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O FRONT EM 1932
INDICE
AOS LEITORES
MORUNGAVA
ITARARÉ
BURI
COMBATE DE BURI
ESTAÇÃO VITORINO CARMILO
ESTRADA BURI – CAPÃO BONITO
COMBATE DO RIO PARANAPITANGA
CAPÃO BONITO
COMBATE DO RIO DAS ALMAS
CLÓVIS GONÇALVES
Rio de Janeiro, 1933.
Estamos no Morro do Cafezal, na estrada Sengés – Itararé. Em 1930 a
vanguarda do Exército Revolucionário havia conquistado em combate essa
linha de alturas, que tem amplo comandamento sobre todas as imediações
da Faz. Morungava onde se travara forte combate em 16 de Outubro. Jamais
nos havia passado pela mente, em tão curto espaço de tempo, ter que voltar
em operações de guerra a estas paragens. Ainda temos, nítidas na memoria,
as impressões da violenta refrega em que, daquelas posições, apoiamos o
avanço da Infantaria. Encontramos, rapidamente, vestígios dos nossos
entrincheiramentos. Contemplamos o teatro da sangrenta fuzilaria de onze
horas ha dois anos atrás.
A simples observação daqueles lugares nos traz aos olhos os quadros
que antecederam o advento das diretrizes revolucionarias de agora. Quase
estamos vendo o transporte comovedor dos que tombaram em defesa de tão
rútilos ideais. Temos a impressão de ouvir ainda, o gargalhar das armas
automáticas.
Localizamos, as longe, numa fácil recordação, os objetivos que
martelamos na breve campanha. Parece que estamos ouvindo, também, os
estrondos rigorosamente cadenciados das salvas da Artilharia pesada
inimiga, em posição na orla sul de Itararé. A morte do bravo Cap. Izaltino, o
bombardeio mortífero da manhã de 17, da Faz. Morungava, que surpreendeu
e vitimou muitos dos soldados da Revolução, os pedidos insistentes de
reforços na ala direita, a noticia de prisão de parte de 8.° R.I., avultam na
nossa evocação da memorável jornada outubrina. Decorrido tão pouco
espaço de tempo, eis–nos novamente a braços com a guerra civil! Se a
rápida luta armada de 30, não obstante os motivos de toda a ordem que a
tornaram imprescindível, tanto enlutou a nacionalidade, que dizer, agora,
desta rebelião que se não justifica por nenhum prisma em que a encaremos?
Novamente as energias brasileiras desviadas do trabalho fecundo das
cidades e dos campos para a lide das trincheiras!
Desta vez o Morro dos Coqueiros (além de Sengés) e o Cafezal, bem
como a Faz. Morungava, já estão, inicialmente, em poder das forças
federais. Não será preciso ensanguentar, novamente, essas posições
avançadas do inimigo de 1930. Desta feita realizar–se–á o combate às
portas de Itararé. Não ha probabilidade de nova pacificação na hora h do
mesmo. Foram ocupadas as mesmas posições de onde, em 1930, se
desencadearia o bombardeio sobre as linhas reacionárias. Provavelmente
dava–se o mesmo como o inimigo. Havia em tudo coincidência com os
episódios que se passaram em 1930. Aqui, os consolidadores do código
revolucionário, fieis á memoria sagrada dos que jazem, tombados, na defesa
no mesmo ideal que impulsiona os de hoje, nestes tristes lugares.
Lá se congrega o reacionarismo que, batido uma vez, não temos duvida
que o será novamente.
Temos certeza de que a resistência será fraca. O inimigo já tentou,
antes do primeiro tiro, parlamentar conosco.
Na arrancada de 1930 os reacionários tinham a bandeira cômoda da
defesa do governo constituído. Resistiram com relativa tenacidade. Mas
agora? Confundem–se, enfraquecem–se, nas incoerências da Revolução
Constitucionalista... Com efeito, arrastar o País á guerra civil sob pretexto de
apressar a Constituinte, cujas respectivas eleições o Governo Provisório já
havia marcado... Pretender a Paz dos espíritos, pelo estabelecimento da
ordem legal, mas ensanguentando, antes, a Pátria pela mais ignominiosa
das guerras?!
Apenas pela impaciência de alguns meses? É que, para o politico
profissional, é indiferente o rumo que tomem os fatos. Em caso de vitória
usufruirá, nababescamente, a salvo das balas, do que o soldado conquistou
na insânia das trincheiras... Em caso de derrota, ha o clássico
sentimentalismo da nossa raça...
A ideia da manobra de 1930 sofreu alteração agora. Aquela consistia
na fixação de frente do inimigo, pelo Destacamento. Silva Junior, com o
desbordamento pelas duas alas: a esquerda pela cavalaria do General
Flôres da Cunha, a direita pelo Destacamento Alexino. O General Flôres
visava Ibiti, a primeira estação além de Itararé. A pacificação feita no Rio de
Janeiro impediu que o ataque se realizasse, mas os destacamentos
desbordantes realizaram a sua missão, tendo, porém, o inimigo abandonado
a vigilância sobre os passos do Rio Itararé.
Agora em 1932 seria feita idêntica fixação de frente pelo
Destacamento Coronel Sayão, com desbordamento pela ala esquerda pelo
Destacamento Coronel Silva Junior. Este Destacamento seguiu o mesmo
itinerário do General Flôres em 1930. Atravessou o passo Cipriano, com
agua pelo peito, pois a ponte mandada lançar não ficará pronta em tempo.
O Destacamento ficou com o seguinte dispositivo: I.° Reg. Cav. da Brig.
Militar e II/8.° R.I. reforçado por elementos do 15 B.C. em primeiro escalão,
apoiados por uma seção do 5.° G.A. Mth. Em reserva ficou o 2.° B.C. O
inimigo dispunha de comandamento sobre a zona de progressão. Para evitar
as desvantagens de um ataque frontal, far–se–ia, em pequena envergadura,
o envolvimento da ala direita inimiga. Mas esta pequena manobra não se
realizou. E foi feito um penoso ataque frontal. Nós que fazíamos a fixação da
frente, no Destacamento Sayão, ouvimos, durante todo o dia 18, a cerrada
fuzilaria. Os campos de Morungava novamente eram perturbados pelas
atividades febris de irmãos em guerra. Estávamos aguardando, com
ansiedade, o resultado da missão da nossa ala esquerda. Conseguiriam os
companheiros provocar, pela manobra, a queda das celebres gargantas do
Rio Itararé?
Desde 1894 que aquelas barreiras ganharam fama de
inexpugnabilidade... Era com certa apreensão que aguardávamos o fim
daquela jornada. Não tínhamos duvida quanto ao que se estava operando à
nossa esquerda. A triste expectativa era, pouco depois, confirmada pelo
grande numero de baixas sofridas de parte a parte. Nas nossas fileiras
tombaram, heroicamente na defesa dos ideais por que tanto batalharam em
30, os tenentes Hinon Silva, do 15 B.C. e Aguiar do 8.° R.I. ambos à testa
dos seus pelotões.
Na véspera o II/13 R.I., apoiado pelo 9.° R.A.M. em posição no Morro
Pelame, havia forçado o inimigo a abandonar a suas posições no Morro do
Serrado, facilitando, assim, a progressão do Destacamento Silva Junior.
Agora, enquanto este Destacamento desborda a ala direita inimiga, estamos,
nós do 9.° R.A.M. fazendo tiros de inquietação sobre a orla sul de Itararé,
com o máximo cuidado para evitar que algum tiro de longe faça estragos na
cidade.
Encarregada dessa missão está a 1.ª Bateria do 9.° R.A.M. As 2.ª e a 3.ª
estão em posição de espera, sem missão ainda. Mandaram–lhes os
comandantes ocupar a posição na primeira linha de alturas, além da Faz.
Morungava. Mas ao serem feitos reconhecimentos estes foram recebidos a
schrapnels da Artilharia inimiga que se não manifestará até então. Houvera
equivoco. A tal linha não fora ocupada ainda, pela Infantaria. Retrocedemos.
Os schrapnels continuaram a arrebentar em tempo sobre onde havíamos
estado. Voltamos á posição de espera, à margem da estrada de Sengés–
Itararé (a 5 quilômetros desta). E como não viesse nenhuma outra ordem do
comando, bivacamos ali mesmo, após serem tomadas as rigorosas
precauções que a proximidade do inimigo exigia.
Sempre que nos resta algumas horas de folga – e isso nos custa muito,
pois a folga é estritamente necessária ao restabelecimento de energias –
prosseguimos a escutar o sofrimento de Itararé. Todos os interrogados – e
não são pouco – são acordes em afirmar que a revolução de 30 em nada
modificara a vida administrativa da cidade. Aliás isto se dera em todas as
cidades de São Paulo, triste reduto do perrepismo. Na administração os
mesmos elementos eivados de vícios dos tempos do bico de pena. Na
politica os mesmos coronéis do suborno, da violência, da fraude. Ao se
visitar a cidade, procurando conhecer a vida intima, tem–se a impressão de
que só as ruas e praças sentiram o efeitos da jornada de 30. Pois os seus
nomes se transformaram em: Rua Djalma Dutra, Rua Newton Prado, Praça
Siqueira Campos, Praça João Pessoa, etc...
Pediram quatro homens á nossa Bateria munidos de pás e picaretas.
Com a noticia das grandes mortes que o ultimo combate provocara, ficamos
algo apreensivos. Talvez se tratasse da inumação de mais uma leva de
patrícios, aos quatro e cinco, em sepulturas coletivas mal assinalados por
cruzes toscas, sem o nome dos sepultados, que, aqui, não têm, como na
Europa, as homenagens prestadas diante do pomposo tumulo de Soldado
Desconhecido.
E lá se foram os quatro encarregados da nobre missão de, na guerra,
realizar o multissecular pulvis est in pulverem reverteris...
Esta ultima parte da viagem nos está parecendo bem melhor. É que em
Itapeva nos informaram que já se acha, ali, o nosso primeiro avião.
Deixamos, assim, de ser indefesos ás inquietações aos bombardeios da
avião inimiga. Custamos a crer no que nos afirmaram. Em 1930 os
comunicados oficiais, talvez com a intenção de levantar a moral da tropa, já
nos haviam iludido, frequentes vezes, com a chegada de vários aviões a
serviço da Revolução. Nunca os vimos. Embora lhes tivessem, até, atribuído
cores, com o fim de livra–los da caça das nossas metralhadoras, nunca
tivemos a menor defesa contra os três aviões reacionários que até o dia 24
de Outubro, nos mimosearam com granadas de artilharia providas de para–
quedas.
Desta vez, também, ha muito que estamos ouvindo as novas da
chegada de aviões nossos. Quase as não acreditamos. Uma prova disto é
que, ao chegar de fato a nossa águia metálica, foi recebida a metralhadora.
Não fosse um providencial engasgo na metralhadora, o nosso avião, que
voava a duzentos metros, teria vindo abaixo. Chegou, a ser cortado à bala. A
excessiva prevenção contra os boatos nos leva, não raro, a equívocos
desastrosos com esse.
Nós a metralharmos um avião que, após tantos dias de terrível
vulnerabilidade aérea, nos veio como uma dadiva dos céus!... Que engano
lamentável!
Prosseguimos viagem. Estamos embarcados desde ás 17h40 da
véspera; são já 16 horas e não atingimos Rondinha, ainda. Frequentemente
vamos apressar a tomada de água e lenha lá na frente. Vamos precisar
muito dos animais nas próximas marchas sobre rodas. Entretanto, somos
obrigados a submete–los a tantos suplícios...
Afinal chegamos a Rondinha, ultima estação antes de Buri.
Sem perda de tempo iniciamos o desembarque de todo o nosso pesado
material.
Os retirantes haviam depredados tudo: – arquivo, papeis, talões de
passagens, pelo chão em completa desordem.
Os desvios estavam quebrados, afim de ser retardado o nosso avanço.
Mas a operosidade dos ferroviários em breve normalizava a linha.
Fizemos tudo para evitar marcha noturna. Desfizemos com a máxima
rapidez, todo o pesado trabalho de embarque em Itararé. Mas só pudemos
partir ás 19 horas. Já era noite, portanto.
Iniciamos a marcha pela péssima estrada de Buri, em terreno
desconhecido, sem reconhecimentos e nas proximidades do inimigo. A noite
estava escura. Houve engano de itinerário. Perdemos alguns quilômetros
percorridos. Afinal ficamos pelo caminho.
A noite foi má. Em pleno inverno, o bivaque sumário e quase ao relento
é sempre penoso. Ninguém, a bem dizer, pode dormir. Todos estavam em
prontidão. A proximidade do inimigo o exigia.
Logo ao amanhecer veio ordem para seguirmos, com urgência, ate Buri.
Soubemos, também, que o ultimo combate travado ás portas desta vila
fora renhido. Havíamos feito trezentos e cinquenta prisioneiros.
Apreendêramos, também, grande quantidade de material bélico. Tomáramos
dois canhões ao inimigo. Em compensação, o campo de combate ficara
coalhado de mortos, de lado á lado. A artilharia inimiga estivera em ação
com certa eficiência. Tudo faz crer teremos um mau quarto de hora, na nova
frente de combate. Estamos apreensivos. Também não é possível a nenhum
mortal aproximar–se do front, prevendo–se sangrentas refregas, sem um que
indefinível ante o imprevisto da luta que o aguarda.
O pior é essa fase de aproximação. Depois que a gente se acostuma
com a guerra, ouvindo o sibilar de balas como a gente da cidade ouve a
sirene de automóveis, depois que o calor da luta se apodera de todos, depois
que a gente compreende que o lema fundamental da guerra é matar para
não morrer, a tarefa é bem mais fácil...
Por onde vamos passando tudo está deserto. A população paulista vai
fugindo de nós, abandonando tudo na pressa da fuga. De certo os
adversários infundem–lhes grande terror a nosso respeito. Só assim pode–se
compreender a situação de abandono destes lugares. Imagina–se o
sofrimento dessa pobre gente!
O aspecto de Buri é desolador. Coutou–nos um remanescente paulista
que os retirantes, após terem dado um curto prazo para a população
embarcar em trens organizados ás pressas, entregaram–se, no desespero
da derrota, ao saque das propriedades dos seus coestadanos.
Acampamos em plena vila. Aproveitamos algumas casas das
proximidades. Constava que demoraríamos bastante ali. Seria mister, antes
do novo avanço, concentrar um efetivo numeroso para investir sobre o Rio–
Paranapanema, onde o inimigo dispunha de fortes organizações. Dizia–se
que haviam chegado reforços de Mato–Grosso para as hostes paulistas.
Parece–nos, porém, em vista das continuas derrotas que temos infligido
ao inimigo; em vista da sua falta de ardor combativo, tornada clara pela
prisão de trezentos e cinquenta homens e grande copia de munição; em vista
da perda de posições cujo valor defensivo natural jamais será encontrado
daqui por diante; parece–nos será insignificante essa resistência do Rio
Paranapanema.
Aguardamos, com certa ansiedade, que se desencadeie, novamente, a
fuzilaria entre irmãos que, de um lado e de outro, nos seus ideais polarmente
opostos, julgam batalhar pela suprema grandeza da Pátria.
Desde o inicio das operações que não chovia. Os quinze dias de estio
melhoraram, sensivelmente, as estradas. Mas agora vamos ter dificuldades
em transporte. Na certa vai faltar munição de boca e, o que é pior, de
canhão. Desde cedo chove torrencialmente.
Continua, ainda mais intenso, o regime de boatos.
Ha muita tropa acantonada em Buri. O soldado, em geral, é inseparável
do boato. Assim, á tarde, correu a noticia de que o inimigo ia contra–atacar.
Houve quem ouvisse tiros.
O comando da Vanguarda determinou urgentes medidas de defesa.
Seguiram para a linha mais avançada o I.° Reg. Cav. de Bda. Militar, o I/8
R.I. e duas seções de Artilharia, uma dos 5.° G.A. Mth. e outra do 9.° R.A.M.
A cavalaria fez cuidadoso reconhecimento. Vasculhou todo o terreno de
onde partiram os tiros que causaram aquele alarme. Não foi encontrada
sequer a sombra do inimigo. Atribuiu–se o tiroteio a algum elemento
disperso, ou então, consequência de lobisominite, doença que aparece
sempre em campanha. (medo de lobisomens).
Desfeito o boato, toda a tropa regressou, ficando apenas alguns
elementos fazendo a vigilância das vias que dão acesso a Buri.
O resto da noite correu calmamente.
São 9h30. Surge um novo avião inimigo.
É de bombardeio do tipo empregado no Exército.
Vem em reconhecimento e, sem duvida, nos traz algumas bombas. No
mínimo, manifestos como em Itararé.
Não nos enganamos quanto às bombas. Foram jogadas algumas, mas
por sorte nossa não funcionaram.
Foram apanhadas intactas. Brancas como são, é bem fácil acompanhar
a trajetória delas no ar e ver o ponto de chegada. São iguais ás empregadas
em 1930. Compridas, espoleta percutente, tendo na parte posterior uma
espécie de hélice. São de ferro fundido e a carga é de pólvora negra.
Jogada no ar, tendo um peso pequeno, vem oscilando como uma folha.
Houve quem pensasse que se tratava de alguma mensagem. Mas essa
ilusão se dissipou ao serem encontradas ás ameixas.
Nossas oito metralhadoras pesadas funcionaram sem incidentes.
Fizemos uma concentração de fogos mas em pura perda. A altura do voo era
de 2.000 metros; em tiro vertical a dispersão da metralhadora é considerável.
Em todo caso sempre obrigamos o aviador a guardar uma certa altura o que,
de certo, lhe dificultava a observação e o bombardeio.
As 15h05 aparece novamente o avião em reconhecimento, bombardeio
e inquietação.
De certo vem tirar a impressão ridícula do fracasso pela manhã. Está
disposto a atingir–nos de qualquer modo. Muitas bombas. Todas
funcionaram.
As metralhadoras esbanjaram muita munição, mas o avião não pode
baixar. Mesmo assim visou tropas que desembarcavam na estação. Houve
estilhaços num raio de vinte e cinco metros. Dois soldados que estavam
numa casa ficaram feridos, pois os estilhaços atravessaram as suas paredes
de madeira.
Duas outras bombas arrebentaram junto a um riacho onde soldados do
8.° R.I. lavavam roupa. Quatro feridos. Dois mortos. Um destes teve a parte
superior do crânio arrancada. Cérebro à mostra. O outro era um montão de
destroços e de sangue. As bombas lançadas sobre a estação feriram seis
homens.
Maldita visita aérea!
Em tão poucos instantes, tanto estrago no nosso pessoal!
Assistimos a chegada á estação dos mortos e feridos carregados pelos
próprios camaradas.
Quadro comovente. Os feridos, ainda atordoados, contorciam–se em
dores. Foram logo embarcados para o Hospital de Itararé.
O avião conseguira o seu intento. Abatera, até certo ponto, a moral da
tropa, indefesa a qualquer ataque aéreo. O nosso avião, ao aterrissar em
Itapeva, havia inutilizado uma asa. Estava em reparos. Primeiro a falta de
gasolina, depois esse contratempo. Estamos, decididamente, sem sorte no
ar.
Estamos acantonados, quase ao centro de Buri.
Mas quarenta viaturas e trezentos cavalos são um alvo ótimo para a
aviação inimiga. Temos que mudar de pouso. Deus é grande, mas o mato é
maior.
É forçoso escondermos–nos da sanha do avião inimigo. Vamos ocupar
um bosque cerrado, próximo à vila.
Nossas metralhadoras não atirarão mais. Pouco adianta. Gasta–se
munição e ainda se denuncia, pelo clarão dos tiros, o lugar ocupado.
O único recurso é metermos–nos mato a dentro. É, à hora do avião, de
pistola em punho, obrigaremos todos a se esconderem. Porque, além dos
estilhaços da bomba que vier, a nossa munição de artilharia também nos
pôde eivarem frangalhos pelos ares.
Se aos menos o nosso avião pudesse perturbar a ação do inimigo!
É esta a primeira vez que uma esquadrilha de aviões voa sobre nós.
Três aviões cortam o espaço, espalhando terror com o ruído sinistro das
suas hélices. A guerra no ar, está piorando para nós. Um avião, apenas, faz
um estrago moral e material considerável. Imagine–se, Agora, uma
esquadrilha de aviões militares, armados de metralhadoras, carregando,
visíveis cá da terra, tantas bombas sob as asas!...
Não foi preciso dar ordem para o pessoal ocupar os abrigos
solidamente preparados. Antes que o déssemos, já todos haviam descido
para o subterrâneo protetor. Tudo num piscar de olhos. Na estação ha
correrias e afobações. Naturalmente porque tem sido o ponto mais visado
nos raids anteriores, devido ao desembarque de tropa, movimento de trens,
localização de P. C., etc.
As locomotivas põem–se, logo, a todo vapor para a retaguarda,
procurando arrastar as pesadas composições que lhes retardam muito a
fuga.
Começou o bombardeio sobre Buri. Estrondos. Trovões. A terra parece
tremer. Procuram atingir a estação da estrada de ferro. As metralhadoras de
terra crepitam, verrinosas. O voo alto torna–se obrigatório só inimigo. Baixar
seria loucura, pois metralhadoras, balas e bons apontadores não os faltam.
Vêm em direção a nós. O seu ruído torna–se mais terrível ainda. Já
estão sobre nossos quatro abrigos, onde se acotovelam e respiram mal oito,
dez homens. Todos escutam, com atenção, a passagem dos pássaros que
carregam explosivos. Felizmente não descobriram os canhões que, – é claro
– não podemos levar conosco para as tocas. Cobrimos–los com arvores,
com o maior cuidado para que o aço não fique brilhando ao sól.
Já se reuniram novamente, os três. Estavam separados para matar mais
á vontade. Seguem na direção de Itapetininga. O ruído das hélices diminui.
Quase não os vemos mais. Sumiram–se.
Quem haveria de supor: – Ontem, por assim dizer, éramos colegas
desses aviadores na Escola Militar. As mesmas sabatinas, os mesmos
exames, a mesma disciplina férrea nos aproximavam como verdadeiros
irmãos. Os jornais trazem o nome de todos eles. Fomos, na Escola, colegas
de ano e colegas de farras. Hoje eis–nos separados pelas manobras dos
políticos. Todos julgamos – em campos opostos – concorrer para o bem
Pátrio. Nós com o Governo Provisório. Eles com o reacionarismo paulista.
Não podemos conter a nossa mágoa, ao vermos que todos os ensinamentos
dos nossos mestres, só nos têm servido para nos destruirmos uns aos
outros. Todo o ardor com que sorvíamos os segredos da tática e técnica
militares só tem servido, até agora, para o nosso aniquilamento reciproco.
Parece incrível que, daquelas salas da Escola, a palavra inimigo tenha
servido para nós mesmos. Lamentamos tudo isto. Entretanto não nos falta
disposição para a luta.
A nossa causa é a do povo brasileiro. Em 1930, como Agora. São Paulo,
neste momento, é, verdadeiramente, uma exceção.
Mas ficamos a pensar: – A vitória total de uma das partes sobre a outra,
o aniquilamento de uma delas, não poderia constituir vitória para o povo
brasileiro. Constituiria, antes, o seu enfraquecimento. Moral e material.
Temos mais que a palavra – a própria vida – empenhada no
engrandecimento da Pátria. Não o permite, porem, o maquiavelismo dos
profissionais da politica.
Estes acabam de turvar os ideais de uma grande parte do Exército. Mas
não consentiremos, daqui por diante, que se desvirtue – pelo nosso próprio
enfraquecimento – o compromisso inquebrável que nos prende, de corpo e
alma, à Pátria, ao Exército!
Que nunca, jamais, na vastidão do Brasil deixemos que a
irresponsabilidade de maus políticos, ou de Napoleão de opereta, nos atire à
ruinosa guerra fratricida que, num crescendo assustador, nos vem
ensanguentando, deprimindo, aviltando...
A mocidade bandeirante tem vindo iludida ao front. Os jornais paulistas
que nos chegam ás mãos, apreendidos nas cidades abandonadas, estão
cheios de inverdades. Falam de ataques dos federais á Itararé e á Ribeira,
quando, ha muito, estas cidades estão em nosso poder. Falam de derrotas
infligidas aos nossos, quando, na realidade, os temos levado de vencida em
todas as frentes, apertando cada dia o cerco sobre São Paulo.
Os chefes do movimento, na expectativa do castigo que os aguarda,
semeiam estas ilusões entre a mocidade para, explorando–lhe o entusiasmo,
joga–la, criminosamente às trincheiras.
No momento atual, a situação está bem definida. As energias todas do
país, toda a mocidade forte do Brasil converge contra São Paulo que, nesta
hora, é uma triste exceção. Em todas as frentes as forças federais levam
vantagem. Entretanto a impressa paulistana, usando da mentira, procura
adiar uma derrota inapelável. Na verdade, porém, essa imprensa que tem
grande responsabilidade na caudal de sangue que enluta o Brasil, só tem
conseguido aumenta–la, sem que isto, entretanto, pese na realidade militar
do momento.
Qualquer prisioneiro que escutemos, entre muitos que aí estão, diz que
não contava que a rebelião se circunscrevesse a São Paulo. Esses
prisioneiros, ao verem passar todo o infinito efetivo das forças do Sul, não
escondem a sua surpresa. Bem compreendem, Agora, a desgraça que os
maus paulistas lançaram sobre o seu povo.
Buri está sendo bombardeada pela Artilharia inimiga. Têm vindo projetis
em varias direções. Houve arrebentamentos dentro da vila. Ruíram algumas
casas. Um trem que acabava de chegar também foi visado. Houve tiros em
tempo e em percussão. Schrapnels e granadas. Estamos ouvindo de perto
os seus arrebentamentos. Ouve–se, nitidamente, o assobio dos projetis e,
após o arrebentamento, o dos balins e dos estilhaços. Ainda desta vez
apreciamos o efeito moral da Artilharia, pois houve grande procura de
boieiros e correria de gente lá na vila.
Sobre o trem em que o inimigo fez uma regulação caíram muitos
projetis, mas o efeito material foi nulo. É claro que o efeito moral foi enorme,
pois aquela tropa mal chegava de Itapeva. Aquele era o seu batismo de fogo.
Uma granada caiu aos pés de um oficial da Brigada Gaúcha mas, por
grande felicidade deste, mesmo tendo queimado a carga de trotíl, não
estilhaçou. O oficial, sorridente, nos mostrou o projetil, sem espoleta,
dizendo–nos em tom de brincadeira que nesta guerra já nascera três vezes...
Manifestamos desejos de possuir o projetil, mas não o conseguimos,
pois o destinatário pretendia guarda–lo como recordação da jornada de 32.
Era a quarta campanha que fazia e nunca vira a morte tão de perto...
Pouco antes desse bombardeio raspáramos um pequeno susto.
Repousávamos numa casa abandonada, bem próxima á posição, quando
fomos acordados por uns tiros de metralhadora dados nas proximidades.
Que seria aquilo? O inimigo nos estaria atacando de flanco? Alguma
infiltração? Algum envolvimento? Em um abrir e fechar de olhos estávamos
junto á Bateria. No caminho tivemos que nos atirar ao chão, afim de evitar
algumas das balas perdidas que sibilavam por todo o canto. Quando
pensamos em nos deitar já o havíamos feito. O instinto antecedera ao
cérebro. O subconsciente antecipara–se, com aquele recurso imediato, ao
consciente.
Depois fomos informados do que se tratava. Uma metralhadora tomada
aos paulistas, por ocasião do tiro feito sobre o avião inimigo, durante o
bombardeio da manhã, não funcionara. O pessoal, Agora, a estava
experimentando... Nem nos avisou, sequer. Que dia agitado o de hoje.
Bombardeio aéreo, de Artilharia, e ainda por cima as rajadas das nossas
metralhadoras em experiência.
São 11h20. Raid aviatório inimigo. Desta vez, veio um novo avião.
Grande, bem maior que os outros. É o maior que tem voado nesta frente.
Está corvejando sobre nós. Felizmente o ruído dos motores nos avisou, com
antecedência, a vinda dele. Todos já estamos em abrigos mais ou menos
seguros. A não ser que alguma bomba caia sobre a cobertura dos mesmos,
não corremos grande perigo. Vemos o que é possível ver quando o avião se
afasta um pouco dos nossos crânios.
Mas, – fato curioso, – desta vez logo se afasta para Itapeva. Certamente
vai em busca do nosso avião que uma esquadrilha ontem perseguiu e quase
pôs a perder. De certo perceberam os aviadores que ele, nas condições em
que o deixaram, não poderia ter atingido o campo de Itapeva. Ficara pelo
caminho. Querem, Agora, destruir, inutilizar totalmente a sua presa de
ontem. Estão esquadrinhando todos os recantos. Farejam como urubus.
Mas não conseguem o que pretendem. O nosso pássaro, desmontado,
seguiu de trem para Itapeva. Lá está bem guardado por metralhadoras
vigilantes. Desta vez erram o pulo.
Mas, na volta, certamente nos mimosearão com a sua carga de bombas.
Tanto pior. Porem que não nos privem do nosso precioso avião. Sem ele
seriamos, por assim dizer, uns cegos a combaterem, desigualmente, um
inimigo de olhos de lince...
A nossa posição de tiro (do 9.° R.A.M.) foi hoje visitada pelo General
Waldomiro Lima, com oficiais do seu Estado–Maior. Fomos surpreendidos
pelos visitantes em pleno trabalho. Completávamos as organizações. Estas
merecem francos elogios de todos. Temos consciência de que os
merecemos de fato.
Á tarde passou nossa esquadrilha. Eram três aviões que rumaram logo
para Itapetininga onde, normalmente, inquietam o inimigo. Melhora a nossa
situação no ar. Já não estamos à inteira mercê da sanha dos corsários
inimigos.
Continua o forte tiroteio que estamos ouvindo desde ás 9 horas da
manhã.
Parece–nos que o mesmo se trava á retaguarda. Custa–nos acredita–lo.
Os nossos camaradas da Infantaria nos haviam garantido que o Rio Apiaí
não dava passagem nas proximidades e que todas as pontes e pinguelas
haviam sido destruídas.
Mais tarde, porém, fomos surpreendidos com a noticia, dada pelo
comando da Vanguarda, de que alguns elementos inimigos haviam
transposto o rio, à direita, vindo ameaçar a nossa retaguarda. O
destacamento inimigo viera ter, justamente, onde havíamos acampado, pela
segunda vez, para nos esconder à aviação. Se não tivéssemos vindo ocupar
posição mais à frente, seriamos colhidos de surpresa. Os nossos serviços de
aprovisionamento, de saúde e veterinária quase foram colhidos em cheio
pela infiltração inimiga.
Dado o nosso pequeno efetivo, no momento, em Buri, a ideia de
manobra do inimigo foi bem concebida, mas pessimamente executada. Para
faze–la com maior probabilidade de êxito, bem poderiam ter aproveitado o
luar que tem havido. Conheciam o terreno palmo à palmo, pois dele se
haviam retirado pouco antes. Um ataque de retaguarda noturna é quase
sempre decisivo. Principalmente si a gente se aproveita, ao máximo, dos
efeitos desmoralizadores da surpresa. Mas o inimigo não soube faze–lo.
Precipitou–se. Foi logo nos avisando de sua presença, com alguns tiros
inúteis que fizeram fracassar, totalmente, a manobra. É claro que tínhamos
elementos de vigilância por aqueles lugares. Mas uma emboscada, quando a
gente quer de fato fazer, é sempre possível nessas ocasiões. Perdeu o
inimigo ótima oportunidade de desfazer a impressão de pouco valor militar
que têm causado as suas continuas retiradas de Itararé até Buri, num
percurso de mais de duzentos quilômetros, em tempo relativamente tão
pequeno.
O 14 R.C.I. (Regime de Cavalaria Independente), do R.G. do Sul, por
providencial coincidência para nós, acabara de chegar de Itapeva.
Rapidamente enfrentou o inimigo. Conseguiu fixa–lo. Em breve o I/8.° R.I. de
Passo Fundo, R.G. do Sul, que se achava de reserva, reforçando o 14 R.C.I.
impeliu o inimigo para o lugar em que transpusera o rio. A fuzilaria durou o
dia inteiro. Das 9 às 20 horas, quando houve uma ligeira trégua. Recomeçou
às 24 horas, indo até ao amanhecer. Deixando mortos e feridos o inimigo
conseguiu, afinal, fugir.
Tivemos quatro mortes a lamentar: – A do valoroso Tenente Muler e as
de três praças do 8.° R.I. Além dessas perdas, a fuzilaria ainda enviou, para
o Hospital de Sangue, oito dos nossos soldados. Alguns prisioneiros nos
informaram que o efetivo concentrado além do Apiaí é de 2000 homens
comandados pelo Coronel Taborda com o seu P.C. em Itapetininga. Nas
posições se acha no comando geral o major Arlindo, da Força Pública.
Foram acordes em afirmar que, há muito, reina grande desanimo nas
trincheiras paulistas.
São 7h30. O 5.° G.A.Mth. deu o sinal combinado abrindo fogo. Desde a
véspera as três baterias do 9.° R.A.M. estão em vigilância sobre o Capão–
Coração, na estrada Buri–Capão–Bonito. Tem havido, ali, grande movimento
nos últimos dias.
A frente a conquistar ao inimigo é muito extensa. Foram organizados
dois destacamentos. O destacamento Cel. Sayão avançará, no eixo da via
férrea, até à estação de Vitorino Carmilo. Ideia de manobra: fixação de frente
com desbordamento pela ala direita, separando, assim, os elementos
inimigos que guarnecem a via–férrea, dos que se acham na estrada para
Capão–Bonito.
O destacamento Cel. Dorneles progredirá pela direita na direção desta
cidade. O nosso Regimento (9.° R.A.M.) vai apoiar o avanço deste
destacamento. Atuaremos por concentrações das três Baterias. Nosso doze
canhões vão agir simultaneamente. Faremos, assim, uma forte concentração
sobre os objetivos.
Após rápida preparação entramos logo em eficácia. Por várias vezes
temos anunciado ao Sargento de tiro a observação No objetivo!. É a maior
satisfação que pode ter um artilharia em campanha. Atiramos durante uma
hora. A Infantaria já iniciou a aproximação. Já lhe neutralizamos, ou mesmo
destruímos, muitos dos obstáculos que se oporiam á sua progressão. A
Artilharia, cuja própria natureza não permite avançar sobre o inimigo, já se
antecedera, na verdade, á Infantaria, preparando–lhe o caminho, tornando
possível a aproximação até uma base razoável para a partida ao assalto.
Agora começar o engajamento. Cada vez mais o tiroteio vai recrudescendo.
Ha momentos em que a sequencia de tiros é incrível. Surgiu um avião.
Mal o podemos ver, pois as nuvens são numerosas e baixas. Mas, em
pouco tempo, ouvimos o estrondo das bombas lançadas sobre o inimigo. Só
Agora podemos ter certeza que é nosso. E admiramos a audácia do aviador.
Levantar voo num avião de bombardeio, desacompanhado do de caça que
lhe faria a proteção, é arriscar–se a encontrar a esquadrilha inimiga que não
tarda a aparecer! É ter coragem.
Em terra o combate continua. Do alto do observatório estamos vendo a
chegada de reforços para as nossas linhas. Apreciamos toda a progressão
da Infantaria. O destacamento Coronel Sayão já envolveu o inimigo em
posição a cavaleiro da via–férrea. A coluna da direita, que apoiamos,
continua a avançar. Apreciamos, entusiasmado, comovidos, o deslocamento
daquele formigueiro humano, lá em baixo, quase imperceptivelmente. Temos
vontade de falar–lhes nesta hora angustiosa em que o assalto ás trincheiras
inimigas se aproxima. Queríamos dizer–lhes que aqui estamos para, com a
maior dedicação, dando a precisão máxima aos nossos tiros, tornar–lhes
possível a tomada das trincheiras que, pelo fogo de barragem que vomitam,
a Infantaria, pelos seus recursos, é impotente para faze–la.
São, Agora, 14 horas. O combate, no flanco direito, prossegue,
impetuoso. De quando em vez damos algumas salvas sobre o objetivos
fugazes que sempre surgem no desenrolar dos combates. As metralhadoras
crepitam ininterruptamente.
Mas no flanco esquerdo, próximo á via–férrea, já cessou o tiroteio.
Foram feitos numerosos prisioneiros. Vimos, pelo binoculo, a chegada dos
mesmos. Do nosso lado a refrega continua sem trégua. O tempo melhorou
sensivelmente, facilitando–nos a observação. Esperamos, atentos, pelos
pedidos de tiro que a Infantaria possa fazer. Vamos dando conta das
missões que nos couberam por sorte, neste violento combate que as
margens do rio Apiaí estão assistindo.
O combate de Morungava, em 1930, entretanto, teve uma fuzilaria bem
maior. O tiroteio, aqui, é mais espaçado. Progride–se com menor dificuldade.
Quanto à Artilharia aqui a temos em muito maior massa. Os tiros são mais
numerosos. Neste combate estão vomitando fogo sobre as linhas inimigas
vinte e dois canhões. Há munição a granel. Em Morungava agiram dez
canhões e com muita escassez de munição. O tiro era feito por peça. Agora
só o temos realizado por meio de salvas ou rajadas.
A metralha continua lá em baixo. Quantos soldados terão deixado o
mundo na angústia deste dia tão sangrento! Todos lutam encarniçadamente.
Atiram–se uns sobre os outros na voragem da luta fratricida! O combate
turva–lhes o raciocínio. Torna–os cegos pelo ódio reciproco destes instantes.
Não se reconhecem mais como brasileiros. Ali, naquele campo, mata–se
para não morrer. São inimigos de morte que se defrontam. Pelo menos
nestes momentos de fuzilaria.
O combate parece que irá até amanhã. São 16 horas e o tiroteio, no
nosso flanco, continua intenso. As organizações da boca do Capão Coração
foram varridas, suficientemente, pelos nossos projetis. Mas, cessado o fogo,
o inimigo saiu dos seus abrigos e defende–se com bravura. Conseguimos
calar uns dois ou três espaldões de metralhadoras. Mas os outros continuam
vomitando fogo. É preciso, uma vez que a Infantaria está impedida de
avançar, que a Artilharia faça novas concentrações sobre os
entrincheiramentos que ainda resistem. É o que vamos fazer: – Algumas
salvas de granadas para destruir, ou neutralizar, definitivamente, os reduto
inimigo. A resistência deste tem sido tenaz, honrosa. Tem–se a impressão de
que, desta vez, os paulistas estão dispostos ao ultimo sacrifício. É como
podemos justificar a sua permanência nessas trincheiras que temos
martelado tanto. Mas, cederão por fim.
Mais algumas dezenas de granadas aos inimigos. Começam, agora, a
retirada. De vez em quando vemos, binóculos em punho, saírem dois, três
homens, curvados, ligeiros, ganharem a boca da Picada e sumirem–se no
Capão–Coração. São numerosos. Não param a corrida. Apenas deitam–se,
ligeiros, ao perceberem o assobio dos nossos projetis que vêm chegando.
Vemos, nitidamente, a terra que as balas dos nossos infantes levantam
quando erram os fugitivos e caiem no parapeito das suas trincheiras. É essa
terra tênue, dir–se–ia fumaça, que orienta os artilheiros sobre o lugar onde
se acham os inimigos. Continuamos a persegui–los com salvas de
schrapnel–tempo.
O Major Catulo, comandante do Grupo, concentrou, em todo o combate,
o fogo das três Baterias. Assim, de cada vez, são doze projetis sobre o
entrincheiramento contrário.
Prossegue a retirada. O efetivo é numeroso. Saem muitos homens, uns
atrás dos outros. Os órgãos de fogo dos inimigos foram muito bem
localizados. Enfiam todas as imediações. Mas descuidaram–se quanto á
camuflagem. No capim bem verde da elevação distingue–se, perfeitamente,
a cor vermelha da terra que serve de parapeito ás trincheiras. Deixaram de
colocar algumas leivas ou mato da cor da vegetação próxima.
Veio ordem para cessar fogo. Estamos vendo, Agora, com certa
dificuldade, pois é quase noite, o assalto às trincheiras que haviam martelado
o dia todo.
Esse assalto, graças à Artilharia, se faz em relativa segurança, pois os
inimigos que restam são apenas cadáveres... (Lamentamo–lo. Mas, a haver
cadáveres que os haja da parte deles que nos arrastaram, a todos nós, a
esta terrível aventura).
Os nossos homens já atingiram os entrincheiramentos. Revolvem tudo.
Dão batida em tudo. Certamente procuram alguma roupa, capacetes de aço,
ou mantimentos que possam aproveitar como recompensa do trabalho
sinistro do dia todo... Vemos esse febril trabalho de procura dos nossos
homens. De certo cheios de ódio dos que ali se achavam. Pois foram estes
que prostraram, sem vida, os seus companheiros que o destino privou do
prazer da vitória. Um misto de ódio e de dor lhes perturba o discernimento
dos fatos... Em momentos como esses os derrotados não são paulistas, nem
brasileiros. Para eles que lutaram o dia todo, que sentiram a morte de perto,
que viram cair seus companheiros ao lado, para eles vencedores o que
encontram era de um inimigo que odeiam e querem ver exterminado,
destruído...
O que se passa dentro das trincheiras não podemos ver donde estamos.
Ha ordens severíssimas, do alto comando, contra fuzilamentos. Prometem–
se punições extremas aos transgressores. Mas é impossível que o alto
comando esteja presente, na sumaria tomada de contas do final do assalto...
É difícil, mas não impossível, ter havido, nesta como em tantas outras
ocasiões, o ímpeto sanguinário de vingança a que a guerra, em todos os
tempo, se casa tragicamente. Em outras situações seria absurdo dizer–se
que brasileiros mataram, sumariamente, outros brasileiros. Mas, no
desenrolar desta sangrenta campanha, o absurdo, infelizmente, é o dizer–se
que, em certas ocasiões, brasileiros deixaram de fuzilar brasileiros...
Coisas da guerra...
Agora vemos a Cavalaria que parte para a exploração do sucesso. Vai
lépida e corajosa barrar a fuga ao inimigo. Os cavalarianos vão a galope. O
vento lhes dá um aspecto formidável, ao agitar–lhes a ala do chapo e a capa
da campanha. Levam os mosquetões à mão, a soleira apoiada ao joelho,
nessa perseguição ao inimigo que se some mato a dentro. Uma carga, em
breve, impedirá a retirada dos adversários já desmoralizados e vencidos no
combate. Em vista dos seu efetivo, calculamos, para hoje, grande número de
prisioneiros. Levaremos, assim, muita vantagem nesse ponto, pois eles nos
prenderam, apenas, duas patrulhas nos reconhecimentos que precederam o
combate.
As trevas da noite já desceram sobre a terra. Havíamos esmagado a
resistência inimiga.
Entretanto, no flanco esquerdo, ao longo da via–férrea recomeçou,
cerrada, a fuzilaria. Lá o inimigo ainda resiste. O tiroteio, sem dúvida, se
prolongará até á madrugada.
Manhã de 16 de Agosto.
A noite anterior foi bem calma. Pudemos dormir. Agora, muito cedo,
vamos sair em reconhecimento. A gente mal pode andar nestes lugares.
Foram esburacados pelos nossos próprios canhões durante o combate de
Buri. Ha sinais da passagem do inimigo ainda. Arrecadamos alguma coisa
que nos deixou. A novidade, desta vez, foi a apreensão de capacetes de aço.
Conseguimos alguns. São, de fato, uma conquista valiosa da indústria
paulista. São feitos à prova de tiros e de estilhaços. Por falta de material não
perderam os inimigos o ultimo combate. Têm aviões possantes, armas
novas, (a julgar pelos sulcos deixados pelas raias) capacetes de aço,
morteiros, metralhadoras de alcance maior que as nossas, etc. Levam,
porem, grande desvantagem quanto à Artilharia. Falta–lhes munição.
Atingimos, afinal, a nossa linha mais avançada. Vamos percorre–la toda.
Observamos cuidadosamente, as posições inimigas que, numa distância
média de 1.800 metros, se acham na linha de altura em frente a que
ocupamos.
Organizam–se, solidariamente, mais uma vez. É fácil observar–se, de
binoculo, a sua atividade defensiva. O nosso pessoal, também, completa as
organizações. Pois a missão do destacamento é fixar o inimigo na posição
em que se acha, até que se resolva a situação em Capão–Bonito.
Continuamos em posição.
A 2.ª Seção, que está á direita da estrada, organizou–se solidamente em
vista da proximidade do inimigo que, de certo, lançará patrulhas de
reconhecimento aquém do rio. Nossas metralhadoras estão prontas para
qualquer emergência. Os soldados da Policia Pernambucana, que, no Norte,
nunca atinham visto canhões de campanha, vinham sempre vê–los na
posição. Descuidaram–se. Certamente foram localizados pelos observatórios
inimigos. Consequência: fomos logo enquadrados pela sua Artilharia.
As granadas têm caído bem perto. Tiros curtos e longos. Alguns caiem a
vinte metros.
Temos, Agora, em mão, alguns projetis. A munição é feita em São
Paulo. Dá poucos estilhaços. Quase todos enterram, pois a espoleta é de
grande retardo. Efeito material nulo. Efeito moral idêntico ao dos projetis
importados ao estrangeiro, que empregamos normalmente. Carga de
arrebentamento menos poderosa. Estrondo menor. Contudo o pessoal não
se dispõe a esperar, fora dos abrigos, as granadas que chegam assobiando.
Uma prova de que não demos importância ao fato é que, podendo
mudar de posição, preferimos conservar a mesma já localizada. É provável
que o inimigo não saiba que aqui há Artilharia, pois não respondemos aos
seus tiros. Talvez tenha visto soldados circulando por aqui. Soldados da
Infantaria. Porque os artilheiros, com o alvo fixo e grande que apresentam as
peças em pontaria direta, logo que chegam em posição, tratam de cavar
abrigos para, dentro deles, aguardaram a retribuição de granadas que se não
faz esperar muito.
São 8 horas. Dia 31 de Agosto de 1932 não nos quis deixar sem mais
esta carnificina. Estamos emocionados. Vamos entrar em combate. Vitoria?
Derrota? Morte? Na verdade não podemos prever o que nos aguarda.
Está travado o combate. Fuzilaria como poucas vezes temos visto.
Vamos atirar bastante. Ha muita munição. Feita, com alguns disparos, a
verificação das alças (preparação expedita), vamos, agora, esperar pelos
perdidos de tiros da Infantaria. Frequentemente desalojamos o inimigo que,
espavorido, procura outras posições. Fizemos vários tiros que, pelo lugar e
pela altura de arrebentamento não tivemos, do observatório, a menor duvida
em anunciar ao Sargento de tiros: No objetivo! Mais tarde, de certo,
constataríamos os efeitos das granadas schrapnels.
As duas seções da Bateria, agindo separadamente, vão atendendo, com
êxito, aos pedidos de tiro.
Em vista da proximidade do inimigo (alças 2.000 e 2.200 metros),
sibilam, frequentemente, balas por sobre nossas posições. Já nos
acostumamos com elas.
No combate anterior (em que não tomamos parte) a Artilharia ficou sob
o tiroteio cerrado das metralhadoras contrárias. O Tenente Hernani, do 5.°
G.A. Mth., foi ferido na linha de fogo.
A moda, de certo, pegou. O emprego do canhão tornou–se igual ao
emprego do fuzil. Ambos na primeira linha da Infantaria. Era o que faltava
fazer para a Artilharia cabocla chegar ao auge...
Aproximam–se aviões. Vem juntar o ruído dos motores só crepitar das
metralhadoras, ao ronco dos canhões e ao pipocar de armas individuais.
Esses quatro aviões estão sondando muito toda a zona de combate.
Sabemos que são nossos. Os sinais característicos são, agora, bem
visíveis de terra. Fazem reconhecimentos. Não lançaram bombas ainda.
Talvez os aviadores estejam receosos de lança–las sobre nós em vez do
inimigo. Fizemos alguns tiros para facilitar–lhes a localização. Se não forem
nossos? Os inimigos, às vezes, aparecem, também, com esses mesmos
sinais... Paciência. Cumprimos ordem.
Mas não houve bombardeio.
Certamente já despejaram a sua carga noutras paragens.
Mesmo assim, nestes instantes de ronda aérea, o tiroteio cessa,
completamente, de ambos os lados. É grande o efeito moral da quinta arma.
Intimidam–se os combatentes. Esquecem–se, por assim dizer, de que estão
empenhados em luta de vida ou de morte. Foram–se os aviões. Continua a
matança de brasileiros cá em baixo.
Já preparamos o caminho ao avanço dos nossos infantes. Observamos,
Agora, o assalto. É a fase mais arriscada do combate. Quem já fez um
assalto, nestas condições, pode dizer que viu a morte bem de perto.
Começa a retirada dos inimigos. Desta vez fazem–na em ordem.
Vemos, perfeitamente, os primeiros a correrem para a retaguarda. Depois
outro. Por fim os últimos que, mesmo recuando, atiram com os seus F.M.
para cobrir a retirada dos demais. Vemos, nitidamente, os clarões das armas
automáticas em pleno dia. Estas, tanto quanto possível, apoiam a retirada
que, taticamente, faz jus aos maiores elogios. Mas isto não impede que, de
quando em quando, enviemos alguns schrapnels aos retirantes. Devemos
dificultar–lhes a retirada. Precisamos de prisioneiros. Ha falta de
informações.
São 14h30. Ocupamos as posições que o inimigo organizara para barrar
a nossa passagem pelo rio Paranapitanga, estava findo o combate.
A cavalaria de que dispúnhamos (9.° R.C.I.) fora lançada, pelo flanco
direito, sobre a retaguarda inimiga.
A perseguição, tanto quanto possível, foi feita em caminhões por alguma
tropa que tínhamos em reserva.
Prisioneiros em grande numero. Muito material de guerra aprendido.
Assim, os louros desta valiosa conquista sorriam às armas federais,
facilitando–lhes a penetração por São Paulo.
Buri, não obstante ter em seu seio grande parte de população que já
voltou aos lares, continua a ser revolvida e ensanguentada pelos aviões
paulistas. Ontem foram feridos sete soldados. Hoje, dois oficiais e um
soldado do 3.° G.I.A.P., além de quatro civis. Está de parabéns a indústria
bélica de São Paulo. As suas bombas, de fato, são de grande poder de
destruição. As de hoje alcançaram um camarada desalojado, jogaram–n’o
contra a parede pela violência do deslocamento do ar, contundindo–o,
seriamente, mesmo sem ser atingido pelos estilhaços. Outro soldado, pelo
mesmo efeito de sopro, ficou várias horas em estado de coma, mesmo
atingido a quinze metros do arrebentamento.
O estrago em Buri continua, pois. Parece que pretendem destruir
totalmente a vila. Não levem em consideração que, de volta, já se acham ali
varias famílias que ocorreram ao apelo das forças federais, no intuito de
normalizar, quanto possível, a vida do lugar.
Em compensação continua, também, – mas sobre as trincheiras do
inimigo – o bombardeio dos nossos aviões. O General Waldomiro proibiu,
terminantemente, qualquer investida da arma aérea sobre as cidades.
A mortandade que as nossas asas causam é igual á que sofremos – Na
guerra, como na guerra. Ontem os adversários experimentaram as nossas
bombas de cinquenta quilos, de estilhaçamento rasante. Coisa terrível. Na
nossa posição de descanso, a sete quilômetros da frente, as bombas
estremeciam tudo. E, mesmo sabendo que o bombardeio era sobre as linhas
contrarias, não pudemos conter o espanto. Todos os homens escutaram,
atentos, abismados, o estrondo a inquietar todos os seres vivos num raio de
dez quilômetros! Efeito moral e material formidáveis, os da Aviação!
São 16h30. Recebemos ordem para avançar, transpor o Rio das Almas
e apoiar o avanço do Destacamento Boanerges. A ponte sobre o referido rio,
na estrada para São Miguel Arcanjo, além de destruída parcialmente,
recebia, ainda, nutridos fogos do inimigo. Mas o 5.° B.E. (Batalhão de
Engenharia, de Curitiba) lançará, mais à direita, uma ponte que permitira ao
Destacamento Boanerges avançar, contornando o flanco esquerdo do
adversário. A ponte, mesmo feita ás pressas, oferecia resistência suficiente
para a passagem da Artilharia. Mas por prudência, passamo–la com os
animais desatrelados, já quase noite. Chovia bastante. As taboas da ponte,
novas, eram escorregadias. Contudo, não houve acidentes.
Antes, já havíamos feito os necessários reconhecimentos dos objetivos
e da posição.
As I.° e 3.° Baterias do 9.° R.A.M., bem como a I.° do G.I.A.P., haviam
atirado o dia todo, sem que, porém, se resolvesse a situação. Agora, a nossa
Bateria vinha ocupar posição além do rio, passando pela ponte de
emergência, para bater o flanco esquerdo do inimigo.
Foi marcado, para às 6 horas do dia seguinte, novo ataque às posições
inimigas que, justiça seja feita, resistiram valorosamente aos bombardeios de
Aviação, de Artilharia e às frequentes arremetidas dos nossos infantes.
Ocupamos posição à noite para apoiar o novo ataque.
Antes a 1ª. Bateria do 5° G.A.Mth. fizeram algumas salvas sobre
objetivos fugazes (Mais tarde alguns prisioneiros nos informaram que esses
tiros atingiram, em cheio, um caminhão que fazia o abastecimento do
pessoal).
É noite. Vamos aproveitar o estio para organizar a posição. Nossos
soldados estão cavando sem descanso. Precisam abrigar–se solidamente,
pois a Artilharia contrária, durante o dia, enquadrara as 1ª e 3ª Baterias do
nosso Regimento e a 1ª do 3° G.I.A.P.
É meia noite. Estão terminados os trabalhos. O pessoal vai armar
barracas para se livrar da chuva que vem chegando. Vento forte. A luz da lua
não chega até nós, pois há numerosas nuvens. Perto da gente continua,
através o negror da procéla, o gargalhar de armas automáticas. Certamente
os irmãos inimigos, em vista da distância reduzida que os separa, o
prolongarão toda a noite. Evitam–se mutuamente, alguma surpresa.
Vamos repousar sob o zunido das balas por dentro do mato. Os homens
do serviço de vigilância velarão pelo nosso sono. É forçoso que o
conciliemos. Amanhã, dia de combate teremos muito o que fazer...