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1º TENENTE CLÓVIS GONÇALVES

1º Bateria do 9º Regimento de Artilharia Montada


Destacamento de Exército do Sul

O FRONT EM 1932

INDICE

AOS LEITORES

MORUNGAVA
ITARARÉ
BURI
COMBATE DE BURI
ESTAÇÃO VITORINO CARMILO
ESTRADA BURI – CAPÃO BONITO
COMBATE DO RIO PARANAPITANGA
CAPÃO BONITO
COMBATE DO RIO DAS ALMAS

COMBATE DO RIO PARANAPANEMA


Nunca, em nossas cogitações, havíamos pretendido escrever um livro.
Mas, após a Revolução Nacional de 1930, surgiram, pelos jornais e
livros, narrativas irreais dos acontecimentos de Itararé. Uma ideia, então, se
nos apossou do espirito no soar do clarim de guerra de Julho ultimo: reunir
em um livro as impressões que colheríamos em pessoa no front, aonde nos
levaria, certamente, o desejo de manter, em toda a plenitude das suas
realizações, a ideologia sã cuja implantação nos destinos do Brasil, tantos
sacrifícios nos custara em 1930.
Reconhecemos que o nosso livro encerra lacunas e erros. Não somos
escritores. Escrevemo–lo na linha de frente, em plena eclosão dos embates,
algumas vezes. Que os corrijam, agora, – se o quiserem – leitores e críticos
da quietude e paz das suas residências.
É comum, após as guerras, aparecerem as glórias e os heróis. Mas
nesta guerra fratricida que nos vem de enlutar a Pátria, ruinosa sob todos os
pontos de vista em que a encaremos, não há heróis, nem glórias. Há
misérias. Temos consciência de que cumprimos com um dos mais elevados
deveres para com a coletividade, apontando–lhe os horrores de uma
carnificina em que se trucidaram irmãos, para atender aos caprichos e
interesses de plutocratas e politiqueiros de São Paulo. Que caia sobre estes,
responsáveis por esta avalanche de sangue e de ódios, perturbadores
criminosos da ordem e do engrandecimento nacionais, a maldição de toda a
Pátria Brasileira!

CLÓVIS GONÇALVES
Rio de Janeiro, 1933.
Estamos no Morro do Cafezal, na estrada Sengés – Itararé. Em 1930 a
vanguarda do Exército Revolucionário havia conquistado em combate essa
linha de alturas, que tem amplo comandamento sobre todas as imediações
da Faz. Morungava onde se travara forte combate em 16 de Outubro. Jamais
nos havia passado pela mente, em tão curto espaço de tempo, ter que voltar
em operações de guerra a estas paragens. Ainda temos, nítidas na memoria,
as impressões da violenta refrega em que, daquelas posições, apoiamos o
avanço da Infantaria. Encontramos, rapidamente, vestígios dos nossos
entrincheiramentos. Contemplamos o teatro da sangrenta fuzilaria de onze
horas ha dois anos atrás.
A simples observação daqueles lugares nos traz aos olhos os quadros
que antecederam o advento das diretrizes revolucionarias de agora. Quase
estamos vendo o transporte comovedor dos que tombaram em defesa de tão
rútilos ideais. Temos a impressão de ouvir ainda, o gargalhar das armas
automáticas.
Localizamos, as longe, numa fácil recordação, os objetivos que
martelamos na breve campanha. Parece que estamos ouvindo, também, os
estrondos rigorosamente cadenciados das salvas da Artilharia pesada
inimiga, em posição na orla sul de Itararé. A morte do bravo Cap. Izaltino, o
bombardeio mortífero da manhã de 17, da Faz. Morungava, que surpreendeu
e vitimou muitos dos soldados da Revolução, os pedidos insistentes de
reforços na ala direita, a noticia de prisão de parte de 8.° R.I., avultam na
nossa evocação da memorável jornada outubrina. Decorrido tão pouco
espaço de tempo, eis–nos novamente a braços com a guerra civil! Se a
rápida luta armada de 30, não obstante os motivos de toda a ordem que a
tornaram imprescindível, tanto enlutou a nacionalidade, que dizer, agora,
desta rebelião que se não justifica por nenhum prisma em que a encaremos?
Novamente as energias brasileiras desviadas do trabalho fecundo das
cidades e dos campos para a lide das trincheiras!
Desta vez o Morro dos Coqueiros (além de Sengés) e o Cafezal, bem
como a Faz. Morungava, já estão, inicialmente, em poder das forças
federais. Não será preciso ensanguentar, novamente, essas posições
avançadas do inimigo de 1930. Desta feita realizar–se–á o combate às
portas de Itararé. Não ha probabilidade de nova pacificação na hora h do
mesmo. Foram ocupadas as mesmas posições de onde, em 1930, se
desencadearia o bombardeio sobre as linhas reacionárias. Provavelmente
dava–se o mesmo como o inimigo. Havia em tudo coincidência com os
episódios que se passaram em 1930. Aqui, os consolidadores do código
revolucionário, fieis á memoria sagrada dos que jazem, tombados, na defesa
no mesmo ideal que impulsiona os de hoje, nestes tristes lugares.
Lá se congrega o reacionarismo que, batido uma vez, não temos duvida
que o será novamente.
Temos certeza de que a resistência será fraca. O inimigo já tentou,
antes do primeiro tiro, parlamentar conosco.
Na arrancada de 1930 os reacionários tinham a bandeira cômoda da
defesa do governo constituído. Resistiram com relativa tenacidade. Mas
agora? Confundem–se, enfraquecem–se, nas incoerências da Revolução
Constitucionalista... Com efeito, arrastar o País á guerra civil sob pretexto de
apressar a Constituinte, cujas respectivas eleições o Governo Provisório já
havia marcado... Pretender a Paz dos espíritos, pelo estabelecimento da
ordem legal, mas ensanguentando, antes, a Pátria pela mais ignominiosa
das guerras?!
Apenas pela impaciência de alguns meses? É que, para o politico
profissional, é indiferente o rumo que tomem os fatos. Em caso de vitória
usufruirá, nababescamente, a salvo das balas, do que o soldado conquistou
na insânia das trincheiras... Em caso de derrota, ha o clássico
sentimentalismo da nossa raça...
A ideia da manobra de 1930 sofreu alteração agora. Aquela consistia
na fixação de frente do inimigo, pelo Destacamento. Silva Junior, com o
desbordamento pelas duas alas: a esquerda pela cavalaria do General
Flôres da Cunha, a direita pelo Destacamento Alexino. O General Flôres
visava Ibiti, a primeira estação além de Itararé. A pacificação feita no Rio de
Janeiro impediu que o ataque se realizasse, mas os destacamentos
desbordantes realizaram a sua missão, tendo, porém, o inimigo abandonado
a vigilância sobre os passos do Rio Itararé.
Agora em 1932 seria feita idêntica fixação de frente pelo
Destacamento Coronel Sayão, com desbordamento pela ala esquerda pelo
Destacamento Coronel Silva Junior. Este Destacamento seguiu o mesmo
itinerário do General Flôres em 1930. Atravessou o passo Cipriano, com
agua pelo peito, pois a ponte mandada lançar não ficará pronta em tempo.
O Destacamento ficou com o seguinte dispositivo: I.° Reg. Cav. da Brig.
Militar e II/8.° R.I. reforçado por elementos do 15 B.C. em primeiro escalão,
apoiados por uma seção do 5.° G.A. Mth. Em reserva ficou o 2.° B.C. O
inimigo dispunha de comandamento sobre a zona de progressão. Para evitar
as desvantagens de um ataque frontal, far–se–ia, em pequena envergadura,
o envolvimento da ala direita inimiga. Mas esta pequena manobra não se
realizou. E foi feito um penoso ataque frontal. Nós que fazíamos a fixação da
frente, no Destacamento Sayão, ouvimos, durante todo o dia 18, a cerrada
fuzilaria. Os campos de Morungava novamente eram perturbados pelas
atividades febris de irmãos em guerra. Estávamos aguardando, com
ansiedade, o resultado da missão da nossa ala esquerda. Conseguiriam os
companheiros provocar, pela manobra, a queda das celebres gargantas do
Rio Itararé?
Desde 1894 que aquelas barreiras ganharam fama de
inexpugnabilidade... Era com certa apreensão que aguardávamos o fim
daquela jornada. Não tínhamos duvida quanto ao que se estava operando à
nossa esquerda. A triste expectativa era, pouco depois, confirmada pelo
grande numero de baixas sofridas de parte a parte. Nas nossas fileiras
tombaram, heroicamente na defesa dos ideais por que tanto batalharam em
30, os tenentes Hinon Silva, do 15 B.C. e Aguiar do 8.° R.I. ambos à testa
dos seus pelotões.
Na véspera o II/13 R.I., apoiado pelo 9.° R.A.M. em posição no Morro
Pelame, havia forçado o inimigo a abandonar a suas posições no Morro do
Serrado, facilitando, assim, a progressão do Destacamento Silva Junior.
Agora, enquanto este Destacamento desborda a ala direita inimiga, estamos,
nós do 9.° R.A.M. fazendo tiros de inquietação sobre a orla sul de Itararé,
com o máximo cuidado para evitar que algum tiro de longe faça estragos na
cidade.
Encarregada dessa missão está a 1.ª Bateria do 9.° R.A.M. As 2.ª e a 3.ª
estão em posição de espera, sem missão ainda. Mandaram–lhes os
comandantes ocupar a posição na primeira linha de alturas, além da Faz.
Morungava. Mas ao serem feitos reconhecimentos estes foram recebidos a
schrapnels da Artilharia inimiga que se não manifestará até então. Houvera
equivoco. A tal linha não fora ocupada ainda, pela Infantaria. Retrocedemos.
Os schrapnels continuaram a arrebentar em tempo sobre onde havíamos
estado. Voltamos á posição de espera, à margem da estrada de Sengés–
Itararé (a 5 quilômetros desta). E como não viesse nenhuma outra ordem do
comando, bivacamos ali mesmo, após serem tomadas as rigorosas
precauções que a proximidade do inimigo exigia.

Ao passarmos à 1 hora da madrugada pelas posições do 13 R.I., os


soldados deste Regimento estavam dormindo nos seus abrigos individuais.
Homens a dormirem dentro de buracos, para homens mortos pouca
diferença apresentam. A impressão para quem vae entrar em combate é
bem desagradável. Aquele quadro era de efeito nefasto para os nossos
soldados de apenas dois meses de instrução, sem confiança, portanto, na
sua aptidão militar. Os cavalos também se assustaram. Algumas viaturas,
por isso, estacaram ali mesmo, na linha mais avançada, num local batido
pelos fogos inimigos.
Durante o dia repetiu–se uma cena já nossa conhecida de 30. De
quando em vez se ouvia o estampido seco dos mosquetões à retaguarda.
Sempre a mesma inquietação. Sempre o mesmo sibilar sinistro. Era a
matança de porcos à bala que em 1930 nos custará algumas vidas.
Propriamente não há fome, pois não tem chovido e as estradas têm
permitido o transporte de viveres. Porem os soldados querem melhorar as
rações, pouco importando, a eles, que alguma bala perdida produza a mais
estupida das mortes...

Passam, diante de nós, algumas famílias que haviam deixado a zona de


operações e que, deslocada a luta para mais longe, voltam ás suas casas,
ainda assustadas com o bombardeio dos dias anteriores. Fizemos–lhes
perguntas. Aquela gente, simples e Boa, expandiu–se conosco, deixando
transparecer nas palavras o terror pelas operações de guerra. Falaram–nos
de mortes, de privações que sofreram nas matas, etc. Disseram–nos que um
daqueles meninos (eram cerca de trinta pessoas, dez crianças) quase fora
atingido por uma bomba de avião. Deitara–se, ágil e esperto, ao perceber o
assobio da mesma.

Depois de realizada a primeira missão desta campanha, (apoio ao II/I3.°


R.I.) recebemos ordem para ocupar nova posição de onde apoiaríamos o
avanço do Destacamento Coronel Sayão sobre Itararé. Ao iniciar a marcha
fomos surpreendidos por intenso bombardeio aéreo. Repetia–se, assim, uma
cena já nossa conhecida, daqueles mesmos lugares, na campanha de 30.
Era um avião, apenas, a inquietar a gente. Contemplámos, com atenção, o
pássaro indesejável que, de quando em vez, deixava cair qualquer coisa
reluzente á luz do sol, seguindo–se um formidável estrondo! As
metralhadoras de que dispúnhamos eram improprias para a vigilância
antiaérea. Mas a imperiosa necessidade do momento lhes atribuiu tal
missão. Crepitavam, vertiginosas, sem conteúdo, alterar o indiferentismo do
avião que prosseguiu na faina de morte. Reduzidas à maior neutralidade, as
metralhadoras matraqueavam improficuamente. Às vezes o avião abaixava e
respondia, pelo tiro espaçado das suas, ao desafio das nossas.
Estes momentos lugares foram testemunhas, em 30 como em 32, do
ódio provocado nos nossos soldados pelos bombardeios aéreos, ódio
traduzido em absurdos tiros de fuzil, mosquetão e até mesmo de pistola.
Constituem os mesmo grande perigo, pois as balas sibilam por todo o lado,
perdidas, oferecendo mais riscos que as próprias bombas que a dispersão
afasta da gente. Muito soldado não compreende a resistência do ar, o limite
dos alcances das armas, por mais que lh’os expliquemos no quartel. Muitos
deles, vindos do Sertão para as fileiras, nunca tinham visto, mesmo, os
poderosos aviões que a inteligência humana engendrou para acelerar o
progresso do século, mas que foram desviados para aumentar a eficiência
dos meios de morte da guerra atual.
Por lamentável coincidência, as vanguardas sulinas, nas duas
campanhas, tiveram em Morungava inferioridade no ar. Os aviões
reacionários realizaram, com a maior segurança, a sua missão. Não tivemos
sequer um avião para encorajar os nossos homens. Em 30 a então
legalidade corvejou sobre nossas cabeças, representada por vários aviões.
Agora se repete a mesma supremacia aérea das hostes reacionárias. Mas,
esse bombardeio de apenas um avião teve alguma vantagem para nós.
Preparou–nos, inconscientemente, a tempera para resistir aos formidáveis
bombardeios de esquadrilha que teríamos, mais adiante, com o
prolongamento da guerra.
Vamos iniciar a marcha para Itararé. Segundo o ultimo comunicado do
alto comando, a cidade fora abandonada pelos paulistas. Nossa infantaria já
havia ocupado. Estávamos ansiosos por passar a barreira famosa do rio cuja
posse, em duas campanhas, tanto sacrifício exigira aos legionários de
Outubro. Fizemos a marcha sem incidentes, mal grado o terreno apresentar,
amiúdo, aclives penosos, para viaturas hipomóveis. Em parte a estrada é
arenosa, o que a torna dificilmente praticável pela Artilharia. Passamos a
ponte colonial que dá acesso á cidade. O Rio Itararé, nesse trecho, corre, em
grande profundidade, apresentando inúmeras cascatas. Parte do curso do rio
é subterrânea, o que constituem notável originalidade. Em 1930 a cidadela
se nos afigurara intransponível, a quando da marcha que, em idênticas
condições, fizemos sobre a cidade. Agora, mais uma vez, constatamos a
conformação favorável à defesa desta região. A única estrada de acesso à
cidade, sinuosa e de areia clara, serpenteia lá em baixo, enfiada em todo o
trajeto por armas automáticas que se colocassem nas elevações que a
margeiam, tornando–a inexpugnável. (E’ claro que na hipótese de terem os
defensores eficiência militar e firme vontade de resistir). Vamos iniciar,
Agora, a subida da célebre barreira do rio. É íngreme. Precede as primeiras
casas. Varrida por metralha vinda da crista militar, torna a cidade, de fato,
intransponível e sem manobra.
A noite está enluarada e amena. O entusiasmo a transparecer do
semblante dos soldados casa–se á beleza do firmamento. Itararé
conquistada! Que sensação agradável para quem o vinha esperando através
de tantas jornadas exaustivas!
Itararé, reduto famoso da História, em poder das tropas do Sul! Que
contentamento indescritível o dos atacantes! Ao se avizinharem da cidade,
todos como ainda ouvem o abre–te Sésamo! que, vindo das gargantas de
aço da Artilharia ecoara pelas gargantas destes montes, abrindo–lhes as
portas aos vencedores!

Vamos pernoitar numa casa da urbs itararense. É um palacete novo da


rua São Pedro. Esta casa foi, quando da ocupação das forças paulistas,
Hospital de Sangue. Há manchas vermelhas por todo canto. Mas a sorte
encerra destas ironias: ontem, os gemidos, os estertores dos feridos em
combate, a oscilarem, na maior das angustias, entre a vida e a morte; hoje
uma plêiade orgulhosa e feliz do êxito obtido nos mesmos combates! Risos,
anedotas, alegrias... Antes um quadro desolador e pungente da feroz luta
inglória que abala a alma nacional. Agora as explosões entusiásticas da
vitória!
Contraste doloroso...

Vamos, Agora, ouvir a população do lugar, agitada pelos rigores da


guerra. O governo de São Paulo nada tem feito pelo município. Nunca o
procurou dotar dos melhoramentos que, nos bons tempos, prodigalizava às
demais cidades. Itararé vive esquecida e decadente, arrastando um pesado
fardo que é a sua situação estratégica. Pretenderam ligá–la a Fartura, mas a
construção da estrada foi suspensa por questões de favoritismo politico. O
seu comércio teve, então, graves prejuízos com o calote forçado de
empreiteiros, trabalhadores, operários, etc.
A revolução de 30 encontrou Itararé a debater–se, pois, nas
consequências da suspensão da referida estrada. O reacionarismo, apelando
para a sua conformação topográfica, lembrou–se daquele lugar abandonado,
mas para uma ocupação militar. As forças estão governistas ali estiveram em
Outubro e isto valeu aos itararenses por uma verdadeira nuvem de
gafanhotos. O pagamento das requisições então feitas, até hoje é visto por
um óculo. As forças devastaram tudo. Aliás isso é natural, pois o efetivo
concentrado era deveras numeroso. Felizmente os revolucionários vitoriosos
estiveram ali só de passagem.
Extinto o facho rubro da revolução de 30, São Paulo, que tivera em
Itararé, a inconsciente defensora das misérias do perrepismo, nunca mais
voltou as vistas para a sua gente, que se debate na maior das crises, após
tantas extorsões.
9 de Julho. A lábia execrada dos agitadores lograra êxito na alma
simples do povo bandeirante, arrastando–o á guerra civil. Novamente São
Paulo acorreu a dar o golpe mortal em Itararé, com a segunda ocupação
militar. Desta vez as tropas ocupantes eram irregulares. A requisição,
regulamentar e legal, transformou–se em violenta rapinagem. Casas
arrombadas, negócios reduzidos a escombros. Quase toda a população
abandonou a cidade. Não era possível suportar aquela vida de desrespeito e
de violência. Eram 2.200 homens. Sugaram de Itararé o pouco que lhe
restava de 1930.

Nas trincheiras reacionárias, segundo o testemunho dos itararenses,


havia em parte voluntários das academias de São Paulo enquadrados pelos
soldados da Força Pública. Assim ficaram vários dias nas trincheiras,
alardeados, aos quatro ventos, que ninguém passaria a barreira do Rio
Itararé. Ao se iniciar, porém, o bombardeio a valentia de muitos se eclipsou,
completamente. Logo aos primeiros tiros estabeleceu–se, de modo incrível, o
pânico nas trincheiras reacionárias. Os cultos soldados das escolas
superiores passaram a gritar, uns aos outros: – Sauve qui peut! utilizando–se
de linguagem estrangeira para garantir a retirada á custa do sacrifício dos
soldados da Força Pública. Que contraste imenso entre as bravatas da
véspera e a subsequente traição, dizem–nos agora os itararenses.
Um oficial da Força Pública afirmou que, ainda nas trincheiras, os seus
soldados bem compreenderam o significado daquelas palavras, mas, ao
medo, embora lhe faltassem os recursos morais da inteligência culta, sabiam
sobrepor o sentimento da honra e do dever.

Ao se iniciar o bombardeio da Artilharia em posição na Faz. Morungava,


aos primeiros tiros, os reacionários julgaram, ingenuamente, que se tratavam
de foguetões. E foram logo atrás do Sr. José Piedade, pirotécnico do lugar,
prontos para fuzilá–lo. Mas pouco depois essa medida assassina (pois não
estavam eles em lei marcial) era prontamente castigada com a certeza de
que se tratava, de fato, de Artilharia.
Os reacionários haviam percorrido a cidade, antes do combate, a gritar
em caminhões:– <O 13 é canja!> <O 13 é canja!>, crentes de que a luta
seria, apenas, com 13 R.I. de Ponta Grossa, Paraná. Falavam na adesão
dos demais Estados do Sul, de Minas, etc. à intentona perrepista. Mas ao se
certificarem da presença de outras unidades do Exército entre os atacantes,
dissipou–se, na mais amarga das decepções, o acalentado sonho de voltar,
em parada triunfal, após um arremedo de guerra, às ruas de São Paulo.
Apelaram, como vimos, para a linguagem estrangeira, traindo os
companheiros. Antes já haviam soltado os cavalos, que passaram em
disparada pela cidade, para evitar que a cavalaria os abandonasse. Assim,
em tão breve tempo após o inicio da luta, não existia solidariedade nas
fileiras reacionárias. O comando não tivera energia suficiente, para vencer o
pânico provocado pelo conhecimento da verdadeira situação militar.

A retirada foi feita em desordem. Haviam preparado um trem para as


famílias que quase obrigaram a deixar a cidade. Espelharam noticias
malévolas a respeito dos atacantes. Atribuíram–lhes as maiores
perversidades. Chamavam–nos de jagunços. No estado de pavor em que se
achavam, acabaram por olvidar o dever de humanidade que os fizera
preparar, em primeiro lugar, a retirada das mulheres e crianças.
Locupletaram–se no trem adrede preparado. Nada os deteve na pressa da
fuga, provocada por um inimigo atacante de muito menor efetivo.

As perversidades que os reacionários nos atribuíam denota–se–lhes nos


menores atos da sua péssima conduta militar. A artilharia dos atacantes
estava em posição tal que podia atirar sobre Itararé. Não o permitiu, porém, o
General Waldomiro. Entretanto, a hediondez do caráter dos reacionários
considerou os itararenses que se não quiseram sujeitar aos rigores de um
êxodo terrível, como inimigos. Pouco depois se esqueceram os fugitivos do
acolhimento que lhes dispensara a população do lugar. E o seu avião alçava
voo para lançar covardemente, bombas sobre a cidade, matando mulheres e
crianças, destruindo casas, espalhando o terror e a morte por entre os seus
próprios coestadoanos, sem que os vencedores houvessem ainda penetrado
na mesma. Em geral, a agonia, seja do que for, desperta, sempre, o
sentimento de perdão, piedade. O perrepismo, ao contrario, agoniza
despertando inenarrável repulsa. A crueldade que vem acompanhando os
seus estertores está a nos recordar o célebre Vae victis de Breno, que,
agora, se adapta às punições a que fazem jus os responsáveis por esta
calamidade.

Com os reacionários veio a Itararé um precioso assecla do perrepismo,


um tal Paes Leme, com as funções de delegado. Este chegou ao cumulo de
organizar um pelotão de fuzilamento para se vingar, com o terror espalhado
pelo mesmo, da ousadia do povo itararense em ter pedido, anteriormente, o
afastamento desse individuo que, nas mesmas funções, se excedera em
incríveis arbitrariedades.
Itararé sempre destoara do diapasão perrepista de quase todo São
Paulo. Por isso lá nunca houve eleições sem bico de pena, sem violência,
sem coação. Aproveitava–se, Agora, o ensejo para esmagar o elemento
revolucionário da cidade que tivera o desassombro de protestar contra a
organização das Frentes Únicas. Daí a missão confiada a Paes Leme, cuja
valentia provinha do pelotão de fuzilamento com que espezinhou aquele
povo infeliz, cujo grande crime consistia em ter pretendido manifestar
livremente o seu pensamento.
Inúmeros lares foram invadidos pelo atribulado delegado de emergência.
Caçaram–se os revolucionários como animais daninhos e nocivos! Ouvimos,
da boca dos itararenses, casos de morte provocados pelo terror espalhado
pelas botas de Paes Leme!
Pobre gente de Itararé!

A cidade pelo aspecto não esconde a penúria em que se debate. Não é


calçada, não tem esgotos e a luz pálida que lhe ilumina as ruas é
emprestada de outro lugar. Vive em completo abandono. Na época de
eleições era procurada pelo cabo eleitoral Nenê Sobrinho, mandatário do
perrepismo. Com a força de patriotas que sempre trazia para garantir–lhes
as arbitrariedades, este coronel da politica de campanário impunha o bico de
pena, barrando a tiros a livre manifestação de pensamento ao povo. A
maioria dos democráticos de Itararé, após a união do partido ao P.R.P.,
aderiu ao Club 3 de Outubro que continuou a batalhar pelo soerguimento
politico e administrativo do País.
Esta espontânea adesão acarretou ao município uma serie incontável de
violências e de ódios que culminaram com a rebelião de 9 de Julho. Muito
antes, como é publico e notório, o P.R.P., valendo–se da excessiva
complacência dos vencedores de 30, já se havia reapoderado do governo.
Assim, o povo de Itararé se tornara réu do mais grave dos crimes: –
abstivera–se de ler pela cartilha execrada do perrepismo, que condensa
enorme rosário de calamidades praticadas, em tantos e tantos anos, á
revelia da magna carta de 91.

Vamos aproveitar estes instantes de folga, para visitar os nossos


camaradas que têm chegado das mais longínquas guarnições, em defesa da
Revolução de 30, cuja marcha realizadora, a noite imensa do perrepismo
tenta, vãmente, destruir.
Antigos, camaradas, que há tanto tempo não vemos, são estreitados em
saudosos amplexos, que relembram toda a atividade incansável e insana dos
bancos escolares do Realengo.
Quanta transformação se há operado na nossa vida, após a separação
que o oficialato nos impôs! Quanta prisão escolar, quanto exame difícil,
quanta alegria expansiva e só de cadete, quanta recordação da adolescência
despreocupada e feliz nos vem comover neste momento! Como a sorte
reservou á nossa geração, que apenas dá os primeiros passos da
maioridade, o pesado encargo de, lutando contra a inércia da geração
passada, preparar, pela seleção brutal das armas, o ambiente para a
reconstrução do patrimônio nacional!
Como contrasta, com os nossos devaneios e sonhos de ontem, o
ignominioso cortejo de desgraças desta guerra entre irmãos!
Naqueles fortes amplexos – de corpo e de espirito – sentimos todo o
horror de estar empregando o que nos ensinaram os Mestres do Realengo,
na cruel matança de irmãos divididos em campos antagônicos pelos
caprichos de uma politica malsã, maquiavélica, nefasta...

São 2 horas da madrugada. Todo o nosso Regimento repousa.


Acabamos de chegar na cidade, onde fomos ouvir a alma sofredora da gente
de Itararé. Somente agora é que podemos iniciar nossos apontamentos.
Colhemos impressões quase de porta em porta. Assim queremos evitar que,
ouvindo apenas uma minoria descontente, sejamos levados a falsear,
involuntariamente, a realidade dos fatos. O delegado escolhido pelos
vencedores nos convidara para constatar, de visu, as depredações que
Itararé sofrera. Casas arrombadas, incendiadas, utensílios quebrados e
revolvidos pelo chão, tudo apresentando um aspecto desolador. As
farmácias, as casas de negócio, todas tinham sofrido roubo considerável,
sob a capa de requisição sem documento. Era contristador o conjunto da
cidade às escuras, abandonada. Continuava, altas horas da noite, o êxodo
do resto da população civil, amedrontada com os boatos que corriam de
próximo bombardeio da cidade. Carroças inúmeras, cheias de mulheres
crianças a deixarem, angustiadas, os seus lares!
Sofrimento atroz o de emigrar dentro da própria Pátria!
Pobre gente!

É com certa emoção que vamos entrar no Hospital de Sangue. Vamos


visitar os que sofrem as consequências dolorosas dos ditirambos do
perrepismo. Vamos ver, no seu leito de dor, soldados que estão sofrendo
agruras da guerra. Vamos levar–lhes conforto de nossa solidariedade á
atitude que assumiram contra os perturbadores da ordem.
Examinamos, detidamente, cerca de quarenta jovens que, na maioria,
se contorcem nos leitos. Alguns oscilam entre a vida e a morte. Outros,
talvez pelos ferimentos leves que receberam, mostram–se mais calmos e
resignados com a sua sorte. Todos, porem, bem assistidos pelos aparelhado
corpo de saúde da emergência, que a filantropia de Curitiba enviou ao front.
Os feridos que têm o uso da palavra fazem questão de nos dizer que,
logo que possam, pretendem pegar em armas novamente. Quanta bravura
desperdiçada no próprio campo da Pátria!
E ficamos a pensar na impunidade em que, mercê do sentimentalismo
da raça, de certo hão de ficar os provocadores de tanta desgraça.
Quanto emprego rendoso, quanta posição de mando, ambicionados à
custa de sangue de irmãos!
Soldados! Estais nos leitos de dor que competem, por justiça divina, aos
agitadores de proclamações, de meetings e de jornais de São Paulo!
Esses, que a esta hora se encontram no recesso confortável dos seus
lares, espreitam a ocasião, para, indiferentes ao martírio semeado, não só
nas nossas como nas próprias trincheiras paulistas, galgar as posições que o
idealismo falso e vil vislumbra, através a densa atmosfera de ódio, de miséria
e de sangue que fez desencadear!
Ó arauto criminosos que falais de Liberdade e de União do Brasil
quando, na realidade, lhe destruís a paz e a prosperidade!
Ó palradores de palavras ocas! Bem que sabemos não terdes a
coragem de entrar neste Hospital de Sangue, nesta casa de dor, neste
ambiente entrecortado de gemidos que fizestes surgir no seio da Pátria! Se o
fizésseis só vos restaria o caminho de vos justiçar, por vossas próprias
mãos. Por essas mãos nefandas que gesticulam na praça publica a incitar o
povo á contra revolução! Por essas mãos execradas que traçaram os
antigos, os discursos que impeliram a massa irrefletida á tragédia das
trincheiras!

Chama–se Marcelino Mendes. É do 15 B.C. Trouxeram–no ao front de


Itararé. Sabia que vinha guerrear, pois lhe deram equipamento, armamento e
munição. Contra quem não sabia. E não sabia, <ipso facto> por quem. Em
Sengés recebeu a ordem de avançar. Era um domingo excepcionalmente
belo e radioso. Na sua casa, em Curitiba – que saudade! – certamente
estaria gozando as delicias da Paz! Mas avançou. Na ponta da vanguarda.
Tiros inimigos. Armas automáticas e individuais. Tomou a formação de
ataque que mal aprendera em dois meses de instrução. Avançava. Ao se
preparar para um lance, sob o comando do valoroso Tenente Hinon, viu o
seu comandante cair morto e sentiu–se ferido. A mesma bala fatídica tivera o
destino cruel de pô–los fora de combate. O Tenente Hinon deixando o campo
da honra para a glória infinita da imortalidade. O soldado Marcelino, para os
cuidados sem limites do Hospital de Itararé.
Encontramo–lo bem disposto. O ferimento fora leve. Conversámos.
Olhos vivos, voz fraca, ele dizia, com a sua apreciável coragem, que
desejava restabelecer–se para voltar ao front. Disse–nos, ainda, – e o
perguntámos de proposito – que não sabia as causas da luta. Queria,
apenas, ir para a frente para mostrar que não tem medo...

É oficial superior do 8.° R.I., de Passos Fundo, Rio Grande do Sul.


Fazendo parte do destacamento Silva Junior, tivera a missão de desbordar o
flanco direto do inimigo pelo famoso Passo Cipriano. O oficial estava ansioso
pela luta. Prova–o a presteza com que trouxera até Sengés o seu Batalhão
que vira de tão longe. Mas não teve sorte. Atacado subitamente por moléstia
grave, em pleno combate, foi mais tarde recolhido sem sentidos ao hospital
de Itararé. Poucas esperanças havia de salvamento. Mas os desvelos da
ciência foram bem sucedidos. Pouco a pouco o doente foi voltando a si. Mas
a preocupação de espirito perdurou, mesmo com a moléstia. Ao reabrir
vagarosamente os olhos enfermos foi logo perguntando, a voz fraca ainda, á
incansável enfermeira que o assistia, talvez conjeturando a sua derrota, a
sua prisão: – É paulista?...

Sempre que nos resta algumas horas de folga – e isso nos custa muito,
pois a folga é estritamente necessária ao restabelecimento de energias –
prosseguimos a escutar o sofrimento de Itararé. Todos os interrogados – e
não são pouco – são acordes em afirmar que a revolução de 30 em nada
modificara a vida administrativa da cidade. Aliás isto se dera em todas as
cidades de São Paulo, triste reduto do perrepismo. Na administração os
mesmos elementos eivados de vícios dos tempos do bico de pena. Na
politica os mesmos coronéis do suborno, da violência, da fraude. Ao se
visitar a cidade, procurando conhecer a vida intima, tem–se a impressão de
que só as ruas e praças sentiram o efeitos da jornada de 30. Pois os seus
nomes se transformaram em: Rua Djalma Dutra, Rua Newton Prado, Praça
Siqueira Campos, Praça João Pessoa, etc...
Pediram quatro homens á nossa Bateria munidos de pás e picaretas.
Com a noticia das grandes mortes que o ultimo combate provocara, ficamos
algo apreensivos. Talvez se tratasse da inumação de mais uma leva de
patrícios, aos quatro e cinco, em sepulturas coletivas mal assinalados por
cruzes toscas, sem o nome dos sepultados, que, aqui, não têm, como na
Europa, as homenagens prestadas diante do pomposo tumulo de Soldado
Desconhecido.
E lá se foram os quatro encarregados da nobre missão de, na guerra,
realizar o multissecular pulvis est in pulverem reverteris...

Passamos por um pequeno café na cidade. Calor enorme. A garganta


está a reclamar algum liquido que suavize esta sensação de ardor.
Entramos. Atendeu–nos, pressuroso, um alemão que era o proprietário.
Desconfiados como todos os itararenses nesta época de malditas
requisições, botamos–lhe o olhar furtivo. Mas, com um certo tato, com a
paciência que a pratica do front nos dotara, conseguimos arrancar algumas
palavras daquele homem que mal conhecia o português. E ao fim de algum
tempo, conversamos como conhecidos antigos.
E fomos conhecendo a alma daquele germânico.
Começa por nos apresentar à sua família: mulher e dois filhos. Depois
foi buscar, orgulhoso, entre as coisas que considerava santas, a cruz da
guerra de campanha que Guilherme II concedera aos seus soldados de
1914. Contou–nos alguns combates em que tomara parte. Finalmente levou–
nos ao seu quintal onde organizara, com todos os seus recursos da técnica
moderna um sólido abrigo para os seus, não só á prova de Aviação, como
também de Artilharia. Pelo que vimos, aquele homem, de fato, já tivera em
operações de guerra. A vida dos seus estava a salvo de qualquer
bombardeio. Custara–lhe o abrigo um trabalho considerável. Mas, em Itararé,
o sobressalto, a insônia, o cansaço se havia apoderado de todos...

Estamos na Estação Sorocabana. Ha alvoroço e vozerio incomuns.


Passam, céleres, agentes de transmissão, soldados de serviço, patrulhas
embaladas, homens que conduzem cavalos á plataforma de embarque,
carros e caminhões que se destinam á linha mais avançada, etc. Num canto
da espaçosa estação, entre os objetos e papéis que os antigos ocupantes
lançaram aos quatro ventos, ao lhe depredarem o arquivo, está, aos olhos de
todos, mais um aspecto do imenso negror da luta que nos enxovalha e
ensanguenta. Com sentinelas à vista, ai está uma leva de soldados da Força
Pública Paulista recém–aprisionados, na maior imundície e em grande
abatimento moral e físico. Nota–se–lhes, estampado na fisionomia, o terror
de que se acham possuídos. De certo algum vencedor arrogante os
ameaçou, impiedosamente, de fuzilamento. Ante tal ameaça, abandonados
pelos que os trouxeram à luta, no meio de tanta gente estranha e agressiva,
a dor desses patrícios, que as contingencias da guerra colocaram nesse
transe, é sem limites. Ao se lhes fazer uma pergunta, em tudo, no tom de
voz, nos gestos de profunda obediência, no olhar tristonho e longínquo,
percebe–se que esses soldados foram lançados á trincheira ignorando a
situação atual do Pais.
Chegam a oferecer os seus serviços aos vencedores, para se verem
livre do olhar de desprezo e asco que lhes lançam estes que, tanto quanto
eles, não sabem o que estão fazendo. É quase certo que muitos desses
basofiadores da retaguarda, se tivesse sido aprisionados pelas hostes
contrarias, não saberiam dizer, bem como esses prisioneiros que aí vemos,
porque estão combatendo. Mas, uns e outros não têm culpa. Esta é dos que,
explorando a instintiva boa fé da gente brasileira, lhe lançou os elementos
uns sobre os outros, atordoando–lhe os ouvidos com promessas falazes de
salvação da Pátria.
Quanto manifesto , quanta proclamação, quanto discurso, sob a capa de
redenção nacional, têm incitado a gente brasileira á luta, quando esta,
apenas, tem por fim a escala rendosa de terceiros á administração publica!
Se a vitória sorrisse aos constitucionalistas, cessada a luta armada, vereis,
soldados, entrarem em cena as garras aduncas dos corvos de erário publico.
Então poderíeis rir – não todos, pois uma parte de vós haveria de jazer
esquecida nas tristes paragens em que tombou – do combate que, no
terreno da hipocrisia, do subterfugio, da traição, travariam entre si os
verdadeiros inimigos do Brasil, ao se empenharem na partilha de empregos,
secretariados, ministérios, etc. Soldados constitucionalistas! Vereis saciada a
sede nefanda de honorários, grandezas e mandos, á sombra de tantos
sacrifícios impostos á Nação!
Á vós, soldados constitucionalistas, está reservada unicamente a missão
de batalhar pela melhoria dos que vos lançaram à trincheira. Nada tereis, em
compensação, deste árdua jornada. Sois, apenas os instrumentos de
ambição desmedida de maus brasileiros, que não tergiversaram em enviar–
vos, com a sedução dos seus recursos intelectuais, á tragédia da guerra civil.
Cessada a inglória luta, se a vitória sorrisse a São Paulo tereis voltado –
na melhor das hipóteses – com a alma descrente e enlutada pelos que
vistes, vereis, então, a causa de tantos sofrimentos, de tantas mortes! Vereis
em que consiste a apregoada salvação publica.
Em macabras rondas de corvos: Corvos a voltearem sobre os cadáveres
de irmãos! Corvos a voltearem sobre os cofres públicos!

Ali acotovela–se grande massa humana. Inquieta, olha fixamente para o


interior de um vagão. Aproximamo–nos. É numerosa esta gente. Na maioria
velhos e mulheres. Ha crianças, também, e ainda mais assustadas que os
demais. Logo percebemos do que se trata. Este é o ultimo recurso que têm
para não morrer á fome. Vieram esmolar alguns gêneros da liberdade dos
vencedores. Os retirantes tinham levado tudo. O comércio está paralisado.
Ninguém pode obter, a não ser deste modo, os gêneros de inadiável
necessidade. É vergonhoso isto – dizem–nos alguns não ocultando a sua
aptidão física para o trabalho – mas a cidade está esgotada.
Esgotada, deserta, saqueada... Vencidos e vencedores lhe foram fatais.
E aí está essa gente a esmolar, a implorar o próprio sustento, que foi
desviado para a boca de militares irmãos que se destroem.

São soldados que tomaram parte no rude combate do flanco esquerdo,


em Morungava. Conversam alegremente. Todos contam, satisfeitos da
bravura como que nasceram – mas que vem de ser desperdiçada no Campo
Pátrio – os episódios daquela violenta luta. Atendem, com satisfação, ás
perguntas dos soldados de outras unidades que, cheios de curiosidades,
querem saber o que se passou no flanco direito do inimigo. E os heróis
descrevem, com a simplicidade que lhes é inata, a marcha de aproximação,
o engajamento, os lances do avanço, as situações criticas, finalmente o
assalto a arma branca e a retirada do inimigo em completa desordem.
Quando se referem aos seus mortos é com profundo pesar, é com
elogio á sua valentia. Quando, porém, se referem aos mortos do inimigo não
escondem a ferocidade com que os caçavam. Parece não compreendem,
entretanto, que a morte de uns e outros vem enlutar a alma brasileira!
Não percebem que mães, esposas, filhos brasileiros choram; do outro
lado, as vitimas desta guerra em que se defrontam irmãos contra irmãos!
Não vêm que o que destruíram foi um pedaço do coração do Brasil!
Não vislumbram, através a densa cortina de fumo e sangue que lhes
turva o raciocínio, que os mortos do outro lado da Pátria foram, também, os
mais valentes e foram soldados que deixarão lacuna sensível na defesa
externa do Brasil.
Como compunge essa narrativa fria e cruel de atrocidades entre irmãos!
E vão prosseguindo nas suas revelações.
Contam que, num pequeno capão, havia um ninho de metralhadoras
inimigas, com uns trinta homens aproximadamente. Os atacantes decidiram
evitar os azares de uma investida frontal. E os foram cercando, cercando, até
que, cortada a retaguarda, investiram contra os ocupante os quais,
irremediavelmente perdidos, levantaram os braços implorando a vida,
pedindo clemencia aos seus próprios irmãos! Mas estes – tão brasileiros
como aqueles miseráveis que não tinham culpa de estar ali – foram
implacáveis. Passaram todos pelas armas, ali mesmo, naquele momento
indelével para os que, Agora, nos pintam, friamente, esse quadro de dor.
Procuram inocentar–se. Dizem que os defensores haviam prostrado,
sem vida, os seus companheiros de ataque com tiros certeiros. Em respeito
á memória destes mortos sagrados não puderam poupar os inimigos. Estes
de braços para o céu, ou não, foram abatidos. Coisas da guerra.
Mas – como nos parece paradoxal! – ainda dizem que foram caridosos.
Dizem que, ao se dissipar o ódio causado pelas balas dos que tinham
acabado, por assim dizer, de fuzilar, cavaram fossas para serem sepultados,
aos quatro e cinco, aqueles pobres patrícios.
Julgavam que não deviam permitir, por elementares princípios de
humanidade, que aqueles cadáveres servissem de pasto aos corvos
aviltantes.
Os princípios de humanidade lhes ditaram isto.
Entretanto, pouco antes, não tiveram clemencia para homens indefesos,
de braços para o céu, a implorarem – irmãos a irmãos! – a vida. Princípios de
humanidade! Como variam infinitamente, assustadoramente, em curtos
instantes, nos mesmos corações! Não perdoam a inconsciente ferocidade
dos corvos! Perdoam a ferocidade consciente de fuziladores de irmãos!

Acaba de passar, para a retaguarda, um trem cheio de retirantes civis.


Leva muita gente, em completa desordem, sobre os vagões de carga. De
humanos têm apenas o aspecto. A imundice, a fome, a miséria como que
desnortearam essa gente, que vive á mercê da febril agitação de uma zona
de operações de guerra.
Mães se desvelando em cuidados para com os filhinhos que, de certo,
não compreendem o porque de tanto sofrimento. Só sabem é que os pais
vivem implorando viveres e passagens nos trens vazios, que vão buscar,
mais atrás, lenha humana para esta fornalha miserável.
Está, aos nossos olhos, um quadro triste que o cangaceirismo politico
transplantou, para aqui, das áridas regiões nordestinas assoladas pelas
secas.
Aqui, na zona reconhecidamente mais adiantada do Brasil, quase em
seu coração, este êxodo nos mostra as cenas dantescas do nordeste
inóspito. Esta absurda rebelião é duplamente criminosa: desvia, para o seu
imprescindível esmagamento, valiosas somas que bem poderiam minorar as
agruras dos que sofrem, no Brasil, a inclemência dos desertos... Depois esta
retirada imposta à população das cidades paulistas que, pela situação
geográfica, estão sentindo de perto os horrores da guerra... Além de impedir
o auxilio aos nordestinos, esta rebelião ainda vem criar, aqui no sul, uma
nova legião de flagelados...
Perrepismo! Como és canceroso! Tu a provocares, no seio fértil da
Pátria, esta calamidade que tem ceifado tantas vidas à bala, e à fome! É
imprescindível a tua radical destruição.
Nós te declaramos, perante o numero infinito de vitimas que alcançastes
na treva de tuas vis lucubrações, nós te declaramos guerra de extermínio!
Somente o teu aniquilamento absoluto nos poderá assegurar,
definitivamente, o ambiente de Paz e de Trabalho que o soerguimento
econômico do País está a exigir.
Os chefes de estação, do movimento, os maquinistas, os compositores,
os chefes de trem, os foguistas são verdadeiros heróis anônimos das
Revoluções. Causa admiração o supremo esforço desses dedicados
brasileiros, sempre prontos, sempre expeditos no cumprimento das missões,
que a mobilidade extraordinária das tropas em campanha lhes impõe.
Em 1930, Revolução Nacional, o esforço dos ferroviários era o reflexo
do esforço do povo que, de modo geral, abraçara a causa reivindicadora.
Era o próprio povo a fazer rodar trens e mais trens, noite e dia, sem
medir esforços ou sacrifícios. Lutando com a falta de material, com as linhas
propositadamente danificadas pelo inimigo retirante, lutando com toda sorte
de imprevisto, em 1930, os ferroviários bem mereceram a gratidão de todos
nós que realizamos, pelas armas, o que eles realizaram pelo transporte.
Agora em 1932, movimento tipicamente militar, com o fito de
restabelecer a ordem, os mesmos ingentes esforços.
Os ferroviários se têm desdobrado na sua nobre missão de reconduzir o
País ao saneamento que a Revolução vinha procurando fazer. Saneamento
moroso, é verdade, mas proporcional á corrupção administrativa em que se
debatia o Brasil do pistolão; o Brasil do filho ismo; o Brasil das eleições a
bico de pena; o Brasil da advocacia administrativa; da falsa indústria; dos
empréstimos desviados para os bolsos particulares; das promissórias,
emitidas pelos Estados; dos empréstimos feitos pelos Estados e Municípios;
das nababescas missões ao estrangeiro; das gorjetas nas repartições; dos
trusts; o Brasil das companhias estrangeiras que, quase sempre,
assalariavam membros até do Congresso Nacional; o Brasil roubado,
vilipendiado, exausto de quarenta anos de República...
Os inimigos da Revolução não querem compreender que as realizações
desta são, forçosamente, limitadas pela degradação geral que reinava em
todos os ramos da administração publica, antes de Outubro. Mas, pouco
importa. A consciência da nacionalidade reconheceu, de há muito, que a
Revolução, pelas suas diretrizes altamente patrióticas, se justificou,
amplamente, perante os que tombaram no campo de luta, abraçando o
movimento armado que a própria Pátria, de Norte e Sul, abraçará desde a
sua memorável deflagração.

Vamos deixar Itararé, afinal.


Ha dois dias que estamos com todo o material embarcado, à espera de
locomotivas que tirem as pesadas composições de Artilharia.
Não podemos deixar de fazer uma ultima visita á cidade.
Pobre Itararé. Como sofreste, indefesa, os maiores vexames! Como
causa piedade a contemplação das tuas ruas desertas, das tuas casas
abandonadas!
A fatalidade te reservou o mais rude dos infortúnios, qual o de seres
tratada como inimiga entre os próprios brasileiros!
Ontem as bombas de uns, hoje as bombas de outros!
Primeiro a pilhagem mal disfarçada em requisição; depois a explosão –
inevitável por nenhuma força humana – do ódio nascido das mortes que, de
boca em boca, corriam como sendo provenientes das balas de Itararé!
A suavidade da onomatopeia Guarany te denominou Itararé (pedra que
ronca), e, pela beleza das grutas que ornam a tua pitoresca porta de entrada;
pelo espetáculo majestoso e raro de ter, à frente, um rio fenomenal que tem
o seu curso em grande parte subterrâneo, enfim, pela índole pacifica do teu
povo, bem merecias melhor sorte.
Mas a Natureza pôs em ti uma coincidência trágica: – assim como o rio
que te deu o nome banha–te, na maior profundezas, sob enorme barreira
pétrea; assim com és inexpugnável, à luz do Sol, às brancas e puras aguas
do teu rio, quis a fatalidade histórica que em 1930, em 1932, fosses também
inexpugnável aos brancos e puros anseios da idealidade eloquente do Brasil
novo, a não ser sob a barreira, não pétrea, mas vermelha, indelével,
dolorosa, do sangue pujante que fizeste verter!
Estamos viajando com uma lentidão incrível. Fizemos em vinte e quatro
horas o que, em tempo normal, a gente faz em seis. Estamos exaustos.
Nossos cavalos, estão, todo esse tempo, sem alimento. Não ha plataformas
que permitam rápido desembarque.
Entretanto, ainda não entramos, novamente, na guerra. Mas o inimigo
também é brasileiro. Tem que se submeter ao desconforto, ao
atravancamento de uma via–férrea, simples, insuficiente, de rendimento
mínimo. O inimigo, como nós, tem a sua energia muito reduzida ao entrar
em combate, ao tratar da alimentação do pessoal, do embarque nos trens,
da espera nos desvios, do municiamento, enfim, de tudo que depende de
transporte A.S.P.R.G. todos a conhecem. Quanto às estradas de rodagem,
em dia de estio são quase impraticáveis; imagine–se, Agora, em épocas de
chuva...
Com os meios de comunicação de que o Brasil dispõe atualmente, nem
é bom falar em guerra com o estrangeiro. Na guerra civil, pelo menos, essas
dificuldades são comuns aos adversários. Ainda bem.

Esta ultima parte da viagem nos está parecendo bem melhor. É que em
Itapeva nos informaram que já se acha, ali, o nosso primeiro avião.
Deixamos, assim, de ser indefesos ás inquietações aos bombardeios da
avião inimiga. Custamos a crer no que nos afirmaram. Em 1930 os
comunicados oficiais, talvez com a intenção de levantar a moral da tropa, já
nos haviam iludido, frequentes vezes, com a chegada de vários aviões a
serviço da Revolução. Nunca os vimos. Embora lhes tivessem, até, atribuído
cores, com o fim de livra–los da caça das nossas metralhadoras, nunca
tivemos a menor defesa contra os três aviões reacionários que até o dia 24
de Outubro, nos mimosearam com granadas de artilharia providas de para–
quedas.
Desta vez, também, ha muito que estamos ouvindo as novas da
chegada de aviões nossos. Quase as não acreditamos. Uma prova disto é
que, ao chegar de fato a nossa águia metálica, foi recebida a metralhadora.
Não fosse um providencial engasgo na metralhadora, o nosso avião, que
voava a duzentos metros, teria vindo abaixo. Chegou, a ser cortado à bala. A
excessiva prevenção contra os boatos nos leva, não raro, a equívocos
desastrosos com esse.
Nós a metralharmos um avião que, após tantos dias de terrível
vulnerabilidade aérea, nos veio como uma dadiva dos céus!... Que engano
lamentável!
Prosseguimos viagem. Estamos embarcados desde ás 17h40 da
véspera; são já 16 horas e não atingimos Rondinha, ainda. Frequentemente
vamos apressar a tomada de água e lenha lá na frente. Vamos precisar
muito dos animais nas próximas marchas sobre rodas. Entretanto, somos
obrigados a submete–los a tantos suplícios...
Afinal chegamos a Rondinha, ultima estação antes de Buri.
Sem perda de tempo iniciamos o desembarque de todo o nosso pesado
material.
Os retirantes haviam depredados tudo: – arquivo, papeis, talões de
passagens, pelo chão em completa desordem.
Os desvios estavam quebrados, afim de ser retardado o nosso avanço.
Mas a operosidade dos ferroviários em breve normalizava a linha.
Fizemos tudo para evitar marcha noturna. Desfizemos com a máxima
rapidez, todo o pesado trabalho de embarque em Itararé. Mas só pudemos
partir ás 19 horas. Já era noite, portanto.
Iniciamos a marcha pela péssima estrada de Buri, em terreno
desconhecido, sem reconhecimentos e nas proximidades do inimigo. A noite
estava escura. Houve engano de itinerário. Perdemos alguns quilômetros
percorridos. Afinal ficamos pelo caminho.
A noite foi má. Em pleno inverno, o bivaque sumário e quase ao relento
é sempre penoso. Ninguém, a bem dizer, pode dormir. Todos estavam em
prontidão. A proximidade do inimigo o exigia.
Logo ao amanhecer veio ordem para seguirmos, com urgência, ate Buri.
Soubemos, também, que o ultimo combate travado ás portas desta vila
fora renhido. Havíamos feito trezentos e cinquenta prisioneiros.
Apreendêramos, também, grande quantidade de material bélico. Tomáramos
dois canhões ao inimigo. Em compensação, o campo de combate ficara
coalhado de mortos, de lado á lado. A artilharia inimiga estivera em ação
com certa eficiência. Tudo faz crer teremos um mau quarto de hora, na nova
frente de combate. Estamos apreensivos. Também não é possível a nenhum
mortal aproximar–se do front, prevendo–se sangrentas refregas, sem um que
indefinível ante o imprevisto da luta que o aguarda.
O pior é essa fase de aproximação. Depois que a gente se acostuma
com a guerra, ouvindo o sibilar de balas como a gente da cidade ouve a
sirene de automóveis, depois que o calor da luta se apodera de todos, depois
que a gente compreende que o lema fundamental da guerra é matar para
não morrer, a tarefa é bem mais fácil...

Por onde vamos passando tudo está deserto. A população paulista vai
fugindo de nós, abandonando tudo na pressa da fuga. De certo os
adversários infundem–lhes grande terror a nosso respeito. Só assim pode–se
compreender a situação de abandono destes lugares. Imagina–se o
sofrimento dessa pobre gente!
O aspecto de Buri é desolador. Coutou–nos um remanescente paulista
que os retirantes, após terem dado um curto prazo para a população
embarcar em trens organizados ás pressas, entregaram–se, no desespero
da derrota, ao saque das propriedades dos seus coestadanos.
Acampamos em plena vila. Aproveitamos algumas casas das
proximidades. Constava que demoraríamos bastante ali. Seria mister, antes
do novo avanço, concentrar um efetivo numeroso para investir sobre o Rio–
Paranapanema, onde o inimigo dispunha de fortes organizações. Dizia–se
que haviam chegado reforços de Mato–Grosso para as hostes paulistas.
Parece–nos, porém, em vista das continuas derrotas que temos infligido
ao inimigo; em vista da sua falta de ardor combativo, tornada clara pela
prisão de trezentos e cinquenta homens e grande copia de munição; em vista
da perda de posições cujo valor defensivo natural jamais será encontrado
daqui por diante; parece–nos será insignificante essa resistência do Rio
Paranapanema.
Aguardamos, com certa ansiedade, que se desencadeie, novamente, a
fuzilaria entre irmãos que, de um lado e de outro, nos seus ideais polarmente
opostos, julgam batalhar pela suprema grandeza da Pátria.

Desde o inicio das operações que não chovia. Os quinze dias de estio
melhoraram, sensivelmente, as estradas. Mas agora vamos ter dificuldades
em transporte. Na certa vai faltar munição de boca e, o que é pior, de
canhão. Desde cedo chove torrencialmente.
Continua, ainda mais intenso, o regime de boatos.
Ha muita tropa acantonada em Buri. O soldado, em geral, é inseparável
do boato. Assim, á tarde, correu a noticia de que o inimigo ia contra–atacar.
Houve quem ouvisse tiros.
O comando da Vanguarda determinou urgentes medidas de defesa.
Seguiram para a linha mais avançada o I.° Reg. Cav. de Bda. Militar, o I/8
R.I. e duas seções de Artilharia, uma dos 5.° G.A. Mth. e outra do 9.° R.A.M.
A cavalaria fez cuidadoso reconhecimento. Vasculhou todo o terreno de
onde partiram os tiros que causaram aquele alarme. Não foi encontrada
sequer a sombra do inimigo. Atribuiu–se o tiroteio a algum elemento
disperso, ou então, consequência de lobisominite, doença que aparece
sempre em campanha. (medo de lobisomens).
Desfeito o boato, toda a tropa regressou, ficando apenas alguns
elementos fazendo a vigilância das vias que dão acesso a Buri.
O resto da noite correu calmamente.
São 9h30. Surge um novo avião inimigo.
É de bombardeio do tipo empregado no Exército.
Vem em reconhecimento e, sem duvida, nos traz algumas bombas. No
mínimo, manifestos como em Itararé.
Não nos enganamos quanto às bombas. Foram jogadas algumas, mas
por sorte nossa não funcionaram.
Foram apanhadas intactas. Brancas como são, é bem fácil acompanhar
a trajetória delas no ar e ver o ponto de chegada. São iguais ás empregadas
em 1930. Compridas, espoleta percutente, tendo na parte posterior uma
espécie de hélice. São de ferro fundido e a carga é de pólvora negra.
Jogada no ar, tendo um peso pequeno, vem oscilando como uma folha.
Houve quem pensasse que se tratava de alguma mensagem. Mas essa
ilusão se dissipou ao serem encontradas ás ameixas.
Nossas oito metralhadoras pesadas funcionaram sem incidentes.
Fizemos uma concentração de fogos mas em pura perda. A altura do voo era
de 2.000 metros; em tiro vertical a dispersão da metralhadora é considerável.
Em todo caso sempre obrigamos o aviador a guardar uma certa altura o que,
de certo, lhe dificultava a observação e o bombardeio.
As 15h05 aparece novamente o avião em reconhecimento, bombardeio
e inquietação.
De certo vem tirar a impressão ridícula do fracasso pela manhã. Está
disposto a atingir–nos de qualquer modo. Muitas bombas. Todas
funcionaram.
As metralhadoras esbanjaram muita munição, mas o avião não pode
baixar. Mesmo assim visou tropas que desembarcavam na estação. Houve
estilhaços num raio de vinte e cinco metros. Dois soldados que estavam
numa casa ficaram feridos, pois os estilhaços atravessaram as suas paredes
de madeira.
Duas outras bombas arrebentaram junto a um riacho onde soldados do
8.° R.I. lavavam roupa. Quatro feridos. Dois mortos. Um destes teve a parte
superior do crânio arrancada. Cérebro à mostra. O outro era um montão de
destroços e de sangue. As bombas lançadas sobre a estação feriram seis
homens.
Maldita visita aérea!
Em tão poucos instantes, tanto estrago no nosso pessoal!
Assistimos a chegada á estação dos mortos e feridos carregados pelos
próprios camaradas.
Quadro comovente. Os feridos, ainda atordoados, contorciam–se em
dores. Foram logo embarcados para o Hospital de Itararé.
O avião conseguira o seu intento. Abatera, até certo ponto, a moral da
tropa, indefesa a qualquer ataque aéreo. O nosso avião, ao aterrissar em
Itapeva, havia inutilizado uma asa. Estava em reparos. Primeiro a falta de
gasolina, depois esse contratempo. Estamos, decididamente, sem sorte no
ar.
Estamos acantonados, quase ao centro de Buri.
Mas quarenta viaturas e trezentos cavalos são um alvo ótimo para a
aviação inimiga. Temos que mudar de pouso. Deus é grande, mas o mato é
maior.
É forçoso escondermos–nos da sanha do avião inimigo. Vamos ocupar
um bosque cerrado, próximo à vila.
Nossas metralhadoras não atirarão mais. Pouco adianta. Gasta–se
munição e ainda se denuncia, pelo clarão dos tiros, o lugar ocupado.
O único recurso é metermos–nos mato a dentro. É, à hora do avião, de
pistola em punho, obrigaremos todos a se esconderem. Porque, além dos
estilhaços da bomba que vier, a nossa munição de artilharia também nos
pôde eivarem frangalhos pelos ares.
Se aos menos o nosso avião pudesse perturbar a ação do inimigo!

Parece teremos, doravante, aviões todos os dias sobre nossas cabeças.


Ontem, grandes estragos. E, agora, lá vem o pássaro maldito novamente.
Temos a impressão de que corveja sobre nós mais tempo de que na
realidade.
É devido á altura do voo.
Somos presas fáceis sob suas asas, como um cordeiro nas garras de
um tigre. Nada podemos fazer.
Ontem, para aliviar o nosso ódio, as metralhadoras atiram, em pura
perda. Foi–se parte do ódio com as balas. Mas agora não atiramos mais.
Não convém convidar o aviador a jogar bombas sobre o mato em que
estamos.
Todos estão inquietos. Há soldados que só agora estão vendo um avião
pela primeira vez. E logo em que condições! Sob um bombardeio!
Todos estão atentos, observando. De vez em quando os de olhar mais
vivo, mais forte, apontando na direção, anunciam, meio pasmados, a queda
de uma bomba. Pouco depois o estrondo confirma–os. E assim passam,
vagarosos, os instantes de bombardeio. Um minuto parece ter a duração de
uma hora.
Todos deixam o trabalho. Querem ver a queda das bombas mortíferas
que agora, como em 1930, tantas baixas nos causaram. O receio, natural, se
apodera de todos. Sente–se a pulsação angustiosa do coração. Reina o
maior silêncio á volta. O bombardeio aéreo é a única coisa que faz estacar,
se bem que rapidamente, a disposição da tropa. Também estar de braços
cruzados, à mercê da própria sorte, sem armas ante–aéreas eficazes, sem
contar sequer com um avião amigo, à espera das bombas que não escolhem
sobre quem cair, é, com efeito, muito desagradável.
Olhando o avião, olhamos o céu que está lindo, cheio de luz, cheio de
bonanças. A natureza como que nos convida a gozar as delicias e os
encantos da nossa terra. Mas, eis–nos sob um avião brasileiro a bombardear
outros brasileiros, por causa das manobras de políticos miseráveis!
O impatriotismo de alguns magnatas de São Paulo, sem noção dos
deveres funcionais, a nos lançar á guerra civil! A ambição de cargos e de
posições, de uma aviltante minoria, a enlutar a família brasileira! Mais uma
quadro doloroso da luta entre irmãos que a fatalidade reservou à nossa
geração.
Nós, que mal chegamos á maioridade, lançados nesta fornalha maldita,
tudo por causa da ambição, do orgulho de politiqueiros paulistas que, de
certo, ficaram com os seus filhos bem longe das trincheiras!
É muito bom fazerem–se as revoluções, que tanto sangue e ouro nos
têm custado, na calma e segurança da empresa, da praça publica, e dos
bastidores do profissionalismo politico.
Urge, porém, que nós moços desmascaremos, de vez, a politicalha
execrada que não trepida em nos enviar ao mútuo extermínio, para a
satisfação de interesses inconfessáveis.
Que os profissionais da politica tenham o ultimo lampejo de existência,
no Brasil, com a agonia da rebelião dos políticos paulistas! Que o generoso
sangue brasileiro não seja mais desperdiçado em inglórias lutas internas!
Deixemos, quanto antes, a caçada trágica de irmãos dentro da própria
Pátria!
É tempo de prepararmo–nos para reerguer o Brasil dos escombros que
a inadvertência de gerações passadas lhe acarretou!

Observamos o fato nos últimos bombardeios. Enquanto o avião nos


rondava com o seu ruído que a guerra civil transformou de admirável em
macabro, enquanto as metralhadoras crepitavam, desafogando a gente da
terra, nossos cavalos chegaram até ao arame farpado, querendo rompe–lo,
cheios de terror. Coitados! A inconsciência animal nos contrista e nos
compunge a consciência de humanos! Esses pobres animais, que nos dão o
melhor da sua vida, têm um destino infeliz! É com os olhos cheios de terror
que acompanham a ronda do grande avião sobre nós.
O matraquear das metralhadoras, o ruído dos motores, o formidável
estrondo das bombas, o espanto dos homens, o terror dos animais, o
transporte de mortos e feridos, de certo seria um quadro que causaria prazer
ás almas daninhas dos leiloeiros que, na praça publica, vendem o sangue
dos brasileiros incitando–os á luta inglória que visa, sempre, interesses e
caprichos pessoais.
Ah! Como seria bom vermos os politiqueiros paulistas, causadores de
tantas desgraças, com a sua alma negra como as profundezas de Plutão,
transidos de medo ante os perigos e sofrimentos da guerra!
Assim, teriam eles consciência do grave crime de terem perturbado a
vida da Nação, com o subterfugio dos seus cantos de sereia, explorando
caráter, honra, bravura de todo um povo, arrastando–o á voragem desta
hecatombe.

Estamos na estação. Acabam de chegar dois prisioneiros paulistas.


Muito jovens ainda. Não escondem no olhar a inquietação, a tempestade que
lhes vai no intimo. Vão ser embarcados para Itapeva onde prestarão
declarações. Foram presos por uma patrulha em reconhecimento. Estão em
completo desalinho, mal vestidos. De certo os que prenderam, como de
costume, requisitaram tudo o que traziam.
Pelo abatimento em que estão, fácil é concluir que vieram ha tempos
para a trincheira. Nesta, a alimentação é insuficiente.
Pudemos ouvir bem quando um dos soldados que os escoltavam disse
ao tenente comandante do pelotão: – Eram seis presos; mas nós os
reduzimos a dois, pois estes são ainda muito crianças...
Coisas do front...

O Coronel comandante da Vanguarda soube de uma grave ocorrência.


Resolveu sindicar a respeito.
Corria que, no ataque ás posições paulistas de Buri, um cabo de Bda.
Militar do R.G.S., tendo avançado muito, fora ferido, não podendo voltar para
as posições em que seus companheiros foram detido por fogo cerrado.
Houve uma pequena trégua.
O cabo, ferido em vista da sua grande audácia, foi recolhido pelos
paulistas. Corria, Agora, que estes o haviam degolado,
Conquistada a vila, procedeu–se á exumação do cadáver. Ficou
plenamente constatado tal ato de selvageria. O pior é que este iria despertar
represálias, por parte dos companheiros do pobre rapaz covardemente
trucidado.
Este fato, por mais bárbaro que nos pareça, já nos é familiar de 1930.
Aliás, nas revoluções os degolamentos são frequentes. Diz–se que, em vista
das dificuldades da alimentação e da guarda dos prisioneiros, é mais pratico,
no front, usar–se desse expediente...
Pobres irmãos que se destroem, que se dizimam para gaudio – Deus o
sabe – do inimigo externo, que nos espreita e nos fomenta, pelo
fornecimento de material bélico, a ruina que vem vindo...

Tem–se a impressão que o destino quis reeditar, no solo brasileiro, a


chacina de triste memoria que ensanguentou os campos europeus em 1914.
Vê–se a barbaria da grande guerra na nossa Pátria. Tudo é o reflexo dos
ensinamentos do maior conflito armado do mundo: tudo, desde a tática,
técnica, trincheiras, caminhões, metralhadoras, aviões, morteiros, etc.
Tudo importamos do estrangeiro para nos matarmos a nós mesmos.
Eis–nos a par desta macabra aventura fratricida, tudo por causa de
politiqueiros paulistas.
Esses onerosos recursos de guerra foram adquiridos para manter a Paz.
Si vis pacem para bellum. A guerra de conquista nunca fez parte das
cogitações nacionais. Esses recursos bélicos, já de si insuficientes, não
foram adquiridos, portanto, para se desperdiçarem em lutas inglórias e
injustificáveis, que, ainda mais, vêm aumentar as dificuldades econômicas
que assoberbam o País.

Hoje é grande dia para quem se acha no grande isolamento do front.


É dia de correio.
Certamente teremos cartas que suavizarão as provações que estamos
passando na guerra.
Teremos noticias dos que, na mansidão e quietude das cidades, longe
dos aviões, do canhoneio, das metralhadoras, sentem, pela saudade, pela
apreensão, os nossos sofrimentos na vida árdua de campanha.
Causa–nos grande satisfação a alegria dos nossos soldados. Também é
o único prazer que lhes podemos dar. O resto são ordens sobre ordens,
quase sempre encerrando grande acréscimo de trabalho e de perigo.
Sentimos o jubilo intenso e compungitivo daqueles que receberam
noticias dos que lhes são caros.
É uma alegria quase infantil.
Após uma violenta incursão aérea como a de hoje, essas cartas, na
brancura dos seus envelopes, parecem evocar a cor da Paz que, em breve,
se estenderá, novamente, sobre a Nação Brasileira.

Em Buri, tanto ou mais que em Itararé, o êxodo da população é de


comover os corações mais endurecidos pelos quadros cheios de barbarias
que, dia a dia, se lhes deparam na guerra.
Os velhos, mulheres e crianças, principalmente, são os que mais
inspiram compaixão. Sai e voltam á vila, á mercê dos boatos de destruição
que circulam.
As pessoas mais corajosas, que permaneceram em Buri, não tiveram
nenhum prejuízo. Foram respeitadas as suas propriedades. Quanto aos que
fugiram, esses, por mais severas e reiteradas que fossem as ordens
repressivas, tiveram os seus bens e negócios expostos ao saque.
A bebedeira foi enorme, não obstante a destruição de litros e barris de
aguardente. Houve prisões. Patrulhas, pela cidade, procuraram deter a
sanha indomável de saque. Aliás este nada mais foi do que a continuação do
saque iniciado pelos próprios paulistas retirantes.
Tratava–se como que de uma vingança inspirada na recordação dos
que tombaram no ataque. Nessa hora de ocupação, cegos pelo ódio, os
conquistadores não se lembravam de que os roubados, saqueados, além de
irmãos, nada tinham que ver com as operações de guerra.
Mas aquela gente, tornada selvagem pelo flagro do combate, precisava
extravasar o ódio que lhe ia na alma e transbordava pelos olhos sanguíneos
e faiscantes... Tudo foi depredado na vila de Buri.

É uma velhinha dessas que mal se sustêm de pé. Vai em busca de


gêneros alimentícios que a benevolência de alguns vencedores manda
distribuir, afim de que o pessoal do lugar não morra á fome. Os soldados,
quer vencidos, quer vencedores, haviam liquidado tudo. Oferecemos–lhe
carne verde. Aceitou. Entabolamos conversa.
Pobre mulher. Estava mais morta do que viva.
A certa hora lhe perguntamos como se ia defendendo dos aviões.
Bastou falarmos nisso para ela gritar: – Que! Vêm ai? E antes que lhe
pudéssemos responder, deitou a correr de medo, tropeçando aqui e acolá,
ela que antes mal podia andar...
Pobre gente...

O tempo está escuro. Parece que teremos chuva. De qualquer modo


estamos numa alternativa. Ou dia lindo de sol, convidando a gozar a vida,
lembrando as bonanças da Paz que se foi, mas com terrível bombardeio
aéreo. Ou dia cheio de cerração, de chuva, arrastando o pessoal à gripe pela
permeabilidade das barracas, em vista do seu longo uso.
Já providenciamos junto ao Serviço de Saúde a remessa de aspirina e
outros recursos para debelar a gripe que, na certa virá com a chuva. Com
tudo, dos males o menos. Que venha a maior carga d’agua.
É sempre preferível à menor carga de explosivos...

Estamos entre soldados da Brigada Militar do Rio Grande do Sul. Sob


uma capa de campanha, sem as insígnias do posto, aproximamos–nos e
logo estabelecemos camaradagem com todos.
Aceitamos o seu trago de cachaça. Ali éramos todos soldados.
Deixamos a disciplina de lado. Queríamos, em toda a extinção, a franqueza
daquele pessoal dos pampas. Íamos ouvir as queixas do soldado do front,
para depois estendê–las aos que ficaram a sofrer por eles nas cidades.
Perguntamos como se dera a morte do Tenente Arizoli Fagundes. Todos
foram acordes em dizer que este oficial era a bravura em pessoa. Morreu
porque não soube dominar o desejo de avançar, mesmo quando era loucura
faze–lo.
Com o seu pelotão ia rastejando, em perseguição do inimigo,
procurando manter o contato. Avançou demais. Os próprios soldados,
atordoados pelo sibilar interrupto das balas, lhe diziam: –Tenente, não é mais
possível o avanço. Vamos morrer se prosseguirmos.
– Para a frente! Para a frente! retrucava o bravo militar.
Atingido na espinha dorsal, ainda lhes disse, a voz sumindo, o sangue a
sair–lhe pela boca: – Avancem, avancem, morto já estou...
Que quadro de dor! Mais uma vez a bravura indominável desperdiçada,
vãmente, ingloriamente, no próprio campo da Pátria. Eis o eco dos pregões
da tribuna e da imprensa a incitar os brasileiros – eles exclusive – ao mutuo
extermínio. É tudo o que nos deixa, como herança, a velha geração: esta
ameaça de ruina sangrenta que, nesta hora, paira sobre a União Nacional.
E, infelizmente, esta ameaça de ruina há de pairar sempre, enquanto
nós, cidadãos em formação, não conseguirmos eliminar os vícios e
degradações morais com que a maquina infernal do profissionalismo politico
atingiu, quase ao âmago, o organismo da Pátria, cujos alicerces ameaçam
ceder ao peso de tanta ignominia.

Temos tomado as mais rigorosas prescrições ante–aéreas. O estrago


moral e material que nos vêm fazendo os raids do adversário tem sido
enorme. Ontem vibramos com a satisfação de não termos sido localizados
pelos aviadores, não obstante terem voado sobre nós varias vezes. Também
estamos num mato muito denso. Anda–se com dificuldade. Mas, ainda bem
que não estamos à inteira mercê das bombas.
Hoje pela manhã e pela tarde repetiu–se a cena do dia anterior:
bombardeio aéreo. Desta vez um ferido. Um sargento do 8.° R.I. que teimou
em ficar próximo à estação.
Terminou assim, a ronda do avião.
Continua, Agora, a ronda de numerosos corvos sobre estas tristes
paragens. Alguns homens foram dar uma busca pelas imediações. Deve
haver qualquer coisa em decomposição aqui por perto.
Mais tarde vieram chamar–nos para ver alguns cadáveres que o inimigo,
na pressa da retirada, mal tivera tempo de sepultar. Vimos os resto de um
sargento e de dois soldados que os corvos já haviam dilacerado bastante.
Sepultam–los. Aliás, já o havíamos feito a outros dois, dias antes.
Junto a esses cadáveres encontramos armas e munição.
Alguns papéis nos revelaram que ali estivera o batalhão acadêmico
Floriano Peixoto. Tivemos em mão uma folha com os nomes de todos os
voluntários da I.ª Companhia.
Aliás era fácil reconhecer que a tropa que dali se havia retirado era de
cidade. Papéis de chocolate, doces, bombons bem nô–lo revelaram.
A chuva cai, sem cessar, em toda a frente de Buri.
Reina a maior calma neste setor. Se, no bobozinho a azáfama das
cidades, um dia cinzento de chuva nos comunica, sempre, uma vaga
sensação de nostalgia, neste lugar, onde a única distração, fora das lides da
guerra, é esperar que cheguem noticias do resto do mundo, a tristeza nos
invade a alma do modo o mais estranho. Sente–se tristeza em tudo. Em tudo
encontramos motivo de avivar a dor, a mágoa, que o realismo da guerra
fratricida em nós desperta.
Por mais que busquemos uma razão plausível para justificar o momento
atual, baldam–se–nos os esforços.
Não podemos compreender como nos arrastaram a esta situação
degradante, perante nós próprios brasileiros, qual a de estarmos nos
aniquilando uns aos outros.
Não é crível que em em nenhum cérebro normalmente formado, tenha
passado a ida de arrastar o Brasil a esta calamidade, sob pretexto de dar–lhe
imediata constitucionalização.
A simples ideia de Lei é incompatível com o desencadeamento desta
ignóbil carnificina.
Cada vez mais se fortalece o juízo que fazemos de toda esta desgraça.
Ela é, tão somente, a reação da casta que, por quarenta anos, nos vinha
desgraçando e que a tolerância dos vencedores de Outubro deixou armada a
alimentar, na sombra dos seus arreganhos traiçoeiros, o desejo de vingança
com que, hoje, estorva os saneamentos que, graças à nova diretriz de
honestidade administrativa trazida pela Revolução, vinham impulsionando a
nacionalidade.

Nesta vida se chamou Aparicio Borges.


A sua reconhecida capacidade militar, aliada a uma invulgar
compreensão do dever, lhe granjeara o posto de Tenente–Coronel nas
fileiras da valorosa Brigada Militar do Rio Grande do Sul. Sua bondade,
jamais desmentida, a par de uma energia serena e justiceira, lhe havia
conquistado o acatamento, a dedicação extremas da unanimidade dos seus
comandados.
O Tenente–Coronel Aparicio era um desses chefes capazes de levar a
sua tropa às mais rudes missões de sacrifício. Era, em suma, um perfeito
comandante que o Brasil vem de perder nesta inglória companha e que, em
caso de se fazer mister a defesa externa da Pátria, dificilmente será
substituído.
Tombou este verdadeiro herói num dos combates que precederam a
ocupação de Buri. Toda a sua tropa vinha progredindo de rastos, como lhe
permitia o nutrido fogo inimigo.
O Tenente–Coronel Aparicio, que bem poderia permanecer mais á
retaguarda na cômoda segurança do seu posto de comando, – que a
experiência já demonstrou deve ser sempre mais atrás e não nas primeiras
linhas –, preferiu, com a sua grande coragem, vir à testa da tropa.
Enquanto todos lhe pediam que se deitasse, que progredisse de rastos,
em face da situação, o Tenente–Coronel Aparicio conservou–se de pé. Não
queria curvar–se à sanha inimiga. Queria enfrentar a morte.
E assim ela o encontrou. De pé, sempre para a frente, num dos mais
comoventes sacrifícios voluntários que a Historia do Brasil registrará, no
capitulo sangrento das recentes revoluções.
O Tenente–Coronel Aparicio caiu como a mais lídima encarnação de
um chefe. Quis acompanhar – ele que os trouxera de tão longe! – os seus
soldados que se foram do mundo nestas tristes paragens.
Com a morte de um dos seus comandados julgou, na concepção de
rigorosa solidariedade que lhe iluminou o espirito privilegiado de chefe, julgou
que a morte era o caminho único que a honra lhe ditava...
Tombou com um herói aquele que nesta vida se chamou Aparicio
Borges.

Reina calma em todo o setor.


Vamos aproveitá–la para circundar a posição em que aguardamos
ordens, um espesso bosque. Queremos ver as organizações defensivas
deixadas pelo inimigo retirante. Não podemos compreender a sua defesa.
Aberra de tudo o que temos estudado de técnica militar.
Ha duas linhas de trincheiras paralelas, distantes uma da outra mais ou
menos dez metros. São do mesmo nível. Não podemos compreender a
utilidade da segunda linha, tão próxima, tão resistente quanto a primeira.
Diz–se, com insistência, que na primeira linha são colocadas as tropas
inimigas de emergência. Na segunda, os soldados da Força Pública, mais
afeitos à vida das trincheiras e que, em caso de necessidade, manterão os
da primeira linha, mais jovens, menos experientes, à todo transe nas suas
posições. Corre, também, entre nós que a tropa acadêmica, passado o
entusiasmo considerável mas efémero que a sua inexperiência militar
francamente justificava, logo perde a eficiência dos primeiros instantes. Daí a
necessidade dessa segunda linha de trincheiras que, noutra hipótese, se não
justifica.
Mais uma miséria do Perrepismo. Explorou o entusiasmo da mocidade
paulista. Impeliu os estudantes, alguns quinze anos, para, no campo de luta,
defender os seus interesses. Mas, ao mesmo tempo, que dava pela
imprensa, pelas praças publicas, pelo radio, o brado: – Paulistas, à postos! –,
colocava, pelas costas dos jovens e abnegados acadêmicos, iludidos pelos
manejos dos políticos, os seus carabineiros profissionais para mante–los, à
força, nas linhas de fogo.
Vimos cadáveres que, pelo aspecto dos fardamentos, etc. bem mostrava
ser de combatentes voluntários. Todos abatidos pelas costas.
Esse fato deu origem aos rumores que correm entre os nossos
soldados, com relação ao entrincheiramento duplo. Além disso alguns
prisioneiros confirmaram o desânimo que reina entre os inimigos, pois os
seus voluntários não têm a rija têmpera que a lide da caserna proporciona
aos militares profissionais.
Imagine–se, Agora, a cruel situação de um voluntario, entre dois fogos.
Um dos gaúchos e paranaenses que os políticos lhes asseguram que
eram seus aliados. O outro, dos seus próprios companheiros de trincheira,
com a missão de mante–los, pelas costas, a todo custo, nas posições.

Escrevemos, neste instante, sob o bombardeio do avião inimigo. Na


nossa linha de fogo não dispomos da proteção ás vistas aéreas, que nos
proporciona a vegetação abundante do nosso acampamento mais á
retaguarda. Sobre nossas cabeças o ruído sinistro das asas dos
reacionários. De quando em vez o estrondo formidável de uma bomba nas
imediações de Buri.
Esse grande avião de bombardeio era da Aviação Militar. Suas bombas
são poderosas.
De certo os aviadores dispõem de instrumentos de precisão. Tanto pior
para nós. Estamos indefesos. Nossas metralhadoras não atiram mais porque
é inútil. Mas as metralhadoras de outros regimentos gastam munições sobre
o pássaro maldito.
Há dois dias que o avião não aparecia. Talvez por causa da chuva
torrencial que tem caído. Correu até o boato de que na Escola de Aviação,
no Rio, levantava voo, diariamente, o avião n.° 71 para despejar a sua carga
mortífera sobre os paulistas. Mas o aviador não era nosso. E nos reservou o
quinhão que cabia ao inimigo.
Segundo o mesmo boato, em vista da comunicação telegráfica da frente
sul, avião e aviador teriam sido presos no Rio.
Mas o tempo levantou e o boato caiu por terra, pois aí está o mesmo
avião a revolver Buri.
Estamos conformados com a nossa vulnerabilidade. Também, que
remédio? Temos que esperar, quietos no nosso posto, que o avião, pela sua
linguagem estrondosa de morte, nos diga se chegou ou não a nossa hora.
Mas o pior é que temos sempre a impressão, sob o bombardeio, que a nossa
hora chegou...
Foi embora o avião. Recuperamos logo a tranquilidade. Mas, do lado da
Itapeva, aproxima–se outro avião com grande velocidade
A primeira impressão nos fez crer que esse avião é nosso. Estamos
fartos de esperar por ele.
Contudo continuamos abrigados. Já nos enganamos, mais de uma vez e
as bombas do inimigo nos alcançaram fora do abrigo.
O avião está sobre nós. Está fazendo uma volta completa que é o sinal
de identificação combinado. Agora lança–se, vertiginoso, na perseguição do
inimigo, que rumou para Itapetininga.
Pena é que tivesse chegado com um atraso de dez minutos. Certamente
o comando da vanguarda telefonou para Itapeva avisando que Buri esta
sendo bombardeada.
Dizemos a uma voz, a plenos pulmões, tal é a satisfação:
É nóóóósso!
Todos fazem ideia do terror que vai causar, ao inimigo, que ignora já
tenhamos um avião a nosso serviço.
Todos antevê, alegres, o efeito terrível das nossas bombas. Os soldados
imaginam, o raciocínio perturbado pelo ódio, as motes, os crânios
arrancados que vingarão os crânios arrancados e as mortes dos nossos...
E vemos desaparecer, em momentos como estes, o sentimento de
brasilidade dos soldados. Todos se divertem com a angústia que o inimigo
está sofrendo. Observamo–los.
Não nos sai da imaginação, um instante, que todos os que estão
guerreando nesta tragédia imensa não tem culpa nisso. Nem nós temos,
nem os paulistas que aí estão na trincheira.
Eles, como nós, contribuíram com os impostos para a compra onerosa
desses aviões, dessas bombas que, a esta hora, – a eles e a nós – estão
perturbando a calma de nossa vida.
Por maiores que sejam o perigo e o ódio que nos inspira o bombardeio,
não nos deixa, entretanto, a mente o nosso ponto de vista: – nós
combatentes, de lá e de cá, não queremos está matança entre irmãos.
Estamos sofrendo as agruras de uma guerra sem razão de ser.
Têm culpa de tudo os agitadores da opinião publica que, de certo, se
deixaram ficar na segurança das cidades distantes do front.
Lançando uma vista d’olhos sobre os jornais paulistanos, fácil nos seria
ver, Agora, os que deveriam estar na frente inimiga. Mas não estão. Nem
eles, nem os seus filhos.
Lamentamos toda esta explosão de ódio. Mas ela é inevitável.
Aos argumentos são com que o sentimento de brasilidade, pairando
sobre todos nós, possa diminuir o ódio selvagem que observamos, antepõe–
se, com as suas esmagadoras e multe–seculares razões, o na guerra como
na guerra...
O aspecto mostra, à primeira vista, que esses soldados são nortistas. A
seca, assolando a sua terra natal, obrigou–se a procurar São Paulo, famoso
pelo progresso e pela vida ao alcance de todos. Deixaram o ingrato deserto
nordestino que, mau grado toda uma vontade férrea, os venceu pela
inclemência das secas. Vieram em busca de terras mais férteis que, com o
produto certo das colheitas, lhe compensassem o trabalho insano do plantio.
A lavoura cafeeira seduziu–os. Vinham, na sua dor de flagelados, em busca
da Canana prometida pelos que os ampararam na sua terra. Vieram para
São Paulo.
Mas alguns, por infelicidade, não se adaptaram é nova situação. Não se
conformaram com os costumes bem diversos da nova terra. E ficaram pelas
cidades á espera de algum meio que os levasse, novamente, aos seus.
Surgiu o reacionarismo de 9 de Julho. Foi aberto o voluntariado entre os
rebeldes. E lá se alistaram alguns flagelados levados, não pelas vozes de
sereia dos políticos, mas pela fome. Aquela tropa ia bater–se no front, ia
expor a vida. Mas, à eles flagelados a vida pouco importava. O destino lhes
reservara toda sorte de adversidades. E foram para a linha de frente.
Com as sucessivas derrotas dos paulistas de Itararé até Itapeva foram
feitos prisioneiros uns quatrocentos homens. Quase todos os flagelados
também o foram. Mas não deram importância ao caso. Expansivos de
natureza, os nortistas logo estabeleceram relações com quem os cerca. E o
gênio alegre daqueles prisioneiros em breve se estendeu aos seus guardas.
A sua fama correu mundo. Soltaram–nos. Foram trabalhar no campo de
aviação.
Pouco depois chegaram as tropas pernambucanas. Os flagelados logo
os procuraram. Alguns eram conhecidos e suavizaram–se, mutuamente a
saudade com a rememoração de fatos lá do norte. E não pararam aí.
Pediram ao alto comando que os deixasse seguir com os pernambucanos
para o front. Queriam lutar ao lado dos seus. Gente ingênua, pouco lhe
importavam os aliados da véspera. Eles queriam acompanhar os que, Agora,
compreendiam melhor a saudade do Nordeste...
E lá se foram – ciganos brasileiros – cumprindo o seu destino através
das guerrilhas que vêm, assustadoramente, povoando de cruzes e de
sepulturas as margens destas estradas...

Junto á nossa linha de fogo temos um casebre de sapé, quase


desabando. Quando chove corremos a nos abrigar nele. Mesmo assim
ficamos molhados até aos ossos. Se ao menos pudéssemos armar
barracas... Temos tido muita chuva ultimamente. Já esgotamos as mudas de
roupa. Agora só nos resta ficarmos molhados o dia todo, dos pés á cabeça.
No campo isso não faz mal, pois logo nos habituamos a tudo.
O pessoal passou todo o dia a preparar sólidos abrigos. Para a munição
e para eles. À prova de Aviação e de Artilharia.
Nos exercícios de paz, nas manobras, etc, é preciso estar à toda hora
obrigando o soldado a cavar.
Agora na campanha não temos essa luta. Eles cavam o terreno até
demais. Já viram, algures, o efeito das bombas e das granadas inimigas...

O almoço, hoje, foi formidável para todos. O cozinheiro fez jus a


aplausos gerais. Mas o entusiasmo não foi só devido a isso. Precisamente
aquela hora nos chegaram noticias de que Apiaí caíra em nosso poder, com
duzentos e cinquenta prisioneiros, dois canhões, metralhadoras, munição e
cerca de quarenta canhões. Estamos com sorte. Anteontem a queda de
Ribeira. Hoje a de Apiaí. Tudo leva a crer que, em breve, estaremos levando
a paz a todo o Brasil, com a derrota definitiva de todos os reacionários.
Chegaram–nos, também, muitos jornais da retaguarda. Por eles tivemos
noticias de todas as frentes em operações e do resto do mundo.
Ha vários dias que vivíamos em extremo isolamento. Toda a nossa
atividade se concentrava nos afazeres da guerra. Desde o despertar até
altas horas da noite quando entravamos na nossa barraca húmida fria.
Estávamos tão enervados pela obsessão dos combates, pelas medidas
de precaução que a proximidade do inimigo exigia, que aquele almoço, tão
simples em outros tempos, ali no front, com a leitura de jornais, com a noticia
de vitórias das nossas armas, nos pareceu, verdadeiramente, uma dádiva
dos Deuses!...

São duas horas da madrugada. Recebemos ordens, na véspera, para


fazer um tiro de inquietação noturna sobre o inimigo.
Desde às 22 horas que temos enviado granadas sobre as suas
posições. De dia já havíamos feito uma regulação sobre as mesmas.
Estamos em posição no morro do Cemitério. Noite escura. Vento frio
cortante. Relâmpagos a anunciarem a tempestade que se aproxima, ao
mesmo tempo que nos deixam ver cruzes e sepulturas do Cemitério próximo.
Está noite nós não dormiremos.
A inquietação pedida pelo comando da vanguarda tem que ser feita.
Os nossos canhões estão dando o alcance máximo. Atiramos a 6.500
m. Afim de poupar as guarnição da I.ª Esta vigília, de certo, custará muito
mais ao inimigo que a nós.
Tomamos todas as precauções ao executar esta missão. Vamos atirar
toda a noite, referindo, sempre, a pontaria, sobre uma lanterna que
colocamos á retaguarda. A alça, também, tem sido sempre verificada afim de
evitar–se um tiro curto sobre a infantaria em posição um quilometro em
frente. Os projetis cortam o espaço, perturbando todo o vasto campo da luta
com o seu aterrorizante assobio.
Estamos na maior escuridão, pois uma lanterna poderia chamar a
atenção dos observatórios inimigos.
Cada um de nós já levou uns três tombos na lama. Já fizemos correr a
cachaça que o regulamento prevê nessas horas de chuva.
Os soldados estão cumprindo a sua missão com certo prazer. Estão
arrancando ao inimigo a calma do seu sono. Vingam–se, portanto, da
intranquilidade que o seu avião lhes causa todo dia. Ao arrebentar uma
granada sobre as linhas inimigas, iluminando tudo em redor, vemos também
iluminar–se o semblante dos nossos homens, pela satisfação que lhes vai no
intimo...

Todos da guarnição só tinham um pensamento, um desejo: – vingar com


aqueles tiros os nossos mortos e feridos provocando mortos e feridos – tão
brasileiros quanto os nossos – do outro lado.
É nestes instantes que mais lamentamos a triste situação a que nos
arrastou esta campanha tão sanguinolenta. Sentimos periclitar a União
Nacional e com ela todos os esforços e sacrifícios dos nossos maiores.
Nestes momentos de combate, vemos irmãos brasileiros se odiarem
ferozmente. A palavra paulista já é sinônima de inimigos. Já desapareceram
completamente os laços múltiplos que nos prendem àquele povo. Pelo
menos durante a campanha. Caiu por terra o sentimento de brasilidade.
São, Agora, 4 horas. Desabou forte tempestade sobre nós. Chuva,
relâmpagos, trovões. Quase acreditamos que a Natureza se esforça por
exceder, em toda linha, os estrondos e os clarões das nossas peças. A
borrasca está recrudescendo. É comparável em intensidade, em extensão,
ao misto de dor e revolta que reina, neste momento, nos lares em que esta
guerra faz chorar a perda irreparável de alguma vida...
Veio ordem para cessar fogo. Vamos recolher–nos ao casebre próximo.
Lá a tempestade nos açoitará menos o rosto. De quando em quando o tombo
de alguém nesta escuridão imensa. Os relâmpagos mal nos iluminaram o
caminho.

Vem raiando, suavemente, a madrugada. A contemplação desde lindo


alvorecer nos comove intensamente. Não se vê mais, no rosto de ninguém, o
ódio que inspirou toda aquela atividade mortífera. Não parecemos mais os
fantasmas que, há pouco, enviavam tanto terror ás trincheiras inimigas...
Foram–se, pela contemplação deste deslumbrante cenários, a
tempestade da natureza, a tempestade dos canhões...
Faz–se mister, no cenário da União Nacional, surja idêntica alvorada de
paz que, neste grave momento, é o maior anelo de tudo brasileiro digno.

É esta a primeira vez que uma esquadrilha de aviões voa sobre nós.
Três aviões cortam o espaço, espalhando terror com o ruído sinistro das
suas hélices. A guerra no ar, está piorando para nós. Um avião, apenas, faz
um estrago moral e material considerável. Imagine–se, Agora, uma
esquadrilha de aviões militares, armados de metralhadoras, carregando,
visíveis cá da terra, tantas bombas sob as asas!...
Não foi preciso dar ordem para o pessoal ocupar os abrigos
solidamente preparados. Antes que o déssemos, já todos haviam descido
para o subterrâneo protetor. Tudo num piscar de olhos. Na estação ha
correrias e afobações. Naturalmente porque tem sido o ponto mais visado
nos raids anteriores, devido ao desembarque de tropa, movimento de trens,
localização de P. C., etc.
As locomotivas põem–se, logo, a todo vapor para a retaguarda,
procurando arrastar as pesadas composições que lhes retardam muito a
fuga.
Começou o bombardeio sobre Buri. Estrondos. Trovões. A terra parece
tremer. Procuram atingir a estação da estrada de ferro. As metralhadoras de
terra crepitam, verrinosas. O voo alto torna–se obrigatório só inimigo. Baixar
seria loucura, pois metralhadoras, balas e bons apontadores não os faltam.
Vêm em direção a nós. O seu ruído torna–se mais terrível ainda. Já
estão sobre nossos quatro abrigos, onde se acotovelam e respiram mal oito,
dez homens. Todos escutam, com atenção, a passagem dos pássaros que
carregam explosivos. Felizmente não descobriram os canhões que, – é claro
– não podemos levar conosco para as tocas. Cobrimos–los com arvores,
com o maior cuidado para que o aço não fique brilhando ao sól.
Já se reuniram novamente, os três. Estavam separados para matar mais
á vontade. Seguem na direção de Itapetininga. O ruído das hélices diminui.
Quase não os vemos mais. Sumiram–se.
Quem haveria de supor: – Ontem, por assim dizer, éramos colegas
desses aviadores na Escola Militar. As mesmas sabatinas, os mesmos
exames, a mesma disciplina férrea nos aproximavam como verdadeiros
irmãos. Os jornais trazem o nome de todos eles. Fomos, na Escola, colegas
de ano e colegas de farras. Hoje eis–nos separados pelas manobras dos
políticos. Todos julgamos – em campos opostos – concorrer para o bem
Pátrio. Nós com o Governo Provisório. Eles com o reacionarismo paulista.
Não podemos conter a nossa mágoa, ao vermos que todos os ensinamentos
dos nossos mestres, só nos têm servido para nos destruirmos uns aos
outros. Todo o ardor com que sorvíamos os segredos da tática e técnica
militares só tem servido, até agora, para o nosso aniquilamento reciproco.
Parece incrível que, daquelas salas da Escola, a palavra inimigo tenha
servido para nós mesmos. Lamentamos tudo isto. Entretanto não nos falta
disposição para a luta.
A nossa causa é a do povo brasileiro. Em 1930, como Agora. São Paulo,
neste momento, é, verdadeiramente, uma exceção.
Mas ficamos a pensar: – A vitória total de uma das partes sobre a outra,
o aniquilamento de uma delas, não poderia constituir vitória para o povo
brasileiro. Constituiria, antes, o seu enfraquecimento. Moral e material.
Temos mais que a palavra – a própria vida – empenhada no
engrandecimento da Pátria. Não o permite, porem, o maquiavelismo dos
profissionais da politica.
Estes acabam de turvar os ideais de uma grande parte do Exército. Mas
não consentiremos, daqui por diante, que se desvirtue – pelo nosso próprio
enfraquecimento – o compromisso inquebrável que nos prende, de corpo e
alma, à Pátria, ao Exército!
Que nunca, jamais, na vastidão do Brasil deixemos que a
irresponsabilidade de maus políticos, ou de Napoleão de opereta, nos atire à
ruinosa guerra fratricida que, num crescendo assustador, nos vem
ensanguentando, deprimindo, aviltando...
A mocidade bandeirante tem vindo iludida ao front. Os jornais paulistas
que nos chegam ás mãos, apreendidos nas cidades abandonadas, estão
cheios de inverdades. Falam de ataques dos federais á Itararé e á Ribeira,
quando, ha muito, estas cidades estão em nosso poder. Falam de derrotas
infligidas aos nossos, quando, na realidade, os temos levado de vencida em
todas as frentes, apertando cada dia o cerco sobre São Paulo.
Os chefes do movimento, na expectativa do castigo que os aguarda,
semeiam estas ilusões entre a mocidade para, explorando–lhe o entusiasmo,
joga–la, criminosamente às trincheiras.
No momento atual, a situação está bem definida. As energias todas do
país, toda a mocidade forte do Brasil converge contra São Paulo que, nesta
hora, é uma triste exceção. Em todas as frentes as forças federais levam
vantagem. Entretanto a impressa paulistana, usando da mentira, procura
adiar uma derrota inapelável. Na verdade, porém, essa imprensa que tem
grande responsabilidade na caudal de sangue que enluta o Brasil, só tem
conseguido aumenta–la, sem que isto, entretanto, pese na realidade militar
do momento.
Qualquer prisioneiro que escutemos, entre muitos que aí estão, diz que
não contava que a rebelião se circunscrevesse a São Paulo. Esses
prisioneiros, ao verem passar todo o infinito efetivo das forças do Sul, não
escondem a sua surpresa. Bem compreendem, Agora, a desgraça que os
maus paulistas lançaram sobre o seu povo.

Continuamos em posição de tiro no Morro do Cemitério. Boa posição


esta: – ótimo campo de tiro, perfeito comandamento sobre a zona em que o
inimigo se organiza, além de tudo esse cemitério que, em caso de
necessidade, facilmente nos guardará os restos.
Na calma da noite anterior obtivemos, novamente, a lucidez de espirito
que a intranquilidade dos últimos dias fizera desaparecer. Observamos, de
binoculo, a atividade dos inimigos. Cavam trincheiras. Mas não temos duvida
que nossas granadas os tirarão lá de dentro.
São 9h30. De certo vem algum avião inimigo. De fato, ei–lo que se
aproxima. Só um desta vez. Tanto melhor. Nosso pessoal já se acostumou
com as bombas de três...
A segurança destes abrigos nos dá moral suficiente para ouvir com
calma os estrondos. Procuram atingir a estação. Mas em vez disso, estão
destruindo as casas nas imediações. Efeitos da dispersão. Ainda bem que o
bombardeio foi pequeno hoje. De certo falta de bombas, pois desejo de
destruição os aviadores demonstram todos os dias.
Passou–se uma hora. Vêm, neste momento, dois aviões na direção de
Itapeva. Os inimigos às vezes fazem isto para nos colher de surpresa. Serão
nossos? Na duvida resolvemos logo procurar os abrigos. Já estão sobre nós.
São bem maiores que o outro que apareceu hoje.
Soltam dois foguetes. Dissipa–se a duvida: – são nossos.
O ruído dos motores transforma–se, bruscamente, de tétrico, de horrível,
na mais agradável demonstração de eficiência das forças do Sul. A alegria
aparece no rosto de todos. Vamos ser vingados. Já estão sobre as linhas
inimigas. Como as suas bombas são poderosas! Estremecem tudo. Estamos
a três quilômetros, imagina–se, Agora, o efeito delas para quem se acha nas
trincheiras visadas. Chega–nos ao ouvido, entrecortado por esses estrondos,
o crepitar desesperado das metralhadoras da terra dando caça aos aviões.
Nossos homens exultam cheios de alegria. É logico. É humano. Porém a
nós, bem no intimo, causa tristeza esse bombardeio. Desperdiçam–se, nele,
recursos da Defesa Nacional. Os paulistas, tanto quanto nós, contribuíram
para a compra desses aviões. Não podemos comungar alegria dos soldados.
Bem sabemos que essas bombas destruidoras são o corolário da ação
impatriótica de politiqueiros. O ronco possante desses motores bem que se
nos afigura o protesto da gente brasileira enlutada, aterrorizada...

Deu–se o fato por ocasião do bombardeio de hoje. Um soldado nosso,


surpreendido da estrada, nos narrou uma cena triste da guerra civil. A sua
voz ainda traduzia a comoção que vinha de experimentar.
Tratava–se de uma mulher. Com uma trouxa sobre a cabeça, fora
colhida de surpresa pelo bombardeio. Naturalmente não quisera abandonar
Buri na precipitação de fuga dos paulistas. Preferira ficar. Pouco lhe
importará que estes dissessem avinhamos praticando toda a sorte de
violências, depredações, etc.
Surpreendida na estrada, a pobre mulher gritava, com nítido sotaque
português, cheia de terror: – Mas esse homem, lá em cima, a matar tanta
gente! Virgem Nossa Senhora! As bombas continuavam a arrebentar, a
interromper os gritos da mulher que, em estado como de inconsciência,
continuava a caminhada. Mais atrás de inconsciência, continuava a
caminhada. Mais atrás vinha uma menina. Chorava. O soldado ainda pode
ouvir quando ela disse: Pobre mãe. Ha dias que está tão doente. Não
resistirá...
E o avião, satisfeito do terror espalhado pelo bombardeio da vila
indefesa, continuava, alheio e indiferente, a soltar sua lúgubre gargalhada de
estrondos...

Estamos em posição bem perto da estação da Sorocabana. Todos os


dias ha constante passagem de trens. São enormes composições que
chegam trazendo tropas ou que retornam, vazias, para voltarem, depois,
trazendo mais tropas ainda. É um movimento enorme, esse da estação de
Buri. Ás vezes é tal a chegada de trens que é inevitável o atravancamento,
como ha dias em Itapeva. É uma faina árdua essa de coordenar, dispondo
de poucos desvios dessa pequena estação, a chegada e saída das enormes
composições militares.
Vêm–se, na maioria, vagões de carga, com frestas nos lados para o
transporte de homens e de cavalos. Eis o aspecto ferroviário de cada dia. E,
instintivamente, ficamos a meditar no prejuízo que a paralisação do tráfego
comercial vem causar á Nação. As locomotivas, que tanto oneram a
importação, acham–se desviadas do seu mister natural de progresso. São
empregadas para, com a sua rapidez, jogar irmãos uns sobre os outros. Já
nos acostumamos a ouvir o seu resfolegar na guerra. Quando apitam, ao
longe, recordam–nos os lamentos dos que ficaram atrás, ao se despedirem
daqueles que, em todas as frentes, em ambos os Exércitos antagônicos,
partiram para a guerra que os políticos deflagraram no seio da Pátria.
Além do roubo, do saque, da violência, do esgotamento dos nossos
meios de defesa, do enfraquecimento do espirito de brasilidade, além de
tudo, esta grande perturbação à agricultura, ao comercio, á indústria! São, de
fato, inenarráveis os prejuízos que esta campanha vem acarretar a um País,
que se debate em tão angustiosa crise econômica. Eis o triste legado que, à
nossa geração, deixaram a desonestidade de uns, o indiferentismo não
menos criminoso de outros, todos da desastrosa geração que, para a
felicidade da Pátria, vae transpondo os umbrais da derradeira morada...
Vemos, por curiosidade, interrogar um prisioneiro ferido. Uma bala das
fileiras federais lhe penetrara pela boca, saíra pelo ouvido, produzindo–lhe
grande estrago no rosto. A dedicação de alguns soldados nossos livrou–lhe a
carcaça da sepultura sumaria de campanha, ou mesmo da sanha dos
corvos...
Depois os médicos dos Hospitais de Sangue que – justiça seja feita –
excederam toda a expectativa, no desempenho da sua humanitária missão,
logo o puseram fora de perigo. E o coitado do Português, com grande
dificuldade, começou a conversar, ainda sob a impressão da fuzilaria que o
pusera fora de combate. Fizemos–lhe algumas perguntas. Português de
nascimento. Constituiu família em São Paulo considerando–o como a sua
terra. Em julho ultimo caiu na esparrela que o perrepismo lhe havia armado.
Perguntou–lhe o Doutor, talvez fazendo alusão ás inúmeras revoluções
que agitaram o velho Portugal, se esta era a primeira em que tomava parte.
A resposta, mal humorada, seguida de expressivo movimento de ombros,
não se fez esperar: Qual, doutor, é a ultima!...

Deu–se o fato em Itapeva.


O nosso avião levantou voo com uma carga de dez bombas para,
lançando–as sobre os reacionários, vingar–nos dos frequentes raids da sua
aviação.
O pássaro levantou voo soberbamente. O tempo não estava muito firme.
Mas o entusiasmo que impulsiona os nossos aviadores pôs em plano
secundário essa questão de tempo.
Lá se vão eles, alegres com a missão de desacatar, nas suas tocas, os
inimigos.
A missão, pouco depois, estava realizada com pleno êxito. As bombas
foram lançadas. Apenas o observador não viu o arrebatar de duas delas.
Supôs que estas, jogadas, não houvessem funcionado. Voltaram, céleres,
para Itapeva pois os três aviões inimigos podiam vir em perseguição. Ao
fazerem uma volta para aterrissar, já em voo baixo, caiu umas das bombas
que ficara preza sob as asas, mesmo tendo o aviador puxado a alavanca de
lançamento.
O pessoal do campo, julgando tratar–se de uma visita inimiga não teve
duvidas. As metralhadoras despejaram as suas balas imediatamente. Os
aviadores, surpreendidos, já sem gasolina, só tinham um recurso: aterrar de
qualquer modo.
Continuaram baixando.
Ao primeiro contato com o solo, a outra bomba desprendeu–se. Mas,
devido á pequena altura, não funcionou. Foi a salvação dos aviadores.
Calaram–se as tantas angustiosos para os nossos valentes camaradas do
ar. Serem mortos, assim, pelos companheiros a quem acabavam de servir
com tanto desprendimento! Ao pisarem em terra, os asares foram logo
dizendo: – Mas assim é impossível. É quase suicídio levantar voo!.
Este fato bem caracteriza os riscos da missão dos aviadores. O voo, em
si mesmo, não é absolutamente seguro. Em caso de queda em terras
inimigas, si escaparem com vida do desastre, tal não sucederá do ódio
bárbaro de quem se vê bombardeando sem poder reagir de nenhum modo.
E, para cúmulo, sujeitos a um contratempo como esse de Itapeva!
Os aviadores, de certo, espalham o maior terror por ocasião dos
bombardeios. Mas, também, correm os maiores riscos da guerra. É a lei das
compensações.
Hoje o dia foi bastante agitado em Buri. Pela manhã nossa Bateria (2.ª
do R.A.M.), representada pela Segunda Seção, esteve nas linhas da Policia
Pernambucana pronta para fazer, com alça 2.000, em pontaria direta, tiros
de precisão sobre as organizações que o inimigo dispunha em frente á via
férrea. Ás 7h30, aproveitando a cerração que nos livrava das vistas terrestres
e aéreas do inimigo, pusemo–nos em marcha.
Entretanto, não realizamos a missão. Na véspera a I.ª e a 3.ª Baterias
(do 9.° R.A.M.) haviam feito o inimigo recuar em debandada. Deixamos de
lhe enviar, assim, algumas dezenas de granadas...
Á tarde uma Bateria inimiga fez os primeiros disparos sobre Buri. Tiros
em tempo, muito altos, ineficazes materialmente. Houve correrias e atropelos
na vila. Apreciamos como artilheiros, embora contra nós, o considerável
efeito moral da nossa arma.
Feita a contra–bateria pelo 5.° G.A.Mth. (5.° Grupo de Artilharia de
Montanha, do Paraná), este conseguiu neutralizar a artilharia inimiga que
logo cessou fogo. Certamente sofreu estragos de pessoal e de material.
Pouco depois apareceu o trem blindado. Uma locomotiva, entre dois
vagões, além de uma prancha á frente para verificar o estado da linha. A
pintura imita a vegetação do lugar, procurando diminuir–lhe a visibilidade. A
guarnição desse trem que os nossos soldados chamam de trem fantasma –
fez cerrado fogo sobre a Policia Pernambucana, mas esta reagiu na altura. O
trem retrocedeu. Logo depois ainda o 5.° G.A.Mth. fez alguns tiros sobre o
mesmo, pondo–o a fugir a todo vapor.
Pouco depois passou o nosso avião. Ia fazer alguns reconhecimentos
sobre as linhas inimigas. Antes de ser identificado, é claro que fez muita
gente correr para os abrigos, nós inclusive. Nada mais natural.
Ás 15h45 o comandante do Batalhão que apoiávamos nos fez pedidos
de tiro sobre a cavalaria inimiga que, em posição fácil de bater, fizera recuar
algumas patrulhas de reconhecimento. Atendemo–lo prontamente. Com
esses tiros terminou a jornada daquele dia.
Na noite anterior colhera–nos um vendaval terrível. O casebre onde
estávamos era frequentemente sacudido pela fúria da procéla. Frio intenso.
Ao recolhermos–nos não nos saia da mente a delicada missão que
realizaríamos pela manhã. Uma carga de cavalaria que nos surpreendesse
na estrada tão próximas das linhas inimigas, os acarretaria a perda dos
canhões que, atrelados, são fácil presa daquela arma... Sentíamos a
responsabilidade direta da missão. Mas não hesitamos, nunca, em cumpri–
la. Fazia–se mister, quanto antes, destruir a Bastilha do cangacerismo
politico, com que o P.R.P. estabelecera profunda separação entre São Paulo
e todo o Brasil.

Estamos percorrendo o Cemitério de Buri. Sentíamos, neste momento, a


emoção que todos sentem ao visitar um lugar sagrado como este.
Descobrimos–nos diante daqueles que repousam na ultima morada.
Fácil nos foi reconhecer as sepulturas dos nossos camaradas que aqui
tombaram em defesa da União. Todos dormem o sono da eternidade junto
aos mortos de Buri. Os seus companheiros de luta, que entre lagrimas de dor
cavaram as sepulturas; os seus camaradas que, na incerteza da guerra,
esperam para si – quem sabe! – um destino análogo, tiveram ao praticar este
ato de piedade, que forçar as paredes deste Cemitério.
É que os naturais de Buri, ao fugirem dos vencedores que os retirantes
classificavam como uma horda de Humos ferozes e sanguinários, haviam
fechado os sólidos portões de ferro.
Abriram–se, com a maior dificuldade, passagens nos muros.
Sepultaram–se os heróis anônimos.
Mas, com que recursos homenageá–los, identificá–los, na pressa de sua
passagem para a nova linha de frente?
Como dar, aqueles que desde o Rio Grande vinham dispostos a morrer
pela Pátria, o lenitivo de uma cruz, de uma coroa á flor da terra?
Quadro comovente! Na imensidade de sua dor foram aos túmulos dos
naturais do lugar. Estes, por mais honestos, não tinham, de certo, tombado
pela coletividade. Haviam desaparecido, mas sem oferecer a vida em
holocausto á grandeza da Pátria! Haviam transpassado pela dor os corações
dos seus, não a alma de todo um Regimento em combate...
A mais estranha e rápida decisão fez–lhes, num momento, retirar de
outras sepulturas mais antigas dali, cruzes, coroas e flores. Homenagearam,
assim, aqueles que, pelo bem dos próprios descendentes dos que ali se
achavam, sonhando com um Brasil melhor, se foram, tristemente, deste
mundo...
Tenente Arizoli Fagundes.
Cabo Manuel Foutoura Xarão.
Soldado Elsia Nunes.
(Da Bda. Militar do R.G.S.)
Soldado Pedro Guimarães.
(Do 8.° R.I.)
Queremos juntar às eloquentes demonstrações de saudade e de cor dos
vossos companheiros de luta, o preito de nossa indelével admiração pelo
desprendimento, pela bravura, pelo heroísmo, que, a par da imensa magoa,
orgulham de modo sublime toda a Nação Brasileira.

Mal começamos o almoço e já três aviões nos obrigam a deixa–lo. Vêm


de Itapeva.
Estão lançando bombas sobre o morro do Cemitério onde se acham
nossas peças em posição. Pelo estrondo essas bombas de hoje nos
parecem bem maiores que as outras. Estes aviões de certo fizeram um voo
circular para, saindo à retaguarda, descobrir as nossas posições se,
confiantes, não nos houvéssemos abrigados. Mas já conhecemos, de sobra,
as manhas sinistras do adversário. Qualquer avião, venha de que lado vier,
nos leva logo aos abrigos. Já estamos fartos de equívocos. Se estarmos
abrigados, sob um bombardeio, é coisa desagradável, imagina–se, agora,
colhidos de surpresa á beira da estrada.
A Radio Educadora fez constar, ha dias, que São Paulo iria assombrar o
mundo com as inovações introduzidas no material bélico. De certo essas
bombas de grande poder de destruição fazem parte do programa. Fala–se,
também, que o inimigo está envidando os maiores esforços para fabricar
projetis de Artilharia. Todos esses esforços, entretanto, só servirão para adiar
a sua derrota inevitável pelos Exércitos federais.

Buri está sendo bombardeada pela Artilharia inimiga. Têm vindo projetis
em varias direções. Houve arrebentamentos dentro da vila. Ruíram algumas
casas. Um trem que acabava de chegar também foi visado. Houve tiros em
tempo e em percussão. Schrapnels e granadas. Estamos ouvindo de perto
os seus arrebentamentos. Ouve–se, nitidamente, o assobio dos projetis e,
após o arrebentamento, o dos balins e dos estilhaços. Ainda desta vez
apreciamos o efeito moral da Artilharia, pois houve grande procura de
boieiros e correria de gente lá na vila.
Sobre o trem em que o inimigo fez uma regulação caíram muitos
projetis, mas o efeito material foi nulo. É claro que o efeito moral foi enorme,
pois aquela tropa mal chegava de Itapeva. Aquele era o seu batismo de fogo.
Uma granada caiu aos pés de um oficial da Brigada Gaúcha mas, por
grande felicidade deste, mesmo tendo queimado a carga de trotíl, não
estilhaçou. O oficial, sorridente, nos mostrou o projetil, sem espoleta,
dizendo–nos em tom de brincadeira que nesta guerra já nascera três vezes...
Manifestamos desejos de possuir o projetil, mas não o conseguimos,
pois o destinatário pretendia guarda–lo como recordação da jornada de 32.
Era a quarta campanha que fazia e nunca vira a morte tão de perto...
Pouco antes desse bombardeio raspáramos um pequeno susto.
Repousávamos numa casa abandonada, bem próxima á posição, quando
fomos acordados por uns tiros de metralhadora dados nas proximidades.
Que seria aquilo? O inimigo nos estaria atacando de flanco? Alguma
infiltração? Algum envolvimento? Em um abrir e fechar de olhos estávamos
junto á Bateria. No caminho tivemos que nos atirar ao chão, afim de evitar
algumas das balas perdidas que sibilavam por todo o canto. Quando
pensamos em nos deitar já o havíamos feito. O instinto antecedera ao
cérebro. O subconsciente antecipara–se, com aquele recurso imediato, ao
consciente.
Depois fomos informados do que se tratava. Uma metralhadora tomada
aos paulistas, por ocasião do tiro feito sobre o avião inimigo, durante o
bombardeio da manhã, não funcionara. O pessoal, Agora, a estava
experimentando... Nem nos avisou, sequer. Que dia agitado o de hoje.
Bombardeio aéreo, de Artilharia, e ainda por cima as rajadas das nossas
metralhadoras em experiência.

Nesta campanha temos levado grande desvantagem no ar.


Esqueceram–se de nós. Temos, apenas, dois aviões aqui, quando no Rio ha
varias dezenas.
O inimigo tem três aviões na sua base em Itapetininga. Estamos,
portanto, á mercê dos seus raids que se repetem duas vezes por dia, sempre
com grande carga de bombas.
Hoje, por exemplo, tivemos ao almoço uma sobremesa de doze grandes
ameixas vindas do céu...
Ás 16 horas, quando o nosso avião vinha reconhecer as posições da
Artilharia inimiga, foi surpreendido pela esquadrilha adversaria.
É claro que nosso avião retrocedeu. A esquadrilha foi ao seu encalço.
Assistimos a desenrolar daquela cena inédita para nós: um combate aéreo.
Maravilhou–nos aquele quadro dantesco! Aviões a se metralharem espaço á
fora! Confundiam–se, de modo aterrador, os ruídos de quatro motores, o
crepitar de metralhadoras, e, de quando em quando, o estrondo de uma
bomba! De terra todos contemplavam a fúria com que, no ar, os homens
procuravam destruir uma das mais avançadas realizações do seu gênio! Em
alguns minutos procuravam destruir uma conquista de vários séculos!
O nosso avião, em poço tempo, teve o radiador e o tanque de gasolina
atravessados por balas. Rumou, vertiginoso, para Itapeva. A sua derrota fora
de fácil previsão. Passou em voo baixo. E, em vista da confusão provocada
pelos quatros aviões em combate, foi desconhecido pelos seus
companheiros de terra. Varias rajadas de metralhadoras foram a
recompensa dada ao nosso valente aviador.
Com esforço sobre–humano, este ainda conseguiu aterrissar em
Rondinha, próximo de Itapeva, num lugar onde só por milagre o avião não
capotou. Em todo o trajeto deixou escapar expeça fumaça. Assim, no dia de
hoje, tivemos oportunidade de assistir a um combate aéreo.
Aos gritos de Avião! Avião! do nosso pessoal, tínhamos visto, primeiro, o
que vinha do lado de Itapeva. Todos diziam: – É o nosso!.
Mesmo assim, nos abrigamos. Estamos cansados de ver esses gritos
radiantes É nosso! – São nossos! seguidos do estrondo formidável das
bombas que, sempre, vitimam alguns dos que se deixam colher fora dos
abrigos. Vir na direção de Itapeva, portanto, nada significa, pois o inimigo, de
vez em quando, vem de lá também. É a sua difícil identificação, devido aos
ardis do adversários, que nos leva, não raro, a metralhar os nossos próprios
aviões.
Mais isto em breve mudará. Fala–se na próxima chegada de vários
aviões que virão reforçar os do Exército do Sul. Já é tempo de fazer–se uma
investida em regra, sobre a esquadrilha inimiga, que, cada dia, nos lança
bombas de apreciável potencia destruidora.

Recolhemos–nos na esperança de obter algum repouso. A inquietação,


o efeito moral dos bombardeios tudo, em breve, nos torna cansados. A
observação cuidadosa, binóculos em punho, horas a fio, sobre as posições
inimigas, no intuito de, pelos clarões, localizar–lhe a Artilharia é um trabalho
que nos deixa exaustos ao cair da tarde. Mas é este o único meio que nos
permitirá um tiro eficaz de contra–bateria.
Recolhemos–nos ás casas de sapé que os Burienses nos deram de
presente; sempre temos mais sorte do que aqueles que, fazendo a nossa
segurança, ficarão rondando aí fora açoitados pelo vento frio.
Com um esforço enorme para vencer o cansaço, conseguimos rabiscar
estes apontamentos, enquanto os outros camaradas ressonam. São
instantes que roubamos ao descanso imprescindível. Muita vez
adormecemos, lápis e papel ás mãos, deixando a lanterna queimar
querosene (tão precioso nestes lugares), até alta madrugada.
É meia noite. Estamos ouvindo cerrado tiroteio. Armas automáticas.
Prevendo–o, já nos havíamos deitado completamente equipados. Num pulo
estamos junto aos canhões. A escaramuça passa–se ao centro do nosso
dispositivo. De certo a Policia Pernambucana repele alguma infiltração
inimiga. O luar está magnifico. Não é absurdo, em vista disso, conjeturarmos
um ataque noturno, de surpresa, por parte do inimigo que conhece muito
bem este terreno. Estamos atentos. Aguardamos ordem para entrar em
ação. Os elementos de tiro já foram referidos por meio dos tiros feitos
durante os dias anteriores.
Continuamos a ouvir, nitidamente, o crepitar bem distinto dos F.M., das
metralhadoras e o estalido seco dos fuzis. Observamos as atividades da
Infantaria. Pode, ser que ela necessite de sua irmã, a Artilharia.
Ao fim de duas horas cessou o tiroteio. Reina calma em tudo. Sopra
uma brisa suave, agradável. De certo que nesta noite enluarada não correrá
mais sangue brasileiro.

São 11h20. Raid aviatório inimigo. Desta vez, veio um novo avião.
Grande, bem maior que os outros. É o maior que tem voado nesta frente.
Está corvejando sobre nós. Felizmente o ruído dos motores nos avisou, com
antecedência, a vinda dele. Todos já estamos em abrigos mais ou menos
seguros. A não ser que alguma bomba caia sobre a cobertura dos mesmos,
não corremos grande perigo. Vemos o que é possível ver quando o avião se
afasta um pouco dos nossos crânios.
Mas, – fato curioso, – desta vez logo se afasta para Itapeva. Certamente
vai em busca do nosso avião que uma esquadrilha ontem perseguiu e quase
pôs a perder. De certo perceberam os aviadores que ele, nas condições em
que o deixaram, não poderia ter atingido o campo de Itapeva. Ficara pelo
caminho. Querem, Agora, destruir, inutilizar totalmente a sua presa de
ontem. Estão esquadrinhando todos os recantos. Farejam como urubus.
Mas não conseguem o que pretendem. O nosso pássaro, desmontado,
seguiu de trem para Itapeva. Lá está bem guardado por metralhadoras
vigilantes. Desta vez erram o pulo.
Mas, na volta, certamente nos mimosearão com a sua carga de bombas.
Tanto pior. Porem que não nos privem do nosso precioso avião. Sem ele
seriamos, por assim dizer, uns cegos a combaterem, desigualmente, um
inimigo de olhos de lince...

A Natureza se tem esmerado, ao nos conceder estes dias límpidos,


cheios de sol e de canto de pássaros. A temperatura está agradável, sem os
rigores do inverno, nem o calor sufocante que fazia dias atrás. Aproveitamos
está calma passageira para trocar idas. Começamos a pensar em tudo o que
se nos tem deparado nesta penosa e inglória campanha. Vemos tantos e
tantos brasileiros desviados do cultivo das terras, do mourejar progressista
das industrias, do trabalho fecundado que engrandeceria a mais e mais a
nossa Pátria, para esta tragédia que antepõe uma caudal de sangue aos
nossos anseios de progresso.
Não podemos compreender como os políticos paulistas, os comensais
das orgias da republica velha, elementos facilmente reconhecíveis do
perrepismo vencido – mas não esmagado como o devera ser em 1930 –
conseguiram arrastar o povo bandeirante a essa calamidade em que avultam
a fome, a crueldade, a morte.
Causa–nos grande pesar esta retrogradação aos tempos primitivos.
Enquanto os países da América procuram impedir, por todos os meios,
que povos do novo continente se empenhem em guerras que lhes seriam
fatais, os brasileiros jogam–se uns contra os outros para atender aos
caprichos e interesses da politica e da plutocracia paulista.
A estas é que cabe a responsabilidade do que estamos vendo. Em
breve hão de sofrer os castigos que merecem, quando se fizer luz aos olhos
do povo que arrastaram a esta empreitada de desordem, de desagregação.

Mais uma miséria da guerra civil. Um farmacêutico, em Buri, fiel aos


seus coestadanos, deixou–se ficar na vila para mandar–lhes informações
nossas. Dispunha de uma ligação telefônica secreta que permitiu
comunicações com Capão Bonito e Itapetininga. Tudo foi descoberto hoje.
Um oficial conseguiu introduzir uma ligação na linha e surpreendeu o
seguinte dialogo: – Há novidades? (De Capão Bonito) – Três composições
com tropa. Não havia mais dúvida. O farmacêutico nos estava espionando.
Alguns explicaram, assim, a coincidência de horas entre o voo de um avião
nosso na véspera e de três aviões inimigos.
A punição do farmacêutico não se fez esperar. Saquearam–lhe a casa
de negocio. Não ficou uma prateleira em pé. As ambulâncias de alguns
corpos se encheram de medicamentos. Por fim, já noite, atearam fogo ao
montão de destroços. A guerra civil fizera surgir soldados com alma de Nero,
no Brasil. Eis a desgraça a que arrastaram os paulistas os seus politiqueiros.
Eis um cidadão que, em tempos normais, seria tão honesto quanto qualquer
outro, transformando, subitamente, pelas contingencias da guerra, em
espião, em fugitivo, e, finalmente, com a sua casa de negocio incendiada....

Por ordem do comandante da Vanguarda, saímos em reconhecimento


de nova posição. Desta faríamos a preparação do ataque ás posições que o
inimigo ocupava além de Buri, sobre as vias férrea e de rodagem. A missão
que o comandante do Grupo nos reservara consistia em fazer tiros de
interdição sobre a estrada Buri–Capão Bonito, no trecho em que a mesma
inicia longo percurso mato a dentro. A’ entrada o mato tem a forma
característica de um coração. Batisamo–lo, logo, de Capão–Coração.
Escolhidas ás posições de tiro, linha de armões e novo acampamento,
voltamos ao trem onde o comandante da Vanguarda tinha o seu P.C. Lá
fomos colhidos por um bombardeio aéreo.
Como sempre os aviões lançaram bombas sobre a estação. Ao vermos,
depois, o seu efeito, constatamos a violência dos estilhaços lançados a
grande distancia. Uma bomba, caindo nas proximidades do Bar do Ponto,
arrombou–lhe as portas, lascando–as. As paredes que não ruíram ficaram
pretas de fumo. Estilhaços por todo canto. Mas o prejuízo não foi tão grande
ao proprietário do Bar. Pois os ocupantes, burlando as severas ordens
proibitivas, já haviam esvaziado, antes, todas as garrafas...

À proporção que os bombardeios feitos pelos paulistas se repetem,


também, as represálias que os ocupantes fazem sobre as suas
propriedades. Aliás o saque destas foi iniciado por eles mesmos, antes de se
retirarem da vila. Prosseguem violências inenarráveis. Não ha força humana
que possa conter os apetites brutais despertados pela guerra. Ainda ontem o
assalto a uma farmácia cujo dono – segundo mais ou menos se supõe –
fazia espionagem para os seus conterrâneos. Não satisfeitos em carregarem
todos os medicamentos, ainda lançaram fogo ao pouco que, revolvido,
restava pelo chão... Hoje liquidaram o estoque da Casa Paulista, a mais
importante casa comercial do lugar. Certamente para arrefecer a indignação
subsequente ao violento bombardeio aéreo...
Não podemos, de nenhum modo, concordar com esta selvageria. Não
podemos calar o nosso protesto diante da Pátria bombardeada,
ensanguentada pela tempestade de ignominias que os politiqueiros,
explorando o povo paulista, fizeram surgir nos destinos da Nação.
Nenhum brasileiro quer este estado de coisa. Nós não o queremos,
como também os próprios paulistas. Mas os subterfúgios, as manobras dos
réprobos nos lançaram uns sobre os outros. E, vemos, pasmados, a injustiça
dos nossos soldados de Vanguarda. Esses pobres Burienses que tiveram
suas casas saqueadas não têm a menos culpa do que se passa no País.
Essa vingança caberia – todos o reconhecemos – aos vendilhões da Pátria,
aos iniciador desta autentica revanche contra o próprio povo brasileiro, todo
em armas em 1930.

Na noite da véspera, aproveitando o esplendido luar, ocupamos a


posição de onde, com alça 3.000 m., bateríamos a picada do Capão
Coração, justamente onde passa a estrada que liga Buri a Capão Bonito.
Fora assinalado grande movimento de inimigo naquela zona. A nossa missão
era, a partir de certo dia não marcado ainda, fazer a interdição dessa picada,
em determinadas ocasiões.
Ocupámos posição ás 21 horas e logo iniciamos os trabalhos de
organização do terreno, á prova de bombas de avião e de tiros de Artilharia.
Completamo–los hoje pela manhã. A esse tempo, 9h30, raid de aviões
inimigos. Eram dois. Alvejaram a estação, mas sem resultado.
A’ tarde bombardeio novamente. Violentíssimo. Quatro aviões. Não
sabemos, ainda, dos efeitos materiais do mesmo. Estamos, Agora, longe da
vila. A julgar pelo numero e potência das bombas deve ter havido sérios
estragos entre os nossos.
É em momentos como este que mais lamentamos a nos inferioridade
aérea atual, que nos deixa á nossa própria sorte, diante da fúria da
esquadrilha inimiga. Contrista–nos esta vulnerabilidade terrível.
Estamos na mais avançada linha do 8.° R.I. cujas posições ocupamos,
impelindo–o mais para a frente. Estamos observando, com atenção, as
organizações defensivas que o inimigo está a fazer bem defronte a nós.
Pelas informações que nos chegaram, no Capão Coração está instalada
uma Bateria inimiga. Houve quem a visse tomar posição. Isto significa,
apenas, que de um momento para outro, podemos receber algumas
granadas. Mas realizaremos a nossa missão.
Também ocupou posição, ao nosso lado, com o mesmo objetivo, uma
seção do 3.° G.I.A.P. (Grupo Independente de Artilharia Pesada), de
Cachoeira, R.G. do Sul. Em vista do difícil acesso á posição, os obuzeiros
vieram tirados por caminhões. Felizmente os nossos cavalos deram conta
das subidas íngremes que precederam esta posição.
Os doze canhões do 9.° R.A.M. e os dois do 3.° G.I.A.P. aguardam
apenas ordem para abrir fogo.

É meia–noite. Recolhemo–nos. Mas sabemos, de antemão, que não


conseguiremos dormir. Não nos ase da mente a repulsa que nos causou o
bombardeio de hoje. Não tanto pelas casas destruídas, ou pelo ferimento e
morte de soldados. Foi ferida, mortalmente, uma pobre velha que não
quisera abandonar a vila e uma moça teve a mão arrancada por um
estilhaço. Como vemos, essas vitimas são do próprio povo que os aviões
pensam servir. Consequências do selvagem bombardeio de cidades e vilas
abertas. Eis a repetição do que fizeram, recentemente, os japoneses contra a
China e que suscitou o clamor geral de todas as nações civilizadas. Eis a
quanto descemos nesta campanha entre nós mesmos: ao bombardeio de
cidades que abrigam, ao seu seio, mulheres e crianças.
O inimigo já compreendeu toda a extensão da sua inevitável derrota.
Está lançando mão dos expedientes os mais bárbaros, os mais aterradores,
no intuito de nos deter na elevada missão de libertar o povo paulistas, dos
politiqueiros que vêm de arrasta–lo a esta sangrenta hecatombe.
Mas as cruéis arremetidas do inimigo, longe de nos esmorecer, reforça–
nos a convicção de que, para o bem Pátrio, já soou a ultima hora dos
profissionais da politica. Estes, em grande, parte, já se refugiam, fracassada
a investida ao poder, pelos inúmeros recônditos da terra paulista.
Mas, haveremos de encontra–los. Quem até agora tem tido a têmpera, a
energia para enfrenta–los, em 30 e 32, de certo achará fácil a imprescindível
missão e em 32, de certo achará fácil a imprescindível missão subsequentes:
– a caça aos traidores do povo irmão!

A nossa posição de tiro (do 9.° R.A.M.) foi hoje visitada pelo General
Waldomiro Lima, com oficiais do seu Estado–Maior. Fomos surpreendidos
pelos visitantes em pleno trabalho. Completávamos as organizações. Estas
merecem francos elogios de todos. Temos consciência de que os
merecemos de fato.
Á tarde passou nossa esquadrilha. Eram três aviões que rumaram logo
para Itapetininga onde, normalmente, inquietam o inimigo. Melhora a nossa
situação no ar. Já não estamos à inteira mercê da sanha dos corsários
inimigos.
Continua o forte tiroteio que estamos ouvindo desde ás 9 horas da
manhã.
Parece–nos que o mesmo se trava á retaguarda. Custa–nos acredita–lo.
Os nossos camaradas da Infantaria nos haviam garantido que o Rio Apiaí
não dava passagem nas proximidades e que todas as pontes e pinguelas
haviam sido destruídas.
Mais tarde, porém, fomos surpreendidos com a noticia, dada pelo
comando da Vanguarda, de que alguns elementos inimigos haviam
transposto o rio, à direita, vindo ameaçar a nossa retaguarda. O
destacamento inimigo viera ter, justamente, onde havíamos acampado, pela
segunda vez, para nos esconder à aviação. Se não tivéssemos vindo ocupar
posição mais à frente, seriamos colhidos de surpresa. Os nossos serviços de
aprovisionamento, de saúde e veterinária quase foram colhidos em cheio
pela infiltração inimiga.
Dado o nosso pequeno efetivo, no momento, em Buri, a ideia de
manobra do inimigo foi bem concebida, mas pessimamente executada. Para
faze–la com maior probabilidade de êxito, bem poderiam ter aproveitado o
luar que tem havido. Conheciam o terreno palmo à palmo, pois dele se
haviam retirado pouco antes. Um ataque de retaguarda noturna é quase
sempre decisivo. Principalmente si a gente se aproveita, ao máximo, dos
efeitos desmoralizadores da surpresa. Mas o inimigo não soube faze–lo.
Precipitou–se. Foi logo nos avisando de sua presença, com alguns tiros
inúteis que fizeram fracassar, totalmente, a manobra. É claro que tínhamos
elementos de vigilância por aqueles lugares. Mas uma emboscada, quando a
gente quer de fato fazer, é sempre possível nessas ocasiões. Perdeu o
inimigo ótima oportunidade de desfazer a impressão de pouco valor militar
que têm causado as suas continuas retiradas de Itararé até Buri, num
percurso de mais de duzentos quilômetros, em tempo relativamente tão
pequeno.
O 14 R.C.I. (Regime de Cavalaria Independente), do R.G. do Sul, por
providencial coincidência para nós, acabara de chegar de Itapeva.
Rapidamente enfrentou o inimigo. Conseguiu fixa–lo. Em breve o I/8.° R.I. de
Passo Fundo, R.G. do Sul, que se achava de reserva, reforçando o 14 R.C.I.
impeliu o inimigo para o lugar em que transpusera o rio. A fuzilaria durou o
dia inteiro. Das 9 às 20 horas, quando houve uma ligeira trégua. Recomeçou
às 24 horas, indo até ao amanhecer. Deixando mortos e feridos o inimigo
conseguiu, afinal, fugir.
Tivemos quatro mortes a lamentar: – A do valoroso Tenente Muler e as
de três praças do 8.° R.I. Além dessas perdas, a fuzilaria ainda enviou, para
o Hospital de Sangue, oito dos nossos soldados. Alguns prisioneiros nos
informaram que o efetivo concentrado além do Apiaí é de 2000 homens
comandados pelo Coronel Taborda com o seu P.C. em Itapetininga. Nas
posições se acha no comando geral o major Arlindo, da Força Pública.
Foram acordes em afirmar que, há muito, reina grande desanimo nas
trincheiras paulistas.

Estamos a oito quilômetros de Buri. O ataque ás posições inimigas já se


deveria ter realizado. Mas em vista deste ultimo ataque de retaguarda, temos
que esperar mais algum tempo, até que se resolva, de modo definitivo, a
situação lá atrás. Se esse ataque do inimigo fosse realizado alguns dias
antes, estaríamos em situação algo difícil. Tínhamos pouca tropa em Buri,
em relação à frente a guarnecer.
Além disso a espera é imposta, também, pelos demais destacamentos
que não estão, ainda, na mesma linha de avanço que nós, em São Paulo.
Avançarmos, agora, importará, certamente, nalguma manobra de grande
envergadura do inimigo. Esta espera ao dia do ataque nos vem
proporcionando algum repouso. Estamos como que numa fazendo a
inventar. Tudo calmo, ar puro, sol, brisas amenas, etc. À noite, quase sempre
há tiroteios. Já nos acostumamos com eles. Confundem–se, sob o manto
estrelado da noite, com o coachar lá dos pântanos, com o sussurro da
aragem por entre as folhas do bosque que ocupamos...
Temos em mão um jornal de São Paulo. É um numero bem atrasado.
Vimos, nas suas colunas, a organização da Legião Negra pelo Dr. Guaraná.
Lemos, em voz alta, por entre ruidosos comentários, o manifesto que esse
ilustre homem de cor fez aos seus colegas também de cor. Apela para os
serviço de Mãe Preta, para a memoria de José do Patrocínio, para os
Rebouças, etc. Concita toda a gente de cor de São Paulo a alistar–se na
Legião para vir dar–nos caça.
Esta rebelião nos está parecendo uma cópia – em miniatura, já se vê –
da Grande Guerra. E esta Agora! Combater contra a Legião Negra!
Em 1914, quando os aliados lançaram negros de faca á boca, cheios de
tatuagens pelo corpo luzido, contra os alemães, houve, em todo o mundo,
comentários desfavoráveis ao fato. Agora chegou a vez do Brasil. Reuniram
todos os negros de São Paulo e jogam–nos, sem mais nem menos, sobre
nós... A ida não é de todo má. Numa época em que tanto se fala de eugenia
e de aperfeiçoamento da raça, é bom lançar os negros ao front, a serviço do
cangacerismo politico. De certo com a selvageria e perversidade que,
mesmo remotamente, o atavismo conserva nas veias de alguns... Com o
primeiro schrapnel que enviarmos ao inimigo, irá, também, um abraço ao
ilustre homem de cor, Dr. Guaraná, fundador da Legião Negra de São Paulo.
Ha um flagrante coincidência em tudo isso.
A cor negra dos novos defensores da Bastilha perrepista, é bem o
reflexo da alma negra dos politiqueiros que arrastam São Paulo a esta
grande desgraça...

Em breve deixaremos Buri. Temos que avançar na direção de


Itapetininga. Antes encontraremos um grande obstáculo natural: o rio
Paranapanema. Se o inimigo tiver destruído as pontes (o que é quase certo)
a operação vai ser bem demorada.
Ao passarmos em despedida por Buri, não nos podemos eximir de
lamentar o estado em que ficou esta vila do Sul de São Paulo.
Ocupada por tropa numerosa durante tantos dias, todas as casas
sentiram os efeitos da ocupação militar. Não obstante os aviões procurarem,
de preferência, o centro da vila, onde jogam diariamente grande numero de
bombas, a tropa preferiu instalar–se nas casas abandonadas, a ir para o
dentro de barracas, no mato, sujeita aos rigores do tempo, exposta às cobras
e aos carrapatos. Retiramos–nos levando triste impressão do que resta da
pequena vila.
As casas comerciais, cujo saque foi iniciado pelos próprios paulistas, aí
estão de portas arrombadas, revolvidos e quebrados os utensílios. Tudo com
que protesta contra a injustiça de que foram vitimas os proprietários, a
maioria sem saber o que se passa no País.
Os bares e botequins, esses foram os primeiros arrombados. A cachaça,
aqui no front, é procurada avidamente. É que a soldadesca quer, assim,
esquecer os males da vida... São inúmeras as casas que ruíram. Nas
paredes que lhes restam de pé, pretas de fumaça e de pólvora, a gente pode
observar o efeito dos estilhaços de bombas e de granadas.
As ruas estão esburacadas. Apresentam os restos das vidraças que não
resistiram ao sopro do arrebentamento das cargas aéreas. A população civil
toda sumira–se, espavorida. Os que tinham resolvido ficar mudaram de ideia
ao intensificarem–se os raids aéreos do adversário.
Eis a miséria a que ficou reduzida esta pequena vila. Os maus paulistas
cavaram–lhe a ruina...
São 5 horas da manhã. Dia 15 de Agosto de 1932. Estamos vigilantes,
prontos para entrar em combate. Em vista da cerração, o inicio deste foi
marcado para às 7h30. Estamos impacientes por executar o tiro tão
cuidadosamente preparado. Em breve o silencio sepulcral destas paragens
será substituído pela fala sinistra de aviões, canhões, bombas, morteiros e
metralhadoras! O gênio inventintivo do homem fez prodígios na metalurgia
para a própria destruição do homem! Os engenhos da guerra que os
brasileiros compraram ao estrangeiro, em breve serão empregados na
destruição dos próprios brasileiros!
Em poucos momentos o canoeiro fratricida se expandirá pelo espaço
infinito, anunciando o começo da batalha!
E em breves instantes, também, gemidos, sofrimentos, lamentações, se
farão ouvir no recesso sangrento, lúgubre das trincheiras!

São 7h30. O 5.° G.A.Mth. deu o sinal combinado abrindo fogo. Desde a
véspera as três baterias do 9.° R.A.M. estão em vigilância sobre o Capão–
Coração, na estrada Buri–Capão–Bonito. Tem havido, ali, grande movimento
nos últimos dias.
A frente a conquistar ao inimigo é muito extensa. Foram organizados
dois destacamentos. O destacamento Cel. Sayão avançará, no eixo da via
férrea, até à estação de Vitorino Carmilo. Ideia de manobra: fixação de frente
com desbordamento pela ala direita, separando, assim, os elementos
inimigos que guarnecem a via–férrea, dos que se acham na estrada para
Capão–Bonito.
O destacamento Cel. Dorneles progredirá pela direita na direção desta
cidade. O nosso Regimento (9.° R.A.M.) vai apoiar o avanço deste
destacamento. Atuaremos por concentrações das três Baterias. Nosso doze
canhões vão agir simultaneamente. Faremos, assim, uma forte concentração
sobre os objetivos.
Após rápida preparação entramos logo em eficácia. Por várias vezes
temos anunciado ao Sargento de tiro a observação No objetivo!. É a maior
satisfação que pode ter um artilharia em campanha. Atiramos durante uma
hora. A Infantaria já iniciou a aproximação. Já lhe neutralizamos, ou mesmo
destruímos, muitos dos obstáculos que se oporiam á sua progressão. A
Artilharia, cuja própria natureza não permite avançar sobre o inimigo, já se
antecedera, na verdade, á Infantaria, preparando–lhe o caminho, tornando
possível a aproximação até uma base razoável para a partida ao assalto.
Agora começar o engajamento. Cada vez mais o tiroteio vai recrudescendo.
Ha momentos em que a sequencia de tiros é incrível. Surgiu um avião.
Mal o podemos ver, pois as nuvens são numerosas e baixas. Mas, em
pouco tempo, ouvimos o estrondo das bombas lançadas sobre o inimigo. Só
Agora podemos ter certeza que é nosso. E admiramos a audácia do aviador.
Levantar voo num avião de bombardeio, desacompanhado do de caça que
lhe faria a proteção, é arriscar–se a encontrar a esquadrilha inimiga que não
tarda a aparecer! É ter coragem.
Em terra o combate continua. Do alto do observatório estamos vendo a
chegada de reforços para as nossas linhas. Apreciamos toda a progressão
da Infantaria. O destacamento Coronel Sayão já envolveu o inimigo em
posição a cavaleiro da via–férrea. A coluna da direita, que apoiamos,
continua a avançar. Apreciamos, entusiasmado, comovidos, o deslocamento
daquele formigueiro humano, lá em baixo, quase imperceptivelmente. Temos
vontade de falar–lhes nesta hora angustiosa em que o assalto ás trincheiras
inimigas se aproxima. Queríamos dizer–lhes que aqui estamos para, com a
maior dedicação, dando a precisão máxima aos nossos tiros, tornar–lhes
possível a tomada das trincheiras que, pelo fogo de barragem que vomitam,
a Infantaria, pelos seus recursos, é impotente para faze–la.
São, Agora, 14 horas. O combate, no flanco direito, prossegue,
impetuoso. De quando em vez damos algumas salvas sobre o objetivos
fugazes que sempre surgem no desenrolar dos combates. As metralhadoras
crepitam ininterruptamente.
Mas no flanco esquerdo, próximo á via–férrea, já cessou o tiroteio.
Foram feitos numerosos prisioneiros. Vimos, pelo binoculo, a chegada dos
mesmos. Do nosso lado a refrega continua sem trégua. O tempo melhorou
sensivelmente, facilitando–nos a observação. Esperamos, atentos, pelos
pedidos de tiro que a Infantaria possa fazer. Vamos dando conta das
missões que nos couberam por sorte, neste violento combate que as
margens do rio Apiaí estão assistindo.
O combate de Morungava, em 1930, entretanto, teve uma fuzilaria bem
maior. O tiroteio, aqui, é mais espaçado. Progride–se com menor dificuldade.
Quanto à Artilharia aqui a temos em muito maior massa. Os tiros são mais
numerosos. Neste combate estão vomitando fogo sobre as linhas inimigas
vinte e dois canhões. Há munição a granel. Em Morungava agiram dez
canhões e com muita escassez de munição. O tiro era feito por peça. Agora
só o temos realizado por meio de salvas ou rajadas.
A metralha continua lá em baixo. Quantos soldados terão deixado o
mundo na angústia deste dia tão sangrento! Todos lutam encarniçadamente.
Atiram–se uns sobre os outros na voragem da luta fratricida! O combate
turva–lhes o raciocínio. Torna–os cegos pelo ódio reciproco destes instantes.
Não se reconhecem mais como brasileiros. Ali, naquele campo, mata–se
para não morrer. São inimigos de morte que se defrontam. Pelo menos
nestes momentos de fuzilaria.
O combate parece que irá até amanhã. São 16 horas e o tiroteio, no
nosso flanco, continua intenso. As organizações da boca do Capão Coração
foram varridas, suficientemente, pelos nossos projetis. Mas, cessado o fogo,
o inimigo saiu dos seus abrigos e defende–se com bravura. Conseguimos
calar uns dois ou três espaldões de metralhadoras. Mas os outros continuam
vomitando fogo. É preciso, uma vez que a Infantaria está impedida de
avançar, que a Artilharia faça novas concentrações sobre os
entrincheiramentos que ainda resistem. É o que vamos fazer: – Algumas
salvas de granadas para destruir, ou neutralizar, definitivamente, os reduto
inimigo. A resistência deste tem sido tenaz, honrosa. Tem–se a impressão de
que, desta vez, os paulistas estão dispostos ao ultimo sacrifício. É como
podemos justificar a sua permanência nessas trincheiras que temos
martelado tanto. Mas, cederão por fim.
Mais algumas dezenas de granadas aos inimigos. Começam, agora, a
retirada. De vez em quando vemos, binóculos em punho, saírem dois, três
homens, curvados, ligeiros, ganharem a boca da Picada e sumirem–se no
Capão–Coração. São numerosos. Não param a corrida. Apenas deitam–se,
ligeiros, ao perceberem o assobio dos nossos projetis que vêm chegando.
Vemos, nitidamente, a terra que as balas dos nossos infantes levantam
quando erram os fugitivos e caiem no parapeito das suas trincheiras. É essa
terra tênue, dir–se–ia fumaça, que orienta os artilheiros sobre o lugar onde
se acham os inimigos. Continuamos a persegui–los com salvas de
schrapnel–tempo.
O Major Catulo, comandante do Grupo, concentrou, em todo o combate,
o fogo das três Baterias. Assim, de cada vez, são doze projetis sobre o
entrincheiramento contrário.
Prossegue a retirada. O efetivo é numeroso. Saem muitos homens, uns
atrás dos outros. Os órgãos de fogo dos inimigos foram muito bem
localizados. Enfiam todas as imediações. Mas descuidaram–se quanto á
camuflagem. No capim bem verde da elevação distingue–se, perfeitamente,
a cor vermelha da terra que serve de parapeito ás trincheiras. Deixaram de
colocar algumas leivas ou mato da cor da vegetação próxima.
Veio ordem para cessar fogo. Estamos vendo, Agora, com certa
dificuldade, pois é quase noite, o assalto às trincheiras que haviam martelado
o dia todo.
Esse assalto, graças à Artilharia, se faz em relativa segurança, pois os
inimigos que restam são apenas cadáveres... (Lamentamo–lo. Mas, a haver
cadáveres que os haja da parte deles que nos arrastaram, a todos nós, a
esta terrível aventura).
Os nossos homens já atingiram os entrincheiramentos. Revolvem tudo.
Dão batida em tudo. Certamente procuram alguma roupa, capacetes de aço,
ou mantimentos que possam aproveitar como recompensa do trabalho
sinistro do dia todo... Vemos esse febril trabalho de procura dos nossos
homens. De certo cheios de ódio dos que ali se achavam. Pois foram estes
que prostraram, sem vida, os seus companheiros que o destino privou do
prazer da vitória. Um misto de ódio e de dor lhes perturba o discernimento
dos fatos... Em momentos como esses os derrotados não são paulistas, nem
brasileiros. Para eles que lutaram o dia todo, que sentiram a morte de perto,
que viram cair seus companheiros ao lado, para eles vencedores o que
encontram era de um inimigo que odeiam e querem ver exterminado,
destruído...
O que se passa dentro das trincheiras não podemos ver donde estamos.
Ha ordens severíssimas, do alto comando, contra fuzilamentos. Prometem–
se punições extremas aos transgressores. Mas é impossível que o alto
comando esteja presente, na sumaria tomada de contas do final do assalto...
É difícil, mas não impossível, ter havido, nesta como em tantas outras
ocasiões, o ímpeto sanguinário de vingança a que a guerra, em todos os
tempo, se casa tragicamente. Em outras situações seria absurdo dizer–se
que brasileiros mataram, sumariamente, outros brasileiros. Mas, no
desenrolar desta sangrenta campanha, o absurdo, infelizmente, é o dizer–se
que, em certas ocasiões, brasileiros deixaram de fuzilar brasileiros...
Coisas da guerra...
Agora vemos a Cavalaria que parte para a exploração do sucesso. Vai
lépida e corajosa barrar a fuga ao inimigo. Os cavalarianos vão a galope. O
vento lhes dá um aspecto formidável, ao agitar–lhes a ala do chapo e a capa
da campanha. Levam os mosquetões à mão, a soleira apoiada ao joelho,
nessa perseguição ao inimigo que se some mato a dentro. Uma carga, em
breve, impedirá a retirada dos adversários já desmoralizados e vencidos no
combate. Em vista dos seu efetivo, calculamos, para hoje, grande número de
prisioneiros. Levaremos, assim, muita vantagem nesse ponto, pois eles nos
prenderam, apenas, duas patrulhas nos reconhecimentos que precederam o
combate.
As trevas da noite já desceram sobre a terra. Havíamos esmagado a
resistência inimiga.
Entretanto, no flanco esquerdo, ao longo da via–férrea recomeçou,
cerrada, a fuzilaria. Lá o inimigo ainda resiste. O tiroteio, sem dúvida, se
prolongará até á madrugada.

Manhã de 16 de Agosto.

A Artilharia do flanco esquerdo, que se calara toda a noite, continua a


sua missão destruidora. O tiroteio que vem, continuo, cerrado, desde o dia
anterior vae longe ainda. Certamente o inimigo está disposto a queimar o
ultimo cartucho na defesa da via–férrea, sem dúvida o melhor eixo de
penetração ao território paulista. Continuam os trovões da Artilharia.
São 12 horas e a resistência inimiga, numa alternativa de fogo de fogo
cerrado e de calma, prolonga–se inabalável.
O formigueiro humano, tal como nos parecem os soldados de reserva,
lá em baixo, há dois quilômetros, continua a progredir. Eles vão reforçar ou
substituir, os que estão empenhados em combate desde a véspera. Essa
tropa vai, com o ímpeto e entusiasmo iniciais, reforçar os que vêm
progredindo, já fatigados, há mais de vinte e quatro horas.

Acabamos de receber ordem para mudança de posição. A Artilharia vai


descolar para a frente. É preciso continuar o apoio aos infantes que, agora,
vão avançando mais rapidamente. O inimigo, afinal, cede terreno ao longo da
via–férrea. A ponte sobre o Rio Apiaí nos torna obrigatória a passagem por
Buri. No caminho, rapidamente, reforçamos a nossa munição que o
bombardeio anterior diminuíra muito. Em poucos instantes preparamo–la
toda. Às 13 h 30, no P.C. do comandante do Grupo, recebemos a nova
missão que nos competia.
A 2.ª Seção (2 peças) seria destacada para a boca do Capão–Coração.
Mas o terreno, desfavorável para nós, não permitiu que a mesma entrasse
em posição. Aquela zona recém–conquistada ao inimigo continuava batida
pelas suas novas posições pouco distante. O comandante da Seção foi
recebido á bala nos seus reconhecimentos prévios. Foi feito prisioneiro um
soldado nosso. Mais tarde a referida Seção recebeu ordem de retirada, o que
foi feito rapidamente, em vista de ser possível um contra–ataque do inimigo.
A outra Seção da nossa Bateria (2.ª do 9.° R.A.M.) ficaria em reserva. Assim,
no segundo dia do combate de Buri, entrou em ação, apenas, a I.° Bateria do
nosso Regimento. As 2.ª e 3.° ficaram de reserva.

Pernoitamos, em bivaque, junto ao nosso Serviço de Aprovisionamento.


Quase não acreditamos que seja possível repousar hoje. Com efeito, pouco
depois o comandado do II Batalhão do 8.° R.I. nos comunicava que o inimigo
infiltrara, nas proximidades do local em que já nos havia atacado pela
retaguarda.
Foram tomadas as urgentes medidas que o caso exigia. Guarneceram–
se todas as estradas. As passagens foram barradas por metralhadoras.
Às 3 horas da madrugada a violência do tiroteio que principiara às 21
horas, atingiu ao auge. Reforçaram–se patrulhas e guardas. A claridade
excepcional do luar favorecia a incursão. Mas os federais não dormem.
Estão a postos, mais firmes do que nunca. Às 4 horas o tiroteio foi
diminuindo, diminuindo, até cessar de todo pouco depois.
Não dormimos um instante, sequer, esta noite. E, às 6 horas, já
havíamos ultimado os preparativos para a missão da véspera que as
circunstâncias fizeram adiar. Estamos em marcha para a frente. Vamos
ocupar a nova posição de tiro.
Mas, a noite, o inimigo abandonou as suas posições, recuando muito.
Assim, o ataque marcado para as 11 horas não se realizou. Houve, apenas,
uma ocupação pela nossa Infantaria, das posições abandonadas.
Não entraremos em ação, agora. Vamos sair, quanto antes, da estrada,
pois estas nove viaturas e perto de cem cavalos constituem um grande alvo
para a aviação inimiga. Vamos procurar um bosque que nos furte às vistas
aéreas. Conseguimo–lo.
Mal havíamos sumido mato a dentro surge a esquadrilha inimiga. Ruído
de motores. Quatro aviões. Estrondos de bombas caiem do céu. Crepitam,
céleres, várias metralhadoras.
São 13 horas. Novamente aviões a corvejarem sobre nossas cabeças.
Estamos tranquilos. Este mato é bem expeço. Não hão de localizar.
O sol está a morrer no horizonte. Precisamos voltar ao acampamento.
Já que os aviões estiveram aqui duas vezes hoje, podemos fazer o
trajeto em perfeita segurança. Mas nos enganamos. A lógica da guerra é
impenetrável. Contra todas as hipóteses os aviões surgiram novamente.
Colheram–nos em plena estrada.
Temos a impressão nesta hora angustiosa, que em breve dizimarão
presa tão fácil. Apeamos. Acompanhando a estrada ha uma vala bem
profunda. Os paulistas, na divisão de terras, empregam essas valas.
Raramente arame farpado. Mas, desta vez, a divisão de terras é coisa
secundária. Essas valas paulistas nos vão livrar dos aviões também
paulistas.
Chovem bombas. A dispersão afasta–as de nós. Os homens sabem do
que se trata. Estão assustados. Os cavalos não o sabem. Estão
assustadíssimos. É quase milagre não terem disparado ainda. Os condutores
seguram–nos com firmeza.
Mas... não ha bem que sempre dure, nem mal que não se acabe... Lá se
vão os aviões inimigos. Bons ventos...

Após trinta e seis horas de fogo, terminara o combate de Buri.


Entre outras, tivemos quarenta e três baixas no 3.° C.A. (Corpo Auxiliar)
da Brigada Gaúcha e cerca de doze na Policia Catarinense.
No dizer do General Waldomiro Castilho de Lima, a bússola da bravura
de uma unidade de Infantaria é o numero de mortos e feridos que ela
apresenta ao fim do assalto. Honra, pois, às unidades acima.
Tivemos, relativamente á duração e impetuosidade da refrega, poucas
baixas. O inimigo, certamente, as teve em muito maior número.
Contra todas as nossas previsões, não tivemos, após um combate tão
penoso, o menor descanso. Logo no dia seguinte recebemos ordem de
seguir para Vitorino Carmilo, a oito quilômetros além de Buri. Vamos ficar à
disposição do destacamento Cel. Sayão.
Chegamos às 16 horas. No lugar havia somente um pequeno bosque,
onde já se encontravam forças gaúchas. Acampamos ali mesmo. Uma
aviação inteligente bombardearia aquele capão mesmo sem ver nenhum
movimento ali. As condições do terreno tornavam–no lugar obrigatório para o
acampamento.
Uma peça ocupou logo posição. Ficou em vigilância sobre um corte
adiante para, no caso de surgir o trem blindado, enviar algumas granadas
sobre ele. Havia calma na nova linha de frente. Apenas no flanco direito o 14
B.C., reforçado pela cavalaria, tiroteava com patrulhas inimigas.
Pela manhã toda a Bateria ocupou a posição que havíamos escolhido
na véspera. Ficaríamos em observação o dia todo, afim de localizar o
inimigo.
Ás 11 h 45 houve tiros sobre as nossas linhas. Logo vimos que não se
tratava de Artilharia. Tratava–se de morteiro ou, então, de canhão 37 mm.
Não conseguimos, por mais que os procurássemos, obter estilhaços para a
identificação do material.
Pouco depois partimos em reconhecimento. Fomos recebidos com os
mesmos tiros. Conseguimos, por fim, examinar um projetil de morteiro que
não funcionara. Estava confirmado, assim, o depoimento de um prisioneiro.
Este nos afirmara que, em breve, seriam empregados morteiros manejados
por estrangeiros.
Agora às 14 horas passaram sobre nossa posição, quatro aviões
inimigos. Voaram à pequena altura. Não sabemos porque não nos lançaram
bombas. Estamos em pleno campo, pois não há vegetação no lugar. Seria,
portanto, contra–indicado colocar arvores sobre os canhões. Chamariam,
ainda mais, a atenção. Limitamo–nos a permanecer na maior imobilidade. É
o único recurso que nos resta.
Em poucos instantes, afastam–se para Buri. Chegam–nos, aos ouvidos,
os estrondos das suas bombas.
De volta, ainda nos inquietam, novamente, voando sobre nossas
posições.
Vemos, perfeitamente, que não carregam mais bombas sob as asas.
Mas têm metralhadoras para substitui–las. Abrigamo–nos de qualquer modo.
Continua o tiro dos morteiros. Ha feridos no 14 B.C. e 13.° R.I.

A noite anterior foi bem calma. Pudemos dormir. Agora, muito cedo,
vamos sair em reconhecimento. A gente mal pode andar nestes lugares.
Foram esburacados pelos nossos próprios canhões durante o combate de
Buri. Ha sinais da passagem do inimigo ainda. Arrecadamos alguma coisa
que nos deixou. A novidade, desta vez, foi a apreensão de capacetes de aço.
Conseguimos alguns. São, de fato, uma conquista valiosa da indústria
paulista. São feitos à prova de tiros e de estilhaços. Por falta de material não
perderam os inimigos o ultimo combate. Têm aviões possantes, armas
novas, (a julgar pelos sulcos deixados pelas raias) capacetes de aço,
morteiros, metralhadoras de alcance maior que as nossas, etc. Levam,
porem, grande desvantagem quanto à Artilharia. Falta–lhes munição.
Atingimos, afinal, a nossa linha mais avançada. Vamos percorre–la toda.
Observamos cuidadosamente, as posições inimigas que, numa distância
média de 1.800 metros, se acham na linha de altura em frente a que
ocupamos.
Organizam–se, solidariamente, mais uma vez. É fácil observar–se, de
binoculo, a sua atividade defensiva. O nosso pessoal, também, completa as
organizações. Pois a missão do destacamento é fixar o inimigo na posição
em que se acha, até que se resolva a situação em Capão–Bonito.

A nossa Bateria (2.ª) sempre esteve incorporada ao Iº Grupo do 9.°


R.A.M. É a primeira vez, que, em ampla liberdade tática e técnica os
reconhecimentos, informações, itinerários, posições, consumo de munição,
etc. são regulados, em pessoa, pelo comandante da Bateria. É a primeira
vez que tal sucede nesta campanha.

Pela manhã e pela tarde as incursões aéreas, do costume. Não fomos


descobertos. Também fazemos cumprir, rigorosamente, todas as prescrições
regulamentares ante–aéreas. O nosso Regimento, nesta como na campanha
de 30, não sofreu, ainda, o menor dano proveniente de bombardeio aéreo.
Estamos, sempre, de sobre–aviso. A qualquer ruído de aviões, quer amigos,
quer inimigos, devido aos frequentes equívocos, obrigamos o pessoal a
procurar os abrigos, construídos em primeiro lugar em qualquer posição que
ocupemos.
No raid de hoje, houve vários mortos e feridos. O 5.° G.A.Mth., colhido
de surpresa, sofreu grandes estragos. Dois soldados mortos, dois feridos
gravemente, seis levemente. Além dessas baixas, quatro animais mortos e
dois feridos. A triste nova ocorreu, logo, por toda parte. Não nos
surpreendeu. Sabemos, de há muito, que a Aviação procura, avidamente, a
Artilharia devido aos danos moral e material que esta arma tem produzido
nas hostes reacionárias.
Apresentamos, de fato, em viaturas, homens e animais um grande alvo
para a Aviação. Mas ainda não fomos atingidos. Temos convicção de que o
não seremos, tais têm sido as nossas precauções.
Na estação de Buri, acabamos de saber que houve dois mortos e quatro
feridos. Foi sinistra, verdadeiramente, a visita aérea que recebemos hoje.
Enlutou–nos, tristemente.
A tropa não se conforma com a superioridade aérea atual do adversário,
neste setor. A ronda sobre nós cada dia cresce mais. Os instantes de
inquietação se redobram. Esse ruído de quatro possantes motores sobre a
gente, despejando bombas a bel prazer, metralhando–nos, cansando–nos,
tudo isto é de grande efeito, desmoralizador. Sentimos que nada podemos
fazer, de terra, para evita–lo. Estamos, num pequeno bosque, 93 homens, e
107 animais. Os últimos, nestes momentos, são mais felizes. Não percebem
o que nos poderá advir de terrível e doloroso desse corvejar lúgubre de
aviões.
Rapidamente nos vem ao cérebro a ideia do papel que representamos,
nós e os paulistas, nesta inglória campanha. Contrista–nos tudo o que temos
visto. Estamos, agora, onde o inimigo esteve há poucos dias. Quase não se
pode andar, tal o numero de crateras de projetis de Artilharia e de bombas
dos nossos aviões que, então, visavam estes lugares. Ontem eram as
nossas bombas, sobre os paulistas, em posição nestas paragens. Agora são
eles que atacam , energicamente, estes mesmos lugares. Eis o triste quadro
que nos comove e nos deprime: – o Brasil ensanguentado, bombardeado
pelos seus próprios filhos, divididos pelas manobras e ardis de politiqueiros!
Ha desordem por toda a parte onde passemos. O caos sangrento em
que se debate este pedaço da Pátria, é bem um eloquente testemunho de
que esta situação de constantes guerrilhas não pôde continuar.
Faz–se mister saibamos reagir ás artimanhas de políticos parasitas que,
sem o menor escrúpulo, lançam–se de unhas e dentes sobre o que constitui
objeto de suas ambições, sem olhar para a hecatombe que poderá vir
depois...

São 10h20. Aproximam–se três aviões. Vêm do lado de Itapeva.


Abrigamo–nos. Todos, intimamente, nos fazemos a eterna pergunta das
trincheiras: – Serão nossos? É uma pergunta que nos vem aos lábios
diretamente da inquietação que nos invade todo o ser. – Serão nossos? É a
interrogação que corre de boca em boca pelos homens... E, então, eles
recorrem, sempre, ao seu comandante. Este, que para todas as dúvidas é
obrigado a achar explicação, de certo saberá dizer se a carga mortífera que
alguns já vêm sob as asas é para nós... Mas, nestas ocasiões, comandante,
subalternos e sargentos estão todos com a mesma pergunta nos lábios: –
Serão nossos?.
Silva o apito do comando: a ordem de abrigar é dada três, quatro vezes.
Esperamos que, pelas bombas, a qualidade de amigos ou inimigos se
revele... É desagradável o ouvir–se esse ronco de motores que, talvez, nos
tragam o passaporte para o outro mundo... O único recurso é procurarmos os
abrigos. Lá dentro, si formos atingidos, ao menos não ficaremos à sanha dos
corvos... Já teremos cavado, antes, nossas próprias sepulturas...
Esperamos. Damos tempo ao tempo. Esvoaçam sobre nós. Passamos vários
sustos: – ora, é um cavalo que se escapa e procura sair do mato, ora é uma
roupa branca que algum melóide deixou a secar lá fora, ora é uma viatura
que vem chegando, em suma são pequenos coisas que podem indicar aos
aviões que há gente nesse mato.
A Artilharia, pelo terror que causam os seus tiros ao inimigo é,
justamente, o objeto procurado com maior avidez pelos seus aviões. Mas
temos tido sorte. Também, as prescrições anti–aéreas são cumpridas com o
rigor máximo.
Continuam os aviões a farejar, a esquadrinhar todos os recantos. Não
nos perceberam ainda. Estamos imóveis. Escutamos o estrondo de três
bombas nas proximidades. Não foram para nós. Mas caíram bem perto.
Outras duas perturbam o sossego da região, onde apenas se ouve o ruído
de motores. Continuam a farejar. Ultimamente a permanência deles sobre
nossos posições tem sido bem demorada. Já não se pôde ter um sossego no
front.
Já se vão embora, afinal. Rumam para Capão Bonito onde, certamente,
vão completar a sua missão tenebrosa.

Meia hora depois soubemos do epílogo da corvejada. Dois mortos e


onze feridos no I.° Btl. Da Bda. Gaúcha. Poderia ter sido nossa tal sorte. Mas
o destino quer que, todos os dias, passemos pelos mesmos transes: – aviões
sobre nós, bombas por todos canto, casos de loucura frequentes, mortos e
feridos a ensanguentarem ambulâncias e hospitais...

Passou–se uma hora. Ainda não se desfez, totalmente, a impressão


desse último bombardeio. Vem novamente aviões. De onde não podemos
ver ainda. Mas o cuido, por força do hábito, já se percebe, ao longe, a
aproximação deles. Ainda bem que a inteligência humana não conseguiu
suprimir o ruído dos motores. Podemos, portanto, pressentir à grande
distância as asas do adversário a dominar o espaço imenso. Apitos reforçam
o alarme dado por alguns com o grito habitual de: – Avião! Antes de nos
abrigar colocamos, ás pressas, dentro do mato, tudo o que poderia denunciar
nossa presença ali. Os sulcos deixados pelas viaturas são, sempre,
disfarçados.
Já os estamos vendo Agora. Vêm, os quatros, em grande velocidade.
Não se detêm sobre nós. Vão logo em direção ao inimigo. Mesmo assim, não
permitimos que os mais curiosos saiam. É que os inimigos, às vezes, fazem
isso para nos descobrir. Mas, em breve, o estrondo de bombas sobre as
suas linhas faz desaparecer todas as dúvidas. Todos nós dizemos, uns aos
outros, satisfeitos, como que vingados da mortandade de há pouco: – São
nossos!
O ruído longínquo dos motores, os trovões das bombas, como por
encanto mudam de aspecto. Não nos parecem mais tétricos e horríveis como
antes.
Dão–nos, Agora, prazer! Orgulham–nos! Estão matando, bombardeando
os nossos inimigos! Que bom! Que aviadores formidáveis nós temos!
Mas, não entoamos nesse diapasão geral. Em silêncio lamentamos
esses transportes de alegria, ferros à custa de vidas brasileiras que os
politiqueiros desviaram da ordem e do dever. Não deixamos de participar, um
instante, das alegrias, das privações, dos riscos dos nossos soldados.
Entretanto, não podemos comungar da satisfação nascida do infortúnio,
levado pelas nossas asas, aos lares paulistas, tão brasileiros quanto os
nossos. Bem sabemos que os inimigos, sacrificados nas trincheiras, não têm
culpa do abismo que os maus paulistas cavam a seus pés.

Dia 21 de Agosto de 1932, domingo. Na guerra não há diferença


alguma entre o domingo e outro dia qualquer. Comparecemos ao P.C. do
Coronel Sayão afim de receber ordens. A nossa Bateria é a única tropa de
Artilharia do destacamento. Envaidecemos–nos disso. Pouco depois
partíamos em novo reconhecimento com um oficial do Estado Maior.
Percorremos todas as linhas avançadas da Infantaria, onde observamos e
colhemos informações sobre o inimigo. Recebêramos a missão de atirar
sobre os morteiros ou sobre o trem blindado. Sobre este o tiro seria feito em
pontaria direta. As vias de acesso às posições da Infantaria a 2 km. além de
Victorino Carmilo, são ruins. Não dão passagem á Artilharia. Temos, apenas,
um caminho no flanco esquerdo, de que se servem as Policias
Pernambucana, Gaúcha e Catarinense para fazer, por meio de caminhões, o
reabastecimento das suas linhas. A estrada é péssima. Dá uma volta imensa
pela esquerda. Faremos um percurso de seis quilômetros. Entanto, se
houvesse uma estrada mais razoável, faríamos apenas dois. Lançamos mão
de um expediente comum na Artilharia: – amarramos a peça ao caminhão e
seguimos, imediatamente, para a posição escolhida nas linhas da Policia
Catarinense. Esta densa cerração nos irá favorecer a aproximação ao
inimigo. A estrada apresenta trechos enfiados pelas suas vistas.
Ocupamos posição. Estamos construindo abrigos para o pessoal e
munição. É o nosso primeiro cuidado após a camuflagem da peça.
Perscrutamos o horizonte longínquo. Esperamos pelo trem blindado.

Da nossa posição enfiamos um longo trecho da via–férrea. O frio está


intenso, como aliás tem estado estas manhãs. Continua a forte cerração que
nos favoreceu a passagem por trechos enfiados pelos observatórios
inimigos. Já terminamos os trabalhos de entrincheiramento. Estamos a
espera do trem blindado. Já lhe preparamos algumas dezenas de granadas.
Mas tínhamos muito que esperar. Durante toda a manhã não deu o menor
sinal de si. Almoçamos ligeiramente, na posição de tiro. Logo após voltamos
a observar o campo dos futuros combates.
O sol nos tem incomodado bastante. O calor é de rachar. Não temos,
aqui perto, nem uma arvore que nos proporcione alguma sombra. Há apenas
arbustos a morrerem, secos, quase sem folhas. Em breve, porém, nos
teremos conformado com o rigor do tempo. Que remédio.
Continuamos a observar, cuidadosamente, o amplo campo de vista que
se prolonga diante de nós. Afinal, surge o trem blindado. Vem vagaroso. Dir–
se–ia um gato a pisar de mansinho diante da pressa...
Estamos calmos. Esperamos que ele se aproxime ainda mais para lhe
fazer uma recepção em regra. Já demos os comandos. Vamos abrir fogo
imediatamente.
Não conseguimos, porém, atingi–lo em cheio. Logo ao primeiro tiro fugiu
desabaladamente. Entretanto conseguimos enquadra–lo entre as alças 2.200
e 2.300. Com certeza alguns estilhaços o atingiram, em vista da proximidade
dos arrebentamentos.
Lamentamos que o trem fantasma tenha fugido a todo vapor. Em breve
se sumia num corte mais adiante. Escapou–se, assim, a nossa presa.
Logo depois – e o havíamos previsto – a Artilharia inimiga abriu fogo
sobre nós. De quando em vez, o assobio de um projétil que passa e vai cair
mais adiante. Deram muitos tiros: ora com o canhão 75, hora com o morteiro.
Distinguimos, perfeitamente, os arrebentamentos dum e doutro.
Podemos, avaliar, Agora, o efeito moral que causamos ao inimigo, a
julgar pelo que, com os tiros da sua Artilharia, nos está causando agora. A
nossa arma é, de fato, formidável. Entusiasmamo–nos, no próprio campo da
luta, com o efeito moral dos tiros da Artilharia inimiga.
De longe, quase despercebidos, chegam–nos os estrondos de
bombardeio da estrada de Capão Bonito, onde está travado renhido
combate. A Artilharia Pesada abre passagem, ali, através as sólidas
organizações dos paulistas. Estes se defendem com valor. Sabem que a
perda dessas posições importará na própria perda de Capão Bonito.
Prossegue o bombardeio ao longe.
Ainda permanecemos algum tempo em posição, à espera de nova visita
do trem blindado. Mas este não apareceu mais.
Regressamos ao acampamento, onde iriamos repousar do árduo
trabalho, de mais aquele dia de permanência, na mais avançada linha de
frente.

O comandante do I.° Btl. do 8.° R.I. mandou, ao nosso exame de


artilheiros, um estilhaço de projétil de grosso calibre que caíra, pouco antes,
perto de suas posições.
Examinamo–lo detidamente. Os canhões de campanha no maior calibre,
que temos no Brasil, estão em ação no vale do Paraíba. Assim, aventamos
logo a hipótese, ao Coronel Comandante do Destacamento, de terem os
inimigos retirado algum canhão do Forte de Itaipú, em Santos, para agir
nesta frente.
Não nos enganamos. Horas depois tínhamos, diante de nós, um projétil
do canhão de 150 mm., que não havia explodido. Confirmara–se a nossa
hipótese.
Tratava–se de uma granada explosiva munida de espoleta percutente.
Fora retirada do solo com certa dificuldade.
Na noite do mesmo dia um prisioneiro nos informou que, de fato, em
Itapetininga se achava um canhão que viera de Santos. Estava montada
numa prancha de estrada de ferro.
Dispunham assim, os inimigos do apreciável alcance de quinze
quilômetros. A nossa Artilharia alcança, no máximo, nove quilômetros. Mas
não demos importância a esta inferioridade. O novo canhão inimigo só nos
poderia causar danos de ordem moral. Sabíamos, perfeitamente, que, além
de diminuta, a sua munição já estava deteriorada pelo tempo.

Vamos ser substituídos neste destacamento. Voltaremos a Buri. Deram–


nos a nova missão de apoiar o avanço do destacamento Cel. Dornéles pela
rodovia Buri–Capão Bonito. Nesta a jornada será bem árdua. Há três dias
que está travando forte combate à entrada da mesma. A frente a conquistar
é pequena. Mas o inimigo tem ótimas posições dominantes. Daí a regular
massa de Artilharia que as vem martelando ha três dias.
A nova missão que nos reservaram é, com efeito, bem espinhosa.
Estamos á disposição do destacamento Coronel Dorneles. Vamos,
portanto, progredir na direção de Capão Bonito afim de, cooperando com as
tropas que marcham sobre esta cidade, vindas de Apiaí, apressar a queda
da mesma.
Estamos em marcha para a boca da picada que, após três dias de
bombardeio, caíra, afinal, em nosso poder.
Lá ficaria em posição de espera a coluna de viaturas.
Partimos em reconhecimento. Fomos recebidos, pouco adiante, à bala.
Certamente eram alguns elementos dispersos que, na precipitação da
retirada, por falta de ligação, ficaram por aqueles lugares.
Varias balas sibilaram por perto. Detivemo–nos. Fácil nos foi localizar os
inimigos à direita. Pouco numerosos. Certamente o nosso pessoal, que
avançou vários quilômetros para a frente, não quis perder tempo com esses
elementos extraviados que aí estão. Deixaram–nos para depois. Não
podíamos, porém, passar com a Artilharia por esse trecho completamente
batido.
Havia uma casa perto. Fomos até lá. Fora atingida, em cheio, por uma
granada. Destroços por todo canto. Telhado quase a ruir. Estilhaços sem
conta. Nas imediações inúmeras crateras de projetis.
Ha nítidos vestígios de que esta casa serviu de câmara mortuária. Há
restos de vela, flores, etc. Moscas em grande numero. Num canto, no chão,
encontramos jornais de São Paulo. Elmo–los. Sempre as mesmas mentiras a
respeito da rebelião. Ali estava, patente aos olhos de todos, a causa e o
efeito desta luta entre irmãos: – o ardor, o incitamento, a mentira dos jornais
e tribunas, e o pobre coitado que veio morrer na linha de frente...
Foi rápida a nossa permanência ali. Mesmo assim, sob o tiroteio
próximo que continuava, ainda fomos encontrar a sepultura daquele morto
que os paulistas tinham velado. Fora sepultado às pressas. As pernas ainda
estavam à flor da terra. Junto fora enterrado, também incompletamente, um
cavalo. Havia mal cheiro naquele lugar trágico. Não vimos nenhuma
indicação sobre o nome do morto. Na guerra é assim: – Soa, por toda parte,
levado pelos jornais, o nome dos chefes bravos e gloriosos. Ninguém quer
saber do cadáver do ínfimo cumpridor de ordens, muita vez de bravura e de
espirito de sacrifício acima dos pintados pelo ardor jornalístico das cidades
distantes.
Esses sacrificados anónimos têm a sua gloria, a sua recompensa, na pá
de terra que, na sepultura sempre esquecida do front, lhes subtrai a carcaça
do pasto indesejável dos urubus...
Esse tiroteio bem próximo, à direita, constitui perigo para os nossos
canhões. Não temos, aqui, Infantaria para fazer a defesa aproximada deles.
Veio ordem para retrocedermos incontinenti. Já vislumbramos, no rosto dos
soldados, a decepção que lhes trouxe a ordem de regresso. Mas ninguém
poderia prever o que se passa à direita. Além disso, estamos comprido
ordens do alto comando. Voltaremos para Buri. Já o temos feito várias vezes,
após a realização de missões anteriores. Entretanto, lamentamos o
contratempo. A nossa Artilharia não é motorizada. Se o fosse, perderíamos
apenas alguma gasolina. Mas, sendo hipomóvel, perdemos uma parcela
preciosa de energia dos nossos cavalos.
Mas o soldado é sempre assim. Recebe cada ordem! Lamenta–a,
insurge–se contra ela, no intimo, mas a cumpre. É a disciplina básica,
orgânica, imprescindível das classes armadas.
Parece incrível que hoje seja domingo. Trabalhamos tanto ontem, que o
cansaço de corpo e de espirito nos faz duvidá–lo. Mas o é. Prova–o o toque
festivo dos sinos da igreja próxima. Insensivelmente nos transportamos, num
devaneio espiritual, para os tempos da paz. Aquela hora, então, estaríamos
apreciando, a missa, a graça, a alegria, a felicidade da nossa gente,
satisfeita do dever religioso a cumprir...
Vai mais longe, ainda, a nossa abstração. Chegamos quase a ouvir os
sons comoventes dos órgãos. Vem–nos à mente, a grandiosidade da
elevação de Deus!
Temos a impressão de que estamos ouvindo o esvoaçar sutil de
toaletes, os sorrisos graciosos, as vozes gentis das nossas patrícias à saída
desse ato de piedade cristã.
Sorrimos ao lembrar as bonanças e felicidades da paz que, neste
momento, tanto se aproxima de nós. Sentimos–nos felizes,
incomparavelmente felizes, ao deixar que a nossa imaginação se entregue
ás recordações, às saudades que este planger de sinos nos evoca.
Mas, essa abstração suave já durou demais. A espantosa realidade da
guerra em breve virá extingui–la. A gente, no front, não pode ter nenhuma
sensação agradável que dure muito. Admiramos–nos do que está
sucedendo.
O estrondo dos cantões inimigos está excepcionalmente forte, agora. Os
enormes arrebentamento se sucedem com grande rapidez. É o canhão de
150 que está troando lá para os lados de Aracassú! Esses estrondos
formidáveis estremecem, mesmo a quinze, vinte quilômetros, tudo em redor.
Nossos homens estão sem compreender a violência do bombardeio de hoje.
Para nós ele é bem natural. Não tivemos, ha pouco, o agradável e evocativo
planger dos sinos da paz? Pois agora teremos, para nos chamar à profunda
realidade atual, esses formidáveis trovões do canhão de 150...
Vamos marchar, novamente, para Capão Bonito. Na véspera havíamos
retrocedido por termos sido recebidos à bala. Mas agora já se esclareceu o
fato. Alguns elementos nossos, tomando–nos (ao escalão de
reconhecimento da 2.ª Bateria) pelo inimigo, abriu fogo sobre nós. São
pequenos equívocos dos quais, às vezes, ficam alguns pelo caminho. Isso
sempre se dá nas nossas guerrilhas que, quase sempre, se processam sem
ligação intima entre as unidades que combatem.
Às 21 horas desabou um temporal terrível. Chegáramos ali
recentemente. Não nos havíamos preparado, ainda, para enfrentar a
inclemência do tempo. Noite detestável aquela. O caminhão se atrasara com
as metralhadoras e com o jantar. Se em tempo de estio a estrada apresenta
trechos difíceis, imagine–se após esta borrasca. Ninguém pensou, sequer,
em dormir. Em breve mantas, capotes, barracas ficaram encharcados.
Andava–se, na lama, com muita dificuldade. Pela primeira vez, em
campanha, fôramos colhidos de surpresa por tempestade tão violenta. Raios
e trovões formidáveis. O vendaval cortava, uivando, o espaço infinito
clareado, de quando em vez, pelos relâmpagos. Nem mesmo a fúria dos
elementos fez cessar as lides mortíferas de irmãos contra irmãos.
O tiroteio continua próximo a nós. Cala–se à violência desta intempérie.
É impossível, neste momento, saber–se o que mais devemos temer: – se as
balas do inimigo, se os raios que têm fuzilado numa frequência aterradora.
Mas – que remédio – conformamos–nos com a falta de sorte deste dia.
O soldado se conforma, dá razão para tudo que o aflige em campanha.
Termina achando pouco o que sofre. Imagina, logo, que seria bem pior se
chovesse desde o começo da campanha, ou se houvéssemos tido, em
tantos combates perigosos, mortos e feridos a lamentar.
Até hoje o 9.° R.A.M. tem tido rara sorte nesta campanha. Sempre em
posição na linha de frente. Tomando parte em combates ao alcance das
balas da Infantaria inimiga. Acostumado a ter o corvejar sinistro da aviação
adversária sobre os seus soldados, cavalos e canhões. Entretanto o nosso
Regimento, graças às maiores precauções tomadas incansavelmente, não
tem, até este momento, nenhuma perda a lamentar. Pareceu, porém, ao
destino que o 9.º R.A.M. estava constituído uma exceção pouco louvável.
Quis que ele, também, participasse um tanto dos prejuízos e estragos de
todos as Unidades que combatem na Frende Sul. Assim, por ocasião da
ultima tempestade, um raio fulminou vários cavalos e muares nossos.
Temos tomado, até aqui, precauções contra toda e qualquer iniciativa
dos inimigos, Mas não contávamos que, entre eles, figurasse esse raio que
nos levou alguns animais. Agora acreditamos que é, de fato, impossível
chegar ao fim da campanha, sem ter algo a lamentar. Principalmente se a
Natureza se manifestar contra nós. Já não somos mais exceção, agora.
Nossos rigorosos cuidados não nos farão voltar ao quartel, com o mesmo
efetivo com que partimos a enfrentar o labirinto de imprevistos e de
surpresas da guerra.
Há três dias que estamos em posição para apoiar a Infantaria, no seu
ataque aos entrincheiramentos que o inimigo organizou além do
Paranapitanga, afluente da margem esquerda do Rio Paranapanema.
Esperamos, apenas, a hora do ataque.
A razão do atraso é o fato de estar destruída a ponte da Manteiga por
onde, no flanco esquerdo, o II/8.° R.I. atravessaria o rio para desbordar as
posições do inimigo. Este Batalhão, desalojando os elementos que
estivessem defendendo a referida ponte, avançaria pela picada que margeia
o Paranapitanga, juntar–se–ia á tropa do 3.° C.A., atacando, depois, o
inimigo pela esquerda.
Antes o 9.° R.C.I. (Regimento de Cavalaria Independente de São
Gabriel, R.G. do Sul), já se afastara pela direita em direção a Serraria por
onde procuraria cortar a retaguarda inimiga. A ideia de manobra era,
portanto: – fixação do inimigo de frente, com desbordamento pelo flanco
esquerdo. A Cavalaria ameaçando a retaguarda.
O 2.º Btl. Da Policia Pernambucana e o 17.° C.A. da Bda. Gaúcha,
apoiados pela 2.ª Bateria do 9.° R.A.M., fixariam a frente, devendo passar o
rio caso desse vão em algum lugar.
Seremos a única tropa de Artilharia a entrar em ação neste combate.

Continuamos em posição.
A 2.ª Seção, que está á direita da estrada, organizou–se solidamente em
vista da proximidade do inimigo que, de certo, lançará patrulhas de
reconhecimento aquém do rio. Nossas metralhadoras estão prontas para
qualquer emergência. Os soldados da Policia Pernambucana, que, no Norte,
nunca atinham visto canhões de campanha, vinham sempre vê–los na
posição. Descuidaram–se. Certamente foram localizados pelos observatórios
inimigos. Consequência: fomos logo enquadrados pela sua Artilharia.
As granadas têm caído bem perto. Tiros curtos e longos. Alguns caiem a
vinte metros.
Temos, Agora, em mão, alguns projetis. A munição é feita em São
Paulo. Dá poucos estilhaços. Quase todos enterram, pois a espoleta é de
grande retardo. Efeito material nulo. Efeito moral idêntico ao dos projetis
importados ao estrangeiro, que empregamos normalmente. Carga de
arrebentamento menos poderosa. Estrondo menor. Contudo o pessoal não
se dispõe a esperar, fora dos abrigos, as granadas que chegam assobiando.
Uma prova de que não demos importância ao fato é que, podendo
mudar de posição, preferimos conservar a mesma já localizada. É provável
que o inimigo não saiba que aqui há Artilharia, pois não respondemos aos
seus tiros. Talvez tenha visto soldados circulando por aqui. Soldados da
Infantaria. Porque os artilheiros, com o alvo fixo e grande que apresentam as
peças em pontaria direta, logo que chegam em posição, tratam de cavar
abrigos para, dentro deles, aguardaram a retribuição de granadas que se não
faz esperar muito.

São 8 horas. Dia 31 de Agosto de 1932 não nos quis deixar sem mais
esta carnificina. Estamos emocionados. Vamos entrar em combate. Vitoria?
Derrota? Morte? Na verdade não podemos prever o que nos aguarda.
Está travado o combate. Fuzilaria como poucas vezes temos visto.
Vamos atirar bastante. Ha muita munição. Feita, com alguns disparos, a
verificação das alças (preparação expedita), vamos, agora, esperar pelos
perdidos de tiros da Infantaria. Frequentemente desalojamos o inimigo que,
espavorido, procura outras posições. Fizemos vários tiros que, pelo lugar e
pela altura de arrebentamento não tivemos, do observatório, a menor duvida
em anunciar ao Sargento de tiros: No objetivo! Mais tarde, de certo,
constataríamos os efeitos das granadas schrapnels.
As duas seções da Bateria, agindo separadamente, vão atendendo, com
êxito, aos pedidos de tiro.
Em vista da proximidade do inimigo (alças 2.000 e 2.200 metros),
sibilam, frequentemente, balas por sobre nossas posições. Já nos
acostumamos com elas.
No combate anterior (em que não tomamos parte) a Artilharia ficou sob
o tiroteio cerrado das metralhadoras contrárias. O Tenente Hernani, do 5.°
G.A. Mth., foi ferido na linha de fogo.
A moda, de certo, pegou. O emprego do canhão tornou–se igual ao
emprego do fuzil. Ambos na primeira linha da Infantaria. Era o que faltava
fazer para a Artilharia cabocla chegar ao auge...
Aproximam–se aviões. Vem juntar o ruído dos motores só crepitar das
metralhadoras, ao ronco dos canhões e ao pipocar de armas individuais.
Esses quatro aviões estão sondando muito toda a zona de combate.
Sabemos que são nossos. Os sinais característicos são, agora, bem
visíveis de terra. Fazem reconhecimentos. Não lançaram bombas ainda.
Talvez os aviadores estejam receosos de lança–las sobre nós em vez do
inimigo. Fizemos alguns tiros para facilitar–lhes a localização. Se não forem
nossos? Os inimigos, às vezes, aparecem, também, com esses mesmos
sinais... Paciência. Cumprimos ordem.
Mas não houve bombardeio.
Certamente já despejaram a sua carga noutras paragens.
Mesmo assim, nestes instantes de ronda aérea, o tiroteio cessa,
completamente, de ambos os lados. É grande o efeito moral da quinta arma.
Intimidam–se os combatentes. Esquecem–se, por assim dizer, de que estão
empenhados em luta de vida ou de morte. Foram–se os aviões. Continua a
matança de brasileiros cá em baixo.
Já preparamos o caminho ao avanço dos nossos infantes. Observamos,
Agora, o assalto. É a fase mais arriscada do combate. Quem já fez um
assalto, nestas condições, pode dizer que viu a morte bem de perto.
Começa a retirada dos inimigos. Desta vez fazem–na em ordem.
Vemos, perfeitamente, os primeiros a correrem para a retaguarda. Depois
outro. Por fim os últimos que, mesmo recuando, atiram com os seus F.M.
para cobrir a retirada dos demais. Vemos, nitidamente, os clarões das armas
automáticas em pleno dia. Estas, tanto quanto possível, apoiam a retirada
que, taticamente, faz jus aos maiores elogios. Mas isto não impede que, de
quando em quando, enviemos alguns schrapnels aos retirantes. Devemos
dificultar–lhes a retirada. Precisamos de prisioneiros. Ha falta de
informações.
São 14h30. Ocupamos as posições que o inimigo organizara para barrar
a nossa passagem pelo rio Paranapitanga, estava findo o combate.
A cavalaria de que dispúnhamos (9.° R.C.I.) fora lançada, pelo flanco
direito, sobre a retaguarda inimiga.
A perseguição, tanto quanto possível, foi feita em caminhões por alguma
tropa que tínhamos em reserva.
Prisioneiros em grande numero. Muito material de guerra aprendido.
Assim, os louros desta valiosa conquista sorriam às armas federais,
facilitando–lhes a penetração por São Paulo.

Por um desses caprichos do destino que tanto lamentamos, fomos ver,


mais tarde, a passagem das vitimas da nossa metralha.
O inimigo, ao contrario do que sempre tem feito, não tivera tempo de
carregar os feridos nem de sepultar os que tombaram no cumprimento do
que, no seu ponto de vista, julgavam ser o seu dever.
Temos, diante de nós, um caminhão que leva para a retaguarda quatro
entes humanos. Estão amontoados uns sobre os outros. Dois estão mortos.
Dos outros, um, de cor negra, teve o rosto atravessado por uma bala que,
varando–lhe o crânio, abriu uma grande brecha ao sair no couro cabeludo.
Vive, sofre, geme ainda. As suas feições estão horrivelmente
deformadas. O seu rosto sangra, a sua cabeça sangra. E sangra, também, a
alma dos que contemplam esses despojos de carne humana do combate.
Todos os quatro, os que já são cadáveres e os que são, realmente, mais
cadáveres do que vivos, são de cor negra. Têm o aspecto daqueles que
vivem despreocupadamente, sem levar muito a sério as coisas da vida.
Ei–los reduzidos a esse montão de ruína humana, vitimados
indiretamente pelos cantos de sereia, pelas artimanhas, pelos incentivos do
profissionalismo politico.
Eles, homens rudes, de certo fazendo parte do analfabetismo dos
campos e dos subúrbios distantes, a combaterem, a morrerem
miseravelmente, tragicamente, pelo impenetrável Moloch do Exército
Constitucionalista!
Eles que, na sua vida pacata, descuidada, talvez nunca tivessem
procurado saber o que significa Constituição...
É imensa a nossa mágoa ao contemplarmos, de perto, os efeitos desta
grande tragédia.
Vem chegando mais uma leva de mortos.
Foram todos encontrados sob um espesso bananal onde a Artilharia
fizera fogo nutrido. Nesses cadáveres, de certo, os estragos são maiores do
que os outros produzidos pela Infantaria. É claro que o canhão estraçalha
mais que o fuzil. Com efeito. Um pobre homem da Legião Negra tem uma
orelha arrancada. Outro, uma cavidade no rosto em que cabe uma mão
fechada. Há, ainda, outros que apresentam grande deformações.
A única Artilharia que atuou neste combate foi a nossa Bateria. Não
temos dúvidas de que estamos diante dos inimigos que, pouco antes,
procurávamos atingir com toda a precisão. Agora comove–nos, entristece–
nos, a contemplação da nossa obra mortífera.
Mas, com toda a serenidade, lavamos nossas mãos diante deste
morticínio. Cumprimos com o nosso dever, de acordo com as contingências
da vida atual da nacionalidade.
Que assumam a paternidade desta grande desgraça os perturbadores
do ritmo de paz, de ordem, de trabalho da nossa Pátria. Atiramos contra
homens que, do outro lado, de armas na mão, atiravam sobre nós. Temos
tranquila a consciência. Que sofram o remorso de sua ignóbil empreitada os
que, de longe, da imprensa e da tribuna, pelas costas dos nossos inimigos,
impeliram–nos para esta aventura sinistra de desagregação da
nacionalidade.

Terminado o combate, começa a grande circulação de caminhões da


cruz vermelha. Os médicos passam, solícitos, a cumprir a sua humanitária
missão. Vão esforçar–se, o mais possível, por evitar a morte de feridos tanto
nossos, como inimigos.
Que contraste! Ainda há pouco nós combatentes de cá e de lá nos
esforçávamos por levar a morte ao maior numero possível de inimigos.
Médicos e combatentes! Missões diametralmente opostas! Aqueles se
opõem, estes provocam a ronda lúgubre da morte.
Se o médico, deixa morrer, com indiferença, um soldado inimigo é
taxado de mal, impiedoso, cruel... Se o combatente deixa escapar um
adversário, por ter feito a pontaria com indiferença é, igualmente, um mal
soldado.
Aspectos da impenetrável comédia humana em face do Universo...
Vem chegando oitenta e cinco prisioneiros. Todos da Legião Negra.
Feições rudes, olhares furtivos, estão ainda com os nervos abalados pela
violência do combate de horas atrás. Estão desarmados e se deixam
conduzir por escolta pouco numerosa.
Esses homens parecem não maldizer a hora em que foram feitos
prisioneiros. Certamente, sofreram grande susto e apreensão. Nesta época
de guerra correm boatos os mais aterrorizantes. Dizem, por exemplo, que os
inimigos executam, sumariamente, todos os nossos soldados que caiem nas
suas mãos. É bem provável que eles digam o mesmo de nós. Boatos.
É sempre melhor, para eles, irem para a nossa retaguarda, na
segurança relativa de prisioneiros, do que ficarem na sua linha de frente a
receber granadas a toda hora. É o que têm dito os inúmeros prisioneiros que
temos feito. São designados, alguns, para trabalhar em Campos de aviação.
Lá a segurança é quase completa. Apenas se arriscam, como aconteceu há
pouco em Buri, a receber bombas e rajadas dos próprios aviões paulistas...

Vamos, Agora, apreciar de visu os efeitos dos nossos tiros sobre as


organizações do adversário. Acabamos de transpor o Rio Paranapitanga,
cuja ponte o inimigo destruirá, mas que já estava completamente reparada
pelo 3.° Batalhão de Engenharia, de Cachoeira, R.G. do Sul.
Estamos nas trincheiras recém–abandonadas. São bem inferiores às
que temos encontrado pelo caminho. Na maioria defeituosa. Pouco
camufladas. A profundidade demasiada chega quase a impedir a ação eficaz
dos fuzileiros, se bem que proporcione maior segurança aos bombardeios de
Aviação e Artilharia. A terra vermelha das trincheiras, sobressaindo
grandemente ao verde do campo, facilita a localização das armas
automáticas. Havia muito próximos às mesmas, crateras e golpes de
machado dos nossos projetis. Sangue nas imediações de muitas trincheiras.
Arvores cortadas por estilhaços. Uma grande deixou seu sulco no próprio
parapeito de um abrigo individual.
Deixamos aqueles lugares com um misto incompreensível, para nós
próprios, de satisfação e de tristeza. Satisfação por termos apoiado, pela
neutralização de muitas armas inimigas, o avanço da nossa Infantaria.
Tristeza por termos, muito embora trabalhando conscientemente pelo bem
da Pátria, feito, pela precisão e segurança dos tiros, os nossos schrapnels se
transformarem em causa–mortis de tantos brasileiros que, do outro lado,
julgavam, também, trabalhar conscientemente, pelo bem da Pátria...
Ah! Se ao menos o verdadeiro caminho da ordem, do progresso, da
grandeza do Brasil nos surgisse, ao fim da discussão de sangue e de
metralha destes combates!
Na frente sul o inimigo tem batido, sempre, em retirada. Em algumas
ocasiões essa retirada tem sido vergonhosa, lastimável. Houve casos
inexplicáveis de rendição incondicional de varias centenas de homens bem
abastecidos, bem municionados e em posições favoráveis à defesa. Nas
hostes contrárias tem sido flagrante, em reiteradas situações, a falta de ardor
combativo, de iniciativa, de espirito de sacrifício por parte dos chefes, os
únicos responsáveis pelas retiradas que se não justificam à luz da tática
militar. Citam–se vários casos de prisões em massa de inimigos, por forças
nossas materialmente inferiores.
Após a queda das posições do Paranapitanga, o Major Reis, do 3.°
Corpo Auxiliar, tendo avançado muito em perseguição do inimigo,
acompanhado de poucos homens, foi estacar, de súbito, sobre uma
trincheira de efetivo numeroso.
O inimigo, antes, havia lançado fogo ao campo, cobrindo pela fumaça a
retirada, ao mesmo tempo que quase impedia a perseguição. Mas a
rapaziada gaúcha do 3.° C.A. não deu importância ao fato. Preparou logo um
acêro. E, em breve, o fogo começou a avançar sobre os próprios inimigos.
O Major Reis, colhido de surpresa, não perdeu, entretanto, a calma.
Compreendendo a situação, ameaçou o inimigo com a vinda de forte
destacamento ao seu encalço. Forjou planos de ataque pela retaguarda.
Com a rapidez do relâmpago, imaginou uma carga de cavalaria. A unidade
de tropa empregada pelo nosso camarada foi mil homens. Mil homens por
aqui, mil homens por acolá. Adotou, para todos os efeitos, o quilo–homem
nas suas mentiras salvadoras...
Conclusão: – O inimigo, dispondo de armas automáticas, municiado,
entrincheirado, numeroso, acabou pedindo ao nosso astuto companheiro
uma treguinha de seis horas para o descanso.
A fraqueza moral, com efeito, decide certas situações com maior rapidez
que as rajadas, que os bombardeios, que as manobras.
Ocupamos posição para atirar, em pontaria direta, sobre o auto
blindado. Este havia impedido que o 9.° R.C.I., que cortara a retaguarda do
inimigo, houvesse aprisionado todo o seu efetivo. O auto blindado,
invulnerável às balas da Cavalaria, avançou sobre esta fazendo fogo
cerrado. Matou vários soldados. Apoiou, sozinho, a retirada do inimigo,
interpondo–se entre este e a Cavalaria que lhe viera cortar a retaguarda. O
pessoal do 9.° R.C.I. não se intimidou muito. Um oficial quis lançar–se, com o
seu pelotão, sobre o auto. O comandante, porém, não o permitiu. Era
verdadeira loucura tentá–lo. Procuraram, por meio de arvores e de valas,
restringir–lhe o raio de ação. Mas o blindado conseguiu salvar quase toda a
sua tropa. Entretanto foram feitos setenta prisioneiros. Aprenderam–se doze
caminhões e vários apetrechos úteis em campanha. Fora brilhante o feito do
9.° R.C.I., mau grado a inesperada intervenção do blindado. Esse Regimento
fez um árduo desbordamento de grande envergadura pelo flanco direito,
atingindo novamente a estrada de Buri–Capão Bonito a 17 km do
Paranapitanga. Assim o inimigo ficou impossibilitado de resistir nas duas
linhas de trincheiras adrede preparadas, em vista de ambas pela retaguarda
o fogo do 9.° R.C.I. que ameaçava portanto, a comunicação com Capão
Bonito. O inimigo bateu em retirada sobre essa cidade, o que acarretou,
também, a retirada das suas forças que resistiam no Destacamento Coronel
Boanerges. Graças à esplêndida manobra realizada pelo 9.° R.C.I., foi
apressada a queda de Capão Bonito sem ser tentada, sequer, a defesa
aproximada da cidade. Além disso, as forças inimigas que guarneciam a via–
férrea em Vitorino Carmilo, sentindo–se ameaçadas, recuaram para
Aracassú.
O Exército do Sul poderia, então, acelerar a sua marcha através o
território de São Paulo, em direção de Itapetininga.
Continuamos em posição, à espera do blindado. Este dispõe de grande
potência de fogo. Possui torres giratórias com metralhadoras. É evidente que
não podemos continuar ao sabor das suas arremedidas. A Artilharia vai,
portanto, intervir. Da nossa posição, na mais avançada linha da Cavalaria,
enfiamos o trecho de estrada que o auto percorreu a véspera. Decididamente
esses carros blindados do inimigo atraem a nossa Bateria. Em Vitorino
Carmilo enquadráramos o trem blindado entre as alças 2.200 e 2.300 metros.
Agora, nas proximidades de Capão Bonito, vamos visar o auto blindado.
Este, de certo, é mais perigoso, pois não tem a ação limitada pelos trilhos.
Pode percorrer a estrada e o campo ao bel prazer de motorista.
Estamos organizando solidamente a posição. A Artilharia inimiga já se
manifestou por perto. Já se dissipou a forte cerração, que quase nos impediu
de encontrar a posição que balizáramos na véspera. Estamos em vigilância
sobre a estrada. Esperamos. Corre o tempo. 9 horas, 10 horas passadas e
não observamos viva alma nas linhas inimigas, a 2.200 metros em frente.
Nem um vulto sequer. Ha calma em tudo.
É bem provável que o inimigo, diante do dinamismo do Destacamento
Dorneles (vindo de Buri) e do Destacamento Boanerges (vindo de Capinzal)
tenha abandonado as suas posições. Ainda ontem nossos quatro aviões lhe
fizeram uma investida em regra. Agiram com bombas e metralhadoras.
Vai sair, Agora, um piquete, dando tiros a esmo, para ver si provoca
alguma reação do inimigo. Nada. Tudo calmo. Nossos tiros não obtêm
resposta. Pouco depois, reconhecimentos feitos pelos demais pelotões,
constataram que o inimigo havia retirado. Nada. Tudo calmo. Confirmara–se,
assim, a nossa hipótese. Na direção de Capão Bonito não ha mais posições
favoráveis à defesa. Mas, quem quer, de fato, resistir, resiste em qualquer
lugar.
A Cavalaria, em cujas linhas estamos, apresta–se para penetrar na
cidade. Pouco depois os Destacamentos Dorneles e Boanerges faziam
junção em Capão Bonito. O Exército do Sul havia vencido uma etapa
formidável. A queda da cidade, sem um tiro nas suas proximidades, era uma
prova iniludível da fraqueza moral e material do adversário. Alegramo–nos
com isso. Estava bem próxima a Paz.
É com grande emoção que vamos ocupar esta cidade de São Paulo.
Que surpresas nos aguardarão nesta pequena localidade? Em que estado
teria ficado, após a ocupação das tropas paulistas? Na situação deplorável
de Buri? Saqueada como esta vila de onde vinha o nosso Destacamento?
Ou os chefes paulistas teriam mudado de normas, deixando de amedrontar a
população civil a nosso respeito?! Quem sabe os inimigos tinham deixando
de nos atribuir as ferocidades de uma nova horda de Hunos que, segundo
diziam, vinha devastando a Terra Bandeirante!
Assim, ao avizinhar–se a pitoresca cidade cuja posse nos custara não
pequeno número de vindas, nosso raciocínio se revela inconcludente,
perdendo–se num dedalo de hipóteses contraditórias.
Será possível que os chefes paulistas persistem em obrigar ao êxodo a
população das localidades que são forçados a abandonar pela pressão das
nossas armas?
Parece–nos loucura que os retirantes, com o fito de evitar que os
remanescentes nos prestem informações de ordem militar, os obriguem,
cruelmente, ao abandono de suas propriedades, dos seus lares, para
enfrentar as vicissitudes de uma verdadeira vida de ciganos... Logo nos veio
á mente o quadro doloroso da volta das populações de Itararé, Itapeva, Buri,
etc., famintas, flageladas, após a ocupação das forças federais. É que a sua
conduta de acatamento, de respeito, de tolerância veio deitar por terra as
denominações de jagunços e de degoladores que alguns dos retirantes, na
explosão do ódio por se verem batidos no campo da luta, comumente nos
atribuíam.
Temos a impressão que vamos encontrar a cidade na sua vida quase
normal, perturbada, é certo, pelas exigências da recente ocupação militar.
Parece–nos encontraremos os habitantes do lugar prontos para reiniciarem o
ritmo do seu trabalho habitual, uma vez que a sua incontestável inocência,
do atual estado de coisas, os coloca a coberto de qualquer punição da nossa
parte. Como brasileiros, sabemos compreender o sofrimento que deve haver
pela alma da gente do município, vitima, como tantos outros limítrofes, das
consequências sangrentas da intentona de 9 de Julho. Assim, ao
aproximarmos–nos da cidade, a lentidão da marcha da Artilharia nos permite
essa multiplicidade de conjecturas a respeito do estado em que a
encontraremos.

Se bem que acostumados, pela observação dos escombros de cidades


já transpostas, ao estado de miséria em que se encontram os lugares
assolados pela guerra, ao contemplarmos a depredação feita em Capão
Bonito, a nossa estupefação atingiu ao extremo.
Percorremos diversas ruas, visitamos casas particulares e comerciais,
repartições públicas, templos, etc. Em tudo se faz sentir a imensa desgraça
que paira sobre a Nação. Derem–nos os vencidos, ao mais baixo
procedimento militar. A destruição, a anarquia, a pilhagem, a violência se
conluiaram para reduzir a pó e a lama o esforço construtor de várias
gerações.
Ai estão, danificados a ferro e fogo, custosos aparelhos telegráficos,
materiais elétricos, etc. Que os tornassem inutilizáveis, no momento, pela
supressão de peças imprescindíveis, seria justo, militarmente. Mas é um
crime praticar–se uma destruição radical como esta.
Com as suas pistolas aterrorizantes, os vencidos obrigaram a população
a abandonar a cidade, sujeitando–a aos rigores de um nomadismo dentro da
própria Pátria. Faça–se ideia da fuga precipitada e obrigatória dos moradores
do lugar, a qual lhes acarretou o impatriotismo de alguns conterrâneos que
não hesitaram em enlutar o Pais, com a eclosão do injustificável movimento
revolucionário constitucionalista!
A simples contemplação das ruinas a que os próprios paulistas reduzem
as suas cidades, antes de no–las entregarem, nos enche de revolta e
indignação. Parece querem reeditar o famoso lema das hostes de Atila, não
deixando pedra sobre pedra aos que lhes vêm no encalço. Nesta cruel
guerra fratricida, as vitimas não se resumem aos que defendem as suas idas
de armas na mão. A população civil, vale dizer, velhos, mulheres e crianças
está sujeita aos maiores e vexames. Imagine–se a angustia de quem se vê,
subitamente, obrigado, sob ameaça de morte, a embrenhar–se, mato a
dentro, arrostando toda sorte de martírios e de penúrias...
Lamentamos o triste destino da gente de Capão Bonito. Enche–nos de
tristeza o termos constatado, também nesta cidade, o sofrimento, a fome, a
miséria que ameaçam tragar a gente de Itararé, de Buri, de Guapiara, de
Iporanga e de tantos outros lugares.
Que resta, na cidade, de sua antiga azáfama de trabalho, de progresso,
de evolução? O vozeiro alegre dos que, nos cafés, trocavam idas sob o
manto diáfano da Paz? Por acaso ainda persiste a cooperação harmônica,
fator de progresso para a coletividade? Onde estarão a vida social, a febril
atividade do mercado, as festas, as alergias da cidade?
A resposta, comum a todas estas perguntas, é que Capão Bonito de
outrora não existe mais. É o que nô–lo afirmam suas ruas sujas e
abandonadas. Essas portas e janelas arrombadas e destruídas. Esses
moveis e retratos reduzidos ao lixo das ruas. Casas ruídas e desrespeitadas.
Poços e caixa d’agua inutilizados por animais de espécie vil. Postes e
lâmpadas quebrados. Objetos familiares, talvez de grande valor estimativo
para alguém, e que o vencedor, alheio e indiferente, pisa com o tacão das
suas botas...
Lamenta a tua sorte, ó cidade de Capão Bonito, pelo protesto eloquente
dos teus escombros!
Estes como que estão a dizer que teus conterrâneos foram pusilânimes
na tua defesa. Abandonaram–te sem um tiro, sequer, de defesa aproximada.
Eles que alardeavam aqui e ali – como se fora um reflexo da narrativa irreal,
fantástica dos jornais e rádios da Paulicéia – o sugestivo lema de
Constituição ou Morte!.
Abandonaram–te na ocasião em que poderiam ter, pela resistência
homérica, tenaz, digna do passado de São Paulo, reafirmando através a
eternidade da Historia a fortaleza das suas convicções! Abandonaram–te,
numerosos e fortes, armados, entrincheirados, á tua própria sorte de presa
de guerra!
Capão Bonito. Choras, neste momento terrível de tua vida, copiosas
lagrimas de sangue, pelas vergonhas, pelos vilipêndios a que a fatalidade
histórica te condenou. Não vislumbramos, através os teus restos, o orgulho
de tantas outras localidades da Terra Bandeirante! É que não tiveste a honra
de ser conquistada, a gloria de ser defendida pela coragem e bravura dos
que, às tuas portas, se empenhassem em incruentos combates!
Constituição ou Morte!
Como contradizes e destróis essa verdadeira utopia, ó cidade de Capão
Bonito, com a extensão da tua dor, com a dor do teu abandono!

Passaremos alguns dias na cidade recém–conquistada. Nossos homens


precisam de descanso. Além disso, o alto–comando precisa estudar as
novas posições a tomar ao inimigo, as novas ideias de manobra etc.
Esperamos, pelo bombardeio dos aviões inimigos, do mesmo modo que
o sofreram outras cidades após a retirada das forças paulistas. O comando
da praça, aproveitando o excelente observatório que oferece a torre da
Igreja, destacou alguns homens para o serviço de observação, afim de que a
tropa não seja colhida de surpresa. De quando em vez o toque precipitado,
forte, desordenado dos sinos põe em polvorosa todas as forças acantonadas
na cidade! Os sinos, de acordo com o seu natural mister, continuam a
chamar os homens à Igreja. E estes vêm, Agora, na maior das correrias, aos
empurrões, todos buscando, não as praticas meritórias da fé, mas a
segurança contra as bombas. No seu parecer, os aviões paulistas não terão
a perversidade de destruir um templo tão belo e majestoso.
Este, de súbito, se enche de uma massa humana considerável, a
acotovelar–se, receosa, dos terríveis efeitos dos raids inimigos. Tem–se a
impressão de que o templo se transforma, de repente, num mercado
tumultuoso, num comício politico, enfim, nessas aglomerações onde o
vozeiro, a discussão, a desordem impedem qualquer iniciativa util. Nunca
aquela freguesia reunira tanta gente. E que contraste! Ao invés de protege–la
contra as perdições das profundezas de Plutão, eis o templo católico a
protege–la das próprias iras dos céus, de onde vem a carga maldita dos
aviões...
É o flagelo da guerra a convulsionar, até ao recesso intimo, a vida da
nacionalidade.

Buri, não obstante ter em seu seio grande parte de população que já
voltou aos lares, continua a ser revolvida e ensanguentada pelos aviões
paulistas. Ontem foram feridos sete soldados. Hoje, dois oficiais e um
soldado do 3.° G.I.A.P., além de quatro civis. Está de parabéns a indústria
bélica de São Paulo. As suas bombas, de fato, são de grande poder de
destruição. As de hoje alcançaram um camarada desalojado, jogaram–n’o
contra a parede pela violência do deslocamento do ar, contundindo–o,
seriamente, mesmo sem ser atingido pelos estilhaços. Outro soldado, pelo
mesmo efeito de sopro, ficou várias horas em estado de coma, mesmo
atingido a quinze metros do arrebentamento.
O estrago em Buri continua, pois. Parece que pretendem destruir
totalmente a vila. Não levem em consideração que, de volta, já se acham ali
varias famílias que ocorreram ao apelo das forças federais, no intuito de
normalizar, quanto possível, a vida do lugar.
Em compensação continua, também, – mas sobre as trincheiras do
inimigo – o bombardeio dos nossos aviões. O General Waldomiro proibiu,
terminantemente, qualquer investida da arma aérea sobre as cidades.
A mortandade que as nossas asas causam é igual á que sofremos – Na
guerra, como na guerra. Ontem os adversários experimentaram as nossas
bombas de cinquenta quilos, de estilhaçamento rasante. Coisa terrível. Na
nossa posição de descanso, a sete quilômetros da frente, as bombas
estremeciam tudo. E, mesmo sabendo que o bombardeio era sobre as linhas
contrarias, não pudemos conter o espanto. Todos os homens escutaram,
atentos, abismados, o estrondo a inquietar todos os seres vivos num raio de
dez quilômetros! Efeito moral e material formidáveis, os da Aviação!

Um prisioneiro, agora, nos conta, cheio de horror, o triste epílogo


daquilo: – onze mortos e trinta e um feridos...
Lamentamos toda esta imensa desgraça. Mas, no intimo, sem que os
possamos explicar, apodera–se de nós uma sensação indefinível, um como
alivio por não nos ter sido endereçada aquela terrível encomenda aérea...

Jornais de São Paulo. Apreendidos juntamente com o material bélico


abandonado nas ultimas trincheiras. Nestas é patente o conforto de que
gozam os inimigos. Tratam–se bem. Vivem de doces, chocolates e confeitos.
Caiu–nos nas mãos um caminhão cheio de conservas e dentifrícios. Que
tropa fina! Lê jornais da terra (cheios de inverdades, já se vê), com dois ou
três dias de atraso somente. É por meio desses jornais, abandonados na
pressa das retiradas, que ficamos ao par das atividades do adversário. Como
são incompreensíveis esses guerreiros constitucionalistas! Obrigam, sob
ameaças de morte, velhos, mulheres e crianças a trocarem as suas cidades
pelos sofrimentos da mata–virgem, para que nos não prestem informações
de caráter militar. Entretanto, nos deixam, aos montões, os seus jornais e
revistas... Um deles nos fala da mobilização de trezentos índios, de trezentos
selvagens para aumentar a eficiência das hostes de São Paulo. Índios
constitucionalistas! Formidável!
Primeiro a Legião Negra, logo espalhada por todas as frentes, para nos
intimidar com a prática de meios proibidos de guerra, que o seu sangue
ainda conserva por efeito de longínqua ancestralidade...
Agora são os índios. Guianazes? Guaicurus? Carijós? Que Deus se
apiede dos inimigos e não faça o feitiço virar contra o feiticeiro. É fácil serem
os inimigos devorados pelos seus novos aliados, num transporte de
desespero, ao verem a inutilidade das suas flechas e dos seus tacapes
diante dos meios de guerra de Agora... Ser–lhes–ha impossível causar–nos
o menor dano da distância em que nossas armas os manterão...
Para honra do Exército Constitucionalista, desejamos que entre as
centenas de prisioneiros de cada combate, figurem alguns elementos da raça
branca. Será evitado, assim, o comentário que já se generaliza, diante do
número de prisioneiros negros atuais. Corre de boca em boca, entre os
nossos soldados, que os brancos, os doutos, os cultos, enfim, os
responsáveis por toda esta calamidade, não querem mais saber do que
chamam, agora, de horror das trincheiras...
Estamos examinando alguns capões que as tropas constitucionalistas
ocuparam antes. As latas que aqui se encontram, em grande quantidade,
mostram que a alimentação é feita, principalmente, por conservas.
Encontramos varias caixas de rações de reserva, cuidadosamente
acondicionadas: corned–beef, pão completo, caninha e esta recomendação:
guarde para a trincheira.
A organização das topas paulistas está a merecer francos elogios.
Encontramos, também, muitas bandeiras de São Paulo. Já estamos
acostumados a isso. O nosso sentimento de brasilidade de ha muito que vem
sendo ferido por essas bandeiras branco e preto. As bandeiras e hinos
estaduais deviam ser abolidos quanto antes. São prejudiciais. Dão largas ao
espirito regionalista, prejudicando o sentimento nacional.
Mas o grande conforto das tropas adversárias nos põe a pensar.
Tiramos conclusões. Com efeito, é fácil improvisarem–se conservas, doces,
vinhos, rações de reserva etc. No entanto, a improvisação de chefes militares
que conduzam os soldados é bem difícil. Parece incrível que o inimigo ainda
não tenha obtido um único sucesso nos inúmeros combates e escaramuças
da Frente Sul. Estamos a 9 de Setembro de 1932. Dois meses. Quase não
podemos compreender esta sucessão de revezes sobre revezes. Temos a
impressão de que vamos tangendo, na nossa frente, um inimigo cujos
comandantes não manobram, não sabem tirar proveito das nossas falhas
naturais...
Não sabemos onde existe o tão apregoado entusiasmos do inimigo.
Talvez na segurança das cidades distantes do front. Lá, de certo, a alegria é
obrigatória para, fazendo frente ao abatimento moral de tantos insucessos,
se retarde uma derrota, inevitável, que acabará arrastando para o abismo da
maldição nacional, os responsáveis todos por esta sinistra empreitada.
Entusiasmo, se o ha em São Paulo, é nas cidades que a situação
geográfica não permitiu fossem atingidos, de perto, pela caudal de sangue e
de rebelião.
O que há na linha de frente, entre os paulistas, é o desanimo, é a mais
triste desilusão. Na verdade os seus políticos os arrastaram a uma guerra na
pior das condições. As trincheiras paulistas, já sem armamento, sem
munição, não entoam pelo diapasão de entusiasmo e de vitórias com que os
jornais da retaguarda, sob o controle dos políticos, vem embaindo a
crueldade publica. Cada soldado de trincheira já tem, nestes momentos de
estertores da rebelião, a consciência de que é o bode expiatório deste
movimento a que não é exagero atribuir finalidades secessionistas.
Ao crepúsculo da carnificina os responsáveis saberão, como sempre e
sempre, tirar partido da sentimentalidade brasileira. Não souberam eles, com
a sua lábia execrada, arrastar São Paulo a este desgraça? Fácil lhes será
acobertar–se com a impunidade dos crimes políticos no Brasil. O pobre
soldado que perdeu a vida nas trincheiras que continue, não mais a
defender, mas a protestar com o protesto comovente de sua cruz – se a tiver!
– contra o profundo negror da alma dos que o arrastam a tão inglório e
trágico empreendimento!
Ouvimo–lo da boca de um oficial do 13 R.I., do Paraná. Caíra uma
trincheira paulista. Deram–se os soldados à arrecadação de numerosos
apetrechos bélicos que o inimigo deixara. As ambulâncias logo entraram em
ação no transporte de mortos e feridos. Os inimigos, daquela vez, não
puderam levar os companheiros de luta colhidos pelas balas dos atacantes.
Deixaram cadáveres e feridos. Estes, gemendo, o terror estampado no rosto
pela sorte que os aguardava. É que constava, aliás em ambos os lados, que
o fuzilamento punha fim ao sofrimento dos feridos abandonados. Mentira
bárbara. Um dos que jaziam contorcendo–se em dores tivera o ventre varado
à bala. Estava às portas da morte. Mas, ainda falava. Os soldados do 13 R.I.,
o brilhante vanguardeiro da Revolução de 30, mais uma vez revelaram o seu
humanitarismo. Acercaram–se do ferido e tentaram suavizar–lhe, por todos
os meios, a dor. Disseram–lhe, entre outros encorajamentos, que em breve,
cessada a guerra de que ele não tinha a menor culpa, poderia voltar para os
seus, não como inimigo, mas como paulista, como brasileiro, como irmão,
após a implantação da paz.
O ferido, com um gesto, agradeceu a bondade dos que, pouco antes,
julgara facínoras, jagunços, degoladores...
Ao perguntar–lhe um dos nossos, se o povo paulista lhe havia levado
muitas flores, na partida para o front, o pobre ferido, entrando em agonia,
ainda pode balbuciara, quase imperceptivelmente: Muitas flores... e muitas
mentiras...
É voz corrente aqui no front – várias centenas de prisioneiros trouxeram
novidade – que as mulheres de São Paulo se deixaram empolgar,
totalmente, pela tempestade que veio toldar os horizontes da Pátria. Se elas
se deixam levar pelas palavras, na maior parte das vezes ocas e insinceras
dos homens, imagine–se, agora, o sexo frágil de par com as lábias dos
oradores de perrepismo.
Puseram–se a trabalhar com afinco. Atenderam ao apelo dos maiorais
da rebelião. Com a solicitude inata da mulher brasileira, em breve era
formidável a confecção de uniformes. Fizeram prodígios. Inventaram toucas
e cachecóis muito práticos e eficientes contra o frio. Acorreram, pressurosas,
com os seus donativos para o soldado das trincheiras. Trabalharam, noite e
dia, no acondicionamento de rações de campanha etc. Deram as suas joias
para a campanha do Ouro para a vitória. Encheram, com rapidez
inacreditável, as escolas de enfermagem para prestar seus serviços nos
Hospitais de Sangue. Em suma, fizeram quase o impossível pelo bem dos
seus soldados. Mas, alguns dos nossos prisioneiros não perdoam as suas
incansáveis coestadanos, o modo de os terem lançado, mesmo contra a
vontade, ao front. É que as mesmas chegaram a ofender–lhes o amor–
próprio de homens. Em São Paulo e outras cidades, ao ser encontrado um
cidadão a passear despreocupadamente, as jovens não puderam conter o
seu desprezo àqueles cujas convicções não eram inspiradas na cartilha do
perrepismo. Para cúmulo de audácia – nô–lo afirmam os prisioneiros –
chegaram a oferecer as saias aos que, discernindo, em meio da demagogia,
as verdadeiras finalidades do movimento, lhes recusaram os seus serviços.
Nossa vanguarda está a seis quilômetros além de Capão Bonito, sobre
a estrada que liga esta cidade a Itapetininga. A Policia Paraibana, que
acabara de chegar, foi destacada para essa frente, fazendo a cobertura da
referida estrada, por onde retirara o inimigo. O resto da tropa acantonou, por
algum tempo, na cidade. Passaram–se três, quatro dias e a situação não se
alterou. Então o inimigo, talvez pensando que as nossas forças haviam
regressado para Aracassú, no eixo da via–férrea, onde poderíamos tentar o
esforço principal da nova ofensiva, vendo somente os quinhentos homens da
Policia Paraibana em posição, decidiu–se a fazer uma incursão nas nossas
linhas. Foi esboçada uma manobra de desbordamento do nosso flanco
direito. Mas o Exército Constitucionalista anda com pouca sorte na Frente
Sul. Aliás desde o inicio da campanha. É que o 7.° R.I., de Santa Maria, R.G.
do Sul, viera reforçar, na noite anterior, as fileiras paraibanas. Os inimigos,
assim, vieram dar em cheio com as armas automáticas daquele Regimento.
A formação que adotaram para o ataque era tal que só o completo
desconhecimento da técnica militar justifica. Em coluna pouco disseminada,
de pé, sem aproveitar os acidentes do terreno.
Os nossos soldados deixaram que eles se aproximassem ainda mais.
Quando estavam de boa distância, foi feita uma tal barragem de armas
automáticas, que as baixas foram incontáveis. Estabeleceu–se grande
pânico na companhia inimiga. Foi um salve–se quem puder. Em breve a
distância reduzida permitiu que nos chegassem angustiosos pedidos de
socorro. O comandante do destacamento, Coronel Dorneles, teve dó
daqueles infelizes que, sem a instrução militar conveniente, à lábia dos
políticos, as saias das paulistas forçaram, quase, a servir de carne para as
nossas metralhadoras e canhões...
Foi dada a ordem, imediatamente, para cessar fogo. Foi permitido que a
coluna se retirasse com os seus feridos. As padiolas, agitadas
dolorosamente no ar, aumentavam a emoção dos nossos homens diante
daquele quadro de dor. Pouco depois, ouvia–se o ruído das ambulâncias que
vieram buscar, aqui e ali, os restos daquele ataque mal sucedido.
Chegaram–nos, Agora, trazidos pelo vento que sopra forte, os
agradecimentos daqueles cuja vida depreendeu, ha pouco, de um
magnânima ordem... Aumentando, ainda mais, a dor que a retina levou para
dentro d’alma dos nossos homens, o sussurro da brisa ainda nos traz um
misto lúgubre de lamúrias, de maldições, de agradecimentos!
Ficamos a cismar nas atrocidades da guerra. Pouco antes, dois homens
da Policia Paraibana, tendo avançado demais, tombaram mortos em zona
batida pelo inimigo. Seus companheiros tentaram, varias vezes, ir buscar–
lhes os cadáveres. As rajadas inimigas sempre o impediam. Opunham–se ao
cumprimento desse elementar dever de humanidade. Depois atearam fogo
ao campo. Reduziram a cinza os corpos daqueles heróis anônimos que
tombaram em defesa da ordem, da integridade da Pátria. Mas a fatalidade
vem de castigar os inimigos. Colocou–os, há pouco, sob as nossas balas. O
Coronel Dorneles decidiu, assim, da sorte de muitos deles. Se nos movesse
o mesmo ódio, talvez não restasse um só dos que nos pretenderam atacar.
Mas, a clemência com que agimos vem abater, ainda mais, a moral do
inimigo. Assim, a pouco e pouco, à custa das mais tristes experiências, ele
vai aprendendo as leis da guerra. Vai aprendendo que, mesmo na avalanche
de sangue das investidas, aplica–se o preceito puro do Cristianismo: Não
faças a outrem...
Após alguns dias de descanso, partindo, afinal, em reconhecimento.
Vamos tomar parte no combate do Rio das Almas, afluente do
Paranapanema, onde o inimigo está solidamente organizado. Vamos apoiar,
nesse combate, a Policia Paranaense, o II Btl. do 8.° R.I.,o 4/5.° R.C.D., o 13
e o 14 B.C., etc.
Ao fazermos os reconhecimentos, verificamos a falta de posição para a
Artilharia. Não ha outro recurso. Temos de fazer o que já nos vem sendo um
hábito nesta campanha: – colocar as peças na linha de Infantaria ao alcance,
portanto, das metralhadoras inimigas. Já o temos feito várias vezes. O
inconveniente disto é que a gente vê perturbada a calma necessária à
execução do tiro á luz da técnica da arma. Esta foi feita – o regulamento
respectivo é bem claro – para agir mais à retaguarda, a coberto de uma
incursão ou de um contra–ataque inimigo. Em pontaria indireta (atrás de
cristas) para se livrar dos tiros de contra–bateria. Mas, nesta campanha,
como em 1930, generalizou–se o emprego de nossas armas nas linhas da
Infantaria e em portaria direta. Assim, as I.° e 3.° Baterias do nosso
Regimento e a I.° do 3.° G.I.A.P. ocuparam posição nas linhas da Policia
Paranaense. A nossa Bateria teve a missão de apoiar a Cavalaria na
exploração do sucesso, quando o inimigo houvesse abandonado as suas
posições que batiam, complemente, a ponte sobre o Rio das Almas. A hora
do ataque, que seria desencadeado, simultaneamente, em todos os setores
da Frente Sul, foi marcada para às 9 horas. Se o inimigo recuar – o que é
quase certo em vista da massa de Artilharia que empregaremos em frente
tão pequena – logo avançaremos nas pegadas da Cavalaria para ajuda–la a
lançar os retirantes para bem longe. É ideia do comando aproveitar
amplamente o provável sucesso de hoje, perseguindo tenazmente o inimigo,
impedindo–o de oferecer nova resistência nas imediações. Faz–se mister
que o avanço seja o mais amplo, afim de que se aproxime o fim da luta, pela
queda de Itapetininga, nosso objetivo afastado.
A ideia de manobra é a seguinte: – fixação do inimigo de frente pelo
Destacamento Dornéles (progredindo na estrada real de Capão Bonito –
Itapetininga), com desbordamento do flanco esquerdo inimigo pelo
Destacamento Boanerges (progredindo pela estrada Capão Bonito– São
Miguel Archanjo – Gramadinho). Fazemos parte deste ultimo destacamento
que vai penetrar pelo território inimigo, procurando desbordar o flanco
esquerdo dos elementos que impedem a progressão pela estrada geral para
Itapetininga.
O bombardeio da nossa Aviação reforçará o da Artilharia. Nossos aviões
inquietarão, demoradamente, as linhas inimigas. Tudo faz crer, em vista dos
bombardeios que lhe prepararão o caminho, que a nossa Infantaria vai fazer,
hoje, uma progressão bem fácil.

São 11 horas. Aguardamos ordem em posição de espera. O combate,


nas margens do Rio das Almas, continua. O estrépito sangrento do mesmo
chega até nós trazido pelo vento. Mas os gemidos e as maldições dos que
tombaram, vitimados pela fuzilaria fratricida, o vento não traz até aqui. As
cenas dantescas que se estão passando nas trincheiras não são percebidas
por nós. Ao longe, em pleno desenrolar da luta, troa o canhão, crepita a
metralhadora, metralhadora e canhão a operarem uma sangria miserável no
elemento útil, moço, viril, indispensável ao progresso brasileiro!
Chegou a vez, agora, da Aviação. Quatro aviões a esquadrinharem o
espaço, a procurarem o adversário que, a esta hora, deve correr para os
abrigos. Procuram–no com avidez. É que alguns se têm queixado de que os
nossos aviões têm morto pouca gente, diante da mortalidade causada pelos
aviões paulistas. Dizem, até, que os nossos aviadores evitam combater com
os aviadores paulistas, companheiros todos da atividade de paz, no Campo
dos Afonsos. Em vista disso, nossos camaradas do ar têm redobrado a
atividade, nos últimos dias. Chegam–nos agora noticias frequentes de
destruição de vias férreas, de perseguição de trens, de bombardeios de
posições da Artilharia contrária, etc. Os aviadores têm, assim, excedido toda
a expectativa, ultimamente. Os inimigos, em recente manifesto, convidaram–
nos a suspender o bombardeio o que seria feito, igualmente, por eles. Eis a
melhor prova da eficiência da nossa Aviação.
As bombas de hoje são as cinquenta quilos. O morticínio vai ser grande.
Também, quanto mais mortos, mais aplausos. Os que dizem isto o fazem
sem o menor constrangimento.
É que acrescentam, sempre, vencendo os restos de um humanitarismo
que a guerra faz desaparecer: – Os nossos camaradas, mortos pela Aviação
paulista, precisam ser vingados... O estremecimento de tudo em redor nos
faz avaliar o horror por que estão passando os nossos irmãos inimigos.
Os incitadores da rebelião, ao abrigo dos estilhaços, pelos jornais e
rádios paulistanos, a lançarem–nos para a trincheira! A mentirem vilmente,
descaradamente, com respeito á situação de isolamento de São Paulo! As
mulheres a oferecerem as saias aos que se não deixaram cair na boca de
lobo; perrepista! E o pobre soldado da trincheira paulista a esperar,
angustiado, a hora em que uma rajada, um balim, um estilhaço, entre os
milhares que lhe caiem ao redor, lhe traga, por fim, com a morte, a saída
deste inferno de martírio e de sangue!

Agora estão sobre nós os aviões. Volteiam, festivos e alegres, da


missão cumprida. Voam baixo. Fazem vira–voltas. Dão loopings.
Assombram–nos os soldados com os seus piquets. Provado, assim, que são
nossos os aviões provocam intenso júbilo nas nossas linhas. Todos estão
satisfeitos. Tais evoluções, à pequena altura, arrancam francos elogios aos
nossos homens. Como são bons nossos aviadores! Que matança boa não
fizeram lá! Que arma poderosa! São exclamações que vêm do intimo dos
soldados aos nossos ouvidos.
E ficamos a pensar no contraste abismal que há entre as impressões
dos paulistas e dos nossos homens, todos sob esses mesmos aviões. Os
paulistas, aterrorizados, a entrarem em abrigos e buracos que, muita vez, se
lhes transformam em sepulturas... Os nossos a se vangloriarem do morticínio
que assoberba, em dor inenarrável, o inimigo... Uns a se contorcerem,
dolorosamente, ao perceberem que, em instantes, ferimentos mortais lhes
farão partir o outro mundo sem um olhar, sequer, dos entes amados, que,
talvez, os tenham impelido para esta tragédia... Outros a exigirem dos
aviadores a ferocidade máxima na caça aos homens espavoridos e
aterrorizados do outro lado...
E vice versa! Se os aviões que estão voando sobre nossas cabeças
fossem de São Paulo, os paulistas sentiriam os entusiasmos dos nossos
homens e os nossos homens o pavor que os paulistas tiveram ha pouco...
Estes sentiriam a agradável sensação de agradecimento que estamos vendo
no semblante dos nossos soldados. E estes talvez baqueassem, como tantos
outros, varados pelos estilhaços das bombas ultra–mortíferas, com que os
rádios paulistas prometeram assombrar o mundo!
Eis a pena de talião coletiva, sangrenta, pavorosa, destas hostes irmãs
em mutuo extermínio, no próprio campo da Pátria...

Da nossa posição de espera, (esperar é desagradável em qualquer


situação, imagina–se esperar para entrar em combate) vemos o escoar
interminável da Infantaria. Observamos a disposição de todos os homens.
Vão disposto a lutar com galhardia. Mas lê–se nos seus semblantes que,
como qualquer mortal, têm vontade de gozar as delicias da mocidade quem,
em quase todos, mal dá os primeiros passos! Vê–se no bom–humor e na
alegria expansiva dos que passam, que a sua moral é ótima. De certo,
nestes dois meses de campanha, já tomaram parte em combate. Nem por
isso denota–se–lhes, nos gestos, qualquer desânimo ou cansaço, não
obstante a eles da Infantaria, estar reservado o papel mais perigoso e árduo
da luta: o assalto a baioneta ás trincheiras inimigas.
Passam curvados ao peso da mochila, do fuzil, da cerramento de sapa,
da barraca. Os soldados das armas montadas quase não podem
compreender como os infantes fazem tantos quilômetros sob tanta carga! E,
ainda por cima, a espinhosa missão de atacar, desalojar e assaltar as
posições inimigas! É de sacrifício a ação formidável da Infantaria. Continuam
a passar, em passo de estrada, os infantes. Vão calmos. Decididos. Que lhes
passará pela mente? Que os aguardara no imprevisto do combate próximo?
Porta–se–ão com bravura? Com heroísmo? Ou as fraquezas física e moral
turvarão a atividade de alguns?! Corresponderão á confiança dos seus
chefes? Arrostarão, com desassombro, o perigo das balas sibilando por todo
canto? Ou, arranjando um abrigo no terreno, deixarão de auxiliar os demais
camaradas na luta de vida ou de morte?! Terão a calma necessária para
abater, com tiro certeiro, o inimigo que lhe arrebentou o companheiro ao
lado? Portar–se–ão com denodo sob os schrapnels da Artilharia inimiga?
Serão feitos prisioneiros? Sofrerão as atrocidades que correm, de boca em
boca, como praticadas pelo inimigo? Serão amarrados, às trincheiras
inimigas, para servir de parapeito humano às balas dos seus próprios
companheiros? Sairão ilesos de mais este combate? Ou, cumprindo os seus
tristes destinos, ficarão os seus restos abandonados nestas ermas
paragens?! Terão a sua vida de soldados encerrada pelas palavras: Tivemos
tantos mortos dos comunicados oficiais?
Esses soldados pensam. Sabem que, se não sobreviverem à vitória, o
sacrifício da sua vida passará quase despercebido. Nem sequer lhes citarão
os nomes. Ocuparão, de certo, muito espaço, na rapidez e precisão dos
comunicados. Antes, quando em forma, não os achavam demais na sua
companhia... Mas, Agora, trata–se da vitória e os mortos não interessam...
Um numero, apenas, sintetizará, nos comunicados, os sofrimentos, os
estertores dos que morreram, desgraçadamente, na voragem do combate.

Eis o mundo de cogitações que agita, certamente, humanamente, esses


seres que se vão escoando pela estrada, em demanda da linha de frente. O
resto é fantasia de jornal, ou impressões de quem sente a guerra, na
quietude das cidades distantes... Essas cogitações são naturais. Não se
pôde compreender que um homem, na flor da idade, se vá para a trincheira
disposto a morrer numa luta inglória, provocada pelo politiqueirismo, pela
imprensa paga, pelos tribunos cuja eloquência se inspira na obtenção de
rendosas sinecuras da administração pública.
O nosso soldado, para glória do Brasil, é bravo, audaz, valoroso. Mas
nunca numa guerra como esta, a sua bravura é verdadeiramente arrefecida
pela consciência de que, nesta campanha, emprega–a contra irmãos
brasileiros, cujo único crime consiste em se terem deixado ludibriar pelas
manobras da politica malsã. Como arremeter com a fúria máxima contra
nossos irmãos que, até ontem, cooperavam na grande obra de construção
do patrimônio nacional? Como avançar com impetuosidade extrema, se o
nosso soldado sabe que na ponta da sua baioneta vai levar a lagrima, a dor,
o luto a algum lar paulista, tão brasileiro quanto o seu lar? O soldado de
trincheira sente, também, o pesar que se vê nas ordens, nos manifestos do
alto comando. E, como agente direto das ordens, como elemento realizador
debaixo de bala, de metralha e de sangue do que o Estado–Maior delibera e
ordena na brancura do papel de ordens, o nosso soldado de trincheira sente,
mais do que qualquer outro, as misérias desta inglória luta em que se
defrontam irmãos contra irmãos. Agora não se faz sentir, verdadeiramente, a
bravura, o heroísmo que têm impulsionado os soldados do Brasil no fragor,
quiçá mais sangrento, de outras guerras, que a fatalidade histórica nos tem
apresentando, como degraus a galgar na marcha ascensional para a
grandeza, para a glória da Pátria.

Os caminhões passam, pela estrada, cheios de soldados. Vão aos


montões os nossos homens. Estes sempre tiveram mais sorte, pois não
andarão quilômetros e mais quilômetros para chegarem até a linha de frente.
Os caminhões os transportam com facilidade. Também, para compensar,
entrarão em fogo mais depressa que os que vão a pé... Vão alegres todos.
De vez em quando passa um caminhão cujos soldados vêm gritando, dando
hurrahs entusiásticos. De certo procuram esquecer que, dentro em breve,
estarão a braços com as maiores dificuldades do mundo: as que implicam,
por um descuido insignificante, em perda de vida... Quase todos os
caminhões foram tomados ao inimigo. Ainda se leem, nos mesmos, as
denominações dos corpos paulistas que os tiveram a seu serviço: Btl. 14 de
Julho; Btl. Floriano Peixoto; Legião Negra, etc. Aparecem, também, nomes
de casas comerciais de São Paulo, Santos e outras cidades. Não ha nada
como um dia depois do outro. Pouco antes, esses caminhões transportavam
os nossos inimigos, por estes mesmos lugares que acabamos de conquistar.
Velozes, impeliam–n'os para as trincheiras, afim de nos barrar a passagem.
Se eles falassem, os caminhões, de certo contar–nos–iam as
inquietações que os paulistas tiveram ao virem para linha de fogo. Aliás, em
tudo idênticas às que experimentam os nossos soldados e, de um modo
geral, todos os que se dispõem a entrar em combate.
Agora, os caminhões correm, vertiginosamente, em sentido contrário,
dando caça aos seus donos de ontem. São os mesmos caminhões. O que
mudou neles foi o elemento homem, desde o chauffeur até os soldados.
Assim, esses motores têm trabalhado para uns e outros irmãos,
aproximando–os para a luta sangrenta.
A quanto chega a tragédia da guerra fratricida! Caminhões, fatores
indispensáveis ao progresso, atestando, pelo seu numero considerável, todo
o adiantamento de um povo, transformados, abruptamente, em transportes
de carne humana para a fogueira cruel de Marte! Parecem protestar, na sua
linguagem estrepitosa e fumarenta, contra o descalabro da sua missão
atual...
Esses homens...

Nossos aviões têm voado muito. Pela manhã quatro, em bombardeio.


Agora são cinco que, tendo passado há pouco por nós, lançam, novamente,
bombas sobre as posições inimigas. Sempre os mesmos estrondos
formidáveis. A mesma inquietação espalhada em toda a frente. O mesmo
estremecimento em tudo. Em vista do tempo nublado, somente podemos
reconhecer que a esquadrilha é nossa, quando começa o bombardeio sobre
o inimigo. Quer dizer, começa o nosso sossego, quando começa a correria e
o terror pelas linhas do adversário... Os efeitos desse bombardeio de hoje,
tratando–se da preparação de um ataque, devem ser enormes. As lunetas,
binóculos e instrumentos dos nossos aviadores têm tido muito trabalho.
Pouco depois pois cessa o bombardeio. Está feita a preparação. Tome a
palavra, Agora, a Infantaria. Já lhe preparam o caminho, já abateram, até
certo ponto, a resistência moral e material do inimigo, a Aviação e a
Artilharia. Em breve as metralhadoras crepitarão, apoiando o avanço dos
fuzileiros. Assim, tudo leva a crer que, dentro de algumas horas, podemos
dizer: – era uma vez a resistência do Rio das Almas.

São 16h30. Recebemos ordem para avançar, transpor o Rio das Almas
e apoiar o avanço do Destacamento Boanerges. A ponte sobre o referido rio,
na estrada para São Miguel Arcanjo, além de destruída parcialmente,
recebia, ainda, nutridos fogos do inimigo. Mas o 5.° B.E. (Batalhão de
Engenharia, de Curitiba) lançará, mais à direita, uma ponte que permitira ao
Destacamento Boanerges avançar, contornando o flanco esquerdo do
adversário. A ponte, mesmo feita ás pressas, oferecia resistência suficiente
para a passagem da Artilharia. Mas por prudência, passamo–la com os
animais desatrelados, já quase noite. Chovia bastante. As taboas da ponte,
novas, eram escorregadias. Contudo, não houve acidentes.
Antes, já havíamos feito os necessários reconhecimentos dos objetivos
e da posição.
As I.° e 3.° Baterias do 9.° R.A.M., bem como a I.° do G.I.A.P., haviam
atirado o dia todo, sem que, porém, se resolvesse a situação. Agora, a nossa
Bateria vinha ocupar posição além do rio, passando pela ponte de
emergência, para bater o flanco esquerdo do inimigo.
Foi marcado, para às 6 horas do dia seguinte, novo ataque às posições
inimigas que, justiça seja feita, resistiram valorosamente aos bombardeios de
Aviação, de Artilharia e às frequentes arremetidas dos nossos infantes.
Ocupamos posição à noite para apoiar o novo ataque.
Antes a 1ª. Bateria do 5° G.A.Mth. fizeram algumas salvas sobre
objetivos fugazes (Mais tarde alguns prisioneiros nos informaram que esses
tiros atingiram, em cheio, um caminhão que fazia o abastecimento do
pessoal).
É noite. Vamos aproveitar o estio para organizar a posição. Nossos
soldados estão cavando sem descanso. Precisam abrigar–se solidamente,
pois a Artilharia contrária, durante o dia, enquadrara as 1ª e 3ª Baterias do
nosso Regimento e a 1ª do 3° G.I.A.P.
É meia noite. Estão terminados os trabalhos. O pessoal vai armar
barracas para se livrar da chuva que vem chegando. Vento forte. A luz da lua
não chega até nós, pois há numerosas nuvens. Perto da gente continua,
através o negror da procéla, o gargalhar de armas automáticas. Certamente
os irmãos inimigos, em vista da distância reduzida que os separa, o
prolongarão toda a noite. Evitam–se mutuamente, alguma surpresa.
Vamos repousar sob o zunido das balas por dentro do mato. Os homens
do serviço de vigilância velarão pelo nosso sono. É forçoso que o
conciliemos. Amanhã, dia de combate teremos muito o que fazer...

Vai recomeçar o ataque. São 9 horas. Recebemos pedidos de tiro da


Infantaria. Atendemo–los. Com êxito. Um capão, que nos disseram ser um
centro de resistência, foi por nós varrido com trinta granadas que acabaram
incendiando o mesmo. Pelo binóculo pudemos observar a debandada geral
dos que se achavam ali. Alguns schrapnels, tempo, completaram a obra.
O comandante da Polícia Paranaense nos fez, também, alguns pedidos
de tiro a que atendemos, embora não nos fosse possível observá–los. Em
breve o telefone nos confirmava a inquietação feita.
A distância de 2.000 metros, o canhão Krupp 75 é deveras preciso.
Temos tirado sobejas provas disso nesta campanha, onde só temos atirado
em distancias reduzidas.
Em compensação estivemos, durante todo o combate, ao alcance dos
fuzis inimigos. Algumas balas riscaram os escudos dos canhões. Mas o
pessoal, bem abrigado, furtou–se ao efeito das mesmas. Como o P.C. do
Coronel Boanerges era bem próximo á nossa linha de fogo mantivemos,
durante o dia todo, estreita ligação com o comandante do Destacamento.
Pudemos, assim, atender prontamente aos pedidos da Infantaria que
apoiávamos.
Ao contrário do eu tem sucedido até aqui, na Frente Sul, o inimigo
desta vez, está disposto a defender a todo transe, as suas posições. assim,
apesar do continuo e preciso martelar da Artilharia, em dois dias seguidos,
(5° G.A.Mth, 3° G.A.P, e 9° R.A.M.), a resistência continua. São inúteis os
esforços da infantaria em face das posições dominantes, das inúmeras
armas automáticas, das granadas demão do adversário. Se bem que este
haja recuado, algumas vezes, para se livrar do bombardeio, cessado este,
voltara, rapidamente, impedindo qualquer progressão.
Está finda a jornada de hoje. Progredimos muito pouco. O inimigo
manteve, valorosamente, as suas posições. A sua resistência, aqui, foi uma
exceção do que tem feito sempre: – abandono precipitado das posições
diante do nosso avanço.
Ao cair da tarde, a Artilharia inimiga manifestou–se com alguns tiros
sem resultado. Obtivemos um projétil que não explodira. Tratava–se duma
granada modelo 1915 da artilharia de Montanha inimiga. Esta, já quase noite,
dera esses tiros a esmo, sem observação, sem regulação.
Essa Artilharia se mostrava, portanto, indigna da Infantaria paulista que
continuava resistindo galhardamente. A noite pôs fim às operações.
O inimigo mantivera, valorosamente, durante dois dias de combate, as
suas organizações do Rio das Almas.

O General Waldomiro não se conformou com a resistência do inimigo. E


para hoje, dia 18 de Setembro, mandou o Destacamento Coronel Marcelino
reforçar o Destacamento Coronel Boanerges do qual alguns corpos ficariam
de reserva. A hora do ataque foi marcada para às 6 horas. Mas, houve
atraso. Iniciou–se, somente, às 8.
A ordem era conquistar, a todo custo, as posições inimigas. Houvesse o
que houvesse. E, mais tarde, alcançando a nossa Infantaria uma base de
partida conveniente, lançou–se a assalto. Foi renhida e sangrenta a refrega.
Brigou–se a baioneta. Houve choque a arma branco, como em Itararé. O
inimigo lançou, até o fim, enquanto pode, granadas de mão. Seus caçadores,
de cima de alguns pinheiros, alvejavam, com tiros certeiros, os nossos
homens que vinham já a pequena distância.
E, assim numa arrancada indomável, talvez ofendida no seu amor–
próprio, a Infantaria, sem o apoio da Artilharia, que não atirou naquela
jornada, conquistou, a ferro e fogo, o sólido entrincheiramento inimigo. O
tiroteio foi cerrado e feroz. A impetuosidade do assalto foi a maior de quantas
temos tido notícia. O estrepito dos embates chegava nítido até nós.
Aguardávamos pelos pedidos de tiro que, entretanto, não foram feitos. A
Infantaria atuou só.
Bravamente, heroicamente. Houve numerosos mortos e feridos. Nas
nossas, como nas fileiras inimigas. Lutou–se leoninamente nas margens do
Rio das Almas.
Aqui – faça–se justiça – os soldados paulistas resistindo à metralha e às
bombas dos aviões, resistindo à Artilharia que martelou durante dois dias,
com cinco Baterias; resistindo até o fim, sendo presos de armas de mão, os
soldados paulistas do Rio das Almas, criaram jus indefectível elogios dos
próprios atacantes.
Pela primeira vez, na Frente Sul, em mais de dois meses de campanha,
o inimigo resistira com bravura elogiável. Defendera–se com firmeza, das
arremetidas de três dias dos Destacamentos Boanerges e Marcelino. O
inimigo não se rendeu. Os elementos escalados para resistirem a todo transe
apoiando a retirada dos demais, permaneceram no posto de sacrifício, ou
morrendo, ou sendo presos em plena luta. Honra, pois, aos trinta e cinco
prisioneiros do Rio das Almas.
Está diante de nós, uma padiola. Transporta um ferido do assalto a
baioneta de hoje. Os gemidos que dali partem como que aguçam a nossa
curiosidade. Vamos ver do que se trata. Queremos levar o conforto das
nossas palavras a esse herói, de certo esquecido pelos comunicados, ao
tratarem da sangrenta jornada de hoje. Encontramos a debater–se, na dor de
horríveis ferimentos, um soldado da Polícia do Paraná. Este, pouco antes,
quando carregava, baioneta calada, olhos na trincheira inimiga, o zunido das
balas a passarem rentes ao seu corpo, o pobre homem foi atingido por uma
granada de mão vinda das trincheiras paulistas.
O ferimento é mortal. A granada arrebentou no próprio peito do soldado.
Deste só restam destroços: pulmão á mostra, costelas quebradas, sangue
por toda parte... Parece incrível que ainda viva este valente soldado! Ainda
lhe pudemos dizer, dominando a horrível impressão que nos causou aquilo,
que em breve estaria curado, que o ferimento não era tão grave... Mas o
ferido, com uma dor monstruosa a embargar–lhe a voz, ainda dizia, numa
linguagem entrecortada de soluços: Vou morrer, morrer... E o sangue
continuava a jorrar da grande cavidade, que a granada abrira no peito
daquele valente soldado...
Mais uma vida tragada, na voragem da tragédia constitucionalista...

Continuavam a passar as ambulâncias cheias de feridos. A estrada é


ruim. Os autos passam vagarosamente. Param às vezes. Podemos, então,
observar os verdadeiros fatores da vitória. Entretanto, eles não participaram
dos louros da mesma, não obstante serem que mais os merecem, pois foram
ao encontro das balas e das granadas do inimigo. Os comunicados
sintetizam, com um número apenas, cinco, dez, ou vinte (feridos ou mortos),
esses heróis que, progredindo através de banhados, ou de terreno limpo sob
rajadas de metralhadoras, são os autênticos donos da vitória.
Como era de prever, no ataque ás posições dominantes do inimigo, o
número de mortos e feridos foi bem grande. Temos visto passarem vários
feridos de cabeça. Passam desacordados, enrolados em alguma gaze,
pálidos, cadavéricos, mais mortos do que vivos. Misturados com eles, nas
mesmas ambulâncias, vem cadáveres e feridos de perna ou de braços.
Causam má impressão esses destroços, esses restos de carne brasileira dos
combates. E o pior é que essas ambulâncias, vêm passar, justamente, na
posição na nossa Bateria, abalando os homens de ânimo mais fraco. Não há
coisa pior que o desfile macabro das ambulâncias, cheias de sangue, ao
cessar o estrépito formidável das batalhas. É que a gente, mesmo sem
querer, é levado a pensar que, mais dia ou menos dia, um descuido qualquer
nos pode levar a dolorosa situação em que se acham os homens que
enchem essas ambulâncias...
Se, ao menos, a morte imediata nos fosse garantida para dar fim a
tantos males! Porque o pior – e é o que acontece com maior frequência – é o
ter–se, depois, que arrastar a carcaça remendada, amputada, artificializada...

Passados os mortos e feridos que, em primeiro lugar, nos prendem a


atenção, principia a escoar–se a coluna de prisioneiros. Estes vêm
cabisbaixos, rotos, sujos, abatidos. Os vencedores, logo de início tomam–
lhes tudo o que têm de melhor: capacetes, botas, mantas, etc. Depenam–
nos. Humilham–nos.
Eis aí, reduzidos a extremo abatimento moral, os nossos irmãos que a
empreitada constitucionalista jogou para aquelas trincheiras lá do alto. Bem
reconhecemos que se portaram como heróis, que resistiram até ao fim, que
realizaram a missão de sacrifício que lhes foi imposta: cobrir a retirada dos
demais companheiros.
Não se renderam. Foram presos combatendo, atirando. Alguns, ainda
no alto dos pinheiros a fazerem tiros de caça.
Mas o respeito aos nossos mortos e feridos nos impede de os tratar com
muita consideração. Vão para a retaguarda. Carregam, nas mantas, os seus
mortos. Trazem, ao peito ou ao gorro, a bandeira de São Paulo. Mandaram
que fizessem alto. Vamos aproveitá–lo para interrogar alguns.
São bem brasileiros como nós. A maioria cursa as academias paulistas.
Gente de sociedade. Mostram–nos o morto que transportam com cuidado e
veneração. Dizem–nos que era da família Penteado. Morrera heroicamente.
De pé na trincheira, quando todos que davam inativos com os nossos
homens a dois passos, o soldado Penteado ainda lançava granadas sobre os
atacantes. Uma bala, atravessando–lhe um dos olhos, prostrara–o sobre a
trincheira, braço estendido para a frente, como se mesmo depois de morto
quisesse continuar a lançar a morte por meio de granadas.
Outros nos dizem, apontando para um cadáver que está mais atrás, que
a morte fora por ele mesmo provocada. É que, ao ser abordada a sua
trincheira pelos atacantes, esse seu companheiro, levantando os braços,
mostrou a um soldado nosso, alguns homens que ameaçavam fugir. E,
aproveitando a distração deste, deu–lhe dois tiros de revolver a queima
roupa. Errou o alvo. O nosso soldado, com um golpe certeiro de sabre,
varou–lhe o abdômen lado a lado... Pagou, assim, com a vida a sua
inexplicável deslealdade.
Os prisioneiros continuam parados diante de nós. Prossegue a nossa
conversa. Continuamos a interrogar os nossos irmãos paulistas que as
contingências da guerra transformaram em prisioneiros, em feridos, em
mortos, ou, no mínimo em inimigos. Respondem–nos indiferentes, alheios ao
que se passa em redor. Dizem que a sua resistência tem sido maior
ultimamente por que, à custa da experiência de dois meses de luta, têm
compreendido melhor os segredos e as necessidades dos combates. Que já
aprenderam, à custa de não pequeno número de vidas, que as trincheiras
profundas e em través são abrigos seguros contra a Artilharia que não os
atemoriza tanto quanto no início da luta. Que desde Itararé vêm recuando,
mas sem abatimento moral, pois as retiradas já se lhes transformaram em
hábito. Disseram–nos, também, que muitos dos nossos schrapnels lançaram
balins dentro das suas trincheiras.
Ao continuarem a marcha, aqueles jovens acadêmicos ainda nos
puderam dizer, com um triste sorriso nos lábios, revelando um brasileirismo
que se não extinguira em seus corações, que agora poderiam julgar–se
reservistas de fato, aptos para colaborarem conosco na defesa da Pátria,
quando serenar esta tempestade sinistra que tem feito correr tanto sangue
brasileiro.

Chamava–se Antonio Gomes, Capitão de Artilharia. Como estivesse


sem função, decidiu–se a acompanhar, de perto, a Infantaria. Quando
fazíamos um reconhecimento cuidadoso dos nossos objetivos, percorrendo
toda a linha de frente, encontramo–lo com o 13.B.C. Disse–nos, esse
verdadeiro herói, que ali estava fazendo um estágio na Infantaria. Estava
ajudando os camaradas da rainha das armas.
No primeiro dia do combate, a apenas quarenta metros do inimigo, o
Capitão Gomes convidou o comandante da companhia, junto a qual se
achava para partir ao assalto. Mas o comandante do Btl. não aprovou
medida tão audaciosa. Julgou que iria expor muito a sua tropa, aventurando–
a a um assalto como esse, dispondo o inimigo de perfeito comandamento
sobre o terreno, enfiando, portanto, toda a zona de progressão. Dois dias
depois, resolvido, afinal o assalto (em condições piores, pois o inimigo
recebera reforços de 250 homens, conforme declarações dos prisioneiros) o
Capitão Gomes avançou à frente, encorajando os soldados, sem ligar ao
terrível sibilar de balas. Foi levando a tropa, até as linhas a assaltar. Nada o
deteve. Ao atingir, porém, o objetivo foi ferido na cabeça. Cambaleou. Mas,
ainda assim, como que impulsionado por força sobre–humana, ainda
avançou, gritando aos soldados que o imitassem.
Um golpe de sabre no ventre o pôs, finalmente, por terra.
Terminada a refrega, transportaram–no, em estado grave, para o
Hospital. Fizeram tudo para arrebatá–lo ás garras da morte. Impossível.
Morreu dias depois, honrando, com um exemplo de inexcedível heroísmo, a
farda no Exército Nacional.
Ao atingirem as margens do Rio das Almas, os soldados
paranaenses tiveram, de início, uma agradável surpresa. Estavam há tanto
tempo fora da sua terra, que já se haviam esquecido dos pinheiros, tão
peculiares ás paisagens do Paraná. Assim, ao depararem os pinhais
majestosos da nova zona de operações, os paranaenses experimentaram
indefinível saudade, avivando–lhes aquelas araucárias o imenso desejo de
voltar a sua terra.
Em breve, porém, a realidade espantosa da guerra lhes fez odiar e
amaldiçoar aquelas arvores que, à primeira vista, lhes trouxeram suaves
recordações. É que do alto dos pinheiros, os inimigos faziam caçadas de
paranaenses.
A circulação, o remuniciamento, os reabastecimentos eram bem difíceis.
As estradas, não obstante regular vegetação, eram inteiramente batidas.
Só ao fim do combate, ao serem assaltadas as trincheiras, é que o fato
teve explicação. Os tão decantados pinheiros serviam de posição de tiro para
os caçadores paulistas. Graças à altura dos mesmos, a pontaria era fácil e
infalível para os defensores. é assim, naqueles tristes lugares, muitos
soldados paranaenses foram abatidos pelas balas dos pinheiros que, com
tanta emoção, vislumbraram no campo da luta. É que o realismo selvagem
da guerra não permite ilusões. A qualquer emoção agradável, mesmo
efêmera, segue–se irremediável desilusão. Como os pinheiros aos
paranaenses, com rapidez incrível, esboroam–se, a cada avanço, a cada
ataque, as ilusões benfazejas do tempo de paz que já vai tão longe.

As trincheiras inimigas do Rio das Almas foram as melhores que temos


encontrado desde Itararé. Feitas de acordo com a técnica. Em través,
permitindo cruzamento de fogos em passagens obrigatórias, revestidos os
parapeitos com sacos de terra, boa profundidade dando segurança contra os
bombardeios, amplo campo de tiro permitindo bater grande distância em
frente e nos flancos, camuflagem perfeita etc. Causou–nos surpresa a
eficiência dessas trincheiras, bem diversas das à la diable que temos visto
por todo canto, cavadas pelos retirantes. Diz–se que, entre estes, colaboram,
agora técnicos da Grande Guerra. É bem provável em vista das distâncias,
reduzidas em que a Artilharia tem atirado, temos agido com muita precisão.
Encontramos muitos balins nas trincheiras. Copos de shrapnels nas
proximidades. Crateras sem conta rodeando os parapeitos. Ainda há sangue
nestes lugares.
O inimigo fez economia de munição. A quantidade de cartuchos
deflagrados foi relativamente pequena. Confirma–se, portanto, a notícia de
que escasseiam os seus recursos bélicos.
A comunicação entre as diversas artes do entrincheiramento foi feita,
rigorosamente, por picadas abertas no mato. Durante os dias do combate
raramente era visto um inimigo, o que vem confirmar o aumento da sua
capacidade combativa.

Foi sangrento o último combate. Encontramos, agora, mais uma prova


disso. Estamos diante de um cemitério improvisado pelos retirantes, a sete
quilômetros dos entrincheiramentos recém–conquistados. É uma antiga
Capela cercada por espessa rede de arame farpado. Certamente para
impedir que desrespeitemos esses despojos, o que, alias só é admissível na
demência que o fragor dos embates faz surgir. São incontáveis as cruzes.
Feitas às pressas. Sobre cada uma delas está um pequeno papel com o
nome do morto. Este nos não interessa. Apenas concluímos que esses
papéis, se não fossem recentes as sepulturas, já teriam sido levados pelo
tempo. Este acabará, também por extinguir da alma do nosso povo a triste
recordação destas páginas da vida nacional, escritas com o seu próprio
sangue.
Temos que avançar rapidamente. Não há empo a perder. Em cada
minuto que passa mais se reforçam os entrincheiramentos inimigos, agora
nas margens do Paranapanema. Nossos canhões já se acostumaram a
passar por esses cemitérios que esta campanha tem semeado pela terra
brasileira. As granadas que levamos estrada a fora – Deus o sabe! – ainda
semearão muitos cemitérios como este. Pouco adianta contar as cruzes
deixadas pelo inimigo. Os próprios cemitérios destas paragens, despertadas
do seu letargo pelo ronco dos acanhoes, pelo estrépito dos combates, já são,
como as suas cruzes, incontáveis.
Durante a noite escura, o sussurro do vento através destas folhagens,
testemunhas da atividade mortífera de irmãos brasileiros, como que nos
evoca as maldições dos que tombaram, na flor da existência, vítimas desta
guerra desencadeada pelos torvelinhos da Política. Ao contemplarem–se
estes cemitérios é que a gente tem uma visão real desta calamidade. Como
é triste lançarem–se irmãos contra irmãos! Quantos cemitérios ainda teremos
que encontrar por estes envios caminhos! Quanta lágrima correu e correrá,
ainda, sobre essas sepulturas, terminada a guerra civil! Como é doloroso,
após cessar a febre, a fúria, o ódio efêmeros da batalha, o ter–se de
constatar os efeitos da metralha, mercê do eloquente pedido de clemência
dos braços estendidos de tantas cruzes!

Têm amplas razões os prisioneiros, quando nos afirmam que o pior da


guerra não é o bombardeio, nem a fuzilaria aterrorizante. Os homens, por
força do hábito, terminam achando–os naturais, sem oferecerem perigos ou
pouco prováveis de os atingirem.
O pior do combate a gente sente quando, cessado o tiroteio, nota–se a
falta dos camaradas com que foram feiras as trincheiras e ao lado dos quais
sentimos, angustiados, nascer a maior, a mais imperiosa das solidariedades:
a despertada pelos arrebentamentos de granadas, pela passagem de balas...
Então vem–nos aos lábios: Que seria feito deles? Só uma resposta nos
acode nesses momentos: mortos! Porque, se o não foram pelas balas, as
práticas sanguinárias terão dado cabo deles. E, na retirada terrível que se
segue à derrota, – dizem–nos os prisioneiros – perde–se o raciocínio em
pensamentos surgidos da carnificina, dos quadros sinistros dos combates,
transformados, agora, nos cérebros abatidos pelo fracasso, numa fogueira
incoercível, incontrolável de terrores e de alucinações.
Mas, a infernal realidade das trincheiras não apaga de todo, a bondade
dos corações de homens, que até então, só conheciam a vida incomparável
e pura do tempo de paz. Sente–se – continuam os prisioneiros – algo de
indefinível a reclamar os amigos, os camaradas, os irmãos de tantos
sacrifícios!
Ao contemplarem–se as fileiras quase desertas, pela ceifa cruel da
guerra, é que é sentida a mais nítida impressão de horror desta onda de
sangue...
Ah! Os companheiros que ficaram sobre as trincheiras, insepultos, a
cabeça, ou a boca, ou o peito varado por projetis infames! A hedionda visão
de um camarada que cai, pesadamente ao solo, o fuzil ao lado, braços e
pernas a se quebrarem, e a chuva de balas e de estilhaços a continuar
alheia, cruel, indiferente... Como é pavoroso – prosseguem os prisioneiros –
o fazer–se a guerra nas trincheiras! A linguagem humana tão maravilhosa,
tão cheia de recursos, é insuficiente para descrever os quadros de dor, que
então se apresentam... Principalmente se a guerra, como está, é
desencadeada entre irmãos, obedecendo aos caprichos da trágica Política
Brasileira que, infelizmente, quando não está roubando, está matando!.
Segundo afirmaram vários prisioneiros, os chefes rebeldes pretendiam
apresentar–nos o Rio Paranapanema como uma linha inexpugnável ao
Exército do Sul. Durante dois meses foram feitas solidas organizações na
margem direita deste rio porém no eixo da Estrada de Ferro e da Estrada
Real para Itapetininga. É claro que os chefes do Exército Constitucionalista
não deixariam de cobrir as estradas de menor importância, que correm junto
a essas vias principais de acesso a Itapetininga.
O General Waldomiro resolveu manobrar pela direita, pelas rodovias
menos importantes, e cujas organizações defensivas o inimigo deixara para
segundo plano. Assim, essas estradas de leito natural passaram nas
operações a ter mais importância que as de Ferro e Real. Nestas, o inimigo
seria, apenas, fixado de frente. Iriamos manobrar pelas estradas que,
partindo de Capão Bonito, iam ter a Gramadinho, passando por São Miguel
Arcanjo.
A manobra é formidável. Fará cair, com certa facilidade, as poderosas
organizações que o inimigo vem construindo há tempos.
Teremos, é bem certo, de arrostar com dificuldade de toda sorte quanto
ao abastecimento, remuniciamento, etc. por causa da qualidade das vias de
comunicação. A menor chuva torna–se impraticáveis. Os caminhões, então,
ficam uns atrás dos outros sem poderem realizar os transportes. Da onde se
conclui que os comandantes de Unidades têm que fazer prodígios para
combater mais um inimigo: – a fome. Sem alimentação suficiente, os nossos
cavalos não poderão tirar os acanhoes por essas vias que de estrada só tem
verdadeiramente, o nome. Os soldados se conformam com tudo. Eles sabem
– pois lhes dissemos – que a manobra por estas paragens desertas é
tentada com o fim de se evitar o morticínio de ataques frontais, às poderosas
organizações ao longo da via–férrea.
Mas os transportes vão ter grande impulso. Acabam de chegar a Capão
Bonito trinta possantes caminhões que farão os abastecimentos da tropa que
vai progredir pela estrada de São Miguel.

Há dias que vem ameaçando chuva. Esta ameaça é sensivelmente


comparável às de incursão do inimigo. Para quem combate numa região
como esta, uma chuva, por menos que seja, significa a transformação das
estradas em lamaçais intransitáveis.
Muitos quilômetros nos separam, ainda, de Itapetininga. Como é triste o
saber–se que ainda passaremos tanto tempo nesse inóspito sul de São
Paulo, antes de atingirmos a zona de recursos! Precisamos avançar o mais
rapidamente possível. Este mato infernal já nos esgotou a paciência com os
seus carrapatos, com as suas perigosas cobras que nos mataram, já, alguns
cavalos. Nossos soldados andam alarmados com o número de cascavéis
encontradas nestes bosques. Uns andam fazendo até feitiços para não
serem envenenados. Veem–se, agora, frequentemente, guizos de cascavel
pendurados ao pescoço. Gente simples, pensa, assim, livrar–se da fatalidade
do destino... Não se pode nem acender fogo porque, se ele afugenta as
cobras, em compensação, atrai as balas do inimigo. Alguns entretanto,
preferem a estas a deixarem o mundo nos dentes de algum asqueroso réptil.
Esta conjugação tonitruante de trovões do espaço, de trovões da
Artilharia de matraquear de metralhadoras, de pipocar de fuzis e de
granadas, desperta admiração em qualquer mortal. Chove a cântaros. Os
raios cortam o espaço com faíscas aterrorizantes. Entretanto, o tiroteio lá
adiante prossegue ininterrupto, como que se o homem, no incontido orgulho
das suas armas ultra modernas de centenas de tiros (ou, também, centenas
de mortes), por minuto, se quisesse considerar superior às forças da
Natureza!
Os tiros de Artilharia se fazem ouvir a grandes distâncias, dias a fio. É a
inquietação dos campos de batalha, ou a preparação imprescindível dos
ataques.
Os estrondos se sucedem. Perturbam a paz, mesmo da retaguarda, com
a incerteza do que estará acontecendo nas nossas trincheiras. Comunicam,
também a todos imenso pesar pelo terror e morticínio causados às
trincheiras bombardeadas, percebidos através da solidariedade muito
humana, muito brasileira de todos quantos lamentam as horas de sangue e
de dor que estamos vivendo. Assim, como fazemos o serviço de segurança,
por meio de patrulhas, a Aviação, do mesmo modo, o faz no ar. Raro é o
instante em que não temos aviões sobre nossas cabeças. São sempre dois:
– um de bombardeio, pesado, cheio de bombas; o outro, de fácil manejo, de
grande velocidade, é de caça, vem garantindo a missão daquele,
defendendo–o de algum ataque inimigo. E se temos aviões o dia inteiro a
voar, temos também, o dia inteiro, o respectivo estrondo de bombas.,,
Já estamos acostumados com estes. Quando os não ouvimos, temos
um certo mal–estar, devido às hipóteses que fazemos de má sorte dos
nossos aviadores em algum combate em pleno azul infinito...

Dir–se–ia requintando esta lamentável guerra fratricida, os raids da


Aviação se vêm intensificando de parte a parte. Os comunicados oficiais
registram bombardeios, pelos aviões paulistas, de cidades indefesas, sem
objetivo militar, de enfermarias e hospitais (como os de Capão Bonito e
Guapiara, por exemplo), cujos símbolos, destacados em grande evidencia,
lembravam as convenções internacionais de Genebra... Mas, em pura perda.
A guerra civil não admite restrições. Mata–se com inenarrável perversidade.
Parece paradoxal que irmãos brasileiros em luta não respeitam o código, que
os estrangeiros estipularem como limite de atrocidades.

Travou–se, há pouco, o combate do Rio Paranapanema. O terreno,


imposto ela ideia de manobra do General Waldomiro (esforço principal ela
direita, estrada Capão Bonito – São Miguel) era–nos – já se vê –
inteiramente favorável. Tínhamos grande comandamento sobre as linhas
inimigas. Consequência: algumas horas de fogo, menos cerado do que era
de prever, e o inimigo retirou. Foi, assim, uma resistência fraca. Temos a
impressão de que o inimigo, tornados inúteis os seus grandes
entrincheiramentos, a caleiro da via férrea e da Estrada Real Capão Bonito –
Itapetininga, não teve ânimo, nem tempo, para entrincheirar–se
eficientemente na estrada para São Miguel.
Caiu por terra mais essa balela da Radio Educadora: a
inexpugnabilidade das posições do Paranapanema. Ao fim da tarde já o
inimigo estava longe. Vai, de certo, resistir em terreno propício.
Foram feitos alguns prisioneiros. As mesmas declarações sobre o
desânimo que reina nas trincheiras paulistas, ordens severas sobre
parcimônia nos gastos de munição e gasolina, pedidos das mães paulistas
(ao Q.G. Constitucionalista) no sentido de serem tirados das trincheiras os
filhos menores, troca de Forças de uma frente para outra a fim de,
estabelecendo a confusão, evitar que elas compreendam a realidade do
momento, etc. Durante o combate a Artilharia inimiga se manifestou visando,
porém, as posições do Destacamento que progride pela Estrada Real. Vimos
os arrebatamentos dos projetis.
É provável que o inimigo haja recebido munição, do estrangeiro,
burlando a vigilância sobre a fronteira. Pois os prisioneiros nos têm dito que a
referida Artilharia não vinha agindo por falta de munição. De certo como esta
terão vindo outros materiais que tanto tem feito falta ao inimigo. A sua
resistência, a ser verdadeira a hipótese, ainda irão durar muito.
Informou–nos um prisioneiro que a chegada a São Paulo de conhecido
líder das Frentes Únicas, veio reacender as fogueiras da demagogia. Esse
parlamentar veio positivar, ainda mais, o maquiavelismo dos politiqueiros do
Brasil: mesmo discursando e incentivando os paulistas à guerra, tramava
contra os mesmos acusando–os em carta ao Sr. Bernardes, de
secessionalistas e prussianistas Ainda na mesma carta fazia sentir a
necessidade de uma futura aliança de Minas ao Rio Grande, para esmagar
São Paulo, na hipótese da sua vitória. Enquanto o referido político escrevia
neste sentido ao Sr. Bernardes, afirmava aos paulistas que o Rio Grande e
Minas estavam em armas ao seu lado. Este gesto de alta traição basta para
caracterizar toda a hediondez do caráter dos profissionais da Política, único
responsáveis pelo flagelo que nos vem ensanguentando. Como se não
bastasse o seu parasitismo, usufruindo vantagens que, a rigor, competem às
classes trabalhadoras, os politiqueiros culminam a sua obra nefasta esta
caudal de sangue que nos expõe, como bárbaros, aos olhos do estrangeiro.
Máxime numa época em que todo mundo se esforça por abolir a guerra dos
meios de resolução das divergências internacionais. Haja visto toda a
energia férrea empregada para evitar que, mesmo na América do Sul, o
Paraguai e a Bolívia se empenhem em armas para resolver um litigio de
vários séculos. Enquanto é este o aspecto da Política Internacional, os
políticos da Revolução Nacional de 1930, sob alegações irrisórias que não
resistem à analise mais sumaria, fazem desencadear esta tremenda
catástrofe dentro da Pátria. Avultam entre as consequências ruinosas da
mesma: a perda irreparável de tantas vidas, ceifadas na luta inglória, a
agravação da crise econômica que atravessamos; o fortalecimento de
mesquinhos sentimentos regionalistas, prejudiciais a União Nacional; a
miséria a assolar as regiões devastadas pela guerra; o desaparelhamento da
Defesa Nacional; o atestado aos olhos do mundo, da nossa civilização
aparente. o desvio de vultosas somas para as operações de guerra, em
detrimento das populações nordestinas flageladas; o descrédito no
estrangeiro, pela fatal impossibilidade de se saldarem os compromissos
nacionais; os enormes prejuízos causados a Agricultura, Comércio e
Indústria; em suma, o afastamento das energias da pujante mocidade
brasileira, do trabalho fecundo e nobre das cidades e dos campos, para as
lides desastrosas de trincheiras inimigas dentro da própria Pátria.

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