Usos Sociais Da Ideia de Cultura
Usos Sociais Da Ideia de Cultura
Usos Sociais Da Ideia de Cultura
VII
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A polissemia da palavra "cultura" permite jogar ao mesmo tempo
com o sentido nobre, "cultivado", do termo e com o seu sentido
etnológico particularista. Hoje qualquer grupo social pode reivin-
dicar uma cultura própria. Toda a forma de expressão colectiva passa a
ser "cultura". A cultura fragmenta-se, a cultura desfaz-se em migalhas.
Evocam-se assim, por exemplo, a "cultura hip hop", a "cultura
futebolística" e, de modo ainda mais contestável, a "cultura do micro--
ondas", a "cultura do telemóvel", etc. Ora, estas práticas e aquilo que
implicam não podem ser assimiladas a esses sistemas globais de
interpretação do mundo e de estruturação dos comportamentos que
correspondem àquilo que a antropologia entende por "cultura". A
autoproclamação de uma cultura parcelar é muitas vezes uma reacção a
uma certa dominação social. Considera-se que a afirma-ção: "é a
minha cultura" nobilita e apaga de certo modo os sinais de
inferioridade, porque, neste uso do termo, faz-se como se todas as
culturas fossem dotadas de um valor igual.
Um exemplo particularmente significativo de manipulação
semântica é fornecido pelas grandes écoles * francesas que recente-
mente substituíram o termo de "espírito" ("espírito da escola") pelo de
"cultura". No entanto, entre esses estabelecimentos de ensino, os que
se referem de modo mais repetitivo, senão mais obsessivo, à sua
cultura própria são precisamente os que não pertencem ao círculo
restrito dos mais prestigiados, como é o caso da Ecole nationale
supéríeure des arts et métiers (Escola Nacional Superior das Artes e
Ofícios) (Cuche, 1985 e 1988). No entanto, num outro registo, através
de usos igualmente arbi-trários, a palavra "cultura" pode assumir uma
conotação franca-mente negativa, como na expressão "cultura de
morte", utilizada com frequência, desde 1995, pelo papa João Paulo
II ao denunciar o recurso ao aborto; ou na expressão "cultura do
ódio", de que se serviu, em 1988, Jean-Pierre Chevènement, então
ministro do Interior, para estigmatizar a violência de certos grupos
de jovens dos subúrbios.
* As grandes écoles são um conjunto altamente prestigiado de estabelecimentos do
ensino superior francês destinados à formação de quadros de direcção política,
administrativa e técnica. (N. do T.)
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Os poucos exemplos que acabamos de evocar bastam para
mostrar que o uso incontrolado da noção de cultura é causa de uma
certa confusão conceptual. Está evidentemente fora de questão
passarmos aqui em revista todos os usos actuais da palavra. Em con-
trapartida, o exame de alguns casos recentes e significativos de
aplicação do conceito de cultura a um campo particular permitirá
tornar manifesto o desfasamento que se produz cada vez mais entre o
uso social, quer dizer ideológico, e o uso científico do conceito.
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dada sociedade. A este primeiro nível de reflexão, a noção de cultura
política tem muito a ver com aquilo a que outrora se chamava o
"carácter nacional".
O que fez o sucesso da noção foi a sua orientação comparatista.
Considerava-se que permitiria compreender o que favorecia ou
entravava a plena eficácia da instauração de instituições modernas.
Dois investigadores americanos, Gabriel Almond e Sidney Verba,
submeteram à comparação cinco países (Estados Unidos, Grã--
Bretanha, Alemanha, Itália e México) a partir da análise de diversas
formas de comportamentos políticos. Chegam a uma tipologia das
culturas e das estruturas políticas que funcionalmente lhes são
adaptadas: à cultura "paroquial", centrada nos interesses locais, cor-
responde uma estrutura política tradicional e descentralizada; à cultura "de
sujeição", que alimenta a passividade nos indivíduos, corresponde
uma estrutura autoritária; por fim, a cultura "de participação"
acompanha a estrutura democrática. Todas as culturas políticas con-
cretas são mistas, podendo nelas coexistir os três modelos. Mas a
maior ou menor adequação entre o modelo dominante e a estrutura
explica o funcionamento mais ou menos satisfatório do sistema
político e, em particular, das instituições democráticas (Almond e
Verba, 1963).
A análise foi-se afinando progressivamente. E mais que tentarem
caracterizar, de maneira forçosamente esquemática, as culturas polí-
ticas nacionais, os sociólogos interessaram-se cada vez mais pelas
diversas subculturas políticas que existem numa mesma sociedade,
uma vez que todas as nações contemporâneas conhecem uma plu-
ralidade de modelos de valores que orientam as atitudes e os com-
portamentos políticos. (...).
O desenvolvimento da antropologia política conduziu, por
outro lado, à reconsideração da própria ideia do político, que não
tem o mesmo sentido em todas as sociedades. As concepções do
poder, do direito, da ordem podem revelar-se profundamente di-
vergentes porque determinadas pelas suas relações com os outros
158
elementos dos sistemas culturais considerados. O político, como
categoria autónoma de pensamento e de acção, não existe de ma-
neira universal, o que complica a análise comparativa. Nem em
todas as sociedades existe necessariamente uma cultura política
reconhecida e transmitida como tal. Procurarmos compreender as
significações das acções políticas numa dada sociedade é referirmo-nos,
inevitavelmente, ao conjunto do sistema de significações que é a
cultura da sociedade estudada.
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podiam ter da sua empresa como instituição forte, destinada a per-
durar indefinidamente, degrada-se pouco a pouco e ruirá com a
irrupção da crise económica e as reestruturações industriais.
Trata-se, portanto, para as equipas de direcção, nos anos 80, de
reabilitarem a empresa por meio de um discurso humanista, a fim de
obterem dos assalariados comportamentos leais e eficazes. No
discurso dos gestores, joga-se com a polissemia do termo "cultura",
embora seja o sentido antropológico a predominar. Mas o uso
antropológico mais frequentemente retido é o mais contestável, o
que remete para uma concepção da cultura como relevando de um
universo fechado, mais ou menos imutável, caracterizando uma
colectividade pretensamente homogénea, de contornos bem deli-
mitados. Nesta concepção redutora da cultura, considera-se que esta
determina as atitudes e os comportamentos dos indivíduos. A cultura
de empresa, nesta perspectiva, é vista como impondo o seu sistema
de representações e de valores aos membros da organização.
Em última análise, deste ponto de vista, a cultura de empresa não é
uma noção analítica, mas uma manipulação ideológica do conceito
etnológico de cultura, destinada a legitimar a organização do trabalho
no interior de cada empresa. A empresa pretende definir a sua cultura
como define os seus empregos: por outras palavras, aceitar o emprego é
aceitar a cultura da empresa. (...).
161
O interesse da análise de Sainsaulieu nem por isso é menos o de ter
demonstrado que, no interior de uma mesma empresa, coexistiam e
se entrecruzavam diferentes culturas.
O outro mérito dos trabalhos de Sainsaulieu foi terem posto em
evidência que a ausência de qualificação não significava ausência de
cultura própria nem incapacidade de qualquer iniciativa de ordem
cultural na empresa. Outras investigações mostraram de igual modo que
o operário não dependia totalmente da organização, nem mesmo nas
situações mais alienantes. Os sociólogos do trabalho tinham num
primeiro tempo, nos anos 50 e 60, acentuado o carácter alienante
do trabalho taylorizado. Mas a alienação nunca é total, e a alienação
social não se confunde necessariamente com a alienação cultural.
Philippe Bernoux (1981) desenvolveu, pelo seu lado, uma
análise dos comportamentos de apropriação do universo do trabalho
pelos trabalhadores mais desmunidos no plano da qualificação e do
poder. Estes são práticas, as mais das vezes, ilegítimas, por vezes
dificilmente detectáveis, mas significativas de uma resistência cultural
ao despojamento absoluto pela organização. A "apropriação"
manifesta-se por diversas estratégias que, todas elas, visam salva-
guardar um mínimo de autonomia. Não é nem um acto puramente
individual nem uma reacção (abstracta) de classe, mas um compor-
tamento que remete para um grupo de pertença, quer dizer, um
grupo de trabalho concreto que partilha uma cultura comum, feita de
uma linguagem comum, de um modo de agir comum, de sinais de
reconhecimento, de uma identidade comum, etc. As práticas de
apropriação são numerosas e diversas. Referem--se ao próprio trabalho
e à sua organização, ao espaço e ao tempo do trabalho que vai ser, na
medida do possível, recomposto de outra maneira, e até mesmo ao
produto do trabalho. Trata-se de opor à lógica tayloriana uma outra
lógica cultural do trabalho, baseada na independência e no prazer.
Uma ilustração particularmente significativa desta vontade de
apropriação é fornecida pela prática do "biscato por conta própria".
Fazer um "biscato por conta própria", como observou Michel de
Certeau, não é pôr em questão o trabalho em si, mas uma certa
162
organização do trabalho. Não é tanto subtrair bens (de um modo
geral, utilizam-se apenas restos) como subtrair tempo à empresa para
não se ficar encerrado no tempo "organizado", cronometrado. É
afirmar, por meio de uma "obra", um saber-fazer próprio. E afirmar
uma capacidade de criar, de inventar. É opor uma lógica do
desinteresse, da gratuitidade, ou inclusivamente do dom (raramente é o
próprio a conservar os produtos do seu "biscato por conta própria"),
à lógica mercantil do lucro. Mas o "biscato por conta própria" só é
possível graças à cumplicidade dos outros membros do grupo. Só
quando uma cultura comum liga uns aos outros os membros de um
mesmo grupo de trabalho o "biscato por conta própria" se torna
realizável. (...)
Seria, sem dúvida, mais justo falar de "microcultura" de grupo. Se a
cultura de uma empresa continua a ser difícil de definir, é sem dúvida
mais plausível para o investigador identificar microculturas no interior
da empresa. As microculturas que são "inventadas" pelo pessoal
mostram bem que a cultura de empresa não é um dado prévio que os
trabalhadores só teriam que adoptar. Se a própria empresa pode ser
produtora de sistemas culturais, isso não significa que a cultura seja
uma pura e simples emanação da gestão. Quem "fabrica" a cultura de
empresa? Todos os actores sociais, decerto, que pertencem à empresa.
Como "se fabrica" a cultura de empresa? Decerto que não por meio de
uma decisão autoritária, mas através de todo um jogo complexo de
interacções entre os grupos que compõem a empresa.
Para podermos definir a cultura de uma empresa, teremos assim de
partir das microculturas dos grupos que dela fazem parte. Estas
microculturas, tal como a própria organização, asseguram o
funcionamento quotidiano das oficinas, dos escritórios, delimitam ter-
ritórios, definem ritmos de trabalho, organizam as relações entre
trabalhadores, imaginam soluções para os problemas técnicos da
produção. Evidentemente, estas microculturas criam-se tendo em
conta o quadro próprio da empresa, nomeadamente as imposições da
organização formal do trabalho e da tecnologia utilizada. Mas não são
determinadas por estes dois elementos; dependem também
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dos indivíduos que constituem o grupo de trabalho. Uma mesma
organização formal dobrada por uma mesma tecnologia não desem-
boca necessariamente numa microcultura idêntica: as características
do grupo de trabalho desempenham um papel fundamental na
produção cultural. As microculturas informais, produzidas pelos
próprios assalariados, são ao mesmo tempo criadoras e reguladoras das
microcomunidades de trabalho (Liu, 1981).
Em última análise, a "cultura de empresa" situa-se na intersecção das
diferentes microculturas presentes na empresa. Estas microculturas não
se encontram necessariamente em harmonia umas com as outras. A
sua entrada em contacto não se faz forçosamente sem choque.
Surgem relações de força culturais que traduzem, aqui como noutros
lugares, paradas sociais. (...)
De resto, não podemos estudar a cultura de empresa indepen-
dentemente do meio circundante. A empresa não constitui um uni-
verso fechado que possa segregar uma cultura perfeitamente autó-
noma. Muito pelo contrário, a empresa moderna depende em
grande medida do ambiente que a rodeia, tanto no plano econó-
mico como no plano social e cultural. Hoje, uma análise sociológica da
empresa já não pode abstrair do contexto. Ou seja, a cultura de
empresa não pode ser reduzida a uma simples cultura organizacional.
Toda uma série de investigações puseram assim em evidência o
impacto das culturas nacionais sobre as culturas de empresa (Iri-
barne, 1989). A partir de inquéritos comparativos, foi possível
demonstrar que empresas idênticas, estabelecidas em países dife-
rentes, funcionavam segundo sistemas culturais diferentes. Michel
Crozier (1963) foi um dos primeiros a pôr em destaque a existência
de um modelo cultural francês de organização de empresa, marcado
pelo formalismo burocrático e a extrema centralização das estruturas e
correspondendo a uma tendência profunda da sociedade francesa.
Dizê-lo não é voltar necessariamente a cair numa explicação
"culturalista", simplista. As culturas nacionais não são imutáveis, por
um lado, e, por outro, não determinam de maneira absoluta as
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culturas de empresa. A relação entre os dois aspectos é também
função das circunstancias históricas da situação social e política. As
investigações sociológicas e etnológicas revelam a complexidade
daquilo a que se chamou a "cultura de empresa". (...) É ao mesmo
tempo o reflexo da cultura ambiente e uma produção nova, elaborada
no interior da empresa através da multiplicidade das interacções que
existem a todos os níveis entre os que pertencem à mesma organização.
Se não deixa de ter interesse falar-mos de cultura de empresa, no
sentido etnológico do termo "cultura", é por referência à resultante
complexa num dado momento de um processo de construção cultural
nunca terminado, pondo em jogo grupos de actores e factores muito
diversos, sem que possa ser designado um qualquer grupo como o
único condutor do jogo.
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tacão da sociedade, podendo revelar-se, perimentada por cada indivíduo de se
consequentemente, a causa de um enfra- reconhecido por aquilo que pretende ser,
quecimento da unidade nacional. Longe através de uma identidade que concebe
de favorecer a integração social, o mul- as mais das vezes de maneira plural (Tay-
ticulturalismo engendraria a prazo a de- lor, 1994).
sintegração da sociedade. O multiculturalismo pode consistir,
Existem, na realidade, diferentes ver- portanto, em ter em conta as diferenças
sões do multiculturalismo. Algumas mais étnicas, religiosas e culturais para orga-
conservadoras, outras mais progressistas. nizar a sua coexistência através da troca
Algumas mais autoritárias, destinadas e do respeito de referências e de regras
antes do mais a organizar a coexistência comuns a todos, que transcendem as
pacífica das comunidades, ou, por outras pertenças particulares. O multiculturalis-
palavras, a assegurar a paz social. Outras, mo, assim compreendido, esforça-se por
mais democráticas, procurando promo- conciliar os valores universais e a consi -
ver a participação social e política de deração pelos particularismos. Não se
todos os minoritários. opõe ao universalismo que afirma a uni -
O multiculturalismo não implica for- dade da humanidade e a universalidade
çosamente o comunitarismo, que signifi- dos direitos do homem, mas apenas ao
ca o encerramento em si própria de cada "universalismo abstracto" que não quer
comunidade. O direito de cada indiví- ver na humanidade mais que indivíduos
duo a reconhecer a sua pertença e a sua idênticos, abstraindo das suas particula-
identificação a um grupo étnico, reli- ridades, apesar de estas serem a maneira
gioso ou cultural pode ser apresentado real como aqueles estão no mundo.
como um direito fundamental. Numa O universalismo de que se reclama
democracia, parece difícil afirmar que a esta concepção aberta do multicultura -
igualdade é respeitada se os membros dos lismo é um universalismo concreto, que
grupos minoritários não tiverem a mes- não descura a formidável diversidade,
ma possibilidade que os dos grupos incessantemente renovada, das expres -
maioritários de aprenderem a sua língua sões da condição humana, sem por isso
e a sua história. Uma certa concepção do perder de vista que a pertença que su -
multiculturalismo, afirma Charles Taylor, planta absolutamente todas as outras é a
não se opõe ao individualismo.As reivin- pertença à humanidade que implica para
dicações multiculturais não são necessa- cada indivíduo direitos e deveres idênti-
riamente a expressão de um retraimento cos.Toda a questão do multiculturalismo
comunitário. Podem, pelo contrário, em reside na dificuldade de conciliar os di-
bom número de casos, manifestar indi- reitos do homem e o direito de todos os
vidualização crescente da sociedade e a indivíduos de pertencerem a colectivi-
necessidade, cada vez mais manifesta, ex- dades culturais particulares.
167
A noção de cultura de origem tem outros inconvenientes. É
semanticamente fluida e, por isso, fracamente operatória. Com efeito,
quando se faz referência à "origem", que origem se pretende designar?
A origem nacional? Regional? Local? Étnica? Social? As mais das
vezes nos comentários sobre a cultura dos imigrados, a "cultura de
origem" de um grupo de migrantes é confundida com a cultura
nacional do seu país de origem. Mas surge, neste caso, uma nova
dificuldade: trata-se de uma confusão que desconhece pro-
fundamente o carácter heterogéneo das culturas nacionais; (...). Por
outro lado, recorrer a propósito dos imigrados à noção de cultura de
origem equivale na generalidade não só a subestimar a
transformação cultural produzida pela migração nos expatriados,
mas também a ocultar a transformação cultural que a sociedade de
origem conhece. Toda a cultura é evolutiva, mas talvez o seja ainda
mais a de uma sociedade que se confronta com uma emigração forte.
As condições sociais e económicas que conduziram numerosos
indivíduos a emigrar são portadoras elas próprias de transfor-mações
culturais na sociedade de partida. Os países de emigração são muitas
vezes países "em transição", em construção ou em re-construção. E
precisamente por isso que os migrantes experimentam muitas vezes
um "desfasamento" cultural, fonte de mal-entendidos, quando
regressam ao país (...), tanto no caso de um regresso provisório (pelo
tempo de umas férias) ou definitivo. O desfasamento é duplo: o país
mudou, eles próprios mudaram. Os emigrantes já não reconhecem o
seu país e são eles próprios percebidos como diferentes pelos seus
compatriotas. Daí, a dificuldade do regresso, que se assemelha sempre a
uma nova migração. Se quiséssemos a todo o preço conservar a
expressão "cultura de origem", não poderíamos, em rigor, utilizá-la
a não ser para designar a cultura do grupo de pertença no
momento da partida. Um outro impasse a que conduz a noção de
cultura de origem é o desconhecimento da diversidade social dos
migrantes vindos de uma mesma sociedade. Uma vez que nem todos
ocupam a mesma
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posição social, não podem ter a mesma relação com a "cultura de
origem". Antes ainda da sua migração, os futuros emigrantes conhe-
ceram trajectórias sociais e culturais diferentes. Alguns participam de
uma emigração "comunitária", quer dizer mais ou menos social e
culturalmente controlada pela comunidade aldeã camponesa.
Outros fizeram a escolha de uma emigração mais individualista e
muitas vezes já optaram, muito antes de partirem, por uma espécie de
"socialização por antecipação" que os levou a adoptarem um certo
número dos modos de comportamento característicos das sociedades
cujas urbanização e individualização são mais desenvolvidas. A
emigração familiar, pelo seu lado, é ainda um outro caso de figura.
Como Abdelmalek Sayad pôs em evidência no que se refere à migração
argelina, há diferentes tipos de emigração que são função das diferentes
situações sócio-históricas (Sayad, 1977). (...)
Mais que a cultura de origem, são as estruturas sociais e familiares
do grupo de origem a que os migrantes pertencem que permitem
explicar as diferenças nos modos de integração e de aculturação, no
interior da sociedade de acolhimento, de imigrados provenientes de um
mesmo país. Assim, por exemplo, segundo venham de comunidades
camponesas tradicionais ou de grupos sociais urbanos, a trajectória de
inserção dos imigrados será sensivelmente diferente, como pôde
estabelecer Maria Beatriz Rocha Trindade no caso dos portugueses de
França. Em Portugal, nem todos os portugueses partilham o mesmo
sistema de valores nem os mesmos modos de comportamento. Os que
pertencem a comunidades camponesas fortemente estruturadas do
Norte ou do Centro esforçar-se-ão, uma vez em França, por se
afastarem o menos possível do modo de vida aldeão e por manterem
uma ligação estreita com a aldeia de origem. Pelo contrário, os que
chegam da província do Sul que é o Algarve e se encontram desde
sempre em contacto com o mundo urbano, trabalhando e/ou
residindo na cidade, e com a presença turística de estrangeiros,
muito importante na região, adoptaram já atitudes e maneiras de
viver que não são muito distantes das que vão
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encontrar em França. Neste último caso, a emigração inscreve-se no
prolongamento de uma evolução social e cultural, já largamente
encetada em Portugal (Rocha Trindade, 1977). Como vemos no caso
dos imigrados, a cultura de origem nada explica por si própria. De um
ponto de vista analítico, só pode ser tida em conta a relação que os
imigrados mantêm com essa cultura. Todavia, esta relação varia
segundo os grupos de migrantes e segundo as situações dos
relacionamentos interétnicos que aqueles conheceram ao longo da sua
história. É, em particular, profundamente determinada pela natureza
dos relacionamentos que existem ou existiram, (...), entre a cultura
do país de origem e a cultura do país de acolhimento, sobretudo no
caso de intervirem ou terem intervindo relacionamentos de tipo
colonial. No confronto cultural da situação colonial, certas sociedades
indígenas tinham mais trunfos que outras em matéria de resistência à
dominação cultural da potência ocupante. Tal é o caso, nomeadamente,
das sociedades islamizadas dotadas de estruturas estatais. Jacques
Barou mostrou que em França, nos anos 70, os africanos muçulmanos
do Sahel, os soninkê sobretudo, conseguiam, graças ao seu orgulho
étnico e à sua confiança no seu próprio sistema social e cultural,
recompor um modo de organização social e de comportamento
bastante próximo do da sua sociedade saheliana. Pelo contrário, os
africanos da Costa Ocidental, vindos de sociedade segmentares mais
vulneráveis, que haviam conhecido uma penetração cultural francesa
muito mais profunda, estavam sobretudos preocupados, ao chegarem a
França, em se adaptarem ao país da "civilização universal", manifestando
dentro dele o seu avançado grau de aculturação e rejeitando qualquer
referência explícita aos modelos da sua cultura de origem (Barou,
1976). (...) no caso dos migrantes do Sahel, não devemos perder de
vista que, se a continuidade com a cultura de origem não se rompe, é
também porque se trata de uma migração "comunitária", em cujo
quadro aqueles que emigram partem com o assentimento da
comunidade camponesa e por um período determinado, antes de
serem revezados por outros. Os migrantes são sobretudo jovens
celibatários, enviados para França de certo modo em "comissão de
170
serviço", a fim de assegurarem, por meio da transferência de grande
parte dos seus salários, recursos complementares à comunidade
aldeã. Quando, a partir de 1974, as fronteiras de França se fecharem à
imigração e terminar a rotação das partidas e das chegadas, os que então
vão ficar em território francês deixarão de poder manter por muito
mais tempo uma continuidade tão fiel como antes em relação à
cultura de origem, pois que se verão obrigados, para poderem continuar
a auxiliar a aldeia, a instalarem-se duradouramente em França, sem a
possibilidade de serem revezados como antes. Terá então início o
processo de reagrupamento familiar no país de acolhimento, com todas
as consequências que esse processo pode ter sobre a evolução dos
modelos culturais, devido nomeadamente à socialização e à
escolarização das crianças no quadro da escola francesa.
Se a noção de cultura de origem se revela ao exame de uso
delicado e, em última análise, pouco operatório no que se refere aos
migrantes propriamente ditos, torna-se afortiori totalmente inadequado
o recurso à noção no caso dos filhos daqueles, nascidos já no país de
imigração, que recebem muitas vezes (erroneamente, uma vez que
eles próprios não são migrantes) o nome de imigrados da "segunda
geração". (...)
Uma cultura não se transmite à maneira dos genes. O que
equivale a dizer que uma cultura não é um "dado" mas um "cons-
truído". Hoje, quanto a este ponto, existe sem dúvida um acordo
bastante generalizado. Pelo menos, aparentemente. Porque, se
reconhecer que a cultura é uma construção social corresponde sim-
plesmente a afirmar o carácter adquirido e não inato da cultura, a
reflexão não terá realizado grandes progressos. Se é claro que a trans-
missão de uma cultura não releva da "hereditariedade", é importante
compreender que não releva também da "herança", uma vez que a
cultura não pode ser confundida com um património que seria
legado de geração em geração, mas é uma elaboração quase
permanente em relação com o quadro social ambiente e as modifi-
cações deste último. É por isso que centrar o debate sobre a cultura dos
imigrados na questão das "origens" ou das "raízes" é encerrá-
171
- lo numa problemática, senão do inato, pelo menos do "herdado", e,
portanto, proíbe, de facto, que se pense a cultura como uma
construção constantemente evolutiva. Por outro lado, para se
analisarem as transformações que as cul-turas dos imigrados
conhecem, é necessário terem-se em conta as características do
quadro cultural em que as trocas culturais se produzem. O quadro
nacional orienta as trocas e, por conseguinte, orienta as transformações
culturais. Em termos mais concretos, os modelos de integração
nacional próprios de cada Estado influenciam consideravelmente o
devir social e cultural dos imigrados. Para tomarmos apenas um
exemplo, os migrantes italianos evoluíram de modos muito diferentes
em França e nos Estados Unidos, como Dominique Schnapper pôde
pôr em evidência. Nos Estados Unidos, onde existe um modelo de
pluralismo cultural que admite um certo "federalismo cultural", os
imigrantes italianos desenvolvem uma cultura italo-americana muito
viva e bem detectável no interior de espaços urbanos próprios, os
bairros ditos da "pequena Itália". Em contrapartida, em França, onde
o modelo é o do "centralismo cultural", que visa a assimilação dos
estrangeiros que se estabelecem duradouramente no país, os
imigrados italianos adoptam na esfera pública os modos de
comportamento dos franceses da mesma categoria social e são levados a
concentrar na esfera privada doméstica os seus esforços tendentes à
salvaguarda de algumas tradições italianas, sem que lhes seja possível,
até mesmo a esse nível, evitarem a prazo uma transformação inelutável
(Schnapper, 1974). Recusar o uso generalizado da noção de cultura de
origem nem por isso implica que se abstraia da referência frequente que
às suas origens fazem numerosos migrantes, nem que se desconheça o
que essa referência pode significar para eles. Evocar as origens, a aldeia,
o país é fundamentalmente declinar uma identidade em que o próprio
se reconhece. E, para os filhos e os netos de imigrados, definirem-se por
referência às origens dos seus pais ou dos seus avós é inscreverem-se
numa história familiar, participarem numa memória colectiva. O que é
sem dúvida uma necessidade no plano psicológico para cada indivíduo,
como para todo o grupo social, que exige
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saber de onde vem. Há muito efectivamente uma aldeia, um país de
origem, que se encontram no começo da história migratória do grupo
e que podem servir de suporte a um projecto de regresso, projecto
que tende todavia a tornar-se cada vez mais mítico à medida que o
tempo da expatriação se alonga. Não é, contudo, possível confundir a
evocação destas origens, bem reais, com a afirmação ilusória de uma
"cultura de origem" que se imagina como tendo sido conservada
quase intacta, sejam quais forem o meio circundante e as experiências
feitas na situação migratória.
É evidente que se verifica em certos imigrados um fortíssimo
apego às tradições originais. Para retomarmos um exemplo já citado, o
dos camponeses portugueses imigrados na região parisiense,
observamos que se esforçam por conservar o mais fielmente possível os
seus costumes alimentares: comerem como no seu país, comerem os
produtos do seu país, é afirmarem que tudo continua como antes, apesar
da expatriação. Assim, fazem vir boa parte da sua alimentação
quotidiana da sua aldeia em Portugal, ao qual se mantêm ligados por
um vaivém automóvel semanal. (...) É aqui reconhecível um
símbolo forte de apego à terra nutriente original, característico das
sociedades camponesas. Tais práticas não bastam, no entanto, para
garantir a continuidade cultural. As práticas tradicionais vêem-se,
progressivamente, cada vez mais descontextualizadas; perdem o
carácter funcional que tinham no conjunto cultural inicial. Podem, em
certos casos-limite, não ser mais que a expressão de um
"tradicionalismo do desespero" de indivíduos que têm consciência de
terem tido de abandonar o essencial do seu sistema cultural. Mas nem
por isso essas práticas são insignificantes. Manifestam a vontade de
conservar uma ligação com aqueles que ficaram na aldeia, no país.
Entendem introduzir a prova de uma fidelidade aos que lá vivem:
comer como eles, comer os mesmo produtos que eles, as mesmas
batatas semeadas nos mesmos campos da aldeia, é de certo modo
comungar com eles, é abolir a distância que separa, é manter,
portanto, o laço comunitário frente
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e contra tudo. Abolir a distância é o que faz de facto o vaivém auto-
móvel semanal dos imigrados portugueses atrás evocados, que, do
mesmo modo que o vaivém da lançadeira de um tear, liga e religa,
num movimento alternado aparentemente incessante, os fios do
tecido social, evitando assim a ruptura. O que está aqui em jogo é
mais a salvaguarda do laço comunitário, efectivamente obtida no
essencial, que a reprodução da cultura de origem, que não pode
deixar de ser em grande parte ilusória.
Mas nem todos os migrantes têm o mesmo apego às tradições. E o
investigador não é obrigado a privilegiar, na atenção que concede às
práticas culturais dos imigrados, as práticas consideradas tradicionais.
Antes de qualquer análise, seria de resto necessário perguntarmo-nos
o que é uma "tradição cultural". As tradições culturais não existem
em si. Só existem relativamente a uma certa ordem social, que se funda
em relações sociais e funda relações sociais, das quais as tradições são
expressão. Uma vez que nem todos os indivíduos têm a mesma posição
nestas relações sociais, não podem ter todos o mesmo interesse em
manter as tradições. A emigração pode ser, de resto, em certo número
de casos, um meio de escapar a uma ordem social considerada opressiva
e a tradições experimentadas como asfixiantes. O discurso sobre o
"respeito pelas tradições" é sempre um discurso de legitimação de uma
certa ordem social.
Uma tradição só tem sentido no interior de um contexto social
particular. Se o contexto se transforma e se conserva apesar de tudo essa
tradição, será então impossível escapar à necessidade da sua
reinterpretação em função do novo contexto. Toda a tradição é assim
constantemente manipulada. É possível até que tenha desaparecido e
sido reinventada: mas tratar-se-á ainda da mesma tradição? As
aparências são enganadoras. Não sendo já a situação a mesma, a sua
função não pode também ser a mesma. Em certos casos, a pretensão é
pura e simplesmente inventada em função das necessidades de uma
causa particular.
Em última análise, as culturas dos migrantes são culturas "mistas",
produzidas através de uma mestiçagem cultural que apresenta para o
observador a vantagem de se realizar praticamente diante dos
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seus olhos. O que diz bem o interesse que tais culturas apresentam para
a investigação. O estudo dos migrantes permite apreender,
praticamente "em directo", o modo como se fabrica uma cultura,
como, a partir da troca, se opera a amálgama que desemboca numa
nova configuração cultural, misturando o antigo ao novo num sistema
profundamente original. Sendo a mistura cultural quase ime-
diatamente perceptível no caso dos migrantes, o investigador que
procura compreender como se forma e se transforma uma cultura
descobre nos fenómenos migratórios um domínio privilegiado de
investigação.
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