3 Bienal Da Bahia e Seus Arquivos Invisíveis
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Catalogação na Publicação
Serviço de Biblioteca e Documentação
Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo
Ana Pato
3ª Bienal
da Bahia
e seus
arquivos
invisíveis
DIÁLOGOSTRANSDISCIPLinares:Arteepesquisa /279
Este artigo tem como objetivo adensar as discussões que têm como
pressuposto investigar as histórias das exposições, no Brasil. Para tratar da questão,
meu foco, aqui, será analisar o projeto de realização da 3ª Bienal da Bahia2 (2014),
evento de arte que aconteceu em Salvador, de 29 de maio a 7 de setembro, e em
particular, a uma de suas estruturas temáticas, dedicada a Psicologia do Testemunho
e ao desenvolvimento de ações e pesquisas em torno de arquivos. Com referência ao
tema, o projeto da Bienal traz o comentário de Marc Bloch (1921):
O presente trabalho está divido em duas partes, das quais a primeira é uma
introdução à história da Bienal da Bahia, e a segunda, à experiência curatorial no
Arquivo Público do Estado da Bahia.
Primeiramente, será necessário abordar a história da Bienal da Bahia e sua
relação com a memória, mais especificamente, com a memória traumática. A 3ª
Bienal da Bahia, acontece 46 anos depois de sua última edição, em 1968, fechada
pela ditadura militar (1964-1985).4 Em vista disso, ao retomar o projeto de Bienal para
a Bahia, a urgência de constituir um arquivo tornou-se premente. Com o fechamento
violento da 2ª Bienal, a prisão dos organizadores, e a apreensão e desaparecimento
de obras consideradas subversivas pelo regime militar, qualquer documentação que
existisse no período sobre o evento desapareceu ou foi esquecida.
Não há dúvida, de que a perseguição teve um impacto maior nos meios
artísticos com grande alcance popular, como a música, o teatro e aos meios de
comunicação. Entretanto, a repressão a 2ª Bienal da Bahia, não deve ser entendida
como um ato isolado, pelo contrário. Para Frederico Morais, o fechamento de
exposições, a censura, a destruição de obras, a perseguição de artistas, críticos
e professores de arte era constante na época. (CALIRMAN, 2007; RIBEIRO, 2013).
É possível fazer uma analogia entre o fechamento da Bienal e o apagamento
não só de sua memória, mas de um período de efervescência das artes na região. A
partir de 1969, com a promulgação do AI-5, o endurecimento da repressão militar muda
drasticamente o rumo da produção artística, no país. (AMARAL, 2004) Na Bahia, paralisa
a criação de um circuito local para as artes visuais, e resulta, como consequência, na
invisibilidade e no isolamento (ainda hoje) do circuito nacional, de artistas que optaram
por permanecer produzindo seus trabalhos a partir do Nordeste.5
Contudo, em 1966, a situação era outra. A 1ª Bienal surge com um projeto
bastante ambicioso: propor um contra discurso ao modelo de Bienal articulado
por São Paulo. Criada em 1951, por um grupo de empresários, a Bienal de São
Paulo foi inspirada na Bienal de Veneza6 e a ideia era transformar o evento numa
vitrine para o circuito internacional da arte. De certa maneira, para o Regime de
4. Em 13 de dezembro de 1968, o regime militar decreta o Ato Institucional nº 5, que vigora no país
até 1978 e representa o momento mais duro da ditadura no Brasil. A abertura da 2ª Bienal foi no
dia 20 de dezembro e seu fechamento no dia 23 do mesmo mês.
5. Entre esses nomes, poderia citar os artistas, Almandrade (1953-), Juarez Paraíso (1934-), Juraci
Dórea (1944-) e Rogério Duarte (1939-), entre outros.
6. A criação da Bienal de Veneza (1895) tem influência direta das “Feiras Mundiais”, projetos
expositivos de grande porte que surgem na Europa no final do século 19, com o intuito de
oferecer uma espécie de apanhado da “experiência colonial europeia”, por meio de exposição
em grandes pavilhões.
DIÁLOGOSTRANSDISCIPLinares:Arteepesquisa /281
7. A Comissão Nacional da Verdade foi sancionada em 2011, com o intuito de investigar, entrevistar
e reunir documentação sobre a memória traumática da ditadura militar, no país.
282\ ARTE, MEMÓRIA E ARQUIVO
8. Curiosamente, uma das apreensões elencadas pela Secretaria de Cultura do Estado da Bahia
sobre a viabilidade de realização da 3ª Bienal tratava-se do fato da Bahia não possuir o espaço
tradicional do modelo expositivo de Bienal, o pavilhão. A Bienal de Havana, também um evento
financiado pelo Estado, torna-se, então, um modelo real, bem-sucedido e de convencimento
sobre a viabilidade de realizar uma Bienal sem pavilhões (comentário do Diretor Artístico da 3ª
Bienal Marcelo Rezende)
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9. Devo o comentário sobre Sholette ao texto de Gerardo Moschera e Nikos Papastergiadis, “The
Geo-Politics of Contemporary Art”, (2011, p.3).
10. Santos, B. e Meneses, M., Epistemologias do Sul, editado por Boaventura de Souza Santos e
Maria Paula Meneses. Coimbra: Edições Almedina, 2010, p.13 [2ª ed.].
284\ ARTE, MEMÓRIA E ARQUIVO
espaços. Isto posto, tornou-se urgente indagar: Quem criou esses modelos?
Motivados por quais razões? Em que tempo e espaço?
Essa talvez seja uma das perguntas constitutivas de todo o projeto curatorial
da 3a Bienal da Bahia, presente em todo o processo de reconstrução de um
projeto de Bienais para a Bahia, um lugar e cultura que impõem um outro
tempo, um outro modo de organização; para nós, a questão tem sido sobre
de que maneira conseguir trabalhar, realizar um projeto justo, não “apesar”
dessas circunstâncias, mas, sobretudo, “com” essas circunstâncias,
aproximando-se da Bahia e suas questões a partir do encontro, do contato,
perseguindo uma ideia de conversa permanente; sem falsear o processo,
mas revelando-o, sem esconder o que há de frágil, mas procurando
entender qual conhecimento ele pode nos fornecer quando reconhecemos
uma inteligência nessa mesma fragilidade.11
11. Trecho de carta pública exposta durante a Bienal e escrita pelos curadores da 3ª Bienal da
Bahia em resposta a um grupo de curadores dissidentes que se retiraram do projeto, sob o
argumento de que o modelo revelava falta de conhecimento sobre os procedimentos vigentes
no circuito da arte.
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12. Filipovic, E., “The Global White Cube”, in Barbara Vanderlinden, Elena Filipovic (orgs.), The
Manifesta Decade, Debates on Contemporary Art Exhibitions and Biennials in Post-Wall Europe.
Massachusetts: MIT Press, 2005, p. 46. Consultado a 10.9.2014, em <http://www.on-curating.
org/index.php/issue-22-43/the-global-white-cube.html#.VBhEcC5dU2F>. (“If the white cube
managed to be both the ideal display format for the MoMA’s and the Third Reich’s [Grosse
deutsche Kunstausstellung , 1937] respective visions of modern art, despite their extremely
different ideological and aesthetic positions, it is because the display conceit embodied qualities
that were meaningful to both, including neutrality, order, rationalism, progress, extraction from a
larger context, and, not least of all, universality and (Western) modernity”).
13. Sobre as estruturas curatoriais da 3ª Bienal da Bahia ver catálogo:<http://issuu.com/
bienaldabahia/docs/jornal_100_dias_small>
286\
A arte no Arquivo
Como primeiro passo, será necessário investigar a história do lugar. A esse respeito,
pode-se arriscar a hipótese de que, para entendermos os arquivos e seus usos, é essencial
nos dedicarmos a compreender, como propõe Burton (2005), questões anteriores – de que
matéria são feitos os arquivos? Qual a história dos arquivos? Como e por que foram criados?
O Arquivo Público do Estado da Bahia14 foi criado em 16 de janeiro de 1890, e é
considerado o segundo arquivo mais importante do Brasil, depois do Arquivo Nacional
(1838), no Rio de Janeiro. Além do valor de sua documentação, o Arquivo Público está
localizado num espaço arquitetônico de relevância histórica, o Solar Quinta do Tanque,
tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico Nacional, em 1949.
Na cidade de Salvador, a história está impregnada na arquitetura de suas antigas
casas e ruínas. Em 1552, Tomé de Souza (governador-geral do Brasil) doa à Companhia
de Jesus as terras para a construção da Quinta do Tanque. A Quinta funcionou como
Colégio, casa de repouso e laboratório científico dos jesuítas, para pesquisas relativas
a produtos agrícolas e estudos sobre as saúvas. Em 1759, com a expulsão dos jesuítas
do Brasil, a Quinta é abandonada. De 1784 e 1938, o local passa a abrigar um hospital
para leprosos, ficando conhecido como a Quinta dos Lázaros. A Quinta é relegada
novamente e, em 1979, é restaurada para receber, no ano seguinte, o Arquivo Público.
Na época, a arquitetura colonial de antigos conventos, hospitais, fortes
e presídios – com suas paredes largas, poucas vidraças e pátios internos – era
recomendada como espaço adequado para solucionar o problema da preservação de
documentos, em países tropicais. Este é um dos assuntos debatidos no fundamental
Seminário de Tropicologia (1966-2001), organizado pelo sociólogo Gilberto Freyre.
O escopo do Seminário era criar um campo de cruzamento de saberes científicos,
humanísticos, artísticos e práticos voltados à produção de conhecimento sobre o
288\ ARTE, MEMÓRIA E ARQUIVO
15. Sobre o Seminário, Sebastião Vila Nova comenta ainda: “Não é demais lembrar que pertence
Gilberto Freyre a um geração que cresceu no ambiente intelectual de um Brasil no qual predominava
a perspectiva pessimista em relação às nossas possibilidades como civilização, perspectiva esta
resultante de dois preconceitos, tidos então como científicos: o racial, que afirmava não ser possível
o desenvolvimento de civilizações autênticas em sociedades mestiças, ou nas quais predominasse o
elemento negro, e o preconceito do determinismo geográfico, segundo o qual é impossível a formação
de sociedades econômica, política e culturalmente expressivas no ambiente dos Trópicos”. Vila Nova,
S., Apresentação, in Lúcia Carvalheira Cunha; Lúcia Gaspar; e Virgínia Barbosa da Silva (orgs.), Em
torno do Seminário de Tropicologia, 1966-2001: Uma contribuição histórico-bibliográfica. Recife:
Fundação Joaquim Nabuco, 2001.
16. Transcrição da fala de Celina do Amaral Peixoto Moreira Franco, diretora do Arquivo Público
Nacional, in Gilberto Freyre (org.), Anais do Seminário de Tropicologia: Arquivos Públicos em
regiões tropicais. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 14 de junho de 1983, p.135.
17. Em julho de 2014, dez dias antes da abertura da exposição no Arquivo Público, foi aprovada,
em caráter de urgência, uma obra emergencial no prédio para reforma do telhado.
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Fig. 4. Giselle Beiguelman, Beleza convulsiva tropical, instalação multimídia site specific, 2014.
3ª Bienal da Bahia. Arquivo Público do Estado da Bahia. Foto: Alfredo Mascarenhas
18. Menne-Haritz, A. “Access – the reformulation of an archival paradigm”. In: Archival Science 1:
57-82, 2001, p. 59 (“Archives do not store memory. But they offer the possibility to create memory.
Their function is that of amnesia prevention. They allow us to construct memory, refine it, correct it
or reassure it whenever it is needed.”).
19. Os artistas que participaram do projeto foram: Eustáquio Neves, Gaio, Giselle Beiguelman,
Ícaro Lira, José Rufino, Magdalena Campos-Pons & Neil Leonard, Omar Salomão, Paulo Bruscky,
Paulo Nazareth e Rodrigo Matheus. Foram expostas ainda obras dos artistas Juarez Paraíso,
Juraci Dórea e S. da Bôa Morte.
20. Delegacia responsável por reprimir jogos ilegais, vadiagem, prostituição e controlar jogos e
diversões, incluindo as práticas de magia. Foi nesse contexto que a repressão aos terreiros de
candomblé foi enquadrada. A Delegacia foi extinta no país na década de 1970.
DIÁLOGOSTRANSDISCIPLinares:Arteepesquisa /291
Sobre o Museu
21. Queiroz, M., “Identidade cultural, identidade nacional no Brasil”, Tempo Social, 1, São Paulo,
Edusp, 1989, p.32.
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Fig.7. Paulo Nazareth e Ícaro Lira, Máscaras Mortuárias, fotografia, 2014. 3ª Bienal da Bahia.
22. Schwarcz, L., O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-
1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p.317.
294\
Na Bahia, o apreço pelos modelos raciais de análise torna-se ainda mais evidente.
O cruzamento racial será o substrato para explicar a criminalidade, a loucura, a
degeneração, os problemas econômicos e sociais (SCHWARCZ, 1993; PINHO, 2008).
O Museu exibia, em sua coleção, além de duas múmias, sete cabeças de
cangaceiros do bando de Lampião, mortos pela polícia em 1938, conservadas
em formol. Depois de anos de embate público entre a família dos cangaceiros e o
diretor do Museu, finalmente, em 1969, a família consegue o direito de enterrar as
cabeças de seus mortos. Para Estácio de Lima, analisar e manter as cabeças do
bando expostas representava uma operação importante no desenvolvimento dos
estudos de identificação da biotipologia do marginal, como propunham Lombroso
e Rodrigues. 23 Antes de liberar as cabeças, o Museu produz máscaras mortuárias
que permanecem em exposição até o fechamento do Museu, em 2005.
Em 1979, o Museu é transferido para o Instituto Médico-Legal Nina
Rodrigues, no departamento da Polícia Técnica do Estado da Bahia. Apesar
de trazer em seu nome a antropologia e a etnografia, o Museu não oferecia ao
23. Sobre o tema, ver: Jasmin, Élise Gruspan, Lampião senhor do sertão: vidas e nortes de um
cangaceiro. São Paulo: Edusp, 2004.
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Nada era dito ao visitante sobre a composição da mostra, sobre sua ordem
expositiva: o tácito convite gritava que era só olhar e ver. A justaposição dos
três repertórios – monstros da natureza, testemunhos do crime, objetos de
culto dos negros – não era justificada por qualquer argumento. Mas haverá
artifício ideológico mais poderoso do que este – um recurso que mima,
parodia e reifica a evidência?24
24. Serra, O., “Sobre psiquiatria, candomblé e museus”. Caderno CRH, v.19, n.47, Salvador, maio/
agosto, 2006, p.314.
25. Sobre o assunto, ver: Serra, Ordep, A tenacidade do racismo. Relatório apresentado à Koinonia
Presença Ecumênica e Serviço a respeito do caso do Museu Estácio de Lima e de outras agressões
à memória dos cultos Afro-Brasileiros, 2011. Consultado a 13.7.14, em:<http://www.koinonia.org.
br/tpdigital/uploads/24_A_TENACIDADE_DORACISMO_ORDEP_Rev.pdf>.
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zado em seis seções, a saber: criminalística, medicina legal, polícia técnica, antropologia
do negro, antropologia do cangaceiro e antropologia de índio. Ficou acordado que as três
seções de antropologia seriam emprestadas à Bienal, bem como toda a documentação
encontrada, além de objetos e materiais variados das outras seções.
A análise dos livros de assinatura e relatórios do Museu mostra que, nos anos
1980, o Museu recebia visitas de escolas públicas, jovens na faixa etária entre doze e
dezessete anos. Os arquivos do Museu estão hoje disponíveis para consulta no Arquivo
Público, o tratamento arquivístico da documentação foi feito durante a Bienal, numa
parceira entre o Arquivo Público e a Bienal e contou com a coordenação da equipe de
arquivistas. Como parte da proposta curatorial a equipe de mediadores da exposição
Arquivo e Ficção, participou das etapas de higienização mecânica, organização e
descrição arquivística da Coleção.26
26. Conforme inventariado pela equipe do Arquivo Público, a Coleção do Museu Estácio de Lima
reúne dezenove dossiês contendo quatrocentos e três documentos textuais, seiscentos e noventa
e sete documentos iconográficos e oito negativos.
Fig.10. Maria Magdalena /297
Campos-Pons & Neil Leonard,
Conversando a Situ/Acted,
2014.
3ª Bienal da Bahia. Arquivo
Público do Estado da Bahia.
Foto: Alfredo Mascarenhas.
de ação que aproxima arte e espaços de memória. Uma pergunta que se coloca para
esse tipo de ação, que atua no limite entre arte e história, é se estaríamos no campo
da arte ou da história. Mas, faz sentido, ainda, esse tipo de indagação? Não seria essa
uma nova forma de contar as histórias?
Entretanto, não se trata de resgatar a memória esquecida, afinal só é possível
resgatar suportes da memória (documentos, fotografias, objetos, relatos, etc) mas
nunca memórias propriamente ditas (MENESES, 2007, p.30). Pelo contrário, trata-se
de evocar, no presente, o trauma, sem fixá-lo no passado, mas sim atualizando-o e
emprestando-lhe novos sentidos. É nesta torcedura que se localiza o modelo de ação
proposto pela 3ª Bienal da Bahia.
Referências