu conhecimento entre nomes atuantes do nascente regime republicano, e esse aspecto é muito
importante, porque se a obra de Cunha for considerada sem a sua passagem pela Escola Militar,
a sua compreensão será parcial (GALVÃO, 2010). Em que pesem a sua dificuldade de
pertencimento ou o seu aparente desinteresse pelos desdobramentos da vida na caserna, é nesse
55
contexto que a sua educação se desenvolve, é ali que Euclides aprende a pensar o mundo, e,
enquanto autor, constrói sua carreira de escritor sempre analisando e argumentando acerca da
República, ponto central em sua obra, seja nos livros que escreve (aspectos da República são
analisados não só em Os sertões, de 1902, mas também em Contrastes e confrontos,
inicialmente publicado em 1907 e em Á margem da história, que é de 1909, por exemplo), seja
na sua atuação como repórter: ele não só testemunhou os primeiros rumos do regime que lutou
para fundar, mas também o traduziu, e por causa disso alcançou a fama.
Aos 17 anos, no ano de 1883, ingressou no Colégio Aquino82. Ali, aliás, teve a sua
primeira experiência jornalística, atuando no jornal O Democrata ao lado de colegas (PONTES,
1938). Foi a ocasião na qual conheceu um de seus mais influentes e importantes mestres,
Benjamin Constant, que foi seu professor de matemática.
Dois anos depois, em 1885, passou a fazer parte da Escola Politécnica do Largo de São
Francisco (RJ). No ano seguinte, em 26 de fevereiro de 1886, aos vinte anos de idade, sentou
praça na Escola Militar da Praia Vermelha (RJ). A mudança era provavelmente um reflexo de
dificuldades financeiras. Manter um filho estudando na capital custava caro e como aluno da
Politécnica ele só gerava despesas, na Escola Militar, Euclides mantinha o acesso aos estudos
e recebia um pequeno soldo, além de alojamento e comida83.Os alunos da Escola Militar eram,
em sua maioria, advindos de famílias militares e famílias de poucas posses (CARVALHO,
2017), e também começavam a vir da nascente pequena burguesia84 urbana brasileira
(GALVÃO, 2010). Enquanto isso, os filhos dos ricos e poderosos preferiam os cursos de direito,
tanto o de Olinda quanto o de São Paulo.
Na Escola Militar havia a valorização da ciência. Castro (2000, p. 8) lembra o nome
pelo qual a escola era conhecida entre seus alunos, “Tabernáculo da Ciência”. O próprio
Euclides (apud CASTRO, 2000, p. 10) fez uso de sua pena para uma crítica explicita, “triste
quadro das nossas academias de direito, onde estuda-se a sociedade sem as noções das mais
82
Quando chegou ao Rio, foi matriculado no Colégio Anglo Americano, e saiu-se muito bem nos primeiros exames
da Instrução Pública, porque já tinha boa base do Colégio Caldeira, em Teresópolis. Nesses primeiros tempos de
capital ainda passou pelo Colégio Vitório da Costa e o Menezes Vieira (PONTES, 1938). O Colégio Aquino, por
sua vez, era conhecido por ser bom preparatório para ingresso no curso de Engenharia (VENTURA, 2003).
83
Ao longo do período imperial brasileiro, a Escola Militar era o único estabelecimento de ensino superior gratuito
(além de efetivamente gratuito pagava soldo aos alunos), tornando-se, assim, uma possibilidade de ascensão social
para os jovens vindos de famílias pobres (CASTRO, 2000).
84
Ao longo das décadas vitorianas (1837-1901) o nome “burguês” é ao mesmo tempo um termo de reprovação e
uma fonte de auto respeito, de um grupo que insiste em não ser parte do proletariado. Quando da ascensão da
Rainha Vitória ao trono britânico em 1837, a burguesia é uma classe social distinta, com uma importância crescente
na produção não só da riqueza, mas também no espaço da política e na formação de novos hábitos sociais. (GAY,
1999). Segundo Andrade (2013), desde 1870, a partir da França, essa visão de mundo burguesa se espalha:
chegando a Portugal e ao Brasil, guardadas suas especificidades.
56
simples leis naturais”. Ou seja, esse cientificismo também era, de certa forma, uma ferramenta
de oposição aos bacharéis que vinham de Olinda e do Largo de São Francisco paulista, filhos
da elite e com acesso praticamente garantido a cargos e funções públicas, o que os jovens
aspirantes militares viam como uma discriminação do estado monárquico - que beneficiava esse
grupo que o sustentava (CASTRO, 2000).
Os estudantes da Praia Vermelha viam na sua trajetória acadêmica a aquisição do
merecimento para galgar degraus mais altos – o cientificismo positivista proclamado por
professores como o já citado Benjamin Constant encontrava eco constante entre eles. Ali, aluno
do curso de Estado Maior e Engenharia Militar, Euclides teve como colegas, entre outros,
Cândido Rondon85 e Tasso Fragoso86, dois grandes nomes da história militar do Brasil, uma
geração ensinada em meio a um intenso ativismo político (republicano):
A geração da Escola Militar a que pertenceu Euclides é aquela que vai viver
em cheio a renovação de todas as ideias. Religião católica, instituições
monárquicas, escravidão, prestígio da grande propriedade rural, ecletismo
filosófico e espiritualismo, romantismo artístico-literário, tudo isso será
levado de roldão por “um bando de ideias novas”. (GALVÃO, 2010, p. 14)
Cunha, segundo seu colega Escragnolle Dória87, era pessoa sujeita a oscilações bruscas
de ânimo e humor (VENTURA, 2003). O jovem Euclides parecia se aborrecer com certa
facilidade com seus colegas; em notas feitas justamente na época em que era aluno na Praia
Vermelha, ele comiserou, “ não amanheci bom, amolei-me cedo com um colega – que tem a
85
Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon (Santo Antônio do Leverger-MT 1865 – 1958 Rio de Janeiro-RJ)
fez sua formação na Escola Militar da Praia Vermelha, quando começou a atuar no movimento republicano. Atuou
como professor na escola que o formou e liderou grupos pelo interior do Brasil, atuando na instalação de telégrafos,
ocasiões nas quais passou a manter contato com povos indígenas. Liderou expedições científicas e de
reconhecimento do território que se estende do Mato Grosso à Amazônia, bem como presidiu a delegação brasileira
que mediou as negociações entre Bolívia e Peru, em torno da disputa pelo controle do porto de Letícia. Foi
presidente do Conselho Nacional de Proteção ao Índio e teve o território de Guaporé rebatizado como Rondônia
em sua homenagem. (Informações disponíveis em https://cpdoc.fgv.br. Acesso em 02 fev 2019).
86
(Coronel) Augusto Tasso Fragoso (São Luís-MA 1869- 1945 Rio de Janeiro-RJ) ingressou na vida militar na
Escola Militar da Praia Vermelha no momento da transição da Monarquia para a República, de cuja proclamação
participou ativamente. Frequentou os cursos de Estado-Maior e Engenharia da Escola Superior de Guerra,
bacharelando-se em Matemática e Ciências Físicas e Naturais. Seguiu a carreira militar e sempre se dedicou à vida
pública, embora tenha se recusado a exercer o mandato de deputado constituinte para o qual se elegeu em 1890.
Participou da repressão à Revolta da Armada (1893-1894), serviu na comissão de limites com a Bolívia (1900-
1901), ocupou a chefia da Casa Militar do presidente Venceslau Brás (1914-1917). Foi encarregado do inquérito
que apurou a responsabilidade dos tenentes Eduardo Gomes e Antônio de Siqueira Campos no episódio conhecido
como "os 18 do Forte", ocorrido em 1922. Chefiou o Estado-Maior do Exército (1922-1929) e foi nomeado
ministro do Supremo Tribunal Militar (STM). (Conforme informações disponíveis em https://cpdoc.fgv.br. Acesso
em 10 jan 2019).
87
Cunha e Doria estudam juntos tanto no Colégio Aquino quanto na Escola Militar da Praia Vermelha. Luís Gastão
d'Escragnolle Dória, bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais (1890), atuou como colaborador da Folha da Tarde,
da Gazeta de Notícias, foi redator de debates do Senado Federal, professor de História do Brasil no Colégio Pedro
II e membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. (Conforme informações disponíveis em
https://tinyurl.com/2bhupc5d. Acesso em 25 jan 2021).
57
propriedade de irritar sempre o meu gênio mau e irascível” e reconheceu a própria reação difícil,
“levantei-me até disposto (valha a verdade) a expandir o meu mau humor numa tourada,
dominei-me, porém” (CUNHA apud VENTURA, 2003, p. 65). Cunha tinha assim,
aparentemente, alguma dificuldade em ir ao encontro a um ideal da virilidade que ganhou força
com a modernidade: o cultivo do controle como máxima88 (VIGARELLO, 2013). Mas, nesse
ponto ele ironicamente contou com o exército que, ao moldar a sua identidade89 e construir o
seu conhecimento formal, também colocou limites no conhecido temperamento volátil, ao fazê-
lo se adaptar a regras, horários e hierarquia, mesmo que a grande custo, como ele mesmo
contou:
Dominar-me! Este trabalho de Hércules que a minha consciência a todo
instante impõe-me, constitui aqui – às vezes – meu único esforço durante dias
seguidos; é uma luta cruel que sempre reflete em meus estudos uma
perturbação bastante sensível![...]. Pois que para mim dominar a violência é o
mais difícil e mais perigoso que subjugar um touro. (CUNHA apud
VENTURA, 2003, p. 65).
Imagem 7. Euclides da Cunha, na primeira fila, o quinto à direita, perfilado junto a colegas, em
cerimônia na Escola Militar. Foto sem autor e sem data. Fonte: PONTES, 1938.
88
De fato, os vitorianos, por exemplo, consideravam o autocontrole essencial para a formação de um bom caráter
(GAY, 1999). Vide p. 47/48.
89
Salutar a lição de Castells (1998) ao nos lembrar que por serem as identidades o fruto de significados e
experiências de um povo/indivíduo, devem ser observadas na relação com o contexto de sua formação e atuação.
58
90
José Murilo de Carvalho (2017, p. 137) o chama de republicano rubro.
91
Celso Castro (2000) defende que essa mocidade militar tem, de fato, o protagonismo desses acontecimentos.
92
Disponível em https://tinyurl.com/mr7t4h2s. Acesso em 09 out 2020.
59
O aluno exaltado era Euclides da Cunha, e o seu gesto lhe rendeu um recolhimento ao
hospital para observação, “por parecer sofrer das faculdades mentais” (GAZETA DE
NOTÍCIAS, 5 nov. 1886). Andrade (2009, p. 19) alega que, após o imbróglio, recolhido ao
Hospital do Castelo, de lá saiu com “um atestado de louco” que o excluiu das fileiras militares.
Sena (2003), no que lhe concerne, esclarece um pouco mais a situação ao informar que, após
jogar o sabre aos pés do Ministro de Guerra, Euclides foi levado à Fortaleza de São João e,
então para o Hospital Militar do Castelo onde foi constatado um “esgotamento nervoso por
excesso de estudo”, passando Cunha então a aguardar um julgamento por Conselho de Guerra
que ao final nunca aconteceu, sendo a sua matrícula cancelada aquele dezembro93, o que, como
lembra Ventura (1996), era melhor que a alternativa apresentada pelo Código Penal Militar: a
pena de enforcamento.
Expulso da Praia Vermelha, Euclides parte então para São Paulo e é aí que começa a
sua vida de jornalista e escritor junto ao jornal A Província de São Paulo a convite de Júlio de
Mesquita94, onde estreia escrevendo artigos defendendo a República e criticando a Monarquia
e a Família Real brasileira. Retorna ao Rio de Janeiro no ano de 1889 e, sem deixar de atuar na
imprensa, com a chegada da República, é reintegrado ao Exército e retoma a vida na Escola
93
Elói Pontes conta que tanto o tio, Antônio, quanto o pai, Manoel, apoiam Euclides. Que seu pai até mesmo
consegue uma audiência do Imperador e sai de lá com a notícia de que o filho teria baixa sumária do Exército
(PONTES, 1938, p. 83).
94
Filho de portugueses, passa parte da infância no país europeu, onde inicia seus estudos. Contudo, bacharela-se
em Direito no Brasil. Pouco milita na área, dedica-se ao jornalismo e à política ao longo de sua vida adulta,
crescendo com o regime republicano brasileiro, o qual apoia. Trabalha no jornal Província de São Paulo alguns
anos até tornar-se sócio da empresa e, então, proprietário do jornal que viria a se chamar O Estado de São Paulo.
O convite para Cunha cobrir a Guerra de Canudos é benéfico ao jornal de Mesquita, que vê a tiragem do periódico
saltar para 18 mil exemplares diários, em razão do interesse do público pelo conflito. (De acordo com informações
constantes de http://cpdoc.fgv.br. Acesso em 24 mar 2020).
60
Militar. Parece um paradoxo o fato de Euclides, tão reticente quanto aos ideais militares95, tenha
perseverado em seus estudos e chegado a alcançar a patente de segundo tenente, mas o próprio
histórico da sua escola ajuda a entender isso. Vê-se que a figura do bacharel fardado é a perfeita
tradução da posição de Euclides, que renega a profissão militar, mas tem orgulho da escola96
que frequentou:
Por aqui se compreende por que Euclides da Cunha – que mostraria
constrangimento em se declarar militar – viria a ostentar em seu cartão de
visitas não a patente de tenente do Exército, nem o grau de engenheiro militar,
mas o título de bacharel em Matemática, Ciências Físicas e Naturais a que
tinha direito. (GALVÃO, 2009, p. 20).
Apesar da sua formação e embora tenha se casado97 em 1890 com Ana Emília, filha do
(então) Major Sólon Ribeiro, nome importante da incipiente República, Cunha não se furtou
em criticar o regime ao qual escolhera servir, ele passou “da militância pela República à
descrença com os rumos do novo regime” (VENTURA, 1996, p. 27). Em um período de tempo
de cerca de 10 anos, considerando-se o início de seus estudos militares e a cobertura de
Canudos, mostrou-se apartado daquela República estabelecida no Brasil98. É possível entrever
nas inúmeras análises acerca de Os Sertões o amadurecimento das visões de Cunha sobre o
regime que o formou:
Euclides teria evoluído de um determinismo racial e psicológico, patente em
Os Sertões para uma forma de dialética socioeconômica cujo melhor
testemunho se acharia nas páginas de ‘Um Velho Problema’ [...] delineia a
posição madura de Euclides: ironiza as utopias igualitárias do Renascimento
e do Iluminismo, história e ascensão da burguesia pela Revolução Francesa,
rejeita por fantasias os princípios de Proudhon, Fourier e Louis Blanc [...]
(BOSI, 2015, p. 332).
95
De fato, ele se considerava “moralmente incompatível” com a vida militar (CARVALHO, 2017, p. 136).
96
Galvão (2009, p. 20) aponta que “o caráter heterodoxo da escola – um centro de altos estudos de matemática e
ciências, de modelo revolucionário francês, perdido numa remota colônia tropical – conferiu-lhe enorme
prestígio”.
97
Cunha, em carta a pai, ao tempo em que anuncia seu matrimônio critica seu antigo mestre (e amigo) Benjamin
Constant. (CUNHA apud VENTURA, 2003).
98
Euclides se decepciona com os rumos republicanos, e deles se aparta, mas a sua ligação com o regime cuja
narrativa ajudou a construir o acompanhou até o fim. Morto o escritor, em voto de pesar exarado no Senado, vê-
se que de Cunha o senador João Luiz destacou a tradição republicana, visão corroborada pelo também senador
Quintino Bocaíuva, ele próprio nome maiúsculo da jovem república brasileira, que disse: “O requerimento do
honrado senador pelo Espírito Santo, pedindo a expressão de um voto de pesar, pelo falecimento do Dr. Euclides
Cunha, corresponde, creio, ao sentimento geral da Nação, que via nesse moço uma das glórias mais legítimas da
geração atual, assinalada não só pelos serviços prestados à República, como por produção de alto engenho
literário”. (O PAIZ, 17 ago 1909).
61
da estrutura social, por exemplo, bem distante das mudanças prometidas pela propaganda
republicana.
Por certo que Euclides tornou claras suas discordâncias desde o governo de Deodoro da
Fonseca, especialmente quando, promulgada a Constituição de 1891, Deodoro fecha o
Congresso após a recusa dos deputados em aprovar um pedido de emissão de moedas. Diante
da especulação financeira desencadeada pela política do Encilhamento99, notícias de corrupção
na administração de Deodoro, bem como sinais de nepotismo, Euclides, insatisfeito, chega a
participar de reuniões do grupo de militares que apoiam Floriano Peixoto (COSTA, 2017). Mas
nem esse apoio vai perseverar. Em 1893, no calor da Revolta da Armada100, escreveu para a
Gazeta de Notícias indignado com a sugestão de um senador para que se dinamitasse o cárcere
que acolhia os revoltosos. Cunha apontou uma “revivescência do barbarismo” e clamou pela
“serenidade vingadora das leis” (CUNHA apud GALVÃO, 2010, p. 16). Enfurece jacobinos e
Floriano Peixoto, e acaba despachado para construir um quartel no interior de Minas Gerais.
Por fim, em 1895 Euclides deixa o Exército e abraça a vida civil, tornando-se funcionário da
Superintendência de Obras Públicas do Estado de São Paulo.
Cunha deixou o Exército ainda jovem, mas a influência desses anos na formação do
pensamento do autor não deve ser diminuída, como ressalva José Murilo de Carvalho (2017).
Seja porque a formação que recebeu na escola militar foi instrumental para a compreensão que
ele teve de Canudos, seja pelos instrumentos que a Escola lhe deu para a sua vida civil, seja
pela convivência de uma vida toda com militares, desde seu ilustre sogro até Dilermando, além
das pessoas em seus principais postos de trabalho, tanto em Canudos quanto no Alto Purus. De
outra parte, além dessa convivência com os militares, é importante lembrar a espécie de laço
que os unira nesses anos, “os oficiais brasileiros não juravam obediência à Constituição, e sim
a seus superiores, de modo que os laços pessoais tinham papel importante”, ou seja, reforçavam
uma organização “acentuadamente paternalista, influenciado pelas ligações pessoais de
amizade” (MC CANN, 2007, p. 373).
99
Nos primeiros anos da República, a criação e negociação de ações de novas companhias na Bolsa de Valores
(RJ) criou uma atitude de euforia especulativa, e a atuação de Rui Barbosa como Ministro da Fazenda, autorizando
a emissão de moedas e a liberação de crédito, buscando incentivar a industrialização e estimular a atividade
econômica, desencadeou uma crise financeira com crises no câmbio, nos bancos e nas finanças públicas
(JOFFILY, 2016).
100
Unidades da Marinha (então chamada de Armada) em desacordo com as atitudes ditatoriais de Deodoro e
Floriano, especialmente o fechamento do Congresso em 1891, iniciam um movimento contrário a esses governos,
entre setembro de 1893 e março de 1894, exigindo a convocação de eleições. Espalhou-se para o sul do país, onde
também acontecia a Revolução Federalista. Mas, sem apoio, o movimento foi duramente sufocado por Floriano
Peixoto (JOFFILY, 2016).
62
O fato é que o exército esteve sempre, de alguma forma, envolvido nos grandes
momentos e nas grandes decisões da vida de Euclides, esse homem “fora do lugar”
(CARVALHO, 2009b), militar sem disciplina e sem interesse na guerra, um engenheiro preso
a um mundo que não lhe despertava maior ânimo e tampouco auxiliava sua criatividade, um
homem da cidade101 que sonhava com a natureza em seus extremos - o sertão e a floresta.
Ventura (2003, p. 47) completou esse raciocínio ao apontar que “Euclides se sentia desajustado
no mundo urbano e civilizado, em que a beleza e a moral se degradavam [...]”.
Apesar de Euclides não ser forjado para a vida militar (VENTURA, 1996), sua decisão
aparentemente não alegrou a esposa102, que teria dito que Euclides deixara a melhor profissão
do Brasil, o exército, “somente porque andou desgostoso com alguns camaradas e o governo”
(BRANDÃO, 1990, p. 13). Tampouco agradou ao sogro, para quem o genro também estaria
deixando a melhor profissão do país (GALVÃO E GALOTTI, 1997). Apesar do
descontentamento em família, ele abraçou a vida civil e embarcou na carreira de Engenheiro,
além de seguir seus caminhos no jornalismo, o que o levou a Canudos e, em última instância, à
fama literária. Esta chegaria não sem uma certa amargura, que coloria a sua perene sensação de
não pertencer a qualquer lugar, como explicitou Roberto Ventura ao apontar que Euclides
deixara, então, “de ser um ‘engenheiro-letrado’, cujo aspecto dúbio, meio profissional e meio
artista, o fazia se sentir um ‘intruso em todas as carreiras’” (VENTURA, 2019, p. 25).
Nesses primeiros anos de matrimônio Euclides e Ana começaram a construir sua
família: em 1891, ano no qual requereu uma licença médica e passou, com Ana, um longo
período na fazenda do pai, Eudóxia nasceu para viver poucos meses. Em 1892, mesmo ano em
que concluiu o curso na Escola Superior de Guerra e foi promovido a tenente e designado
trabalhar na Estrada de Ferro Central do Brasil, nasceu Sólon. Em 1894, chegou Euclides Filho,
o Quidinho. Em 1897 Euclides, como correspondente d´O Estado de São Paulo, partiu para o
sertão da Bahia a fim de cobrir o conflito em Canudos – lá ele chegou com a quarta expedição
militar.
101
Euclides, por exemplo, era um crítico ácido dos melhoramentos aos quais a cidade do Rio de Janeiro foi
submetida ao longo dos primeiros anos do séc. XX. Brito Broca fala desse incômodo: “o remodelamento do Rio,
a mentalidade arrivista que daí surgia, tudo era de molde a irritá-lo. Não podia suportar aqueles arremedas de
civilização européia. Em carta de 12 de fevereiro de 1908 a Francisco Escobar, convidando-o para uma visita ao
Rio dizia: ‘Admirarás os célebres melhoramentos. Fulminaremos, juntos, o pioramento dos homens. Daremos
pasto à nossa velha ironia ansiosa por enterrar-se nos cachaços gordos de alguns felizes malandros que andam por
aí fimfonando desabaladamente, de automóvel, ameaçando atropelar-nos a nós outros, pobres altivos diabos que
teimamos em andar nesta vida, dignamente, pelo nosso pé’”. (BRITO BROCA, 2005, p. 134).
102
Brandão (p. 13) transcreve carta que, segundo ele, teria sido escrita por Ana, na qual se afirma “Sempre tive
adoração pela farda! ”.
63
103
Os correspondentes em Canudos eram todos ligados ao serviço militar de alguma forma. Euclides até lá chega
na condição de Tenente reformado (GALVÃO, 1977).
104
José Murilo de Carvalho (2017, p. 137) aponta que Euclides “até 1897, isto é, até a experiência de Canudos,
mantém a crença na República como valor e princípio, mas já aliada à descrença em seus representantes. ”
105
E levou Cassiano Ricardo a chama-lo de bandeirante. Em Marcha para Oeste, ele fala sobre a mobilização de
intelectuais para bandeirar, querendo tratar da criação do Brasil e da defesa de sua cultura, de um novo tipo de
civilização, ´duas atitudes da mentalidade brasileira: uma, preocupada com os problemas do nosso hinterland;
outra, sofrendo a "hemiplegia do litoral´. Euclides e Machado de Assis seriam, para mim, os representantes típicos
dessas duas tendências contrárias. Achei que a nova marcha para o oeste — agora transposta para outro horizonte
cultural — tinha que levar consigo, como roteiro, a obra do bravio escritor d´'Os sertões” (RICARDO, 2009, p.
165) O próprio Euclides, do Alto Purus, se intitula um “bandeirante”, em carta a Alberto Rangel (PONTES, 1938,
p. 314).
106
Euclides da Cunha escreveu grande parte d´Os Sertões enquanto trabalhava na construção da ponte, entre os
anos de 1898 e 1901. Ana, no entanto, insistia que o marido jamais escrevera naquele local (COSTA, 2002;
ANDRADE, 2009).
64
seu editor, Gustavo Massow, da editora Laemmert. A primeira missiva era um lamento diante
do fracasso das primeiras vendas107. A segunda trouxe melhores notícias: com recortes de jornal
trazia relatos do enorme sucesso do livro, que vendera em 08 dias metade da primeira edição –
quase mil exemplares. Euclides da Cunha dormiu obscuro e acordou célebre, nos dizeres de
Silvio Romero108 (FOLHA, 2014), mas não escapou das críticas: em um artigo para o Correio
da Manhã, por exemplo, José Veríssimo trazia elogios à obra, mas condenava o uso exagerado
de termos técnicos e palavras antigas109, além de considerar o seu tom “artificial e rebuscado”110
(VENTURA, 2003).
Diante do sucesso literário, Euclides almejou conciliar a literatura com a sua carreira de
engenheiro. São três edições de Os Sertões entre os anos de 1902 e 1905, e a obra é um grande
êxito editorial até hoje, com mais de cinquenta edições publicadas (VENTURA, 2003). No ano
de 1903, aos 37 anos, alcançou êxitos como tornar-se membro do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro (IHGB) e ser eleito para a Academia Brasileira de Letras (ABL). A
chegada de Euclides na ABL é realmente algo digno de nota, especialmente se consideramos
sua pouca idade – não chegara aos 40 anos, e o fato de que ele não se dedicava à sua produção
literária de forma exclusiva, ao contrário. Em carta a José Veríssimo111, datada de 04 jul 1903,
período anterior à sua nomeação para a ABL, Euclides pondera, “peço-lhe porém que se recorde
de minha situação de engenheiro errante[...] sem tempo de cuidar dos meus próprios interesses”
107
Euclides leu a boa notícia primeiro, abriu a primeira carta por último (VENTURA, 2003), e disse que teria se
matado caso tivesse lido as missivas na ordem correta (COSTA, 2002).
108
Sílvio Romero (1851-1914), crítico, ensaísta, folclorista, polemista, professor e historiador da literatura
brasileira, fundador da cadeira nº 17 da ABL, cujo patrono é Hipólito da Costa. Atuante e influente na imprensa,
foi pesquisador bibliográfico sério e minucioso. (Conforme informações do site da ABL. Disponível em
encurtador.com.br/gwFH6. Acesso em 18 jun 2019).
109
Acerca da gramática de Os Sertões, Antônio Houaiss (GALVÃO, 2009b, p. 43-45) argumenta, “Euclides da
Cunha não conhecia a gramática, mas praticava a gramática. Ele não conhecia a língua teoricamente, na base dos
gramáticos, mas conhecia o ambiente de crítica linguística que existia no tempo. Tanto assim que ele não só soube
superá-lo na prática: Euclides da Cunha é um usuário tremendamente forte da língua portuguesa. É um decisor de
língua. É um homem capaz de, por sua opção, saber se aquilo vale ou não vale”. Walnice Galvão reverbera que
“Os sertões é um discurso na clave que eu chamo de retórica do excesso, porque é grandiloquente. Mesmo na
época já era um pouco arcaizante, retrógrado. Já havia Machado de Assis, que é mais enxuto, no qual há uma
estética do depuramento, do despojamento, ao passo que em Euclides há excesso: ele vai acumulando as
expressões, os pleonasmos... Ele próprio corrigiu pleonasmos nas várias edições, porque sua tendência natural era
escrever "progrediu para adiante" etc, Ele não aguenta, sua índole é pleonástica” (GALVÃO, 2009c, p. 10).
110
A jornalista Cecília Costa, ao consultar a Coleção Euclides da Cunha, da Seção de Manuscritos da Biblioteca
Nacional, verifica que Euclides copiava trechos inteiros do dicionário (no caso, o Caldas Aulete) e então
transpunha as descobertas para os seus manuscritos de Os Sertões, levando-a a atestar que o “vocabulário de
Euclides da Cunha, portanto, tinha uma característica a bem dizer artificial. Empregava palavras que não usaria
habitualmente, procurava signos a esmo, de preferência os mais rebuscados, gongóricos, barrocos, retorcidos”
(COSTA, 2009, p. 127).
111
José Veríssimo (1857-1916), jornalista, professor, educador, crítico e historiador literário, fundador da cadeira
nº 18 da ABL, cujo patrono é João Francisco Lisboa. Sua obra abrange estudos sociológicos, históricos e
econômicos sobre a Amazônia, além de história e crítica literárias. Veríssimo forma, com Araripe Júnior e Sílvio
Romero, a trindade crítica da era naturalista. (Conforme informações do site da ABL. Disponível em
https://tinyurl.com/2p95ts9v. Acesso em 20 jun 2019).
65
e mostra o que vê como desvantagem em relação a outros possíveis eleitos para a cadeira, “os
outros candidatos, mais folgados e num outro meio, tem elementos práticos de sucesso que eu
não posso ter” (VENÂNCIO FILHO, 2001).
Ainda que o seu tempo de produção literária tenha sido curto, ele deixou uma produção
que refletiu sua formação científica, “um homem de ciência, um geógrafo, um geólogo, um
etnólogo, de um homem de pensamento, um filósofo, um sociólogo, um historiador e de um
homem de sentimento, um poeta, um romancista” (SOUZA, 2010, p. 38), seu interesse pela
natureza e a sua própria carreira de engenheiro e jornalista, que o levou a Amazônia e a
Canudos, por exemplo. A obra de Cunha, especialmente Os Sertões112, é basilar do estudo das
ciências sociais no Brasil (FERNANDES, 1977, p. 35). Uma de suas netas, Maria Auxiliadora,
o descreveu como um “indivíduo andante”, e viu nessa característica a sua força:
Aos três anos, quando ficou órfão de mãe, teve início as mudanças e as
peregrinações do meu avô por questões familiares. Depois, por devoção ao
trabalho e à pátria, ser um indivíduo-andante foi uma de suas maiores facetas.
Esteve em rincões do país, como o sertão baiano (atuando como
correspondente na Guerra de Canudos) e na região amazônica (em trabalhos
de demarcação de território e ações diplomáticas), experiências que o fizeram
enxergar os verdadeiros ‘Brasis’” (LIMA, 2021).
112
Walnice Nogueira Galvão destaca “a força e a qualidade literárias de Os sertões” as razões pelas quais, segundo
ela, a obra é uma obra prima, “sobrepondo-se aos aspectos historiográficos da narrativa”. (GALVÃO, 1998).
113
Não cabe aqui descer a detalhes, por não ser o objeto dessa tese, mas é importante atestar que existe uma
discussão acerca da posição positivista de Euclides da Cunha, bem como de uma visão evolucionista presente na
sua obra e que se perde em oposição à teoria de Comte (por exemplo, SOUZA, 2010).
66
não perdurou e Euclides acabou sendo posto em contato com o Barão do Rio Branco e foi aí
que ele passa a chefiar a comissão do Alto Purus114. As oscilações do mercado cafeeiro
influenciariam Euclides por toda a vida. Seu pai, Manoel, que ao longo da vida foi contador de
fazendas cafeeiras e fazendeiro produtor de café (VENTURA, 2008), passou por intensas
dificuldades financeiras no final do séc. XIX e Euclides desenvolveu toda sua vida profissional
“sob o manto protetor do Estado” (VENTURA, 2003, p. 33), fosse como militar, fosse como
servidor público (como Engenheiro, em diversos cargos e como professor de lógica no Colégio
Pedro II).
Imagem 8. Euclides, à frente ao centro, sem chapéu, cercado por membros da missão
de reconhecimento do Alto Purus. Foto sem autor e sem data. Fonte: ELUF, 2009.
Foi ao Amazonas não sem prejuízo à sua saúde: contraiu malária em Manaus e voltou a
apresentar sintomas de tuberculose na volta ao Rio de Janeiro, em janeiro de 1906, quando
encontrou Ana grávida. O menino, Mauro, que ele registrou como seu115, nasceu a termo no
114
Euclides precisava trabalhar. Era, afinal, responsável de uma família de muitos filhos. Elói Pontes, ao tempo
em que lembra que quando do sucesso de Os Sertões, em 1904, “as dificuldades financeiras ameaçavam-lhe a
existência” (PONTES, 1938, p. 207), conta a saga de Euclides em busca de um emprego que lhe aprouvesse mais
do que a Engenharia, “pensa num concurso para o Ginásio de Campinas, pensa candidatar-se à Escola Politécnica
de São Paulo [...] as iniciativas, entretanto, fracassam” (PONTES, 1938, p. 207). Empregado pela Comissão de
Saneamento de Santos, como Engenheiro, Cunha ali não dura muito, enfrenta conflitos com colegas e acaba por
se demitir (PONTES, 1938). Passa a buscar novo emprego freneticamente, escrevendo para jornais como O Paiz
e o Estado de São Paulo para sustentar a família (PONTES. 1938), até ser nomeado para a missão do Alto Purus
e partir para o Norte.
115
Uma das razões do adultério feminino ser tão combatido era a garantia da paternidade dos herdeiros. Vinculava-
se a honra do homem à idoneidade/pureza da mulher (também) porque a mulher que não trai sempre vai gerar
filhos do marido, seus legítimos herdeiros. A mulher que trai pode trazer para o seio da família filhos de outro
homem. E essa tradição vem do direito romano, uma vez que a filiação estava relacionada ao culto doméstico, “o
filho nascido de mulher não associada ao culto do esposo pela cerimônia do casamento, não podia, por si próprio,
tomar parte do culto. Não tinha o direito de oferecer o repasto fúnebre, e a família não se perpetuaria por seu
intermédio." (COULANGES, 2004, p. 87)
67
início de julho daquele mesmo ano, viveu 7 dias e morreu. Diante de prova física da traição que
Ana afirmou a Euclides ter sido espiritual116, poder-se-ia indagar por que Euclides registrou
Mauro e manteve o casamento. Havia a possibilidade de separação117, é verdade, mas esse não
era o espírito dos casamentos de então - um contrato celebrado até a morte de uma das partes.
De igual forma, a própria lei determinava que o filho era de Euclides, porque reconhecer a
possibilidade de uma criança nascida de um matrimônio ter outro pai que não o marido era
reconhecer a possibilidade da traição feminina, o que não era aceitável. Ao fim, a ponderação
de Göran Therborn lança alguma luz sobre o ocorrido:
A família está suspensa entre o sexo e o poder, como forças biológica e social.
Entretanto, seguramente, ela não é um porto seguro ou uma fuga do poder e
do sexo. A família é sempre um resultado das relações sexuais passadas ou
correntes: sem sexo não há família. Mas é um regulador das relações sexuais,
determinando quem pode e quem deve ou não ter relações sexuais com quem.
As relações de poder estão inscritas nos direitos e obrigações dos membros da
família (THERBORN, 2006, p. 12).
Há alguma discussão sobre o fato de que Euclides teria separado Ana e Mauro logo após
o parto, e a alegação de que a criança teria morrido de inanição e sido enterrada no quintal da
casa. Judith apresenta essa versão em seu depoimento (ANDRADE, 2009) e Tostes refuta a
informação ao falar a Adelino Brandão (1990), alegando que Mauro teria falecido em razão de
uma debilidade congênita, conforme reprodução do que ele alega ser da certidão de óbito do
menino e a certidão de sepultamento no cemitério. Efetivamente, além do declarado por
Judith118 não há qualquer razão para crer que Euclides tivesse qualquer relação com a morte de
Mauro. Neste mesmo ano cheio de tantas tensões familiares, o escritor toma posse na ABL. No
ano seguinte, 1907, Cunha publica Contrastes e Confrontos, Peru versus Bolívia e registra o
nascimento de Luís, mais uma criança que não era sua biologicamente119.
116
Ela afirmou o encanto com Dilermando, mas garantiu ter preservado o corpo – e Euclides aparentemente, após
ouvir que a profanação tinha sido espiritual e não carnal, aceitou a explicação (GALVÃO, 2009).
117
Embora não fosse encorajada ou facilitada, a separação de casais, de diferentes formas, era possível desde os
tempos da colônia, por meio do Tribunal Eclesiástico. O desquite foi instituído apenas em 1942, e rompia a
sociedade conjugal, ou seja, não havia dever de coabitar ou de fidelidade recíproca, mas o vínculo matrimonial era
mantido, pondo fim aos deveres de coabitação e de fidelidade recíproca e ao regime de bens, mas mantendo
incólume o vínculo matrimonial. O princípio da indissolubilidade do vínculo matrimonial só encontra fim com a
Lei do Divórcio, em 1977 (GOMES, 2012).
118
Judith alegou que reproduziu o que a mãe lhe contou (ANDRADE, 2009).
119
É sempre repetida (por exemplo, ANDRADE, 2009) a história de que Euclides dizia ser Luís, loiro, uma espiga
de milho em meio ao cafezal - as outras crianças eram todas morenas. Em entrevista à Revista Diretrizes (1941),
Dilermando narrou ao jornalista Francisco Barbosa que recebeu em Porto Alegre a participação pelo nascimento
de Luís, que era, na verdade, seu filho. Adelino Brandão (1990) combate essa informação, insistindo que Luís era
sim filho biológico de Euclides, ancorado no fato de que Cunha registrou a criança como sua. Ana, em depoimento
ao juiz, conta que após a morte de Mauro escreveu a Dilermando, “pedindo-lhe que viesse para esta cidade a fim
de ter com ele um novo filho” (GALVÃO, 2009, p. 129).
68
Ao longo dos anos, vê-se que Euclides se dedicou muito à carreira, com uma força e
fidelidade que não encontram par em nenhum outro campo de sua vida. Ana sempre se queixou
da falta de interesse do marido. Júlio Bueno, em crônica publicada no jornal O Muzambinho,
narrando a sua convivência com Euclides, observou:
[...] aquele Himalaia de patriotismo, de dedicação para os fracos, para os
oprimidos, para os pequeninos, para os infortunados, tinha uma caverna
escura; como Aquiles, o herói de Homero, tinha um ponto vulnerável; aquele
cultor apaixonado do dever tinha um senão: essa falha, esse ponto negro, essa
jaça, essa caverna escura, esse ponto vulnerável, esse senão, era o abandono
moral da companheira [...] (ANDRADE, 2009, p. 28).
Euclides da Cunha era um homem que andava na linha reta. Era fiel à sua honra e aos
seus compromissos, dedicado às responsabilidades, ao trabalho120. Ventura também se referiu
algumas vezes a essa linha reta para descrever a singeleza da alma do homem que “se sentia
desajustado no mundo urbano e civilizado, em que a beleza e a moral se degradavam,
ameaçando a linha reta da inteireza de caráter e do dever” (VENTURA, 2003, p. 47). A própria
Ana também fez uso dessa linha firme que o conduzia em carta transcrita na obra Águas da
Amargura, quando se lamenta que Euclides abandonara a carreira militar. Ela diz (BRANDÃO,
1990, p. 13): “Ele não tinha o direito de jogar assim [...] o nosso futuro, o da família, só para
ser fiel à inútil ‘linha reta’ que o pai lhe ensinou a seguir. Isso não é linha reta. É a linha do
suicídio”. Ana seguiu, enfática, na descrição do difícil temperamento de Euclides, “[...] ele faz
tudo até o esgotamento. Trabalha demais; lê demais; estuda demais; ama demais. Para quem
não o conhece, tudo nele parece ordenado e calmo. Mas seu ritmo de vida é alucinante”
(BRANDÃO, 1990, p. 13). O caminho na linha reta pode até ter sido um ensinamento paterno,
mas certamente foi reforçado pela educação militar de Euclides. Como lembra Castro (2004, p.
47), o militar caracterizava-se pelo senso de honestidade e “retidão” de caráter; a preocupação
com as causas “nobres e elevadas”.
A segunda metade do século XIX, com sua velocidade impressionante, suas novidades,
suas mudanças profundas, trouxe uma novidade complicada, uma doença do mundo moderno,
a neurastenia, cujos sintomas foram descritos pelo médico americano George Miller Beard 121,
que observou em muitos de seus pacientes a ocorrência constante de um mal estar muito
específico, uma espécie de esgotamento de nervos caracterizado por apresentar “uma família
120
Por exemplo, quando Euclides se gradua na Escola Militar, Floriano oferece a ele a escolha de qualquer posto
que queira. Euclides aceita o que previa a lei para o seu caso: um estágio na Estrada de Ferro Central do Brasil.
(VENTURA, 2002, p. 19).
121
O artigo pioneiro, chamado Neurasthenia, or nervous exhaustion (Neurastenia, ou exaustão nervosa), foi
publicado em 1896 no Boston Medical and Surgical Journal (Jornal Médico e Cirúrgico de Boston).
69
de distúrbios nervosos funcionais cada vez mais frequentes nas classes urbanas dos países
civilizados [...] encontradas em quase todos os lares intelectuais” (BLOM, 2015, p. 350).
Essa condição era consequência de muitas exigências pousadas nos ombros desses
homens pensantes que, além de tudo, enfrentavam uma enorme mudança no papel destinado às
mulheres naquela sociedade vertiginosa. Blom (2015, p. 357) é certeiro, apontando que “a
transformação do papel das mulheres representava mais uma pressão sobre os homens e suas
identidades”. É como lembra Gay (1999), o contraste entre masculinidade e feminilidade
também perpassava a preocupação em reafirmar a condição masculina em oposição direta à
feminina, como que para evitar qualquer traço de sensibilidade ou delicadeza no homem,
determinando-se aos homens uma série de comportamentos e papeis representativos de sua
masculinidade122.
O que aproxima essa condição dos homens da estirpe de Cunha, além de todas essas já
citadas, é o fato de que à época se observava que esse estado de nervosismo extremo era mais
visível entre os indivíduos que atuavam em trabalhos tecnológicos, como ferroviários e
engenheiros (o que era o caso de Euclides) e aqueles que exerciam importante papel na
economia que crescia muito e rápido, como empresários e administradores (BLOM, 2015).
Efetivamente, após a sua morte, Euclides, em meio a elogios meticulosos, é
explicitamente descrito como neurastênico pelo escritor mineiro Júlio Bueno (apud CIBELA,
1946) no já citado artigo do jornal O Muzambinho. Note-se que, nesse caso, o uso do termo
neurastenia não era derrogatório, mas tão apenas indicativo do estado dos nervos do falecido.
Naqueles tempos, a neurastenia era uma doença da qual se orgulhar, por demonstrar grande
atuação intelectual/física do enfermo, sinal de operosidade em uma sociedade que se construía
baseada nessas novas tecnologias e se civilizava com suas cidades, suas estruturas sociais que
se modificavam, com o progresso (DORSCH, 2014).
A valer, o temperamento difícil de Euclides é uma unanimidade, como já se viu também
ao longo desse capítulo. Nas incontáveis páginas já escritas sobre ele há diversas passagens, até
mesmo pela pena da própria família, que deixam claro que ele era homem dado a rompantes de
raiva, inclusive com a mulher e os filhos. O tio paterno, José Rodrigues Pimenta da Cunha, em
1905, escreveu-lhe uma longa missiva na qual reprovava o seu temperamento explosivo em
relação a sua equipe de trabalho no Alto Purus:
Um homem cujo talento é incontestavelmente elevado como o teu tem por
dever evitar as explosivas horas de seu temperamento, hipnotizando-se a si
122
Essa afirmação ainda fica mais clara no segundo capítulo, quando se observa as exigências de masculinidade e
virilidade que cercavam o homem do séc. XIX (e do início do séc. XX). Vide, ainda, a discussão da p. 48: ser
homem é não ser o que uma mulher era.
70
O pai do escritor, no mesmo ano, o repreendeu pela forma estranha como tratava a
família: “pensei que o trato que tens feito e sobre tudo os meus conselhos tivessem modificado
a tua maneira de viver, mas encontrei os mesmos destemperos, a mesma desordem de outrora”
(ANDRADE, 2009, p. 31). Outrossim, há registros que vão da insatisfação à rispidez, como se
vê em carta escrita por Euclides a um amigo, na qual o escritor desabafa “também por aqui
ainda a praga dos filhos. Nasceu mais um no dia 16 de novembro. Chamei-o Luiz, percorrendo
o calendário exausto” (DEL PRIORE, 2009, p. 106).
É verdade que quando Euclides se tornou pai não cabia a figura paterna preocupar-se
com os sentimentos123 de sua prole, mas, como em quase tudo quando nos focamos nesse
entresséculo, essa era uma ideia que começava a mudar. Moreira (2002) destaca que, no final
do séc. XIX, “o suposto ‘amor paterno’ era tido como um produto recente da civilização”. Os
homens do final do século XIX e início do século XX, em muito começavam a se permitir
professar o amor aos filhos, mas eram essencialmente provedores que deixavam os demais
cuidados para as mulheres, as grandes responsáveis pelo lar e a família124 - Euclides vinha de
uma tradição na qual aos pais cabia dar aos filhos boa formação e casar as filhas, achando-lhes
bons homens, que trabalhassem e regressassem ao lar para a família:
O homem de família provedor e administrador de sua propriedade, tornou-se
a norma no séc. XIX. É bem verdade que ele era burguês, mas não era ancien
regime, nem de uma religião estranha ou de alguma etnia exótica. Ele era a
persona do sucesso moderno e da respeitabilidade universalista, muito
apoiado pela lei religiosa e pela opinião pública. (THERBORN, 2006, p. 43).
123
Como bem lembra Ariès, na Idade Média e mesmo ao longo dos tempos modernos, “ a família cumpria uma
função - assegurava a transmissão da vida, dos bens e dos nomes – mas não penetrava muito longe na sensibilidade”
(ARIÈS, 2011, p. 192), mas é também nessa transição do medieval para o moderno, e nos anos seguintes, que a
compreensão da importância da educação para as crianças faz com que a família assuma “função moral e espiritual,
passando a formar os corpos e as almas” e esse novo cuidado com as crianças, ao longo desses novos tempos, vai
despertando também novos sentimentos em relação a elas (ARIÈS, 2011, p. 194).
124
Moreira (2002) observa que enquanto as mulheres/mães do dezenove eram “amorosas, dedicadas e cuidadosas,
educadoras, resignadas e abnegadas”, no mesmo período o homem/pai era descrito como “trabalhador e provedor,
educador, amoroso, déspota, enérgico e símbolos da autoridade”.
71
para manutenção da família125 por meio do Bazar América, firma que estava estabelecida na
Rua Uruguaiana, no Rio de Janeiro. Walnice Galvão (2009), no que lhe diz respeito, informa
que a documentação comprova que Euclides providenciara para que a família fosse assistida
mensalmente. Não restam comprovadas as alegações de que ele falhasse em prover a própria
família, todavia, é forçoso reconhecer que ele realmente passava muito tempo longe de casa,
não obstante o fizesse justificadamente, em razão do trabalho.
A família que Ana e Euclides construíram não tinha exatamente uma casa, eles
passaram, enquanto núcleo familiar, pouco tempo juntos. Ainda que fique claro aqui que as
expectativas da vida em família de então fossem diferentes das nossas expectativas
contemporâneas, ainda que se saiba que a prática de internar os filhos em escolas era comum e
esperada (ARIÈS, 2011), é interessante apontar a relação entre o sentimento de família e o
pertencimento a uma casa, “o sentimento da casa é uma outra face do sentimento da família”
(ARIÈS, 2011, p. 189), para compreender a distância do relacionamento (especialmente) entre
Euclides e Ana, além de entender a solidão que ambos deviam enxergar, cada um a seu modo,
nesta relação, que não atendia às expectativas positivistas, tampouco às expectativas burguesas:
a família vitoriana era o órgão privilegiado para a transmissão de valores,
determinadora de fronteiras, fonte de prazeres domésticos. Servia ao marido
como um refúgio do mundo cruel dos negócios, da política ou da vida
profissional. Atribuía à esposa a esfera doméstica, circunscrita mas que lhe
outorgava autoridade. Tornava as crianças, aqueles pequenos selvagens, seres
humanos responsáveis. (GAY, 1999, p. 18).
Michelle Perrot chama a família do séc. XIX de ambígua, porque é, segundo ele, ao
mesmo tempo nó e ninho. Se é o lugar do descanso, do refúgio, também é “secreta, fechada,
exclusiva, normativa, palco de incessantes conflitos que tecem uma interminável intriga,
fundamento da literatura romanesca do século" (PERROT, 1993). Euclides e Ana tinham o nó,
mas não tinham o ninho. E isso se reflete nos dois, porque, ainda que as exigências para homens
e mulheres no casamento fossem muito diferentes, pode-se atestar que nem ele nem ela
cumpriram com a sua parte na totalidade.
Ana buscou uma nova família. Euclides buscou acolhida entre os amigos. E foram os
amigos que acompanharam os seus instantes finais. O escritor foi velado na sede da ABL no
Rio de Janeiro, que ficava no Silogeu126, e um cortejo com mais de trezentos carros (ABREU,
125
Na primeira grande viagem que fez deixando a família para trás, para Canudos, Euclides deixou-os sob os
cuidados do próprio pai. E quem confirma isso, ao juiz, em depoimento, é Ana, “o seu marido seguiu para Canudos,
ficando ela informante na fazenda de seu sogro” (GALVÃO, 2009, p. 125).
126
Prédio construído durante as reformas de Pereira Passos (1902-1906), assim chamado porque abrigava, além
da ABL, o IHGB, a Academia de Medicina e o Instituto dos Advogados do Brasil. Foi demolido nos anos 1970
para a expansão da Rua Teixeira de Freitas.
72
2009, p. 21) seguiu o esquife para o enterro no mausoléu da Casa, no Cemitério São João
Batista. Conta-se (VENÂNCIO FILHO, 2001) que Silvio Romero, diante do corpo de Euclides,
foi às lágrimas e teve que ser amparado e retirado do local.
127
Acerca dessa biografia, a primeira escrita após a morte de Cunha, disse Ana: “a tragédia converteu-se em fonte
de renda para muitos medíocres [...] sujeitos que nem conheceram Euclides tornavam-se seus defensores [...] Esses
tipos nunca privaram conosco. Nosso meio era fino demais para eles. Nossas relações eram com gente boa como
o barão do Rio Branco. Machado de Assis, Sílvio Romero, Oliveira Lima, Coelho Neto, etc. Esses, sim, nos
conheceram de perto. E é preciso conhecer para poder julgar [...] vem agora um Elói Pontes, que nada sabia da
nossa vida, e resolve escrever mentiras sobre Euclides da Cunha [...]. ” (ANDRADE, 2009, p. 213).
73
A vida de Euclides nos mostra o caminho até a Piedade. A forma como ele foi educado,
as aspirações da sociedade na qual ele cresceu, as escolhas que precisou fazer para sua formação
e o sustento de sua família, são todas peças na construção do homem que pegou uma arma
emprestada com parentes, um Smith and Wesson, calibre 22” (ANDRADE, 2009 p. 82), sob a
alegação de matar um cachorro raivoso, foi em busca de sua honra perdida e acabou morto. As
narrativas da vida de Euclides mostram que ele era um homem de muitos conflitos, e que seus
amigos e admiradores pareciam não conseguir entender que o gênio reconhecido que ele era na
vida pública, o nome influente da República, um exemplo, pudesse ser também um homem que
enfrentasse tantas limitações no trato pessoal.
Às limitações e aspirações de Euclides vão juntar-se aquelas pertencentes a Ana, que
são desenvolvidas no próximo item, seja porque o comportamento dela tinha o poder de se
refletir de forma tão direta na percepção que as pessoas tinham dele, seja porque as escolhas de
ambos resultaram no final daquele 15 de agosto.
1.2. À sombra e à imagem da República: Ana Emília Sólon Ribeiro (da Cunha) (de Assis).
Ai, meu marido, estou desgraçada, antes eu tivesse ido embora 128.
Ana Emília Sólon Ribeiro (da Cunha)
Ana Emília129 Sólon Ribeiro (da Cunha) (de Assis) nasceu130 em Jaguarão do Sul (RS),
em 18 de junho de 1872131, filha de Túlia Teixeira Ribeiro e do militar Frederico Sólon de
128
Conta Anna de Almeida Lima, cozinheira dos irmãos Assis, que foi com essas palavras que Ana a encontrou
no corredor da casa da Piedade, segundos depois dos tiros terem sido disparados (GALVÃO, 2009, p. 74).
129
Segundo Jefferson de Andrade (2009, p. 14), o nome significa rival da graça e “nessa escolha está a primeira
ironia do destino com essa menina que iria crescer bela, tornar-se mulher culta e voluntariosa, determinando de
forma implacável o destino de muitos que viveram em torno dela e transmitindo aos filhos e a outras gerações um
sentimento de veneração”.
130
A família de Ana afirma (Andrade, 2009) que ela era afilhada do Barão do Rio Branco. No entanto, Brandão
(1990, p 131), apresenta fac-símile de certidão de batismo de Ana na qual constam como seus padrinhos “Nossa
Senhora do Patrocínio e Francisco José Ribeiro”.
131
Andrade (2009) declara ser 1875 a data de nascimento de Ana. A própria Ana declarou ao Delegado de Polícia
que a ouviu após a morte de Euclides que contava então com 34 anos de idade (GALVÃO, 2009). Contudo,
Ventura (2003, p 92-93) informa que Euclides e Ana tiveram habilitação de casamento expedida em 31 de agosto
de 1890, ocasião na qual contavam, respectivamente, com vinte e quatro e dezoito anos de idade e, tendo em vista
que ele transcreve em sua biografia os documentos de registro do casamento de ambos, opta-se pela data registrada
oficialmente. Igualmente, Brandão (1990, p. 131) apresenta fac-símile de certidão de batismo de Ana, que traz a
data do sacramento como 21/05/1873, e que também informa o nascimento dela em 18/06/1872.
74
Sampaio Ribeiro que, quando do nascimento da filha, já seguia longe na carreira militar que o
levaria a ser um nome maiúsculo na implantação da República brasileira132. Ana cresceu
acompanhando a carreira cada vez mais notória do pai. Judith, filha de Ana e Dilermando,
apontou que a mãe era dona de “uma curiosidade invulgar e uma vivacidade além do normal
para as meninas da época” (ANDRADE, 2009, p. 20), além de muita determinação e um
temperamento inflexível.
O nome de Ana aqui se apresenta com tantos parênteses para marcar algo que se nota
na sua trajetória: ela acaba sendo várias mulheres diferentes ao longo da vida: a esposa de
Euclides, a esposa de Dilermando. Mas ela é sempre a filha de Sólon133, o pai que lhe deu o
nome e o temperamento altivo que a ajudou a fazer as escolhas difíceis que fez ao longo da
vida.
Observar a forma como se estabelecia o lugar mulher, e o seu próprio comportamento é
importante porque acaba por fazer um contraste com os próprios caminhos que Ana escolheu134
para sua vida, e que nem sempre combinaram com aqueles esperados para uma mulher nascida
no dezenove e educada em um mundo onde certas noções de moral tinham fundamental
importância e que, àquela altura (e até mesmo para nós, hoje), pareciam ter sempre vigorado –
o que não é verdade.
Veja-se, por exemplo, o espanto do historiador Thomas Laqueur, que se dedicou aos
estudos da história do sexo e da família, quando contou que ao estudar cadernos de parteiras do
séc. XVII (a fim de escrever sobre ciclos da vida) deparou-se com instruções detalhadas para
que as mulheres atingissem o orgasmo (então considerado fundamental para a concepção bem-
sucedida), o que aos seus olhos acostumados com o estudo do séc. XIX, que considerava a
mulher uma criatura incapaz de ter prazer, chamava a atenção. E ele arremata: “no período que
eu melhor conhecia, o que havia sido uma ocorrência corporal comum tornara-se um grande
problema da fisiologia moral” (LAQUEUR, 2001, p. 7). É assim que Laqueur abriu a obra que
nos ajuda a explicar porque, ao cabo, Ana e Euclides (e Dilermando) ocupavam aqueles lugares.
132
Seu necrológio informa que o General Sólon, falecido em Belém-PA, em 10/01/1900, “muito trabalhou pela
fundação da República”. (A Necrologia de Brazileiros Ilustres fallecidos em 1900 foi publicada pelo Almanack
Laemmert, disponibilizado pela Biblioteca Nacional (RJ), disponível em https://tinyurl.com/bdzde6vk. Acesso em
07 ago 2019).
133
Quando Euclides morre e as circunstâncias de seu caso com Dilermando se desenrolam, Ana muitas vezes é
chamada apenas de Ana Sólon nos jornais (vê-se isso muito comumente em toda a cobertura do Jornal do
Commércio por exemplo). É como se ela fosse indigna de portar o nome do marido que ajudara a desonrar.
134
Isso é reforçado pelas memórias da família dela, “enquanto a mulher do fim do séc. XIX se escondia na cozinha,
preocupando-se em servir ao seu todo-poderoso marido ou se recolhia à cadeira de balanço e a tricotar esperava a
vida passar, Anna de Assis foi para a sala de visitas palestrar com o barão do Rio Branco, Machado de Assis,
Silvio Romero, Coelho Neto. Natural, já que na casa do pai se habitou a ouvir Quintino Bocaiúva, Rui Barbosa,
Benjamin Constant. ” (ANDRADE, 2009, p. 189).
75
Em resumo, Laqueur (2001) verificou que até o séc. XVIII os médicos, embora
notassem as diferenças anatômicas entre homens e mulheres (e fizessem distinção entre
masculino e feminino), o faziam encarando ambos como seres da mesma espécie que
apresentava diferenças de graus. O séc. XVIII trouxe revoluções que mudam aquele mundo
onde todos viviam e também exigem novas explicações e visões de mundo. É aí que Laqueur
aponta uma grande mudança: o final do séc. XVIII vai testemunhar a visão de mulheres
mentalmente frágeis e infantilizadas diante de homens fortes e prontos para enfrentar a batalha,
a guerra. Mulheres assim tão incapacitadas não poderiam encarar tarefas científicas e políticas
com a mesma envergadura que os homens, a sua biologia, segundo a visão de então, não tinha
sido feita para tal.
Não há maiores registros sobre os primeiros anos de vida de S´Anninha, mas em meados
do séc. XIX, sendo o pai militar e republicano de primeira hora, pode-se deduzir que a sua
educação foi erguida sob base positivista, ou seja, como lembra Del Priore (2009, p. 15), ela foi
criada para ser “a rainha do lar, o anjo tutelar da família” e, como tal, atender a padrões de
integridade e pureza, pois o positivismo comtiano defendia que a cientificidade garantiria o
progresso, mas mediante uma ordem social que acatasse a moral, alicerçada na educação e na
atuação da mulher, a sua guardiã. Andrade fala sobre os conhecimentos positivistas de Ana, ao
afirmar que a jovem participava, junto com sua família, de discussões e comentários acerca dos
ideais republicanos “[...] a menina Anna Emília ouviu todas as teorias da filosofia positivista,
que influenciaram os homens proclamadores da República” (ANDRADE, 2009, p. 20).
Cumpre lembrar que a mulher era destinada para as lidas domésticas e os cuidados com
a família, mas as decisões acerca desses campos privados (e todos os demais) cabiam aos
homens, “contra a mulher, considerada na época um ser devoto e tacanho, influenciável pelos
sentimentos, tentado pela paixão, espreitado pela loucura, o pai – o homem – devia defender os
direitos da inteligência. As questões domésticas eram importantes demais para ficar só nas mãos
das mulheres” (DEL PRIORE, 2009, p. 13). Diante desta constatação, cabe a lição de Fraisse e
Perrot (1991, p. 347), quando apontam que tanto o homem quanto a mulher ocupam espaços
um no mundo do outro, ou seja, o homem no privado e a mulher no público, “nem todo o
público é masculino, nem todo o privado é feminino. As mulheres circulam no espaço público
e, através dos salões, a sua casa mantém-se aberta para o exterior. Os homens não estão também
ausentes do privado, e os poderes do pai pesam sobre a família”.
Foi na euforia da proclamação da República que Euclides conheceu essa jovem e, diante
de sua beleza, escreve-lhe um bilhete, “entrei aqui com a imagem da República e parto com a
sua imagem...” (ANDRADE, 2009, p. 21). Enamorada, Ana casa-se com Euclides em 10 de
76
setembro de 1890. Em carta, ela narra a sua visão de Euclides como um herói que desafiara a
monarquia e pagara com a expulsão da Escola Militar e a prisão, “no dia em que ele bateu em
casa de meu pai, pela primeira vez, não precisei olhá-lo duas vezes para pensar: ‘É este...’”
(BRANDÃO. A, 1990, p. 12/13). Andrade (2009) reconhece que Ana estava entusiasmada em
se casar, e Carvalho (2017) destaca os olhos grandes e brilhantes de Cunha, o ponto alto de uma
figura muito comum (1,65 metros de altura, cor morena e cabelos castanhos lisos) e o principal
ponto de atração para Ana – que disse sobre o marido: “não cuidava de sua aparência. E, depois,
como era feio! Só uma coisa chamava atenção: seu olhar fulgurante. ” (ANDRADE, 2009, p.
214).
Ana e Euclides se casaram por escolha própria, mas, certamente, com aprovação da
família. Andrade (2009) chega a destacar a posição de Alquimena, irmã de Ana, cujo eleito não
foi aceito pelo Major Sólon Ribeiro que, de outro lado, admirava o comportamento de Euclides.
Em regra, no séc. XIX, o casamento não era uma questão pessoal decidida entre apaixonados
(PERROT, 1991), era negociação familiar, ao ser prometida em casamento para um homem de
77
boa família, boa situação, a filha levava aos seus mais recursos, não só financeiros, mas também
sociais (HUFTON, 1991)135.
Tendo em vista as bases da educação de Euclides e Ana, pode-se acreditar que a nova
relação surgia também sob os ditames do positivismo. Cumpre ressaltar que não se está aqui a
afirmar que foi celebrado entre eles um casamento positivista136, ou que estes seguissem a
Religião da Humanidade. Apontar as características do matrimônio segundo os positivistas
serve ao propósito especialmente de observar como se desenrolou a vida a dois, uma vez que
se sabe, conforme se discutiu desde a Introdução, que ambos viviam em um ambiente altamente
integrado a esses ideais. Para Comte o casamento deveria observar sete princípios (apud
ISMÉRIO, 1995): a monogamia indissolúvel completada pela viuvez eterna, o sustento da
mulher pelo homem, a livre desistência do dote (por parte da mulher), a livre desistência da
herança (por parte da mulher), a superintendência materna da educação, a liberdade de testar e
a liberdade de adotar.
Para compreender essas obrigações matrimoniais, por primeiro é preciso elaborar sobre
o fato de que, para o Positivismo, eram as mulheres que formavam um dos pontos fundamentais
para o alastramento de seus ideais e a manutenção da harmonia social. Esse aprendizado
passaria pelo coração e, por meio do Catecismo Positivista, que justamente estabelecia os
parâmetros dessa religião, esse papel de anjo tutelar do homem que a mulher tinha - sendo o
casamento e a consequente formação da família ímpares no papel de regenerar a humanidade
segundo esses princípios. Tanto que o casamento, na doutrina positivista, chegava aos seus
seguidores cheio de regras bem determinadas, como, por exemplo, a idade ideal para se casar -
28 anos para o homem e 21 anos para a mulher (COMTE, 1934) - e a obrigação de manter
castidade “aos casais incapazes de concorrerem dignamente para a propagação da espécie
humana” (COMTE, 1934, p. 135). A partir dessa reflexão, pode-se pensar alguns desses
princípios de forma particular:
a) Monogamia indissolúvel completada pela viuvez eterna: para o positivismo o
casamento deveria ser indissolúvel, as exceções eram poucas (delinquência, condenação
135
Contudo, como já se apontou em outras discussões aqui apresentadas, tratava-se de um tempo de transições, de
mudanças. As visões dos relacionamentos amorosos não escapavam a isso, e a ascendente mentalidade burguesa
também alterou a forma de vê-los, “reorganizadora das vivências familiares e domésticas, do tempo e das
atividades femininas; e, por que não, a sensibilidade e a forma de pensar o amor” (PRIORE; PINSKY, 2018, p.
223).
136
Euclides e Ana casaram-se em uma cerimônia civil (Assentos de casamentos civis, livro 4, fls. 136 e 136 v., n.º
217, TJRJ, Registro Civil das Pessoas Naturais, 6ª Circunscrição) seguida de celebração religiosa na Igreja Matriz
de São Cristóvão – RJ (Livro de Casamentos da Igreja Matriz de São Cristóvão, nº 473, fls. 5 – Cúria
Metropolitana, Arquidiocese do Rio de Janeiro). A transcrição de ambos documentos está disponível no
Euclidesite.
78
legal, infâmia de uma das partes) e não permitiam que os envolvidos contraíssem novo
matrimônio (LEMOS, 1884). Tampouco aconselhava-se novo matrimônio em caso de
viuvez, caberia ao cônjuge sobrevivente honrar os votos de matrimônio até o final de
seus dias.
b) Sustento da mulher pelo homem: a mulher era sustentada pelo pai, depois pelo
marido e, na falta dele, pelos filhos homens. Caso essa cadeia falhasse, a
responsabilidade da mulher era do Estado, uma vez que ela própria não poderia
trabalhar, pois esse ato colocaria em perigo todas as virtudes defendidas pela Religião
da Humanidade, “na sociedade organizada o lugar da mulher é no lar, velando sobre a
saúde de seus entes que a humanidade confiou a sua solicitude” (MENDES apud
ISMÉRIO, 2009).
c) Livre desistência do dote e livre desistência da herança (por parte da mulher): a
desistência do dote e da herança estão ligadas ao fato de que a mulher não está apta a
cuidar de questões monetárias e nem deveria trabalhar fora, como já foi dito. Cabe aos
homens cuidar das questões monetárias e materiais do casamento, logo, a mulher abre
mão desse papel em favor do seu pai/marido/filho.
d) Superintendência materna na educação: Raymundo Mendes, um dos fundadores
do Apostolado Positivista no Brasil, escrevendo no início do séc. XX (apud ISMÉRIO,
2009), explicou que a educação dos filhos cabia à mãe além das suas obrigações
domésticas137, sendo este um compromisso assumido com o casamento, uma missão
importante da mulher, que preparava as meninas para seu papel de futuras mães e os
meninos para serem grandes homens. Os instintos de cuidado e amor seriam mais fortes
nas mulheres que nos homens, e era isso que fazia delas as ideais para o papel que o
positivismo entendia que deveriam abraçar (OGANDO, 2010).
Saber que Ana foi criada sob o manto desse modelo (DEL PRIORE, 2009), com ideias
bem estabelecidas de como se comportar e o que se esperava dela em um casamento, torna mais
intrigantes as suas escolhas, a despeito dos registros da insatisfação de Ana com o seu
matrimônio quase que desde o começo (um matrimônio que ela própria escolheu contrair, note-
se, o que, como já foi dito, não era tão comum à época, pelo menos entre aqueles pares). Ao
137
Judith de Assis argumentou que a independência de Ana, traço pela qual ela ser ia criticada, foi o que assegurou
uma boa educação para os filhos diante das reiteradas ausências de Euclides, “enquanto ele se ocupava com seus
compromissos e se preocupava em construir sua obra literária, ela não deixou de ser mãe e de tratar da educação
dos filhos” (ANDRADE, 2009, p. 25). Mas, aos olhos de seus contemporâneos, isso não era independência, era a
obrigação da mulher. Ana tinha sido, literalmente, criada para cumprir essas funções.
79
longo da vida Ana buscou a própria felicidade, isso fica claro por seus atos, fica claro por suas
palavras, fica claro pela visão de seus familiares. Judith, por exemplo, elabora que a mãe não
quis ser apenas uma esposa submissa e nunca abriu mão dos sonhos e do romantismo
(ANDRADE, 2009). Também se apontam138 tentativas de separação frustradas que Ana
apresentou a Euclides ao longo do casamento, e o fato de que ele, mesmo registrando duas
crianças que ele sabia não serem biologicamente suas, insistiu em continuar a viver com a
esposa que, quando de seu retorno do Acre, chegou a propor a ele que, pelo menos, conseguisse
nova comissão que o tirasse do Rio por um longo período de tempo. Segundo consta, Cunha,
por sua vez, contentava-se em atormentá-la (ANDRADE, 2009).
Mas, a sociedade cobrou e criticou um comportamento tão distante do padrão feminino
do entresséculo, da mulher ingênua e transparente, como lembra Sueann Caulfield (2000), com
um comportamento que era (ou deveria ser) previsível, cumprindo o determinado pelos padrões
sociais, uma mulher que só manteria relações extraconjugais se fosse forçada ou enganada. Del
Priore (2009) conta que desde o período em que Ana e toda a família acompanhavam Euclides
em seus postos no interior já havia alguma fofoca sobre o comportamento dela. Judith rebate
essa alegação ao argumentar que a mãe era uma mulher audaz e independente que vivia em uma
cidade interiorana que confundia os seus “movimentos ímpares”, sua alegria e modernidade,
sua recusa em se esconder dos homens, com um mau comportamento sexual (ANDRADE,
2009); na esteira do que lembra Kessler quando argumenta que não há nada menos ético que a
moralidade sexual, uma vez que ela “repousa inteiramente na conveniência social” (apud
BLOM, 2015, p. 11).
Uma das netas de S´Anninha, Anna Sharp, conta ter tido acesso a um diário da avó, no
qual ela narraria ter pedido para retornar a casa dos pais já no dia do casamento, tendo em vista
que Euclides estaria a insultá-la “como um alucinado” (PONTES, 2014). Essa versão é
corroborada pelo próprio Dilermando de Assis em entrevista à Revista Diretrizes (1941).
Segundo ele, os problemas conjugais do casal começaram no mesmo ano da celebração do
matrimônio, Ana sofria com o temperamento difícil do marido que, segundo ela, era “seco de
138
Dirce Cavalcanti (1998, p. 136) fala: “apesar da confirmação do adultério, Euclides nega a separação várias
vezes pedida pela mulher. Ao fim de três anos de discussões violentas e deploráveis cenas diárias, ela termina por
sair de casa, acompanhada de dois de seus filhos, um, de Euclides, outro de Dilermando. ” Jefferson de Andrade
(2009, p. 39) narra que Ana, ao confessar a Euclides sua traição espiritual, argumentou que a única solução possível
seria prolongar a separação entre ambos, por meio de uma nova ausência do escritor ou mesmo de um divórcio, o
que ele não aceitou. Andrade (2009, p. 51) aponta que “tudo ela fez para convencer o marido da conveniência de
uma separação. E tudo se passou exatamente igual a tantos casos semelhantes de rompimento de uma união
conjugal: de um lado, a mulher tentando se desvencilhar do compromisso, do outro, o homem exigindo a sua
subserviência. ”
80
139
No seu segundo depoimento à polícia, Ana justificou a sua relação com Dilermando em razão do carinho que
ele lhe dispensava, em detrimento à atitude de Euclides, que ela reconhecia honrado, um homem de caráter, mas
incapaz de lhe dedicar carinho e afeto (GALVÃO, 2009).
140
Pesquisadores contestam a afirmação de Sharp. A análise da letra de Ana, disponível em cartas conhecidas –
como uma escrita a um juiz de órfãos disponível no Museu do Tribunal de Justiça do RJ - e da letra do diário
atestaria que os documentos não foram escritos pela mesma pessoa (MEIRELES, 2019).
141
Ou seja, até 1901, Ana dá à luz aos filhos de Euclides: Eudóxia, Sólon, Euclides Filho e Manoel Afonso.
Embora seu casamento continue até a morte de Euclides, em 1909, os outros filhos que ele vai registrar (Mauro e
Luiz) são de Dilermando.
142
Vide p. 70.
143
Os dois mais velhos foram internados em um colégio inglês de São Paulo (DEL PRIORE, 2009), após, segundo
narra a família de Ana (ANDRADE, 2009), esta procurar auxílio financeiro junto ao sogro. Segundo eles, buscar
residência na pensão seria também uma tentativa de reduzir as despesas.
144
A própria Ana conta em depoimento judicial que conheceu as irmãs Ratto quando era recém-casada (GALVÃO,
2009, p. 124).
145
Dirce de Assis, filha do segundo matrimônio de Dilermando conta que Ana era amiga da sua avó, a mãe de
Dilermando, e que costumava hospedar-se em sua casa quando ia a São Paulo. Aponta que Lucinda e Angélica,
suas tias avós, gostavam dessa relação, pois eram pessoas ambiciosas e a elas interessava que a família tivesse
relações com uma pessoa tão importante como Ana, que era esposa de Euclides da Cunha. (CAVALCANTI, 2009).
81
Quando Ana encontra Dilermando146 em 1905147 ela era uma mulher que, aos trinta e poucos
anos, tinha um marido ausente e parecia ter toda a responsabilidade da família em seus ombros,
enquanto ele, que aos dezessete anos iniciava a vida adulta, a ela se mostrou “um rapaz de
espírito, despertando-lhe atenções, sem que da sua parte houvesse nessa ocasião a menor
malícia” (GALVÃO, 2009, p. 126).
Del Priore (2009) recorda que castidade e submissão eram esperadas de uma esposa
devotada; contudo, um bom marido não abandonava o lar, não se ausentava por períodos
prolongados, não agia com desmandamentos. Não se pode dizer que Euclides abandonasse a
família deliberadamente, suas obrigações profissionais exigiam que ele se afastasse. No
entanto, depois de um certo tempo de matrimônio, ele não parecia inclinado a optar por
ocupações que o mantivessem próximo da esposa e dos filhos, ou que, ao menos, permitissem
que a família o acompanhasse.
De Dilermando, Ana recebeu atenção e admiração e a ele deu todo o afeto que tentara
dar a Euclides sem sucesso. O fato é que com Euclides passando muito tempo fora na missão
do Alto Purus, Ana e Dilermando tiveram espaço para a sua relação, que se iniciou na Pensão
Monat, para onde Dilermando se mudou148 e, depois, em uma casa alugada, onde viveram “dias,
semanas e meses de paixão exaltada” (ANDRADE, 2009, p. 44).
Afastada da família, que condenava o seu comportamento149, Ana vivia com
Dilermando150 quando Cunha retornou ao Rio de Janeiro em 1906, deixando-a numa situação
146
Aliás, reencontra. O próprio Dilermando contou que ele viu Ana pela primeira vez quando ainda estava na
escola, em São Paulo, e recebeu uma visita da mãe, que chegou acompanhada de Ana, sua amiga. (ASSIS, 1950).
E é a própria Ana quem aclara essas ligações quando depõe em juízo por ocasião da morte de Euclides. Falando
ao Juiz, declarou que “morando no Estado do Rio Grande do Sul, em companhia de seu pai [...] conheceu o cadete
João Cândido de Assis”, e que, alguns anos depois, já casada, foi residir, em razão do trabalho de Euclides, nas
proximidades da Estação de Palmares, ocasião em que foi apresentada às senhoras Angélica, Brandina e Neném e
ficou sabendo que a irmã mais velha delas era casada com João Candido de Assis. Esclareceu, também ao juiz,
que ela mesma viria a conhecer a mãe de Dilermando quando do retorno de Euclides a Canudos, quando moraram
na mesma vizinhança (GALVÃO, 2009, p. 124).
147
A data é apontada por Roberto Ventura (2003). Lucinda Ratto, em seu depoimento à polícia em 1909, recorda
que o conhecimento de Dilermando com os Cunha datava de quatro anos (GALVÃO, 2009).
148
Andrade (2009) diz que a mudança se dá por sugestão de Ana, mas Dilermando declarou, em outra ocasião,
que para lá se mudou a pedido de suas tias Angélica e Lucinda, “morando na Fortaleza de S. João, em casa de meu
padrinho – atendendo ao pedido por estas duas senhoras feito, concordei em ficar fazendo-lhes companhia no
prédio onde haviam tomado cômodos, à Rua Senador Vergueiro n. 14. Já porque ficava mais próximo à Escola,
aonde devia ir ter em breve, já porque me emancipava do rigoroso horário dos escaleres daquela praça de guerra,
tal aceitação se impunha. Convinha-me, por isso. Contava, então, dezessete anos e nenhum mal me afigurava ir
naquela decisão, pois via ali a casa de uma parente e de uma amiga de minha mãe” (ASSIS, 1916, p 63).
149
A própria Ana informou, em juízo, que sua família, ciente “das relações com o acusado começam a abandoná-
la, deixando de procurar ela informante, que por sua vez, conhecendo sua posição, não procurava mais a sua
família, nem as pessoas de sua amizade” (GALVÃO, 2009, p. 126). Vide nota 192.
150
Em entrevista à Revista Diretrizes, Dilermando conta que quando da chegada de Euclides, a quem ele foi buscar
no cais a pedido de Ana, “já não morávamos mais na pensão de madame Monat, e sim, na rua Humaitá, que passei
a visitar aos sábados” (ASSIS, 1941).
82
complexa, seja pela traição, que tinha uma conotação negativa e poderia despertar reações
violentas, seja pela volta de um marido que não lhe despertava o menor afeto: acerca da volta
de Euclides, ela comentou, “dormimos juntos, afinal ainda somos marido e mulher”
(BRANDÃO, 1990, p. 15). E, logo, se avizinharia um problema ainda mais difícil, pois Ana
estava grávida, “daqui a quantos meses, se nascer um filho, nem eu saberei de quem é. Se dele
[de Euclides] ou de quem eu amo de verdade” (BRANDÃO, 1990, p. 15). Ela chegou a
consultar um médico amigo, que lhe explicou os cálculos para saber quem era o pai do bebê,
mas ressaltou que, nos termos da lei, o filho seria considerado de Euclides, e avisou Ana de que
estaria cometendo um crime se apontasse outro como o pai da criança151 (BRANDÃO, 1990,
p. 18).
De volta, Euclides recebeu um bilhete anônimo152 acusando a esposa de envolvimento
com o jovem militar e seis meses após a chegada do marido, Ana deu à luz ao menino Mauro,
registrado como filho dela e de Euclides, e que morreria153 em poucos dias. Dilermando mudou-
se para o sul atendendo às exigências de sua carreira, mas a correspondência entre ele e Ana
continuou, como continuou a má relação entre Ana e Euclides. Assis voltou ao Rio de Janeiro
de férias no ano seguinte, 1907, diretamente para os braços de Ana, que engravidou mais uma
vez. Luís, nascido no mesmo ano, também é registrado como filho pelo seu marido.
Ao longo desses meses de distância forçada de Dilermando, Ana teria insistido muito
em uma separação154, sempre negada por Euclides. Se Ana teve a liberdade de escolher o
marido isso não lhe garantiu uma união feliz. Enquanto as narrativas simpáticas à Ana pintam
Euclides como um marido de difícil convivência, aquelas favoráveis a ele dizem que ela não
era uma esposa devotada155. Francisco Venâncio Filho em entrevista a Francisco Costa,
escrutina que Euclides foi “sujeito de altos e baixos, que nunca teve ambiente doméstico [...]
todo mundo dizia que a casa dele era mal arrumada” (COSTA, 2002, p. 54). Mas, essas
151
Tão séria era essa questão à época, que durante o julgamento de Dilermando, ao proceder a acusação, o
Promotor de Justiça responsável declarou que era direito de Euclides invadir a casa para reaver o filho menor que,
ainda que fosse fruto da união da esposa adúltera com o réu, não tivera a sua filiação contestada pelo falecido
(GALVÃO, 2009).
152
Dilermando aponta o ocorrido na entrevista à Revista Diretrizes.
153
Vide nota 120.
154
Andrade, ao apontar que Ana dá à luz a dois filhos de Dilermando enquanto casada com Euclides, diz que o
escritor, diante dos reiterados pedidos de separação dela, se recusava a atende-la, e queria prosseguir um casamento
acabado (ANDRADE, 2009).
155
É como lembra (BONVENTRE, 2005, p. 13), “as mulheres deveriam ser a influência calmante sobre seus lares.
Elas eram as bússolas religiosas do lar e a fonte de sua conforto e paz das famílias. Não havia comprimento grande
demais para elas irem se fosse o melhor para o marido e os filhos. Quaisquer outros interesses deveriam ser
sublimados em deferência ao lar e à família. Se um mulher se distraía com qualquer atividade fora de casa, fosse
educacional ou não, ela estava prejudicando sua família.”
83
circunstâncias não perdoavam ambos dos papeis que deveriam seguir: ele deveria ser forte,
dominador e conduzir a família ela deveria ser casta e submissa às decisões dele.
O poder do relacionamento centrava-se na figura do marido, mas, ironicamente, ele era
dependente da imagem que a mulher construía da família (D’INCAO, 2000). Era a atitude dela
que dava valor à família, porque se ela atendia às expectativas da sociedade, então criava uma
família equilibrada e com os princípios corretos, e esse era, de fato, o alicerce para a autoridade
familiar, que era do homem. Quando Ana não atende às demandas da sociedade e nem as de
Euclides, ele vê a sua autoridade doméstica perder o valor. Embora ele passasse muito tempo
fora e não houvesse, de fato, uma estrutura doméstica para aquela família se inserir, ele foi um
homem criado para atender ao dever e era um homem dedicado aos seus princípios formadores,
à linha reta, e essa “falha” de Ana ia contra toda a sua criação, sua estrutura.
Hoje o direito à vida se sobrepõe à honra, e os cônjuges têm responsabilidades iguais no
casamento, fazendo com que a utilização da alegação de "legítima defesa da honra" decaísse156,
mas no final do séc. XIX e no início do séc. XX a situação era diferente. Como já foi discutido,
Ana era a guardiã do bom nome da família e a ela pertencia a honra de Euclides, enquanto a ele
pertencia o dever de exigir o comportamento impecável da esposa, pois a importância de sua
reputação era inestimável. De fato, Barbara Welter (1966) fala sobre as expectativas nos ombros
das mulheres157 em meados do séc. XIX, e destaca que os atributos da verdadeira feminilidade
(as balizas que determinavam a extensão do autojulgamento da mulher, bem como do
julgamento de seu marido e da sociedade) estavam baseados em quatro pilares, quatro virtudes
cardeais: piedade, pureza, submissão e domesticidade – “sem eles, não importa se havia fama,
conquistas ou riqueza, tudo era cinzas. ” (WELTER, 1966, p. 152).
Daí o peso do comportamento de Ana e também de Dilermando que, mesmo jovem e
solteiro, já vivera o suficiente para entender o sistema de honra e masculinidade dos seus dias158:
àquele tempo, mais do que ser honrado era preciso ser reconhecido como tal; sem a aquiescência
pública a honra perdia seu valor:
Em outras palavras, a honra é pública, supõe a projeção do indivíduo para
além das relações familiares e o reconhecimento de seu valor na esfera do
Estado. A construção desta esfera pública de significação variou de sociedade
para sociedade. Nas sociedades ibéricas ou delas derivadas, que são o objeto
de nosso maior interesse, o papel da Igreja foi determinante para a
'publicidade' da honra. (DÓRIA, 1994, p. 52).
156
O termo aqui não é usado em seu sentido jurídico, que é o da a extinção do direito pela inércia do titular.
157
Welter fala da sociedade dos EUA, mas em um contexto que, nesse ponto, não difere da brasileira no mesmo
período, guardadas as devidas proporções: a de homens construtores de pontes e rodovias voltados para a
modernização das cidades e sustento da família, e mulheres que ficam em casa como os esteios da família e dos
valores tradicionais que deveriam ser preservados a todo custo.
158
E, mais que isso, aprendera sobre honra a partir da mesma ótica militar de Cunha.
84
Há ainda o fato, lembrado por Forss e Lamphier (s/d), de que a verdadeira feminilidade
sustentava que a pureza de uma mulher era sua maior virtude. Essa pureza se traduzia em
virgindade antes do casamento e um desinteresse pelo prazer carnal após o matrimônio – uma
tolerância das exigências sexuais do marido em troca dos filhos. E as mulheres que buscavam
além disso, que não eram desapaixonadas ou desinteressadas sobre o desejo carnal, eram vistas
como caídas, arruinadas.
Ana não se furta em assumir o seu desejo e a sua vontade de ser amada, e o seu
julgamento vem em grande parte dessa escolha, que, como destacado logo acima, acaba por
colocar a honra de sua família e de seu marido em uma posição pouco vantajosa. Aos olhos da
sociedade ela não parece boa esposa nem boa mãe, ela não cumpre suas funções, ela falha como
mulher.
159
Apesar de receber um soldo após a morte do marido, Carolina recebe a ajuda de parentes, além de aceitar
serviços de costura para fazer frente às despesas da família.
85
Depois dos primeiros anos no colégio em Uberaba, ele foi interno no Liceu de Artes e
Ofícios do Sagrado Coração de Jesus em São Paulo (DEL PRIORE, 2009), educado em um
ambiente de rigidez militar para ser religioso e ter aptidões práticas. A escola se destinava ao
ensino profissional especialmente de órfãos sem recursos, como era o caso de Assis. Em Carta
Pastoral de 27 de setembro de 1884, transcrita no Livro Tombo (SSCJ, 1884, p. 13/verso), vê-
se:
Pela iniciativa de alguns catholicos seculares e Revs. Sacerdotes que,
animados por um duplo sentimento de religião e patriotismo, tanto se esforçam
no intento de proporcionarem a educação religiosa e o ensino profissional à
infância, principalmente pobre e desamparada; a obtenção de donativos e sua
continuação, a despeito da dificuldade dos tempos, além do mais que
omittimos, são obras de piedade, zelo e devotamento que muito honram esta
diocese, ao mesmo tempo que dão testemunho irrecusável da vida
sobrenatural da Egreja Catholica, em cujo seio fecundíssimo geram-se,
nutrem-se e fructificam tantas instituições literárias, pias e caridosas, da mais
alta e transcendente utilidade religiosa e social. (LEONARDI, 2017, p. 88).
em Rio Pardo, no Rio Grande do Sul, que logo passaram a ser denominadas Escolas
Preparatórias e de Táticas, ocasião na qual a Praia Vermelha se tornou Escola Militar do Brasil.
O ano de 1903 foi um ano de profundas mudanças na nova cidade de Dilermando. O
engenheiro Francisco Pereira Passos160 (1836-1913) foi nomeado prefeito do Rio de Janeiro em
decreto de 30 de dezembro de 1902 pelo presidente Rodrigues Alves, assumindo o cargo na
mesma data161, e passou à história como o prefeito do“bota abaixo”. Cabe recordar que
Rodrigues Alves assumira a presidência de um país que, em poucos anos, abandonara o regime
monárquico e embarcara na República de uma forma até mesmo truncada, em um golpe que
um Marechal não queria dar, em um país que ainda tentava tomar pé de sua situação pós
abolição da escravatura. Vinha de um período de fim de títulos de nobreza, governos
provisórios, revoltas de grande monta, a própria ditadura dos marechais, com a Crise do
Encilhamento162 e os desafios econômicos que dela advieram e, finalmente, o voto direto
(censitário, como era próprio do votar à época) que tornou presidentes Prudente de Moraes
(1894-1898) e Campos Salles (1898- 1902), que buscou uma solução para a crise com acordos
de dívidas e políticas diretas com governadores. Sucedendo-os, Rodrigues Alves estava pronto
para novos desafios, estava pronto para enfrentar o projeto de civilizar o país.
Ele o fez liderando um projeto de embelezamento e saneamento da então Capital
Federal, que contemplava desde adequações do porto, passando por reformulações de ruas e
casas, até práticas e costumes de higiene, e foi o instrumentalizador no coroamento da
modernização, da elevação do Rio de Janeiro e, assim, do Brasil, a um ideal europeu (senão
francês) de civilização163. Figueiredo Pimentel, autor da seção Binóculo, do jornal Gazeta de
Notícias, cunhou, então, a máxima, “o Rio civiliza-se”, que se tornou a frase símbolo da reforma
urbana carioca.
160
Pereira Passos também foi formado nas fileiras da Escola Militar, e teve como colega um ilustre nome da
República e da história pessoal de Euclides: Benjamin Constant. (PINHEIRO E FIALHO JR., 2006, p. 01).
161
Conforme noticia o jornal Gazeta de Notícias de 31 de dezembro de 1902, disponível em
encurtador.com.br/bkyK1, acesso em 10 nov 2019.
162
Crise econômica brasileira geralmente associada a Rui Barbosa, que era então o ministro da Fazenda, ocorreu
na transição da Monarquia à República. Desenvolveu-se a partir de um plano econômico que objetivava incentivar
a industrialização e estimular a atividade econômica (emitindo moeda e aumentando o crédito bancário). Mas o
resultado obtido foi o oposto: falta de dinheiro circulante, surto inflacionário e empresas em declínio. Conforme
informações disponíveis em: https://atlas.fgv.br/verbetes/encilhamento. Acesso em 07 fev 2022.
163
Um dos maiores símbolos urbanos dessa intervenção foi a abertura da Avenida Central. Em crônica publicada
na revista Kosmos em março de 1904 (Disponível em encurtador.com.br/hyAW5. Acesso em 17 fev 2021), Olavo
Bilac se alegrava com o hino jubiloso das picaretas regeneradoras que cantavam alegre e sufocavam o gemido
soturno e lamentoso do passado, do atraso de uma cidade que, segundo ele, deixava de ser imunda, retrógrada e
emperrada.
87
164
Nas palavras de Walnice Galvão (2010), os dois oficiais do exército, cuja rota de colisão ninguém previra,
embora tivessem muito em comum, palmilharam caminhos diferentes.
165
Com o intuito de depor o presidente Floriano Peixoto, foi uma rebelião em unidades da Marinha ocorrida entre
setembro de 1893 e março de 1894, iniciada no Rio de Janeiro e que chegou ao sul do Brasil, onde acontecia a
Revolução Federalista. O cerne da questão estava na indignação da Marinha com a não convocação de eleições
por Floriano, que assumira a presidência em 1891, na esteira da renúncia de Deodoro após a sua decisão de fechar
o do Congresso Nacional por não conseguir negociar com as bancadas dos estados, especialmente os produtores
de café (São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais). A Revolta da Armada não foi a única daquele período, mas a
sua importância está no fato de que evidencia as cisões da nascente República, as rivalidades entre seus líderes e
o desacordo entre aqueles que compunham a sua base, sua estrutura, como as Forças Armadas. (Conforme
informações constantes de https://tinyurl.com/2p9c8czk. Acesso em 12 out 2021).
166
Em meados de novembro de 1904, diante das notícias de vacinação compulsória contra varíola e de decisões
duras do governo à fim de garantir a higiene da cidade (com a derrubada de edifícios considerados impróprios e a
invasão de domicílios por mata mosquitos e exames médios obrigatórios), o Rio de Janeiro foi sacudido pela mais
violenta revolta que se tinha notícia até então, que ficou conhecida como Revolta da Vacina.. O seu estopim foi a
vacinação obrigatória, mas o que se pretendia era a derrubada do Presidente Rodrigues Alves, no leme de um país
assolado pelo desemprego e pela inflação, e cujo plano de governo passava obrigatoriamente pela vacinação e a
reforma urbana do Rio de Janeiro, a fim de atrair imigrantes e capital estrangeiro. Nicolau Sevcenko (1993, p. 10-
11) infere que a oposição a Rodrigues Alves já tinha planos de um golpe e aproveitou-se da indignação da
população para leva-lo a termo. Nos três dias de intensa confusão o prédio da Escola Militar da Praia Vermelha,
cujos cadetes e vários oficiais também entram na revolta, é bombardeado, culminando com a extinção da escola e
a transferência das facilidades para o Realengo, onde nova estrutura de ensino militar seria desenvolvida.
Rodrigues Alves permaneceu no poder e o Rio de Janeiro existiu sob o manto do Estado de Sítio por alguns meses.
88
Em depoimento transcrito por Carvalho (2017, p. 116), o Marechal Estevão Leitão de Carvalho
apontou que, quando de sua formação, havia uma ausência de espírito militar nos cursos das
escolas do Realengo de da Praia Vermelha. Esse não era um problema enfrentado pela geração
de Dilermando, que já encontrava esse espírito não só presente como encorajado, o exército não
precisava dos ditos bacharéis fardados, precisava de homens hábeis nas funções primordiais das
forças armadas.
Eram outros tempos, mas Dilermando, como Euclides, acabou expulso. Se este o fora
pelos seus ardores republicanos em tempos de monarquia, aquele acabara na rua como resultado
da Revolta da Vacina de 1904, em cujo contexto, no dia 14 de novembro de 1904, um grupo de
oficiais do exército protagonizou uma tentativa de golpe de Estado a partir das instalações da
Praia Vermelha, então nominada Escola Militar do Brasil. Tendo à frente militares políticos
(CASTRO e GAGLIARDI, 2009) pretendiam insurgir-se contra o Presidente Rodrigues Alves,
um representante civil da oligarquia cafeeira. Isso ocasionou o fechamento da Escola Militar da
Praia Vermelha, com as funções de sua sede transferidas para o Realengo e para cidades do Rio
Grande do Sul (GRUNENNVALDT, 2005, p. 60).
Por um ano Dilermando ganhou sustento em outras funções, sempre amparado por sua
família, tanto no Rio de Janeiro, onde trabalha como desenhista do Hospital Central do Exército,
quanto em Santos, onde trabalhou com os tios Amadeu e João Ratto no comércio do café (DEL
PRIORE, 2009). Em 1906 ele finalmente retornou ao Rio e ao exército, para nunca mais
abandonar sua carreira militar, que a ele sempre apeteceu. Dilermando galgou os degraus
militares um a um, mesmo ao longo de todos os anos em que o fez como o assassino de Euclides
da Cunha, e ao longo dessa subida dá inúmeras mostras da tal virilidade esperada pelos
membros do exército sendo, por exemplo, um grande campeão de tiro167.
Imagem 12. Dilermando e Dinorah de Assis. Foto do acervo de Dirce Cavalcanti para
BBC Brasil. Disponível em https://www.bbc.com/portuguese/48916568. Acesso em 14
out 2021.
167
Foi campeão do Exército e Campeão Brasileiro na modalidade de fuzil de guerra. Foi ainda representante do
Tiro Nacional em 1922 nos Jogos Latino-Americanos, sagrando-se campeão na prova de fuzil, essas as primeiras
de muitas vitórias ao longo dos anos (FERREIRA, s/d). Del Priore (2009, p. 135) conta que Dilermando “exibia
sua destreza apresentando-se em espetáculos nos quais concorriam os mestres mais celebrizados nesse ramo do
sport”.
168
É comum ver o adjetivo ligado a Dinorah (p. ex. ANDRADE, 2009, p. 140). No entanto, em todos os livros
consultados sobre o assunto, Dinorah é lembrado, sua situação (e o seu fim) reconhecidos. Nas reportagens de
jornal, especialmente as iniciais e descritivas do fato, a presença de Dinorah sempre é estabelecida. É verdade que
em algumas reportagens posteriores ele não é citado nominalmente, provavelmente por não estar diretamente
ligado ao triângulo amoroso, que era o assunto que mais chamava a atenção.
90
entrar em campo uma semana depois, em uma partida contra o Fluminense (BRANDÃO, 2020).
Com a bala alojada em sua coluna, viveu normalmente por cerca de um ano até que passou a
sentir fraquezas musculares que marcaram uma decadência física muito grande. Obrigado a se
submeter uma cirurgia no ano de 1913, acabou ficando paraplégico. Por muito tempo viveu
junto de Dilermando, mas em uma das idas e voltas da família ao sul do país, decidiu ficar em
Porto Alegre. Amargurado diante da própria situação, sofrendo de depressão, acabou internado
em um sanatório e tirou a própria vida em 1921 (DEL PRIORE, 2009).
As primeiras notícias depois da morte de Euclides falavam sobre uma relação próxima
entre a vítima e o seu assassino169. Evaristo de Moraes as combateu veementemente em juízo
(1922, p. 213). Dilermando, discorrendo sobre o embate e a sua atitude de defesa, fala: “não era
nem seu parente, nem seu protegido, nem educado, nem criado, nem alimentado, nem
amparado, nem mesmo amigo e quase nem conhecido!... Pois se não lhe devia o menor favor,
a mais ligeira obrigação! ” (ASSIS, 1916, p. 68). Andrade também refutou essa informação em
mais de uma ocasião170.Por exemplo, para mostrar o desconhecimento de ambos, narrou que
quando Euclides voltou da Amazônia, Ana recebeu um telegrama: “Estou a bordo do Tennyson.
Mande-me buscar. Euclides”. Assoberbada com a situação, Ana mandou Dilermando ao cais171
para recepcionar o marido. Judith conta o que o pai se viu obrigado “a esse vexame”, tendo em
vista que, tendo permanecido tanto tempo em companhia de Ana, proceder de outra forma seria
denunciador (ANDRADE, 2009, p. 45).
As conclusões de Dilermando sobre este episódio deixam claro que, embora ele fosse
um rapaz até certo ponto inocente172, envolvido em uma relação apaixonada, sabia muito bem
as consequências que aquela relação poderia acarretar – e que de fato vieram em rápida
sucessão:
[...] retirar-me exatamente nos momentos em que chegava seria, tendo durante
tantos meses ali permanecido em companhia de sua esposa, denunciar o [...]
extremo a que chegaram nossas relações de intimidade. Era preciso assim
169
Por exemplo, o Jornal do Brasil de 16 de agosto de 1909, “Sua casa era assiduamente freqüentada por dois
rapazes, filhos do Rio Grande do Sul, amigos íntimos da família e bastante conhecidos na nossa sociedade. Eram
os estudantes militares Dilermando Cândido de Assis e Dinorah Cândido de Assis, filhos do Tenente do 2º
regimento de cavalaria do Exército, João Cândido de Assis e de D. Joanna Carolina de Assis, já falecidos. Depois
da morte, há seis anos, do Tenente Assis, que era seu primo, a esposa do Dr. Euclydes da Cunha tomou a si o
encargo de auxiliar os dois moços estudantes. Dilermando, que era da Escola Militar, passou no fim de algum
tempo a ser aspirante a oficial do Exército, continuando Dinorah a ser aluno paisano da Escola Naval.
D. Sinhá, como é familiarmente conhecida aquela senhora, votava grande estima aos dois parentes, a ponto de lhes
fornecer os meios necessários para prosseguirem nos estudos, com o que concordava também o seu marido.”
170
Brandão, por sua vez (1990, p. 22), insistiu nas relações próximas entre eles, e transcreveu carta que, segundo
ele, teria sido escrita por Ana, na qual se lê, sobre Euclides, “chegou a tratar mal o Dilermando (a quem sempre
tratou como um filho), que chegou numa hora ruim. ”
171
Vide nota 152.
172
Dilermando era de fato bastante jovem ao conhecer Ana, e fora educado por praticamente toda a vida em
internatos religiosos com pouca liberdade e poucas ocasiões para convivência fora daquele contexto.
91
procedi para poupar uma honra e quiçá uma vida. O golpe vibrado na
dignidade própria não produzia mossa – antes a entumecia: mera contingência,
necessidade de um deslize para poupar uma catástrofe. Era um mal produzindo
um bem. (ASSIS, 1916, p. 65).
Dado o tiro fatal em Euclides, restou a Dilermando contar à amante que lhe matara o
marido, “S´Anninha, acabo de matar seu marido em defesa própria” (GALVÃO, 2009, p. 67),
alegação que a justiça reconheceu, mas que a mídia da época e a opinião pública nunca
aceitaram, especialmente quando Ana e Dilermando se casaram e constituíram família. A cada
agosto, a cada homenagem a Euclides, a família Assis era de novo chamada a responder pelo
crime cometido (ANDRADE, 2009, p. 223; CARNEIRO, 2019).
Dilermando, ainda jovem, viu-se numa situação onde os enteados, alguns quase de sua
idade, eram a sua nova família e eram, ao mesmo tempo, filhos do homem que ele matara173.
Era uma relação construída em bases frágeis, quase explosivas, apoiadas na inconformidade
dos amigos e familiares de Euclides174, os tutores oficiais dos descendentes do escritor. Sólon,
o mais velho, logo atingiu a maioridade, tornando-se um visitante ocasional na casa de
Dilermando175. Quidinho, um jovem de saúde frágil, passou o resto dos seus anos de formação
dividido entre o colégio interno e os tutores, até seguir carreira militar. Manoel Afonso foi
colocado aos cuidados da avó, D. Túlia e da tia Alquimena, e depois encaminhado para um
colégio interno (DEL PRIORE, 2009). Mas as dificuldades desta relação sempre orbitavam a
vida do casal, e da família que eles já tinham começado a construir.
As disputas narrativas e de memória que nos chegam demonstram que essas
personagens nem sempre agiram à altura das expectativas de seu tempo, e tinham visões
pessoais que justificavam os comportamentos que, para a média da população, pareciam
inaceitáveis. Sobre a sua relação com Ana, Dilermando declarou:
A convivência acarretando a intimidade; a falta de experiência ou malícia
permitindo a aproximação mais íntima; a vida não mais enclausurado abrindo
novos horizontes; as leituras em comum despertando fantasias, a puberdade
deslumbrando encantos; os espetáculos inviscerando devaneios, a
coincidência de predileções esportivas trazendo o embevecimento, o retiro
facilitando o império da natureza; a ausência de um conselho protetor que
advertisse do curso da idolatria prestes a converter-se em paixão e tantas
outras circunstâncias, já materiais, já morais, ora de maior, ora de menor
monta que seria ocioso enumerar, tudo concorreu para o despertar de novos
173
Essa questão é discutida no capítulo 3, ao tratar da morte de Euclides da Cunha Filho.
174
Era uma queixa recorrente de Dilermando, a de que tutores e advogados só interviam para prejudicar qualquer
boa relação que houvesse entre ele e os filhos de Euclides, ou mesmo entre Ana e os próprios filhos, que nunca
houvera qualquer preocupação real com o bem-estar deles. (ASSIS, 1951).
175
Prestando informações ao juiz, Sólon declarou que “ tinha já ido à casa do denunciado, não só acompanhando
a sua mãe como também ao irmão do denunciado de nome Dinorah e para jogar florete com o denunciado e com
Dinorah”. (GALVÃO, 2009, p. 140).
92
O crime que os uniu foi o grande drama da sociedade republicana do início do século
XX, envolveu o peso da honra de uma família de conduta ilibada e importância para a jovem
República (seja pelo próprio Euclides, seja pelo pai de Ana, Sólon Ribeiro). Honra que Euclides
tentou vingar – e não conseguiu. Honra que Dilermando contribuiu para manchar – e se safou.
Honra que pertencia a Ana, que a ela cabia cuidar, e que nem os “mecanismos de controle
social, as intrigas e fofocas, as denúncias à boca pequena e a ação da família e dos amigos”
(VOGEL e FERREIRA, 2014, p. 166) impediram-na de ferir, o que abriu espaço não só para
uma apuração judicial, mas também para uma guerra de informações e um esforço de honraria
à memória de um grande escritor, como se verá no capítulo a seguir.
93
A morte de Euclides ganhou nome e notoriedade nas páginas dos jornais (especialmente
os cariocas) não só em 1909, mas ao longo de muitos dos anos seguintes. Um dos grupos ao
qual pertenceu Euclides era esse, o dos jornalistas176. Mas, quem eram? Uma congregação que
começava a ganhar identidade e que não era homogênea. Nesse início de séc. XX, artigos de
jornais eram escritos por intelectuais e profissionais de diversas áreas (TOLEDO, 2009), e no
jornalismo, como em outros campos, viam-se dois aglomerados, o dos vindos da elite e os
outros:
Oriundos em grande número das faculdades de Direito, os que ocupam cargos
de prestígio ou os que são redatores e repórteres nos jornais diários fazem, na
maioria das vezes, da profissão patamar para alcançar posições políticas ou
situações de estabilidade financeira, participando da burocracia estatal. Ser
jornalista é, através do prestígio que o lugar confere e das relações pessoais
que possibilita, “cavar” um cargo público ou ingressar na política ou na
diplomacia. Se, para os repórteres, o caminho é participar da burocracia
estatal, também como forma de complementar seus rendimentos, para os
dirigentes e profissionais mais importantes, o lugar natural é a política.
(BARBOSA, 2010, p. 141).
À imprensa, que tanto se expandira177 no final do séc. XIX, cumpriam muitos papeis,
dentre eles a propaganda dos ideais burgueses – dos quais a honra ocupava lugar de destaque
(GAY, 1999). A fim de atender a esses diversos papeis, tratava de um vasto leque de notícias
que visavam atingir diferentes grupos de leitores178. Eram comuns e apreciadas as reportagens
que cobriam os conflitos passionais (onde a honra tinha lugar de destaque). Um embate que
176
O grande marco jornalístico da carreira de Euclides é a sua atuação em Canudos, sobre a qual Daniel Piza
(2009) aponta: Cunha era um homem de letras que foi à Bahia testemunhar o fato, mas, ao mesmo tempo, um
repórter, pois chegara lá com essa função: apurar informações e despachar para um jornal. E Piza destaca que
Cunha o fez com tamanha dedicação que a carga de preconceitos que chegou com ele a Canudos foi abandonada
em razão do que ali testemunhou, “um pioneiro do jornalismo moderno e acho que tem essa coisa de ser ‘o novo
jornalista’ porque o estilo dele não é só o estilo que traz informações, mas que também te faz se sentir no ambiente
com recursos literários” (PIZA, 2009).
177
Na esteira de profundas transformações sociais, novos modos de vida e uma expansão da população letrada a
imprensa começa a avançar (CRUZ, 2000).
178
Desde o XIX o jornalismo já incorporava assuntos diversos e publicava textos de gêneros diversos - notas,
entrevistas, crônicas, etc (LUCA E MARTINS, 2008).
95
179
E essa posição de Euclides entre seus pares é tão querida que O Estado de São Paulo, ao noticiar o
cinquentenário de sua morte em 1959, o fez com a seguinte manchete: “Comemora-se hoje o cinquentenário do
falecimento de Euclides da Cunha: Euclides jornalista”. E honra a memória do escritor fazendo um apanhado da
sua atuação, “... no tempo em que Euclides da Cunha se iniciava carreira, era sem dúvida o jornal o único caminho
que podia trilhar um escritor. O que há portanto de interessante em seu caso, não é o fato de ter sido jornalista.
Todos o foram então. Só que Euclides não colaborou como tantos outros escrevendo crônicas ou comentários mais
ou menos gratuitos. Ele fez reportagens. Lançou-se como correspondente de guerra, observando, informando,
oferecendo ao leitor um panorama vivo, apaixonante do que ocorria no sertão conflagrado” (O Estado de São
Paulo, 15 de agosto de 1959).
180
Walnice Galvão (2009) lembra que a imprensa paulista manteve a discrição na apuração do fato, enquanto a
carioca explorou o fato.
181
Mas não exclusivamente. Em muitos momentos é preciso recorrer ao texto do processo crime ou aos livros que
tratam da Piedade para entender a construção das narrativas. Em relação ao processo-crime, no item 2.1, vê-se a
mesma ocorrência: quando necessário para melhor compreensão da narrativa, socorre-se da documentação
utilizada ao longo do trabalho.
182
No Brasil, o Tribunal do Júri foi criado em 1882, objetivando julgar crimes de imprensa e composto por
“homens bons, honrados, inteligentes e patriotas” (conforme Decreto de 18 de junho de 1822 que criou “ juízes de
facto para julgamento dos crimes e abusos de liberdade de imprensa. Disponível em encurtador.com.br/dqxP1.
Acesso em 15 jan 2022).
183
Conforme explica Paulo Rangel, eram eleitos para o Júri os cidadãos que participavam da vida política nacional.
Ou seja, uma minoria branca e mestiça, excluindo escravizados e pobres, visto que era preciso, ainda, comprovar
determinada renda. (RANGEL, 2009).
96
184
Em 17 de maio de 1909, meses antes de sua morte, por exemplo, após fazer o concurso de professor para o
Ginásio Nacional, Euclides vai ao cinema com o amigo Coelho Netto. No filme, o protagonista mata a esposa
adúltera e ganha o apoio de Cunha, “essa é a verdadeira justiça. Para a adúltera não basta a pedra israelita, o que
vale é a bala” (VENTURA, 2003, p. 297).
185
Teodoro Sampaio, comentando as suas conversas literárias com Euclides, ao falar sobre preferências estilísticas,
acaba por falar sobre a forma de sentir do escritor, “[...] dada a sua predileção acentuada, pelo frasear energético,
expressivo, quente, mais de acordo com a sua maneira de sentir. ” (MARCOLIN, 2015, p. 115).
186
Em carta a Oliveira Viana, conta, “andei perdido dentro da caverna de Platão... Conhece com certeza a alegoria
daquele máximo sonhador – de sorte que bem pode avaliar os riscos que passei” (PONTES, 1938, p. 268).
187
É o movimento euclidiano a semente da Semana Euclidiana, iniciado em 1912 sob a batuta de Alberto Rangel
e outros confrades e amigos de Euclides. Vide discussão às fls.106.
97
o levam até lá. A Piedade é a culminação de uma história de anos, mas para fins de compreensão
podemos, neste capítulo, partir do Concurso de Lógica do Colégio Pedro II que tanto
desestruturou Cunha. Aos ânimos exaltados de um concurso cheio de reveses e uma situação
política agitada, somou-se a doença do pai do escritor, que caíra enfermo no interior paulista,
onde vivia. A notícia de sua reprovação piorou o seu estado já nervoso:
[...] a notícia cai-lhe no espírito e provoca incêndio. Os nervos andavam-lhe
destrambelhados com os excessos das leituras, as emoções da prova escrita e
os episódios íntimos, recalcados e tirânicos. Apressa-se e manda ao amigo um
bilhete angustioso, traindo os velhos ímpetos do temperamento. Depois anda,
por toda a parte, meio esmaniado, à procura de arrimos e conselhos. Como
sempre escolhe soluções violentas que logo abandona. Descobre inimigos
ocultos, rancores gratuitos, antipatias que se dissimulam. [...]. Por que diabos
se metera em concurso, onde as invejas rangiam os dentes e as incompetências
arregaçavam as mangas? Nesse estado perde horas e horas de torturas.
(PONTES, 1938, p.273).
188
Aprovado em segundo lugar no certame, por questões políticas acaba escolhido e nomeado para o cargo pelo
então Presidente da República, Nilo Peçanha (VENTURA, 2003).
189
De tal forma que os jornais que noticiavam a morte de Euclides, tentando reconstruir a narrativa do ocorrido,
destacavam esse fato: “ Parece que, por questões de incompatibilidade de gênios, não havia muita harmonia entre
aquelas senhoras e a esposa do Dr. Euclides Cunha, que, por esse motivo, procurava, por males suazories, ver se
conseguia afastá-las de casa, para arredar uma situação constrangedora. ” (O Paiz, 16 ago 1909).
190
O que se vê das entrevistas e depoimentos é que Ana, especialmente após a sua relação com Dilermando, tinha
uma relação distante com a própria família, mas não tinham cortado laços completamente. O jornal A notícia,
cobrindo os acontecimentos da Piedade, ouviu o irmão de Ana, o comissário Sólon Ribeiro, que informou que Ana
costumava visitar o filho que estava no Internato Ginásio Nacional e, nesses dias, ia até a casa de sua mãe. (Jornal
A Notícia, 18-19 ago 1909). Vide nota 151.
191
Bairro do subúrbio carioca, tão distante do centro quantos dois lugares poderiam ser. Não apenas pelos
quilômetros vencidos pelo trem, mas porque “se na belle époque o Centro reformado era o lugar da civilização, os
subúrbios ainda concentravam a barbárie. Chamados de sertões” (DEL PRIORE, 2009, p. 70).
98
O dia 15, para os Assis, amanheceu com as batidas de Euclides na porta. Dilermando,
em mangas de camisa, correu para vestir o paletó enquanto Ana se abrigava no quarto e Dinorah
convidava o escritor a entrar. Diante do ataque de Euclides, Dinorah foi o primeiro a ser
atingido, uma das balas lhe entrou pelo ombro e alojou-se na espinha (GALVÃO, 2009).
Dilermando, por sua vez, foi atingido na garganta, no estômago, na virilha direita e na omoplata.
Exímio atirador que era, Assis reagiu em autodefesa e desferiu balas às paredes em aviso, mas
isso não aplacou a fúria cega de Euclides, que insistiu em disparar. Dilermando, então, atirou
em direção a Euclides e quatro projéteis o atingiram: o primeiro deles no pulso direito, com o
intuito de desarmá-lo. Logo veio outro, atravessando o braço esquerdo, um terceiro, direto nas
costas e, finalmente, o que entrou pelo ombro direito e se alojou na sétima vértebra (GALVÃO,
2009, p. 100 e 102).
A causa mortis, determinada pelo médico legista192 (e amigo do falecido) Afrânio
Peixoto (VENÂNCIO FILHO, 2001), foi hemorragia do pulmão direito devido a ferimento por
arma de fogo (GALVÃO, 2009, p. 75). Ana, escondida com Luís, ressurge para encontrar um
agonizante Euclides e o pandemônio instalado. Foi a própria Ana quem resumiu o seu grande
dilema, “eu não podia continuar com Euclides. Admirava Euclides, o escritor. O homem, o meu
marido, estava enlouquecendo. Eu o temia” (ANDRADE, 2009, p. 195).
Elói Pontes (1938, p. 293) viu a comoção com muita naturalidade, “a morte de Euclides
da Cunha, como era lógico, teve larga repercussão”. Morto o escritor, o seu corpo ainda estava
estendido em uma cama na Piedade quando os primeiros telegramas começaram a ser
disparados. O Jornal do Commércio recebeu o seu às 12h30min:
Ainda não voltamos a nós do espanto horrível que nos causou a notícia do
absurdo e trágico assassinato de nosso prezado e eminente colaborador
Euclydes da Cunha. Um telegrama expedido de Cascadura às 12h30min da
tarde de ontem dizia-nos laconicamente: Euclydes da Cunha assassinado.
Estrada Real, 214. (Assinado), Solon Cunha. (Jornal do Commércio, 16 ago
1909).
192
Acerca do laudo cadavérico, Andrade (2009, p. 190), trazendo argumentos do Dr. Alves de Menezes, registrou
que sendo Afrânio Peixoto tão próximo a Euclides, teria sido para ele penoso ser aquele a “inviscerar” o corpo de
Cunha e “em sua análise, considerando que a inquietação emocional do responsável pelo auto de necropsia
transparece no texto do laudo, aponta algumas omissões, bem como descrições mutiladas”. Essa questão é
desenvolvida com mais vagar na p. 115.
99
Hoje, um século depois, fica mais fácil resumir: Euclides morreu pelas mãos de
Dilermando, sim, mas este buscava se defender das balas de Euclides que, ao atacá-lo, buscava
salvar a própria honra - ferida pelo caso que sua esposa, Ana, mantinha com Assis. Mas, até
chegarmos a esta explicação singela para uma situação complexa, uma longa narrativa se
desenrolou, foram meses de novos fatos, recordações, intimidades expostas.
Partindo dessas narrativas jornalísticas e essas narrativas cristalizam o pesar de um
grupo pela morte de Euclides. Aliás, de mais de um grupo: o dos jornalistas, o dos intelectuais,
o dos políticos. E elas são informativas, é verdade, essa é a primeira função delas, mas a sua
apuração e a escrita vêm de pessoas interessadas em compreender o destino de Euclides, não as
razões de Dilermando ou Ana. Então a informação muitas vezes só é repassada a partir de um
ângulo. Não há um contraditório, como forçosamente acontece no processo-crime. Dilermando
não é ouvido, Ana é replicada a partir do que ela fala ao Delegado ou ao Juiz (não que ela
demonstre alguma vontade de falar com a imprensa, ao contrário de Dilermando, que sempre
buscou esse espaço).
100
O Rio de Janeiro amanhecera com o grande escritor morto em circunstâncias ainda não
muito bem elucidadas, e as reações em periódicos como a Gazeta de Notícias ecoavam o
choque: “ontem à tarde, na cidade molhada de aguaceiros contínuos estalou como um raio, na
redação dos jornais, uma notícia atroz: Euclides da Cunha foi assassinado! ” O Jornal do
Commércio, na mesma data, lamentou: “ainda não voltamos a nós do espanto horrível que nos
causou a notícia do absurdo e trágico assassinato de nosso prezado e eminente colaborador,
Euclides da Cunha. ” E a Folha do Dia, também naquele 16 de agosto, arrematou:
Na triste tarde de ontem correu pela cidade, entre o espanto e a mágoa, a
notícia do assassinato de Euclides da Cunha. Às primeiras informações, vagas
e falhas, seguiram-se detalhes dolorosos: Euclides da Cunha tombara varado
por bala, no rápido desenrolar de cena íntima, quando procurava desafrontar
a honra, que julgava ofendida. Torturado pelo sofrimento que lhe deprimia o
espírito alanceado pelo desgosto de um sonho desfeito, o querido autor de “Os
Sertões” premeditara a desafronta e é de calcular a cruel amargura que para
ele foram as últimas horas de existência. E, assim, desapareceu, em minutos,
esse homem cheio de vida e de talento que tanto honrava a nossa cultura.
(WEGUELIN, 1998).
Imagem 16: Jornalistas cercam o corpo de Euclides da Cunha no necrotério. Foto: Revista do
Livro da Biblioteca Nacional.
193
No seu relatório, o Delegado chama isso de “primeira falsidade”, “ logo se me afigurou que tais ‘motivos
íntimos’ e a ‘estadia da referida senhora’ constituíam um só dos elos causais dos antecedentes e procurando
averiguar estes antecedentes, encontrei a primeira das falsidades contidas nas declarações do agente direto do
crime, isto é que a esposa do morto não tinha chegado no momento, mas – ao contrário, já ali estava quando teve
início a luta” (GALVÃO, 2009, p. 103).
194
Assis (1950) é incisivo ao dizer que prestou declarações não oficiais nesta ocasião, e que o Delegado sequer
estava presente.
103
Quando Ana foi ouvida pelo Delegado de Polícia no dia seguinte à morte de Euclides,
insistiu em uma relação maternal com os irmãos Assis (GALVÃO, 2009), e atribuiu a morte do
marido aos ciúmes infundados que este sentia de Dilermando. Contudo, na mesma data, em
nova declaração, Ana mudou sua versão alegando querer “levantar a memória de seu marido”
(GALVÃO, 2009, p. 77) e declarou que sempre reconheceu a grandeza de seu caráter e sua
honradez, mas o comportamento ciumento dele lhe fora muito difícil e, ao longo do tempo,
despertou nela sentimentos que lhe eram estranhos e, conhecendo Dilermando nessas
circunstâncias, desenvolveu por ele sentimentos de afeição e carinho195. A princípio com
inocência, segundo ela, porque ele lhe dispensava o mesmo tratamento, mas que o passar do
tempo estreitou esses sentimentos, culminando com o desejo de se separar de Euclides, situação
que Ana declarou, ainda diante da autoridade policial, ter informado a Dilermando justamente
no calor dos acontecimentos que culminaram com a sua viuvez (GALVÃO, 2009).
O fato é que, em um primeiro momento, por haver uma negativa de qualquer
relacionamento entre Ana e Dilermando, a atitude de Euclides parecera fora de lugar. No 16 de
agosto seguinte ao fatídico dia, via-se em O Paiz:
É difícil determinar as causas deste fato pungente que impressionou
profundamente toda a capital. Não se podia explicar o motivo que levou esse
espírito, tão operoso e tão equilibrado, apesar da sua extrema vibratilidade, a
um ato que seria um desmentido à ponderação e ao método, se ele não tivesse
em si mesmo uma causa poderosa a impeli-lo. E tão estranho era ao feitio de
Euclides da Cunha o fato em que foi protagonista e vítima, que todos aqueles
que viram os primeiros boletins noticiando o assassinato do grande escritor,
recusaram-se a aceitá-lo [...] Pouco depois chegava, porém, pelo telefone, de
nosso repórter, a confirmação da triste realidade. Era bem verdade que fora
assassinado o brilhante manejador da prosa. Por que? Não o saberíamos
afirmar com sinceridade. Os depoimentos feitos e as versões espalhadas
aludem a um estado de espírito que ciúmes injustificadores teriam criado, a
zelos que agiram, cada vez mais perencientes, como um perturbador da lúcida
visão de Euclides da Cunha. Mas não é demais acreditar que eles agissem
como age toda a idéia que se não repele imediatamente, tomando vulto sem
razão para isso, mas nem por isso dominando menos o espírito vibrátil do
195
Del Priore (2009) reflete que nos casamentos influenciados pelo positivismo, o caso de Ana e Euclides, o papel
do sexo era reprodutor. A compensação desta ausência? O amor dos filhos. Os filhos de Ana estavam longe, no
colégio interno, só Manoel Afonso com ela permanecia. É possível imaginar que quando Dilermando e Ana
primeiro se aproximam, o sentimento que os uniu fosse mesmo esse, o de suprir a ausência de uma mãe e de um
filho nas vidas de ambos, mas esses sentimentos mudaram, e as relações entre eles também.
104
Veja-se que este aspecto dos acontecimentos foi acompanhado com tanto cuidado pela
imprensa que no dia 17 de agosto, o mesmo O Paiz destacou:
A polícia, no inquérito que faz, parece estar apurando fatos que firmam a
questão neste sentido e um dos casos que parecem averiguados é que a
presença de D. Anna Solon e seus filhos no local do crime é anterior à hora
indicada nas notícias de ontem. O ato violento do inditoso escritor deixa assim
de se apresentar como o resultado de um impulso doentio, mas como a
conseqüência de um estado moral em que os temperamentos mais sadios
teriam, quiçá, agido da mesma forma. (Jornal O Paiz, 17 ago 1909).
Quando Ana não admite a verdade e insiste em uma relação platônica com Dilermando,
a atitude de Euclides parece, para muitos, estranha e desproporcional – uma flagrante falta de
autocontrole, de virilidade196. Ao admitir as relações que mantinha com Assis, Ana devolve a
Euclides o seu direito de reação, mais que isso, o seu dever de reação para salvar a própria
honra. Essa mudança de comportamento de Ana, que ela deixa claro ter ocorrido para explicar
o comportamento do marido, devolveu nobreza ao comportamento de Euclides e refletiu bem
entre aqueles que vigiavam o desenrolar dos fatos. Eles aprovaram o que viram como a
dignidade da atitude da viúva, que passou a ser descrita como vítima da uma paixão doentia e
da exploração por um homem mais jovem197, que dela se aproveitou inclusive financeiramente.
As suas atitudes mostravam uma preocupação em preservar a memória do marido – o que era
a sua obrigação de esposa. Ela foi relativamente poupada e Dilermando massacrado, embora,
segundo ele próprio, o seu comportamento visasse poupar a memória de Cunha198.
196
Nos termos da discussão apresentada na p. 46.
197
O que é um golpe na visão da virilidade do próprio Dilermando, ainda na esteira da discussão da p. 47: um
homem viril tem autocontrole e se comporta sempre de maneira respeitosa diante das mulheres, respeitando as
suas limitações, que as tornam dependentes da força do homem.
198
Segundo Dilermando, “em vez de tornar públicos os detalhes do caso, em já para quatro anos de duração, eu
apenas dissera que a ‘motivos íntimos’ atribuía a sua decisão. Interessante é entenderem os meus amazelados
antagonistas que eu cometera um grande crime não descerrando todo o segredo causador dessa tragédia, quando
Euclides sempre diligenciou escondê-lo.... No entanto, estou certo, se o fizer, hão de chamar-me de leviano e,
talvez, infame. “ (ASSIS, 1951, p. 193).
105
Portanto, conta-se uma versão dos fatos na qual Dilermando ocupou o lugar de sedutor
de uma mulher mais velha e fragilizada pelas ausências do marido, que trabalhava longe de
casa:
Essa infeliz senhora, obcecada por uma paixão que a desproporção das idades
tornava mais dominadora e explorada indignamente por uma mocidade sem
brios não é, aliás, a mais merecedora de gracejos. Há em torno dela um
ambiente de misérias morais, cúmplices de seu erro e tanto ou mais flageláveis
do que ela. O que aparece de mais revoltante é a exploração desse
desvairamento, é o tributo pecuniário imposto à cegueira de uma mulher, é a
retribuição de um afeto delituoso convertido em uma forma de indústria
particular. (Jornal O Paiz, 18 ago 1909).
Isso o colocou em um lugar muito ruim diante da opinião pública, porque, então, das
mulheres muito se exigia quanto ao seu comportamento, e Ana poderia até ter falhado no dela,
mas era de conhecimento geral que mulheres eram seres frágeis, incapazes, e que cabia aos
homens199 o cuidado com elas. Esse lugar no qual foi colocado deixou Dilermando, no mínimo,
inconformado, “fizeram-me um D. Juan, um conquistador, um sedutor de... uma senhora casada
havia mais de 15, desde a proclamação da República! Tanto vale dizer que, em 1890, quando
199
Os homens, que nas portas do séc. XX eram criaturas fortes, capazes e civilizadas, “o respeito pela honra da
mulher não é um sentimento inato ao homem e sim uma conquista da civilização, a vitória das identidades morais
sobre a brutalidade dos instintos” (CASTRO, 1897).
106
Euclides se casou, eu tinha apenas dois anos de idade.... Que sedutor!” (ASSIS, 1951, p. 178).
Ademais, a questão do suposto aproveitamento pecuniário que Dilermando teria com a relação
é rechaçada ao longo do processo por Evaristo de Moraes e pela própria Ana, em declarações
ao Juiz200.
Quanto aos veículos de comunicação, povoados de amigos e colegas de Cunha, estes
seguiram uma dinâmica de defesa de Euclides e ataque a Dilermando que reverbera no que o
próprio Evaristo de Moraes narrou201: que ele não fora chamado por Dilermando logo quando
o crime acontecera e que suas primeiras impressões vinham das narrativas dos jornais que eram
“conhecimento viciado eivado de prevenções quanto às anteriores relações dos dois
protagonistas, quanto aos antecedentes do crime, quanto a muitas de suas circunstâncias”
(MORAES, 1922, p. 211). O advogado, inclusive, conta que, muito mal impressionado com a
narrada ingratidão de Dilermando e, tomado de respeito pelo que ele chama de “tortuoso
talento” de Euclides, não se viu muito animado em atender ao chamado de Assis, que o queria
como defensor (MORAES, 1922).
Euclides, morto e enterrado, tinha sua memória cuidadosamente defendida por amigos
e colegas, os jornais destacavam “sua competência, sua honestidade, seu profissionalismo, seu
talento, seu caráter, e suas qualidades artísticas e intelectuais” (ABREU, 1998, p. 280), razão
pela qual, logo, as narrativas subiram alguns degraus e Euclides ganhou os contornos de deidade
que o acompanham até hoje: um homem com “esforço de vontade quase sobre humano”, um
homem que entrou “triunfante na glória dos grandes escritores”, um homem que realizou “uma
verdadeira Odisséia, da qual triunfaram o patriotismo, o brio, e a tenacidade do grande
brasileiro” (ABREU, 1998, p. 280). Para a comparação de Cunha a Ulisses, é a própria Ana
quem oferece uma réplica, “e se fosse ao contrário? Se as mulheres viajassem, como se
portariam os maridos à espera?” (BRANDÃO. A, 1990, p. 14).
Como já foi apontado, a imprensa iniciara uma narrativa, açulando contra Assis a
“matilha das paixões populares” (MORAES, 1922, p. 213), e elucidando que Dilermando traíra
uma relação de confiança com Euclides de forma muito pior do que a mera traição física da
esposa (que, recordemos, já seria grave o suficiente para os parâmetros da época). Era
recorrente o argumento que Euclides acolhera e auxiliara Dilermando em sua carreira militar,
200
Ouvida pelo juiz durante o julgamento de Dilermando, Ana declarou” que não remetia ao acusado qualquer
quantia em dinheiro, que nunca o fez, não só porque ele não necessitava disso como também os meios que lhe
fornecia o seu marido não lhe dava para isso” (GALVÃO, 2009, p. 127).
201
De fato, notícia publicada no jornal A Notícia de 18-19 de agosto de 1909 aponta que " Dilermando foi hoje
visitado pelo seu advogado Deocleciano Martyr, a quem disse que confirmava o seu primitivo depoimento”
(Disponível em encurtador.com.br/rAL47. Acesso em 02 fev 2021).
107
para então ser traído de forma tão amarga. A máquina judiciária também pareceu se unir em
torno da construção dessa narrativa e no esforço de preservação da honra de Euclides e da
condenação de Dilermando – e Ana. Evaristo de Moraes traz uma reminiscência:
Foi principal preocupação minha reunir provas de que não houvera a
apregoada ingratidão, porque, no caso, só esse aspecto moral tinha
importância; o mais sempre se me afigurou pouco. Temível, a despeito dos
esforços do delegado Oliveira Alcântara e do escrivão Anôr Margarido, que
visavam fechar o caminho à legítima defesa (MORAES, 1922, p. 212).
202
No ano de 2020 foi montado o espetáculo “Redenção”, de Miriam Halfim. A peça, que deveria estrear no antigo
Tribunal do Júri, no Palácio da Justiça, RJ (supenso em razão da pandemia do Covid 19), promove uma releitura
do julgamento de Dilermando de Assis (SOPA CULTURAL, 2020).
203
Vê-se, especialmente em torno das discussões da implantação da República que, no Brasil, positivistas e liberais
eram unânimes em um ponto: a Igreja Católica e a Monarquia eram instituições conservadoras e retrógradas, um
entrave para a modernização do país. A legislação de fato passa a prever uma laicidade do Estado, no entanto,
109
entre a população a influência da fé católica ainda é muito grande, refletindo-se, assim, no seu modo de ver o
mundo, e isso inclui o crime – e o pecado.
204
A legislação progrediu, mas certos pontos se mantiveram até bem recentemente, como, por exemplo, a
criminalização do descumprimento da obrigação da fidelidade que, na prática, era apenas da mulher. Cabia à
esposa ser fiel ao seu marido, a punição do adultério recaía sobre o comportamento dela, recai sobre a figura da
mulher, porque é dela a obrigação de guardar a honra do marido. O Código Criminal de 1890 sofreria profundas
alterações com a Consolidação das Leis Penais de 1932, anos após a absolvição de Dilermando, mas só seria
revogado em sua totalidade pelo Código Penal de 1940 que, com muitas alterações, vigora até os dias de hoje.
205
A lei traz uma ressalva que previne o amante de ser punido pelo marido traído se tiver melhor condição social,
“salvo se o marido for peão, e o adúltero fidalgo, ou nosso Desembargador, ou pessoa de maior qualidade” (LARA,
1999).
110
estavam profundamente enraizados206 os ideais patriarcais e escravistas que foram, por tantos
anos, a base do Brasil:
A compreensão das peculiaridades da formação cultural do direito brasileiro
não deve ser destacada das profundas marcas deixadas por uma sociedade
agrária, escravocrata e conservadora que, com engenhosidade ímpar, foi
caminhando lentamente na direção de uma 'modernização' jurídica na qual
eram equivalentemente importantes alguns modelos estrangeiros a serem
seguidos e a necessidade de sua conformação com as injustas estruturas
sociais e políticas brasileiras. (FONSECA, 2006).
206
Apesar dessa sociedade tão dividida e tradicional, o Código Criminal de 1830 era dono de um texto
eminentemente liberal e bastante elogiado. José Frederico Marques (apud PRADO, 2002), por exemplo, sobre os
Códigos de 1830 e 1890, diz: "O Código de 1830 é um trabalho que depõe a favor da capacidade legislativa
nacional mais do que o de 1890".
207
O Direito e a cultura caminham juntos. “o Direito, como produção humana que é, torna-se também produção
cultural, ele – capitaneado pelo Estado, é o meio para se concretizar os valores fundamentais da vida em sociedade,
com as suas transformações e interesses” (DAHER, 2017, p. 22). Ainda acerca do culturalismo, “De forma bem
simplificada, pode-se destacar duas abordagens do culturalismo: a filosófica e a antropológica. Em uma abordagem
111
filosófica, de perspectiva kantiana, o culturalismo seria a afirmação da liberdade da escolha e vivência de valores
morais e éticos fundamentados na vida de um grupo. Antropologicamente, admite-se que a cultura é anterior ao
indivíduo e que a vida social e seus desdobramentos são variados e variáveis de cultura para cultura. Na perspectiva
de Levi Strauss, por exemplo, caberia às ciências humanas observar essa diversidade da condição humana”
(DAHER, 2017, p. 22).
208
Este telegrama também é citado na reportagem do Jornal O Paiz de 16 ago 1909.
209
Ana narrou ao Delegado de Polícia, em seu primeiro depoimento, que quando ela retornou de São Paulo, pouco
antes da morte do marido, estando em casa na presença de Euclides e das irmãs Ratto, “seu marido perguntou a
uma das senhoras acima aludidas, com quem parecia-se o seu filho Luiz, respondendo-lhe a de nome Angélica que
ele parecia-se com a informante e dizendo o seu marido que em sua família não havia um tipo louro, pela própria
senhora foi replicado que existia na sua família esse tipo e dando como exemplo a pessoa do denunciado; que a
informante pediu a essas senhoras que não falassem isso ao seu marido, que se tornava cada vez mais irascível,
[...] que acrescentaram também nesse momento as mesmas senhoras, que haviam sito aquilo ao Doutor Euclides,
sem de nada suspeitarem, visto como eram umas moças solteira e que assim não podiam permanecer na casa de
uma mulher como a informante” (GALVÃO, 2009, p. 131).
210
Angélica Ratto declarou ao delegado, “ foi procurada na pensão em que reside [...] pela senhora e filho Sólon,
do Doutor Euclides da Cunham tendo aquela senhora lhe participado que seguia pelo diurno de sete horas para
São Paulo; que por isso, lhe rogava fosse tomar conta dos filhos pequenos, e de seu marido Doutor Euclides da
Cunha, que se achava doente, recolhido ao leito; que sendo a declarante madrinha de batismo de um dos menores
e mantendo relações de amizade com a família prontamente acendeu ao pedido que lhe fora feito” (GALVÃO,
2009, p. 68).
112
a infâmia do ultraje, Euclides, emocionado, tem essa frase em voz alta: ‘ é assim que eu
compreendo’”. (PONTES, 1938, p. 282).
As irmãs Ratto tinham deixado claro o descontentamento diante da relação de Ana e
Dilermando. Ademais, elas entendiam que se deveria manter boa relação de amizade com
alguém tão bem relacionado quanto Euclides da Cunha. Diante do desfecho e da presença de
ambas em sua casa, Ana sabia do papel delas diante do comportamento de Euclides. Ambas
foram incisivas ao apontar ao Delegado (GALVÃO, 2009) que informaram o endereço dos
sobrinhos a Euclides por acreditarem que Sólon, após ter brigado com o pai, tinha ido até lá em
razão de sua amizade com Dinorah. Mas o próprio Sólon, também ouvido pela polícia, foi claro
ao dizer que “[...] sabendo que sua mãe não estava em casa da sua avó, dirigiu-se para a Estrada
Real de Santa Cruz, casa de Dilermando, o que o fez por saber, digo que fez, por ter ouvido
Dona Angélica dizer a seu Pai, que sua mãe Dona Anna estava em casa de Dilermando”
(GALVÃO, 2009, p. 97).
Mary Del Priore (2009, p. 9) lembra que a mulher donzela - a solteira, era “aquela que
não cumpria as regras, que se colocava fora do lugar certo. Que falhara”. Se Ana também era
uma mulher que não cumpria as regras, estranhamente ela e as irmãs Ratto acabavam por fazer
parte do mesmo grupo – a despeito de estarem em extremos bem distintos. Ana casou e
constituiu família, desviou-se do seu caminho natural por não respeitar o seu lugar no
casamento e a sua importância na manutenção da honra da família. As irmãs Ratto não, eram
“moças velhas”, e a mulher solteira (e celibatária, como mandava o código de conduta da época)
era uma mulher perigosa211: a sua condição lhe abria as portas para o mundo da histeria, uma
vez que ela não cumpria o seu papel natural, o de anjo tutelar da família: mãe e esposa, não no
lugar dos homens. Essa convenção do racional masculino versus o sensível feminino, visão tão
presente nos primeiros anos do séc. XX era um reforço dessa divisão de papeis, sempre
corroborada pela ciência. A medicina, à época, via a mulher como aquela dona de “fragilidade
física, de onde decorriam sua delicadeza e debilidade moral. Por injunções da natureza, era
211
O jornalista Berilo Neves, em crônica escrita no final da década de 1930 (Tragédia das solteironas, Revista da
Semana, 17 de julho de 1937), refletiu o pensamento que já era constante também dos primeiros anos do séc. XX,
o de que a mulher devia cumprir a sua função biológica e ser mãe, porque, segundo ele, “o celibato feminino é
uma fábrica, ativíssima, de monstros”, afinal, sendo a mulher um ser tão afetivo, nascido para amar, se não se
voltasse à sua destinação natural, enfrentaria um destino amargo, não só para si, mas também para aqueles que a
cercassem, porque, por exemplo, sendo professoras, poderiam descarregar seu descontentamento nos alunos e
“infernizar a alma terna das crianças”. Poderiam, ainda, dedicar-se ao péssimo hábito de falar mal da vida alheia,
“intrigar, por veneno na vida dos conhecidos, a começar pelos parentes” (NEVES, 1937, p. 1). É nesse último
comportamento, o da fofoca, que a narrativa coloca as irmãs Ratto, que eram descritas como “ambiciosas e
antipáticas” (DEL PRIORE, 2009, p. 10).
113
considerada como inferior ao homem, inferioridade que se manifestava pelo predomínio das
‘faculdades afetivas’, tornando-a mais ‘sentimental’ que ‘filósofa” (SOIHET, 1989, p. 118).
Outro nome que destaca um comportamento interessante ao longo do Inquérito e do
processo é o de Sólon, o filho mais velho de Ana e Euclides. Ele sabia que Ana frequentava a
Piedade, sabia da relação entre ela e Dilermando, mas nas suas manifestações perante a polícia
fala dubiamente sobre isso, deixando a entender que não sabia da relação. Ele fala, por exemplo,
que sabia que a mãe não estava na casa da avó porque ouvira D. Angélica afirmar isso e que ao
se deparar com Ana que não queria deixar a casa do amante, ficou “possuído de indignação
contra Dilermando, com quem por três vezes travou calorosa discussão” (GALVÃO, 2009, p.
97). Ao longo do processo, ele muda seu depoimento inúmeras vezes, muda o que disse para a
imprensa também, e sempre age para não deixar clara a sua proximidade com os irmãos Assis,
chegou a procurar O Paiz para declarar que não fora visitar Dilermando no hospital e que sua
mãe não tinha qualquer interesse nas condições de saúde dele. Declarou, inclusive, que se fosse
encontra-lo novamente, seria para “terçar armas” (DEL PRIORE, 2009 p. 90).
O Inquérito Policial seguiu os ritos previstos em lei e foi encerrado em menos de trinta
dias. A denúncia foi oferecida em 25 de setembro do mesmo ano de 1909, e foi imediatamente
recebida212, sendo Dilermando preso pela morte de Euclides da Cunha em 22 de outubro de
1909. Ato contínuo, em 30 de outubro, ele nomeou como seus advogados Evaristo de Moraes,
Álvaro da Silva Porto e Caetano Delamare Garcia (GALVÃO, 2009).
Em seu relatório final213 ao Inquérito Policial, o Delegado de Polícia214 responsável pela
apuração do crime, de início fala “[...] apurei então que a luta se teria travado, consequente a
certeza súbita que tivera o Dr. Euclides de que sua mulher adulterava e a selvagem brutalidade
de Dilermando e Dinorah que não quiseram evitar o conflito”. (GALVÃO, 2009, p. 105). E,
findo o relatório, encerra, “ para documentar a insensibilidade moral, a ausência de elementos
que disciplina, os homens normais e lhes moderam a ação, basta lembrar que Dilermando ao
dar as suas primeiras declarações, procurou construir a hipótese de que o Dr. Euclides da Cunha,
homem próximo à genialidade, era um quase demente, impulsivo e insano. ” (GALVÃO, 2009,
p. 111).
212
Cabe ao Ministério Público denunciar os acusados de crimes, mas o Juiz precisa receber a denúncia, iniciando-
se o processo judicial.
213
Assis define o relatório como peça que “não pode servir de base a qualquer juízo honesto e seguro que se
pretenda fazer sobre as verdadeiras ocorrências que levaram à morte o Dr. Euclides da Cunha, porque, além de
inverídico, contém erros grosseiros e flagrantes contradições”. Segundo Dilermando, isso se dá porque a
preocupação do Delegado era “muito diversa do que a de esclarecer os sucessos sem parcialidade” (ASSIS, 1951,
p. 187).
214
Dilermando (1951, p. 187) não economizou adjetivos ao descrever a atuação da autoridade policial que, segundo
ele, “primou pela falsidade e pela mentira, como pela ignorância e pela má-fé”.
114
215
Joel Tostes insiste que Euclides não precisava que a imprensa o enaltecesse, que quando da sua morte já era um
nome respeitado e reconhecido nacional e internacionalmente (BRANDÃO, 1990, p. 159).
216
Interessante lembrar que as descrições do passional clássico comumente trazem a morte de todos os envolvidos,
com o suicídio daquele que buscou lavar a própria honra ao final. Não há na documentação qualquer indicação de
115
morto, isso deixava claro que Euclides foi honrado até o fim, amparado por uma exceção da lei,
uma vez que o art. 27 do Código Criminal de 1890 previa a exclusão da ilicitude dos atos
cometidos por pessoa que se achasse em estado de completa privação de sentido e de
inteligência no ato de cometer o crime. O representante do Ministério Público também se
esforçou em deixar claro que não se considerava o escritor alguém sem usual controle das
próprias razões, ecoando o relatório do Delegado, e arrazoou que mesmo conhecendo os fatos
que lhe manchavam a honra, Euclides escolheu guardar a vergonha para si, em um sinal claro
de fortaleza, e não de fraqueza mental (GALVÃO, 2009). O Promotor de Justiça também tomou
o cuidado de frisar que Dilermando, além de estar protegido em casa, de alguma forma
exacerbara a situação, por conhecer o estado de espírito de Euclides:
Deste momento em diante, é impossível reconstruir com exatidão em seus
pormenores o drama que se desenrolou. Que o Dr. Euclides, cujo estado de
espírito era bem conhecido pelos dois moços, tenha sido o primeiro a atacar a
Dilermando a tiros de revolver, abrindo com violência a porta do quarto, em
que este se achava; que tenha sido o primeiro agredido também a tiros por
Dilermando, abrigado por detrás de uma das portas do seu quarto, é impossível
apurar e as afirmações nesse sentido são meramente conjecturas. (GALVÃO,
2009, p. 60).
que Euclides pretendesse esse desfecho, mas Del Priore (2009) faz uma observação interessante: a de que Euclides,
atirador medíocre, saíra de casa disposto a enfrentar, portando uma arma, um premiado militar campão de tiro, o
que era quase a mesma coisa.
217
Segundo Bittencourt (1948, p. 373) é uma neurossífilis, complicação da sífilis que atinge o sistema nervoso
central e pode resultar, por exemplo, em déficit mental, lesão de nervos cranianos, paralisias.
116
apontou que os portadores dessa doença apresentam, por exemplo, manifestações delirantes
ocasionais, perda da afetividade e delírios persecutórios. Sobre Euclides especificamente, ele
disse:
[...] procedia, por vezes, como se fora um louco. Era possuído de momentos
de cólera, seguidos, instantes depois, de estranha placidez [...] Recordando a
vida de Euclides, vamos encontrar inúmeras oportunidades em que se deixou
dominar pela cólera.[...] quantos conhecem Euclides da Cunha, sabem que,
sob este aspecto, não foi o chefe de família desejável. Chegou mesmo a
receber admoestações de seu pai, nesse particular”. [...]. Não era o homem do
lar e muito menos o chefe de família ideal, no convívio com os seus. [...]”
(ELUF, 2009, p. 119).
Imagem 17. Esquema das lesões encontradas no corpo de Imagem 18 . Esquema das lesões encontradas no corpo de Euclides
Euclides da Cunha (frontal) constante do processo crime que da Cunha (costas) constante do processo crime que apurou sua
apurou sua morte. Foto: Mostra Virtual de Documentos morte. Foto: Mostra Virtual de Documentos Judiciais - O Homicídio
Judiciais - O Homicídio de Euclides da Cunha. Disponível em de Euclides da Cunha. Disponível em http://ccmj.tjrj.jus.br/o-
http://ccmj.tjrj.jus.br/o-homicidio-de-euclides-da-cunha. homicidio-de-euclides-da-cunha. Acesso em 10 jan 2021.
Acesso em 10 jan 2021.
117
Julgou-se a princípio que as provas carreadas pela investigação, até mesmo analisadas
em conjunto, não eram suficientes para corroborar a versão patrocinada por Dilermando em
qualquer de suas partes. Ao mesmo tempo, era a fala das testemunhas que ia ao encontro da
narrativa favorável a Euclides a que podia ser destacada:
Depois disto, em face das declarações do denunciado, das de seu irmão, das
testemunhas e da inspeção do local do crime, tudo se esclarece.
Impossibilitado de continuar na luta pelas lesões sofridas, principalmente a do
punho direito, que lhe tolhia o manejo da arma, o Dr. Euclides da Cunha recua
[...] encaminha-se para o portão. É neste momento preciso que o denunciado
à espreita o segue, surge à soleira da porta da sala e visitas e, num movimento
de cólera e de vingança, que bem denotam as palavras “Espera cachorro”,
ouvidas por uma das informantes, contra aquele homem inerte e em retirada,
seu parente, a quem devia atenções, que retribuíra com o mais nefando
procedimento, ferindo-o cruelmente em sua honra, desfecha, do alto em pleno
peito, um tiro que o prostrou morto. (GALVÃO, 2009, p. 60-61).
A informante que ouviu as palavras “espera, cachorro”, Celina Cabral (GALVÃO, 2009,
p. 86), era uma criança de 9 anos de idade que brincava no quintal ao lado. De outro lado, outra
testemunha ouvida, Henriqueta de Araújo (GALVÃO, 2009), disse claramente ter visto
Euclides e Dilermando um de frente para o outro na porta da casa, momentos antes do último
tiro. Ela frisou que Euclides se encontrava de costas para a rua, o que não parece ser compatível
com “inerte e em retirada”, mas o Promotor de Justiça escolheu não levar em conta o que esta
testemunha declarou.
Diante do Tribunal de Júri do Rio de Janeiro, a acusação ficou, de início, à cargo de Pio
Duarte e a defesa a cargo de Evaristo de Morais. O libelo218 (GALVÃO, 2009a, p.145)
informava219 que um dos tiros disparados por Dilermando, “impelido por motivo reprovado” e
que atingiu Euclides na região infra clavicular direita, lesionando o pulmão, foi a “causa
eficiente” da morte do escritor. Tal alegação foi contrariada220 por Evaristo de Morais, que
argumentou que seu cliente, então Réu, agiu em legítima defesa, tendo em vista que fora
“inopinadamente agredido a tiros de revólver” pela vítima, ressaltando o “temperamento
impulsivo” do falecido, que teria sido depressivo e propenso a cometer violências contra as
pessoas e em constante luta com sua própria família (GALVÃO, 2009).
218
O Jornal O Paiz de 05 de fevereiro de 1910 noticia na p. 3 que Dilermando de Assis dirigira-se, no dia anterior,
ao 1º Ofício do Júri, para receber o libelo do crime do qual era acusado. (Disponível em
http://bndigital.bn.gov.br/artigos/o-paiz/. Acesso em 03 jul 2021).
219
Petição que era prevista no Código de Processo Penal, que tinha a função de trazer uma espécie de resumo
apresentado pelas partes ao juiz antes do início do processo junto ao júri, o qual trazia o essencial da acusação ou
da defesa, como, por exemplo, a indicação de todas as circunstâncias que serviam para o agravamento da pena.
220
Contra libelo: a fim de garantir a ampla defesa, toda alegação apresentada no processo pela acusação, como o
libelo, deve ser levada à outra parte interessada, no caso a defesa, para que este possa tomar ciência do conteúdo
e responder, nesse caso em específico em uma petição chamada contra libelo.
118
Esse grupo julgava um par, fazendo isso como expressão da vontade do povo, cujos
entendimentos morais ele representava (e representa até hoje), refletindo o que era aceito ou
não socialmente, contando muito sobre a sociedade da qual faziam parte222 - as decisões
proferidas pelos jurados, ao não demandarem fundamentação jurídica, são baseadas em
convicções puramente pessoais (dentro dos limites da lei). Narrativas de defesa e de acusação
embasam-se "em uma certa lógica classificatória e analítica da organização e do funcionamento
da vida social" (SCHRITZMEYER, 2002, p.166), e são trazidas à lume em circunstâncias
221
Igualmente, cabe lembrar que o júri é, em sua essência, uma exceção, tendo em vista que é uma substituição ao
Juiz de Direito em sua atividade primordial, a judicante.
222
O jurado julga seu semelhante a partir dos padrões morais da sociedade em que vive, na qual o crime foi
cometido. Tornaghi (1977, p. 101) explica porque (à época e até hoje) isso é importante: “o júri é preferível
especialmente nos crimes em que a motivação tem maior importância. Ninguém pode avaliar tão bem quanto o
jurado o que os motivos do crime significaram em determinado ambiente. [...] Não é a mesma coisa matar por
motivo de honra na capital e no interior. O juiz não sabe disso, mas os jurados sabem. E sabem mais: sabem se o
réu pode voltar ao convívio social ou não”.
119
peculiares a cada caso. O fato é que as narrativas da imprensa e a retórica da acusação, o peso
da honra e o peso do nome de Cunha não foram suficientes. O Conselho de Sentença, composto
por doze homens, apesar da campanha ferrenha em desfavor de Dilermando, terminou o
julgamento em empate, 6x6, o que faz prevalecer o resultado mais favorável ao réu: a
absolvição223.
Este primeiro julgamento foi anulado pelo Tribunal de Apelação, que considerou que
houve contradição na resposta dos membros do júri, que proferiu votos que absolviam
Dilermando e consideravam o motivo do cometimento do crime reprovado (GALVÃO, 2009).
Um novo julgamento foi realizado em 31 de outubro de 1914 e dessa vez, Dilermando foi
absolvido por um placar menos antagônico: 5x2.
Diante desse comportamento do júri, verifica-se que não foi uma decisão facilmente
tomada, especialmente se for levado em conta o placar do primeiro júri, empatado. Salutar
recordar que o Direito, como produção humana que é, torna-se também produção cultural.
Sendo assim, tratando-se o Direito de uma criação do homem, concebido em uma determinada
cultura, este nasce eivado de atribuições que são o reflexo desta sociedade e de seus valores -
como a justiça e a moral, por exemplo – e que não são estáticos, mas alteram-se como vão se
alterando as pessoas e os seus mundos (REALE, 2010), o Direito não está só na letra fria da lei
que o determina, mas também nas nuances dos fatos sociais e dos valores que os permeiam. O
que o júri pretende é que o crime do qual o réu é acusado seja apreciado por seus pares, como
já se destacou, porque esse grupo seria a melhor imagem da solidariedade humana. No júri, “a
indulgência não é defeito, é virtude, e a consciência caminhada, de preferência no sentido de
perdão” (ACQUAVIVA, 1991, p. 78).
Mas, o que efetivamente mudou do primeiro para o segundo júri a fim de que houvesse
essa diferença de votos? A resposta mais plausível é o tempo. Nesse caso sempre houve
cobertura jornalística, mas a fúria das primeiras semanas não se repetiu. Ruy Barbosa (1950, p.
90) já apontava como podia ser deletéria à decisão do júri qualquer influência externa, “o que
é essencial a todo instituto judiciário, politicamente considerado, reflete um célebre
223
A legislação que regia o júri determinava que o réu seria absolvido em caso de empate (o que acontece até hoje,
inclusive), garantida a equidade (imparcialidade, justiça). Sobre isso, “assim se explica, conforme a configuração
aqui avençada da eqüidade como conotação e compreensão dos casos concretos, como foi possível que a eqüidade
tivesse sido concebida sempre como uma dimensão do juízo favorável ao réu. ‘Ser indulgente com as coisas
humanas é também de eqüidade, quer dizer, ser como aquele que, afastando-se da justiça estrita e de seus piores
rigores, sabe ceder’. Esta função da eqüidade não é apenas o fruto de uma opção política em favor do direito penal
mínimo; nem deriva apenas de um princípio geral de tolerância para com as valorações quando estas não servem
para punir o réu, mas para atenuar ou excluir a responsabilidade e a pena” (FERRAJOLI, 2002, p. 132).
120
224
criminalista, é a independência” . Contudo, esses jurados estavam diante de influências
diversas além das suas próprias convicções pessoais: a pressão pública nos casos de grande
monta, a influência da imprensa. Como foi o caso do julgamento de Euclides (e conforme visto
no primeiro item deste capítulo). Quando mais distante no tempo está o crime, menor é essa
pressão e, muitas vezes, menor é o interesse da imprensa e do público em geral.
O mundo de Euclides, Dilermando e Anna era um mundo em transição. Para entender a
dinâmica dos jurados é preciso levar em conta o que o homem tem de natural e o que ele tem
de construído, os fatos e os valores que o formam, as experiências pessoais e as experiências
em sociedade, na realidade, integram-se. Para o jurista, o direito como ciência positiva não se
furta de ser uma ciência de realidades, mas é ciência de realidades histórico-culturais, nas quais
natureza e valores se correlacionam. É por isso que o que aqui se destacou das narrativas foi o
esforço de favorecimento da memória de Euclides. Embora a base da documentação seja a
produzida oficialmente, judicialmente, nota-se que sem denotar desrespeito a Euclides, o júri
reflete muito bem o seu tempo, um tempo de mudanças, de homens ainda plantados em um
mundo de honra, de homens que caminham para um mundo com mulheres que atuam na esfera
pública, com maiores liberdades, com mais possibilidades de escolha. Esse júri, diante da
possibilidade de condenar Dilermando, reconhece que este se defendera – e não o condena por
se proteger de um comportamento que, de certa forma, foi gerado por seu próprio
comportamento desrespeitoso, pela traição na qual ele foi parte ativa.
224
O jurista inclusive elabora acerca dessa independência, “ [...] a independência tem duas faces: uma interior, que
se volta para nós mesmos, e se chama imparcialidade; é a isenção de consciência; a outra, externa, entende com o
mundo, em que vivemos, e chama-se irresponsabilidade; é a eliminação dos perigos e dependências que podem
constranger a imparcialidade da apreciação íntima a se desmentir na enunciação pública da sentença. A primeira
corresponde, no jurado, ao direito da recusação; a segunda, ao sigilo do voto” (BARBOSA, 1950, p. 90).
121
um júri formado por membros de uma sociedade que entendia que a reação violenta do marido
traído era aceitável que, de fato, esperava (e muitas vezes exigia) por ela.
Araripe Junior225 por exemplo, discorrendo sobre as circunstâncias que levaram à
Piedade apontou que se Euclides fosse japonês, sua alma estaria cheia do bushido - o caminho
do guerreiro, código de honra e ética dos samurais, que observa a lealdade, fidelidade, coragem,
justiça, educação, humildade, compaixão, honra e entende que é preciso viver e morrer com
dignidade. (NUNES, 2011). Diante disso, para ele, Cunha foi verdadeiro samurai, trazendo
sobre o peito espada que cortaria “o fio da existência, desde que se lhe tornava a vida impossível
sem desonra” (apud PONTES, 1938, p. 295).
Nota-se, assim, como essa conclusão para a morte de Cunha era inadmissível para os
seus amigos e admiradores. Na esteira da absolvição de Assis, em um esforço de honrar o nome
e a memória de Euclides, além da sua obra, eles se juntaram e iniciaram o caminho da
mitificação do escritor e da construção de tradições (na sua definição mais simples, a de
instrumento para preservar práticas e garantir que elas tenham continuidade ) que são, até hoje,
a base desta narrativa.
A partir de tantos nomes já destacados em torno da figura do escritor (no que tange aos
primórdios do que se tornariam o Grêmio Euclides da Cunha, fundado em 1911, e também,
consequentemente, a Semana Euclidiana226), as denominações de monta, além de Coelho Netto
e Alberto Rangel227, são os de Rogério Porchat228, Francisco Venâncio Filho229, Roquette
225
Tristão de Alencar Araripe Júnior (1848 - 1911), foi crítico literário e fundador da cadeira 16 da ABL. Estudou
na Faculdade de Direito do Recife, onde foi colega de Tobias Barreto. Foi nessa época que publicou seu primeiro
livro, e ao longo dos anos atuou na política até chegar ao cargo de Consultor Geral da República. Deixou uma
vasta produção relacionada à crítica literária, e, da geração de críticos positivistas e naturalistas brasileiros, forma
a tríade mais prestigiada, junto com Silvio Romero e José Veríssimo. (Conforme informações do site da ABL.
Disponível em https://tinyurl.com/sksc39c. Acesso em 11 jul 2021).
226
Considerada o mais antigo movimento cultural ininterrupto do país (SILVA, 2020).
227
Alberto Rangel (1871 - 1945) foi amigo de Euclides da Cunha desde o tempo de estudantes na Escola Militar
da Praia Vermelha. Engenheiro militar, demitiu-se do Exército em 1900. Embora tenham passado grande parte da
vida adulta fisicamente distantes, Cunha e Rangel eram correspondentes constantes, se encontraram no Alto Purus,
(Rangel foi diretor-geral de Terras e Colonização do Amazonas e, depois, Secretário de Estado). Foram os estudos
que fizeram juntos na região a semente para a obra de Rangel, Inferno Verde, publicada em 1908 e que Cunha
prefaciou. Conforme informações de Trevizan (2006) e do site do IHGB (Disponível em
https://ihgb.org.br/perfil/userprofile/arangel.html. Acesso em 18 out 2021).
228
O advogado paulista, que viria a ser o primeiro reitor da Universidade de São Paulo, foi um dos mais próximos
amigos de Euclides, amizade forjada quando Cunha partiu para São Paulo após a expulsão da Escola Militar.
Mantiveram, por anos, ativa correspondência – é ela, inclusive, que torna possível grande parte do conhecimento
que se tem sobre a vida de Euclides antes da publicação de Os Sertões (GALVÃO, 1997).
229
A primeira tradução de Os Sertões feita para o francês, por Madame Neu, foi dedicada a Reinaldo Porchat,
amigo dos mais próximos de Euclides, a Afrânio Peixoto e a Venâncio Filho, chamado de “o grande euclidiano”
(COSTA, 2002). O próprio Porchat, em discurso fúnebre para Francisco Venâncio Filho, o chamou de “pedestal
da glória de Euclides da Cunha” (VENÂNCIO FILHO, 2002, p. 60).
122
230
Edgar Roquette-Pinto (1884-1954), médico legista, professor, antropólogo, etnólogo e ensaísta, foi professor,
fundador da Academia Brasileira de Ciências (1923) e da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, (doada ao Ministério
da Educação em 1936), membro da missão Rondon, realizou um amplo trabalho de divulgação científica, além de
extensa atuação em diversos órgãos públicos e educacionais. Foi também membro da ABL e do IHGB. (Com
informações do site da ABL. (Disponível em https://tinyurl.com/mv3jypf9. Acesso em 25 jan 2022).
231
Tanto Edgar quanto Carlos foram, brevemente, alunos de Lógica de Euclides no Colégio Pedro II. Eles eram
filhos de Lúcio Mendonça, importante escritor e jurista, e um dos fundadores da ABL (VENÂNCIO FILHO, 2002,
p. 60).
232
Destaque-se a importante observação de Natália Souza (2010, p. 57), “nos anos iniciais do Grêmio, quando
seus idealizadores eram apenas adolescentes, foi Alberto Rangel quem começou a dar ao Grêmio a forma de uma
instituição de adoração a Euclides da Cunha similar aos rituais positivistas”.
233
Na recepção a sua obra isso é perceptível em diferentes momentos, Euclides como aquele que, ao invés de
moldar uma identidade ou impor uma visão de país, entende o Brasil em toda a sua complexidade, lê a sua alma.
Por exemplo: “Desconheço qualquer escritor sem amarras à escola literária que o prendesse a compartimentos
estanques, sociólogo, pesquisador, que tivesse exercido influência tão profunda no Brasil como Euclides da Cunha.
Foi o neo-bandeirante, devassador dos sertões ignotos, não à cata de ouro, esmeraldas, ou a prear silvícolas. Sua
missão foi outra, de acordo com o tempo, quando a nacionalidade não precisava mais alargar-se territorialmente,
como nos tempos heroicos das bandeiras e das entradas. Redescobriu ele a própria alma nacional, em vez de gemas
ou de filões de metais valiosos [...]. ” (FIGUEIREDO FILHO, 1970, p. 181)
123
Por sua vez, é Coelho Netto quem fala, claramente, sobre o culto234 que ali se forma,
“que a romaria hoje se torne uma religião da mocidade”. E ele segue, asseverando, “somos um
povo sem culto, honremos nossos heróis, observando-lhes os exemplos [...] mais do que vosso
patrono, no-los deixou tão belos, porque ele foi grande no gênio, no amor à pátria, na
austeridade e no brio” (apud ABREU, 1998, p. 301).
Euclides da Cunha não é o único autor brasileiro alçado ao Olimpo literário e com
memória festejada. Há atuação similar dos admiradores de Guimarães Rosa. Machado de Assis
e Monteiro Lobato, por exemplo. Walnice Nogueira Galvão, grande estudiosa das obras de
Cunha e Rosa, afirma, quanto à Rosa, que a canonização de sua obra “elevou o escritor a um
patamar onde goza da companhia de poucos outros nomes” (GALVÃO, 2000, p. 70). Mas,
como bem aponta Ventura (1993), Cunha é o único escritor a ter se tornado objeto de culto
pessoal – cabe lembrar o lema do movimento euclidiano. Galvão corrobora essa impressão ao
ser indagada se as pessoas mitificam Euclides:
Sem dúvida. Isso aparece na atribuição de demasiadas virtudes a ele: patriota,
honesto, decente, corajoso... todas as virtudes cívicas possíveis. No fim, vira
um santo. Mas essa hagiologia reflete um ideal extremamente pequeno-
burguês, eu acho. Sou grande admiradora de Rimbaud, que era uma praga, não
tinha virtude alguma. Mas admiro tanto a vida quanto a obra. No caso de
Euclides, sobressai a imagem de um cidadão extremamente correto.
(GALVÃO, 1998).
É possível ver que as sementes para essa hagiologia foram sendo cuidadosamente
plantadas desde a implantação do grêmio carioca. A própria existência da revista comprova
isso, e Natália Souza explica porque, ao salientar que o número anual do periódico saía,
tradicionalmente, na data da morte de Cunha e, nos primeiros anos, publicou somente discursos
e palestras proferidos em sua honra (SOUZA, 2010, p. 51). A propósito, o já citado discurso de
Rangel, que é de 1913 e foi publicado no primeiro volume da revista (de 1915) ganha o nome
de “Oração Inicial”. Verifique-se as palavras daquele primeiro discurso:
A vossa dedicação cultural aproxima-se, com resolução e entusiasmo, de um
santo e de uma vítima. Tendes um sonho religioso. Grande foi o que dorme
234
A dissertação de mestrado de Natália Peixoto Bravo de Souza, citada na Introdução, trata desse aspecto a fundo:
a canonização de cunha nos termos do positivismo.
124
É em torno da memória desse homem (tido merecedor das honras dos amigos e dos
lugares os quais ocupou nos espaços da intelectualidade) que se formam as bases do
euclidianismo: pelo respeito e pela admiração, mas também pela construção da narrativa que
trouxesse ao público essa visão de Cunha, a visão de homem inteligente, do gênio da literatura
que era bom amigo, bom pai, e que foi um marido traído que morreu defendendo a família e a
honra: uma figura elevada.
Novos nomes foram se juntando aos fundadores do grêmio, e suas atividades
continuaram e até se ampliaram. Buscando arrecadar fundos235 para erigir uma estátua de
bronze do escritor. Para tal, além da reunião aos pés do túmulo, os alunos membros do grêmio
convidavam personalidades da área literária, grande parte deles também amigos de Euclides,
para conferências e palestras acerca do escritor (VENÂNCIO FILHO, 2002). Foi em razão
dessa movimentação que euclidianistas paulistas e cariocas acabaram por se aproximar pela
primeira vez. Em 1918, Roquette-Pinto proferiu, em São Paulo, a palestra Euclides da Cunha
Naturalista o que chamou a atenção para o trabalho realizado pelo grêmio no Rio de Janeiro.
Isso culminou, como lembra Abreu (1998), com os grupos declarando Rio de Janeiro e
São Paulo cidades irmãs no culto a Euclides da Cunha. Dentre os nomes dos intelectuais
paulistas, Júlio de Mesquita Filho, Vicente de Carvalho, Nestor Rangel Pestana236. Cariocas e
paulistas com um objetivo comum, “[...] manter viva a chama euclidiana, esses intelectuais
agiram como verdadeiros sacerdotes divulgando a palavra do mestre. Nunca antes, no país, um
escritor teve tantas pessoas a seu serviço” (ABREU, 1998, p. 303).
Chegado o ano de 1919, marcado para a inauguração do monumento em bronze, tão
defendido porque, segundo eles, falaria “[...] da saudade da vítima e da glória do escritor”
(RANGEL, 1917, p. 33), esta não ocorreu. As razões foram dadas em copiosa nota publicada
na revista do grêmio, que acaba por resumir as atividades do grupo até então, listando
235
Quem em muito contribuiu com essa empreita foi Roquette Pinto, foi com sua doação de direitos de livros e
palestras que o Grêmio Euclides da Cunha obteve seus primeiros rendimentos (SOUZA, 2011).
236
Segundo Abreu, “em 1921, diversos intelectuais paulistas assinaram moção de apoio ao trabalho do Grêmio
Euclides da Cunha, entre eles Vicente de Carvalho, Francisco Escobar, Amadeu Amaral, Affonso d´E. Taunay,
Plinio Barreto, Júlio de Mesquita, Júlio de Mesquita Filho, Antônio Mendonça, Monteiro Lobato, Otaviano Vieira
(esposo da irmã de Euclides), Nestor Rangel Pestana. Alberto Souza, Henrique Coelho, Arthur Motta. Lá estavam,
portanto, os diretores d´O Estado de São Paulo, um parente, escritores e intelectuais. ” (ABREU, 1998, p. 309).
125
conferências e nominando alguns sócios. O que aqui nos interessa, contudo, é a descrição feita
da importância da homenagem à Cunha237:
15 de agosto de 1909
Marcamos para hoje, repetidamente, a inauguração do monumento que se
define como termo nesta campanha em prol da memória de Euclides da
Cunha. [...] Mas quando o fizemos não adquirira o monumento da babilônia
proporções em que o imaginamos agora, e se o quiséssemos como então era,
a 15 de agosto de 1909, o Brasil completaria a efigie simbólica de Euclides,
fixada em arte e bronze. Na encosta da mesma montanha, a menor altura e
menor dimensão. E como ele só pode e só deve aparecer à admiração e à
glorificação do Brasil, à altura magnífica em que hoje o vemos, preferimos
lutar mais, lutar muito, até que o consigamos, dentro das linhas rigorosas, em
que transcorreu a sua vida.
[...]
Com as dimensões de 6 metros próximos, a altitude de 120 são as em que a
arte magnífica de Corrêa Lima planeou nosso monumento, certo o custo a que
o elevou correspondeu à necessidade de maiores recursos.
237
Revista do Grêmio Euclydes da Cunha de 1919. (Disponível em https://tinyurl.com/ysjz2wp3. Acesso em 20
out 2021).
238
Abreu (1998) e Souza (2010) destacam a influência positivista na construção desse culto a Euclides, inclusive
no que tange a todos os rituais que o grêmio e até mesmo Rio Pardo erigem em torno da memória de Cunha. Logo,
como bem diz Souza (2010, p. 62), santidade para Cunha sim, mas nos termos do positivismo e não em termos
cristãos. Paulo Carneiro (1995) discorre claramente, “O culto consagrado à memória de Euclides nas
comemorações do 15 de agosto, nas visitas coletivas a seu túmulo [...] relíquias conservadas [...] imprimiu aos
sentimentos puramente humanos que o motivaram um caráter religioso de inspiração comtiana”.
239
Joel Tostes, por exemplo, insistiu: é preciso ficar claro que o escritor não foi culpado pela própria morte
(THIESEN, 2007). É que algumas biografias, todas desenvolvidas a partir das narrativas de Anna de Assis: história
de um trágico amor, de Judith de Assis filha de Ana e Dilermando e Jefferson de Andrade, apontam o
temperamento irascível de Euclides e os longos períodos longe de casa como causadores das discórdias entre ele
e Ana. A resposta da família Cunha à obra é o livro Águas de Amargura: o drama de Euclides da Cunha e Anna,
escrito por Joel Tostes e Adelino Brandão e essa discussão se dá com mais vagar no Capítulo 3.
126
sem embargo da ressalva de que muito da crítica desenvolvida por Euclides se perdeu, aponta
uma gama de autores que se debruçam sobre a produção literária de Euclides, de Elói Pontes a
Olímpio de Souza Andrade240, passando por Gilberto Freyre, além de Walnice Galvão e
Roberto Ventura (OLINTO, p. 133 e 137).
Infere-se que, hoje, é praticamente impossível separar o lugar ocupado por Euclides da
Cunha do próprio movimento euclidiano. Como assevera Regina Abreu (1998) o papel desses
euclidianistas após a morte do autor é fundamental para a manutenção da atualidade não só de
Os Sertões, mas de todo o pensamento de Cunha. Grêmios e semanas alimentam o mito em
torno de Euclides, mito este que não se pode separar de todo das circunstâncias da sua morte,
que estão no cerne do surgimento desses movimentos que perseveram até os dias de hoje, quase
um século depois, em razão de um homem que é “um gênio que era um santo” (VENÂNCIO
FILHO, 1940). E essa visão da genialidade e da santidade acaba por deixar passar detalhes de
seu comportamento e de sua vida familiar, ainda que ele realmente não possa ser o culpado da
própria morte.
Os ideais republicanos e o vasto conhecimento de Euclides deixam ao longe seus
problemas matrimoniais e seu comportamento difícil, embora não seja possível desconsiderar
a infelicidade do casamento e da vida pessoal – Ana dizia respeitar e admirar o escritor, mas
não considerar possível viver com um homem com um humor oscilante e violento (ANDRADE,
2009) - dadas as circunstâncias de sua morte e seu embate com o amante da esposa, o jovem e
viril campeão de tiro que, ao final, lhe tiraria a vida. Mas, em resumo, especialmente entre os
euclidianistas, Cunha, in memorian, tem sua obra tida como sacra, um dos epítetos de Os
Sertões é “bíblia da nacionalidade” e como já foi apontado, suas ideias não chegam aos dias de
hoje incólumes, e não há grande discussão acerca das falhas de seus trabalhos; e a sua memória
considerada como santa (suas falhas como homem são esquecidas diante da traição sofrida que
culmina com sua morte241)
Com a morte de Francisco Venâncio Filho no início da década de 1940, seguiram para
o Grêmio de São José do Rio Pardo242 - SP todas as relíquias e documentação acerca de Cunha
240
Em carta endereçada a Olímpio de Souza Andrade em 31/08/1975, Carlos Drummond de Andrade comenta
“Restaria ainda por agradecer esse serviço que você presta à memória de Euclides da Cunha, e que importa em
dívida nacional para com o pesquisador incansável e o analista igualmente extraordinário da obra euclidiana em
que você se converteu. Sim, meu caro, é preciso que alguém o proclame: a memória literária de Euclides encontrou,
afinal, o zelador e revelador de que estava carecendo”. A carta é parte do acervo do Instituto Moreira Salles.
(Disponível em https://tinyurl.com/yjpx75ks. Acesso em 10 mai 2019).
241
Fazendo uso mais uma vez das palavras de Alberto Rangel (1919), “Euclides da Cunha, pela força do seu talento
e da sua desgraça, deu-nos o ensejo de aprender os ritos da veneração no culto da saudade e da justiça, por sua
memória bem-amada”.
242
A cidade do interior de São Paulo ganhou fama por ter acolhido Euclides enquanto escrevia Os Sertões, porque
ele trabalhou na construção de uma ponte na cidade, entre os anos de 1898 e 1901. Embora essa seja uma
127
em sua posse, por ser Rio Pardo considerada a meca do euclidianismo, o local ideal para o culto
à sua memória (VENÂNCIO FILHO, 2001). Isso acaba por transferir o principal eixo do
euclidianismo para o interior paulista, o que vai ser explorado no capítulo 4. Mas, para o terceiro
capítulo, estabelecido aqui o lugar sagrado de Euclides entre seus amigos e confrades, o papel
da sua obra, as circunstâncias de sua morte e os envolvidos mais próximos, pode-se analisar as
consequências disso para sua família, e como Euclides emerge disso.
informação unânime entre os estudiosos do assunto, Anna de Assis insistia que o marido jamais escrevera naquele
local (COSTA, 2002, p. 62; ANDRADE, 2009). Tornou-se local de forte atuação pela memória de Euclides da
Cunha, tratado mais especificamente no Capítulo 4.
128
243
Em carta ao poeta Vicente de Carvalho (GALVÃO E GALOTTI. 1997).
244
E esse comportamento se repete quando da morte de Quidinho, a ponto de Dilermando ser incisivo,
argumentando ser necessário procurar as primeiras notas para compreender o ocorrido, “antes de qualquer
combinação ou arranjo para deturpar os fatos e pôr-me em situação diversa da verdadeira, exponhamos as
ocorrências sensata e desapaixonadamente. É preciso que se considere e estime a animadversão sensível com que
os comentadores – questão de partido – se puseram do lado do meu contendor. Essa parcialidade, manifesta, é
edificante. Mas é concebível. Acho natural que, - homens da imprensa, literatos, êmulos quiçá do incomparável
escritor patrício sucumbido – se pusessem abertamente do lado oposto, como disse, e as simpatias tendessem à
parte contrária, ficando sempre, o meu nome, envolto no rancor e na aversão. ” (ASSIS, 1916, p. 70).
130
Note-se que além de ter matado um jornalista, Dilermando, um militar, matara um civil
em meio ao turbilhão de uma campanha civilista245 - cujo sucesso repousava, em muito, nos
ombros da atuação da imprensa (GÓMEZ, 2008) – que pintava uma imagem amarga do exército
e garantia a antipatia do público diante de um militar como Dilermando (DEL PRIORE, 2009).
Da mesma forma, não podemos divorciar todos esses fatos da (não tão) pequena
questão: Dilermando mantivera uma relação amorosa com a esposa de Euclides por anos246, ela
engravidara, parira os filhos de Dilermando e Euclides registrara esses filhos como seus. Teria
Assis o direito de se defender dos próprios pecados? Teria o direito de salvar o próprio sangue?
A justiça pode até ter dito que sim, mas, com o resto do mundo, não foi tão simples assim.
Os filhos de Ana e Euclides veem-se em um lugar difícil: entre a memória do pai e a
convivência com a mãe. Em uma sociedade onde a noção de honra era tão arraigada e
importante, diz muito a atitude de Sólon quando viu o pai morto: não tinha com ele uma relação
afável, sabia da relação entre Ana e Dilermando e encontrava-se com eles na casa da Piedade
quando o desfecho se deu. Mas, assim que viu o corpo do pai abatido pelas balas de Dilermando
não teve dúvidas: puxou o próprio revólver disposto a enfrentar os irmãos Assis, que o
desarmaram247 (GALVÃO, 2009).
Não errara Coelho Netto ao comparar a tragédia de Euclides com a Oresteia de
Ésquilo248, pois se vê que como aconteceu com Orestes, os filhos do Euclides se veem cobrados
a vingar a morte do pai249. Com o passar dos anos esse discurso não vai arrefecer250, ao
245
Expressão foi criada para designar a campanha de Rui Barbosa nas eleições presidenciais de 1910. Quando, em
1908, o então presidente Afonso Pena (1906-1909) indica o seu ministro da Fazenda, Davi Campista, como
candidato à sua sucessão, não há consenso, assim, dividem-se todos em dois grandes grupos liderados pelo Partido
Republicano Paulista (PRP) e pelo Partido Republicano Mineiro (PRM). Nem a candidatura do marechal Hermes
da Fonseca, ministro da Guerra de Afonso Pena trouxe consenso. O PRM apoiou Hermes, mas o PRP não,
indicando o nome de Rui Barbosa para concorrer à Presidência. Era o embate entre a República da Espada e a
República dos Bacharéis, e a espada venceu (Conforme informações disponíveis em encurtador.com.br/qsGHM.
Acesso em 20 dez 2019).
246
Joel Bicalho Tostes (BRANDÃO, 2009), declarou que, para ele, o ocorrido na Piedade era 45% culpa de Ana
e 45% culpa de Euclides, repousando 10% da responsabilidade sob Dilermando, o principal personagem na época.
Tostes pondera que, no início do séc. XX, era de se esperar que um menino de pouco mais de 16 anos quase nada
soubesse na vida, e que a realidade é que ocorreu um processo de sedução feito pela Ana, uma mulher bonita e
sozinha.
247
O próprio Dilermando narra isso em seu segundo depoimento ao Delegado de Polícia, “Solon, do interior da
casa, que vendo seu pai caído perguntou-lhe – “mataste meu Pai, ah” – e puxou um revólver, procurando fazer
uso, não sabendo o declarante com que intenção, no que foi obstado por este que lhe tolheu os movimentos, até
que chegara Dinorah que o desarmou” (GALVÃO, 2009, p. 101).
248
Ver as Considerações Finais.
249
Na mitologia grega, é Electra (a versão mais conhecida é a escrita por Sófocles), a furiosa filha de Agamenon
e Clitemnestra, sedenta por vingança diante da morte do pai pelas mãos da mãe e do amante dela, quem leva o seu
irmão, Orestes, a clamar a vida da genitora de ambos.
250
Em 2021 estreou, via You Tube, a peça Anna. Com texto inédito de Mário Viana e direção de Gonzaga Pedrosa,
discute opressões exercidas pelo patriarcado a partir da “Tragédia da Piedade”. Disponível em
https://www.youtube.com/watch?v=hPF-W7WtTps. Acesso em 10 jul 2021.
131
contrário, vai reverberar de tal forma que Quidinho acaba por tomar para si o dever de salvar a
honra do pai (e a dele próprio), atenta contra a vida de Dilermando e acaba morto. Um segundo
ato de uma tragédia sem fim que acorda discursos e acende ódios e incompreensões. E mais
uma vez a imprensa se volta contra Dilermando, também descarrega sua artilharia contra Ana.
Mas, os ataques atingem Dilermando a tal ponto que vozes começam a se levantar em defesa
dele, como a do advogado e jornalista Jackson de Figueiredo:
‘Dilermando de Assis só teve em redor de si a curiosidade infernal dos que
procuravam rebaixá-lo em meio à tragédia monstruosa duas vezes
representada. E a última vez, sabe Deus quais foram os encenadores’. Sem
fazer concessões a Euclides, ‘que não era bom esposo’ ou à ‘caída’ dona
Saninha, ‘adúltera pela força do abandono’, Figueiredo criticava o adultério,
mas defendia ferozmente Dilermando: ‘Nos dois atos sangrentos, Dilermando
de Assis matou defendendo-se, e por sua vez caiu ensanguentado, banhado no
seu próprio sangue, pagando assim quase com a vida um erro com que outros
passeiam em ostentação e cinismo. (DEL PRIORE, 2009, p. 132)
Em geral, os livros acerca da Tragédia da Piedade destacados neste trabalho acabam por
nascer de uma guerra de narrativas, memórias e da defesa da honra (de Euclides, Ana e do
próprio Dilermando), como foi colocado na introdução: Dilermando publica seu primeiro livro
(Um Conselho de Guerra: a morte do Aspirante da Marinha Euclydes da Cunha Filho, de
1916) porque não tem espaço na imprensa para sua defesa, publica seu segundo livro (A
Tragédia da Piedade, de 1951) além da perene falta de narrativa, em resposta direta251 à obra
de Eloi Pontes. Dirce, a filha caçula de Dilermando, conta252 que escreveu O Pai (1998) porque
achou que o livro da irmã, Judith (Anna de Assis, história de um trágico amor, escrito em
colaboração com Jefferson de Andrade, cuja primeira edição é de 1987) foi injusto com ele. Da
mesma forma, a descendência de Euclides, a família Tostes, descontente com as memórias de
Judith, com a colaboração de Adelino Brandão produz Águas de Amargura (1990). Elos de uma
mesma corrente formada de memórias diferentes que às vezes se complementam e, na maioria
das vezes, parecem ser contrárias.
Todas as obras reconhecem o merecimento do lugar destacado do autor Euclides da
Cunha. Não há controvérsia quanto a sua importância ou o seu papel na construção nacional.
Dependendo do dono da narrativa, é como se Euclides pudesse ser duas pessoas separadas: a
251
O livro de Dilermando começa com uma “advertência”, e um dos itens diz “ advirto, no entanto, que nele, Elói
Pontes é um símbolo. Representa todos os meus inescrupulosos acusadores e aproveitadores do cadáver ainda hoje
atribulado e sem repouso no sepulcro rendoso...” (ASSIS, 1951, p. 10).
252
Em entrevista para o Dossiê Euclides da Cunha, da Revista do Livro da Biblioteca Nacional de 2009
(CAVALCANTI, 2009).
132
pública e a privada253. E no âmbito privado, para Dirce, ele é um fantasma que paira sobre o
pai. Para Judith, um perseguidor da mãe, um impedimento para sua felicidade. Para os Tostes,
um nome a ser protegido em sua totalidade.
É notável como as memórias tecem narrativas construídas para destacar justamente
esses pontos. Dirce quer tirar do pai o papel de assassino. Judith quer destacar a importância da
mãe no desenrolar dessa história, e, em segundo plano, reconhecer que o pai também era
merecedor de paz254. A família Tostes quer corroborar a narrativa construída pelo judiciário e
pela intelectualidade: a do mito republicano e literário que foi grandioso (também) na vida
privada até o fim, cercado pela traição de quem lhe devia fidelidade e respeito.
253
Dilermando fala sobre isso no seu “Tragédia da Piedade”, quando fala dos ataques que sofreu de Euclides (e
dos quais se defendeu), “ removerei suposta incompatibilidade de uma ação tão violenta como a posta em prática
pelo Dr. Euclides, com a manifestações de seu talento e de seu modo de vida, para muitos de seus ‘amigos’
inacreditável; porque esta idéia e esta convicção ainda são robustecidas pela diferença da posição social que nos
distanciava” (ASSIS, 1951, p. 75).
254
Judith fala a Andrade (2009, p. 66), “não aceito esta condenação. Estou aqui para contar a vida de minha mãe
e afastar para sempre esta monstruosidade que fizeram com ela [...] E a meu pai, também justiça. Ele foi absolvido
pelos tribunais. ”
255
Ver p. 130, por exemplo.
133
era 4 anos mais velho que Sólon). Mas, essa relação que era próxima e afetuosa, encontrou na
Piedade o obstáculo da honra. Andrade (2009) afirma256 que Ana era chantageada por Sólon,
que exigia dinheiro em troca do seu silêncio sobre as relações extramaritais da mãe. O Jornal
do Commércio de 11 ago 1909 aponta o envolvimento de Sólon na relação adulterina da mãe:
“Certo destes antecedentes, tive a evidência de que D. Anna, Dilermando, Dinorah e Solon
estavam na intimidade das relações adulterinas entre Dilermando e D. Anna Cunha, e formavam
em torno do esposo ultrajado um cordão vigilante e protetor que o isolasse e impedisse de
defender sua honra”.
Sobre a relação de Euclides e Quidinho tampouco há informações detalhadas, mas se
sabe que o filho seguiu os caminhos do pai buscando uma formação militar (era aspirante da
marinha quando morreu) e uma carta de pai para filho, de 12 de junho de 1908257, mostra que
Euclides, como seu próprio pai fizera com ele, ressalta ao filho a importância de seguir na linha
reta. Ele diz a Quidinho “desejo-te felicidades [...] que continue bem-disposto a andar direitinho
nos teus atos”.
Imagem 20. Ana, Sólon e Euclides Filho, no quintal da casa de São José do Rio Pardo
em 1900. Sem autor informado. Reprodução Euclidesite. Disponível em
https://euclidesite.com.br/fotografias-de-familiares/. Acesso em 01 fev 2022.
Com efeito, Quidinho parecia ser mais próximo de Euclides do que Sólon. É interessante
a observação da reportagem do Jornal do Commércio por ocasião da morte do escritor258:
256
Angélica Ratto, em depoimento ao delegado, afirmou que ouviu da própria Ana que esta era constantemente
ameaçada por Sólon, que sabia das relações entre ela e Dilermando e sempre lhe pedia dinheiro (GALVÃO, 2009,
p. 69)
257
Datada de 12 de junho de 1908, a carta é parte do acervo da Coleção Euclides da Cunha da Biblioteca Nacional
(RJ). Disponível em. http://objdigital.bn.br. Acesso em 10 nov 2018.
258
Acerca desta notícia, o mesmo jornal, no dia seguinte, estampou a seguinte notícia: “Do Sr. Solon Cunha, filho
mais velho do malogrado Euclydes, recebemos ontem este telegrama, expedido de Copacabana: ‘Não fui ver
Dilermando, como dizeis; só irei para vingar-me. ’” (Jornal do Commércio, 20 ago 1909).
134
259
Nestor da Cunha, primo de Euclides, foi nomeado tutor de todos os filhos do escritor quando este morreu, e
sempre se manifestou contrariamente às relações entre Ana e seus filhos com Euclides (ASSIS, 1916, p. 22).
Quando Manoel procura a mãe, ele diz que o tutor a acusava de ser assassina do pai e do irmão (DEL PRIORE,
2009).
260
O Jornal do Brasil de 05 de julho noticiou: “houve em pleno cartório uma debandada quase geral, procurando
cada um se colocar ao abrigo da pontaria de um revólver fumegante” (ASSIS, 1916, p. 29).
261
Narrou que ao olhar de relance pôde ver, recuando, um vulto trajado de escuro, distinguindo um espadim, e que
apesar de não poder ver o rosto do perpetrador, “presumiu tratar-se do aspirante Euclides da Cunha Filho: - era o
único aspirante de Marinha que podia tentar contra sua existência, dados os precedentes já remotos deste epílogo”.
(ASSIS, 1916, p. 16).
262
A autodefesa vem de um instinto primitivo de conservação, qualquer um que tiver a própria existência
ameaçada vai automaticamente se proteger – é o último instinto a abandonar uma pessoa – uma prescrição da
lei natural, segundo Cícero, “uma lei sagrada, lei não escrita, mas que nasceu com o homem, lei anterior aos
legistas, à tradição, aos livros, e que a natureza nos oferece gravada em seu código imortal” (LADEIRA, 2008, p.
21).
263
Vide notas 67 e 71.
135
entanto, correr, pois esse era o único caminho que lhe ficava à mercê para
esquivar-se à agressão, na esperança de que, tantos homens havendo naquele
recinto, algum se interpusesse e evitasse a consumação do atentado. (ASSIS,
1916, p. 16).
264
Quidinho não o fez sem ciência do desfecho que poderia encontrar – como ocorreu. Joel Tostes conta que
“Quidinho premeditou o encontro com Dilermando e morreu a 16 de julho de 1916. Ele deixou uma carta de
despedida, um bilhete relacionando todas a pessoas a quem ele devia, e o dinheiro para pagá-las” (COSTA, 2002,
p. 57).
136
Para Dilermando a questão era, mais uma vez, de defesa: ela tinha o direito de defender
a própria existência, e o judiciário até mesmo tinha assegurado a correção de seu
comportamento. Mas, Dilermando também sabia que a opinião pública265 era uma espectadora
menos técnica e mais apaixonada, e não veria assim (mais uma vez) a situação. Ele tinha,
mesmo que a contragosto de muitos, laços com os filhos de Euclides – ele pesou a sua honra
pessoal, o seu direito de se defender, com a possibilidade de dar às costas a cobrança de Euclides
Filho. Mas, ao final, não lhe foi possível escapar do destino sem ferir de morte os próprios
princípios – e como o campeão de tiro que era, mesmo ferido acertou fatalmente Euclides Filho:
[...] que ainda pelas costas fora alvejado, razão por que, sentindo-se já bem
mal e esgotadas as esperanças de socorro, quer por parte da força pública, quer
das pessoas presentes, e conhecendo a iminência do perigo em que estava a
sua vida e refletindo em que não podia mais prolongar aquela esquivança para
o seu nome de militar, pois não lhe podia ser exigido correr, o que revelaria
pusilanimidade incompatível com a farda e corresponderia à sua morte moral,
ao pleno desdouro e quebra de seu brio, reconheceu a necessidade de agir por
suas mãos no sentido de evitar a continuação do ataque. (ASSIS, 1916, p. 17).
265
Acerca das atribulações que enfrenta ainda no calor do momento do ataque de Quidinho, Dilermando, em sua
defesa escrita, expõe, “há ímpetos de revolta ao simplesmente pronunciar-se o meu nome. Todos em geral
blasfemam laconicamente contra mim. Estabelece-se uma corrente de antipatia, premente intensa, ao passo que
uma atmosfera de dó envolve a pessoa do meu contentor. Alguém reclama a assistência do médico para o meu
adversário, tendo este de responder que agia sem paixão atendendo primeiro ao mais gravemente ferido”. (ASSIS,
1916, p. 32).
266
Tratava-se de crime envolvendo dois militares, considerando, assim, da alçada da justiça própria.
267
Diante da sentença absolutória, houve recurso ao Superior Tribunal Militar, que confirmou a decisão de primeira
instância, declarando que “um organismo ferido de morte, em quase desfalecimento, reage irregularmente sobre o
que o rodeia e assim sem condições de medir a reação... com os fundamentos aludidos, negando provimento à
apelação e confirmando a decisão proferida pelo Conselho de Guerra, mandam que o réu seja posto em liberdade”
(ASSIS, 1916, p. 161).
137
Imagem 22. Fac Símile de manchete na capa da Gazeta de Notícias de 06 de julho de 1916. Disponível em
http://hemerotecadigital.bn.br/. Acesso em 30 jan 2020.
Imagem 23. Fac Símile de manchete na capa do Jornal O Paiz, sem data. Disponível em
<http://globoesporte.globo.com/bau-do-esporte/noticia/2012/11/historias-incriveis-tiro-de-euclides-da-cunha-
desgracou-jogador-do-bota.html>. Acesso em 30 jan 2020.
É a revista Careta (nº 420, de 08/07/1916) que traz a notícia de forma mais impactante,
ao estampar, em sua primeira página, imagens de um ferido Dilermando e um inerte Quidinho.
Abrindo o texto, emoldurado pela tragédia fotografada, um parágrafo intenso, “afogado em seu
nobre sangue, manchando-se com o sangue de uma vingança, o digno herdeiro do ardente brio
de Euclides da Cunha morreu matando, na clara idade dos vinte anos”.
138
O que se pode inferir dessas declarações é que Dilermando, mesmo ferido e buscando
se salvar, seguiu sendo um homem treinado para combater sob pressão e com excelente técnica:
atirou primeiro para impedir novo ataque, sem arriscar feridas fatais, mas, ao fim, diante da
possibilidade de Quidinho se virar e mais uma vez o atingir, fez o que precisava para poupar a
sua própria vida. Acerca disso, essa foi a notícia do jornal A Noite:
Dilermando, já ferido, afastava-se para a porta de saída, continuando a ser
alvejado por Euclides, que descarregava sucessivamente a arma. Já na calçada,
Dilermando retornou, porém, para o interior, então também de revólver em
punho, travando-se um verdadeiro e emocionante duelo. (Jornal A Noite, 04
jul 1916).
268
O próprio Dilermando de Assis declarou ao Tribunal Militar que, na ocasião da morte de Euclides p ai, “ainda
preso [...] teve ocasião de saber que amigos, parentes e até mesmo homens da Imprensa despertavam nesses
rapazes, estimulando-os, ideias e desejos de revanche pela morte de seu pai. ” (ASSIS, 1916, p. 21).
140
falarem. Dirão que dou-me com o assassino de meu pai, pois estás casada com ele. ” (DEL
PRIORE, 2009, p. 109).
Quando Euclides Filho ingressa na vida militar essa cobrança não se abranda – ao
contrário, o que o afasta em definitivo da mãe e de sua família, e desperta nela amargura, que
o acusa de ter “infringido o preconceito imposto pela dignidade [...] traindo suas relações filiais
e acovardado pelo bater língua” (DEL PRIORE, 2009, p 110). Os filhos de Euclides passaram
muitos anos separados, entregues aos cuidados de parentes e amigos do falecido pai,
essencialmente em razão das circunstâncias da morte deste. Dilermando lança luz sobre os
caminhos dos mais velhos:
[...] após a morte do Dr. Euclides da Cunha tomou a seu encargo a subsistência
de seus filhos e mãe destes até o ano de 1911; que neste ano, reconhecendo,
por diversos motivos, a inconveniência de permanecerem, em sua casa, com
prejuízo próprio, já para sua educação, já para sua instrução [...] algum tempo
depois foram os mais velhos, Sólon e Euclides, confiados, respectivamente,
aos cuidados dos Srs. Drs. Cândido Mariano Rondon e José Carlos Rodrigues
[...] Sólon seguiu para o Mato Grosso, a trabalhar na Comissão de Linhas
Telegráficas e Euclides foi internado no Granbery, colégio de Juiz de Fora”.
(ASSIS, 1916, p. 21).
269
Segundo Dilermando, na ocasião da morte de Euclides Filho ele foi procurado pelo Jornal do Brasil para uma
entrevista, que nunca foi publicada. Ele a transcreveu no livro que escreveu sobre a morte do enteado (ASSIS,
1916).
141
cabia a ação. Salvar a sua honra era agir para limpar a honra paterna, que sua mãe falhara em
guardar.
A “Tragédia da Piedade” influenciou a vida familiar dos Cunha e dos Assis de uma
forma peculiar, dividindo-os em dois grupos como se entre eles não houvesse um denominador
comum: Ana. Os filhos de Euclides pertenciam ao pai270, os filhos de Dilermando pertenciam
a Ana. E, a esses grupos, de certa forma se junta a filha que Dilermando teve ao se separar de
Ana, cuja vida também acaba influenciada pelas consequências daquele agosto. E todos eles
fazem uso da literatura para apresentar as suas defesas, essas três obras tecem uma história que
é mais de desgosto do que de alegria, de uma desesperança esperançosa que não traz um final
feliz. E tratam de aspectos mais pessoais e emotivos de uma narrativa que, vista a partir da face
pública de Euclides, é tecida pelos artífices da república em sua perspectiva teórica, formadora:
jornalistas e intelectuais que trabalhavam pela narrativa de um novo país, como Cunha o fizera
– e o local que ele ocupa após sua morte segue a serviço desse papel, daí a atuação deles na
defesa da memória do escritor.
Judith de Assis é deveras271 assertiva em sua afirmação de que Ana era uma mãe
prestimosa, “fomos criados e educados por Anna de Assis, que se mostrou uma supermãe.
Somos testemunhas de sua vida à beira do fogão, de luta e abnegação pelos filhos”
(ANDRADE, 2009, p. 238). Não cabendo juízo de valor quanto ao comportamento de qualquer
dos envolvidos, cumpre lembrar que, como já foi apontado algumas vezes ao longo do texto,
Ana não tinha o comportamento padrão das mulheres da sua época, e considerando-se a
importância dada no papel da mulher na educação dos filhos e condução do lar, é difícil
270
No fim da vida Ana deu uma entrevista ao Jornal Diretrizes, logo após entrevista concedida ao mesmo veículo
pelos filhos de Manoel Afonso, ou seja, seus netos. No entanto, na entrevista de Ana é possível ler, “Dona Anna
de Assis leu a entrevista que Norma, neta de Euclides, concedeu a Diretrizes...” (ANDRADE, 2009, p. 214). Vide
nota 286.
271
Quando da morte de Ana, Judith procurou a redação da Revista da Semana e, segundo sua própria informação,
dissertou sobre a mãe e seu passado por horas, o que resultou em uma nota chamada “Anna Sólon de Assis”, onde
é possível ler” Dona Anna Sólon de Assis, que trouxera no seu destino o signo da tragédia e do sofrimento, morreu
em fins de maio último, deixando no seio da família desolada um dos maiores exemplos de dedicação materna
diante das contrariedades da vida: o exemplo da virtude, da coragem para trabalhar para nutrir e educar os filhos
pequenos e encaminhá-los na cida, a maior glória de uma mãe [..]” (ANDRADE, 2009, p. 225).
142
conciliar o comportamento registrado na documentação com o de uma mãe que fosse vista como
sem defeito, inclusive pelos filhos, especialmente filhos homens que lidavam com as
consequências, em um mundo masculino, machista e cheio de códigos de honra, da morte do
pai diante da traição da mãe – sofriam pressões regularmente para que vingassem a morte do
pai e não reconhecessem a existência da mãe (DEL PRIORE, 2009). Sobre essa escolha da mãe,
Judith discorreu:
Nunca ninguém percebeu que, aos quatorze anos de idade, a menina Anna
Emília participou das reuniões em que se tramou a Proclamação da República
do Brasil [...]. Foi ouvindo aqueles doutos e sábios senhores que a menina
Anna Emília aprendeu que, se os homens governam os destinos da história,
deveriam saber também determinar a direção de uma vida. E se o coração
masculino apenas se preocupa com a liberdade e a independência, o da mulher
também se dedica ao amor. Ela pode ser romântica, jamais débil, impulsiva
sim, porém sempre inteligente, audaz. E revolucionária quando e onde preciso
for. A mulher Anna Emília recordaria os ensinamentos filosóficos [...] e
trataria de colocar em prática, em benefício de sua vida e sua paixão pelo
jovem cadete Dilermando de Assis [...] (ANDRADE, 2009, p. 246).
272
Andrade (2009, p. 31) transcreve carta de Manoel Rodrigues Pimenta ao filho Euclides, na qual ele se queixa:
“nada me disseste, eu compreendi somente que havia falta de confiança, mas, como esta não se impõe a ninguém,
retirei-me daí apressadamente e contrariado, não só por isso, como também pela forma estranha como tratas tua
mulher e filhos, sobretudo a Solon, a quem mais estimo. Pensei que o trato que tens feito e sobretudo os meus
conselhos tivessem modificado a tua maneira de viver, mas encontrei os mesmos destemperos, a mesma desordem
de outrora. ”
143
para a casa da mãe, em São Cristóvão. Euclides foi buscá-la. Discutiram. Ele
queria sua volta ao lar, a reconciliação, ao mesmo tempo que, entre ameaças
e imprecações, considerava-a adúltera e indigna de permanecer ao lado dos
filhos. [...] Anna combinou os detalhes da viagem com a irmã e se decidiu por
refugiar-se em Piedade. (ANDRADE, 2009, p. 69).
Não conseguiu. Ana partiu para a Piedade e Euclides, ao segui-la de arma na mão, selou
não só o destino trágico dos três, mas os papeis que seus descendentes assumiriam nos próximos
anos. Sólon encontrando uma morte trágica tão longe de casa, Quidinho encontrando uma morte
tão igual à do pai. Manoel Afonso, criado longe da mãe e sem uma família próxima por tantos
anos. Os filhos de Ana e Dilermando, segundo eles mesmos, “olhados como filhos de um
assassino e de uma mulher infiel, traidora. Filhos de uma mulher vaidosa, doidivanas”
(ANDRADE, 2009, p. 238). E Dirce, a filha de Dilermando, julgada pelo pai que teve e pela
mãe que não teve, “a quem me conhecia não só causava espanto eu ser a filha dele, mas também
o não ser filha de sua mulher [...]. Eu era, portanto, a prova do adultério do homem que não
tinha o direito de prevaricar. ” (CAVALCANTI, 1998, p. 132).
Manoel Afonso273 tornou-se adulto sem influência direta do pai ou dos irmãos mais
velhos, mas os seus descendentes mostraram-se defensores da memória de Euclides, de sua
honra, tanto quanto Quidinho ou mesmo Sólon. Joel Tostes abre a obra de Adelino Brandão de
maneira enfática:
Este é o desmascaramento de um livro medíocre, “Anna de Assis – História
de um Trágico Amor”, publicado em 1987, com a visível intenção de enodar
a memória de Euclides da Cunha e sua família, além de injuriar, difamar e
caluniar. [...] Por isso, não poderíamos deixar sem resposta procedimento tão
indigno, colocando este trabalho ao lado daquele, nas bibliotecas e nas
estantes, para todo o sempre. (BRANDÃO, 1990, p. 9).
273
Apesar dos descendentes de Manoel Afonso, chamado pela família de Afonsinho, estarem firmemente
plantados no campo de defesa de Euclides, Judith descreve uma relação afável com o meio irmão, com diversos
encontros ao longo da vida, “o fato de Anna de Assis se dedicar aos cinco filhos com Dilermando não significava
que Manoel Afonso vivesse totalmente afastado da mãe ou que nutrisse por ela e pela nova família alguma espécie
de aversão” (ANDRADE, 2009, p. 166).
274
A ressalva da documentação vem do fato de que tanto Brandão quanto Assis tomam o cuidado de apontar que
consultaram sim a documentação oficial (como o processo-crime), além de biografias, cartas, etc.
144
275
Conforme se vê do discutido na p. 115/116 isso não é exato.
145
memória de Euclides, mesmo que em detrimento de Ana – essa parte da família para sempre
perdida para ela.
Dirce, a filha que não era de Ana, começa a sua narrativa como a adulta ciente do peso
sob os ombros do pai (e, por conseguinte, da mãe, que escolheu fazer a vida com ele, um homem
que era legalmente casado – e com a viúva do homem que ele matara): “fui a impossibilidade
de mais um aborto de minha mãe. Teria sido o sétimo.” (CAVALCANTI, 1998, p. 15). Uma
“inconveniência276” para um casal que vivia junto, mas não se deixava ser visto em público a
dois, “naquela época as coisas tinham muita repercussão, sobretudo em se tratando do meu pai,
homem conhecido no país inteiro pela grande tragédia que lhe marcara a juventude”
(CAVALCANTI, 1998, p. 15).
Ela conta a história de uma família cheia de silêncios, de um pai de longos olhares e
muitas horas isolado em um escritório e de uma mãe chorosa e nervosa, infeliz. Um casal
enciumado e que vivia esparsos momentos de leveza e alegria, a ponto de Dirce dizer duvidar
que um dia ambos foram jovens e felizes. Mas, ao mesmo tempo, discorre sobre uma infância
em meio a brincadeiras e aprendizagens, acompanhando a carreira militar do pai, que muito se
dedicava a ela – como também se devotava a mãe, Marieta (CAVALCANTI, 1998).
Um homem que consagrou a vida ao exército e a se redimir de seus atos de juventude,
Dilermando era, ao mesmo tempo, aquele que plantava gerânios na janela da casa cinzenta que
construiu para a segunda família (CAVALCANTI, 1998) e que cultivava com a filha caçula
uma relação mais suave do que teve a oportunidade de desenvolver com os seus filhos mais
velhos277. Desse amor exercitado ao longo da infância, de um pai que lhe parecia forte e
invencível, “todos os dias eu acompanhava meu pai ao quartel [...] sentia-me imensamente
importante e orgulhosa do meu pai” (CAVALCANTI, 1998, p. 20), Dirce saiu, ao entrar para
um rigoroso e religioso internato, para a realidade de ser filha não só de um homem que se
relacionara com uma mulher casada, mas que se relacionara com a esposa de Euclides da
Cunha, a quem matara. E a relação entre eles nunca mais foi a mesma, “queria perguntar tantas
coisas a meu pai, mas não tinha coragem. E a partir desse momento uma brecha se abriu,
profunda, e me afastou dele” (CAVALCANTI, 1998, p. 90). Ela ainda se encontraria com o
destino do pai em outras ocasiões:
276
Dirce (1998) deixa clara a satisfação do pai com o seu nascimento (ainda que já tivesse cinco outros filhos), a
inconveniência e as providências para não ter filhos que Marieta tomava estavam relacionadas a situação dos dois,
vivendo juntos sem se casar.
277
Também nunca se relacionaram de maneira próxima com a meia irmã, segundo a narrativa da própria Dirce,
que conta que quando do primeiro enfarte sofrido por Dilermando, ele passou a receber visitas dos filhos mais
velhos que não demonstraram interesse em conhecê-la (CAVALCANTI, 1998).
146
Realmente meu pai tinha matado um deus. Um deus literário cujos fiéis
fanatizados, não o perdoavam, nem queriam saber em que circunstâncias
atenuantes as coisas se tinham passado. Tinha matado o gênio, para defender-
se do ataque do marido enlouquecido de ciúme (CAVALCANTI, 1998, p.
119).
278
Dirce aponta que “toda essa história era constantemente relembrada pela imprensa do país, acrescida de
comentários ferinos e de invencionices maldosas, que aumentaram seu sensacionalismo. Escritores, jornalistas,
amigos do escritor, os que se consideravam companheiros de classe, a cada aniversário de sua morte, traziam-na à
baila, deturpando os fatos e atacando papai sem caridade. Chegaram a exibir, na vitrine de uma conhecida livraria
na rua do Ouvidor, a túnica que papai vestia na ocasião do tiroteio, com os furos das balas do escritor. Como sua
última obra. ” (CAVALCANTI, 1998, p. 140).
147
279
De acordo com Dirce Cavalcanti, (1998, p. 143), o Ministro da Guerra aconselhou Dilermando, “com toda
franqueza, a assinar o pedido de reforma como coronel, prometendo-lhe o posto de general-de-brigada sob a
condição de automaticamente deixar a ativa. Sendo, então, o primeiro do exército na lista tríplice para promoção,
apesar de saber que com isso jogava uma pá de cal em suas pretensões ao generalato, negou-se a aceita-lo nessas
condições. Com a frase: envelheço, mas não envileço, condenou-se a passar para a reserva, compulsoriamente,
como coronel. ”
280
Dirce conta que a entrevista à Diretrizes muito custou a Dilermando que, segundo ela, “foi chamado pelo
Ministro da Guerra e acremente censurado por haver facultado à revista os meios para a publicação da sua defesa.
Foi-lhe entregue uma repreensão por escrito, baseada em que depois de mais de trinta anos já não se justificava o
escândalo, ainda que para o restabelecimento da verdade. ” (CAVALCANTI, 1998, p. 142).
281
Não sem repercussões, segundo o próprio Dilermando, que informa ter sido censurado pelo Ministério da
Guerra após falar à Revista Diretrizes, porque o ato “desfez uma porção de inverdades e promoveu a reparação de
muitas injustiças. Esclareceu muitos patrícios que me tinham em falso conceito. E isso contraria os desejos de
meus desafetos, de meus concorrentes, de meus algozes [...] Temem a minha ascensão... Cumpre impedi-la de
todos os modos...” (ASSIS, 1951, p. 38).
148
Talvez o título desse item devesse ser a sombra dos Euclides, uma vez que Dilermando
carregava o fardo da morte do pai e do filho. Mas, a verdade é que a sombra de Quidinho é a
sombra do pai, a mão de Quidinho uma substituta para a mão do pai, foi uma vingança em seu
nome, tornando assim, essa segunda narrativa, um epílogo da primeira, uma continuação tanto
no resultado infeliz quando nos esforços de Dilermando em seguir a própria vida e justificar os
seus atos, em destacar o papel do destino, da providência, no ocorrido. É o que resume o jornal
paraense O Diário:
Será Dilermando um criminoso, perverso e sanguinário, ou unicamente um
homem contra o qual a inconsciência das coisas não cessa de armar terríveis
truques, traiçoeiras insídias?... Somos levados a acreditar nesta última versão:
os seus crimes são oriundos da fatalidade que o procura sem descanso. E
Dilermando é redimido por uma virtude que ninguém lhe pode negar: pela sua
bravura tantas vezes comprovada, o sangue frio com que ele acosta o perigo,
a calma com que desafia o desconhecido, a sua impassibilidade diante do
mistério.... Já houve tempo em que se coroavam os bravos, mesmo que fossem
também incompreensíveis facínoras. Neste sentido vertiginoso, saudemo-lo
ao menos. (ASSIS, 1916, p. 70).
Anos depois, no dia do casamento de Dirce, sua filha mais nova, Dilermando falou à
Revista O Cruzeiro, em entrevista conduzida por David Nasser. A alegria diante da filha vestida
de noiva foi retratada ao lado de um dorso nu282 com marcas de bala causadas por Euclides e
Quidinho, em um contraste que refletiu muito toda a vida de Dilermando, que se apaixona, toma
para si a mulher que também lhe declarara amor, mata-lhe o marido, é julgado e absolvido por
se defender, com a amante se casa e então mata também o seu filho, mais uma vez em legítima
defesa e mais uma vez em razão daquele seu envolvimento com uma mulher então casada com
outro. E passou a vida a justificar o seu direito de viver diante do peso da honra ferida de um
homem cuja morte o concedeu ares de deidade.
Pode-se usar as palavras do próprio Dilermando, mais uma vez, para resumir seu dilema:
Minha situação [...] não é resultado provocado por um crime sofrivelmente
arquitetado, mas a consequência fatal da minha fraqueza ante o poder e o
predomínio vastíssimo de três elementos sintéticos e capitais que me
guerrearam – um delegado pouco escrupuloso, uma imprensa que se retrará e
se difama diariamente, e a máxima diferença social e cultural que nos colocava
nos extremos de uma escala ascensional onde eu demandava o primeiro degrau
e o Dr. Euclides ultrapassava o último. (ASSIS, 1916, p. 80).
282
Dirce conta que esta entrevista, realizada pouco antes da morte de Dilermando, lhe trouxe desgosto com o pai,
em razão do seu casamento ter ficado eclipsado pela Piedade; e por causa do pai, por vê-lo em uma situação
considerada por ela vexatória, desrespeitosa (CAVALCANTI, 2009).
149
Imagem 26. David Nasser observa o dorso nu de Dilermando. A Imagem 27. Dilermando beija Dirce, sua filha caçula. A
legenda diz: O General Dilermando de Assis mostra a David legenda diz: Um momento feliz numa vida de tragédia.
Nasser as marcas das balas recebidas de Euclides da Cunha pai e Foto sem autor. Fonte: Revista O Cruzeiro.
de Euclides da Cunha Filho. Foto sem autor. Fonte: Revista O
Cruzeiro.
150
Se Ana sempre afirmou que o seu silêncio era a sua defesa284 (ANDRADE, 2009),
Dilermando fez questão de se defender escrevendo copiosamente. Evaristo de Moraes (1922,
p.212) expende que em seu primeiro encontro com Assis, ainda no Hospital do Exército, o
militar fora “o primeiro, e talvez o mais eloquente dos advogados de sua causa”. Ele escreveu
“Tragédia da Piedade” para servir de base à própria defesa, e não economizou palavras, são
mais de 600 páginas. Ao final, após apontar os erros e imoralidades da apuração do fato, lista
cuidadosamente as poucas vozes que se levantaram para o defender, talvez não tanto na ocasião
dos fatos285, mas com o passar dos anos, até mesmo no jornal O Estado de São Paulo. Paulo
Duarte286, por exemplo, ali publica em 21 set 1949, que não se formou entre aqueles que “olham
283
Escreveu, por exemplo, o texto “Euclides, um gênio americano”, disponível no volume 6 de suas obras
completas.
284
Até onde se sabe, segundo informa sua família, Ana deu uma única entrevista ao Jornal Diretrizes em 30 de
dezembro de 1946 (ANDRADE, 2009). Busquei referências ou arquivos do Jornal Diretrizes, mas a única
informação que encontrei, no Catálogo de Periódicos da Unesp de Assis (Disponível em
https://tinyurl.com/4sa78de2. Acesso em 14 fev 2022), foi que o jornal diário (re) surgiu da própria revista, fechada
em 1944, no ano seguinte. Não pude localizar a citada edição. Encontrei duas transcrições da entrevista, uma no
livro de Jefferson de Andrade e outra no site de Glória Perez, no qual ela trata da minissérie Desejo, mas sem
maiores detalhes sobre a procedência do documento (Disponível em https://tinyurl.com/4yad4wbf. Acesso em 14
fev 2022). Vide nota 272.
285
Mary Del Priore aponta que, ao longo dos anos, Dilermando encontrou guarida entre os colegas de farda, “gente
que pensava como ele: um soldado não foge à luta; matou Euclides em legítima defesa; a honra o obrigou a aceitar
o duelo. As amizades viris alimentavam a convivência. A comunidade de interesses ancorada nos princípios
militares era um verdadeiro lenitivo contra a solidão” (DEL PRIORE, 2009, p. 113).
286
Jornalista, chegou a ser redator chefe do Estado de São Paulo, chefe de gabinete do prefeito Fábio Prado (SP)
e deputado do Partido Constitucionalista. (Com informações disponíveis em https://tinyurl.com/mr4bza6w.
Acesso em 10 mar 2022).
151
o autor da morte de Euclides da Cunha como um vulgar assassino [...] ao contrário, respeito
profundamente a sua desgraça” .
O livro Tragédia da Piedade é duramente criticado por alguns. Adelino Brandão (1990,
p. 58-160) declara ser a leitura da obra “penosa”. Franklin de Oliveira o chama de “deplorável”
(CAVALCANTI, 1998, p. 173). De certa forma, essas críticas fazem uma oposição visando
destacar a capacidade intelectual superior de Euclides, como se com isso se compensasse a
superior força física de Dilermando, comprovada no embate final entre ambos e a consequente
morte de Cunha, um homem pequeno, franzino, e que nunca demonstrou maior interesse pela
carreira militar e suas óbvias exigências físicas. A despeito de ter passado a vida em uma
profissão tida como masculina (a Engenharia), se dedicado ao trabalho intelectual e liderado
empreitadas que exigiam grande coragem (cobrir guerras e desbravar florestas), em seu teste
supremo Euclides falhou. Com a honra enxovalhada em mãos ele perece e o homicida
sobrevive. Um jovem de visíveis atributos físicos e força bruta, que talvez fossem capazes de
destacar a masculinidade de forma mais clara do que os tantos atributos que o próprio Euclides
tivera. Ademais, o escritor tinha, ainda, uma suprema desvantagem: a protetora de sua honra,
sua esposa, o traíra.
Essa sombra ao longo dos anos em que viveu Dilermando aparece de outras maneiras,
como por exemplo um exemplar anotado (por Assis) de Os Sertões: a grande obra de Cunha, a
sua redenção, escrutinada pelo seu assassino. O poeta e crítico Antônio Carlos Secchin, narra
em artigo escrito para o jornal O Globo (2018), que ganhou tal edição de Dirce, filha de
Dilermando e que na obra é possível encontrar anotações críticas de três espécies: positivas,
neutras e negativas, sendo as positivas escassas – apenas cinco, afirma Secchin, que entende
serem as anotações posteriores à morte de Euclides (segundo ele, Dilermando demonstra
familiaridade sobre estratégias bélicas descritas na obra, e faz ponderações acerca de técnicas e
equipamentos que são posteriores a 1909). O crítico informa que, por muitas vezes, as anotações
parecem um diálogo entre Assis e Cunha. Dilermando se exaspera ao longo da obra e é possível
encontrar anotações apontando erros de pontuação e regência, entre outros, exclamações
impacientes acerca das afirmações de Euclides, como “Que barbaridade!” ou “É mentira”
(SECCHIN, 2018). E, em uma nota triste, reflexo da sombra que o acompanha, Dilermando,
diante da caracterização do Coronel Moreira César por Cunha, “Uma alma proteiforme
constrangida em organização fragílima”, replica em uma única palavra: “Euclydes”
(SECCHIN, 2018).
152
Sob a sombra de Cunha também seguiu sua carreira no exército. Chegou ao posto de
General287, mas sua subida foi mais lenta e mais íngreme, o peso do nome de Euclides sobre os
seus ombros:
[...] suas designações anteriores deixaram bem clara a intenção de mantê-lo de
castigo. Como segundo – tenente, de São João Del Rei fora enviado a São
Nicolau, no Rio Grande do Sul. O lugarejo, sem água, sem luz, sem esgotos,
oferecia ao oficial recém-chegado apenas uma turma de praças, que se dividia
entre cortar no mato a madeira necessária à construção de um rancho e
preparar o barro para as paredes da habitação que seria a dele e de sua família.
Depois o enviaram por quatro anos a Bagé. Cidades de menor importância se
sucediam na carreira do meu pai. (CAVALCANTI, 1998, p. 96-97).
287
Após a entrevista que deu a Revista Diretrizes em 1941, Dilermando de Assis, às vésperas de compor lista
tríplice para sua promoção a General, foi passado à reserva compulsoriamente, ostentando o título de Coronel.
Contudo, nos próximos anos, graças a leis promulgadas depois da II Guerra Mundial, acabou finalmente
promovido ao topo da carreira a qual serviu ao longo de toda a vida. Dirce Cavalcanti (1998, p. 143) recorda que
nessa ocasião voltou a encontrar seus irmãos mais velhos, em um banquete de comemoração pela promoção do
pai.
288
Judith conta que Euclides voltou da campanha militar de 1924 mais tenso, agressivo e que aí começaram os
problemas entre ele e Ana, “estavam em constante desacordo, principalmente na forma de educar e criar os filhos”
(ANDRADE, 2009, p. 130). Segundo consta, diante dos repetidos desencontros entre eles, e ciente de que “era
uma mulher chegando aos cinquenta anos e seu companheiro ainda mantinha a virilidade de quem ainda não
chegou aos quarenta” (ANDRADE, 2009, p. 132), Ana acabou tomando ciência de um relacionamento
extramatrimonial mantido por Dilermando, o que ocasionou a separação entre eles. E embora Dilermando
repetidamente lhe pedisse perdão, ela foi irredutível.
153
“você era o único homem que não tinha o direito de prevaricar” (ANDRADE, 2009, p. 246).
Separado, porém não desquitado, Dilermando foi viver com Marieta e essa relação também não
parece ter trazido a ele melhor sorte. Apesar das dificuldades, o relacionamento perdurou até a
morte de Dilermando, ocorrida no mesmo ano que a de Ana. Ela se foi primeiro e ele, viúvo,
finalmente fez de Marieta uma “mulher honesta”, casando-se com ela.
Muitas vezes Euclides aparece como um homem surpreendido pelo comportamento de
Ana, traído da forma mais vil. Mas Dilermando (1951, p. 180) afirma que Euclides sabia não
só que Ana era presença assídua na casa da Piedade, mas também que “entre ela e um dos
rapazes haviam estabelecido relações que não eram só de conhecimento”. A própria S´Anninha
afirmou para o juiz que ela e Euclides já não viviam mais maritalmente:
[...] não tinha mais relações com o marido, que lhe teria dito que havia homens
que as mulheres traíam e ficavam ou no mesmo teto, depois de pedirem
perdão, ou abandonavam; que ela esperava o falecimento de sua mãe para
deixa-lo, visto que com sua morte teria ela uma pensão de uns quinhentos mil
réis, além de não lhe dar nenhum desgosto. (GALVÃO, 2009, p. 130).
Ana nunca achou que tivesse que pedir perdão. Dilermando passou a vida obrigado a
pedir perdão não só pela traição, mas por ter sobrevivido para seguir a vida, e com a viúva de
Euclides que, segundo as narrativas contam e perpetuam, ao final da vida, se mostrara tão
amargurado e morrera de forma tão indigna para a sua grandeza. O comportamento errático de
Euclides, tantas vezes destacado, nessas narrativas usualmente é diminuído. Mas Ana conta
(GALVÃO, 2009, p. 130), ela própria, as dificuldades que enfrentou junto a um homem que
ela mostra como irado289 pela traição e com a saúde decadente (narrativa que é corroborada por
Dilermando290)
De fato, Assis foi absolvido pela justiça. Note-se, não por um juiz togado conhecedor
da legislação, mas por um júri, formado por homens comuns com aspirações comuns e
animados por suas percepções pessoais, não necessariamente pela previsão da lei. Esses homens
entenderam que ele tivera o direito de se defender, e ele quedou-se livre. Mas, de volta a uma
sociedade fortemente construída sob a égide da honra e da religião (tanto a de Deus quanto a
do Positivismo concordavam nesse ponto, o matrimônio era sagrado), continuou a ser punido
289
Ela contou em juízo, por exemplo, que encontrou com Euclides na companhia de Coelho Netto, e que Euclides,
indagando sobre as razões dela estar na rua, não satisfeito com a resposta (ir às compras), seguiu-a até o bonde,
onde se sentou ao seu lado e passou a viagem a agredi-la, dizendo que ela era uma indigna e que fosse viver com
o sargentão - como ele chamava Dilermando. (GALVÃO, 2009, p. 130).
290
Segundo narra Dilermando (1951, p. 179), “desde época bem remota adivinham as incompatibilidades do casal
[...] não fora além do murmúrio e de alguns desaguizados domésticos sem maiores consequências além de vestidos
rasgados ou objetos quebrados, [...]. Insultando-a, vexando-a diante de estranhos; afugentado-a de si; esquecendo-
a em troca de suas predileções literárias; abandonando-a longamente [...].
154
por não ter respeitado o casamento alheio. Construiu uma carreira e uma família sob a sombra
de um homem que construiu, em vida, um grande nome, e com sua morte, arrebanhou uma
legião que teceu narrativas que, ao lhe renderem a glória, deixaram Dilermando a rés do chão.
No ano de sua morte, 1951, a saúde de Dilermando decaiu e ele sofre um enfarte seguido
de derrame que o deixou debilitado e, por muitos dias, incapaz de reconhecer quem fosse a não
ser ele próprio, em um retrato da juventude. O velho general bradava ao jovem militar na
fotografia antiga, um Adônis louro e forte que não temeu aos deuses, enredou-se em tragédia e
sofreu a sua fúria por toda a vida, “ [...] o retrato de um pobre desgraçado que só fizera penar a
vida inteira” (CAVALCANTI, 1998, p. 148). E nem na morte ele teve perdão. Dono de um
jazigo no Cemitério do Santíssimo Sacramento (SP), onde já enterrara seus pais e irmão,
Dilermando teve o seu próprio sepultamento no local negado. Seu corpo encontrou repouso no
Cemitério São Paulo e somente anos depois foi trasladado291 para junto de sua família
(GARCIA, 2019).
291
Dirce Cavalcanti conta que em visita ao túmulo dos avós e do tio, com o pai, este manifestara o desejo de ser
com eles enterrado (CAVALCANTI, 1998).
155
A Biblioteca Nacional não é, por si, uma instituição a qual se pretende dedicar neste
capítulo; no entanto, desde a sua organização da forma como nós a conhecemos, liderada por
Peregrino da Silva292 no fim do séc. XIX e no início do séc. XX, nota-se que a instituição se
tornou um “polo para onde confluíam as discussões intelectuais no período” (JUVÊNCIO,
2016, p. 16). Portanto, este destaque vem do fato de que Euclides não só é objeto de exposição
comemorativa, mas é nominado “o mais brasileiro” dos escritores por uma instituição que
sistematiza a produção intelectual brasileira, e isso é sintomático do que neste capítulo se
pretende examinar: o papel das instituições culturais na posição de Euclides na memória, no
cânone, e, especialmente, as condições da narrativa da sua história em razão desta posição.
Neste capítulo pretende-se concentrar em três instituições: o IHGB, a ABL e o Grêmio
Euclides da Cunha, vistos aqui também como instâncias de legitimação do escritor fluminense.
O Grêmio, que surge após a morte do seu homenageado, uma agremiação de intelectuais a
serviço da memória do falecido293, que de certa forma se repete no grêmio homônimo criado
em Rio Pardo. A semente do IHGB é a Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional294. Foi
nela que em 1838 foi proposta, pelo cônego Januário da Cunha Barbosa e pelo marechal
Raimundo José da Cunha Matos, a criação de um Instituto Histórico e Geográfico, o que
efetivamente se deu em dezembro do mesmo ano295. Quanto à ABL, segundo seu próprio site296
informa, trata-se de instituição cultural cujo objetivo é o cultivo da língua e da literatura
nacional. Foi fundada em 1897, depois de algumas tentativas frustradas, a casa foi fundada a
partir da articulação de Lúcio de Mendonça (fundador da cadeira 11) e Machado de Assis
(fundador da cadeira 23), que atuavam juntos na Revista Brazileira297. Os primeiros membros
292
Manuel Cícero Peregrino da Silva (1866-1959) nasceu em Pernambuco, onde recebeu sua educação até o curso
de Direito na Faculdade de Direito de Recife (1885), instituição da qual também foi bibliotecário. No Rio de
Janeiro, então Distrito Federal, ele atuou em diversos cargos públicos, sendo um dos de maior importância o de
diretor-geral da Biblioteca Nacional (1900/24). Com informações do site do IHGB, disponíveis em
https://ihgb.org.br/perfil/userprofile/MCPSilva.html. Acesso em 20 jan 2022).
293
Alberto Venâncio Filho declarou que o Grêmio se iniciou “formado por alunos que tinham assistido às aulas
de Lógica do Euclides da Cunha no Colégio Pedro II. Esses rapazes acharam que deviam perpetuar a memória do
professor” (SCARRONE e ELIAS, 2010).
294
Entidade fundada em 19 de outubro de 1827 como órgão consultivo do governo imperial, seu fim era o de
examinar e emitir pareceres sobre questões e assuntos relativos à economia do país. (Conforme informações
constantes de https://tinyurl.com/5fs643hx. Acesso em 20 out 2021).
295
Na primeira sessão, em 1/12/1838, foram aprovados os nomes indicados para sócio e propostas (e aceitas) a
nomeação de D. Pedro II como protetor do Instituto, o estabelecimento de maneiras próprias para troca de
informações históricas entre sócios nacionais e estrangeiros, além da instituição de discussão para determinar as
diferentes épocas da História do Brasil (IHGB, s/d).
296
Disponível em https://www.academia.org.br/academia/quem-somos, acesso em 20 out 2021.
297
Então dirigida pelo crítico literário José Veríssimo (fundador da cadeira 18 da ABL).
158
da instituição não só contribuíam para a revista como também se reuniam nos cafés e livrarias
da Rua do Ouvidor298.
A historiografia acorda que o entendimento da existência de uma intelectualidade
aconteceu na França, no turbilhão do Caso Dreyfus299, como uma categoria “socioprofissional”
marcada tanto pelas suas vocações científicas quanto pelo capital cultural que lhes conferia
poder (GOMES e HANSEN, 2016). Quanto ao Brasil, é preciso lembrar, ainda, que foi a
imprensa, que se estruturava no nascer da República, quem cimentou as condições necessárias
para o desenvolvimento de um campo intelectual capaz de aglutinar instituições e seus
membros, os nomes pensantes daquele novo país (BARBOSA, 2010). No entanto, esses
pensadores já existiam e atuavam antes dessa quase profissionalização dos intelectuais.
Deveras, com a chegada da Família Real Portuguesa em 1808 viu-se a elevação do Brasil à
condição de Reino Unido a Portugal e, na sequência, a reino independente. Neste interregno,
houve um trabalho de autolegitimação e propaganda criado pela própria monarquia, a partir de
duas instituições, a Academia Imperial de Belas Artes300 e o IHGB, “as artes a serviço da
história [...] e a história a serviço do Estado. ” (SEVCENKO, 2002, p. 32).
A reunião de intelectuais em agremiações instituidoras de regras e mantenedoras do
artístico/literário não era exatamente uma novidade oitocentista; no Brasil isso já ocorria desde
o séc. XVII, em diferentes regiões e em momentos distintos (SILVA, 2007). Tendo-se em mente
de que esses grupos eram formados301 pela elite letrada nacional, pelos filhos de famílias
abastadas, pelos que tinham capital político e social302, a diferença é que no século XIX o seu
propósito303 torna-se declarado:
298
Como o Café do Rio, no cruzamento da rua do Ouvidor com a rua Gonçalves Dias; o Java, no Largo de São
Francisco; o Café Paris, o Café Papagaio; o Café Globo, na rua Primeiro de Março. Além da Confeitaria Colombo,
e a Confeitaria Pascoal (BROCA, 1975, p. 33).
299
Em 1894, o capitão do exército francês Alfred Dreyfus, um judeu de origem burguesa, foi acusado de vender
informações secretas aos alemães e recebeu pena de prisão perpétua na Ilha do Diabo, Guiana Francesa. Alguns
anos depois dessa condenação, personalidades ilustres da França, como Émile Zola e Anatole France (COELHO,
1994), observando irregularidades enormes no processo, passaram a fazer denúncias públicas. Dreyfus teve sua
inocência reconhecida e foi reabilitado no ano de 1906, mas esse conjunto de fatos foi muito importante na história
da França, trazendo discussões sobre antissemitismo e o papel da elite aristocrática, além de organizar essas
personalidades importantes do país nesse grupo que passou a ser conhecido como o dos “intelectuais”.
300
Silva (2007, p. 70) argumenta que “No século XIX, agremiações semelhantes, mas com propósitos diversos,
passaram a ser confundidas com certa oficialidade intelectual, e nesse sentido a Academia Imperial de Belas Artes
(1816) pode ser tomada como uma precursora”.
301
Na esteira do que trabalha Miceli em Intelectuais a Brasileira (2001), quando pretende compreender como os
intelectuais da Primeira República convertem capital social familiar em capital cultural.
302
José Murilo de Carvalho (2003) já falou sobre o fato de que Portugal moldou, até a primeira metade do séc.
XIX, a elite colonial à sua imagem e semelhança, treinando em Coimbra um mar de bacharéis em Direito. A
geração de Euclides já vê mudanças, com a atuação de militares e outros intelectuais, parte de uma elite local
formada no Brasil e a serviço dos interesses da República.
303
Nesse papel de grande tradutor do Brasil, Claude Lévi-Strauss, ao resenhar a tradução de Os Sertões para o
inglês, disse sobre Euclides: escreveu um produto autenticamente brasileiro, esforçando-se para trazer a elite
159
[...] dar ao Brasil um sentido fundador, seja no campo das artes plásticas –
com a criação da já citada Academia Imperial de Belas Artes –, seja no campo
histórico e político – com a criação do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro em 1838 –, seja finalmente no âmbito da expressão literária – com
a criação da própria Academia Brasileira de Letras. (SILVA, 2007, p. 70).
Essa intelectualidade brasileira, que nos anos finais do séc. XIX e o início do séc. XX
então se organizava, o fazia com a ideia de uma missão civilizatória, no papel de defensora dos
interesses da sociedade, indo de encontro aos conceitos de intelectual desenvolvidos por
Mannheim (o intelectual como mediador de conflitos sociais) e por Gramsci (o intelectual como
organizador da cultura), como lembra Miceli (2001).
O percurso intelectual de Euclides da Cunha dialoga com essas premissas, se
considerarmos que ele é alçado ao cânone304 por discutir Canudos (no papel de intelectual
mediador de conflitos) e por jogar uma nova luz na forma como se discutia a identidade do país,
olhando para os homens do sertão, ampliando a forma de ver a nação (no papel de organizador
da cultura); ainda que pesquisadores como Martins (1987), que chama a literatura de Euclides
de “vigorosa”, ressalvem que os protestos apresentados por ele e por outros escritores do quilate
de Lima Barreto não se tornam projetos de transformação social, permanecendo no campo da
condenação moral.
Fundada em 20 de julho de 1897, a ABL se juntou ao IHGB (fundado em 21 de outubro
de 1838) como mais que uma agremiação de escritores/historiadores em razão de seus ofícios,
mas também um espaço de discussão de intelectuais das mais diversas áreas em um país que
ainda engatinhava na constituição de institutos de ensino/pesquisa (SÁ, 2006). Fazer parte desse
grupo dava ao associado status, dava a suas ideias, à sua produção, um alicerce, o apoio de um
grupo.
O intelectual, portanto, se inseria em uma rede de sociabilidade, e esta o situava em um
espaço cultural e em um âmbito de interpretação do mundo que advinha justamente da posição
que ocupava (GOMES,2004). Assim, pode-se até dizer que a mitificação de Euclides da Cunha
também é o resultado do respeito de seus amigos. Mas, é fundamental lembrar que os amigos
de Euclides eram também seus pares na intelectualidade, seus confrades na ABL, no IHGB,
seus ex-colegas na Escola Militar. Não era (só) sobre a amizade e o respeito, era também sobre
brasileira de volta à realidade de que se tratava o Brasil de um país cercado de natureza e primitivismo, e não de
um local de sofisticação. Para Lévi-Strauss, Cunha se recusara a ser um aprendiz de europeus e narrara o Brasil
(ABREU, 1998, p. 21).
304
Remete-se aqui à discussão apresentada na Introdução.
160
um nome que fazia parte de instituições305 às quais interessava a leitura de sua obra e o respeito
pela sua carreira, que se desenvolvera também na construção da doutrina republicana306.
Coelho Netto, por exemplo, amigo e confrade, diante da morte do companheiro, que se
“alara em um drama de sangue”, não economizou na grandeza das palavras a fim de determinar
o seu lugar de pensador, e o descreve como “honra das letras portuguesas” e a sua obra como
sendo não apenas “a de um beletrista, mas a de um profundo pensador, amoroso de sua pátria”
(VIEIRA, 2009, p. 55). Exaltar esse homem patriota, filho da educação militar e da ciência,
uma ferramenta fundamental na criação da identidade nacional foi uma boa base para que, por
ocasião do centenário de seu nascimento, a Biblioteca Nacional pudesse apresentá-lo como “o
mais brasileiro” dos escritores.
Importante manter em mente que (embora não seja essa a discussão aqui proposta),
assim, Euclides era um intelectual do final do séc. XIX e início do séc. XX, construindo seus
argumentos a partir de pensamentos e visão de mundo que hoje são objeto de crítica, como o
sanitarismo307, o positivismo e até mesmo a forma de republicanismo308 de então: a de que este
seria o único regime a permitir o que se entendia como uma sociedade melhor, caminhando em
direção ao progresso (FERREIRA, 2016).
Por sua vez, o Grêmio Euclides da Cunha, apresentado no Capítulo 2, aqui também
serve de ponte para a cidade de São José do Rio Pardo e o seu próprio grêmio, entendendo-se
as atividades da cidade a melhor continuação dos ideais que primeiro foram apresentados e
defendidos pelo Grêmio309. De todas as instituições aqui analisadas mais de perto, em relação
305
E o que são exatamente essas instituições? Reunião de pessoas que defendem os mesmos interesses, partilham
elementos comuns em termos dos interesses e valores.
306
Em maio de 1889, o Congresso Republicano, reunido em São Paulo, consagrou a tese de que se deveria
privilegiar uma campanha doutrinária pela imprensa como caminho para o advento gradual da República. Euclides
atuou ativamente nessa frente, como o fizeram grande parte dos nomes que compunham então, junto com Cunha,
os quadros da ABL e do IHGB.
307
O sanitarismo defendia que a boa saúde da população era tão importante para a construção da civilização quanto
a educação – uma nação calcada na ordem e no progresso influenciada pela higiene e o saneamento e – em último
grau, muitas vezes mesmo pela eugenia. Uma população educada e saudável era a base ideal para se construir as
ideias de nacionalismo, de identidade daquele povo que se agrupava em torno da República, a luz do progresso
em oposição à descartada Monarquia. Essas ideias do sanitarismo vão de encontro à estrutura familiar defendida
pelo positivismo, fortalecida e em consonância com noções de um lar salubre porque reflete a educação higiênica
e eugênica, assistindo às mães na difícil tarefa de moldar a infância, assistindo o Estado no estímulo ao trabalho a
fim de garantir um espaço de “paz, a saúde, a prosperidade e a alegria, em virtude da vitalidade das células do
organismo social” (CARVALHO, 1998, p. 163).
308
Os caminhos desse republicanismo logo se perderam diante da realidade do regime. Sevcenko, citando José
Veríssimo, explica bem: "Todos se presumiam e se diziam republicanos, na crença ingênua de que a República,
para eles palavra mágica que bastava à solução de problemas de cuja dificuldade e complexidade não desconfiavam
sequer, não fosse na prática perfeitamente compatível com todos os males da organização social, cuja injustiça os
revoltava" (SEVCENKO, 1983, p. 86).
309
Não se trata aqui de uma percepção da documentação ou da pesquisa, mas de consequência lógica da atitude
da família de Venâncio Filho, que doa a Rio Pardo o material amealhado em vida pelo fundador do grêmio. Ver
p. 127.
161
à figura de Cunha especificamente, é nele onde o fator “social” parece ter mais peso. Quando
observamos o IHGB e a ABL nota-se o cuidado e o respeito ao nome de Euclides em razão da
contribuição dele ao grupo, da contribuição do seu trabalho à narrativa, às memórias naquelas
casas defendidas, construídas (à época da produção de Euclides, a fim de erigir a República e
seus ideais). O Grêmio Euclides da Cunha carioca, ainda que em muito formado por pessoas
advindas também da ABL e do IHGB, com os mesmos propósitos, era (e é) o espaço onde
também se reafirmava Euclides em todas as suas qualidades e capacidades. Por exemplo, como
uma pessoa onde a afetividade estava aliada ao cérebro.
Ao longo dos capítulos anteriores foi possível ver que a narrativa de Dilermando, Ana
e seus descendentes apresentou um Euclides pouco preocupado com a família e, de certa forma,
incapaz de manter uma relação afetiva com os seus, o que fez com que os descendentes de
Euclides e de seus amigos também se ocupassem em refutar essa imagem: Euclides era cérebro
e coração. O enterramento de Euclides foi descrito em detalhes pelo jornal O Paiz de 17 de
agosto de 1909, e a reportagem iniciava-se assim:
Dentro de um carneiro do cemitério de S. João Baptista estão desde ontem, às
6 horas da tarde, sepultados o grande cérebro e o amplo coração que foram
Euclides da Cunha, e com eles coberto da terra passageira o enigma desse
doloroso drama moral que roubou ao país um dos mais profícuos
trabalhadores e um dos mais vigorosos caracteres. (O PAIZ, 17 ago 1909).
O pesquisador Ricardo Oiticica (2021) afirma que “o corpo de Euclides está no meio do
caminho da nossa literatura” e argumenta, diante daqueles que insistem em arrazoar que as
circunstâncias de sua morte alteram a leitura de sua obra: “dá pra entender o Brasil abstraindo
o suicídio de Getúlio Vargas? ” (OITICICA, 2021, p. 3). Talvez não seja possível, diante de
como a sua morte ressoa, algum dia separar a compreensão que se tem de Euclides dela, mas,
muito além disso, importa dizer que a obra e a memória de Euclides ficam, além da sua própria
família, sob a guarda das instituições (e seus pares) que o abrigaram em vida.
O euclidianista Alberto Venâncio Filho (2010) refuta a afirmação de que a morte de
Euclides teria tornando a sua memória mais forte. Para ele, isso está mais ligado à crítica e à
popularidade de Os Sertões. Contudo, seria apenas a força da importância da obra literária
suficiente para alimentar o culto ao seu autor? Quanto ao seu grande livro, como aponta Celso
Furtado (2001), “Euclides há muito se afigura anacrônico, e seu cientificismo positivista foi
totalmente superado”310; mas, segue o autor, a força do drama de Canudos faz com que Euclides
310
Nessa esteira outras vozes importantes como Franklin de Oliveira (GALVÃO, 2009b, p. 33 e 34) para quem
Euclides se agarrou a uma visão reacionária de ciência que não era única ao tempo que ele viveu e escreveu
(levando-o a posições equivocadas como “seu apego à antropogeografia...seu apego às doutrinas racistas”), além
162
seja lido, relido, discutido publicado. Luiz Costa Lima (2000, p. 36) aventa que o culto da figura
de Euclides acaba impossibilitando uma análise profunda de sua obra, e, no caso de Os Sertões,
a verificação de que muitas das soluções apresentadas por Cunha são até mesmo precárias.
De outro lado, reiteram-se argumentos em favor da grandiosidade da escrita e da obra
de Cunha. Houaiss, por exemplo insurgiu-se quanto a alegações da pouca cientificidade de
Euclides, enfático ao apontar isso como uma enorme injustiça, argumentando que “[...]
frequentemente, está-se querendo, em Euclides da Cunha, um tipo de conhecimento científico
que a humanidade ainda não tinha, ao tempo em que ele escreveu o livro” (GALVÃO, 2009b,
p. 20). É consenso a profícua rede de discussões e críticas que se desenvolve em torno da
produção euclidiana, ainda assim se repetem as ressalvas de que o escritor não foi devidamente
estudado, que há muito a se ver e se fazer. Houaiss insistiu que “Euclides não foi objeto até
hoje dos estudos que merecia. Euclides não foi objeto, inclusive, de uma tradição, quanto ao
texto, à altura de sua dificuldade” (GALVÃO, 2009b, p. 21).
Uma cronologia inicial do euclidianismo foi tratada com mais vagar no segundo capítulo
deste trabalho, especificamente no item 2.3. Mas cumpre destacar que ao longo dos anos, em
uma eterna militância em torno do escritor, cerram fileiras euclidianistas como Alberto
Rangel311, Francisco Escobar, Reynaldo Porchat, Júlio de Mesquita, Coelho Netto, Francisco
Venâncio Filho, Edgar Sussekind de Mendonça, João Luiz Alves, Domício da Gama, Oliveira
Lima (VENÂNCIO FILHO, 2009, p. 33). Aliás, é de Alberto Rangel uma singela definição do
ser euclidiano. Em carta a Francisco Venâncio Filho em 1921, Rangel “se referia aos membros
do Grêmio Euclides da Cunha como os ‘amigos póstumos’ de Euclides” (VENÂNCIO FILHO,
2009, p. 33).
A partir de todos esses homens - que compunham essas instituições - o que se pretende
é a resposta às perguntas: em que medida, as circunstâncias históricas do entresséculo, além da
vida e morte de Euclides contribuíram para sua monumentalização? Nesse sentido, qual o papel
que os intelectuais e as instituições cumpriram no esforço de “memória e adoração” do escritor?
É o que veremos a seguir.
de ter sido Cunha, segundo Oliveira (GALVÃO, 2009b, p. 35), “incapaz de nos deixar uma reflexão mais bem
elaborada sobre a questão da pobreza brasileira”, entre outras críticas.
311
Jornalista, engenheiro e historiador, nasceu no Recife, em 1871. Foi diretor de terras e colonização do governo
do Amazonas, estado onde também atuou como jornalista, ocupando o cargo de redator-chefe do jornal Commércio
do Amazonas. Publicou vários livros, entre eles "Inferno Verde - Cenas e Cenário do Amazonas" (1908),
prefaciado por Euclides da Cunha.
163
Desde a sua fundação em 1838 como a casa da memória nacional, “debaixo da imediata
proteção de S. M. I o Senhor D. Pedro II313”, a história do IHGB tem inúmeros exemplos do
empenho de seus membros na construção314 das imagens uns dos outros (FAGUNDES, 2016)
e enquanto homens da cultura, instrumentos para erigir a identidade315 nacional, construir um
ideal de nação316 a partir de seus lugares de cidadãos exemplo da mais pura moral para as
gerações futuras:
Incumbido de criar o amálgama da sociedade brasileira sob o signo Estado-
Nação, no IHGB foram elaborados os discursos que conferiam legitimidade
às organizações sociais e políticas do país, através dos supostos enraizamentos
históricos que possuíam. (GUIMARÃES, 1988).
312
Discurso de posse no IHGB (CUNHA, 2021).
313
Ata de fundação do IHGB, Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Tomo I, 1839.
314
Por muito tempo, isso significou o uso constante do gênero biográfico, seja por serem narrativas de figuras
ilustres que serviriam de exemplo, mas também por ser essa uma maneira de preservar todos os atos relevantes do
passado – as bases da construção da história do próprio IHGB (AVELAR, 2020).
315
Processos de construção de identidade são inconclusos e, por isso, constantes. Essa composição se faz no campo
do simbólico, com valores, crenças e ideologias inventadas, divulgadas, por vezes impostas, por instituições, em
rituais, festas ou a partir de símbolos, por exemplo (GOMES, 2009).
316
Nacionalismo, nacionalidade e nação são termos de múltiplas discussões e conceituações (e objeto de vários
trabalhos acadêmicos). Aqui, refere-se à ideia de nação defendida por Martin Adamec (2014) em tese que realiza
uma importante revisão bibliográfica acerva da questão do nacionalismo: “a nação é um discurso pelo qual seus
membros articulam passado e futuro para formar um presente narrativo. É uma espécie de cultura social, que os
permeia, forma e pode ser por eles reformada. No fim das contas, é o modo básico de enxergarem a si mesmos e
os outros, de se localizarem no e frente ao mundo” (ADAMEC, 2014, p. 89).
164
317
José Francisco da Rocha Pombo (Morretes, PR, 4/12/1857, Rio de Janeiro - RJ, 26/07/1933) jornalista
abolicionista e republicano fervoroso, foi deputado, transferindo-se para o Rio de Janeiro, onde seguiu também
atuando na imprensa, além de passar a fazer parte dos quadros do Colégio Pedro II, atuando como historiador.
Membro do IHGB, foi eleito para a ABL, mas faleceu antes da sua posse. (Conforme informações constantes da
página do IHGB, disponível em https://ihgb.org.br/perfil/userprofile/JFRPombo.html, acesso em 15 set 2021).
165
318
Quando da morte de Moreira Guimarães, o Marechal Rondon fez-lhe um panegírico, no qual destacou, sobre
seus tempos de formação na Praia Vermelha, os mesmos tempos de Euclides, que “Moreira Guimarães, embora
discípulo de Benjamin Constant, se absorvia nas concepções evolucionistas. Era um fervoroso adepto de Spencer.
Deixando eu a Escola Superior de Guerra em Janeiro de 1890 para me internar logo após nos sertões, nela ficara
o meu distinto condiscípulo concluindo o seu curso de Engenharia Militar, já então sobrecarregado de volumosa
bagagem literária, caraterística da sua vocação filosófica. A República surgiu com programas novos de progresso
moral, intelectual e prático, que empolgaram as gerações brasileiras do fim do século XIX”. (RONDON, 1940, p.
33)
166
319
Na edição de 3 de fevereiro de 1903. Disponível em encurtador.com.br/ftzIX. Acesso em 28 set 2021.
320
Discurso de posse como presidente da ABL na sessão inaugural, 20 de julho de 1897.
321
Em 1994, entrevista com um grupo de intelectuais brasileiros (como Celso Furtado, Darcy Ribeiro, Roberto da
Matta, João Ubaldo Ribeiro, Ferreira Gullar, José Murilo de Carvalho e Luís Costa Lima) elegeu Os Sertões a obra
mais representativa da cultura brasileira (DUARTE, 1998). O pesquisador Alfredo César Melo fez um
levantamento no ano de 2007, e destacou que “inspirada pelo Western Canon de Harold Bloom, a Revista Veja (a
maior revista do Brasil em número de circulação), na sua edição de 23 de novembro de 1994, juntou um grupo de
15 reconhecidos intelectuais com o objetivo de eleger o “cânone brasileiro”. Os Sertões, escrito por Euclides da
Cunha, ficou em primeiro lugar. Com intento semelhante, o jornal O Globo publicou, em 5 de setembro de 1998,
uma pesquisa feita entre 10 intelectuais para saber quais seriam os livros mais importantes da literatura brasileira:
Os Sertões figurou em segundo lugar. Por fim, a Folha de S. Paulo, na sua edição de 11 de abril de 1999, publicou
uma enquete feita entre vários intelectuais sobre os principais livros de não-ficção já escritos no Brasil, e Os Sertões
apareceu em terceiro lugar, atrás apenas de Casa-grande & senzala de Gilberto Freyre e Raízes do Brasil de Sergio
Buarque de Holanda” (MELO, 2007, P. 11)
167
322
Em dezembro de 1906, na cadeira 7, cujo patrono é Castro Alves, sucedendo ao crítico literário Valentim
Magalhães (1859-1903).
323
Sobre a ascensão de Euclides à ABL, o crítico Wilson Martins, observando Os Sertões, entende que “[...] longe
de refletir a paisagem sofredora que tinha diante dos olhos, ele a transfigurou numa visão apocalíptica; e, longe de
se apresentar com um estilo que fosse a tradução dos agrestes e das caatingas, ele aparece como um alto
representante do que a literatura já produzira de mais artificial, de menos espontâneo. Não é sem razão que Os
Sertões o conduziram imediatamente à Academia Brasileira de Letras, nem jamais surpreendeu ninguém que esse
solitário, tímido e agressivo tenha procurado e aceito a Academia como a consagração suprema de sua arte”
(MARTINS, 2009).
324
Conforme mandava a tradição, Cunha discorreu sobre os nomes ligados à sua cadeira. No caso, o patrono,
Castro Alves; e o fundador da cadeira, Antônio Valentim da Costa Magalhães (CUNHA, 2021 a).
325
Embora o discurso de Cunha não tenha sido livre de críticas. Ele se manteve distante da seara pessoal, mas fez
ressalvas quanto ao país e a sua história, “[...] porque assim como não temos uma ciência completa da própria base
física da nossa nacionalidade, não temos ainda uma história [...]. Temos anais, como os chineses. À nossa história,
reduzida aos múltiplos sucessos da existência político-administrativa, falta inteiramente a pintura sugestiva dos
homens e das coisas, ou os travamentos de relações e costumes que são a imprimidura indispensável ao desenho
dos acontecimentos. ” (CUNHA, 2021a).
326
Brito Broca (2005) conta que foi essa situação que fez com que, a partir de então, os discursos de recepção na
ABL passassem a ser censurados.
168
A passagem de Euclides pela ABL foi breve, dada a sua morte repentina, e na ocasião,
sucedeu-lhe na cadeira 7 o médico e escritor Júlio Afrânio Peixoto (1876-1947) que, além de
seu amigo, coincidentemente foi o legista responsável pela sua necropsia. Ao falar, como manda
a tradição327, de seu antecessor, Peixoto não economizou adjetivos. “ [...]depois d’ Os Sertões,
exerceu Euclides da Cunha engenharia e fez arte. Teve a celebridade. Se não se pejaram do
crime que ele denunciou, regozijaram-se ao menos com a pompa esplendorosa do seu estilo. E
glorificaram-no.” (PEIXOTO, 1911). Com efeito, foi habilidoso e, mais uma vez, elogioso, ao
descrever a forma tortuosa como Euclides, por tantas vezes, lidou com os seus dons e as
pessoas:
No seu estilo, como naquele caráter, havia, porém, qualidades impetuosas e
dominadoras que lhe criariam, desde logo, um círculo enorme de submissões
simpáticas e de irrefletidas admirações. Era como nervosidade comunicativa
e entusiástica que despertava em violenta contradição a indolência e frouxidão
de nossa índole. O momento em que surgiu talvez fosse propício a esse
contraste e ao enorme sucesso que o acolheu. [...] Nele assim tudo eram
explosões e arestas. Não tinha matizes nem reflexões. Desconhecia os meios-
tons e as transições insensíveis. Era, por isso, incapaz da ternura e da piedade;
não há uma só de suas páginas em que a gente sinta os olhos se molharem de
suave quentura comovida. Não escreveu de um regato, de um crepúsculo,
canto de pássaro ou capricho de mulher. Jactou-se mesmo, certa vez, de não
haver em todos os seus livros uma só destas criaturas. Talvez venha daí a
admirável coerência de sua obra: certamente, por isso, lhe falta aquele encanto
327
Valeria Costa e Silva (1999) argumenta que esses símbolos e ritos criados para a ABL, fardão, bandeira, dístico,
além das cerimônias (chá, posse, saudade), são um sentido da experiência na academia, um estabelecimento de
continuidade, uma vez que se repetem entre antigos e novos acadêmicos, e ao mesmo tempo falam da academia
para os de fora. Ela traz destaque ao rito de posse e ao rito fúnebre, e alega que eles existem para vincular de modo
contínuo os intelectuais que vão substituindo uns aos outros, assumindo tradições e expectativas das cadeiras que
ocupam.
169
328
A primeira eleita foi Rachel de Queiroz (FANINI, 2010).
329
A primeira grande empreita da ABL nesse sentido foi a reforma ortográfica de 1907 (EL FAR, 2000).
330
Apesar de ter sido moldada à semelhança da Academia Francesa, com 40 membros efetivos e perpétuos, não
aceita só literatos (como é o caso da França).
331
Cumpre lembrar as palavras de Antônio Cândido (2000, p. 86), para quem “elite literária, no Brasil, significou
até bem pouco tempo, não refinamento de gosto, mas apenas capacidade de interessar-se pelas letras”.
332
Como Mello explicita, “havia uma elite cosmopolita que consumia romances franceses, pagava para assistir a
conferências literárias, adotava as últimas modas ditadas pelo gosto europeu e valorizava um tipo de saber
produzido nas universidades e institutos que tornava o meio muito favorável à tradição que a Academia inventava”
(MELLO, 2011, p. 3).
170
mais peso do que o trabalho literário, “um lugar de destaque no interior da elite social e
intelectual do Brasil, a Academia tornou-se uma sólida referência para aqueles que desejavam
ser reconhecidos como eminentes literatos, para além dos desatinos da modernidade” (EL FAR,
2000).
Talvez pareça simples dar a Euclides o título de intelectual, afinal, o seu caminho sempre
foi esse, o da intelectualidade – e ele próprio, nos anos em que atuou como jornalista, como
escritor, mostrou que lhe era caro esse lugar de mundo (talvez o único em que ele se sentisse
realmente confortável e o único em que quisera estar – dada a sua já discutida inabilidade de se
encontrar entre militares e entre engenheiros). Mas, é importante perceber que um século depois
de sua morte, Euclides continuou firmemente neste lugar333: o lugar de grande pensador; apesar
dos novos ciclos, apesar do desgaste de muitas das ideias que ele defendia, que não resistiram
bem ao teste do tempo. As instituições guardiãs da sua obra mantiveram-na ativa, necessária e
viva – afiançaram Euclides como um alicerce da nacionalidade e da identidade.
A intenção de preservar e até mesmo edificar a memória de Euclides vai de encontro a
todos os valores vitais à ABL: a tradição, o ritualismo, a formalidade, o respeito à pluralidade
intelectual e a manutenção de um elitismo entre seus membros (COSTA E SILVA, 1999). Ao
ser ortodoxa na sua defesa do padrão de uma língua culta, ela reforça esse lugar da tradição, até
mesmo do conservadorismo, ideais estes que circundam com perfeição todas as ideias
defendidas pela sociedade que cultuou Euclides especialmente diante da absolvição de
Dilermando.
E a construção em torno de seu nome é preservada e edificada de tal forma que, no
centenário de sua morte, a ABL pode afirmar, em editorial, que o centenário de Os Sertões é
uma “efeméride intelectual” reforçado o uso do termo porque “dizer literária seria pouco”. Para
a ABL, uma casa que defende a pluralidade dos membros da mesma forma que aceita o manto
de defensora da língua portuguesa, Euclides talvez seja o resumo se sua completude, um
professor, um jornalista e escritor que domina e eleva o próprio idioma, a partir de visões
históricas, antropológicas, sociológicas e geográficas (SCANTIMBURGO, 2009, p. 5).
333
A produção de Euclides faz-se, ainda, necessária às discussões sobre o Brasil. Cândido (1943) ponderou sobre
o lugar da obra literária, sobre o “lugar mais firme e mais imediato para se julgar uma obra de arte ou de literatura”
e apontou que o critério desse julgamento deveria ser a necessidade da obra, “a presença de uma série de razões
que fazem com que a obra pareça alguma coisa que não poderia deixar de existir”.
171
334
Nome dado ao Colégio Pedro II, RJ logo depois da Proclamação da República.
335
Pesquisador da Cátedra Unesco de Leitura PUC-Rio.
172
de sua morte, ele segue considerado um grande intelectual336 – provada a força da capacidade
intelectual, a sua principal arma de ataque de bacharel fardado337, um claro oposto ao soldado
que lhe tirou a vida. Mas era vultoso mostrar ao mundo que Euclides se importava de outras
formas, como destacou Alberto Rangel, citado por Venâncio Filho, ao falar de sua
correspondência com Euclides:
São linhas íntimas. Na sua intimidade, porém, nada há que lhe diminua o
espírito fulgurante e a dolorida sentimentalidade que as ditaram. Não podia
ser de outro modo. Homens dessa natureza não têm altos e baixos,
conservando também, no obscuro bastidor das relações comuns, a integridade
de suas nobres qualidades reais. (RANGEL apud VENÂNCIO FILHO, 1938,
p. 11)
Aliás, Francisco Venâncio Filho traduziu bem esse esforço ao abrir o seu Euclydes da
Cunha e seus amigos dizendo que:
Todas as vidas têm, em geral, duas vidas: uma que termina com a morte, outra
que aí começa. Para a maioria dos homens só a primeira conta. Para outros,
muito poucos, só a segunda. Para alguns ela prossegue, contínua, na glória ou
no opróbio. A de Euclydes da Cunha teve este aspecto duplo. Glorioso em
vida, continuou-o depois de morto (VENÂNCIO FILHO, 1938, p. 12).
Foi a partir das primeiras atividades desse Grêmio, encabeçadas, como já se mencionou,
por Edgard Sussekind de Mendonça338, Edgard Roquette Pinto e depois também por Francisco
Venâncio Filho339, que surgiu a terminologia “movimento euclidianista”. (VENÂNCIO
FILHO, 2001), nominando um grupo de intelectuais e de intelectuais em formação reunidos em
torno da memória de um homem arrancado da vida no auge de sua grandiosidade, deixando
para trás a promessa de um gênio ainda maior. Isso se destaca dos esforços de memória por eles
feitos, a despeito de sempre haver uma atenção à violência e humilhação da sua morte e das
falhas da sua vida familiar, mas essas, especialmente logo nos primeiros anos da morte de
Cunha, são deixadas no esquecimento. De fato, mas do que relegadas ao silêncio, elas foram
combatidas, como o fez Rangel, ao reafirmar a existência de sentimentalidade em Euclides:
336
Souza (2010, p. 129) pondera que os euclidianos, na luta pela preservação da memória de Cunha, acabam por
criar uma imagem do escritor que atendia aos interesses deles próprios, “ a do Euclides da Cunha homem da
literatura e ciência, e por isso credenciado a ocupar o posto de maior escritor nacional”.
337
Conforme discussão do primeiro capítulo.
338
Nascido em uma família de intelectuais, seu pai, o escritor Lúcio Mendonça foi um dos pioneiros da ABL,
Edgar Süssekind de Mendonça (1896 - 1958) foi, desde a juventude, defensor da memória de Euclides da Cunha,
fundando com o irmão, Carlos Süssekind, o Grêmio Euclidiano no Colégio Pedro II, em 1911. Além da militância
euclidianista, foi muito atuante no campo da educação, sendo um dos fundadores da Associação Brasileira de
Educação.
339
O educador Francisco Venâncio Filho (1894 – 1946), autor de A Glória de Euclides da Cunha (1940), foi
pioneiro do movimento euclidianista na cidade do Rio de Janeiro. Ele foi, segundo o seu necrológio feito por
Reynaldo Porchat, “ o pedestal da glória de Euclides da Cunha” (VENÂNCIO FILHO, 2001).
173
Alguns nomes tornam-se emblemáticos quando se fala de Rio Pardo – Reinaldo Porchat
e Alberto Venâncio Filho340, por exemplo. Venâncio Filho foi o conferencista da segunda
Semana Euclidiana em 1939. O nome da conferência? “A glorificação de Euclides da Cunha”
(COSTA, 2002, p. 57).
O que os une é o compromisso com a memória de Euclides e a conservação de sua obra.
Cada um a seu modo, e todos eles culminando em Rio Pardo, com um único fim: construir uma
tradição em torno de Euclides – porque a tradição lhe assegura o lugar no cânone, o lugar do
intelectual, protege e divulga a sua obra (especialmente Os Sertões, o grande instrumento de
denúncia das injustiças de Canudos), e recupera a sua honra, porque reafirma sua grandeza em
todas as searas, assegurando que essa narrativa chave para a construção da República tinha
realmente essas características basilares.
O grupo foi incansável no trabalho em torno do nome de Euclides. Eles instalaram, com
recursos próprios, uma placa de mármore no mausoléu do autor e, sobre isso, destaque-se as
palavras (elucidadoras) de Alberto Rangel:
Esse mármore será da transparência das talagarças. Ele deixará ver na fina e
branca contextura de uma porta de pedra, para sempre fixa nos batentes
eternos de um sepulcro, os sacrifícios, os protestos e a dedicação de alguns
jovens ante o infortúnio e a glória de um escritor patriota e viril, traído em
vida, subtraído quando morto ao peito de uma sociedade dispersa e
asenzalada, que vive a palmear fantoches, a idolatrar farsistas e a coroar
bandidos. (RANGEL, 1919b).
340
Na primeira tradução de Os Sertões para o francês, a tradutora Madame Neu dedicou o trabalho a Reinaldo
Porchat, a Afrânio Peixoto e a Venâncio Filho, a quem chamou de “o grande euclidiano” (COSTA, 2002, p. 53).
174
Imagem 30. Escrivaninha usada por Euclides da Cunha para escrever Os Sertões exposta
em São José do Rio Pardo. Foto: JR Diorio para Estadão, 2016.
Imagem 31. Grupo de pessoas em torno da Cabana de Zinco, em homenagem a Euclides da Cunha
no ano de 1912. Sem autor. Disponível em http://www.saojoseonline.com.br/. Acesso em 01 out 2021.
341
Álvaro Ribeiro Neto (na ocasião, presidente da Casa de Cultura Euclides da Cunha de Rio Pardo), informou
que a Casa Euclidiana tem quatro datas importantes, cujas comemorações se repetem anualmente: 20 de janeiro,
nascimento de Euclides da Cunha; 18 de maio, inauguração da ponte; a Semana Euclidiana de 9 a 15 de agosto; e
2 de dezembro, data do lançamento da obra Os Sertões (COSTA, 2002, p. 59).
342
Situada na casa onde o escritor e família moraram enquanto estiveram na cidade.
176
Imagem 32. Cabana de zinco de Euclides da Cunha protegida por uma redoma de vidro.
Ao fundo, a Pontes Euclides da Cunha. Foto: JR Diorio para Estadão, 2016.
Ali, a cabana de zinco que servia de abrigo a Euclides enquanto trabalhava segue
cuidadosamente preservada. Tombada em 1939343, ela é o centro de um local conhecido como
“recanto euclidiano” (COSTA, 2002, p. 56 e 60). As primeiras homenagens a terminava ali,
uma cerimônia fúnebre com uma romaria cívica até a cabana de zinco (um eco da cerimônia de
todo dia 15/09 aos pés do túmulo de Cunha no Rio de Janeiro, iniciada em 1913). Hoje, essa
romaria cívica marca o final da Semana Euclidiana, um feriado local (COSTA, 2002, p. 61). É
o ritual para um homem consagrado como grande exemplo. É assim que se esculpe a terra santa
de Euclides, erigindo símbolos, alimentando memórias, criando e recriando tradições:
Imortalizando a cabana, retinha-se seu fluxo sagrado. A cabana era uma
relíquia da divina força poética que se manifestou no escritor. A redoma de
vidro seria, então, capaz de imortalizar a cabana que imortalizou o escritor que
produziu a obra imortal, pois para que existem redomas senão para proteger
as relíquias ou as imagens dos santos e das divindades? (ABREU, 1998, p.
317).
343
Barraca de Euclides da Cunha, inscrita no livro do tombo sob o nº 26, vol. 1, f. 022, 30/08/1939 e, segundo
informa o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico. Arqueológico, Artístico e Turístico (CONDEPHAAT),
“O mérito do tombamento da cabana se deve unicamente ao valor histórico, por ter sido nela que Euclides da
Cunha redigiu parte do livro Os Sertões enquanto supervisionava a construção da ponte metálica sobre o Rio Pardo.
A pequena cabana, originalmente de sarrafo e teto de zinco, encontra-se atualmente revestida por placas de cimento
amianto e o piso, antes em terra batida, por patamar de concreto. No seu interior foram colocados alguns pertences
de Euclides da Cunha: escrivaninha, vestuário e livros. Está protegida por uma redoma de vidro”. (Disponível em
https://tinyurl.com/4bwp3u88. Acesso em 04 jan 2021).
177
Imagem 34. Propaganda da Cia Paulista de Energia Elétrica no Jornal Gazeta de Rio Pardo de 7 ago 1993. Foto:
Regina Abreu (1994).
Com essa documentação é possível entrever com muita clareza a já colocada informação
da santificação da figura de Cunha (cf. p. 121 e ss). Tanto que Abreu (1998) e Souza (2010)
178
destacam a influência positivista na construção desse culto a Euclides, inclusive no que tange a
todos os rituais que o grêmio e até mesmo Rio Pardo erigem em torno da memória de Cunha.
Logo, como bem assevera Souza (2010, p. 62), santidade para Cunha sim, mas nos termos do
positivismo344 e não em termos cristãos. Era a adoração da figura cívica, do homem que
trabalhara pela República, do orgulho das letras nacionais.
A obra de Cunha era adorada e relembrada porque ela era instrumento de compreensão,
de aprendizado sobre o país. Esse ideal de culto a Euclides345, ironicamente um homem ateu346
e antirreligioso (GALVÃO, 2009ª, p. 2) é reforçado por Carmem Maschietto, que aponta a
instituição de um feriado local como um forte indício (COSTA, 2002, p. 61) e, ao analisar as
Semanas Euclidianas e sua relação com São José do Rio Pardo, encerra sua fala afirmando que
“‘A Semana Euclidiana é uma glória nossa, é um apanágio nosso, é também encargo nosso
(...)’. E será crime nosso- inominável deixar apagar a chama (única talvez), que nos caracteriza,
344
Paulo Carneiro (1995) discorre claramente, “o culto consagrado à memória de Euclides nas comemorações do
15 de agosto, nas visitas coletivas a seu túmulo [...] imprimiu aos sentimentos puramente humanos que o
motivaram um caráter religioso de inspiração comtiana”.
345
Com a morte do autor surgem os euclidianos, envolvidos com homenagens póstumas a Cunha e, no decorrer
dos anos, com a construção da memória póstuma do escritor. A partir de 1917 o movimento euclidiano conta com
um “Plano de Campanha”, que visa “realizar um meticuloso trabalho de levantamento de fontes, fotografias, cartas,
documentos, relíquias e livros que pertenciam ao escritor ou que figura como referência em suas obras” (ABREU,
p. 21, 2009).
346
Sobre o ateísmo de Euclides, Joel Tostes transcreve declaração do próprio, que diz: “[...] então, eu não creio
em Deus? Quem teria propalado esta calúnia? Ah! Meus pobres amigos que me acusam de ateísmo. Mal sabem
que também rezo. Rezo sem palavras, na perpétua adoração das coisas e na minha miserabilíssima e falha ciência
sei positivamente, que há alguma coisa além do que sei e que não posso definir” (TOSTES, 1990, p. 48). Essa
citação me parece importante demais para estar aqui em rodapé. Colocar no texto.
179
distingue e nobilita: o culto” (MASCHIETTO). Uma adoração bem ao gosto comtiano, seja
dito347.
Imagem 36. Banner anunciando os jogos da Semana Euclidiana. Foto sem autor
e sem data. Disponível em https://difusora.fm.br/nas-olimpiadas-futebol-
masculino-boxe-e-canoagem-ganham-ouro-leiam-esta-e-outras-noticias-do-
esporte/. Acesso em 14 out 2021.
347
Sua terra natal também reforça o culto. Em Cantagalo seu busto está na praça central e o seu encéfalo se encontra
preservado como uma relíquia nas dependências da Casa Euclides da Cunha. Sobre o cérebro de Euclides, Pontes
informa (1983, p. 340) que este foi retirado durante a realização de sua autópsia, e posteriormente depositado no
Museu Nacional. Em 1982/1983, quando ficou decidido que os restos mortais do autor seriam trasladados para
São José do Rio Pardo, autorizou-se a remoção do encéfalo para Cantagalo (DOLZAN, 2016).
180
A obra de Euclides segue seu destino que nascera grandioso no início do séc. XX, mas,
cabe destacar que mais do que comemorar Os Sertões, Rio Pardo comemora Euclides. Com a
pontualidade e a solenidade devidas a um homem que há muito é um mito e morreu em uma
cena digna de um habitante do Olimpo.
Visto o esforço destas instituições, observadas as narrativas de pontos diversos e de
tempos diversos, repete-se a indagação do início deste capítulo, qual papel a República e seus
valores, públicos e privados e instituições contribuíram para a construção de Euclides como
intelectual e escritor digno de lembrança recorrente e valorização, de monumentalização em
atos materiais e imateriais, em obras, espaços e cultos memorialísticos? Vê-se que a maneira
como Cunha morre e as narrativas escritas em torno de sua vida contribuem para essa
construção, para o seu lugar na memória nacional – mas não necessariamente para seu lugar no
cânone. As passagens de Euclides pelo serão e pela Amazônia, ainda que vistas pelas lentes
cientificistas do séc. XIX são, ainda hoje, instrumentos importantes para a reflexão do Brasil.
181
CONSIDERAÇÕES FINAIS
348
Discurso em homenagem a Euclides da Cunha proferido um dia após a sua morte, na Câmara Federal, pelo
então deputado Coelho Netto.
349
Os restos mortais de Cunha e de Quidinho foram trasladados para São José do Rio Pardo em 1982, ocasião que
Rodolpho Del Guerra descreveu como “um dos mais belos e importantes acontecimentos deste século, em São
José do Rio Pardo: o clímax dos longos dias do traslado de Euclides da Cunha e Euclides da Cunha Filho. Foi a
apoteose da inumação dos restos mortais de ambos, no mausoléu rio-pardense beira-rio. Comovedora a tarde
ensolarada do 15 de agosto de 1982! [...] O herói estava entre nós” (DEL GUERRA, 2020b, p. 57).
350
A Orestéia (458 a.C) – ode ou canto a Orestes – é dividida, na verdade, em três tragédias: Agamêmnon, Coéforas
(mulheres portadoras de oferendas aos mortos) e Eumênides (as fúrias ou eríneas, deusas da vingança). Nelas,
Ésquilo retoma o mito dos átridas (descendentes de Atreu- rei de Micenas e pai de Agamenon e Menelau). No
primeiro livro morre Agamenon. No segundo livro, Orestes, filho de Agamenon e Clitemnestra, irmão de Electra,
e que vivia exilado, volta para Argos. Seu objetivo é cumprir a determinação do Oráculo de Apolo: vingar a morte
do pai. O terceiro livro é o julgamento de Orestes – ainda que o destino e os deuses exigissem que ele se vingasse,
ele sabia que estaria, então, à mercê das eríneas, sendo ele próprio um assassino. Ele busca proteção junto a Apolo
e Atena, sem querer tomar a decisão de absolver Orestes, institui um tribunal humano – o primeiro Tribunal do
Júri da humanidade. E Orestes é absolvido com o seu voto de minerva, depois que os homens se dividem
igualmente entre o perdão e a condenação (BLANCHOT, 1971).
351
Ésquilo é considerado o criador da tragédia grega, devido ao expediente de incluir um segundo ator no interlúdio
falado entre os tradicionais cantos das representações dionisíacas, o que transformou a narração lírica em cênica.
352
Ele se descrevia como “um grego perdido em Bizâncio” (CARVALHO, 2017, p. 125).
183
Dilermando com o coro que canta aos pés do túmulo de Agamenon na abertura do segundo
livro da Orestéia, “a maior infelicidade de um culpado é a demora pelo castigo [...] a balança/da
justiça serena está atenta” (ÉSQUILO, 2010, II, 75-76, 93). Ao culpado está reservada “[...] a
ruína total e completa” (II, 89, 93) e não há como escapar aos “[...] duros golpes do destino
cego” (ÉSQUILO, 2010, II, 106, 94). Ao não ser castigado, Dilermando viu-se diante de um
maior castigo, uma vida toda de pessoas defendendo a sua ruína.
Se os pés de Cunha para sempre estarão plantados nos sertões, é certo que sobre ele
sempre irá pairar a névoa da tragédia. É a esse adjetivo que todos se voltam, o termo parece ter
o poder de ilustrar o confuso, explicar o inexplicável. Construir (alg)uma visão de Euclides é
ouvir muitas vozes diversas que se unem em uma certeza: ele foi um homem de honra e escritor
talentoso que foi engolido pela tragédia e enterrado com toda pompa, “a mais tocante e
significativa consagração da vida brilhante e da morte dolorosa, que integraram na mesma
dignidade a figura saudosa desse profícuo trabalhador, reto, inteligente e bom. ” (O PAIZ, 17
ago 1909).
Foi a partir dessa “Tragédia da Piedade” que aqui se buscou compreender como as suas
disputas narrativas e de memória contribuíram para erigir a imagem de Euclides como ideal de
homem e de intelectual, um mito – e como essas construções míticas advieram das conjunturas
históricas e da recepção de sua vida, morte e obra articuladas desde a atuação de instituições
culturais, inclusive das quais ele fazia parte, como um instrumento e construção e reafirmação
da identidade do Brasil enquanto República, enquanto civilização.
Euclides era um amante do Brasil, ele tinha profundo amor por sua terra, um eco da
República ideal que ele não viu acontecer, “aprendeu com outros republicanos idealistas que
uma coisa eram os valores, o ideal do republicanismo como governo virtuoso e dedicação à
pátria, outra eram as condições sociais do país que inviabilizavam a realização de tais valores”
(CARVALHO, 2017, p. 139). E é a ida a Canudos o marco dessa nova visão, dessa
compreensão de que a República até podia existir como valor, como princípio, mas que os
representantes que ali estavam não fariam muito por ela (CARVALHO, 2017, p. 137). E a
impressão é tão perene que a revisão da República é central353 na obra de Euclides da Cunha,
353
Ventura resume bem a posição de Euclides, “Sua revisão da República resultou de uma longa e sofrida
reelaboração, em que deixava transparecer certa dose de culpa ou remorso pelo silêncio cúmplice a que precisou
se submeter. Tanto em Os sertões, como nos ensaios ‘A esfinge’ e ‘O marechal de ferro’, em que criticou o
autoritarismo político de Floriano, irrompe uma escrita represada e remoída, que só pôde ser traçada sob a luz fria
da reflexão, depois de extintos os fatos e muitos de seus personagens. Defrontou-se, no calor da hora, com a
impossibilidade de erguer a voz ou de brandir a pena contra os desmandos de um regime político, em que
desapareciam os contornos entre heróis e bandidos, entre civilização e barbárie” (VENTURA, 1996, p. 285).
184
ela se radicaliza em Os Sertões, quando o autor acusou o governo pelo genocídio dos habitantes
do arraial de Canudos (VENTURA, 1996).
Leopoldo Bernucci afirma que, hoje, se não tivesse Euclides, o Brasil ficaria numa
“situação lamentavelmente deficitária” (ERTHAL, 2020). Euclides é basilar na construção da
identidade do Brasil, um de seus autores intérpretes, mesmo com as críticas, mesmo com as
mudanças de visão sobre os homens, a política, a ciência ao longo dos anos. Um atestado ao
trabalho do cânone e das agremiações que mantêm sua memória e o seu ideal de grandiosidade
(mas isso não se dá sem a qualidade da própria obra, cabe aqui marcar, ela resiste não só porque
foi uma novidade ou porque tinha o apoio das instituições, Euclides inovou ao trazer para a
literatura, para a compreensão do que via, o debate teórico, a ciência), além da utilidade da sua
obra, que serve ao eterno construir da República, à reafirmação das bases plantadas no final do
dezenove e do início do séc. XX, corroborando a escolha desse regime, e o melhor caminho
seguido pelo país desde então.
Veja-se o que já dizia Francisco Venâncio Filho na década de 1940: um “pensador
insigne”, merecendo ocupar um lugar “ao lado dos nomes de Virchow, Broca, Gabriel Soares,
Simão de Vasconcelos, Fernão Cardim, Ferreira Pena, Castelnau, Gonçalves Dias, Humboldt e
Champollion” (VENÂNCIO FILHO, 1940, p. 11). É interessante observar aqui a variedade de
nomes com que Venâncio compara Euclides, nomes maiúsculos da ciência, do ensino, das letras
e seus cânones, intérpretes reconhecidos de seus próprios tempos. Virchow354, um cientista e
pesquisador em várias frentes355; Brito Broca356 um cronista e narrador do Brasil;
Champollion357, um decifrador de mundos desconhecidos, como também o foram Gabriel
354
Rudolf Virchow (1821-1902) foi médico, antropólogo, patologista, biólogo, escritor e político alemão
(Conforme informações da Enciclopédia Britânica. Disponível em https://www.britannica.com/biography/Rudolf-
Virchow. Acesso em 13 fev 2022). Como Euclides, um homem do entresséculo circulando entre a ciência e as
letras.
355
Venâncio Filho abre a ilustre galeria justamente com um literato cientista, uma característica sempre destacada
de Euclides. Veja-se a observação de Luiz Costa Lima sobre a recepção de Os sertões cujo fundamento, para ele,
iniciado quando da sua publicação inicial em 1902, parte da concepção de que a obra é uma obra não só literária,
mas também científica (LIMA, 1997, p. 16). Esse papel é reforçado, aliás, pelo próprio Euclides. No seu discurso
de posse na ABL, ele discorre, por exemplo, sobre ter desviado “[...] dessa literatura imaginosa, de ficções, onde
desde cedo se exercita e se revigora o nosso subjetivismo [...]” (CUNHA, 2021a), reforçando sua posição de
literato da ciência – um construtor de pontes escritor.
356
José Brito Broca (1903/1961), crítico, jornalista e ensaísta literário (Conforme informações da Biblioteca Brito
Broca de Pirituba. Disponível emencurtador.com.br/irCIN. Acesso em 13 fev 2022). Broca e Cunha, observadores
do povo e da formação do país, colegas jornalistas.
357
Como Euclides decifrou o sertão brasileiro, o egiptólogo e linguista francês Jean-François Champollion (1790-
1832) famosamente foi o primeiro a fazer uso da pedra de roseta para decifrar os hieróglifos egípcios. (Conforme
informações da Enciclopédia Britânica. Disponível emencurtador.com.br/amsB3. Acesso em 13 fev 2022).
185
358
Gabriel Soares de Sousa foi um dono de engenho, sertanista e navegador português, especialmente conhecido
por ter escrito Tratado descritivo do Brasil em 1587 (MALHEIROS DIAS, 1922). Soares e Cunha enfrentam um
mundo novo e o hostil e vertem em letras as descobertas.
359
François-Louis LaPorte, conde de Castelnau (1810-1880) foi um naturalista francês que cruzou a América do
Sul (inclusive o Brasil), de 1843 a 1847, com dois botânicos e um taxidermista (Conforme informações
deencurtador.com.br/egC78. Acesso em 12 fev 2022). Como Euclides, um homem da ciência que lançava seu
olhar sobre um mundo novo, desconhecido. Ele decifra o Brasil a partir de sua ciência assim como Euclides o fez
em Canudos, ou na Amazônia.
360
Herculano Ferreira Pena (1811 -1867). Professor, jornalista e político. Militou nas mesmas searas que Euclides,
embora este não tenha mergulhado diretamente na política, atuou sempre com políticos e muitas vezes em nome
da política republicana.
361
Antônio Gonçalves Dias (1823-1864), poeta, professor, crítico de história, etnólogo. Além de ser um exaltador
do país, como foi Euclides, Dias é patrono da cadeira 15 da ABL, por escolha de Olavo Bilac. (Conforme
informações do site da ABL. Disponível em encurtador.com.br/dmqtK. Acesso em 12 fev 2022).
362
Alexander von Humboldt (1769-1859), geógrafo, filósofo, historiador, explorador e naturalista alemão, que,
com importantes expedições naturalísticas, fundou a geografia física moderna. Não diferente da atitude de Euclides
ao se dedicar a expedições de reconhecimento e medição do território nacional Amazônia afora, por exemplo.
(Conforme informações da Enciclopédia Britânica. Disponível em encurtador.com.br/ijxIS. Acesso em 13 fev
2022).
363
Simão de Vasconcelos, como Euclides, se dispõe a ouvir e entender o habitante do lugar desconhecido: o
sertanejo, o ribeirinho. E o fez tendo como base a Antiguidade Clássica (SOARES, 2007), como Euclides também
gostava de fazer.
364
Euclides, como Cardim, ao produzir sua obra, contribui para os argumentos da construção da identidade
nacional. O Padre Fernão Cardim (1549-1625), com o seu Tratados da terra e gente do Brasil, traz não só uma
importante descrição da paisagem e dos animais americanos, mas também das atividades econômicas das
capitanias compreendidas entre Pernambuco e São Vicente, além dos costumes dos povos indígenas e à ação das
missões jesuíticas na colônia (Conforme informações da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin. Disponível
em encurtador.com.br/syFXY. Acesso em 11 fev 2022).
186
365
Ainda que pudesse dizer ao próprio pai acerca do comportamento de Ana, “eu não caí – graças a Deus – no
repugnante ridículo de uns ciúmes de todo em todo injustificáveis; e nem estaria aqui, a escrever-lhe esta se
duvidasse um só momento da honestidade da que me completa a vida” (GALVÃO e GALOTTI, 1997, p. 297).
366
Embora Orestes Barbosa, um dos raros defensores de Dilermando, aponte o contrário. Ao comentar a promoção
de Assis a General, sobre Euclides ele ponderou, “nunca se viu cadáver tão rendoso como o do malogrado autor
do ‘Sertões’. E num desses paradoxos que a vida oferece, pode-se ver que 50% da glória do publicista (mais suicida
que assassinado) decorrem desse drama que celebrizou o intelectual. Porque outros escritores, de igual altura (e
cuja morte não possibilitou ‘cavação’), aí estão esquecidos do país” (Jornal O Radical, 28 abr 1950).
367
Euclides foi a Canudos pronto para defender o nascente regime, não só voltou de lá com uma visão diferente
como acabou por viver uma vida que mostrava paralelos com a vida de Antônio Conselheiro, também personagem
da sua grande obra. Ventura denota que os caminhos de Cunha e Conselheiro apresentam muitos paralelos, e o
vetor deles é a República, “ambos tiveram o destino marcado pelo adultério das esposas, pela vendeta entre sias
respectivas famílias e as de seus inimigos e pelas posições que tomaram perante a República. ” (VENTURA, 2003,
p. 258).
187
adoração que busca, mais do que apenas garantir a boa memória do escritor, garantir a narrativa
da identidade nacional, garantir o fortalecimento do regime republicano.
Estava nos planos ir até Rio Pardo acompanhar a Semana Euclidiana e ir ao Rio de
Janeiro fazer um levantamento presencial nos arquivos do Museu da Justiça carioca, da ABL
do IHGB e do Instituto Moreira Salles, além de estender a viagem até a cidade de Cantagalo,
mas com a pandemia da Covid 19 isso não foi possível. Por sorte, justamente por ser Euclides
tão pesquisado, a pujança de documentos online (e o aumento do oferecimento destes
justamente em razão das limitações sanitárias) não deixou que esse trabalho sofresse grandes
reveses pelas limitações físicas. Mas, especialmente, foi lamentada a perda da oportunidade de
acompanhar de perto a mítica, a tradição e a construção de novas narrativas, cultivadas ano após
ano. A semana Euclidiana traz em seus anais a participação de todos os grandes pesquisadores
de Euclides da Cunha e diversos intelectuais368. O movimento euclidiano é coreografado para
lembrar o melhor de Euclides, e justificar a manutenção de seu nome no cânone, a
obrigatoriedade de sua leitura como construtor da identidade nacional, a lembrança de sua morte
a partir das lentes da sua grandeza como homem de família – e não as suas falhas.
Não cabe ao historiador fazer um juízo de valor acerca das questões pessoais ligadas
àqueles que pesquisa, ponderar sobre estas falhas do humano per si. O pesquisador trabalha
com uma documentação, que muitas vezes envolve juízo de valor pessoal de terceiros (como
as memórias de família ou até mesmo os depoimentos judiciais), contudo, as construções e
conclusões do trabalho advêm da documentação e da pesquisa, do cruzamento de informações.
No entanto, pessoalmente, ao longo de cartas, arrazoados e até atas, foi difícil não enxergar as
pessoas e as dificuldades que eu imaginei terem elas passado, justamente em razão do
conhecimento carreado a partir da leitura de documentos e da historiografia que traduz a época.
Mas dessas questões pessoais das quais não se furta conhecer, cabe voltar ao fato de
que, e isso já foi dito ao longo do trabalho, não era (só) sobre a amizade e o respeito, era também
sobre um nome que fazia parte de instituições às quais interessava a leitura de sua obra e o
respeito pela sua carreira, que se desenvolvera também na construção da doutrina republicana.
A narrativa de Euclides servia aos valores daquela ainda nova República, os homens que
preservam o trabalho dele também serviam a esses mesmos valores, eram filhos dele.
368
Proferiram conferências oficiais, entre outros, Afonso Arinos de Mello Franco (1940), Menotti del Picchia
(1944), Cassiano Ricardo (1947), Plínio Salgado (1953), Alceu Amoroso Lima (1957), Francisco Foot Hardmann
(1989) e Roberto Ventura (1995). Outros intelectuais estiveram na cidade acompanhando a Semana, como foi o
caso de Rubem Braga, convidado a Rio Pardo em 1940. Foi e não gostou do que viu, publicou crônica dizendo
que ali se achava "gente da roça, pobres mulheres com seus filhinhos no colo, pobres crianças de menos de um
ano, que ali estavam a comer poeira e a ouvir discursos, nas festas populares". E, ao conclamar Euclides, encerrou,
"se esse caboclo pudesse vir espiar a festinha que lhe arranjaram ... " (apud MASCHIETTO, 1999, p. 1)
188
Hannah Arendt (1989) entende que o passado que não pode ser narrado vai se tornar
uma dor insuportável, mas não existe uma única narrativa sobre um fato, como Dilermando
muito bem atestou ao longo da vida. Como Euclides entendeu ao pisar em Canudos. E o próprio
esforço da narrativa, da recuperação da memória, pode, por si, trazer novas dores sobre um
tempo que, de fato, não se pode repetir, uma verdade que não é possível de se (re)construir em
todas as suas nuances. O encontro de Euclides, Ana e Dilermando arrastou com eles muito mais
que a honra de um homem e os destinos de sua família. Ele marcou a segunda família de Ana,
a segunda família de Dilermando, ele mobilizou esforços para legar ao público uma narrativa
que desse a Euclides o seu lugar de direito, sem máculas. Ao fim, as atuações das instituições,
da família, mantêm vivas narrativas que trazem Euclides a partir de vários ângulos para o leitor
contemporâneo. Mas a força da sua obra vai além do cânone, porque é espaço de discussão370,
espaço de novas perspectivas e espaço de crítica. Uma crítica que, na contemporaneidade, segue
sendo parte da compreensão da identidade nacional, ferramenta de construção de memória e
objeto de narrativa, atual como nunca.
369
Walnice Nogueira, em entrevista a Alberto Dines (2009), fala sobre a morte de Cunha: “ele tinha 43 anos, quer
dizer, era um garoto, para ter uma morte daquelas. O que será que ele não ia fazer, de bom, de importante, com
aquela cabeça e aquela disposição para trabalhar? Ele tinha acabado de começar uma nova carreira, passou no
concurso de lógica pro Colégio Pedro II ... ” Dines, entrevistando Roberto Pompeu de Toledo (2009), perguntou-
lhe se Euclides era o escritor de um livro só, ou foi a tragédia que fez com que ele ficasse um escritor de um livro
só, Toledo pondera é que não há como apontar exatamente o que Euclides produziria depois, mas que Os Sertões
se sobressai, se esse livro não existisse ele não teria a proeminência que tem na literatura brasileira, e que o livro
realmente é um grande momento da literatura.
370
No sentido do que aponta Antônio Cândido (1943), que “uma obra autêntica, no sentido próprio, é sempre uma
resposta: uma resposta dada por um indivíduo, de mais sensibilidade ou mais penetração do que a média, aos 0
189
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Periódicos
Revista Veja. Edição 1.367, n º 47, 23 nov. 1994.Rio de Janeiro: Editora Abril.
215
ANEXO I
Famílias Cunha e Assis
Dirce
371
Morreu aos quatro meses.
372
Morreu em uma emboscada, no Acre, no ano de 1916.
373
Morreu ao tentar vingar a morte do pai, atirando no padrasto, que se defendeu e o matou, também em 1916.
374
Morreu aos 7 dias de vida.
375
Morreu antes de completar um ano de idade.