Guerra Às Drogas e Governamentalidade Neoliberal
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3.1 Neoliberalismo
De início, temos que destacar que as controvérsias acerca do neolibe-
ralismo começam desde sua definição. Como lecionado por Wendy Brown
(2019, p.28), existe um considerável debate acerca de suas características
constitutivas, com alguns autores defendendo seu caráter amorfo e protei-
forme que lançariam dúvidas até acerca de sua existência. Contudo, ainda
de acordo com a autora, a existência de “debates intelectuais em curso sobre
seus princípios, elementos, unidade, lógica e dinâmicas subjacentes não in-
validam seu poder de criar mundos”. As ideias, as instituições, as políticas
e a racionalidade política relacionadas ao neoliberalismo, juntamente com
a financeirização, moldaram a história mundial recente, independente dos
debates acadêmicos existentes em seu entorno. De toda forma, comumente
o neoliberalismo é associado “a um conjunto de políticas que privatizam a
propriedade e os serviços públicos, reduzem radicalmente o Estado social,
amordaçam o trabalho, desregulam o capital e produzem um clima de im-
postos e tarifas amigáveis para investidores estrangeiros” (BROWN, 2019,
p.29). Com Foucault (2008a), deve-se ter claro que o neoliberalismo atual
não é a ressurgência, a recorrência de velhas formas de economia liberal, for-
mulados nos séculos XVIII e XIX e que o capitalismo teria reativado por ra-
zões relacionadas tanto à sua impotência, às crises que ele atravessa, quanto
a certo número de objetivos políticos mais ou menos locais e determinados.
David Harvey (2014, p. 12), por sua vez, entende que o neoliberalismo
corresponde a uma teoria das práticas econômicas que propõe que o bem-
-estar pode ser melhor promovido “liberando-se as liberdades e as capaci-
dades empreendedoras individuais no âmbito de uma estrutura institucio-
nal caracterizada por sólidos direitos a propriedade privada, livres merca-
dos e livre comércio”. Por conseguinte, o Estado deve agir de forma a criar
e preservar uma estrutura institucional adequada a essas práticas. Além
disso, o Estado deve manter estruturas e funções de defesa, de polícia e
legais para a proteção da propriedade individual e para garantir o funcio-
namento dos mercados, os quais se não existirem, deverão ser criados pelo
auxílio ou ação do próprio Estado. Contudo, conclui Harvey (2014, p. 12):
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-lo ser circunscrito por um Estado que o vigiará – pois bem, dizem
os ordoliberais, é preciso inverter inteiramente a fórmula e adotar
a liberdade de mercado como princípio organizador e regulador do
Estado, desde o início da sua existência até a última forma das suas
intervenções. Em outras palavras, um estado sob vigilância do mer-
cado em vez de um mercado sob vigilância do Estado.
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As ações ordenadoras, por sua vez, são as que tem a intenção de in-
tervir nas condições mais fundamentais e estruturais do mercado. Essa é a
principal e constante espécie de intervenção governamental, na medida em
que as ações reguladoras só deveriam ocorrer em determinadas situações
conjunturais. As ações ordenadoras correspondem à intervenção nas con-
dições de existência do mercado, ou seja, de acordo com os ordoliberais, a
intervenção governamental deve incidir na moldura, o que pode ser cha-
mado justamente de uma política de moldura. Nessas espécies de atuação
estatal, a intervenção não deve ocorrer sobre os preços ou sobre determina-
do setor, assegurando o apoio a esse setor pouco rentável. As intervenções
vistas como boas vão agir sobre a moldura, isto é, em primeiro lugar, sobre
a população (FOUCAULT, 2008a). Principalmente a população, mas não
apenas. As intervenções estatais atuarão sobre a população, as técnicas, a
educação, o regime jurídico, a disponibilidade dos solos, o clima, dentre
outros. Todos esses são elementos não diretamente econômicos, porém por
meio de intervenções nessas bases materiais, culturais, técnicas e jurídicas,
torna-se possível criar e modelar mercados.
As intervenções governamentais devem ser discretas nos processos
econômicos propriamente ditos e devem ser maciças no conjunto de da-
dos técnicos, científicos, jurídicos, demográficos, que vão se tornar cada
vez mais o objeto da intervenção governamental. Nesse ponto, podemos
ver a relação direta entre a governamentalidade neoliberal e a biopolítica,
da perspectiva da intervenção sobre a população, pela utilização de meca-
nismos de segurança para buscar determinados objetivos estratégicos que
não são mais apenas o fortalecimento do Estado (razão de Estado), mas sim
a criação e desenvolvimento de mercados e viabilização da concorrência.
No que tange à política social, o ordoliberalismo busca uma política
que tenha como objetivo uma relativa repartição do acesso de cada um
aos bens de consumo. Realizando um contraponto, em uma economia de
bem-estar essa política social “é concebida como contrapeso a processos
econômicos selvagens que se admite que, por si mesmos, vão induzir efei-
tos de desigualdade e, de modo geral, efeitos destruidores na sociedade”
(FOUCAULT, 2008a, p. 194-195). Além disso, concebe que a política so-
cial deva ter por principal instrumento uma socialização de certos ele-
mentos de consumo – consumo socializado ou consumo coletivo – como,
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ção com a sua família, com os seu casamento, com os seus seguros,
com a sua aposentadoria – tem de fazer dele como que uma espécie
de empresa permanente e de empresa múltipla. É portanto essa re-
enformação da sociedade segundo o modelo da empresa, das em-
presas, e isso até no seu grão mais fino.
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16 comparten los principios generales del liberalismo contemporáneo. Convergen – superando sus
diferencias– en una unidad ideológica consistente que guía sus prácticas fundamentales y que
permitiría calificarlas stricto sensu como ‘neo-liberales’
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Nesse sentido, o Estado tem “de usar seu monopólio dos meios de violência
para preservar a todo o custo essas liberdades” (HARVEY, 2014, p. 75).
A eliminação ou diminuição da pobreza para a teoria neoliberal, por
sua vez, pode ser alcançada por meio do livre mercado e do livre comér-
cio. Os setores geridos ou regulados pelo Estado devem ser privatizados e
desregulados, sob a justificativa de que essas medidas, aliadas ao incentivo
da competição, são capazes de eliminar entraves burocráticos, aumentar
a eficiência e a produtividade, melhorar a qualidade e reduzir os custos –
tanto os custos ao consumidor pelo barateamento dos produtos e serviços,
quanto pela redução da carga de impostos. Juntamente com a defesa da
liberdade individual no mercado, ocorre a responsabilização dos indiví-
duos por suas próprias ações e por seu próprio bem-estar, o que é aplicado
aos domínios do bem-estar social, da educação, da assistência à saúde, do
regime previdenciário, o que está diretamente relacionado ao “desmante-
lamento ou a privatização do Estado social” (BROWN, 2019, p. 48).
É necessária a livre mobilidade do capital entre regiões e países, com a
remoção das barreiras de livre movimento (ex: tarifas, sobretaxas, controle
ambientais, etc) exceto em áreas essenciais ao interesse nacional. Assim, “a
soberania do Estado com relação aos movimentos de mercadorias e capital
é entregue de bom grado ao mercado global” e ao lado disso “a competi-
ção internacional é tida como algo saudável, já que melhora a eficiência e
a produtividade, reduz os preços e, dessa maneira, controla as tendências
inflacionárias” (HARVEY, 2014, p. 76). No que diz respeito a relação entre
neoliberalismo e democracia, David Harvey (2014, p. 77) afirma que:
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(2014) bem nos mostra ao analisar o caso inglês, onde Margaret Thatcher
conseguiu desvincular determinados setores (como assistência médica e
educação) do Estado com relativa velocidade, e o caso sueco, onde houve
uma resistência que durou muito mais tempo.
Também é possível ver contradições no que tange às instituições finan-
ceiras, na medida em que, com relativa frequência, vislumbra-se Estados ti-
picamente neoliberais que facilitam a difusão da influência das instituições
financeiras pela desregulação, porém também é comum que esses mesmos
Estados garantam a solvência e a integridade dessas instituições. Isso se dá
porque a integridade e solidez da moeda costumam ser o pilar central das
políticas neoliberais, mas também significa que o Estado neoliberal não
pode tolerar fracassos financeiros de grande escala, mesmo quando esses
fracassos têm como origem as más decisões tomadas pelas próprias institui-
ções financeiras. Isso pode ser verificado nos grandes aportes de dinheiro
em instituições financeiras em momentos de crise, como foi verificado nos
EUA na crise financeira de 2008. Para Harvey (2014, p. 84):
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outros países da América Latina, que, por volta de 1994, aceitaram acordos
para terem o perdão de um total de 60 bilhões de dólares de suas dívidas,
contudo, como condições, o FMI exigiu a adoção por esses países de refor-
mas institucionais neoliberais, o que, ainda de acordo com Harvey (2014),
deu causa, ou pelo menos contribui em boa medida, para a crise do peso de
1995, a crise brasileira de 1998 e o colapso da economia argentina.
Sobre essa questão, deve-se destacar que a partir da década de 1980,
de acordo com Dardot e Laval (2016), verifica-se, em especial nos países da
Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE),
a adoção de um novo paradigma baseado na ideia de management (ges-
tão), que se apresenta como uma forma genérica de gestão puramente ins-
trumental e que seria válida para todos os domínios, ou seja, é aplicável
ao setor público, devendo o Estado ser flexível, reativo, fundamentado no
mercado, e voltado para o consumidor. Essa mutação da postura do Es-
tado, que passaria a ser um Estado empresarial, não visa apenas reduzir
os custos e aumentar a eficiência do Estado, na medida em que subverte o
reconhecimento de direitos sociais.
A ideia de concorrência como regente do mercado foi fortalecida e
prolongada pela importação das regras de funcionamento do mercado
concorrencial para o setor público, até que o poder governamental fos-
se pensado pela racionalidade da empresa, com uma mercantilização da
instituição pública que teve que passar a funcionar de acordo com regras
empresariais. A ideia de governança se difundiu, unindo três dimensões
cada vez mais entrelaçadas do poder, que correspondem a condução das
empresas, a condução dos Estados e a condução do mundo.
A noção de governança, de acordo com Thomas Lemke (2017, p. 49),
foi introduzida como termo acadêmico na ciência política e na teoria or-
ganizacional na década de 1980 e, em um sentido genérico, corresponde a
“qualquer estratégia, processo, procedimento ou programa para controlar,
regular ou gerenciar problemas em um nível global, nacional, local ou or-
ganizacional”. A governança envolve um deslocamento do foco teórico e
analítico das instituições para os processos de comando e anuncia a erosão
da democracia. Nesse sentido, de acordo com Dardot e Laval (2016, p. 276):
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Por essa lógica, os Estados são postos sob o controle da comunidade fi-
nanceira internacional, de organismos de expertise e de agências de controle
de classificação de riscos. A qualidade da gestão e da ação pública de um país
passa a ser julgado pelos seus credores e por investidores externos, o que por
óbvio faz com que a qualidade seja analisada a partir dos interesses dessas
partes interessadas e a adoção dos ajustes estruturais (implementação de po-
líticas neoliberais) que influenciam diretamente nesse julgamento e na clas-
sificação do risco do país. Ou seja, podemos ver que a governança de Estado
“consiste em pôr os Estados sob o controle de um conjunto de instâncias
supragovernamentais e privadas que determinam os objetivos e os meios da
política que deve ser conduzida” (DARDO; LAVAL, 2016, p. 277). O discurso
de governança tecnocrática e administrativa, a partir de uma analítica do
governo, pode e deve ser vista como uma arte de governo que está enraizada
em um conceito liberal de Estado (LEMKE, 2017).
A empresa se torna um dos fundamentos da governança da economia
mundial com apoio dos Estados locais e são os imperativos e as lógicas das
empresas privadas que comandam as agendas dos Estados. Dessarte, as
políticas macroeconômicas são, em grande medida, o resultado de codeci-
sões públicas e privadas, porém o Estado continua mantendo certa autono-
mia em alguns domínios, o que faz com que não se retire, mas sim exerça
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Em que pese as variações das políticas dos estados tidos como neoli-
berais, bem como as contradições existentes, pelo menos aparentes, e que
variam de acordo com situações específicas e conjunturais, é possível iden-
tificar algumas características que habitualmente são evidenciadas nesses
Estados, mesmo que em graus diferentes. Essas características e políticas
podem ser evidenciadas tanto em governos de direita quanto em governos
da “esquerda moderna”, como nomeados por Dardot e Laval (2016). Esta
esquerda moderna se apresenta como alternativa à direita neoliberal pelo
fato de pretender dar um quadro sólido à economia de mercado, porém
acaba por perpetuar políticas tipicamente neoliberais, a partir da defesa de
que o neoliberalismo é uma realidade irreversível.
Levando-se em consideração que o neoliberalismo não propõe a não
intervenção do Estado, mas sim a transformação da ação pública, os Esta-
dos tornam-se uma esfera também regida pela concorrência e submetida a
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A transparência que hoje se exige dos políticos é tudo menos uma de-
manda política. Não se reivindica a transparência para os processos
políticos de decisão, nos quais nenhum consumidor está interessado.
O imperativo da transparência serve, acima de tudo, para desmasca-
rar ou expor a classe dos políticos, para transformar indivíduos em
objeto de escândalo. A reivindicação por transparência pressupõe a
posição de um espectador a ser escandalizado. Não é uma demanda
de um cidadão engajado, mas de um espectador passivo. A participa-
ção ocorre em forma de reclamação e queixa. (HAN, 2018, p. 21-22)
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dentre outras. Esse governo empresarial tem como um dos seus fundamen-
tos o controle do trabalho dos agentes públicos por avaliações sistemáticas
de desempenho e a contribuição direta dos cidadãos-clientes com o custo
dos serviços, mudando também o comportamento do consumidor de servi-
ços públicos, pois este é convidado a regular sua demanda.
Outro fenômeno que está diretamente relacionado com o neolibera-
lismo é a financeirização, que, em síntese, pode ser entendido como “um
processo no qual os mercados financeiros, as instituições financeiras e as
elites financeiras passam a ter peso crescente nas políticas econômicas e
nos seus efeitos” (LAVINAS; ARAÚJO; BRUNO, 2017, p. 06). Algumas ca-
racterísticas podem ser evidenciadas nesse regime de acumulação finan-
ceirizada, como expansão dos ativos financeiros frente a economia real;
proliferação de ativos financeiros e ascendência da lógica acionária; pri-
mazia da especulação em detrimento dos investimentos; prevalência dos
imperativos financeiros sobre os interesses da produção no setor privado;
aumento da desigualdade em função dos ganhos financeiros das elites; au-
mento do consumo das famílias com base no crédito e rápida e acentuada
elevação do grau de endividamento das famílias; penetração da finança em
todas as dimensões da reprodução da vida, com a substituição da provisão
pública por seguros imperfeitos para os riscos que pretendem cobrir e am-
bientes macroeconômicos instáveis (LAVINAS; ARAÚJO; BRUNO, 2017).
Apesar de muitas dessas características poderem ser evidenciadas an-
tes mesmo da guinada neoliberal, houve um elevado aumento e intensifi-
cação das mesmas com a consolidação dos Estados neoliberais, não poden-
do ser negada a relação direta entre neoliberalização e financeirização. Ao
mesmo tempo, deve ser destacado que a financeirização corresponde a um
processo context-specific, apresentando diversas formas e ritmos, em espe-
cial entre os países tidos como emergentes (LAVINAS; ARAÚJO; BRUNO,
2017). Desde a década de 1980, várias das características que seriam poste-
riormente documentadas pela literatura internacional sobre os processos
de financeirização já se encontravam presentes no Brasil:
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mos a tratar dos efeitos práticos gerados pelo discurso e pelas técnicas neo-
liberais, assim considerados como manifestações e técnicas do biopoder, na
medida em correspondem à gestão da vida dos indivíduos e da população,
com a consequente aplicação de sua máxima de fazer viver e deixar morrer.
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