OZ Édia OZ Eflexiva Finidades Ivergências

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BARROS, Déborah Magalhaes de.

A voz média e a voz reflexiva: afinidades e divergências

A VOZ MÉDIA E A VOZ REFLEXIVA: AFINIDADES E DIVERGÊNCIAS

Déborah Magalhaes de BARROS*1

RESUMO
Neste artigo, propomos uma discussão acerca das configurações das vozes média e reflexiva,
estabelecendo, na medida do possível, uma comparação sobre algumas características formais e
semânticas delas na língua portuguesa em relação a outras línguas. Para isso, definimos alguns
critérios considerando afinidades e divergências sobre a voz média em relação à passiva e à reflexiva,
observando como esses critérios se confirmam ou se refutam nos dados analisados. As vozes média
e reflexiva são motivo de várias divergências quanto às suas distinções e isso se deve, em parte, pela
não disitinção entre os critérios semânticos e sintáticos em relação às classificações, bem como aos
limites distintivos entre elas. Para nos posicionarmos diante disso, recorremos a Benveniste (2005),
Camacho (2002, 2003), Kemmer (1993, 1994), Keenan e Dryer (2007) e Palmer (1994) para
estabelecermos os critérios de distinção dos tipos de voz, sobretudo, os inerentes à marcação
morfossintática e ao significado dessas vozes em relação à centralidade e ao afetamento do sujeito.

Palavras-chave: Voz média; Voz reflexiva; Afetamento do sujeito; Marca morfossintática.

INTRODUÇÃO

A voz verbal tem sido alvo de grandes polêmicas nos estudos linguísticos e, como
consequência, há uma divergência de análises, de classificação e de conceituação. Uma grande
parcela dos estudiosos sobre língua entende que em português não temos a voz média, outros, como
Roberto Camacho, defendem a existência da voz média em português.
Um exemplo polêmico e que resulta em muitas explicações é o da divergência entre a
forma e a significação das orações quanto ao tipo de voz, tais como as que sintaticamente (forma)
são ativas, mas expressam um sentido passivo do sujeito em relação ao evento descrito pelo verbo;
outro ponto conflitante diz respeito à existência de marca morfossintática ou não para essas vozes,
bem como as diferentes marcas em línguas diferentes.
Para Camacho (2002, p. 227), voz é “a forma que o predicado verbal assume para
representar sua relação com o argumento na função de sujeito”. Embora ele proponha uma moldura
conceitual ancorada na forma, esclarece que, segundo a concepção funcionalista, a elaboração da voz
reúne e reflete uma “diversidade de valores semântico-oracionais e pragmático-discursivos”, os quais

*1Universidade Estadual de Goiás


E-mail: [email protected]
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são linguisticamente materializados na estrutura sintática, assumindo diferentes tipos de


configurações, resultando em diferentes tipos de voz.
À luz do funcionalismo, a voz tem sido entendida como um domínio multifatorial, uma
vez que é moldada a partir da integração dos fatores linguísticos (semântico-oracionais) e dos
extralinguísticos (pragmático-discursivos), o que quer dizer que vozes diferentes não são apenas
estruturas sintáticas diferentes para representarem um mesmo evento.
As vozes médias e reflexivas possuem várias caraterísticas tanto do ponto de vista do
significado quanto do formal que fazem com que elas gozem de uma recepção teórica não muito
definida e, por vezes, alguns as consideram uma mesma voz.
Quanto ao significado, ou seja, em relação aos critérios semânticos, elas possuem em
comum a noção de que o evento do mundo descrito pelo verbo centra-se no sujeito sintático. Sobre a
relação formal, a maioria dos verbos na voz média e na reflexiva são empregados junto ao pronome
clítico, que, em português, é especialmente o se. Nós, a partir do que mostraremos adiante,
consideramos que elas, muito embora possuam várias semelhaças, podem ser consideradas vozes
diferentes quando observamos, sobretudo, as relações sintáticas que o verbo estabelece com os demais
argumentos da sentença.
A noção semântica de envolvimento do sujeito como centro da ação do verbo é a principal
característica do que poderíamos chamar de afinidade entre essas vozes, por outro lado, observando
a configuração na estrutura da sentença quanto à relação do verbo com os argumentos envolvidos é
que observamos a principal caraterística distintiva entre elas.
Traços da voz média podem ser conferidos também na voz passiva, como por exemplo, a
não presença do elemento agentivo da ação do verbo. Em função disso, observaremos como elas se
realizam na língua. Pela mesma forma, a reflexiva e a média são extremamente relacionadas tanto
pelos fatores semânticos como pelos formais em diferentes línguas.

1. A VOZ MÉDIA: TRAÇOS FORMAIS E SEMÂNTICOS EM RELAÇÃO À VOZ PASSIVA

A definição e caracterização sobre a voz média neste trabalho é feita a partir do que
consideramos como um domínio semântico da voz média, conforme proposta de Kemmer (1993).
Para essa autora, isso significa que existe um amplo campo semântico de verbos que possuem maior
probabilidade de serem empregados na voz média. Esse entendimento nos autoriza a tratar a voz
média, primeiramente, a partir da sua configuração semântica, o que é, aliás, um ponto pacífico entre

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os teóricos2 que descrevem essa voz, uma vez que possuem a mesma opinião sobre o fato de que na
voz média o sujeito é sede do processo verbal, ou seja, a ação do verbo acontece no interior do sujeito
sintático.
Em relação ao aspecto estrutural, a voz média pode ocorrer de duas formas: i) somente
com o verbo na forma da voz ativa; ou ii) adjungido ao pronome clítico, em português, especialmente,
o se. Na primeira forma, o que irá definir que é uma voz média é somemente o nível semântico, uma
vez que quanto à forma ela é idêntica à voz ativa. Essas são as formas gerais de ocorrência nas línguas,
o que não significa que em todas acontece sempre da mesma forma. No Inglês, por exemplo, não há
marcação para a média, ao contrário do português em que alguns verbos recebem marcas e outros
não.
Consideramos que não é muito simples chegar a uma definição pontual sobre o que é a
voz média e nem quais são as suas características precisas, assim estamos traçando um perfil a partir
do que dizem alguns dos principais estudiosos sobre voz. Para isso, nos apoiamos na concepção
semântica de que na voz média o sujeito é o centro do processo descrito pelo verbo, que equivale
aproximadamente ao seu afetamento, haja vista que isso é o mais relevante no tratamento da voz
média, bem como é um consenso acerca das características dessa voz.
Em Benveniste (2005), encontramos uma proposta sobre a voz média que baseia-se no
estado do verbo, que, no indo-europeu, caracteriza-se pela oposição das diáteses3 ativa e média, cujo
significado desta oposição reside na categorização do verbo. Para justificar a sua proposta,
Benveniste (2005) propõe que a forma ativa se opõe primeiramente à média e, depois à passiva, que
é considerada como uma modalidade da média.
A oposição entre as formas passiva e ativa pode ser ilustrada, de modo simplista, pela
relação entre “ação praticada”, para o ativo, e “ação sofrida”, para o passivo. Entretanto, esse
raciocínio não é aplicável na relação ativo e médio a fim de que se justifique uma oposição, por isso,
para explicar sua proposta, o autor recorre à noção de diátese, pois toda forma verbal pertence a uma
diátese ou a outra.
Como o autor considera que no indo-europeu o verbo faz referência apenas ao sujeito e
não ao objeto, ele conceitua a voz como sendo “a diátese fundamental do sujeito no verbo; denota
uma certa atitude do sujeito relativamente ao processo, e por meio dessa atitude esse processo se
encontra determinado no seu princípio” (BENVENISTE, 2005, p. 185). Para chegar a essa conclusão,

2
Entre os pricipais estão Camacho (2003) e Kemmer ( 1993).
3
Diátese refere-se ao termo grego diáthesis, que significa a possibilidade de um verbo subcategorizar diferentes
construções. Por exemplo, o verbo quebrar pode ocorrer em uma situação mais transitiva como João quebrou o vaso, ou
em uma menos transitiva O vaso quebrou. Dessa forma, esse verbo possui duas diáteses.
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Benveniste fundamenta-se na distinção feita por Panini entre parasmaipada “palavra para uma outra”
(= ativo), e atmanepada “palavra para si” = (médio).
Unindo a concepção de Panini ao fato de que alguns verbos no latim eram somente ativos
ou somente médios, Benveniste (2005) compara duas classes diferentes de verbos (ativos e médios),
considerando o mesmo verbo nas línguas sânscrito, grego e latim: somente ativos: ir, viver, escorrer,
rastejar, recuar, comer, beber, dar...; somente médios: nascer, morrer, sofrer, suportar, sentir uma
agitação mental, falar, etc.
Comparando os verbos acima quanto à “atitude do sujeito em relação ao processo” e à
“relação da ação com o sujeito”, percebe-se que os verbos ativos manifestam sempre uma atitude do
sujeito em relação ao processo, sendo impossível que este sujeito seja sede do processo, “que se efetua
a partir do sujeito e fora dele” e os verbos médios indicam processos em que “o sujeito é a sede; o
sujeito está no interior do processo” (BENVENISTE, 2005, p. 187). Fundamentando-se na distinção
entre “interior” e “exterior” em relação ao processo, Benveniste sustenta que, em princípio, a oposição
à voz média é a voz ativa. Na voz média, o sujeito é interior e sede do processo. Na ativa ele é externo
à ação verbal porque ela se realiza a partir dele.
Nos verbos de dupla diátese aplica-se o mesmo raciocínio de “exterior” ou “interior” ao
processo, e de agente quando o sujeito efetua a ação (ativo); nos casos em que o sujeito efetua e é
afetado ocorre a voz média. A propriedade de ser “interior” ao processo ocorre primeiramente na voz
média, e somente depois na forma passiva, que é construída a partir de uma ativa, haja vista que a
noção de uma passiva básica implica primeiramente que o sujeito seja centro do processo verbal
(KENNAN E DRYER, 2007). Nesse sentido é que Benveniste considera a passiva uma modalidade
da média. O autor esclarece que

dessa confrontação se destaca de maneira bem clara o princípio de uma distinção propriamente
linguística, referente à relação entre o sujeito e o processo. No ativo, os verbos denotam um
processo que se efetua a partir do sujeito e fora dele. No médio, que é a diátese que se definirá
por oposição, o verbo indica um processo do qual o sujeito é a sede; o sujeito está no interior
do processo. (BENVENISTE, 2005, p. 187)

Em (1a), o sujeito expressa uma atitude em relação ao processo e não pode sediá-lo,
porque, embora parta do sujeito, ocorre fora dele.

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Insultano… aí eu parti pra cima dele… pedi pra ele… e ele pegô e partiu pra cima de mim
tamém e eu dei um gorpe nele e derrubei ele e ele caiu… por cima do braço e quebrou…
4

(1)
a) Eu dei um “gorpe” nele.5
b) I gave him a blow.6

O verbo dar/give (1) é classificado por Benveniste como um dos que só admite a
configuração de voz ativa. A ação parte do sujeito agente e se completa, ou se realiza de fato fora
desse sujeito, então ele não é sede da ação, ela não acontece em seu interior, ainda que a iniciativa
dela tenha sido originada nele.
Em relação aos elementos envolvidos, verifica-se que a mesma configuração, da estrutura
da oração em português ocorre em inglês, até mesmo porque estamos tratando da voz ativa que é
considerada básica em relação às demais.
A mesma forma da voz ativa é mantida na voz média realizada com o verbo morrer em
(2).

(2)
a) Depois que a minha mãe morreu ... cuidei do meu pai né... aliás... cuido dele até hoje
...
b) After my mother died... I took care of my father right ... indeed ... take care of him until
today...

O verbo “morrer/die” é classificado somente como médio, portanto é lugar do processo


e o sujeito está em seu interior. Tanto em português como em inglês a voz média ocorre sem nenhuma
marca morfológica para esse verbo.

4
Os dados em língua portuguesa são provenientes do projeto O Português falado em Goiás - “Fala Goiana”, que é sediado
pela Faculdade de Letras da UFG. Este é um projeto de pesquisa de orientação funcionalista que objetiva analisar e
descrever a língua falada em Goiás por meio da integração de um conjunto de projetos articulados, verificando diversos
fenômenos na língua falada a partir da variante falada em Goiás. Os dados do projeto são obtidos com informantes com
até nove anos de escolaridade em situações interativas de um discurso informal.
5
Por uma questão metodológica, quando necessário, apresentamos o trecho selecionado na integra, e abaixo fizemos
uma adequação, principalmente na sintaxe, para facilitar a visualização do fenômeno bem como a comparação com outra
língua.
6
Todas as traduções do português para o inglês, bem como o contrário são de nossa responsabilidade.
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Kemmer (1993) classifica o verbo die/ perish (morrer) como pertencente a um domínio
médio chamado spontaneos eventos (eventos espontâneos). Os verbos categorizados nesse domínio
implicam basicamente mudança de estado da entidade envolvida no evento descrito pelo verbo, tais
como morrer, crescer, torna-se mais forte, mudar, afundar etc. Esses eventos são percebidos sem a
iniciação direta de um agente humano. A autora faz essa classificação para mostrar que, em algumas
línguas, alguns dos verbos que ela classifica nessa categoria recebem uma marca medial (marca
morfossintática que indica que esses verbos são médios). Entretanto, em inglês, eles não recebem a
marca medial. Em português, alguns não recebem a marca, mas outros, como tornar-se, recebem.
O fato de terem recebido marcação (no caso de línguas extintas) e de alguns, em outras
línguas, ainda receberem só reforça a atual classificação desses verbos como médios. Exemplar dessa
situação é o verbo die/perish (morrer), que atualmente não recebe marca medial em inglês e nem em
português, mas já recebeu em outras línguas como consta em (3).

(3)
a) inglês antigo anda-sk
b) latim morio-r
c) sânscrito mriyat-e
d) grego clássico ólly-sthai

As marcas que estão destacadas são respectivamente sk, r, e, sthai . Elas indicam que
esses verbos são intrinsicamente eventos espontâneos classificados em Kemmer (1993) como médios,
ou seja, essas são marcas de medialidade nesses línguas.
A partir da observação do verbo morrer/die nessas quatro línguas, podemos inferir que,
muito embora, no português e no inglês, como se observa hoje, o verbo não receba nenhuma marca
morfossintática indicativa de medialidade, é totalmente produtiva a argumentação de que ele é um
verbo médio a partir da consideração de que o sujeito é interior à ação, ou , melhor ainda, o fato de
esses verbos terem recebidos marca média em algumas línguas confirma a explicação de o verbo
médio ser interno ao processo verbal.
Quando estabelecemos uma comparação do verbo dar (1) com o verbo morrer (2)
percebemos de modo saliente as noções de que o sujeito pode ser “interior” ou “exterior” ao processo,
pois em (2) o sujeito é interior ao processo do verbo, que acontece nele e em (1) o sujeito é exterior
ao processo, que se inicia a partir dele, mas não se realiza nele. Essa distinção é altamente produtiva

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para a percepção do que é a voz média, bem como a sua distinção da voz reflexiva 7. Benveniste
esclarece que

o princípio de uma distinção propriamente linguística, referente à relação entre o sujeito e o


processo. No ativo, os verbos denotam um processo que se efetua a partir do sujeito e fora
dele. No médio, que é a diátese que se definirá por oposição, o verbo indica um processo do
qual o sujeito é a sede; o sujeito está no interior do processo. (BENVENISTE, 2005, p. 187)

Portanto, em termos de Benveniste, a voz média é caracterizada como diátese interna,


em que o sujeito é sede do processo verbal que acontece em seu interior, implicando, obviamente,
relações de transitividade8. Na voz média, observa-se uma baixa transitividade, como ocorre com o
verbo nascer.

[...] aqui em Goiânia mesmo... em Aparecida... desculpa... nasci em Goiânia... moro em


Aparecida...
(4)
a) Nasci em Goiânia.
b) I was born in Goiânia.

Observa-se também que a voz média implica uma transitividade baixa, uma vez que não
é requisitado um objeto para que se complete o processo verbal, pois o evento acontece tendo o
sujeito como centro. O complemento “Goiânia” indica apenas uma informação adicional ao verbo,
mas o sentido do verbo não é completado com esse lexema.
Alguns autores, dentre eles Keenan e Dryer (2007) e Palmer (1994), entendem que a
média se parece com a voz passiva. Eles fazem isso porque na média existe a noção semântica de não
atitude do sujeito em relação ao processo verbal, ou seja, de certa forma ele é interior ao processo
descrito, mas o processo acontece independentemente de sua iniciativa ou vontade conscientes. O
verbo nascer comprova essa argumentação, uma vez que descreve um processo que é inerente ao
sujeito independente de sua iniciativa.

7
Benveniste considera a voz reflexiva como pertencente ao domínio da voz média. Acreditamos que ele tem razão quanto
ao critério semântico de que em ambas o sujeito é interior ao processo verbal, mas quanto ao lado estrutural, a sintaxe em
relação sobretudo à transitividade, essas vozes são diferentes.
8
A partir de uma concepção funcionalista, sobretudo, do que consta em Hopper e Thompson (1980) e em Givón (1994),
entendemos que a transitividade não pertence exclusivamente ao verbo e sim à sua relação com os outros elementos da
oração, portanto, ela é da oração e não do verbo. Nela, os itens se completam sintática e semanticamente. O que implica
que verbos transitivos em uma oração, pela natureza semântica da sua relação com os outros elementos, podem se mostrar
de forma diferente em outra oração. Assim, não trabalhamos com as noções de transitivo e intransitivo, mas sim com a
noção de detransitividade e os verbos são considerados mais ou menos transitivos.
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Keenan e Dryer (2007) alertam que existem construções que se parecem com a passiva,
e dentre elas está a média. A diferença é que essas outras construções não possuem a característica
que é definidora da passiva: na passiva, o sujeito em uma ativa correspondente não é nem sujeito e
nem objeto, e em alguns casos, nem é expresso. Em outras palavras, essa é a prática tradicional de
considerar a existência de um elemento agente como critério para a definição de uma passiva.
Conforme Keenan e Dryer (2007) advertem, as construções que não possuem de alguma
forma o agente, mas ainda assim se assemelham com as passivas, são consideradas médias. Eles
explicam isso por meio dos exemplos:

(5)
a) The ship was sunk. (O navio foi afundado.)
b) The ship sank. (O navio afundou.)

Em (5a) existe a noção de que a ação foi causada por um agente, ainda que ele não seja
conhecido. Em (5b) não existe a percepção de um agente. O verbo afundar permite essa total ausência
da entidade agentiva pela sua natureza semântica, uma vez que é um evento que pode ser descrito por
si só sem a necessidade de um elemento que desencadeie o processo verbal. Por isso, no caso de (5b)
temos uma voz média em sua forma não clítica. Este verbo, como morrer, permite a formação da voz
média sem a marcação pronominal tanto em português quanto em inglês. Temos a hipótese de que a
não marcação pronominal, na voz média, ocorre somente em verbos plenos, os quais não necessitam
de mais nenhuma informação para completar o sentido da oração.
Verbos que não podem construir a voz média não admitem esse tipo de construção, como
por exemplo o verbo cortar. Vejamos isso em (6):

[...] sandália... chinela... dava assim uma chinela pro meu pai comprá pra passa o ano... a
gente ia em festa com a chinela...com o vestido i:: chinela... ( )... foi a primeira vez que
eu fui num salão cortá o cabelo com mulher né... salão... cortá o cabelo mesmo...
(6)
a) Eu fui num salão ... cortá o cabelo com uma mulher.
b) Eu cortei o cabelo no salão.
c) O cabelo foi cortado no salão.
d) * O cabelo cortou.

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Em (6b) - que foi reorganizada sintaticamente - temos uma voz ativa que pode ser
transformada na passiva (6c). Em todos os dois exemplos temos a presença, explícita ou não, do
agente. Na fala, o agente é recuperado pelo contexto. Já em (6d) temos uma sentença agramatical,
uma vez que a semântica do verbo cortar não admite esse tipo de construção porque o verbo não
descreve um evento que acontece por si mesmo, ainda que o sujeito seja centro interior à ação do
verbo.
Keenan e Dryer (2007) argumentam que alguns tipos de verbos (por exemplo cortar) em
algumas línguas, como o é em inglês e português, não admitem essa construção. Por esse mesmo
raciocínio, comprovam a voz média na senteça O navio afundou em comparação com algo como *O
navio afundou pelo inimigo. Esta sentença, pela natureza da voz média, não admite o complemento,
o que somente seria admitido na voz passiva, como em O navio foi afundado pelo inimigo. Pela
mesma maneira, em inglês, não se admite uma sentença do tipo Hair cut.
Assim, a voz média caracteriza-se semanticamente pelo fato de que o sujeito é interior ao
processo verbal e é por ele afetado. E, formalmente, ela pode ocorrer nas formas clítica, com a
presença do pronome e não clítica, sem a presença do pronome. Na média não clítica as noções da
semânatica do verbo e da transitividade são altamente produtivas para a constação de uma voz média
uma vez que a sua forma é a mesma da voz ativa.
Em inglês não há marca morfossintática para a voz média, e ela é caracterizada por
critérios semânticos. Em português, alguns teóricos entendem que a média e a reflexiva tratam-se da
mesma voz porque a marca é a mesma, em sua maioria o pronome se como em cortar-se e explicar-
se, então temos média marcada e não marcada como em afundar e morrer. Outras línguas possuem
marca média para todos os verbos, e elas são as mesmas para a voz passiva. Os dados seguintes são
de Keenan e Dryer (2007), da língua Quechua9, e confirmam essa hipótese.

(7)
a) Punku kiˇca-ka-rqa-n
door open-mid-past-3
‘A porta abriu ’
b) Cˇuku apa-ka-rqa-n
hat take-pass-past-3
‘O chapéu foi levado’

9
Língua indígena da América do Sul falada nos dias de hoje por aproximadamente 10 milhões de pessoas na Bolívia,
Argentina, Chile, Equador, Peru, Colômbia e Brasil.
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O verbo abrir em (7a) recebe a marca (ka) indicando a voz média e a mesma marca em
(7b) indica a voz passiva. A mesma sentença tanto em português A porta abriu como em inglês The
door opened é considerada nessas duas línguas como média e não recebem marca de medialidade.
Por outro lado, em português temos alguns verbos que, na voz média, requerem a presença
do pronome clítico como uma marca medial.

[...] aí :: ele foi se hospitalizou… foi pá Goiânia… fez tratamento a gente tinha só notícia
de que ele não voltava vivo…

(8)
a) Ele se hospitalizou.
b) Ele foi hospitalizado.

Em (8a) observamos a voz média com a presença do pronome. Note-se que quando
fazemos uma transposição para a voz passiva (8b), admite-se a figura hipotética de um elemento
agentivo envolvido no processo, mas o mesmo não é possível em (8a).
A voz média abriga uma vasta gama de situações tanto sintáticas quanto semântica e às
vezes o limite entre elas é tênue e não há como fazer uma categorização precisa. Por isso, cumpre-
nos fazer a observação que em algumas línguas alguns verbos podem se envolver em construções
passivas, médias e/ou reflexivas. É nesse sentido que Kemmer (1993) propõe as classes
semanticamente médias. Todos os verbos elencados nessas classes possuem, de alguma forma, traços
da voz média, conservando a característica única de que o evento descrito por esses verbos centra-se
em maior ou menor intensidade no sujeito.
De forma genérica, a classificação de Kemmer divide os verbos em dois grupos maiores:
ações corporais e cognitivas.
Nos verbos de ações corporais a possiblidade de eles serem monoargumentais é mais
reduzida, como por exemplo, em lavar-se, vestir-se, ajoelhar-se, sentar-se etc, porque estes verbos,
dependendo do contexto informacional, podem ser praticados a favor do sujeito sintático ou não, o
que indica que eles podem configurar em sentenças ativas, passivas, médias e reflexivas.
As ações cognitivas implicam um envolvimento mais centrado no sujeito, como em
alegrar-se, arrepender-se, esquecer-se, culpar-se. Observa-se que estes verbos são menos produtivos

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para descrever ações que envolvem dois participantes, o que significa que eles são mais produtivos
às construções de voz médias.
Com isso, entendemos que a distinção entre uma voz ou outra depende de um conjunto
de fatores: semântica do verbo – que envolve valência e diátese –; relação estabelecida na sentença
com os outros elementos; presença ou não da marca formal nas diferentes línguas.
A partir da noção de que o evento centra-se no sujeito ou completa-se em outro elemento
envolvido é que discutiremos as possíveis diferenças entre a voz média e a reflexiva.

2. A VOZ REFLEXIVA: TRAÇOS FORMAIS E SEMÂTICOS EM RELAÇÃO À VOZ MÉDIA

Na seção anterior explicamos que muitos linguistas consideram a voz média e a reflexiva
como um único fato linguístico. Essa argumentação, que considera mais o aspecto semântico do que
o formal, é forte, sobretudo em relação ao português, uma vez que ambas as vozes possuem a mesma
marca morfossintática, ou seja, nas situações em que a média é marcada com o pronome clítico.
Entretanto, em nossa concepção, e com fundamentos em outros teóricos, especialmente Camacho
(2003) em relação ao português e Kemmer (1993), ao inglês, não concordamos que as duas tratem de
um mesmo fato linguístico, muito embora elas possuam fortes semelhanças e, às vezes, as diferenças
entre elas sejam sutis.
Considerar essas vozes como um fenômeno único é uma omissão quanto aos diferentes
níveis de análise, especialmente em relação sintático no que diz respeito ao tipo de estrutura
requisitada no nível profundo da sentença. A voz possui motivação pragmática, que se organiza na
sintaxe para manifestar diferentes eventos semânticos. Portanto, os aspectos semânticos e sintáticos
devem ser considerados tanto para a configuração quanto para a descrição mais completa da voz.
Na opinião de Camacho (2002), existe uma diferença entre a média e a reflexiva e a
recíproca. Ela reside no fato de que nas médias o clítico não preenche uma posição estrutural 10 de
Arg2 em um SN2. Ou seja, o verbo não solicita dois argumentos, que mantenham um mesmo referente
sujeito. Ele explica que

o uso do mesmo marcador aproxima as construções médias das reflexivas-recíprocas, mas,


diferentemente destas, naquelas o clítico não permite por um lado, comutações com outros
termos possíveis no mesmo paradigma e, por outro, não estabelece com o sujeito uma relação
semântica de correferência e sintática de co-indexação, o que só seria possível se houvesse

10
Conforme a gramática funcional, especialmente na proposta de Dik (1989), uma sentença é definida primeiramente no
nível profundo a partir da seleção do predicado (verbo) que conforme sua valência solicita os argumentos: Arg1 (SN1) à
esquerda, que desempenhará a função sintática de sujeito, e Arg 2 (SN2) à direita, desempenhando a função sintática de
objeto.
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duas posições estruturais disponíveis para serem preenchidas por SNs referenciais idênticos
(CAMACHO, 2002, p. 293).

Para esse raciocínio, ele apresenta os seguintes exemplos:

(9) a melhor maneira que ele encontrava para se defender era atacando.
(CAMACHO, 2003, p. 94)
(10) é que ela realmente procura se aperfeiçoa (r) dentro daquilo que faz.
(CAMACHO, 2002, p. 293)

Em (9) o verbo (“defender”) solicita dois argumentos na estrutura argumental, que


remetem a um único referente, codificado na oração pelo pronome “ele”. O SN2 é ocupado pelo
clítico se, que é anafórico e correferencial ao sujeito (ele). O pronome, nesse caso, ocupa uma posição
de argumento. Isso pode ser comprovado através da sua substituição por qualquer nome. Ao se fazer
uma comutação da sentença para a voz ativa, é mantida a integridade semântica do verbo e da
estrutura sintática da sentença, como em “a melhor maneira que ele encontrava para defender a ideia
era atacando”. Veja que o pronome reflexivo se foi substituído por ideia sem nenhuma alteração na
sintaxe e nenhum estranhamento na semântica. Assim sendo, a função do pronome é indicar a voz
reflexiva, em que o sujeito é agente e afetado pelo processo verbal.
Por outro lado, em (10), o se é um SN não argumental, pois não é solicitado pelo verbo,
logo não existem duas posições para serem preenchidas, assim ele é somente anafórico ao sujeito. A
troca do pronome por outro termo nessa sentença não é possível, uma vez que ele não é um co-
indexador. Considerando que aperfeiçoar é um verbo transitivo, o se é considerado um redutor de
argumentos. Neste caso, ele reduz o segundo argumento, logo, trata-se de voz média.
Até então, para Camacho (2002), a diferença entre a voz média, e a voz reflexiva e a voz
recíproca, encontra-se no pronome. Isso parece simplificar demais uma questão de tamanha
complexidade. Entretanto, suas explicações pautam-se na funcionalidade significativa do pronome,
enquanto argumento requerido, no primeiro caso, e da não funcionalidade como argumento, no caso
da voz média. Em outras palavras, em (9), o clítico representa um termo requerido valencialmente no
esquema argumental, mas em (10), ele é ‘apenas’ um marcador medial sem posição valencial. O
pronome, então, exerce duas funções diferentes, no caso da marca para a voz média, em que o próprio
Camacho (2002) a define como um critério formal para distinção dessa voz.
Palmer (1994) argumenta que muitas línguas possuem construções reflexivas em que o
objeto é indicado como correferencial ao sujeito por meio de um pronome, como por exemplo o onself

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em inglês e se laver em francês. Ainda assim, Palmer considera que a reflexiva é uma espécie ou
equivalente à média. Mesmo diante da posição de Palmer, entendemos que em português há uma
diferença significativa entre média e reflexiva.
No português, temos o pronome reflexivo (se, me) ou uma construção com mais itens
lexicais como “a si mesmo” para explicar que o sujeito e objeto são uma mesma entidade, e portanto,
a ação é reflexa ao sujeito.
Em inglês, a média não é marcada e a reflexiva em alguns casos recebe marcações, mas
ao contrário do português, que temos duas formas opcionais de marcação (clítico e construção com
mais itens lexicais), no inglês os pronomes variam apenas em relação à pessoa (himself, herself,
myself). Palmer (1994) apresenta os seguintes exemplos para a voz reflexiva:

(11) I wash myself.


(12) Vartan dressed.

A primeira é marcada com a palavra myself (eu mesmo), a segunda não possui marca,
mas pode ser traduzida como Vartan vestiu a si mesma. Nas duas formas, é muito clara a noção de
que a ação verbal parte de um sujeito agente e de que ele mesmo é afetado por ela.
Esses dois verbos constam na relação proposta por Kemmer (1993) como os
semanticamente médios, incluídos no grupo de verbos que indicam movimentos com o corpo, e por
isso, são mais indicados à voz reflexiva. Se considerarmos esses dois verbos na estrutura argumental
profunda, ambos requisitam dois argumentos: i) alguém lava algo ou alguém e ii) alguém veste
alguém. Isso nos comprova que, conforme a proposta de Camacho para o português, esses verbos são
reflexivos.
A partir do que consta nos exemplos de (11) e (12) e das considerações feitas sobre eles,
inferimos que a voz reflexiva distingue-se quanto à marcação no inglês e no português, mas, por outro
lado, tanto em uma língua quanto em outra existe diferença na natureza semântica entre média e
reflexiva.
A fim de comprovar a relatividade das marcas nas diferentes línguas, Palmer (1994)
recorre ao Western Armenian para mostrar que a mesma marcação pode estar presente em vozes
diferentes como a passiva e a reflexiva, e nesse caso, são as relações sintáticas e semânticas que
estabelecem as diferenças entre elas.

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(13)
a) Namag-ǝ kǝr-v-ets-av Mari-e-n
letter-the write-v-AOR-3SG Mari-ABL-the
‘The letter was written by Mari’.

b) Vartan- ǝ hak-v-ets-av
Vartan-the wear-v-AOR-3SG
‘Vartan dressed.’

Em (13a) o “v” (em negrito) é a marca da voz passiva, que por sua vez é a mesma marca
que está em (13b) indicando a voz reflexiva. Na opinião de Palmer, o uso da mesma forma talvez
possa ser explicado em termos de uma detransitivização. Em (13a), como a voz é passiva não há a
necessidade da presença da entidade agentiva, portanto, a transitividade é mais baixa. Em (13b), o
objeto paciente é idêntico ao sujeito agente, que mesmo não sendo declarado, solicita uma maior
transitividade, ou seja, a presença de um elemento que represente o paciente da ação do verbo.
A explicação de Palmer (1994), especialmente a que se refere ao exemplo (13), vai ao
encontro das propostas de Kemmer e de Camacho acerca da diferenciação entre a voz média e a
reflexiva.
Sobre essa distinção entre as vozes, Camacho(2002) argumenta que a reflexividade é mais
relacionada com verbos semanticamente de ação, cujos sujeitos são animados e humanos. A média
se manifesta em predicados monoargumentais, preferencialmente de processo, nos quais o evento não
é resultado de outra entidade causativa.
O sujeito, no caso da média, é interior ao processo, conforme Benveniste (2005), ou
simplesmente afetado, sem, porém, haver uma ação explícita, física e humana. Os exemplos de
Camacho (2002, p. 296) para esses casos são os seguintes:

(14)
a) João cortou o bolo.
b) João cortou-se
c) a palavra mesma por si já se explica
d) a gente se desgasta mais.

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A capacidade de desencadear uma ação é mais prototípica em “João” e inexistente em


“bolo”. Assim, em (14 “a” e “b”) o sujeito é (+ animado, + humano) e o verbo indica (+ação). Em
(14b) existe uma ação física e um afetamento do sujeito, caracterizando a reflexiva.
Por outro lado, em (14 “c” e “d”) os eventos são processos, os sujeitos inanimados, os
verbos não implicam ações e não são resultados causativos de outras entidades, caracterizando, dessa
maneira, a voz média. Nesses casos, “o sujeito parece ter alguma qualidade própria para gerar o
processo que só dele emana” (CAMACHO, 2002, p. 296).
O pronome clítico em (14b) é um argumento valencial requerido pela predicação e exerce
o papel anafórico e correferencial ao sujeito (Arg1). Esse pronome pode ser substituído por qualquer
outro termo do mesmo paradigma que o sentido do verbo mantém-se inalterado, como, por exemplo,
ocorre em (14a). Isso prova que o pronome assume uma função sintática definida, a do objeto.
Por outro lado, os clíticos que constam em (14c) e (14d) não admitem substituição por
outros termos, sob pena de que a integridade do conteúdo da sentença seja comprometido.
Nas três ocorrências, com a presença do pronome, ocorre “fechamento semântico do
predicado”11, ou seja, o afetamento do sujeito. E, a diferença consiste no fato de que na reflexiva
(14b), ele é anafórico e correferencial ao sujeito, já nas médias (14c) e (14d), ele é apenas anafórico
ao sujeito (CAMACHO, 2002, p. 294).
Camacho (2003) alerta também sobre o fato de que as construções médias não admitem
a permuta do clítico por expressões que ele intitula de reforço, tais como a si mesmo, por si mesma,
a si próprio, um ao outro, etc. Para ele, essas expressões são admissíveis como mecanismos de
diferenciação entre reflexivas e recíprocas.
Camacho (2003) atenta para o fato de que as médias não poderiam se limitar ao “efeito
semântico da entidade na função de sujeito na predicação” envolvendo verbos dinâmicos e não
controlados (verbos de processo), uma vez que isso deixaria de fora da classificação da voz média
construções com um grande número de verbos pronominais, porque dentre eles estão verbos que
apresentam predicações dinâmicas e de controle (verbos de ação) bem como não dinâmicas e
controladas (verbos estativos). Assim, ele encontra, nas propostas teóricas de Klaiman (1988 apud
Camacho, 2002) e de Kemmer (1994) uma elaboração diferenciada da noção de afetamento do sujeito
a partir da consideração das classes semânticas do verbo e de um continuum que vai do ponto Inicial
ao Ponto de Chegada.

11
A expressão “fechamento semântico do predicado” é empregada por Camacho (2003) para expressar que nessas
orações, em função da presença do pronome, a significação é obtida pela relação entre o sujeito e o verbo, não
necessitando sintaticamente de outros termos, por isso, ela fecha-se na predicação não saindo do âmbito do sujeito.
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Kemmer (1993) sustenta-se na noção de transitividade/detransitividade de Hopper e


Thompson (1980) e de Givón (1984) para equacionar os domínios médio e reflexivo-recíproco. Para
Givón, a distinção entre essas vozes está no grau de transitividade e, por meio de critérios pragmáticos
e sintáticos, ele considera a voz média, assim como a passiva, a impessoal e a reflexiva como
detransitivas, porque em graus diferentes apresentam um decréscimo de transitividade. A
detransitividade apresenta três características, a saber: i) demoção do agente; ii) promoção de um
elemento não-agente à função de tópico; iii) estativização do verbo: o evento é representado como
estado resultante.
Na proposta de Kemmer, as relações entre os termos da oração ocorrem pela mesma
forma que em uma ação transitiva, entretanto envolvem apenas um participante e se processa no
âmbito cognitivo, no qual a entidade iniciadora e a entidade receptora estabelecem um contato mental.
Fundamentando-se no postulado de Haiman (1980), Kemmer (1993) diferencia as vozes
considerando que nas reflexivas e nas recíprocas é possível individualizar conceitualmente os
participantes por seus diferentes papéis semânticos, e nas médias isso não é possível.
O parâmetro de Kemmer é apresentado pela figura a seguir:

Fig. 1.: Grau de distintividade dos participantes - continuum de Kemmer (1993, p. 209)

Evento dois participantes Reflexivo Médio Evento um participante

+ _
Grau de distintividade dos participantes

Este continuum propõe uma gradação entre eventos com dois participantes e com um
participante, respectivamente, mais transitivos e menos transitivos. As construções médias e
reflexivas são intermediárias a esses eventos. A proposta de Kemmer considera a perspectiva pela
qual o evento é descrito, partindo de um participante chamado Iniciador e seguindo em direção ao
outro participante, o Ponto de Chegada. Esse seria um evento transitivo prototípico com duas
entidades envolvidas, que desempenham dois papéis semânticos distintos. Pela mesma forma, os
eventos reflexivo e recíproco ou o médio também envolvem dois papéis semânticos, mas a entidade
referencial é a mesma. Nos dois primeiros tipos de eventos, é possível ocorrer uma distinção entre
duas partes conceptuais discretas, no segundo, não é possível essa distinção (KEMMER, 1993, p. 72).
Quando o iniciador e o ponto de chegada podem ser entidades distintas e os eventos se
aproximam desse ponto do continuum são reflexivos; ao contrário, quando iniciador e ponto de

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chegada podem ser a mesma entidade, envolvendo um grau muito baixo de transitividade, e os
eventos se aproximam desse ponto, são médios (KEMMER, 1993).
A classificação semântica dos verbos, proposta por Kemmer, concentra-se, por um lado,
em verbos que descrevem eventos corporais, por isso, ela classifica a média como uma categoria
semanticamente unitária. Por outro lado, os verbos de atitude mental, que codificam médias de
cognição, emoção e fala emotiva, normalmente implicam predicados menos transitivos. Assim, de
acordo com a figura, o reflexivo se aproxima do transitivo porque, conceptualmente, há a exigência
de dois participantes. O referente é único para iniciador e ponto de chegada, podendo haver a
distinção dos papéis temáticos. A média está mais distante do evento transitivo, porém a ação verbal
não sai do âmbito do sujeito e conceptualmente é inadmissível o envolvimento de dois participantes
no processo verbal.
A partir das propostas de Camacho (2002, 2003) e Kemmer (1993, 1994) descritas
anteriormente, infere-se que há em português as categorias da voz média e da voz reflexiva-recíproca.
Elas possuem em comum o fato de que o sujeito sintático é responsável por desencadear o evento
descrito pelo predicado, que se funde na mesma entidade referencial, que é o Iniciador e o Ponto de
Chegada do evento. Ambas se diferenciam porque na média não é possível fazer uma distinção entre
a entidade referencial, já nas reflexivas-recíprocas a entidade se divide em subpartes discretas, ou
seja, implica a existência de dois participantes do processo verbal. Pelo aspecto morfossintático, as
vozes possuem um único marcador para medialidade e para a reflexividade, o pronome clítico, que,
no caso das médias, é apenas anafórico; nas reflexivas-recíprocas é anafórico e correferencial ao SN
sujeito. E, ainda, a noção de reflexividade pode ocorrer com outras formas alternativas como “a si
mesmo” e “a si próprio”.
As concepções de Camacho e de Kemmer confirmam a proposta de Palmer e de Kennan
e Dryer sobre a existência de uma noção de centralidade do sujeito que ocorre na voz reflexiva e na
média, e isso é inerente a várias línguas. Isso talvez justifique o fato de tanta divergência entre a
categorização entre essas vozes e a inclusão de uma em outra.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como observamos, as vozes médias e reflexivas gozam de uma recepção teórica


divergente quanto às suas realizações nas línguas observadas. Ainda assim, é possível observar
características comuns entre essas divergências tanto em relação à forma quanto ao sentido que elas
produzem.
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Sobre a forma, podemos concluir que essas vozes, em sua maioria, recebem uma
marcação morfossintática que pode ser por exemplo: única para vozes diferentes como o v em
Western Armenian para a reflexiva e passiva; o se, em português, para a reflexiva e média em terceira
pessoa; os pronomes como myself, himself, themself e outros, para as reflexivas em inglês. Ainda
sobre a questão formal, em inglês, a média não recebe marca e, em português, recebe em alguns
casos como por exemplo, esquecer-se, lembrar-se, afogar-se etc. e, em outros verbos, como morrer,
não recebe.
Reafirmamos a compreensão de que tanto na voz média quanto na reflexiva existe a
centralidade da ação/processo do verbo no sujeito, mas, por outro lado, é a percepção de que os
elementos envolvidos da ação do verbo podem ser distintos que nos autoriza entender, até este
momento, que a média e a reflexiva são vozes distintas, muito embora elas possam pertencer a um
mesmo domínio semântico.
Em todo caso, a discussão sobre a natureza e as características dessas vozes mostra-se
como um campo aberto para diferentes olhares, considerando línguas diferentes, o que significa que,
de forma nenhuma, nossas conclusões são definitivas, considerando a grande proporção desses
fenômenos linguísticos que envolve diferentes níveis de análise linguística.

THE MIDDLE VOICE AND THE REFLECTIVE VOICE: AFFINITIES AND DIFFERENCES

ABSTRACT
In this paper, we propose a discussion about the configurations of the middle and reflective voices,
establishing, as far as possible, a comparison of some formal and semantic features of them in
Portuguese over other languages. For this, we define some criteria considering affinities and
differences over the middle voice in relation to passive and reflexive, noting how these criteria are
confirmed or refuted in the analyzed data. The middle and reflective voices are of various divergences
as to their distinctions and this is due, in part, to its not distinction between the semantic and syntactic
criteria in relation to rankings as well as the distinguishing limits between them. To position ourselves
on this, we count with Benveniste (2005), Camacho (2002, 2003), Kemmer (1993, 1994), Keenan
and Dryer (2007) and Palmer (1994) to establish criteria of distinguishing the types of voice,
especially , the costs of morphosyntactic marking and meaning of these voices regarding the centrality
and affectedness of the subject.

Keywords: Middle voice; Reflective voice; Affectedness of the subject; Morphosyntactic mark.

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REFERÊNCIAS

BENVENISTE, È. Problemas de lingüística geral. Campinas: Pontes, 2005 [1966].

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CAMACHO, Roberto G.. Construções de voz. In: ABAURRE, B. M.; RODRIGUES, A. C. S. R.


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GIVÓN, T. Syntax: a functional-typological introduction. v. 1. Amsterdam/Philadelphia: John


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http://www.jstor.org/stable/413757.> Acesso em 28 mai. 2011.

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