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Resumo:
A dívida pública é um instrumento de poder, com causas e consequências diferentes dependendo da
posição hierárquica em que o país devedor se encontra. Enquanto a Inglaterra garantia a expansão
de seu poder através do aumento de sua dívida pública, construindo seu império, endividava a
América Latina em sua moeda. Entretanto, no caso desta última, a dívida a submetia ao poderio
inglês, criando neste subcontinente Estados de soberanias bastante limitadas. Dependendo de capital
para a construção de seus Estados, sua dívida unia diversos interesses, tanto políticos quanto
econômicos. Mas mais do que isso, essas dívidas possibilitaram a expansão da libra, e
consequentemente, o padrão monetário internacional que se montava naquele período. Para a
Inglaterra, uma estratégia, e para a América Latina, a única opção. Este artigo tem como proposta
estudar alguns aspectos da crise da dívida latino-americana do primeiro quartel do século XIX.
Palavras chave: América Latina, Dívida Pública, Poder Global, Moeda, independência.
Abstract:
Government debt is an instrument of power, with different causes and consequences depending on
the hierarchical position wherein the debtor country is. While England guarantees the expansion of
his power by increasing its public debt, building his empire, bring Latin America into debt in its
currency: pounds. However, in the Latin America case, the debt submitted to English power,
creating in this subcontinent limited sovereignty States. Depending on capital for the construction of
their States, their debt united various interests, both political as economical. But more than that,
those debts enabled England to expand the pound, and consequently, the international monetary
standard in formation in that period. For England, a strategy, and to Latin America, the only option.
The proposal of this article is to study some aspects of the Latin American debt crisis of the first
quarter of the 19th century.
Key words: Latin America, public debt, Global Power, currency, independence.
1. Introdução: a dívida pública como instrumento de poder
A busca pela expansão de poder, através da conquista de territórios e populações, foi o
motivo que consolidou a associação entre príncipes e banqueiros, entre Poder e Dinheiro, desde
pelo menos o “longo século XIII”. Essas conquistas se davam pelas guerras e ocupações territoriais,
dependiam da contratação de exércitos e mobilização militar, e para tanto, de capital. A captação de
recursos através da tributação foi uma forma de suprir essa necessidade de capital por parte do
príncipe, o que daria origem ainda à produção de excedente e a monetização dos tributos. Daí para
frente o poder ganha mais uma medida: a riqueza em dinheiro que se acumulava, sobretudo através
de tributação e conquistas de guerra. Porém, nem sempre a capacidade de tributar bastava para as
necessidades de financiamento dos príncipes; por outro lado, os “comerciantes-banqueiros”
europeus descobriam nessa necessidade a oportunidade de multiplicar seu dinheiro. Dessa
combinação resulta a relação de endividamento, ainda pessoal, entre príncipes e banqueiros (FIORI,
2007).
Com o desenvolvimento das finanças, do cunho pessoal a dívida foi se tornando estatal:
uma relação entre Estados e financistas de mesma unidade territorial ou economia nacional. O
sistema foi pioneiro na Holanda, que criou instituições como o Amsterdan Wisselbank, e o sistema
de dívida pública nacional, financiado através da bolsa de valores com títulos de longo prazo
(FERGUSON, 2010). A tributação, a moeda nacional e o endividamento público permitiram,
sobretudo a partir dos séculos XVI e XVII, o desenvolvimento de um sistema organizado de crédito
e bancos sustentados nos títulos da dívida pública (FIORI, 2007). Essa nova fase do caráter do
endividamento, foi descrita por Marx como um processo de “alienação do Estado”, que
possibilitaria uma das mais seguras formas de acumulação de capital, já que sem os riscos e
esforços da aplicação industrial, transforma dinheiro improdutivo em capital, favorecendo o “Jogo
da Bolsa e a moderna bancocracia” (MARX, 1996, p. 374).
Exportando essas instituições para a Inglaterra com o advento da Revolução Gloriosa, esse
sistema seria utilizado em grande escala, em que os interesses políticos e econômicos se uniriam,
dando a esta relação o caráter de “interesse nacional”, de força tamanha que possibilitou grande
avanço na busca pela hegemonia mundial (FIORI, 2005). A expansão da dívida pública inglesa
permitiu-lhe tomar empréstimos a juros mais baixos, de forma a possibilitar projetos de longo
prazo, como guerras e conquistas. Permitiu-lhe montar seu império, aumentar sua capacidade de
tributação, e aumentar ainda mais sua dívida, de forma a fazer desta uma forma de tributação direta
de seu império e um instrumento de acumulação de poder e de riqueza nacional.
Mas para todas as nações a dívida pública funciona desta forma? Não. A dívida pública
tem causas e consequências diferentes dependendo da posição hierárquica que o país ocupa dentro
do sistema, o que podemos perceber através da análise do caso da submissão latino-americana ao
capital inglês no início do século XIX. Pedidos ainda no processo de independência, os
empréstimos aos recém-criados países latino-americanos foram os primeiros empréstimos para
Estados fora da Europa denominados em libra (DAWSON, 1998). Da independência política que se
buscava, e posteriormente fora conquistada, resultara uma situação econômica insustentável aos
novos países, que refletia os gastos nas guerras contra a metrópole, e a própria pilhagem a que fora
submetida toda a América Latina durante o período colonial. Da junção da expansão do poder
britânico à necessidade de financiamento latino-americana, nasceu a relação de endividamento
objeto deste trabalho: bancos ingleses passaram a financiar os Estados nascentes.
Entendendo a dívida pública como um instrumento de poder, a Teoria do Poder Global
permite uma diferente leitura do processo de endividamento da América Latina. A partir desta
perspectiva, este artigo tem como proposta estudar a crise da dívida latino-americana do primeiro
quartel do século XIX. Para tanto, este trabalho inicia, após esta introdução, buscando compreender
a constituição do poderio financeiro inglês através da libra, que subordinou a América Latina
através de seu endividamento nesta moeda. Moeda, aliás, em que se negociou a maior parte dos
empréstimos latino-americanos, e país com o qual o Brasil estabeleceu mais acordos comerciais e
financeiros, passando sua dependência de Portugal para a Inglaterra. Em seguida, falaremos do
processo de endividamento e crise dos países latino-americanos, enfocando o Brasil no tópico
seguinte. E por último, as considerações finais do trabalho.
O espaço de circulação da libra esterlina começou a se ampliar para além das fronteiras da
Inglaterra ao longo dos séculos XVII, XVIII e XIX, sobretudo durante os diversos conflitos
ocorridos entre 1689 e 1815 e seus Tratados de Paz, que revelam a estratégia daquele país em
formar um império colonial e financeiro no mundo, e mostra que a hegemonia da Inglaterra se dá
justamente quando esta se consagra como a maior potência militar do mundo (METRI, 2011).
Várias foram as aquisições territoriais inglesas nesse período, mas focaremos aqui em alguns
acordos e conquistas que foram especialmente importantes para o caso da América Latina. Uma
delas foi a conquista através de acordo com a Espanha, do monopólio do tráfico negreiro para as
colônias espanholas da América do Norte, no início do século XVIII, o que já remete a ideia de que
provavelmente os escravos seriam negociados em libras, aumentando a capilaridade da moeda
inglesa e a dependência daquela moeda por parte das colônias espanholas (METRI, 2011).
Mas, ainda mais determinante para a constituição do sistema monetário internacional
fundado na libra, foi o Tratado de Methuen, entre Inglaterra e Portugal, em 1703. Antes desse
Tratado, os dois países já tinham uma relação de comércio bastante desfavorável para Portugal, que
para adquirir as libras necessárias às suas importações exportava ouro à Inglaterra. Esse ouro que
provinha do Brasil aumentava as reservas inglesas, de forma que esta chegou ao fim das Guerras
Napoleônicas com emissão de mais de 400 milhões de libras para seus pagamentos (METRI, 2011).
Para Celso Furtado (1980), o afluxo de ouro do Brasil para suprir sua demanda por manufaturas
inglesas, já produzia pouco efeito sobre a economia portuguesa, o que dificilmente ocorreria se
Portugal houvesse mantido uma política protecionista. Porém, abstendo-se dessa hipótese, o que se
observa é que a Inglaterra encontrou na colônia portuguesa um mercado em rápida expansão,
devido principalmente à economia mineira. Além de poder desenvolver suas manufaturas, os
ingleses se beneficiaram do fato de que as importações do Brasil eram saldadas em ouro,
possibilitando à Inglaterra “uma excepcional flexibilidade para operar no mercado europeu”
(FURTADO, 1980, p. 83).
Ainda assim, a disputa entre as potências europeias pelos territórios na América Latina e o
monopolismo que as metrópoles exerciam em suas colônias, contrariavam o ideal liberal britânico.
O novo mundo representava oportunidades com as grandes reservas de metais preciosos, amplas
extensões de terras, produção agrícola e mercado consumidor. As contradições que envolviam essas
terras confundiam os interesses britânicos, que ficavam entre a defesa da independência das
colônias, e o bom relacionamento que precisava manter com as metrópoles Portugal e Espanha,
sobretudo durante as Guerras Napoleônicas, no combate a França.
As Guerras Napoleônicas foram fundamentais para as mudanças nas relações britânicas
com as colônias americanas e suas metrópoles. Enquanto Napoleão pressionava os países da
Península Ibérica, Espanha e Portugal foram levados a firmar aliança com a Grã-Bretanha em busca
de proteção. Esta potência, não apenas escoltou a família real portuguesa na fuga para o Brasil, em
troca de futuros acordos comerciais, como passou a mediar as relações entre a Espanha e suas
colônias. Com a transferência do governo português para o Brasil em 1808, a Inglaterra teve mais
oportunidades para o crescimento de suas relações comerciais e financeiras. Primeiramente, a
abertura dos portos no mesmo ano, depois o tratado preferencial de comércio, em 1810, que
permitia aos navios ingleses serem reparados nos portos brasileiros, concedia foro e jurisdição
especial aos súditos britânicos, e favorecia as mercadorias inglesas nas alfândegas brasileiras
(BARROSO, 1936). Esses tratados privilegiavam mais uma vez a potência britânica, mas
constituíam uma séria limitação à autonomia brasileira no setor econômico no início do século XIX
(FURTADO, 1980). Ao receber a maior parte do ouro que se produzia no mundo naquele período, o
centro financeiro da Europa passa a se localizar em Londres, e não mais em Amsterdã, marcando
então a ascensão de casas financeiras como as dos Baring Brothers e dos Rothchilds, que
participariam ativamente dos empréstimos latino-americanos.
Esses acordos fizeram o Estado britânico repensar suas estratégias para com as colônias
latino-americanas. Anteriormente, com medo de que a França tomasse para si as possessões
espanholas, começou a incentivar a independência daquelas colônias, chegando até mesmo a
organizar uma expedição para o novo mundo com esse fim. Antes que essa expedição saísse da
Europa, os patriotas espanhóis na América buscaram apoio britânico contra a França, fazendo a
Grã-Bretanha recuar e rever sua posição. Entretanto, com invasão francesa à Espanha e a destituição
de Fernando VII, se iniciaram movimentações independentistas na América espanhola. Em Buenos
Aires, a Revolução de Maio destituiria o vice-rei espanhol do Vice-Reinado do Rio da Prata,
substituindo-o por uma junta governamental constituída por crioulos, que juraria lealdade a
Fernando VII, ainda que não ao Conselho de Regência. A Revolução daria início não apenas aos
conflitos com a Espanha pela independência desse território, mas aos conflitos internos em que
algumas províncias se recusavam a serem submetidas à Buenos Aires (BUSHNELL, 1991).
À Grã-Bretanha, a melhor alternativa que lhe restava era assumir uma política de
neutralidade. Com os conflitos sul-americanos, os acordos com a Espanha e Portugal, e com a
necessidade de mantê-los a seu lado na luta contra a França, a opção foi por ocultar
temporariamente o interesse que tinha no processo de independência das colônias ibéricas.
Oficialmente intermediava as negociações entre Espanha e suas colônias, defendendo uma
autonomia limitada destas; mas na prática, defendia a independência e consolidação da abertura
desses mercados para as mercadorias inglesas (PADRÓS, 1996). Mas os acontecimentos de 1815
possibilitariam posteriormente uma mudança dessa posição. Por um lado, com o fim das guerras
napoleônicas, a dependência da Grã-Bretanha para com os países ibéricos se reduziria. E por outro,
a Espanha retomava um comportamento conservador com relação a suas possessões americanas,
que levaria a uma pressão por parte da burguesia inglesa e seus financistas, que queriam manter
naquele território um mercado consumidor.
Todos esses acontecimentos foram possibilitando a expansão britânica. Se para que uma
moeda se tornasse a de referência internacional, era necessário ao país emissor dominar os mais
relevantes mercados internacionais e endividar o mundo em sua moeda, os acontecimentos estavam
levando a Inglaterra a tal caminho, dando base ao poder que exercia e que se tornaria ainda mais
forte no final do século XIX. Franklin Serrano (2002) adota como cronologia que o padrão ouro-
libra teria como vigência o período de 1819-1914, tendo iniciado então com a lei inglesa que
determinava que o Banco da Inglaterra deveria compensar cada cédula emitida com um valor
correspondente em barras de ouro. Sendo assim, a primeira crise da dívida latino-americana ocorreu
ainda no início do primeiro sistema monetário internacional. O sistema funcionava com a libra
sendo mantida a moeda mais sólida, através da paridade em relação ao ouro, do déficit comercial
(que capilarizava ainda mais a libra), e do superávit em conta corrente, o que permitiu a Grã-
Bretanha exercer o papel de financiadora do mundo (SERRANO, 2002).
Os primeiros empréstimos soberanos denominados em libras para fora da Europa foram os
títulos latino-americanos. Além das estratégias geopolíticas britânicas, a curiosidade de sua
população civil pelos novos países, de territórios ricos em recursos naturais e riquezas comerciais,
empolgou os ingleses e incentivou os investimentos e empréstimos, mesmo antes do
reconhecimento da independência das colônias pelas metrópoles portuguesa e espanhola. As
condições dos lançamentos dos empréstimos pareciam muito lucrativas aos banqueiros e
negociadores, pois geralmente envolviam consideráveis comissões para o lançamento e para o
serviço dos papéis, retenção de parte significativa do empréstimo para fazer frente ao período inicial
de serviço, e garantias associadas às receitas dos países endividados. As expectativas dos
investidores ingleses aumentavam com as propagandas referentes aos novos países, e assim mais
empréstimos iam sendo realizados, mesmo que sem grandes garantias. Até o ponto em que os
serviços da dívida deixaram de ser pagos, dando início à crise da dívida externa latino-americana do
primeiro quartel do século XIX (DAWSON, 1998).
Para renegociar a dívida com os países devedores, atitudes análogas às que seriam tomadas
nos anos de 1980, como transformação da dívida em investimento, extensão do prazo e redução das
taxas de juros e de principal em circulação, foram tomadas já na primeira metade do século XIX, de
forma a subordinar os devedores às condições e imposições dos credores (DAWSON, 1998). A
Grã-Bretanha subordinava os países devedores que recebiam empréstimos de longo prazo em libras,
e ainda era financiada pelo capital de curto prazo que entrava através do lançamento de seus títulos.
O endividamento das nações latino-americanas aparece aqui não apenas como
oportunidade de lucro, mas mais uma vez como estratégia de expansão industrial e financeira, e de
poder em última instância. O fundamental a se compreender no desenvolvimento dos mecanismos
de endividamento dos Estados na montagem dos sistemas monetários mundiais, é que com a criação
de títulos públicos e, consequentemente, a internacionalização do capital financeiro, a Inglaterra
pôde através de sua moeda coordenar a expansão capitalista mundial. As dívidas desse país
funcionavam de forma a expandir sua moeda e seu poder, enquanto que nos países que não se
encontram no centro dinâmico do sistema, a dívida pública os submete aos interesses e confiança
dos credores, apesar de ser muitas vezes indispensável ao seu próprio desenvolvimento e inserção
no sistema interestatal capitalista.
Segundo Dawson (1998, p. 25), “a primeira crise da dívida latino-americana foi produto
direto das guerras napoleônicas”, não apenas pela transformação de Londres na capital financeira
europeia, mas ainda pelo abalo que causou nas relações entre as monarquias espanhola e portuguesa
com suas colônias americanas, o que teria levado ao surgimento de sete novos países no Novo
Mundo. A combinação dos dois fatores levaria as novas nações a recorrerem a Londres em busca de
financiamento de seus primeiros anos de independência.
As lutas pela independência entusiasmaram os ingleses. Várias publicações sobre o assunto
surgiram naquele país, falando também sobre as riquezas comerciais e minerais do Novo Mundo,
que incentivaria investimentos e empréstimos. As guerras começaram em 1808, e a primeira colônia
a declarar independência, a República Venezuelana em 1812, fora esmagada por tropas realistas.
Em 1810 teve início a luta das colônias espanholas com a liderança de Bolívar, e em 1819 foi criada
a República da Colômbia. Sem capital e sem recursos para a formatação do novo Estado, e para a
continuação das guerras nas demais colônias, Bolívar supôs que poderia encontrar em Londres o
financiamento de que necessitava (DAWSON, 1998).
Bolívar enviou à Londres em 1820 o vice-presidente da nova república, Francisco Antonio
Zea, autorizando-o a fazer um empréstimo de até 5 milhões de libras, empenhando para pagamento
e gerenciamento as áreas mais produtivas da receita pública, assim como terras, minas e outros
ativos do Estado (DAWSON, 1998). Dar as riquezas naturais como garantia seria uma característica
comum entre os empréstimos latino-americanos, já que já haviam destinado boa parte de suas
riquezas à Europa enquanto colônias e incentivado desta forma a imaginação dos ingleses quanto ao
muito que ainda deveria restar.
A Colômbia já devia mais de 500.000 libras antes mesmo de Zea chegar a Londres, porque
Venezuela e Nova Granada (que faziam parte da Grã Colômbia) haviam feito empréstimos em
1819. Para que ele conseguisse um novo empréstimo, teve que negociar o antigo. No acordo com
uma associação de comerciantes, representados por Charles Herring, William Graham e John D.
Powles, Zea aceitou pagar 10% por ano em debêntures, e deu como garantia a receita do monopólio
de tabaco do governo e um quinto da produção de ouro e de prata. Assim, reconheceu £547.783 em
dívidas sem muito contestar, e refinanciou o débito comprometendo seu Estado. Além disso,
financiou mais £20.000 em troca do pagamento de £66.666 em debêntures, esbanjando o dinheiro
em missão em Madrid; e fez ainda um terceiro empréstimo: a Colômbia pagaria £140.000, para
receber £91.712 que seriam usados para pagar os primeiros vencimentos do primeiro empréstimo
(DAWSON, 1998).
As negociações de Zea causaram repúdio no Congresso colombiano, devido às altas taxas
de juros e as onerosas garantias que haviam sido acertadas. Bolívar além de assumir que não teria
como pagar o refinanciamento acordado, ordenou que fosse enviada uma carta cancelando a
procuração do vice-presidente. Mas a carta não teria chego a tempo de impedir que Zea fizesse mais
um empréstimo em 1822 no valor de £2.000.000, dos quais £1.600.000 seria destinado à Colômbia,
sendo que deste valor ainda seriam descontadas comissões, um fundo para pagamento dos primeiros
vencimentos, fundo de amortizações, despesas jurídicas, promocionais e com publicidade
(DAWSON, 1998).
O empréstimo colombiano foi considerado de grande sucesso pela comunidade política e
financeira britânica, e acabou por servir de modelo aos empréstimos feitos posteriormente pelas
técnicas empregadas para o contrato, como a assinatura no continente para fugir das leis da usura
em Londres, penhora da receita e do ativo público, retenção de juros e fundos de amortização
antecipada, exigência de altas comissões, e publicação de um prospecto laudatório de títulos
públicos e corretores da Bolsa de Valores. Os títulos foram vendidos dando grandes lucros aos
banqueiros e comerciantes que fizeram o negócio, pois eles conseguiram passar ao público os riscos
do não pagamento, e substituíram a Espanha como os grandes parceiros comerciais e financeiros do
novo país (DAWSON, 1998).
O Chile foi o segundo país a buscar empréstimo na Inglaterra, e assim como a Colômbia,
ainda não tinha sua independência reconhecida. Havia ainda outra semelhança entre os dois latino-
americanos: os problemas que teriam com seus enviados à Europa. O enviado chileno foi Antonio
José de Irisarri, que aproveitando o bom momento proporcionado pelo empréstimo colombiano,
pediu permissão ao Governo chileno para fazer um empréstimo de £1.000.000, assegurado pelas
minas e terras nacionais e pela receita estatal, além de garantir a receita líquida do imposto de
moeda e do imposto de terra, que não poderiam ser usadas pelo governo chileno para outro fim.
Antes que a carta de autorização chegasse que, aliás, negava o negócio, Irisarri já havia assinado o
contrato. Além disso, Irisarri havia aproveitado de seus contatos para fazer especulação na Bolsa de
Londres com títulos de investimentos latino-americanos (DAWSON, 1998).
O Peru também sofreu com a má fé de seus enviados, que foram Juan García del Río e
James Paroissien, “dois aventureiros”, segundo Marichal (1988). Eles firmaram o empréstimo com
a casa bancária de Thomas Kinder, em Londres, e sabe-se que depois se associaram ao banqueiro
em várias empresas mineiras da Bolívia e do Peru, apesar de que não se comprova que tiveram
participação na especulação desses títulos. Ainda pior foi o caso do empréstimo mexicano, em que
seu enviado, Borja Mignoni, fez um pacto com a empresa bancária B. A. Goldschimidt & Company
em que pagariam 60% do valor do empréstimo ao México, enquanto venderiam os títulos a 80%,
lucrando os 20% da diferença (MARICHAL, 1988).
O caso da dívida argentina tem certa especificidade com relação ao destino dos recursos
obtidos, já que não tinha tantos gastos com guerra como os países anteriormente citados, e ainda
possuía excedentes fiscais. Em 1824, o Governo de Buenos Aires autorizou um empréstimo de um
milhão de libras em Londres, para promoção de obras públicas, em que estava prevista a construção
de um moderno porto em Buenos Aires. Tendo negociado e afirmado o acordo com a casa bancária
Baring Brothers, os fundos tiveram outro destino: foram utilizados pelo Governo para fundar o
primeiro banco argentino, o Banco de Buenos Aires (MARICHAL, 1988). Assim, foi incentivado o
desenvolvimento de um primitivo sistema financeiro. Com os recursos do empréstimo, foi
estimulada a atividade creditícia local através da amortização de volumosas dívidas internas do
Governo, e facilitou-se a emissão de novos títulos. Mas essa fase próspera da economia argentina
foi interrompida pela Guerra da Cisplatina, declarada em 1826 (MARICHAL, 1988).
Outro caso distinto, além do brasileiro de que trataremos depois, é o caso haitiano. A ex-
colônia francesa fez seu empréstimo de 30 milhões de francos (1,2 milhões de libras esterlinas),
para pagar indenização aos franceses donos de plantações, que tiveram que abandonar suas terras
com a revolução de 1790, e para obter o reconhecimento de sua independência. O acordo, no que
tratava das relações comerciais, teve a oposição dos britânicos que alegavam serem desfavorecidos
comercialmente com relação às exportações francesas (MARICHAL, 1988).
Um dos fatores que influenciava a compra dos títulos pelos investidores ingleses era a
crença de que o Governo Britânico não demoraria muito a reconhecer a independência latino-
americana. Além de não confiar muito no republicanismo, nem em nada que acreditassem ter
origem francesa, este governo se negava a reconhecer a independência latino-americana para evitar
conflitos com sua então aliada Espanha. Mas essa oposição britânica não duraria muito e sofreu
oscilações desde o início das guerras pela independência. Antes de 1808 o fim do império espanhol
era visto como uma grande oportunidade comercial para a Inglaterra. Mas seu acordo com a
Espanha em 1809 adiou esses interesses. Assim, apesar da pressão dos comerciantes ingleses pelo
reconhecimento da independência dos países latino-americanos, o Governo se manteve oposto, até
1823 (DAWSON, 1998; MARICHAL, 1988).
Mas Bolívar sabia que a Inglaterra teria inclinações ao reconhecimento devido às
oportunidades estratégicas de poder que esse ato engendrava:
O que também foi determinante ao reconhecimento inglês era o medo de que outras
potências a fizessem primeiro e obtivessem maiores vantagens comerciais e políticas sobre o
território. O maior rival inglês, neste caso, eram os Estados Unidos. Entretanto, apesar da
competitividade, alguns interesses entre as duas potências coincidiam. Após o fim das guerras
napoleônicas, a criação e os propósitos da Santa Aliança apareciam para a Inglaterra e os Estados
Unidos como uma ameaça à volta do colonialismo no continente americano. Diante disso, a Grã-
Bretanha no papel de Lord Canning, buscou um acordo com os Estados Unidos para impedir a
recuperação das colônias pela Espanha, mas este só aceitaria se os ingleses reconhecessem a
independência dos novos países, como os Estados Unidos o fizeram desde 1822. Por ter ainda muita
oposição em seu país, Canning adia o reconhecimento, e vai até a França buscar a garantia de que
esta não apoiaria a Espanha no caso de ela querer reconquistar a América. A esse acordo entre
Inglaterra e França de 1824, chamou-se de Memorando Polignac.
Enquanto isso, os Estados Unidos, aproveitando-se do conhecimento de que à Inglaterra
interessava a independência dos latino-americanos, e que esta apoiaria as ex-colônias em caso de
guerra contra a Espanha, apresentou o discurso de Monroe, o que seria conhecido depois como a
Doutrina Monroe. Esta representava o interesse dos EUA na hegemonia da região, demonstrando a
solidariedade com seu continente e buscando reduzir a presença europeia na América. Assim,
apesar da coincidência de interesses na independência latino-americana, a rivalidade econômica e
geopolítica entre Inglaterra e EUA não seria reduzida, e permearia todo o desenvolvimento latino-
americano (PADRÓS, 1996).
A América Latina foi vista nessa época ainda como local para outros tipos de
oportunidades: diversas companhias surgiam visando explorar as riquezas do Novo Mundo, fazendo
parte da especulação financeira da década de 1820, e incluindo cada vez mais pessoas nos
investimentos. Pessoas muitas vezes inexperientes, que investiam em claros casos de fraudes, e
assim como os empréstimos, as informações sobre os investimentos eram poucas e por vezes falsas.
A maioria das companhias estava ligada à atividade mineira, mas havia também as
companhias de colonização, que viam na América Latina um escoadouro para os desempregados
europeus. Em ambos os casos, a falta de conhecimento sobre a real situação dos locais aonde seriam
investidos os recursos no Novo Mundo, sejam minas ou terras, levou muitas das companhias à
falência muito rapidamente. Muitas vezes eram necessários muito mais recursos do que o calculado
para tornar o investimento lucrativo.
Assim, a confiança do público nas companhias teve rápido declínio. Os Estados latino-
americanos ainda tinham suas economias esfaceladas pelas guerras de independência, a arrecadação
de tributos ainda era fraca, e não conseguiam gerar fundos para remessas de pagamentos de suas
dívidas. Os fundos arrecadados com os empréstimos eram muito menores do que a dívida contraída
pelos novos países, e tendo sido a maior parte destinada a gastos militares (com compras de
armamentos que geraram riqueza e renda na Inglaterra), em nada contribuíram para gerar os fundos
necessários para o pagamento da dívida. O boom especulativo gerado pelos títulos latino-
americanos alcançou seu auge em 1824/25.
E havia muitos compradores para os títulos latino-americanos. No início dos anos 1820,
com a alta circulação de capital na Inglaterra, a população vivia uma febre de jogos e apostas, tendo
hábitos extravagantes em suas roupas, moradias e alimentação. Classes menos abastadas apostavam
em quantos ratos um cão mataria em alguns minutos; nos campos, apostava-se em brigas de galo e
corridas, e nas cidades, a especulação era mais uma forma de viver o risco do jogo. Nesse contexto
é que os títulos da América Latina serviam como mais um escoadouro da mania de jogo, e
proporcionaram altos lucros aos comerciantes, banqueiros e intermediários dos contratos
(DAWSON, 1998).
Especuladores também auferiam grandes lucros, ao comprar títulos com grandes descontos
e vendendo em épocas em que as notícias de alguma renegociação fizesse com que os valores
subissem novamente (DAWSON, 1998). As casas bancárias gastavam com propaganda em jornais
da época, e transferiam os custos aos governos tomadores dos empréstimos. No caso da Colômbia,
as propagandas falavam de uma nação com tranquilidade e honra, ignorando até mesmo o exército
espanhol que se encontrava no país. Já no caso chileno, dizia-se que se o país estava “nominalmente
em guerra” contra a Espanha, ele estaria na verdade em paz com o mundo inteiro, apelando ao
preconceito antiespanhol dos investidores. Para o empréstimo peruano, chegou-se a publicar que “a
extensão dos recursos do Peru é conhecida demais para que deles se faça uma relação” (DAWSON,
1998, p. 58).
Com tantos lucros e tanta propaganda, os menos beneficiados dos empréstimos foram os
países tomadores. Apesar de o capital ser indispensável a formação dos Estados, tendo sido gastos e
investimentos que contribuíram para a consolidação da independência e a construção dos novos
Estados e seus exércitos, as quantias recebidas eram muito menores comparadas às grandes somas
que se devia. Muitos dos projetos de infraestrutura passaram longe de ser realizados, grande parte
das companhias não geraram empregos nem rendimentos locais, e os gastos militares tampouco
compensariam financeiramente os investimentos feitos. (MARICHAL, 1988).
Assim, após séculos de colonialismo e exploração da América Latina, a conquista da
independência dependeria da subordinação ao capital inglês e francês, tendo a Inglaterra sido
beneficiada ainda com sua expansão mercantil. Tanto que quando o Secretário das Relações
Exteriores inglês enviou seus representantes consulares para a América Latina, estava não apenas
dando o primeiro reconhecimento à independência dos novos países, mas estimulando o comércio
entre estes e os britânicos. E os governantes latino-americanos tinham razões para aderirem à
ideologia inglesa do livre comércio: acreditavam que o decorrente crescimento dos fluxos
comerciais provocaria o aumento da arrecadação de impostos, sabiam que a necessidade de
armamentos só poderia ser suprida através de importação, e havia ainda a expectativa de que a
intensificação do comércio facilitaria o reconhecimento de suas soberanias pela poderosa Inglaterra
(MARICHAL, 1988).
4. Considerações finais
ABREU, Marcelo Paiva de. A dívida pública externa do Brasil, 1824-1931. Estudos Econômicos.
Instituto de Pesquisas Econômicas, São Paulo, v. 15, n.2, 1985.
______. Brasil, 1824-1957: bom ou mau pagador. Rio de Janeiro: Departamento de Economia -
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