Texto 14 - Simeia de N. LOPES

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A praça comercial de Belém: negociantes e

circuitos mercantis (1790 a 1808)

Siméia de Nazaré Lopes


Universidade Federal do Amapá

Os estudos recentes sobre a temática relativa à América colonial


visam analisar as especificidades presentes na articulação entre as
diferentes economias coloniais, relativizando as discussões crista-
lizadas nas ações da Metrópole e do sistema colonial. Os estudos
voltados para as relações de poder e de governação para o contexto
hispano-americano têm contribuído para a renovação dessas aborda-
gens em diferentes áreas da América ibérica. Repensar as relações
de tensão e de conflito e atentar para a importância que os “governos
locais haviam contribuído para a formação [do] complexo imperial
389
nas Américas” têm sido perspectivas valorizadas nas novas aborda-
gens historiográficas sobre as sociedades coloniais. Para tanto, essas
análises propõem a importância de articular as práticas comerciais
nas colônias da América portuguesa, com as outras possessões euro-
peias e com as capitanias do Império português.1
Em análise sobre a praça mercantil do Rio de Janeiro entre fins
do século XVIII e início do XIX, João Fragoso investigou as cone-
xões de negociantes e as rotas comerciais existentes entre o Rio de
Janeiro e os circuitos mercantis internos, assim como entre as outras
margens do Império português, como o Oriente e a África, que se-
riam possibilitadas por práticas do Antigo Regime, como o sistema
de mercês, “as redes de reciprocidades e a formação de clientelas

1
GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. Diálogos historiográficos e cultura política na for-
mação da América Ibérica. In: SOIHET, Raquel, BICALHO, Maria Fernanda e GOU-
VÊA, Maria de Fátima (Orgs.). Culturas políticas: ensaios de história cultural, história
política e ensino de história. Rio de Janeiro: Mauad, 2005, p. 319-338.
Siméia de Nazaré Lopes

que cruzaram e uniram as diferentes searas do mar lusitano”.2 Para


o autor, a praça do Rio de Janeiro articulava as rotas transoceânicas
aos “mercados consumidores do interior” da América portuguesa.
Essas relações comerciais, sustentadas a partir do mercado interno,
assumem uma maior complexidade, não se constituindo apenas em
uma colônia com práticas determinadas pelas demandas no mercado
externo. Fragoso elabora uma perspectiva de análise sobre a exis-
tência das conexões imperiais entre as redes comerciais e os seus
negociantes para além da América portuguesa, atentando para as ro-
tas comerciais que se estabelecem entre esses circuitos, assim como
para outros mercados do interior do Império português.
As indicações apresentadas pelos autores favorecem a elaboração
de um estudo sobre essas conexões para a capitania do Pará, aten-
tando para as relações mercantis entre a praça comercial de Belém
e as vilas do interior. Pode-se considerar também as redes de co-
390
mercialização que os negociantes de Belém constituíram com outras
áreas como Maranhão, Mato Grosso e Goiás. Além disso, é possível
visualizar as práticas comerciais dos circuitos estabelecidos entre o
porto do Pará e os outros portos do Atlântico.
Entre o final do século XVIII e princípio do XIX, a praça mer-
cantil de Belém articulava diferentes circuitos comerciais. Os nego-
ciantes da capitania do Pará entretinham relações comerciais com as
vilas próximas à cidade de Belém. As relações comerciais com ou-
tros comerciantes para o interior do Estado do Grão-Pará abrangiam
também a capitania do Rio Negro, que se configurava em uma das
áreas abastecedoras dos gêneros que eram comercializados e remeti-

2
FRAGOSO, João. A noção de economia colonial tardia no Rio de Janeiro e as cone-
xões econômicas do Império português: 1790-1820. In: FRAGOSO, João; BICALHO,
Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima (Orgs.). O Antigo Regime nos trópicos:
a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Bra-
sileira, 2001, p. 319-338.
A praça comercial de Belém: negociantes e circuitos mercantis (1790 a 1808)

dos para a Europa. O porto da cidade de Belém também funcionava


como um entreposto comercial interligando as capitanias do oeste
do Estado do Brasil aos portos da Europa, como Lisboa e Londres.
Essas relações comerciais dos negociantes de Belém não se con-
centravam apenas nas vilas do interior e na capitania do Rio Negro.
Para além desses eixos de negociação, esses negociantes consegui-
ram estabelecer relações comerciais para as capitanias vizinhas,
como Maranhão, Mato Grosso e Goiás. As práticas comerciais de-
senvolvidas no Pará também se articulavam com outras áreas da
América portuguesa, onde essas capitanias configuraram-se em ve-
tores de dinamização para as trocas comerciais e ocupação da re-
gião. Entretanto, essas demandas para efetivar as trocas comerciais
entre Pará e Maranhão também foram ponto de discussão entre os
governadores das capitanias acima citadas sobre as providências que
seriam adotadas para realizar essa ligação. Para este artigo, será pri-
vilegiada a relação comercial estabelecida entre os negociantes de 391
Belém e de São Luís com os negociantes de Lisboa, entre 1790 e
1808. Bem como, as estratégias que os negociantes dessas praças
passaram a utilizar para contornar esse contexto de crise na Europa
e na rota do Atlântico.
Essas abordagens são possíveis com base na documentação no-
tarial até agora pesquisada. Neste artigo serão utilizadas as Procura-
ções contidas no Livro de Notas do Tabelião Perdigão,3 assim como
os documentos avulsos do Arquivo Histórico Ultramarino (Proje-
to Resgate) para as capitanias do Pará e Maranhão. Os códices dos

3
O Livro de Notas do Tabelião Perdigão (LNTP) é composto de Procuração Bastante e
Geral, de Escrituras de Venda, de Escrituras de Sociedade, de Escrituras de Obrigação
de Dívida e de Escrituras de Doação. Serão utilizados os livros que compreendem os
anos de 1803 a 1834, privilegiando para a discussão proposta apenas as procurações
e as escrituras de Sociedade. Os Livros de Notas do Tabelião Perdigão estão contidos
na documentação do Arquivo Público do Estado do Pará (APEP). Ressalta-se que para
alguns anos a documentação está completamente ilegível ou danificada.
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comboios e de passaportes da Província do Pará serão utilizados por


conterem as descrições das pessoas que transitavam pelas províncias
citadas, os quais complementam as informações apresentadas nos
Livros de Notas selecionados para a presente análise.
Em 1751, o Estado do Maranhão e Grão-Pará sofreu uma mu-
dança político-administrativa e passou a se denominar Estado
do Grão-Pará e Maranhão. Isso representou a transferência da sede
administrativa da cidade de São Luís para a cidade de Belém. Em
1757, ainda em observância à grande extensão do Estado, em sua
parte ocidental, foi criada a Capitania de São José do Rio Negro,
subordinada ao governador e capitão-general do Pará.4 Finalizan-
do as alterações nesse espaço, em 1772, as capitanias do Pará e do
Rio Negro separaram-se definitivamente do Maranhão, que passou
a integrar junto com o Piauí outro Estado, mas todos subordinados
diretamente a Lisboa.
392
Essas transformações político-administrativas representaram
não só uma mudança na paisagem da região, mas também uma
mudança econômica, tendo em vista que as frotas que se dirigiam
para os portos de São Luís passaram a privilegiar os portos da
nova sede administrativa, Belém. Os negociantes de São Luís co-
meçaram a se mobilizar para que fosse autorizado que as embar-
cações estacionadas em seus portos pudessem sair diretamente
para Lisboa e mais de uma vez por ano, sem depender das embar-
cações vindas de Belém. A espera pelas embarcações vindas de
Belém prejudicava as transações comerciais de São Luís, levando
a capitania a reclamar sobre o quadro de penúria pelo qual passa-
va. Esse quadro foi usado como justificativa para a instalação da

4
REIS, Arthur Cezar Ferreira. A política de Portugal no Vale Amazônico. Belém:
SECULT, 1993; BAENA, Antonio Ladislau Monteiro. Compêndio das Eras da Pro-
víncia do Pará. Belém: UFPA, 1969, p. 190.
A praça comercial de Belém: negociantes e circuitos mercantis (1790 a 1808)

Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão.5


Manuel Nunes Dias escreve que “a companhia internacionalizou
a economia do alto-norte do Brasil”. Isso porque o quadro das ex-
portações das duas capitanias apresentou um aumento considerável
de gêneros negociados, do porto de Belém chegou a registrar a saída
de 138 navios para o porto de Lisboa, enquanto o de São Luís contou
com um número maior de saídas, um total de cento e oitenta. Entre
os produtos exportados das duas cidades contavam: “algodão, arroz,
atanados, gengibre, couros, cravos”, sendo que o algodão e o arroz
se firmaram entre os principais produtos comercializados pela Com-
panhia.6 Esse movimento dos portos de São Luís e Belém durante
a existência da Companhia foi mencionado pelos viajantes Spix e
Martius, que apontam a vantagem do porto do Maranhão sobre o do
Pará. Segundo eles, as embarcações iam primeiro para São Luís e
“só depois de estarem as mercadorias alguns meses expostas ali, se-
guiam para o Pará”, o que trazia grandes desvantagens ao comércio 393
de Belém.7
Uma indicação da relação comercial entre as duas praças
mercantis e Portugal pode ser percebida através das procurações
que os negociantes de Belém passavam para serem representados
na cidade de São Luís. Das 1.084 Procurações presentes no Livro
de Notas do Perdigão, 52 (4,7%) procurações tinham como destino
a cidade de São Luís do Maranhão, sendo que dessas 52, 17 (32,6%)
têm como outorgantes homens de negócio, negociantes, caixeiros,

5
SANTOS, Fabiano Vilaça dos. Um país de todo acabado- representações de negocian-
tes do Maranhão contra os prejuízos ao comércio pelo sistema de frotas (século XVIII).
Anais do XIII Encontro de História Anpuh-Rio. Disponível em: <http://www.en-
contro2008.rj.anpuh.org/resources/content/anais/1212960181_ARQUIVO_SANTOS,-
FabianoVilacados.Umpaisdetodoacabado.pdf>.
6
DIAS, Manuel Nunes. A companhia geral do Grão Pará e Maranhão (1755-1778).
São Paulo: Secção Gráfica da USP, 1971, p. 260.
7
SPIX, Johann Baptist von; MARTIUS. Viagem pelo Brasil: 1817-1820. São Paulo:
Itatiaia/Edusp, 1981, p. 49.
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donos de lojas, boticários e administradores da antiga Companhia de


Comércio.8
Com base na documentação pode-se inferir uma diferenciação
nas atividades comerciais realizadas entre as duas praças. As procu-
rações indicam a existência de um comércio interno entre Belém e
São Luís, mas também permitem afirmar que havia uma articulação
entre Belém, São Luís e Lisboa. À primeira vista, as procurações que
se destinavam à praça de São Luís podem ser entendidas como um
“contrato” entre os negociantes atuantes no circuito mercantil dessas
duas cidades, como algumas das procurações que os negociantes de
Belém passaram para aquela praça. Em 1798, o homem de negó-
cio da praça de Belém, o capitão Custódio José Dias, passou uma
procuração para o negociante José da Costa Oliveira representá-lo
na praça de São Luís.9 Em 1794, Antonio Vieira da Costa, morador
de São Luís, passou procuração para que o capitão Francisco Pedro
394 Ardasse e José Antonio da Silva o representassem na cidade de Be-
lém.10 Essas procurações são representativas do estreitamento das
relações comerciais entre os negociantes das duas capitanias, mas
também pode-se afirmar que elas se articulavam entre si e também
com o reino de Portugal.
Entre as cinquenta e duas procurações, uma delas se articula às
três praças. Em 1793, Inácio Peres Pereira Pinto passou procuração
para ser representado na cidade de Belém por sua mulher, Dona Ma-
ria Josefa de Sousa; por seu filho, Antonio Nicolau de Sousa Pereira
Pinto e para outras duas pessoas, Anastácio Domingos Pontes e Ben-
to de Oliveira da Ponte. Na cidade de São Luís, ele seria represen-

8
Procuração Bastante e Geral, APEP, LNTP, (1793-1834).
9
Procuração Bastante e Geral, APEP, LNTP, n. 1176, d. 368, (1793-1799). O nego-
ciante José da Costa Oliveira tinha sociedade com o seu cunhado Antonio José Lopes
de Castro, negociante matriculado na praça de Lisboa. AHU ACL CU 009, Cx. 134, d.
9878, Lisboa, 18/04/1804.
10
Procuração Bastante e Geral, APEP, LNTP, n. 1181, d. 906, (1793-1799).
A praça comercial de Belém: negociantes e circuitos mercantis (1790 a 1808)

tado por outras três pessoas: José Gramul, Dantas Henrique Guilers
e Manuel de Faria. Por fim, na cidade de Lisboa, passou procuração
para Pedro Nolasco Gaspar e José João Dias da Silva. Na procuração
não há informações sobre a ocupação do outorgante, entretanto, um
dos procuradores que ele nomeou para a cidade de Lisboa, Pedro
Nolasco Gaspar, era negociante e entretinha atividades comerciais
com as praças de Belém e de São Luís.11 Em requerimento de 1806,
os negociantes Pedro Nolasco Gaspar e Irmão solicitaram “autori-
zação de embarque de 800 traçados para o sortimento das suas car-
regações, com destino aos portos do Pará, Maranhão e outros do
Brasil”.12
Entretanto, com base em outra documentação pode-se definir
melhor as relações existentes entre as praças comerciais das duas
cidades na América portuguesa e a cidade de Lisboa. Em 1807, se
verifica na Europa as incertezas diante das ameaças impostas ao Im-
pério português pela França. Em um contexto específico, as relações 395
comerciais envolvendo essas praças passam a requerer novas rede-
finições, o que põe à prova as práticas de comércio já consolidadas
entre as duas capitanias. Essa conjuntura europeia passa a se refletir
nos deslocamentos marítimos entre o Reino e a América, a partir do
momento em que as embarcações aportadas em Belém e em Portu-
gal começam a requerer novos encaminhamentos para a realização
desse comércio dentro de um contexto de crise.
Um exemplo disso se percebe no Auto de Devassa aberto em fun-
ção de uma representação que os negociantes de Belém enviaram
para o Desembargador Geral Joaquim Clemente da Silva Pombo. No
dia 30 de dezembro de 1807, os negociantes da praça de Belém en-
viaram um requerimento onde apresentavam um abaixo-assinado ao
Desembargador Geral para impedir a saída de uma embarcação do

11
Procuração Bastante e Geral, APEP, LNTP, n. 1181, d. 711, (1793-1799).
12
AHU ACL CU 013, Cx. 136, d. 10376. Ant. 1806, março, 24.
Siméia de Nazaré Lopes

porto de Belém com destino ao porto de Lisboa, “onde é a sua direita


descarga”. Os referidos negociantes13 eram os principais carregado-
res da embarcação, o navio “Modesta”, da qual era consignatário o
negociante João de Araújo Rozo. Os negociantes declaravam que
receberam correspondências de seus sócios e amigos estabelecidos
na cidade de São Luís do Maranhão, nas quais continham “notícias
vindas daquela Metrópole” sobre o atual “estado de risco, perturba-
ção e perplexidade que envolve todo aquele continente ameaçado de
próxima invasão do Inimigo mais poderoso e ambicioso de todo o
Mundo”. Os negociantes de São Luís receberam orientações de seus
sócios em Portugal para que não permitissem que os seus “haveres
e cabedais carregados no referido navio sejam expostos ao prejuízo
iminente quase infalível da preza [...] ficando-se com a sua perda os
direitos Reais e a substancia Nacional já assaz delicada pelos acon-
396 tecimentos precursores”.14
O “estado de risco” ao qual se referem está relacionado ao ulti-
matum francês para que o governo de Lisboa fechasse os portos por-
tugueses às embarcações inglesas, “impondo também a prisão dos
súditos ingleses, com o confisco dos bens e propriedades”. A deter-
minação foi imposta em julho de 1806, mas até novembro daquele
ano os conselheiros de Estado se preparavam para decidir sobre as

13
Na representação havia quinze assinaturas, mas ao certo eram dezesseis negociantes,
a saber: Jerônimo José do Vale Guimarães, Pedro Rodrigues Henriques, Vilela Campos,
Antonio Pereira, Antonio Rodrigues dos Santos, Joaquim José Lopes Godinho & João
Antonio Lopes (sociedade Godinho & Lopes), Manoel José Cardoso, Antonio José Go-
mes Pinto, Rafael Antonio Rodrigues da Costa, Manoel Fernandes de Vasconcelos, An-
tonio Bernardo de Souza, Joaquim Antonio da Silva, José Joaquim Tavares e Domingos
José Colares. APEP, DN, JOC, Autos de Devassa (1807), Autuação da Representação
que dirigiram os negociantes desta Praça ao Ilmo Senhor General.
14
APEP, Documentação Notarial, Juízo Ordinário da Capital, Autos de Devassa (1807),
Autuação da Representação que dirigiram os negociantes desta Praça ao Ilmo Senhor
General.
A praça comercial de Belém: negociantes e circuitos mercantis (1790 a 1808)

condições que o governo francês passava a impor.15 As indecisões


que se verificavam em Lisboa acabaram por se refletir na América
portuguesa, para onde, sem uma confirmação oficial sobre a crise
que se anunciava, os negociantes de Lisboa e Porto passaram a en-
viar correspondências noticiando o que se sabia sobre a situação em
Portugal e as incertezas sobre o andamento do comércio para aque-
les portos.
Em outubro de 1807, algumas cartas chegaram a São Luís para
que os sócios daquela praça e de Belém evitassem que as embar-
cações saíssem de seus portos com destino aos portos de Portugal.
Mesmo diante do exposto nas correspondências, o capitão João de
Araujo Rozo, consignatário do navio “Modesta” se mantinha firme
quanto à data da saída do navio para Lisboa. A insistência em “fazer
navegar o dito navio da presente monção de águas” era completa-
mente contrária ao que se praticava em Portugal.16
Diante das justificativas listadas no abaixo-assinado, os nego- 397
ciantes de Belém e carregadores do navio “Modesta” solicitavam a
“quem sustenta o equilíbrio da melhor economia pública do comér-
cio deste Estado, para seu engrandecimento e riqueza nacional, seja
conveniente obstar ao projeto temerário do dito consignatário”. O
pedido de embargo da saída do navio seria até o momento em que
viessem da cidade do Maranhão outras “notícias mais decisivas” so-

15
ALEXANDRE, Valentim. A carta régia de 1808 e os tratados de 1810. In: OLIVEI-
RA, Luis Valente de e RICUPERO, Rubens (orgs.). A abertura dos portos. São Paulo:
Editora SENAC São Paulo, 2007, p. 100-121.
16
A retenção dos navios tanto nos portos de Lisboa como nos portos da América por-
tuguesa era a determinação que diversos negociantes passavam aos seus sócios e “cor-
respondentes de Maranhão”. Lembrando aos mesmos que o envio de cartas fosse feito
somente por “embarcações ligeiras”, prática muito utilizada em “circunstâncias muito
menos apertadas e por leves motivos de desconfiança”, por esse motivo se solicitava “o
embargo [...] de qualquer navio” que saísse para a Europa, pois isso “não sugere prejuí-
zo equivalente ao risco a que se expõem e se vai entregar na mesma saída” para aqueles
destinos. APEP, DN, JOC, Autos de Devassa (1807), Autuação da Representação que
dirigiram os negociantes desta Praça ao Ilmo Senhor General.
Siméia de Nazaré Lopes

bre uma possível mudança daquele estado político que se apresenta-


va em Portugal.17
Em resposta ao requerimento dos negociantes, o desembargador
mandava comunicar ao capitão João de Araujo Rozo sobre o abaixo
assinado e os documentos anexados. Sendo que, de acordo com o
que havia exposto, se tornava “conveniente ou sem prejuízo con-
siderável que o dito navio se demore por mais quinze dias neste
porto”, o prazo apresentado serviria para “verificar com as últimas
individuações as presentes notícias”.18
Inclusas à representação, estavam sete cartas que foram envidas
da cidade do Maranhão para os sócios e amigos estabelecidos na
cidade de Belém. Entre notificações sobre as prestações de contas
de mercadorias já apuradas, as missivas alertavam aos sócios na
América a situação política e as incertezas que rondavam os portos
de Portugal. Mas, sobretudo, as cartas são indicativas das relações
comerciais que existiam entre as duas praças e Portugal. Embora não
398
tivesse assinado a representação inicialmente, o negociante de Be-
lém, Francisco Pedro Ardasse, entregou uma das cartas que recebeu

17
Comumente, os negociantes de Belém mandavam mensageiros ou caixeiros até a
cidade de São Luís para receber cartas ou informações diversas que chegavam nas em-
barcações vindas de Lisboa. Spix e Martius escrevem sobre o “grande número de cartas
da pátria” que receberam, as quais lhes foram entregues pelo inglês, Robert Hesketh,
que as trouxe do “Maranhão, pelo correio de terra, o qual tinha feito a demorada e pe-
rigosa viagem de 14 dias”. O senhor Hesketh havia recebido os viajantes durante a sua
passagem pelo Maranhão, o qual lhe forneceu as tabelas de importação e exportação da
capitania do Maranhão, citadas anteriormente. Cf. SPIX, Johann Baptist von; MAR-
TIUS. Viagem pelo Brasil: 1817-1820. Vol. 3. São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1981, 54 p.
18
Na mesma anotação, o desembargador avisava que haveria uma reunião, para a qual
mandava “convocar todos os outros carregadores ou interessados” na permanência do
navio no porto de Belém. Isso tudo fazia parte dos procedimentos necessários e que fo-
ram “requeridos pelo consignatário para se decidir com as competentes formalidades”
sobre a possível permissão para a “pronta saída do navio ou a sua demora pelo tempo se
[seja] prudentemente [legal]”, o julgamento seria feito com base nas notícias enviadas
da cidade de São Luís do Maranhão, a respeito da “atual situação de risco” nos por-
tos de Portugal, e com base no “iminente e sensível prejuízo das partes interessadas”.
APEP, DN, JOC, Autos de Devassa (1807), Autuação da Representação que dirigiram
os negociantes desta Praça ao Ilmo Senhor General.
A praça comercial de Belém: negociantes e circuitos mercantis (1790 a 1808)

de seu sócio, Caetano José Teixeira,19 negociante do Maranhão, na


qual se apresentava a preocupação dos negociantes de Lisboa com
o atual estado político de Portugal.20 Inclusa à carta, seguia a cor-
respondência que recebeu de Lisboa, na qual se detalhava sobre as
últimas investidas da França em Portugal.
Com data de 28 de novembro de 1807, primeiramente, foi feita
uma prestação de contas sobre a última carta que enviou ao Pará
pela sumaca “Victória”, do mestre Manoel José Vieira, pela qual
também remeteu “carnes e sal”. Nos navios que aportavam em São
Luís, vindo das cidades de Lisboa e do Porto, chegavam algumas
notícias sobre a situação política em Portugal. Segundo o negociante
Caetano José Teixeira, a orientação que recebia dos seus sócios era
que se mantivessem “cá os navios e cabedais” e, enquanto “não de-
cidem as questões” em Lisboa, pedia ao negociante Ardasse que não
fizesse “remessa alguma de [mercadorias] para Lisboa até segunda
399
ordem podendo, contudo fazê-las para aqui [cidade de São Luís] em
dinheiro ou Letras de tudo o que for apurando, e na brevidade me
fará grande favor”. Embora houvesse esse entrave para a rota comer-
cial entre a América portuguesa e a Europa, Caetano José Teixeira
alertava que as atividades comerciais que o seu sócio desenvolvia
em Belém não fossem interrompidas em função dos acontecimentos
nos portos de Portugal. Indicava ao sócio em Belém que ele “ficasse
cuidando nas diligencias dos pedidos de terra [drogas do sertão] que

19
Caetano José Teixeira era estabelecido em São Luís, mas entretinha constantes re-
lações comercias para a praça de Belém. Em 1817, Dona Felícia Maria Madalena da
Silva, viúva do tenente-coronel Custódio Tomás da Silva Aguiar, seus filhos, o tenente
João Antonio da Silva Aguiar, o alferes Joaquim Feliz da Silva Aguiar, e suas filhas
dona Bernarda e dona Ana Luiza da Silva Aguiar, constituíram o negociante Caeta-
no José Teixeira seu procurador na cidade de São Luís. Procuração Bastante e Geral,
APEP, LNTP, n. 1170, d. 95, (1817-1818).
20
APEP, DN, JOC, Autos de Devassa (1807), Carta de Caetano José Teixeira para o
capitão Francisco José Ardasse, Maranhão 28/11/1807.
Siméia de Nazaré Lopes

vieram [de Lisboa] e estimarei [que] possas concluir os mais de que


está incumbido”.21
Em São Luís, Caetano José Teixeira recebeu uma carta de um
sócio estabelecido em Lisboa, a qual encaminhou ao seu sócio de
Belém para informá-lo da situação política em Portugal. A qual
Francisco Pedro Ardasse utilizou para reforçar o requerimento que
foi enviado ao desembargador de Belém com o objetivo de obstar a
saída do navio “Modesta” do mesmo porto. Aos 12 dias do mês de
outubro de 1807, um sócio de Caetano José Teixeira o informava so-
bre as últimas notícias que havia recebido em Lisboa, notícias essas
chegadas aqui da Europa pelos navios “Socie-
dade Feliz”, “São José Indiano” e “Delfina” em
25 e 26 “do corrente”. Foi relatado que a Fran-
ça havia proposto ao Ministério português “que
devia logo fechar os portos à Nação Britânica,

400 sequestrar todos os bens, fazendas e navios per-


tencentes a ingleses e fazê-los imediatamente
despejar do Reino.22
A proposta que o ministro francês fez ao ministro português cau-
sou sérias mudanças na paisagem econômica de Portugal. De acordo
com o informante de Teixeira, em Lisboa e no Porto todos os in-
gleses ali estabelecidos aos poucos foram despejados, e “já haviam
cambiado as suas fazendas, os do Porto a vinho e os de Lisboa a
algodão, mas nem por isso este gênero ali melhorou de preço, an-
tes cada vez vão a menos”. A situação de incerteza que se instalava
em Portugal acabava se estendendo para todos os portos onde os
negociantes portugueses entretinham relações comerciais, sendo ne-

21
APEP, DN, JOC, Autos de Devassa (1807), Carta enviada ao negociante do Mara-
nhão, Caetano José Teixeira, Lisboa, 12/10/1807. O documento está incompleto e não
consta a última página com o nome do destinatário.
22
APEP, DN, JOC, Autos de Devassa (1807), Carta enviada ao negociante do Mara-
nhão, Caetano José Teixeira, Lisboa, 12/10/1807.
A praça comercial de Belém: negociantes e circuitos mercantis (1790 a 1808)

cessário que eles encaminhassem informativos aos sócios existen-


tes nessas outras praças, em função da impossibilidade de enviar as
embarcações para essas cidades, principalmente para a América. Na
mesma carta, era informado que
todos os proprietários que têm para aqui navios
os mandam reter até segunda ordem, e da mes-
ma forma fazem todos os que cá têm cabedais
mandando retê-los, já em dinheiro ou algodão
que não exceda nunca de 3.000 réis.

Entretanto, percebe-se que os portugueses também temiam a con-


trapartida inglesa, diante das investidas francesas. Para os portugue-
ses era necessário ter cautela, pois “os ingleses arrasaram mais de
600 casas em Copenhague e se fizeram senhores de toda a marinha
dinamarquesa”. Essa ação também se estendeu para a América, em
401
Portugal “diziam que os de Montevidéu sacudiram o jugo dos ingle-
ses por capitulação.23
Temendo que na cidade do Pará ainda não tivessem aportado na-
vios vindos de Portugal trazendo essas notícias, o negociante Caeta-
no José Teixeira, achou oportuno remeter as duas cartas pelo “novo
Prior do Carmo Frei Bernardo da Gama” que já estava de viagem
marcada para a cidade de Belém. A iniciativa do negociante Teixeira
em participar ao seu sócio na cidade de Belém sobre as incertezas
presentes na rota comercial pelo Atlântico foi acompanhada por ou-
tros negociantes estabelecidos em São Luís, que por sua vez rece-
beram cartas dos seus sócios em Portugal alertando sobre a atual
situação política da Europa.

23
APEP, DN, JOC, Autos de Devassa (1807), Carta enviada ao negociante do Mara-
nhão, Caetano José Teixeira, Lisboa, 12/10/1807.
Siméia de Nazaré Lopes

Jacinto José da Cunha,24 negociante de São Luís, enviou uma car-


ta para o seu sócio de Belém, o negociante Manoel F. Vasconcelos.
A carta tinha o objetivo de informar que o seu sócio, Manoel Ferrez,
estabelecido na cidade de Lisboa, lhe ordenava que enviasse essa
carta ao sócio de Belém para que “por ora suspenda V.M. o fazer-lhe
remessas de [mercadorias] sem que dele receba novo aviso, este pelo
motivo e desgraça com que se acha a cidade de Lisboa e todo o Rei-
no que esperam por uma decisão funesta dos franceses”. Escrevia
que os ingleses com negócios em Portugal, “antevendo ao que está
em prática [...] se têm retirado da cidade do Porto se transportaram
já para a Inglaterra todos”. 25
Outra carta que se juntava ao Auto de Devassa foi escrita por Joa-
quim de Araujo, que também era negociante da praça de São Luís,
com sócio estabelecido na cidade de Belém. Em 28 de novembro
de 1807, Joaquim de Araujo enviou para João Pedro Ardasse uma
402 correspondência lhe participando sobre o que ficou sabendo da si-
tuação política em Portugal. De São Luís, escrevia que “as notícias
que aqui têm chegado proximamente de Lisboa são tão fúnebres”,

24
Os negociantes Jacinto José da Cunha, Antonio José de Bastos e José da Costa Oli-
veira eram procuradores na cidade de São Luís do negociante de Belém, Serafim dos
Anjos Teixeira. Procuração Bastante e Geral, APEP, LNTP, n. 10, d. 178, (1803). No
caso, além da sociedade que tinha em Belém com Manoel Vasconcelos, Jacinto José da
Cunha também efetuava relações comerciais em nome de Serafim Teixeira.
25
Em relação às embarcações, afirmava que “em Lisboa se acha um grande comboio
ancorado para no dia 16 de outubro levar todos os seus nacionais fundos que se acha-
vam naquela capital”. Nessa carta também se comenta sobre a movimentação portuária,
atentando para dois pontos; o primeiro era o comentário sobre as embarcações que já
estão prontas para transportar o príncipe e a sua irmã para a cidade do Rio de Janeiro,
que apenas aguardavam a “última decisão dos inimigos franceses e o que daqui só se
dirá para o futuro não se sabe, mas esta decisão há de ser em poucos dias [ilegível] as
notícias”. O segundo era sobre as embarcações aportadas em Lisboa, que não havia
indicação de qualquer saída de navio, os quais ficariam aguardando “avisos novos os
quais se esperarão como muita brevidade e espera-se que sejam feitas por alguns bri-
gues de Giro”. APEP, DN, JOC, Autos de Devassa (1807), Carta enviada pelo negocian-
te Jacinto José Cunha ao negociante de Belém, Manoel F. de Vasconcelos, Maranhão,
27/11/1807.
A praça comercial de Belém: negociantes e circuitos mercantis (1790 a 1808)

que ele se sentia na obrigação de informá-lo para não realizar qual-


quer remessa de mercadorias para aqueles portos, o que contrariava
a solicitação que havia feito na carta anterior de 22 de outubro do
mesmo ano. Solicitava a João Pedro Ardasse que não tendo feito a
remessa até a chegada dessa carta, que deixasse as mercadorias em
seu poder até que houvesse “embarcação para esta [cidade de São
Luís] onde pudera remeter empregado em bom café e boa salsa logo
que a tenha apurado”.26
No dia 11 de outubro, João Meireles Ferreira escreveu de Portu-
gal para o seu irmão, Antonio José Meireles Ferreira,27 na cidade de
São Luís.28 Após alertar sobre a “desordem que vive em Portugal”,
ele pediu que o irmão não fizesse compra ou mesmo remessa de
qualquer mercadoria, mas que continuasse apurando e guardando
consigo as mercadorias que já havia solicitado, pois dessa forma
seria mais “seguro do que tê-lo em Letras e fiado”. Isso porque, se-
gundo João Meireles Ferreira, “o maldito Imperador dos franceses
403
teima em que Portugal feche o porto aos ingleses e que lhe confisque
os bens pertencentes aos ditos [ingleses]”. A possibilidade da saída
dos ingleses de Portugal e a ameaça de invasão francesa contribuí-
ram para que os negócios naquela praça ficassem “inteiramente pa-
rados”; os negociantes não efetuavam qualquer pagamento e ainda

26
APEP, DN, JOC, Autos de Devassa (1807), Carta enviada pelo negociante Joaquim
de Araujo ao negociante de Belém, João Pedro Ardasse, Maranhão, 28/11/1807.
27
Em 1821, Antonio José Meireles Ferreira, aparecia como “Ilustríssimo Comendador”
da cidade de São Luís na procuração que o negociante de Belém, José Custódio Pereira
Guimarães, passou para que fosse representado naquela cidade. Além dele, Pereira Gui-
marães também outorgou procuração para João José Fernandes do Rego e Companhia.
Procuração Bastante e Geral, APEP, LNTP, n. 1176, d. 368, (1793-1799). Em 1807,
José Custódio Pereira Guimarães também estava envolvido na representação dos nego-
ciantes de Belém para obstar a saída do navio “Modesta”, mas quem aparecia assinando
a representação era o seu irmão-sócio José Antonio Pereira Guimarães. APEP, DN,
JOC, Autos de Devassa (1807).
28
Essa carta não apresenta o nome do destinatário. APEP, DN, JOC, Autos de Devassa
(1807), Carta enviada pelo negociante João Meireles Ferreira ao seu irmão, Lisboa
11/10/1807.
Siméia de Nazaré Lopes

evitavam se desfazer do que tinham em seu poder. João Meireles


se lamentava sobre a sua situação para o irmão, pois era obrigado a
permanecer em Portugal até reaver todo o dinheiro que estava “espa-
lhado” naquela praça; em suas palavras escrevia que “por desgraça
minha vejo essa trovoada em ocasião que me apanhou quase com
todo o meu dinheiro por mãos alheias, não terei remédio senão sofrer
o que a sorte der”.
As cartas que passaram a compor o Auto de Devassa não apresen-
tavam apenas os desdobramentos políticos em Portugal que invia-
bilizavam a saída das embarcações para outros portos, elas também
relatavam as transações comerciais efetuadas entre as duas praças,
tais como as remessas de mercadorias que eram enviadas dos portos
de Belém e São Luís para os de Portugal. O negociante de Belém,
Joaquim José Lopes Godinho,29 recebeu de seu sócio em Lisboa uma
carta ratificando o crédito de 418$676 réis referente à remessa de
vinte e cinco arrobas de cacau que já havia enviado anteriormente.
404
Entretanto, reforçava que não enviasse para Lisboa mercadoria al-
guma até que ele fizesse “um novo aviso, por razão de estarmos aqui
ameaçados de serem fechados os portos aos ingleses”.30
Após serem apresentadas as justificativas para obstar a saída da
embarcação do porto de Belém, o capitão João de Araújo Rozo se
pronunciou ao desembargador. Em resposta, o consignatário do na-

29
Joaquim José Lopes Godinho e seu sócio João Antonio Lopes enviaram requeri-
mento à Secretaria de Estado dos Negócios do Reino solicitando “a mercê do Hábito
da Ordem de Christo”. Joaquim José Lopes Godinho justificava seu pedindo “em con-
sideração a ser negociante matriculado pela Real Junta do Comércio e ater prestado
voluntariamente para as urgências do Estado a quantia de 700$000 pela ocasião da
memorável Conquista de Caiena”. Carta do Conde de Vila Flor a Thomas Antonio de
Vila Nova Portugal, Pará, 08/10/1819. Em outra solicitação, o negociante João Antonio
Lopes justificava seu pedido em função do comércio regular que realizou para a Con-
quista de Caiena. AN, Ministério do Reino - Pará, Fundo: Negócios de Províncias e
Estados, Série Interior (1808-1819).
30
APEP, DN, JOC, Autos de Devassa (1807), Carta enviada pelo negociante Ma-
theus Rodrigues Lima ao negociante de Belém, Joaquim José Lopes Godinho, Lisboa,
09/10/1807.
A praça comercial de Belém: negociantes e circuitos mercantis (1790 a 1808)

vio “Modesta” defendia que não havia como verificar se as informa-


ções sobre Portugal eram, de fato, verdadeiras. Entre as observações
sobre os “segredos” que permeiam as decisões dos soberanos, Araú-
jo Rozo ressaltava que os suplicantes esqueciam que o navio, inde-
pendentemente da data que saísse do porto de Belém, corria o risco
de ser “pirateado ou saqueado” e ter a carga como perdida. Essa
era uma incerteza que também fazia parte das transações comerciais
entre os dois portos, sendo difícil impedir a ação de corsários na cos-
ta do Pará e do Maranhão, principalmente nesse período.31 Araújo
Rozo se comprometia a postergar a saída da embarcação desde que
ele não fosse responsabilizado a indenizar “em benefício de proprie-
tário ou de outro qualquer terceiro, lavrando-se de tudo isto termo,
para poder servir de defesa”, para que no futuro não fosse acusado
de omisso ou inapto para a “diligência” da saída do navio.32
Entretanto, em nova representação foram incluídos outros ne-
gociantes interessados em obstar a saída da embarcação do porto
405
de Belém. Nesse novo documento, os negociantes divergiam das
condições apresentadas pelo consignatário do navio. Entre outras
coisas, alegavam que já haviam apresentado as informações sobre
a situação de Portugal e solicitavam a permanência do navio em Be-
lém, o que não foi prontamente atendido. No documento escreviam
que o capitão João de Araújo Rozo “devia anuir e talvez requerer
em desempenho do comércio, fé pública, sua honra e dos interes-
ses dos seus constituintes”, mas preferiu “formar protestos” sobre
a solicitação deles. Em função disso, os negociantes não aceitavam
a condição imposta e ainda voltavam a requerer que Araújo Rozo

31
APEP, DN, JOC, Autos de Devassa (1807), Resposta de João de Araújo Rozo ao
Desembargador Geral Joaquim Clemente da Silva Pombo, Belém 30/12/1807.
32
Atendendo ao que foi solicitado pelo consignatário, o Desembargador lançou outra
chamada aos interessados no assunto para que se pronunciassem sobre a “retenção ou
saída do dito navio”. APEP, DN, JOC, Autos de Devassa (1807), Resposta de João
de Araújo Rozo ao Desembargador Geral Joaquim Clemente da Silva Pombo, Belém
30/12/1807.
Siméia de Nazaré Lopes

fosse responsável por “todos os prejuízos, lucros cessantes, danos


emergentes de mercador a mercador, rebeldia de patrão, arribadas e
tudo o mais quanto por direito favorece aos suplicantes e aos direitos
de sua Alteza Real”.33
Em conclusão às solicitações, o desembargador achou prudente
aguardar “mais umas águas” para que nesse tempo pudessem chegar
outras notícias oficiais sobre a situação de Portugal.34 O despacho foi
encaminhado ao consignatário do navio, que não deveria considerar
“mais que o prejuízo de 15 dias de mantimentos a sua tripulação”,
assim como providenciar um ancoradouro seguro para estacionar a
sua embarcação no período indicado.35
A representação assinada pelos negociantes de Belém possibili-
tou identificar os sujeitos envolvidos no comércio existentes entre
esta praça e a de São Luís, além da sua articulação com os negocian-
tes de Portugal. Essa situação específica em que se discute a saída
ou não do navio “Modesta” do porto de Belém é significativa para
406 se conhecer as relações comerciais que envolvem os negociantes das
praças citadas. Essas redes comerciais são apresentadas a partir das
cartas trocadas entre os negociantes das três praças, o que se nota
que as articulações urdidas entre esses sujeitos tenderam a permane-
cer ao longo do tempo, como poderá ser notado em outras situações
envolvendo o comércio entre essas capitanias e os portos de Lisboa.

33
APEP, DN, JOC, Autos de Devassa (1807), Representação que os Negociantes da
Praça de Belém, principais carregadores do navio “Modesta”, Belém 30/12/1807. Além
dos quinze negociantes que assinaram a primeira representação, outros nove integram
esse documento, a saber: Francisco Pedro Ardasse, Francisco Jorge Gomes Pinto, Vi-
cente Antonio de Miranda, José Bento David, André Barboza de Amorim, José Ferreira
de Brito, José Antonio Pereira Guimarães, Domingos José Martins e Sebastião [ilegí-
vel].
34
APEP, DN, JOC, Autos de Devassa (1807), Despacho do Desembargador Geral Joa-
quim Clemente da Silva Pombo, Belém 30/12/1807.
35
APEP, DN, JOC, Autos de Devassa (1807), Cópia de Despacho assinado pelo Gover-
nador do Estado do Grão-Pará, José Narciso de Magalhães de Meneses ao senhor João
de Araújo Rozo, Belém, 01/01/1808.

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