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Territórios liminares:

violências, direitos e sensibilidades

Volume 1

COLEÇÃO

América Latina interdisciplinar e plural -


Programa de Pós Graduação Interdisciplinar em
Estudos Latino-Americanos
2
Diana Araujo Pereira
Laura Fortes
Lívia Santos de Souza
Simone Beatriz Cordeiro Ribeiro
(Organizadoras)

Territórios liminares:
violências, direitos e sensibilidades

Volume 1

COLEÇÃO

América Latina interdisciplinar e plural -


Programa de Pós Graduação Interdisciplinar em
Estudos Latino-Americanos

3
Copyright © Autoras e autores

Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra pode ser reproduzida,
transmitida ou arquivada desde que levados em conta os direitos das autoras e dos
autores.

Diana Araujo Pereira; Laura Fortes; Lívia Santos de Souza; Simone Beatriz
Cordeiro Ribeiro [Orgs.]

Territórios liminares: violências, direitos e sensibilidades. (Coleção:


América Latina interdisciplinar e plural. Vol. 1). São Carlos: Pedro & João
Editores, 2020. 221p.

ISBN: 978-65-5869-083-2 [Impresso]


978-65-5869-084-9 [Digital]

1. Direitos. 2. América Latina. 3. Memórias. 4. Violência. I. Título.

CDD – 300

Capa: Andersen Bianchi com fotografia de Maíra Gamarra


Diagramação: Diany Akiko Lee
Editores: Pedro Amaro de Moura Brito & João Rodrigo de Moura Brito

Conselho Científico da Pedro & João Editores:


Augusto Ponzio (Bari/Itália); João Wanderley Geraldi (Unicamp/ Brasil); Hélio
Márcio Pajeú (UFPE/Brasil); Maria Isabel de Moura (UFSCar/Brasil); Maria da
Piedade Resende da Costa (UFSCar/Brasil); Valdemir Miotello (UFSCar/Brasil); Ana
Cláudia Bortolozzi Maia (UNESP/Bauru/Brasil); Mariangela Lima de Almeida
(UFES/Brasil); José Kuiava (UNIOESTE/Brasil); Marisol Barenco de Mello
(UFF/Brasil); Camila Caracelli Scherma (UFFS/Brasil); Luis Fernando Soares Zuin
(USP/Brasil).

Pedro & João Editores


www.pedroejoaoeditores.com.br
13568-878 - São Carlos – SP
2020

4
Si cada hora viene con su muerte
si el tiempo es una cueva de ladrones
los aires ya no son los buenos aires
la vida es nada más que un blanco móvil

usted preguntará por qué cantamos

si nuestros bravos quedan sin abrazo


la patria se nos muere de tristeza
y el corazón del hombre se hace añicos
antes aún que explote la vergüenza

usted preguntará por qué cantamos

si estamos lejos como un horizonte


si allá quedaron árboles y cielo
si cada noche es siempre alguna ausencia
y cada despertar un desencuentro

usted preguntará por qué cantamos

cantamos porque el río está sonando


y cuando suena el río / suena el río
cantamos porque el cruel no tiene nombre
y en cambio tiene nombre su destino

cantamos por el niño y porque todo


y porque algún futuro y porque el pueblo
cantamos porque los sobrevivientes
y nuestros muertos quieren que cantemos

cantamos porque el grito no es bastante


y no es bastante el llanto ni la bronca
cantamos porque creemos en la gente
y porque venceremos la derrota

Mario Benedetti (Canciones del más acá)

5
6
Sumário

Apresentação 9

Campo de concentração ou colonização? – um 17


diálogo interepistêmico entre paradigmas
contemporâneos sobre direitos humanos
Marcos de Jesus Oliveira

Resistencias e iniciativas de memoria, apuestas por 35


la paz en Colombia
Mayra Alejandra Bernal Huertas
Ângela Maria de Souza

Saúde mental, comunicação e gênero: o corpo 51


feminino e a violência no cotidiano
Camila Viviane Lui de Sousa
Maria Inês Amarante

Argentina em fins do século XIX e início do século 75


XX: o campo intelectual na revista Criminalogia
Moderna e sua relação com o projeto positivista
Hugo Quinta
Andrea Ciacchi

Alargar os horizontes: uma análise sobre o Projeto 89


Nosso Nordeste, Nosso Lugar de Fala
Jonas Mateus Ferreira Araujo
Angela Maria de Souza

7
O canto do chamamé e a identidade musical do 113
nordeste argentino
Adrielly Oissa
Analía Chernavsky

Cuidar cantando. Sobre una ética del cuidado con 131


registro cimarrón en San Basilio de Palenque
Lucía Castillo Rincón
Angela Maria de Souza

Entre a América Latina e o Vasto Mundo: uma 149


crítica à colonização das formas de crer e sentir
desde o chão
Lívia Santos de Souza
Anaxsuell Fernando da Silva

Memória, autonomia e identidade na construção do 169


canal televisivo mapuche “wall kintun tv”
Estela Rocha de Ungaro
Laura Janaina Dias Amato

Encontros nas margens: percursos urbanos, corpo e 191


desejo na filmografia de Marcelo Caetano
Fábio Allan Mendes Ramalho

Sobre os/as autores/as 215

8
Apresentação

O Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Estudos


Latino-Americanos (PPG-IELA) representa uma proposta
inovadora de natureza interdisciplinar que, com pesquisas
transnacionais, procura viabilizar a produção de saberes críticos,
tanto em suas bases – em razão de um diversificado corpo
permanente de pesquisadores –, como também no processo de
circulação dos conhecimentos produzidos – resultante do
movimento natural típico da zona de Tríplice Fronteira entre Brasil,
Paraguai e Argentina, na qual se localiza a Universidade Federal
da Integração Latino-Americana (UNILA). Cabe sublinhar ainda a
presença, de caráter estrutural na UNILA, de discentes e docentes
oriundos de vários países da América Latina e do Caribe.
Por sua implantação estratégica na UNILA, o PPG-IELA
pressupõe, em seus fundamentos, uma problematização dos
limites da noção de “nacional”, em favor do conceito de “comarcas
culturais” transnacionais, ou mesmo em benefício da análise de
semelhanças e diferenças político-econômicas ou culturais que
caracterizam as diferentes regiões latino-americanas. Tais
reconhecimentos valorizam a circulação de saberes em territórios
definidos por biomas, cuja especificidade constitui o foco central
das pesquisas. O PPG-IELA adota uma perspectiva interdisciplinar
com múltiplos instrumentos de análise, e opera com categorias de
observação de situações de vida de grupos e de comunidades, bem
como de temáticas inovadoras, com o objetivo de produzir
abordagens críticas para problemas socioculturais que emergem do
tempo e espaço fronteiriços e, em maior medida, latino-americanos.
A área de concentração do PPG-IELA centra-se em Cultura e
Sociedade da América Latina e conta com três linhas de pesquisa:
Trânsitos Culturais; Práticas e Saberes; e Fronteiras, Diásporas e
Mediações.

9
As perspectivas propostas pela linha de pesquisa Trânsitos
Culturais privilegiam o estudo interdisciplinar de contatos,
diálogos e processos intermidiáticos entre contextos artísticos,
culturais e históricos através de perspectivas transculturais que
ressaltam fenómenos e dinâmicas que transcendem múltiplas
fronteiras nacionais, artísticas e midiáticas. Propõem-se pesquisas
transversais e relacionais de diversas interações e manifestações
artísticas e/ou narrativas (orais, literárias, poéticas,
cinematográficas, audiovisuais e outras), bem como linguagens e
suas confluências, culturas de imagem, produtos e processos
culturais através da abordagem transcultural de dinâmicas de
construção e circulação dos saberes, imaginários, identidades e
memórias na América Latina e o Caribe. Os horizontes
metodológicos propostos enfatizam fenômenos transnacionais e
transculturais perceptíveis em processos e produtos artísticos (em
diferentes dimensões de criação, circulação, percepção e leituras),
em linguagens, narrativas e poéticas, nas mídias, nas práticas
artísticas e culturais, bem como na construção de memórias em
contextos e/ou períodos históricos e contemporâneos.
Na linha de pesquisa Práticas e Saberes, propõem-se estudos
sobre a diversidade de práticas e saberes de populações, grupos e
comunidades que integram a experiência histórica, artística e
cultural da América Latina, em diferentes espaços e
temporalidades. Dentre os métodos e técnicas de pesquisa
consideram-se as fontes escritas, iconográficas, orais na
investigação bibliográfica, etnográfica e de arquivo. Privilegia-se o
estudo das seguintes problemáticas: modos de vida; configurações
sociais; história das ideias e campos intelectuais e científicos;
representações e concepções de mundo; e gestão dos patrimônios;
arranjos e estratégias de coletivos e sujeitos.
A linha Fronteiras, Diásporas e Mediações se caracteriza pelo
estudo transversal e relacional das práticas e processos de
mediações socioculturais, inseridas nas esferas geopolíticas da
América Latina e do Caribe, através da abordagem dos processos
de construção e circulação dos saberes, imaginários, identidades e

10
memórias que tomem as fronteiras como espaços territoriais,
geográficos e simbólicos. Assim como pela observação e análise do
campo das mediações entre os âmbitos da cultura, da estética, da
esfera política e das práticas sociais; novas sociabilidades, fluxos e
interculturalidade; pesquisas sobre as práticas descoloniais e o
transbordamento dos limites dos estados-nação que reconfiguram
narrativas e sujeitos em contextos de diáspora, populações
indígenas e movimentos transnacionais.
Por conseguinte, as linhas de pesquisa do PPG-IELA visam
reunir em diferentes suportes registros materiais referentes à
memória coletiva e à história; analisar processos de circulação nos
campos social, político e cultural com vistas ao questionamento das
categorias e fundamentos que, tradicionalmente, constituíram os
campos do saber; compreender práticas sociais que envolvam
redes de memória e seus eventuais processos de transformação,
fragmentação e descontinuidade.
O diálogo entre as áreas de Letras, Artes, História,
Antropologia, Comunicação, Geografia e Filosofia, e disciplinas
afins, tem como objetivo principal a atuação sobre os processos de
produção e circulação do conhecimento, em sua articulação com as
práticas e mobilidades sociais e culturais da América Latina.
Por ter sido o primeiro programa de pós-graduação aprovado
pela CAPES na UNILA, o PPG-IELA tem um valor histórico
inegável na construção das bases interdisciplinares e de
internacionalização do projeto UNILA, assim como um valor social
que deve ser ressaltado. Sua proposta busca registrar e
compreender práticas sociais e culturais que emergem dos cenários
significativos dos seus atores, colaborando com a construção de
uma geopolítica do conhecimento diferenciada e acorde com as
reais necessidades e demandas do continente.
Em março de 2014, o PPG-IELA iniciou suas atividades com a
primeira turma (composta por dez estudantes, sendo cinco
discentes do Brasil e cinco internacionais: Argentina, Paraguai e
Colômbia) e vem se afirmando em um contexto trinacional,

11
comprometido com o seu entorno regional, porém com o olhar
crítico voltado para toda a América Latina e Caribe.
Em 2020, o PPG-IELA já conta com 76 egressos(as): 48 Mestres
brasileiros(as) e 28 Mestres internacionais, com isso contribuindo
para o fortalecimento da missão institucional da UNILA, de
cooperação solidária e integração latino-americana.
Atualmente o Programa conta com 43 estudantes ativos(as),
orientados(as) por professores permanentes e colaboradores que
formam o corpo docente do Programa. Assim, considerando o
caráter interdisciplinar do PPG-IELA e a alocação de seus
educadores e educandos nas três Linhas de Pesquisa que o
compõem, neste volume destacam-se dez artigos, tecidos de
maneira individual e em parceria entre docentes, ou entre docentes
e discentes, referentes a pesquisas finalizadas ou ainda em curso na
UNILA. Nosso objetivo é traçar um panorama dos trabalhos, com
especial ênfase para a interlocução temática entre as linhas
dispostas no Programa.
Neste volume, embora os temas trabalhados sejam bastante
distintos, é possível observar a permanência de algumas linhas de
força que nos parecem significativas para traçar reflexões sobre os
Estudos Interdisciplinares Latino-Americanos hoje: as reflexões
sobre direitos humanos e sobre o papel social do fazer artístico.
No primeiro capítulo, “Campo de concentração ou colonização?
– um diálogo interepistêmico entre paradigmas contemporâneos
sobre direitos humanos”, Marcos de Jesus Oliveira parte de sua
experiência docente na Unila para construir uma importante reflexão
sobre dois paradigmas fundamentais para a compreensão de seu tema
de pesquisa: o campo de concentração e a colonização. Articulando
uma série de autores amplamente debatidos no campo das
humanidades, como Agamben, Judith Butler, Aimé Césaire, Frantz
Fanon, Walter Mignolo e Achille Mbembe, o texto busca deslocar o
debate de sua leitura mais tradicional para evidenciar a necessidade
do diálogo interepistêmico voltado à compreensão mais ampla sobre
os direitos humanos.

12
Seguindo com a temática dos direitos humanos, agora mais
voltada para um caso concreto, o segundo capítulo, “Memoria en
Colombia: Entre las resistencias y las iniciativas de paz” escrito por
Mayra Alejandra Bernal Huertas e Angela Maria de Souza, trata da
memória como ponto central para a compreensão da relação que se
está construindo com a história da violência que marcou o século
XX no país. Assim, dar visibilidade à memória das vítimas se torna
um processo profundamente necessário para o estabelecimento de
laços comunitários que permitam o próprio reestabelecimento da
democracia. A partir de dois eventos específicos e seus
desdobramentos posteriores, o holocausto de seis de novembro de
1984 e o encontro do dia 27 de agosto de 2020, no Parque de la
Reconciliación, as autoras propõem uma articulação com a
memória desde uma perspectiva cultural e étnico-racial.
Camila Viviane Lui de Sousa e Maria Inês Amarante, autoras
do terceiro capítulo “Saúde mental, comunicação e gênero: o corpo
feminino e a violência no cotidiano”, seguem pensando questões
relacionadas ao universo dos direitos fundamentais, mas agora
com um olhar voltado para o recorte de gênero. No texto, elaborado
a partir da proposta pedagógica freiriana, e vinculado às
experiências de mulheres que participaram de oficinas terapêutico-
educativas no Centro de Atenção Psicossocial (CAPs) de Foz do
Iguaçu, as autoras alertam para a necessidade da construção de
formas de tratamento de saúde mental que não se restrinjam à
medicalização desses quadros.
Na sequência, Hugo Quinta e Andrea Ciacchi, apresentam o
capítulo “Argentina em fins do século XIX e início do século XX: o
campo intelectual na revista Criminalogia Moderna e sua relação
com o projeto positivista”. No texto, são abordadas questões
referentes à elaboração do campo intelectual argentino a partir de
sua relação com o discurso. Tratando especificamente da
criminologia nesse país, os autores pensam ainda o projeto de
nação envolvido na construção dessa disciplina jurídica e o papel
desempenhado pelo positivismo nesse contexto.

13
No quinto capítulo são exploradas questões relacionadas à
educação a partir da região nordeste do Brasil. No texto intitulado
“Alargar os horizontes: Uma análise sobre o Projeto Nosso
Nordeste, Nosso Lugar de Fala”, os autores Jonas Mateus Ferreira
Araujo e Angela Maria de Souza elaboram um mapa das estratégias
de resistência construídas no bojo desse projeto educativo. Assim,
adotando como metodologia a pesquisa-ação, o trabalho pensa a
educação popular, considerando 109 experiências de resistência
apresentadas em uma perspectiva que se vincula à noção de
escrevivência, trabalhada por Conceição Evaristo.
O texto seguinte dá início à exploração de outro ponto
fundamental para o presente volume: o papel sociocultural
desenvolvido pelas linguagens artísticas na América Latina. Abre
esse debate o capítulo escrito por Analía Chernavsky e Adrielly
Oissa: “O canto do chamamé e a identidade musical do nordeste
argentino”. No texto, as autoras abordam o chamamé como
elemento constitutivo da identidade musical dessa região da
Argentina, a partir da análise do comportamento vocal associado à
execução do gênero. Trata-se de um trabalho que, mediante a
conexão entre a história e os estudos de canto, reflete sobre a
construção de identidades regionais.
Seguindo com o estudo sobre o canto, embora pensado desde
a realidade colombiana, o capítulo seguinte “Cuidar cantando.
Sobre una ética del cuidado con registro cimarrón en San Basilio de
Palenque”, escrito por Lucía Castillo Rincón e Angela Maria de
Souza, explora a liderança espiritual exercida por mulheres que
cantam bullerengue e lumbalú na região de San Basilio de Palenque.
Partindo de uma reflexão sobre as funções associadas ao cuidado,
assumidas por essas mulheres, as autoras constroem relatos dos
múltiplos lugares ocupados por mulheres negras na vida
comunitária da região.
Saindo do território da música para explorar a literatura, no
capítulo “Entre a América Latina e o Vasto Mundo: uma crítica à
colonização das formas de crer e sentir desde o chão” os autores
Lívia Santos de Souza e Anaxsuell Fernando da Silva abordam a

14
obra da escritora Maria Valéria Rezende. Discutindo formas do crer
a partir de um repertório que questiona as imposições coloniais
para o tema, o texto reflete sobre como a literatura pode funcionar
também como veículo de abordagem anticolonial da religião.
Nesse sentido, romances como Vasto Mundo, no qual Rezende
apresenta um catolicismo popular, bastante afastado das diretrizes
tradicionais do Vaticano, permitem que se leia o crer a partir de
outras perspectivas.
No capítulo que segue “Memória, autonomia e identidade na
construção do canal televisivo mapuche ‘Wall Kintun tv’”, de autoria
de Estela Rocha de Ungaro e Laura Janaina Dias Amato, discute-se a
criação desse que foi o primeiro canal televisivo organizado e
executado por um povo originário, na Argentina, após a implantação
da lei de meios, aprovada em 2009. O texto trata dessa experiência
adotando como eixos dois aspectos: a relevância desse canal para a
cultura mapuche e o papel por ele desempenhado como veículo
fomentador de visibilidade para a voz desse povo, tantas vezes
silenciada. Dessa forma, trata-se de uma reflexão que envolve
elementos de distintos campos das humanidades e que levam a
pensar a questão indígena na Argentina hoje.
No último capítulo, “Encontros nas margens: percursos
urbanos, corpo e desejo na filmografia de Marcelo Caetano” o autor
Fábio Allan Mendes Ramalho trabalha a relação entre espaço
urbano, erotismo e desejo a partir da linguagem cinematográfica.
Enfatizando a cidade como espaço de múltiplas possibilidades e
encontros, o texto explora as obras Bailão (2009), Na sua companhia
(2011) e Corpo elétrico (2017). Busca, a partir de uma abordagem
marcadamente interdisciplinar, discutir conceitos como o de
margem, não apenas em sua acepção geográfica ou social, mas
também considerando sua dimensão no campo das experiências
práticas e subjetivas.
Em 2020, a UNILA celebra seus dez anos de fundação
realizando um balanço de suas conquistas e desafios. Neste
contexto, o PPG-IELA soma-se aos processos de autoavaliação
coletivos, com o objetivo de qualificar a produção do programa,

15
bem como seus valores e prioridades. Portanto, este volume agrega
pesquisas individuais, em parceria entre docentes ou entre
docentes e discentes, além de frutos de parcerias orientando(a)-
orientador(a), em curso nas três Linhas de Pesquisa do PPG-IELA
e vem fechar um ciclo de amadurecimento científico-acadêmico,
fortalecendo seus princípios basilares: a interdisciplinaridade e a
perspectiva crítica, latinoamericanista e intercultural do Programa.
Assim, em decorrência da pandemia, com a impossibilidade
de viagens externas e de intercâmbios pessoais, o PPG-IELA
decidiu investir em uma viagem interna, à sua própria história de
configuração e crescimento. Convidamos nossos(as) leitores(as) a
atravessar conosco um mapa latino-americano construído pelas
diversas e distintas peças que o compõem. E, por que não, convidá-
los(as) a continuar, a escrever essa história aberta, inconclusa,
criativa e móvel.

cantamos porque el sol nos reconoce


y porque el campo huele a primavera
y porque en este tallo en aquel fruto
cada pregunta tiene su respuesta

cantamos porque llueve sobre el surco


y somos militantes de la vida
y porque no podemos ni queremos
dejar que la canción se haga ceniza

Mario Benedetti (Canciones del más acá)

Diana Araujo Pereira,


Lívia Santos de Souza,
Laura Fortes e
Simone Beatriz Cordeiro Ribeiro

16
Campo de concentração ou colonização? –
um diálogo interepistêmico entre paradigmas contemporâneos
sobre direitos humanos1

Marcos de Jesus Oliveira2

Resumo: O presente ensaio tem como objetivo apresentar dois


importantes paradigmas que informam parte do debate contemporâneo
sobre direitos humanos, a saber, o paradigma do campo de concentração
no qual se encontram pensadores como Hannah Arendt, Giorgio
Agamben, Judith Butler e, em menor grau, Michel Foucault, e o
paradigma da colonização ao qual se vinculam Aimé Césaire, Frantz
Fanon, Walter Mignolo e Achille Mbembe. No percalço do objetivo,
iniciaremos com uma breve exposição da versão hegemônica do discurso
dos direitos humanos, seus principais pressupostos. Em seguida,
apresentam-se, em que pesem as divergências entre os pensadores,
algumas das principais ideias do paradigma do campo de concentração
para depois confrontá-las com as reflexões propostas por pensadores que
ousaram tirar a colonização do lugar de “mero” evento histórico datado e
acabado e elevá-la a um estatuto teórico-metodológico com consequências
para repensar as relações entre modernidade e direito. Finalmente,
enumeram-se as potencialidades críticas dos dois paradigmas, sugerindo
a necessidade de um diálogo interepistêmico.
Palavras-chave: Direitos humanos. Colonização. Sistema mundo
moderno/colonial.

1 A primeira versão deste texto foi originalmente lida na XIII Reunião de


Antropologia do Mercosul (RAM) realizada na Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS) entre os dias 22 e 25 de julho de 2019. Agradeço aos
participantes do GT “Epistemologias do Sul e circulação de capital epistêmico de
antropólogas/antropólogos e antropologias periféricas - América Latina e África
em pauta” pelas críticas e sugestões.
2 Doutor em Sociologia. Docente do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar

em Estudos Latino-Americanos (PPG-IELA) da Universidade Federal da


Integração Latino-Americana (UNILA).

17
Introdução

A ideia de discutir o que designo aqui como paradigma do


campo de concentração e paradigma da colonização surgiu da oferta
da disciplina de “Cultura e direitos humanos”, na Universidade
Federal da Integração Latino-Americana. Trata-se de uma disciplina
em nível de graduação ofertada para o curso de antropologia desta
universidade, mas aberta a demais cursos, cujo propósito é apresentar
o universalismo dos debates sobre os direitos humanos e as tensões
operadas pelas ciências sociais e as humanidades à narrativa
universalista. Para melhor desenvolver o objetivo, optei por dividir a
disciplina em três momentos-chave como forma de destacar
ferramentas teórico-conceituais para uma leitura crítica do debate
sobre direitos humanos na contemporaneidade.
No primeiro momento, apresento as concepções hegemônicas
sobre os direitos humanos que, em geral, tomam a revolução
inglesa, a revolução francesa e a revolução estadunidense como
ponto histórico e geográfico de uma nova disposição moral da
humanidade. Utilizo o livro “A era dos direitos”, do cientista
político Norberto Bobbio, como ilustrativo dessa compreensão. Em
seguida, passo às críticas às concepções hegemônicas a partir da
obra de teóricos como Hannah Arendt, Michel Foucault, Giorgio
Agamben e Judith Butler. Reunidos sob o paradigma do campo de
concentração, estes/as pensadores/as, em que pesem suas
divergências, revelam, de distintos modos, as contradições que
atravessam as formações ocidentais no tocante aos direitos
humanos. A discussão se assenta em torno de como a modernidade
implicou a emergência de novas modalidades políticas de
produção e de controle sobre a vida.
Por fim, apresento as críticas às concepções hegemônicas de
direitos humanos a partir do pensamento de Aimé Césaire, Frantz
Fanon, Walter Mignolo e Achille Mbembe os quais designo como
teóricos do paradigma da colonização. São pensadores que não
tomam a colonização como mero fenômeno histórico datado e
acabado, alterando seu estatuto teórico-metodológico com

18
consequências político-epistêmicas para as narrativas tomadas
como certas. A discussão sobre direitos humanos desde as margens
do mundo moderno/colonial (GROSFOGUEL, 2003) tem
contribuído para que raça seja uma categoria analítica fundamental
ao entendimento da modernidade. Para dizê-lo de outro modo, a
racialização da população mundial ou, no dizer de W. E. B. Du Bois
(1999), o estabelecimento de uma “linha de cor”, é constitutivo dos
processos modernos de controle social e das instituições
encarregadas de sua implementação.
O presente trabalho3 é uma breve síntese de algumas reflexões
surgidas a partir do percurso da disciplina e dos diálogos com os
estudantes a quem agradeço imensamente. Retiro a noção de
paradigma de Giorgio Agamben que, na descrição de Natalia
Taccetta (2011, p. 51), se define “como uma forma de conhecimento
nem dedutiva nem indutiva, mas analógica que vai da
singularidade a singularidade”. Algo assim tornará possível
entrever a singularidade do conjunto de pensadores reunidos em
cada paradigma, de maneira a reconhecer a contribuição de cada
um e favorecer o diálogo interepistêmico entre eles. Não se
pretende estabelecer uma comparação entre paradigmas como se
houvesse um mais adequado, mas dar a ver as problemáticas para
as quais apontam.

3 Em realidade, a disciplina apresenta um escopo bem maior de temas do que a


breve descrição feita aqui. À medida que vou apresentando os pensadores de cada
paradigma, vou trazendo debates sobre as realidades latino-americanas,
aproximando-os dos interesses de pesquisa dos estudantes. Quando falo, por
exemplo, de Judith Butler, aproveito para discutir a violência contra as mulheres
e contra LGBTs a partir de uma perspectiva de gênero, apresentando parte do
campo feminista latino-americano. Frantz Fanon se torna uma oportunidade para
abordar a violência policial e a política contemporânea de encarceramento em
massa bem como para iniciar algumas das inúmeras facetas sobre a questão étnico-
racial no contexto latino-americano. Dessa forma, vou articulando os pensadores
a problemáticas importantes bem como a pesquisas e investigações atuais no
tocante aos debates sobre direitos humanos na contemporaneidade.

19
A concepção hegemônica de direitos humanos ilustrada pelo
pensamento de Norberto Bobbio

À semelhança de muitos teóricos clássicos e contemporâneos,


Norberto Bobbio coloca o desenvolvimento dos direitos humanos
no plano das transformações históricas e das lutas políticas
europeias, negando a existência de qualquer fundamento a-
histórico como supunha a doutrina do direito natural, por exemplo.
A Revolução Gloriosa, a Reforma Protestante e a Revolução
Francesa são tomadas como aquelas que ensejaram valores e ideias
que atravessam a noção moderna de direito, na medida em que
representaram lutas contra poderes instituídos e uma conquista de
maior liberdade. Essas revoluções teriam contribuído,
decisivamente, para a abertura de um capítulo na história marcado
por mais igualdade e liberdade. Para Bobbio,

Do ponto de vista teórico, sempre defendi – e continuo a defender,


fortalecido por novos argumentos – que os direitos do homem, por mais
fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos de certas
circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades
contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e
nem de uma vez por todas. (BOBBIO, 1992, p. 5).

Na interpretação de muitos, as revoluções burguesas europeias do


século XVIII legaram à posteridade a ideia de democracia moderna com
a divisão dos poderes, a noção de cidadania como a prerrogativa do
“direito a ter direitos” e a concepção de liberdades individuais
inalienáveis com a garantia de não-interferência estatal em certas
esferas, a menos que haja previsão legal. Além disso, tais revoluções
teriam gestado uma nova concepção de Estado como uma ordem
jurídico-administrativa, com normas e leis que visam a tratar dos
interesses coletivos de forma igualitária, enterrando qualquer resquício
de uma visão patrimonialista, absolutista e arbitrária. A emergência do
Estado moderno teria contribuído para a pacificação social, graças ao
monopólio da violência física legítima, e à criação de uma ordem legal-
racional e universal, garantindo segurança a todos os cidadãos.

20
A concepção de Bobbio está imbuída da visão segundo a qual
os direitos humanos são a manifestação mais bem-acabada da luta
por dignidade, uma realização progressiva surgida no interior da
Europa e que marca decididamente sua história. A despeito da
divergência entre os teóricos sobre qual seria o evento fundador
dessa “vocação humana para o melhor”, parece haver um acordo
entre eles, segundo o qual a disposição moral surge na Europa
moderna. Na visão de Bobbio:

O mesmo Kant que, como disse no início, vira no entusiasmo com que fora
acolhida a Revolução Francesa um sinal da disposição moral da
humanidade inseria esse evento extraordinário numa história profética da
humanidade, ou seja, numa história da qual não se tem dados seguros, mas
da qual só se pode apreender sinais premonitórios. (...) Dizia também que o
evento tivera tal efeito nos espíritos que não mais podia ser esquecido, já que
“revelara, na natureza humana, uma tal disposição e potencialidade para o
melhor”. (BOBBIO, 1992, p. 103)

Os direitos humanos seriam a síntese superior das


contradições decorrentes dos embates políticos da Europa
moderna. O surgimento dos direitos políticos, civis e sociais é
resultado do avanço moral daquela sociedade na solução de seus
conflitos internos. Como uma gramática universal, os direitos
humanos seriam a resposta mais bem-sucedida para as tensões
existentes entre diferentes sensibilidades particularistas. A
secularização, por exemplo, é interpretada como a resolução das
disputas entre diferentes credos religiosos que geraram guerras
sangrentas na história europeia. Nessa chave de leitura, a
secularização representaria, ainda, a pacificação social através da
separação entre esfera pública e esfera privada em que todos teriam
sua religiosidade respeitada e poderiam viver de forma
harmoniosa, segura e feliz.
Da breve exposição do pensamento de Norberto Bobbio, é
possível dizer que o núcleo duro de sua concepção está no
pressuposto espaço-temporal, quer dizer, de que as lutas por
direitos humanos surgem num determinado momento da história,

21
a modernidade, e num determinado lugar, a Europa. Trata-se do
que comumente designamos como visão eurocêntrica. Tal
compreensão é compartilhada por inúmeros teóricos da área de
direitos humanos e tem consequências muito importantes para o
modo pelo qual são pensados. Além disso, a chave de interpretação
de Bobbio tende a enxergar os direitos humanos como uma
realização progressiva e linear que, da Europa, se espalha pelo
mundo como uma espécie de “boa nova” a toda humanidade. A
Europa segue, portanto, com sua imagem civilizatória associada ao
progresso e à superioridade técnica, moral e epistêmica.

Crítica às concepções hegemônicas dos direitos humanos: o


paradigma do campo de concentração

A narrativa dos direitos humanos como uma realização


progressiva será problematizada por pensadores como Hannah
Arendt, Michel Foucault, Giorgio Agamben e Judith Butler. A
principal estratégia do paradigma do campo de concentração
consistirá em apresentar as contradições entre o discurso
hegemônico e as realidades históricas do continente europeu, além
de mostrar como homens e mulheres foram reduzidos a meras
vidas biológicas na aurora da modernidade. A modernidade
ocidental é lida como uma formação social instauradora de novas
modalidades de controle sobre a vida, colocando por terra a visão
idílica da Europa como uma realização progressiva da razão e da
liberdade. Comecemos por Hannah Arendt.
Hannah Arendt (2000), com sua análise dos apátridas e
refugiados, mostrou que, dada a dependência dos direitos
humanos ao Estado-nação, estes não conseguiam garantir a
dignidade de determinados sujeitos no exato momento em que se
viam sem a proteção estatal, ou seja, quando mais estavam
vulneráveis e precisavam de amparo. A garantia dos direitos dos
seres humanos estava condicionada à existência de uma ordem
institucional que os reconhecesse como sujeitos de direito, como
cidadãos. Esse pressuposto acabou ocasionando uma população

22
sem direitos no interior da própria Europa, tornando-a mera vida
biológica destituída de reconhecimento social e de status legal. A
filósofa é taxativa ao dizer:

Os Direitos Humanos, afinal, haviam sido definidos como “inalienáveis”


porque se supunha serem independentes de todos os governos; mas sucedia
que, no momento em que seres humanos deixavam de ter um governo
próprio, não restava nenhuma autoridade para protegê-los e nenhuma
instituição disposta a garanti-los. (ARENDT, 2000, p. 397)

Hannah Arendt mostrou como os apátridas e refugiados eram


reduzidos à mera vida biológica sem status de cidadão, aquele que
tem o direito a ter direitos. A modernidade democratizou o
sentimento de que as vidas humanas são descartáveis, produzindo
a banalidade do mal (ARENDT, 2001), uma ordem burocrática que
retira do homem sua capacidade de pensar e refletir e que tem,
como consequência, a produção de exclusão. A descartabilidade da
vida está, paradoxalmente, na própria afirmação de que os direitos
humanos são inalienáveis. Afirmar a alienabilidade do direito só
faz sentido em um contexto em que podem ser alienáveis, pois se
não o fossem, não haveria necessidade de proclamá-los como tais.
A sociedade burguesa e sua tendência à acumulação competitiva
gera o esvaziamento da esfera política com a privatização dos
interesses coletivos e a exclusão de segmentos da população da
vida pública (ARENDT, 2000).
Nesta linha, Giorgio Agamben, dialogando com o pensamento
arendtiano e foucaultiano, descreveu os mecanismos pelos quais a
ordem jurídico-legal é suspensa, relegando o indivíduo ao reino da
vida nua, zona em que é reduzido a uma mera vida biológica
destituída de status jurídico: “Os direitos do homem representam, de
fato, antes de tudo, a figura originária da inscrição da vida natural na
ordem jurídico-política do Estado-nação.” (AGAMBEN, 2015, p. 28).
Com isso, Agamben produziu uma das críticas mais duras às
formações ocidentais modernas, já que o princípio da soberania
comporta a produção da exclusão de determinados sujeitos, não tanto
como uma falha em seu funcionamento, mas como condição de

23
possibilidade. Há um fundamento extralegal na constituição do
estado como “estrutura original em que o direito inclui em si o vivente
por meio de sua suspensão” (AGAMBEN, 2004, p. 14).
Os campos de concentração na Alemanha nazista não seriam
a exceção, mas a regra, seguindo válidos para compreender, por
exemplo, a chamada guerra contra o terrorismo capitaneada pelos
EUA durante o governo George W. Bush, assim como para
descrever os mecanismos de funcionamento de grande parte das
democracias liberais do Ocidente. A ideia de que certas vidas se
tornam matáveis em determinadas circunstâncias se dissemina no
interior dos Estados-nação. Há uma hierarquia que perpassa a vida
social, definindo as vidas que valem a pena daquelas sem
dignidade. A problemática central da modernidade europeia é a
exclusão como fenômeno político que atribui dignidade a certas
vidas e nega, a outras. A democracia já não pode ser lida como algo
inteiramente desejável, já que ela também comporta uma
compreensão de soberania como “direito de matar”. Haveria mais
semelhanças entre a democracia e os regimes totalitários
nazifascistas do que supõe a vã filosofia.
Aqui é interessante evocar Michel Foucault (2002), pois é ele
quem descreve, extensamente, sobre a entrada da vida biológica
nos cálculos do poder político, na era moderna, cujo cume se dá
com o nazismo. A biopolítica é parte da malha multifacetada de
poderes que incide sobre o corpo humano, o homem tomado como
espécie. A operacionalização da biopolítica se dá pelo racismo que
é interpretado como uma tecnologia do poder pelo qual se
objetivam certas características biológicas cooptadas segundo
determinados interesses e finalidades. Embora Foucault seja
criticado por não ter feito maiores reflexões sobre o totalitarismo e
sobre o processo de colonização, chegou a reconhecer, en passant, a
relação entre colonização, racismo e direito de matar. Cito-o:

[...] compreende-se por que o racismo vai irromper em certo número de pontos
privilegiados, que são precisamente os pontos em que o direito de morte é
necessariamente requerido. O racismo vai se desenvolver primo com a
colonização, ou seja, com o genocídio colonizador. Quando for preciso matar

24
pessoas, matar populações, matar civilizações, como se poderá fazê-lo, se se
funcionar no modo do biopoder? Através dos temas do evolucionismo,
mediante um racismo (FOUCAULT, 2005, p. 307, grifo no original)

Para Foucault, o racismo é uma tecnologia do poder sem o qual


as relações políticas no contexto da modernidade não se
enfeixariam. O direito como fonte de controle desempenha um
papel importante na normalização do sujeito, conectando-se às
disciplinas e à biopolítica. É pela malha racional-legal que a
normalização dos corpos se efetiva. Quando Foucault (1994)
avança na ideia de um “direito dos governados” é para propor um
direito que não esteja calcado na ideia de soberania, mas enraizado
na experiência histórica, fugindo, assim, de algumas das
antinomias aos quais os direitos humanos estão presos, já que
entendidos como tecnologias do poder que acompanham as
transformações demográficas do período de sua invenção. O
direito dos governados seria uma forma de operar resistência e luta
no interior das tecnologias de produção e de controle sobre a vida.
Pelo conceito de precariedade, Judith Butler vem
aprofundando alguns dos horizontes abertos por Michel Foucault.
Para a filósofa, as estruturas discursivas pelas quais emergimos
como sujeitos condicionam nossa compreensão acerca das vidas
que valem a pena e os processos de reconhecimento do outro como
humano. Em uma de suas discussões sobre a precariedade, revela
que a “distribuição diferencial da condição de ser passível de luto
entre as populações têm implicações sobre por que e quando
sentimos disposições afetivas politicamente significativas, tais
como horror, culpa, sadismo justificado, perda e indiferença.”
(BUTLER, 2015, p. 45). Para Butler, uma vida só se torna digna de
ser reconhecida quando enlutável, já que o luto é, na compreensão
psicanalítica, uma reação à perda de objeto investido
libidinalmente. Nesse sentido, a noção de humano dos direitos
humanos não é algo inequívoco, mas construída por um conjunto
de relações históricas, sociais e políticas.

25
Ainda que Judith Butler não costume aprofundar suas
reflexões em um horizonte de historicidade com a densidade com
que faz Foucault, há muitos pontos importantes em sua obra que
torna possível dizer que ela compartilha uma leitura crítica da
modernidade ocidental e do modo pelo qual a vida biológica se
torna um elemento do cálculo político. A vida precária potencializa
formas de exclusão cuja consequência pode ser a morte ou o
extermínio de determinados sujeitos sem que suas vidas sejam
pranteadas. O desafio da produção de um novo mundo, pacífico,
está na coabitação plural e no reconhecimento de que existem certas
condições da vida que não supõe a escolha humana (BUTLER,
2017). A discussão da pensadora sobre as ações dos EUA no mundo
revela uma crítica à pretensa universalidade do liberalismo político
com suas consequências na produção e exposição de certos sujeitos
a violências econômicas, raciais e de gênero (BUTLER, 2019).

Crítica às concepções hegemônicas dos direitos humanos: o


paradigma da colonização

As críticas designadas como próprias ao paradigma da


colonização são ensejadas por pensadores bastante diversos. A
despeito disso, parecem compartilhar a ideia segundo a qual a
colonização é um fenômeno histórico cujas consequências se fazem
presente no contemporâneo. Achille Mbembe vem dialogando
intensamente com a obra de Michel Foucault, e Walter Mignolo já
sugeriu, inúmeras vezes, que a colonialidade é o complemento da
biopolítica. Os dois pensadores reconhecem, portanto, a
importância da discussão crítica europeia, apresentando alguns de
seus limites. Além disso, a análise dos autores aqui evocados, ainda
que diferentes modos, acentua a raça como uma categoria analítica
fundamental à compreensão dos processos modernos.
Foucault propôs o biopoder como um poder que faz viver e
deixa morrer. Ao articulá-lo com o conceito de soberania, Mbembe
(2016) falará em um necropoder para dar a ver como o poder de
matar permanece como um operador lógico da modernidade,

26
sobretudo, nas (ex)colônias. A ordem social colonial está permeada
por um imaginário marcado por relações de força e de violência
materializado pelo mando (MBEMBE, 2012). Se Agamben,
seguindo Carl Schmitt, definiu a soberania como o direito de
decretar o estado de exceção, Mbembe é mais incisivo e a define
como direito ao exercício de decretar a morte. Cito-o:

Propus a noção de necropolítica e necropoder para explicar as várias


maneiras pelas quais, em nosso mundo contemporâneo, armas de fogo são
implantadas no interesse da destruição máxima de pessoas e da criação de
“mundos de morte”, formas novas e únicas da existência social, nas quais
vastas populações são submetidas a condições de vida que lhes conferem o
status de “mortos-vivos” (MBEMBE, 2016, p. 146).

O interessante da perspectiva de Mbembe – mas não apenas dele


– está em realizar uma torção na temporalidade linear implícita ao
discurso dos direitos humanos. Os pensadores do paradigma da
colonização parecem compartilhar a ideia segundo a qual somos
contemporâneos ao processo de colonização. Trata-se de um passado
cuja força ainda estrutura o momento presente e condiciona as
possibilidades de futuro. Os processos históricos não são tomados
como resultante de uma linearidade progressiva, mas por
descontinuidades, avanços e retornos, oscilações. A heterogeneidade
temporal torna possível compreender a produção da exclusão e de sua
incidência nas diferentes formas assumidas ao longo dos últimos
quinhentos anos. A narrativa de Mbembe coloca por terra toda a
pretensão de que o advento do Estado moderno representou a
pacificação das relações sociais. Pelo contrário, o Estado moderno
contribuiu para a continuidade das formas de exclusão social
operacionalizadas pela raça, instaurando novos modos políticos de
relação e ajustando-as a outras necessidades e finalidades.
Há uma política de produção de mortes nas (ex)colônias. Algo
assim já havia sido apontado por Aimé Césaire (1978) em seu
“Discurso sobre o colonialismo”. Para Césaire, o processo de
colonização é uma estrutura que embrutece colonizados e
colonizadores. O campo de concentração conhecido pela Europa no

27
entre guerra é a exportação de técnicas de controle e de extermínio já
conhecido pelas ex-colônias europeias. Hannah Arendt (2009) parece
ter reconhecido isso quando falou em “efeito boomerang” assim como
Michel Foucault quando usou a mesma expressão para falar de um
colonialismo interno (ETKIND, 2011, p. 24). Além disso, se
considerarmos o território como fundamental para a biopolítica,
pode-se dizer que esta foi inicialmente experimentada nas colônias,
uma vez que, desde seu início, a empresa colonizadora tinha como
tarefa precípua administrar e gerenciar vastos contingentes
populacionais de indígenas e de pessoas escravizadas.
Quando em “Os condenados da terra”, Frantz Fanon (1968)
fala que o mundo colonial é dividido em dois, uma zona do
colonizador e uma do colonizado, acentua a incomensurabilidade
desses dois universos. A incomensurabilidade não decorre de uma
diferença dada por uma suposta ordem natural das coisas, mas da
construção ontológica engendrada pelo monopólio da violência no
estabelecimento da disposição colonial. Aliás, é a violência nua e
autorizada contra as populações negras a responsável pelo seu
disciplinamento e pelo estabelecimento das fronteiras das vidas
que contam como vidas dignas de respeito e de consideração.
Existe, portanto, uma violência não nomeada que recai sobre a
população tornada escrava pelo processo de colonização e cuja
estrutura perpetua as desigualdades no mundo pós-colonial.
A colonização tem um efeito sobre a subjetividade de brancos
e negros. O racismo é um operador psíquico pelo qual a estrutura
racista da sociedade se (re)produz (FANON, 2008). Em sua
releitura da dialética hegeliana do senhor/escravo, Fanon
demonstra como o reconhecimento do negro está bloqueado, já que
está relegado a uma esfera sub-humana ou, em termos filosóficos,
a uma esfera sub-ontológica. O reconhecimento do negro seria
impossível no âmbito da gramática dos direitos humanos, pois esta
estaria vinculada às necessidades intrinsicamente europeias como
universal não-marcado. Em contextos coloniais, a palavra do negro
é considerada inferior, não havendo, portanto, dialética no sentido

28
de troca de palavras, sentidos e significados, essenciais à
construção política.
Finalmente, a partir do conceito de colonialidade do poder,
Walter Mignolo (MIGNOLO & TLOSTANOVA, 2012) assinala o
caráter branco-burguês do discurso dos direitos humanos. Para
este autor, os direitos humanos estão calcados em uma gramática
de proteção da burguesia contra os poderes absolutistas contra os
quais se insurgiram. A ideia de emancipação faz sentido para os
brancos europeus iluministas; para os “condenados da terra”, na
expressão de Fanon, é preciso operar um processo de
descolonização (MIGNOLO, 2010). Os países localizados no
denominado Sul global estão posicionados histórica e
epistemicamente como povos conquistados, e não como
conquistadores. Os direitos humanos são, portanto, limitados no
tocante aos direitos dos racializados pelo poder europeu no
contexto do sistema mundo moderno/colonial.
A história europeia é indissociável da diferença
colonial/imperial, de uma geopolítica da classificação da população
mundial pela qual a Europa se constituiu como centro irradiador de
uma suposta universalidade. À semelhança da já referida ideia de
uma “linha de cor” de Du Bois, a diferença colonial/imperial pretende
acentuar o caráter clivado da noção de universalidade, de como a
Europa arrolou a si mesma este lugar de privilégio. Cito Mignolo:

A questão dos “direitos” é propriamente uma questão do mundo


moderno/colonial e não da Roma antiga e, menos ainda, da Grécia antiga. A
questão dos “direitos” foi inaugurada pela e a partir da fundação histórica
do colonialismo moderno – o momento inicial da expansão imperial/colonial
do mundo ocidental e a “propagação” do ideal de ser cristão, o ideal do
Homem e, pelo século dezoito, as ideias de cidadão e democracia.
(MIGNOLO & TLOSTANOVA, 2012, p. 159)4

4 No original, “The question of ‘rights’ is properly a question of the


modern/colonial world and not of ancient Rome and, even less, ancient Greece.
The question of ‘rights’ was inaugurated by and of the historical foundation of
modern colonialism – the initial moment of imperial/colonial expansion of the

29
Para Mignolo, a gramática dos direitos humanos é uma forma
de reiterar a hegemonia das formas de vida de homens brancos
cristãos europeus, já que a diferença colonial/imperial funciona
como uma “linha de cor”, uma linha de separação entre a Europa e
o resto do mundo. Esta linha se assemelha à ideia fanoniana de que
o mundo colonial é dividido em dois, a zona do colonizador e a
zona do colonizado. A zona do colonizado seria como uma zona de
exceção, para retomar a expressão agambeniana, uma zona em que
a noção de humanidade está ausente, conferindo status político
inferior àqueles que a habitam. A produção de universalidades
pelo pensamento europeu esconde a lógica que torna factível sua
própria (des)ordem.
Mignolo coincide com a ideia de Césaire, segundo a qual a
Europa já não serve mais como único locus de produção de sentido e
de resolução de problemas que afetam a humanidade. Até mesmo a
luta socialista não atenderia aos interesses de toda a humanidade, já
que o socialismo como alternativa ao modelo liberal-burguês
compartilha algumas das premissas da modernidade ocidental: a
racialização. Estudos históricos evidenciam que a revolução socialista
também reproduziu hierarquias racializadas de modo relativamente
semelhante às formações capitalistas (ETKIND, 2011; MIGNOLO &
TLOSTANOVA, 2012). O esforço faniano em fazer o negro entrar na
dialética e a concepção de analética elaborada por Enrique Dussel
(CICCARIELLO-MAHER, 2017) representam tentativas de
descolonizar o modo de pensar compartilhado por inúmeros
pensadores de esquerda. Não se trata de negar a importância das lutas
e das teorizações europeias, mas de colocá-las em devido lugar, como
localizadas, demasiadamente localizadas.

Western world and the ‘spread’ of the ideal of being Christian, the ideal of Man
and, by the eighteen century, the ideas of citizen and democracy”

30
Considerações finais

É bom dizer que a discussão não pretendeu, obviamente, ser


exaustiva, esgotando o conjunto de questões levantadas pelos
pensadores em suas diferentes obras, mas tão-só destacar
brevemente alguns elementos que orbitam o pensamento crítico
acerca dos direitos humanos, sem perder de vista algumas de suas
particularidades. Tampouco se quis sugerir que a nomeação dos
dois paradigmas recobre a totalidade das ideias elaboradas pelos
pensadores apresentados e muito menos as discussões críticas
contemporâneas em torno dos direitos humanos. O objetivo seria,
antes, aproximar perspectivas, indicando possíveis elementos
compartilhados para além das diferenças, complexidades e
especificidades próprias a cada abordagem teórica. O potencial
crítico dos dois paradigmas reside em suas diferentes ênfases
acerca do processo de exclusão.
A título de conclusões finais, considero importante seguir
estabelecendo comparações entre os dois paradigmas
apresentados. Os dois paradigmas, aqui aventados, fissuram o
universalismo do discurso dos direitos humanos, sobretudo por
não estarem ancorados numa “metafísica da origem”, numa
compreensão de que a Europa é o marco espaço-temporal de novas
disposições morais da humanidade. Cada qual, a sua maneira,
evidencia que a modernidade não é a realização progressiva de
uma moral superior, mas uma formação histórica cheia de
contradições, cuja resolução não termina com o advento do
discurso dos direitos humanos. Pelo contrário, o discurso dos
direitos humanos é, em alguma medida, uma tentativa de
escamotear a contradição posta pelos processos de exclusão social,
instaurando novas modalidades.
Para os pensadores aqui discutidos, a modernidade seria a
racionalidade da exclusão; no entanto, a exclusão não recai sobre
todos da mesma maneira, mas com nuances e complexidades
próprias. E nisso reside parte da riqueza da discussão, pois dá a ver
algumas das falácias dos discursos dos direitos humanos e sua

31
pretensa ilusão de universalidade e neutralidade, tal como
ilustrado pelo pensamento de Bobbio. Os direitos humanos não são
uma gramática superior para a solução dos problemas humanos
enfrentados hoje em escala global. São, antes, a tomada de posição
em favor de determinados grupos diante dos dilemas e dos
desafios do mundo contemporâneo. Os teóricos da colonização são
importantes, pois, além de fissurar a narrativa universalista,
apontam a necessidade de um “giro espaço-temporal” na discussão
sobre direitos humanos.
Embora tenha havido um debate bastante recorrente sobre
saber quais dos dois acontecimentos históricos – campos de
concentração ou colonização – teria sido mais emblemático da
produção de sofrimento humano pela modernidade, esta não foi a
proposta do presente trabalho. Primeiramente, porque o campo de
concentração e a colonização não são tratados como “meros”
acontecimentos históricos datados e acabados, mas como
paradigmas que, de maneira analógica, tensionam as noções de
universal e de particular com vistas a operar uma torção na
temporalidade linear. Segundo, porque o sofrimento humano são
experiências coletivas implicadas numa gramática de sentido
culturalmente construída e nos colocam diante da indagação acerca
de sua irredutibilidade como fenômeno singular. O que está em
jogo aqui é a faceta peculiar de cada fenômeno e como podemos, a
partir de sua leitura, entrever as diferentes formas de exclusão
produzidos pela modernidade/colonialidade ocidental, no intuito
de produzir novas utopias comuns e coletivas.

Referências

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2004.
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32
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modernidad, lógica de la colonialidad y gramática de la
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MIGNOLO, Walter; TLOSTANOVA, Madina. Learning to
unlearn: decolonial reflections from Eurasia and the Americas.
Ohio: Ohio University Press, 2012.
TACCETTA, Natalia. Agamben y lo político. Buenos Aires:
Prometeo, 2011.

34
Resistencias e iniciativas de memoria,
apuestas por la paz en Colombia

Mayra Alejandra Bernal Huertas1


Ângela Maria de Souza2

Resumen: En Colombia el escenario bélico ha contado con múltiples


agentes violentos que han practicado toda clase de actos. Este texto parte
del interés por problematizar el imaginario construido alrededor de las
personas víctimas del conflicto armado en Colombia. En consecuencia,
proponemos la resistencia comunitaria y las iniciativas de memoria como
campos en disputa que tensionan y contrarrestan las lógicas de guerra con
las que el conflicto interno y armado del país es experimentado de manera
diferencial en los distintos territorios. Entendemos que hablar de
resistencia, iniciativas de paz o memoria, remite a procesos históricos e
identitarios diferenciales. Sin embargo, esta propuesta tiene como punto
de partida finales del siglo XX, con las exigencias de verdad y justicia
movilizadas por las personas víctimas de la toma al Palacio de Justicia.
Palabras clave: Conflicto armado. Colombia. Personas víctimas.

Introducción

En el año 2016 en Colombia, en medio de un escenario pautado


por narrativas cargadas de romanticismos, promesas y mariposas
amarillas (esta última alusión a la novela Cien años de soledad del
nobel de literatura, Gabriel García Márquez, y presencia constante
de este periodo), fueron firmados los acuerdos de paz entre
representantes del gobierno nacional de Colombia y miembros de

1 Mestra em Estudos latino-americanos pelo Programa de Pós-graduação


Interdisciplinar em Estudos Latino-Americanos – PPG-IELA, UNILA.
2 Docente do Curso de Antropologia e do PPG - IELA Programa de Pós-Graduação

em Estudos Latino Americanos. Coordenadora do NEALA - Núcleo de Estudos


Afro-Latino Americanos

35
las fuerzas Armadas Revolucionarias de Colombia - Ejército del
pueblo, FARC-EP.
El proceso de paz, en el que está inserida la firma de los acuerdos,
dinamizó la visibilización de cientos de exigencias surgidas en razón
de las violencias que sostienen y han perpetuado desde hace décadas,
el conflicto al interior de Colombia. Junto con las exigencias de
personas víctimas, movimientos ciudadanos, colectivos y
simpatizantes, las apuestas de paz fueron percibidas, señalando
también, la presencia relevante de elementos relacionados con la
cultura, el territorio, algunas subjetividades compartidas en la
percepción del conflicto, prácticas y expresiones de la violencia
diferenciales al interior del país, así como particularidades en la
manera en que es agenciada la vida individual y colectiva a pesar de
los condicionantes impuestos por el conflicto.
Diferentes autores plantean que en Colombia el conflicto
interno y armado se ha caracterizado no solo por la multiplicidad
de violencias, sino también por el accionar de diferentes agentes en
donde incluso el Estado se vincula, bien por acción u omisión. Para
Arango (2017, p. 125), “en Colombia, la violencia estructural, la
violencia simbólica, la inequidad social y la moratoria social
persisten, pero en especial el conflicto armado insiste aún en épocas
de diálogo y tregua”. Por su parte, el informe presentado por el
Grupo de Memoria Histórica de la Comisión Nacional de
Reparación y Re-conciliación del año 2013, denominado ¡Basta ya!
Colombia: memorias de guerra y dignidad, presenta datos concretos en
los que se pone en evidencia la presencia de paramilitares,
guerrillas, narcotráfico, miembros del Estado y la fuerza pública,
en la escena del conflicto armado.
La violencia de estos actores, no se expresa en igual
proporción. Aun así, todos han cometido violaciones a los
Derechos Humanos y al Derecho Internacional Humanitario
afectando de forma directa a la población civil. En ese sentido,
Álvarez (2019, p. 16), plantea que “el proceso de paz con las FARC-
EP y su implementación integral se han comprendido como una
tarea imprescindible del presente, aunque, en todo caso,

36
insuficiente”. Más de medio siglo de conflicto interno en Colombia
y sus profundas huellas, difícilmente pueden ser superados en
razón a un único proceso pautada por dos actores. Según cifras de
la Red Nacional de Información, a corte del 1 enero de 2020, existen
8.553.416 víctimas del conflicto armado en Colombia. De acuerdo
con Arango (2017, p. 107),

Lo que revelan las altas tasas de registro de víctimas no es un promedio ni


un récord, sino un hecho masivamente vergonzante: las víctimas son las
personas que están en el extremo de la exclusión, son tratadas como el
residuo de la operación de guerra y el desarrollo forzado, como restos de las
desigualdades e inequidades económicas, histórico-sociales y políticas.

Las personas víctimas del conflicto armado en Colombia


encuentran reducida su identidad y posibilidades humanas de
elección, al ser definidas como totalidad inmutable a partir de un
hecho victimizante, el cual a todas luces es deshumano y
cuestionable. Así, al término víctima le es asociado un estereotipo
construido histórico, social y culturalmente, distanciándole del
carácter normativo y de derechos de su génesis. De otro lado,
“víctima” resulta ser un enorme paraguas bajo el cual se
homogeniza y amalgama un sin número de demandas individuales
y colectivas. Situación que en ocasiones acarrea respuestas
insuficientes emitidas por el Estado, sus órganos y programas que
limitados a estables mercados de “expertos” no logran
implicaciones reales en la calidad de vida o en el acceso a los de
derechos de las personas a quienes se dirige.
Es en este contexto, que la memoria de las víctimas y sus
iniciativas entreteje redes que posibilitan encuentros y
colectividades, donde lo comunitario se establece como
institucionalidad que propende por el restablecimiento de los
derechos, la ciudadanía, el vínculo, la afectividad e incluso, el
acceso a los mínimos de supervivencia a partir de procesos
organizativos autónomos. De esa manera, la memoria en Colombia
puede ser pensada como criterio de análisis de los procesos
democráticos y de construcción de paz al interior del país.

37
Planteamos una aproximación a la conceptualización
contemporánea de memoria en Colombia, a partir de las
movilizaciones, las exigencias de verdad y justicia de personas
víctimas del holocausto del 6 de noviembre de 1984. Consideramos
igualmente relevante una segunda referencia en un marco temporal
diferente, específicamente el día 27 de agosto del 2020, dado que nos
permite una suerte de paralelo que tensione y problematice la
comprensión de las víctimas del conflicto armado y su memoria. En
tanto lo comunitario, es movilizado a través de las estrategias para la
construcción de paz, propuesta por Unión de costureros.
El 6 de noviembre de 1984 fue la toma al palacio de justicia, el
27 de agosto del 2020 fecha en de inauguración, en Bogotá, de la
implementación de uno de los puntos del acuerdo paz firmados en
el año 2016; ambos eventos son radicalmente distintos. A pesar de
eso, posibilitan el desarrollo de esta propuesta que sugiere
reflexiones al respecto de la figura de víctima del conflicto armado
al interior del país. De esa manera, el desarrollo propuesto está
definido en tres tópicos interrelacionados que oscilan entre la teoría
y algunas perspectivas de análisis, buscando con ello un escrito que
pueda transitar por diferentes comprensiones del panorama
nacional de Colombia.
Este documento es resultado de las actividades académicas y
de investigación desarrolladas durante la Maestría en Estudios
Latino-americanos, de la Universidade Federal da Integração
Latino-Americana, proceso orientado por Angela María de Sousa.
Es un estudio de carácter exploratorio relacional, con un recorte
temático en clave étnico-racial, que privilegia las voces e iniciativas
de paz de quienes se identifican como personas víctimas del
conflicto armado en Colombia.

Víctimas y memoria, algunas tensiones en el marco del conflicto

Los hechos ocurridos en el año de 1984, en el Palacio de Justicia


en Bogotá, son una herida abierta en la historia de Colombia. Las
exigencias de verdad y justicia que han sido lideradas por los

38
familiares de las personas desaparecidas o muertas, son una voz
permanente y renovada que se expresa colectiva, organizada y
potente aun ante la producción de discursos oficiales carentes de
respuestas, verdad y justicia. Se asocian las exigencias movilizadas
por las personas víctimas del Holocausto del Palacio, con el punto
de partida de las iniciativas de memoria de las víctimas del
conflicto armado en Colombia.
El día 6 de noviembre de 1984, “12 personas fueron
desaparecidas forzosamente, 4 fueron torturadas y un magistrado
auxiliar fue desaparecido y luego ejecutado extrajudicialmente por
agentes de la fuerza pública. Más de 90 personas murieron”
(PALACIO, 2020). Las complejas circunstancias que envuelve tanto
la toma del Palacio por parte de integrantes de la guerrilla urbana
del M-19, como el operativo que fue desplegado por parte del
Estado en el que se movilizó un gran número de efectivos del
ejército y la policía, son materia de debate y centro de múltiples
investigaciones.
El tiempo transcurrido entre la toma del palacio, el operativo
desplegado por el Estado y el reporte de “normalidad”, es cercano
a 30 horas. Por su parte, las exigencias de verdad y justicia han
superado las tres décadas, en algunos casos siendo agenciadas por
las nuevas generaciones.
Es preciso decir que, previo al conflicto armado, las violencias
de Estado o la instauración del andamiaje de Nación, la memoria y
sus tensiones, ya eran parte del repertorio de existencia y
resistencia que “pueblos indígenas y afros han venido significando
a lo largo de los años” (WALSH, 2017, p.7). Sin embargo, la manera
en que la memoria articula la vida, el tiempo y los condicionantes
particulares de las experiencias, comunes o no, en el marco del
conflicto armado no pueden ser pensadas como un estándar.
Rosero-Labbé (2007, p. 215) plantea la existencia de “diferencias
culturales étnico-raciales microlocales”; postulado que explica el
amplio espectro de demandas particulares e iniciativas de memoria
surgidas desde los territorios.

39
Pollak (1989) propone la memoria como un campo en disputa,
en el que convergen intereses, versiones y hechos históricamente
situados. Un campo generalmente tensionado por la memoria
oficial y las memorias subterráneas. Por su parte, en el marco del
conflicto interno de Colombia, según Arango (2017, p.113) “las
iniciativas de memoria son por lo tanto expresiones significativas
de las personas y las organizaciones de víctimas que expresan
públicamente sus testimonios, objetivos y demandas”.
La duración en el tiempo del conflicto interno en Colombia
antecede los hechos del Palacio de Justicia. Adicionalmente, el
ápice de las violencias se ha anido en zonas rurales y periféricas
donde la distancia de los centros urbanos, así como la ausencia del
Estado, potencializa la precarización de la vida, la pobreza, la
permanencia en el olvido y la existencia como cifra. En este sentido,
el proceso de paz y la firma de los acuerdos en el año 2016, entre
representantes del gobierno nacional y miembros de las FARC-EP,
estimuló la visibilización de las condiciones de abandono por parte
de Estado, las violencias específicas movilizadas por el conflicto, al
igual que la manera única en que los territorios y poblaciones
agencian la vida articulados por construcciones de memoria.
Según cifras de la Red Nacional de Información, a corte del 1
enero de 2020, existen 8.553.416 víctimas del conflicto armado en
Colombia. El registro realizado por número de identificación o
nombre completo, presenta en ocasiones más de un hecho
victimizante por persona, para un total de 10.608.112 eventos. Los
números corresponden a valores totales, que comprenden un registro
histórico anual, que inicia con 159.239 víctimas antes del año 1985, al
cual le es sumado 25.960 víctimas, para el año de 1985; seguido por
28.871 víctimas para el año de 1986; 35.747 víctimas para el año de 1987
y así sucesivamente es actualizado con las cifras anuales e
incorporadas las categorías correspondientes a las nuevas normativas.
De esa manera, las 16 categorías que presentan el actual
reporte general de víctimas del conflicto armado en el desagregado
por hecho, responde a fines normativos que regulan y definen los
hechos concretos por los cuales una persona puede ser considerada

40
víctima del conflicto armado en Colombia. De tal suerte que
Abandono o Despojo Forzado de Tierras, Desplazamiento, y
Desplazamiento forzado, se encuadran en reglamentaciones
normativas específicas.
Entre tanto, la definición de víctima es dada por la ley 1448 de
2011 en el artículo 3, que plantea:

Se consideran víctimas, para los efectos de esta ley, aquellas personas que
individual o colectivamente hayan sufrido un daño por hechos ocurridos a
partir del 1º de enero de 1985, como consecuencia de infracciones al Derecho
Internacional Humanitario o de violaciones graves y manifiestas a las
normas internacionales de Derechos Humanos, ocurridas con ocasión del
conflicto armado interno. También son víctimas el cónyuge, compañero o
compañera permanente, parejas del mismo sexo y familiar en primer grado
de consanguinidad, primero civil de la víctima directa, cuando a esta se le
hubiere dado muerte o estuviere desaparecida. A falta de estas, lo serán los
que se encuentren en el segundo grado de consanguinidad ascendente. De
la misma forma, se consideran víctimas las personas que hayan sufrido un
daño al intervenir para asistir a la víctima en peligro o para prevenir la
victimización. La condición de víctima se adquiere con independencia de
que se individualice, aprehenda, procese o condene al autor de la conducta
punible y de la relación familiar que pueda existir entre el autor y la víctima.

Los temas específicos de la norma, escapan a nuestro análisis.


Sin embargo, queremos sugerir reflexiones en torno a las personas
víctimas del conflicto armado en Colombia. Pues si bien es cierto la
condición de víctima es permanente, el evento victimógeno es
experimentado por personas y en ese caso la condición humana,
sus posibilidades y derechos, también permanece. No plantemos
con esto una inmutabilidad humana, intentamos llamar la atención
a la necesidad humana de elegir la propia vida, construirse en
función de unos objetivos, superar el pasado y resignificar el dolor.

Voluntad de paz

De acuerdo con Freire (2019), la denuncia de la realidad injusta


y la anunciación de futuros posibles son parte fundamental del
proceso de lectura crítica del mundo y la base sobre la cual es

41
posible la transformación de la sociedad. El punto de partida, para
tal transformación, es entonces pronunciar la palabra en
permanente reflexión dialógica. En Colombia, en el marco del
conflicto, el silencio es mandato y estrategia de sobrevivencia.
La exposición permanente a violencias, no es equiparable con
la experiencia ocasional de un hecho particular. Recordemos que
las violencias de Estado, la falta de oportunidades, la pobreza, el
abandono estatal, el racismo estructural, la exclusión, entre otros,
también representan violencias que adicionalmente potencializan
la aparición de conflictos armados. De modo que, encontrar
elementos comunes que posibiliten una colectividad, es mucho más
complejo de lo que puede ser pensado. Sin embargo, resulta ser la
memoria y las iniciativas de memoria un criterio articulador en
medio de las diferencias.
Ahora bien, con motivo de la implementación de los Planes de
Desarrollo con Enfoque Territorial (PDET) - compromiso adquirido
tras la firma de los acuerdos de paz entre miembros de las FARC-
EP y representantes del Gobierno Nacional de Colombia - el 27 de
agosto del 2020, durante el evento de inauguración de PDET para
la capital del país, promovido por la alcaldía mayor de Bogotá, se
hizo público el reclamo que ya era explícito.
Desde el patio de las esculturas, en el Parque de la
Reconciliación, y por telón de fondo el monolito del Centro de
Memoria Paz y Reconciliación y junto a los cientos de columbarios
intervenidos por la artista Beatriz González en la obra “auras
anónimas”, tuvo lugar la inauguración de los PDET de la ciudad
de Bogotá. La presencia de un reducido grupo de asistentes, así
como la disposición del espacio y el uso de mascarillas o tapabocas
en cumplimiento de las medidas de distanciamiento social,
promovidas en razón al Covid-19, no son los únicos elementos que
llaman la atención del encuentro.
El evento contó con un espacio de diálogo entre dos miembros
del partido FARC, excombatientes actualmente Senadores, y dos
mujeres víctimas del conflicto armado en Colombia. La respuesta
dada por una de las mujeres víctima, ante la invitación a dar un

42
abrazo como señal de reconciliación, ocupa un lugar en la historia
reciente del país. Las palabras de Carmenza López fueron:

No es fácil, para mí es un poco difícil. Porque yo lo que quiero es que ustedes


me digan la verdad. ¿Me digan que fue lo que pasó? Y quiero esa verdad
[…]. Una verdad justa, una verdad honesta, donde nosotros podamos
sentirnos un poco en paz. […] La verdad es lo que necesitamos. ¿Vamos a
empezar este camino, cierto?, y llegará el momento en que podemos llegar a
ese abrazo. ¿Si? Perdóneme, pero es la verdad. Lo que siento en este
momento. Iniciemos este camino, para poder hacer este trabajo y que
nosotros nos podamos fortalecer un poco más, que tengamos fuerza. Y yo
creo que ese abrazo lo recibiré, el día que ustedes me digan la verdad.
(VÍCTIMA, 2020)

Freire (2019) plantea que, a pesar de lo chocante que pueda


parecer la respuesta contundente de los oprimidos contra las
fuerzas que des-humanizan, es en este acto donde el amor hace
presencia y humaniza a oprimidos y opresores. En este sentido,
entendemos que se requiere de una gran voluntad de
transformación y de construcción de paz, posicionarse contrario a
las lógicas impuestas por el conflicto armado en Colombia.

Paz e institucionalidad comunitaria

Pese al acto valeroso de Carmenza López, al pronunciarse


públicamente e invocar la fuerza de la colectividad de las víctimas de
las FARC, es necesario tener presente la multiplicidad de agentes
violentos e identidades que convergen en el conflicto interno y armado
de Colombia. La respuesta de Carmenza López no es una rareza entre
las personas víctimas, es coherente con el soporte y las subjetividades
entretejidas a través del vínculo, el sentido de pertenencia, la
resignificación de las experiencias, la presencia de exigencias
comunes, la articulación con la memoria y las iniciativas de memoria
paridas de forma colectiva. Lo anterior, sin dejar de lado los procesos
que competen a cada persona.
Cada individuo posee un entramado cultural que le provee de
significados y herramientas para el análisis e interacción con el
mundo. Así, cada persona vive su propio proceso de elaboración y

43
resignificación de las experiencias que le sujetan al daño. Sin embargo,
la colectividad desempeña un papel fundamental al restaurar
paulatinamente el tejido social y el vínculo que las violencias
invisibilizan o destruyen. Aun cuando no signifique, necesariamente,
el retorno a un estado anterior al hecho victimógeno.
Cabe destacar que, en Colombia, la tenencia y uso de tierras ha
sido históricamente motivo de disputa, afectando de forma
permanente los territorios ancestrales de pueblos indígenas y de
matriz africana. En este caso, y ante las reiteradas migraciones
internas, producto de las violencias movilizadas por el conflicto
armado, las prácticas ancestrales, la memoria colectiva, las
preferencias alimentarias, las lógicas compartidas que sostienen el
pensamiento y la identidad étnico-racial, entre otras, se configuran en
saberes-resistencia que aun fuera del territorio están presentes como
identidad individual y colectiva.
Poco se conoce de las víctimas campesinas y civiles, que no
responden a identidades étnico-raciales, en lo que respecta a un bagaje
cultural, histórico o de saberes que puedan ser considerados como
elementos de una subjetividad compartida. Por el contrario, existe un
sin número de estudios técnicos en que las especificidades culturales
se reducen a ubicación geográfica y estadísticas relativas a criterios
generales.
En consecuencia, cuando no reconocida, la diversidad presente
en la figura víctima, las acciones o propuestas desde el Estado, en lo
mínimo, se tornan insuficientes, descontextualizadas, discursos
oficiales en campos en disputa, donde la memoria y las iniciativas de
memoria, se configura adicionalmente en contra hegemónica al
tensionar a la luz del discurso hegemónico, el propio accionar el
Estado. En Colombia a través de las exigencias movilizadas por los
Derechos Humanos, el Derecho Internacional Humanitario y la
Justicia Transicional.
Junto con los acuerdos de paz entre representantes del Gobierno
Nacional de Colombia y miembros de las FARC-EP, se dio una
apertura democrática en el país que posibilitó la interacción, diálogo y
escucha de diversas voces. Muchas de las cuales aún y a pesar de las
limitaciones y condicionantes del conflicto armado, la inoperancia del

44
Estado, la precariedad de la vida o la ausencia de educación formal,
proponen acciones concretas de paz. Planteamos esta aproximación a
partir de la propuesta de Instituciones Comunitarias para la paz, de
Martin et all (2018, p. 42-43),

Las instituciones comunitarias […] son en sí mismas complejas estructuras


de regulación y transformación social […], las múltiples formas como opera
y se legitima la institución comunitaria son las que permite caracterizar sus
acciones en un marco localizado de construcción de paz, en unos focos de
transformación generados por los actores y en unas estrategias y tácticas de
gestión del mejoramiento de las condiciones de vida locales.

Las propuestas que germinan en los territorios y las


comunidades, a través de procesos organizativos autónomos,
desarrollan estructuras complejas no jerarquizadas, en tanto se
orientan por las condiciones concretas que definen sus demandas.
Pese a la política de descentralización que viene siendo
desarrollada en Colombia, persiste en el país una concentración de
recursos que se traduce en un desarrollo e inversión desigual.
Bogotá D.C., distrito capital del país, es también el centro de las
principales operaciones administrativas, económicas, jurídicas,
políticas, estatales, así como la ciudad que recibe el mayor número
de desplazados y víctimas del conflicto armado del país.
Según cifras de la Red Nacional de Información (2020, a corte
1 de enero), en el informe técnico de víctimas del conflicto armado,
la ciudad de Bogotá D.C. tiene en su histórico, para el año 2000, un
reporte de 12.582 personas recibidas por desplazamiento. En el año
2005 la cifra pasó a ser de 37.567 personas recibidas; luego, en el
año 2007, tuvo registro de 54.509; en el año 2010, el reporte es de
17.998 personas; en el 2015, de 14.029 personas. El reporte finaliza
con una cifra de 4.362 personas recibidas por desplazamiento en la
ciudad de Bogotá D.C. para el año de 2019.
Las condiciones históricas específicas en que tales cifras se
enmarcan, requieren de estudios interdisciplinares detallados, que
den respuesta a los cientos de preguntas que el informe alimenta.
Sin embargo, los números presentados por el reporte permiten

45
suponer un flujo permanente de personas que ingresan a la capital
del país, en condición de desplazamiento forzado o producto de
conflictos, en lo mínimo, territoriales.
En ese sentido, las personas con identidades étnico-raciales o
culturales para quienes el territorio, las prácticas ancestrales o las
dinámicas comunitarias son parte fundamental de una construcción
de mundo, se les impone la reconfiguración de la identidad y la
adaptación, en un entorno mediado por desventajas y marcadores de
exclusión. Este escenario se suma al resquebrajamiento de las propias
subjetividades, producto de las violencias y hechos victimizantes en
el marco del conflicto interno, reduciendo la existencia humana “a la
materialidad contingente y a la pura angustia por procurar la
supervivencia” (CANENCIO et al, 2018, p.83).
En consecuencia, los grupos humanos con procesos de
autogestión que movilizan demandas de paz, memoria, verdad,
justicia y no repetición, expresan potencial para la construcción de
paz desde la institucionalidad comunitaria. “Las instituciones
comunitarias para la paz, moderan las tensiones y previenen la
reactivación de la violencia [...], generan y cristalizan
‘normatividades otras''' (MARIN et al, 2018, p.42), en tanto poseen
una compleja estructura interna que vincula, en una suerte de
entramado colectivo logrado por reglamentaciones propias que
definen los modos de interacción externa.
Un ejemplo concreto, que surge desde las tensiones del
desplazamiento de la identidad étnico-racial y los marcadores de
exclusión que transversaliza las interacciones en la ciudad de
Bogotá D.C., es la propuesta de paz de Unión de Costureros
liderada por Virgelina Chará, a través de los oficios de la memoria.
Virgelina, antes de ser víctima del desplazamiento por el
megaproyecto del embalse de salvajina, fue lideresa que, junto a su
comunidad, trabajó la minería artesanal. Luego del primer
desplazamiento, y a lo largo de su trayectoria de vida, se ha
desempeñado como lideresa comunitaria y defensora de derechos
humanos; histórico que le significó la nominación al Premio Nobel
de Paz del año 2005.

46
Los oficios de la memoria son cinco estrategias pedagógicas
para la construcción de paz. Son resultado de encuentros mediados
por iniciativas de memoria y exigencias de Derechos. Surgen y se
actualizan en el encuentro colectivo multicultural étnico y racial
entre víctimas del conflicto armado, defensores de derechos
humanos, estudiantes de colegios y universidades, docentes de
diferentes niveles, simpatizantes, trabajadores, campesinos y todo
aquel que, interesado en la construcción de paz, decide de forma
libre y espontánea participar del proceso que se inicia
reconociéndose como ciudadano y agente de cambio.
Estas estrategias, basadas fundamentalmente en saberes
ancestrales, tradicionales, culturales o regionales, son articuladas y
nominadas a partir de la relación con la memoria. Así la memoria
bordada, la memoria escrita, transformada en medicina tradicional,
sabores y saberes, además de expresiones culturales, son
movilizadas a través de metodologías propias. Su ejecución está
anclada a demandas de verdad, justicia y no repetición. En tanto
las premisas que orientan los ejercicios de memoria representan un
entramado colectivo, que en la propia fluidez del encuentro
consigue responder a diferentes demandas. Convirtiéndose, en
algunos casos, en el ejercicio de la ciudadanía que ha sido negada.
Estas prácticas se configuran a nivel externo en atractivas
formas de resistencia que logran poner en marcha, y movilizar, un
amplio y heterogéneo grupo de agentes con sus lenguajes,
narrativas, demandas y propuestas. De forma tal que “estas
gramáticas han ayudado a consolidar espacios potentes de
democracia comunitaria y ciudadana en diferentes escalas”
(MARIN ET ALL, 2018, p. 46).
Actualmente, como parte de los objetivos a los que responde el
entronque institucional, Virgelina Chará, Asomujer y trabajo, Unión
de costeros y la Red de PRO-tejedores de la memoria, desarrollan
diferentes estrategias que buscan posibilitar los ejercicios de memoria
colectiva, en las condiciones de distanciamiento social impuestas por
el riesgo de contagio del Covid-19.

47
Consideraciones finales

Este capítulo ha buscado señalar la necesidad de repensar la


figura de víctima a partir de perspectivas de análisis que dialogan
con la teoría y las formas concretas de resistencia al conflicto
armado en Colombia. En este sentido, hemos planteado la memoria
y las inactivas de memoria como categorías articuladoras entre las
experiencias victimógenas, las exigencias de verdad, justicia, no
repetición y las iniciativas de paz que germinan de la propia
experiencia de vulneración.
La permanencia en el tiempo y la intensidad del conflicto en
Colombia contrastan con el sesgo discursivo que acompaña el
actual panorama de implementación de los acuerdos de paz y
movilizaciones sociales. Es entonces necesario remitirse a la propia
historia, conocer algunos antecedentes relevantes de la lucha que
han llevado por décadas las personas víctimas del conflicto
armado. Consideramos igualmente importante, exponer cifras en
marcos temporales aleatorios que impidan generalizar o suponer
que existe algún tipo de normalidad o condición natural que
dinamiza las violencias,
Para el caso concreto de las personas víctimas del conflicto
armado que se desplazan a la capital del país, y en particular
refiriéndonos a la propuesta de paz de Unión de Costureros,
entendemos que existe una presencia fuerte de las teorías críticas
en los oficios de la memoria, que evita la idealización de escenarios
futuros o el romanticismo del tiempo pasado.
Por su parte, los oficios de la memoria pueden también ser
analizados a través de las pedagogías críticas. Las prácticas/oficios
proporcionan, durante su praxis, herramientas para la construcción
de futuros posibles, en tanto potencializa en la colectividad la
capacidad individual de elección y agenciamiento de la propia vida.

48
Referencias

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Estrada et al (org.). El acuerdo de paz en Colombia: entre la
perfidia y la potencia transformadora. Bogotá: Clacso, 2019. Cap. 1.
p. 15-19. Disponível em: http://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/se/
20191108024211/El_acuerdo_de_paz_en_Colombia.pdf. Acesso
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ARANGO, Óscar Fernando Acevedo. Episteme de la victimidad:
reposicionar al sobreviviente y reparar a la víctima. Bogotá D. C:
Usta, 2017. 266 p.
CANENCIO, Diego Mauricio Aponte et al. Encuentros
Humanizantes: Implementación de una propuesta, en perspectiva
de salud mental, para la atención de personas desmovilizadas de
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comunidades. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2018.
CASTRO-HERRERA, Fabio Saúl. Administración de justicia para la
paz. In: MARÍN, Jefferson Jaramillo; CASTRO-HERRERA, Fabio Saúl;
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en Colombia: esbozos teóricos, experiencias locales y desafíos
Sociales. Esbozos teóricos, experiencias locales y desafíos sociales.
Bogotá D. C.: Universidad Nacional de Colombia, 2018. (Colección
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y Reparación Integral A Las Víctimas. Víctimas del conflicto armado:
Reporte General. Colombia, 2020. Disponível em: https://cifras.
unidadvictimas.gov.co/Home/Vigencia_ocurrencia?vvg=1. Acesso
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COSOY, Natalio. A 30 años de las "28 horas del terror": así fue la toma
del palacio de Justicia en Colombia. BBC Mundo. Bogotá, p. 1-10. 5
nov. 2015. Disponível em: https://www.bbc.com/mundo/noticias/
2015/11/151030_colombia_30_aniversario_toma_palacio_de_justicia_
nc. Acesso em: 2 abr. 2020.
ENTREVISTA a Virgelina Chará, defensora de los derechos humanos
en Colombia. Produção de Hemisferio Zero. Realização de Hemisferio

49
Zero. Bogotá D. C.: Hemisferio Zero, 2013. (8 min.), P&B. Colaboración
de la Alta Consejería para los derechos de las víctimas, la paz y la
reconciliación de Bogotá. Disponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=s7EMryU7rE0&t=112s. Acesso em: 1 fev. 2020.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e
outros escritos. Cartas pedagógicas e outros escritos. 4. ed. Rio de
Janeiro/ São Paulo: Paz e Terra, 2019.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 68. ed. Rio de Janeiro/ São
Paulo: Paz e Terra, 2019.
MARÍN, Jefferson Jaramillo et al (Org.). Instituciones comunitarias
para la paz en Colombia: Esbozos teóricos, experiencias locales y
desafíos sociales. Bogotá D. C: Universidad Nacional de Colombia,
2018. (Colección Gerardo Molina).
ROSERO-LABBÉ, Claudia Mosquera. Reparaciones para negros,
afrocolombianos y raizales como rescatados de la Trata Negrera
Trasatlántica y desterrados de la guerra en Colombia. In: ROSERO-
LABBÉ, Claudia Mosquera; BARCELOS, Luiz Claudio (ed.). Afro-
reparaciones: memorias de la esclavitud y justicia reparativa para
negros, afrocolombianos y raizales. Memorias de la Esclavitud y
Justicia Reparativa para negros, afrocolombianos y raizales. Bogotá:
Universidad Nacional de Colombia, 2007. Cap. 1. p. 213-278. (Serie
Estudios Afrocolombianos. Centro de Estudios Sociales).

50
Saúde mental, comunicação e gênero:
o corpo feminino e a violência no cotidiano

Camila Viviane Lui de Sousa1


Maria Inês Amarante2

Resumo: Este trabalho traz reflexões sobre gênero e tratamentos de


transtornos mentais, priorizando o corpo feminino e a violência praticada
contra a mulher, presentes em estudos como os de Zanello (2014-18), Basaglia
(1985); Federici (2017); Foucault (1997); Minayo (2014); Segato (2003); Falquet
(2017-19). A pesquisa iniciou-se nas oficinas terapêutico-educativas com
mulheres no Centro de Atenção Psicossocial (CAPs) de Foz do Iguaçu,
baseadas na comunicação interpessoal, conforme proposta pedagógica de
Freire (2005), com uso de dinâmicas e material escrito e audiovisual que
possibilitaram a ampla participação das usuárias e o relato de suas histórias
de vida. As doenças mentais que mais atingem o público feminino, como a
depressão e a ansiedade, ao longo do tempo, foram vistas a partir de
perspectivas biologizantes, deixando de se considerar as condições sociais,
materiais e existenciais que comportam vários tipos de violência, bem como
os processos que essas mulheres sofreram em relação às torturas, humilhação
e ameaças. Assim, critica-se a intervenção que se restringe à prescrição de
medicamentos e supressão dos sintomas e considera-se a relevância de ações
que aliam gênero e adoecimento mental que advém de relações de opressão
e diferenciações humanas.
Palavras-chave: Saúde Mental. Mulheres. Gênero. Corpo. Violência.

1 Graduada em Terapia Ocupacional; Especialista em Direitos Humanos na


América Latina, Mestranda do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em
Estudos Latino-Americanos da Universidade Federal da Integração Latino-
Americana.
2 Doutora em Comunicação e Semiótica e Pós-Doutora em Ciências Sociais

(Antropologia) pela PUC-SP; Docente e Pesquisadora da Universidade Federal da


Integração Latino-Americana – UNILA/ ILAACH/IELA.

51
Introdução

As mulheres são muito presentes como pacientes dentro dos


equipamentos de saúde mental. Desperta a atenção a aliança entre
a mulher e a loucura: além de serem predominantes em números
de casos, também são representadas como irracionais, enquanto os
homens são considerados detentores da razão. Este foi o princípio
norteador da pesquisa, da qual este trabalho traz um recorte, que
tem como objetivo analisar, a partir da narrativa das mulheres com
transtornos mentais, utentes do Centro de Atenção Psicossocial
(CAPS), em Foz do Iguaçu, o que as questões relacionadas ao
gênero influenciaram no processo de adoecimento e
encaminhamento às instituições especializadas.
A metodologia utilizada para tal estudo, caracterizado como
história de vida dentro de uma proposta operativa, segundo
Minayo (1992), comporta, além de levantamentos bibliográficos,
observações de campo, neste caso havidas em atividades grupais
desenvolvidas durante oficinas terapêuticas por meio de projeto de
extensão,- e de entrevistas que trouxeram os relatos dessas
mulheres. Para a criação e desenvolvimento do projeto foi utilizada
a pedagogia da educação popular proposta por Paulo Freire (2005),
com dinâmicas interativas, possibilitando a participação das
usuárias do equipamento, a valorização do diálogo e o
desenvolvimento da expressão e autonomia de todas.
As entrevistas foram centradas, sobretudo, nas trajetórias de
vida e experiências dessas mulheres em diversos aspectos, tais
como família, trabalho e processos de adoecimento. Das seis
entrevistadas, três já haviam sofrido violência sexual na infância,
mas todas vivenciaram algum tipo de violência como assédio moral
no trabalho e violência doméstica. Desse modo foi possível
observar que as principais temáticas relacionadas com o
adoecimento mental dessas mulheres foram: o trabalho, o cuidado
e a violência, sendo este último tema o que pretendemos abordar
nesse trabalho.

52
O uso da história de vida como um instrumento metodológico
leva às seguintes questões:

O que acontece com a experiência quando ela vai se tornando memória? O


que acontece com as experiências quando vão se tornando história? O que
ocorre com a memória coletiva quando a vivência de fatos muito fortes
(guerra espanhola, o holocausto, ou vivências mais simples) se distancia no
tempo? (MINAYO, 1992, p. 159)

Esses questionamentos podem, em um primeiro momento,


apresentar apenas as limitações dessa abordagem ao se
compreender que “narrativas de vida nunca serão uma verdade
sobre os fatos vividos”, mas na realidade elas também podem abrir
diversos caminhos, já que o material coletado traz as versões que
os sujeitos entrevistados dão sobre suas vivências e visão de futuro,
além dos sentidos comuns para as experiências humanas, a partir
de lugares sociais específicos – nesse estudo, mulheres com
adoecimento mental (MINAYO, 1992, p. 154).

Em resumo [são] poderosos instrumentos para a descoberta, a exploração e a


avaliação de como as pessoas compreendem seu passado, vinculam sua
experiência individual a seu contexto social, interpretam-na e dão-lhes
significado, a partir do momento presente. Por isso, elas oferecem material para
generalização sociológica, descrição de época e também possibilitam levantar
questões novas e de diversos níveis de abrangência (MINAYO, 1992, p.158).

A pesquisa se baseia na história de vida tópica ou também


chamada temática, que prioriza um determinado momento ou
etapa da vida pessoal, no presente caso, o processo de adoecimento
das mulheres, as experiências que vivenciaram até chegarem aos
equipamentos de saúde.
O sofrimento mental marca essas mulheres, porém constitui
um dos aspectos a se considerar em suas experiências complexas:
todas elas são mulheres da classe trabalhadora, trazem em si outras
marcas e, ainda, desejos e projetos de uma vida melhor.
Segundo Meihy (2000, p. 96) a história oral pode ter uma
função social, ser “uma alternativa que dá voz aos grupos de uma

53
forma ou de outra silenciados”. O autor faz uma retrospectiva da
história oral brasileira que, na América Latina se iniciou tratando
de temas ligados à experiência do exílio e relata que a aceitação
dessa abordagem no Brasil teve relação com o processo de
redemocratização. Dessa forma, a origem da inserção da história
oral latino-americana foi diferente da produção existente nos
Estados Unidos e nos países europeus, onde ela surgiu após a II.
Guerra devido à insatisfação com os produtos derivados dos
métodos acadêmicos aplicados e, também, devido à revolução
eletrônica, como a difusão do gravador.
Existia o entendimento de que o tom político da história oral
brasileira seria uma nova solução para se compreender a sociedade,
superaria as análises sociais tidas como mais tradicionais,
conservadoras e, assim, insuficientes, principalmente para apontar
políticas públicas (MEIHY, 2000). Dessa forma, a história oral no
Brasil e na América Latina é resultado de leituras combinadas que
a faz ser bem elaborada na fundamentação e no enquadramento
teórico político social.
O primeiro encontro formal sobre história oral no Brasil
ocorreu em 1983, apesar de já terem existido outras iniciativas
voltadas aos estudos documentais e de arquivos que a ela se
relacionavam (MEIHY, 2000).
Assim, se aprofundou o debate sobre sua função social:
história oral por quê? De quem? E para quem? Uma de suas marcas
mais importantes, nesse contexto, é a investigação com mais de um
tipo de documento, outra forma de fonte (MEIHY, 2000). No Brasil,
houve um processo de amadurecimento, consolidação e difusão de
uma abordagem ainda em muito presente nas pesquisas atuais.
Há um tipo específico de história oral - a história oral de vida.
Michele Perrot (2015) no desenvolvimento de ‘Minha História das
Mulheres’, destacou que a história oral despertou entusiasmo nos
anos 1970. A intenção era ouvir os ausentes da história, entre elas
as mulheres, que despertavam interesse duplo: como testemunhas
da vida privada e de si mesmas (PERROT, 2015).

54
Já Dafne Patai (2010) trabalhou com essa forma de pesquisa em
‘História Oral, Feminismo e Política’ e, em sua reflexão, trouxe
como um dos processos mais antigos do mundo o fato que duas
pessoas juntas e conversando tornou-se um dos métodos
preferidos de mulheres pesquisadoras. A autora descreve como a
História Oral abriu caminho para a história de vida em que, a partir
de uma narrativa pessoal, pode ocorrer uma revisão de sua vida:
“Subitamente, qualquer pessoa se tornou um narrador em
potencial: o contador de sua história pessoal” (PATAI, 2010, p. 136).
No entanto, houve também controvérsias sobre esse tipo de
pesquisa: Patai nos traz a perspectiva da historiadora Tuchman,
quando afirma que, com a história oral, foram produzidos quilos
de material questionável e indigesto. Apesar disso, foi um dos
métodos de maior interesse das feministas e, uma das justificativas
para tal, seria pela possibilidade que oferece de se conectar com
outras mulheres, uma contribuição das mulheres intelectuais que
priorizavam a subjetividade. Os aspectos em torno da história oral
que foram questionados tinham relação quanto ao projeto, ao
processo e ao produto. As principais questões eram sobre o
financiamento, que tipos de obrigações éticas e relações se têm com
os entrevistados e como tratar o produto final (PATAI, 2010).
Para a autora, a única forma de resolver algumas questões
ligadas à desigualdade de gênero, por exemplo, é através da ação
política no meio público e não na academia (PATAI, 2010). Essa
afirmação vem ao encontro da já evidenciada importância política
da história oral na América Latina, desenvolvida a partir do
processo de redemocratização, ou seja, não diferenciando espaços
de disputa, mas relacionando com projetos de sociedade, ao trazer
vozes excluídas para a academia.
A forma de se realizar tais pesquisas podem ser diversas, no
âmbito acadêmico ou fora dele, os interesses igualmente são
variados e podem ser centrados nas informações que as entrevistas
trazem, nas representações simbólicas ou nos dois aspectos,
segundo Amado (2000). A autora já aponta algumas contribuições
ligadas aos indígenas e marginalizados sociais. Além disso, lembra

55
que, nas experiências latino-americanas, há uma forte característica
interdisciplinar, por exemplo, tendo como pesquisadores também
profissionais da saúde.
Assim, observa-se que a importância da história oral na
América latina foi crescente e é evidente o interesse de mulheres
pesquisadoras em estudar trajetórias de vida, especificamente de
outras mulheres. Uma justificativa possível é que, por muitos anos,
estas também foram ‘vozes silenciadas’.

Gênero e Saúde Mental

A relação com a loucura se transformou de acordo com cada


período histórico. No Renascimento estava ligada à percepção de
transcendências mas, ao longo do século XVII, segundo Foucault,
os loucos passaram a serem reconhecidos: “através de sua
incapacidade para o trabalho e incapacidade de seguir vida
coletiva” (FOUCAULT, 2013, p. 73).
Em fins do século XIX, com o advento da República no Brasil,
houve um redimensionamento das políticas de controle social.
Nesse contexto a loucura torna-se doença mental, monopólio da
psiquiatria (ENGEL, 2000). Esse processo está contextualizado sob
uma concepção de saúde como ausência de doença, com foco no
biológico, individual que “passa a fragmentar o corpo em sistemas,
órgãos, tecidos e células, estruturando um conhecimento cada vez
mais especializado sobre cada função”, chamado modelo
biomédico (BATISTELLA, 2007, p. 54).
Segundo Zanello (2018), com a criação da clínica psiquiátrica
nesse período é que o louco foi compreendido como um objeto com
especificidade que deveria ser estudado e/ou tratado. Dessa forma
foi transformado em “doente mental”, separado de outros grupos
marginais e excluído em asilos específicos, os manicômios. Assim,
em um contexto de separação em sua especificidade de “alienado
mental” o sujeito com transtorno mental foi silenciado, passou a
não poder mais falar sobre si mesmo e a loucura foi objetivada
como a ‘não razão’.

56
Ao se dedicar ao estudo dos manicômios, Basaglia, precursor
da reforma psiquiátrica italiana, afirma a necessidade do estudo
“da relação entre o excluído e aquilo que o excluiu” (BASAGIA,
1985, p. 314). Para o autor, diversas são as instituições com esses
papéis, como a família, a escola, a fábrica e o manicômio, com
finalidades e maneiras diferenciadas: “a autoridade paterna é
opressiva e arbitrária; a escola se baseia na ameaça e na vingança;
o empregador explora o trabalhador; o manicômio destrói o doente
mental” (BASAGLIA, 1985, p. 101).
Em meados do século XX, com a efervescência de uma série de
movimentos sociais, se iniciam questionamentos sobre o papel das
instituições, entre elas o Hospital Psiquiátrico, e se volta cada vez
mais para intervenções fora de seus muros (PASSOS et al, 2017).
Esse processo é chamado de Reforma Psiquiátrica e, apesar do
termo em si ser contraditório e aparentemente indicar
“transformações superficiais", prevaleceu com a finalidade de
“construir consenso e apoio político” (AMARANTE, 1995, p. 180).
Após a Segunda Guerra foram iniciadas experiências por
diversos países como França, Inglaterra e Estados Unidos e, no caso
brasileiro, muito influenciado pela experiência italiana, com um
“viés desinstitucionalizante”. Dessa forma, propunha o fim do
manicômio e questionava o conjunto de saberes que o
fundamentava (Id., p. 195).
Em 1990, foi aprovada a Declaração de Caracas na Conferência
da Organização Panamericana de Saúde, que orientava a
Reestruturação da Assistência Psiquiátrica nas Américas,
priorizando serviços comunitários e descentralizados, não mais um
sistema hospitalar (OPAS, 1990). No Brasil, culminou com a Lei
10.216, de 2001, que versa sobre “a proteção e os direitos das
pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo
assistencial em saúde mental” (BRASIL, 2001).
Em consequência dessa lei, foi criada a portaria do Ministério da
Saúde nº 336, estabelecendo que os Centros de Atenção Psicossocial
(CAPS) fossem organizados nas modalidades CAPS I, CAPS II e
CAPS III, com estruturas físicas independentes dos hospitais, com um

57
território e população de referência. Estes Centros de Atenção
Psicossocial (CAPS), constituem a principal estratégia no novo
modelo de assistência à pessoa em sofrimento psíquico que substituiu
o modelo hospitalocêntrico desde os anos 1990 visando proporcionar
um atendimento mais humanizado (BRASIL, 1994). Eles têm como
objetivo reinserir a pessoa com transtorno mental na sociedade,
promovendo a saúde e o bem-estar através de ações articuladas em
forma de rede, em conjunto com a família.
A partir desse processo tem início a substituição de modelos de
atenção, antes centrados na internação em hospitais para centrados
nas comunidades, seus territórios e com equipamentos de saúde que
propõem um olhar mais humanitário, cujo centro das ações é uma
transformação cultural onde sejam construídos outros locais sociais
para a loucura (ANDRADE, 2014). No entanto, esse processo não é
uma mera modernização institucional e da psiquiatria uma vez que a
luta antimanicomial está em um contexto das lutas sociais em que as
explorações e opressões, como as de gênero, são compreendidas em
sua relação com a loucura (PASSOS et al, 2017).
As mulheres constituem o grupo que mais apresenta
transtornos mentais, com exceção quanto ao uso de substâncias
psicoativas. Dessa forma, devem ser contempladas pelos
equipamentos de saúde no tocante à intervenção, olhar e cuidados
específicos. Elas têm duas vezes mais chances de apresentar esse
tipo de adoecimento do que os homens e esta diferença está
relacionada a especificidades de gênero (não de sexo), ou seja,
razões sociais e não biológicas. Há trabalhos em que se argumenta
que os Transtornos Mentais relacionam-se a existências de
hormônios específicos, como o estrogênio (ANDRADE et al, in
ZANELLO, 2010) e há uma tendência a subestimar as condições
sociais, materiais e existenciais das mulheres (ANDRATINI in
ZANELLO, 2010).
Algumas questões levantadas a partir de estudos
epidemiológicos que levam em consideração a variável gênero
mostram que se fazem necessárias pesquisas que colaborem com a
análise de como os papéis de gênero e os estereótipos sociais

58
podem influenciar a expressão de saúde mental (PEREIRA et al.,
2007). A justificativa para tal afirmação leva em conta dados
oficiais: segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS) os
Transtornos Mentais Comuns (TMC) como depressão e ansiedade
são os que mais atingem as mulheres (LUDERMIR in ZANELLO,
2010) e esta probabilidade é maior quando se trata de mulheres
afrodescendentes e de condição social precária.
Louro (1997) descreve a formação do conceito ´gender´
(gênero) que passa a ser utilizado de forma a se distinguir de ´sex´
(sexo), ou seja, diferenciando o caráter centralmente biológico das
diferenças entre homens e mulheres, a autora coloca o foco no
caráter social dessas distinções. Para ela, a reivindicação da
igualdade pressupõe diferenciação, ou seja, reivindica que sujeitos
diferentes sejam compreendidos como equivalentes não idênticos.
Dessa forma, entende-se que a igualdade que se almeja é a política,
econômica e social, mas as diferenças são reconhecidas. Segundo
Laurentis (apud LOURO, 1997, p. 47) elas são “percebidas como
tendo a ver tanto (ou mais) com a raça, a classe ou a etnia quanto
com o gênero ou a sexualidade per se”.
Ao abordar o conceito de gênero, Faria & Nobre (1997, p. 29)
enfatizam que ele “procura explicar as relações entre mulheres e
homens”. E as autoras vão mais além: afirmam que seu surgimento
se deve aos anos de luta partindo de movimentos feministas para
explicar teoricamente a opressão das mulheres. A ideia de uma
construção social do “ser mulher” que trazem já vinha sendo
discutida, mas havia dificuldade teórica em se situar tanto a
“origem da opressão” feminina, “quanto inserir a visão dessa
opressão no conjunto das relações sociais e a relação entre essa e
outras opressões, como, por exemplo, a relação entre opressão das
mulheres e capitalismo” (Id.). Era, portanto, necessário “articular
os vários planos de opressão, que se estendiam ao trabalho, família,
sexualidade, poder, identidade e, principalmente, uma explicação
que apontasse com mais clareza os caminhos para a superação
dessa opressão” (p. 30). As autoras lembram que:

59
O conceito de gênero foi trabalhado inicialmente por antropólogos e
psicanalistas, situando a construção das relações de gênero na definição das
identidades feminina e masculina, como base para a existência de papéis
sociais distintos e hierárquicos (desiguais). [Gênero seria então] um conceito
relacional, ou seja, que vê um em relação ao outro e considera que estas
relações são de poder e de hierarquia dos homens sobre as mulheres.
(FARIA; NOBRE, 1997, p. 30)

Contudo, estas relações de poder, em sua maioria advindas da


própria sociedade patriarcal e colonial, legou às mulheres um papel
não apenas secundário, mas legitimou a violência exercida de
várias formas para perpetuá-lo. E atualmente ela está cada dia mais
presente no cotidiano das mulheres que vivem em sociedades de
modelo neoliberal.
A violência, por exemplo, faz parte da expressão da
desigualdade entre os sexos e é um dos atos considerados mais cruéis
e desrespeitosos diretamente aos Direitos Humanos. Dez mulheres
morrem por dia no Brasil vítimas de violência e este fato também é
considerado uma questão de Saúde Pública (TEDESCHI et al, 2014).
Além do sofrimento pela violência, as mulheres adoecem mais
durante a vida do que os homens, apesar de terem uma expectativa
de vida maior. Algumas explicações que envolvem essa
problemática devem-se aos diferentes tipos de discriminação, que
vão desde as existentes nas relações de trabalho, a sobrecarga de
responsabilidades até as questões de raça, etnia, situação de
pobreza e exclusão social (TAVARES, p. 231, 2008).
Dessa forma, critica-se a intervenção em saúde que só leva em
conta a prescrição de medicamentos e supressão dos sintomas. Um
dos pontos importantes na temática da Saúde Mental das mulheres
é sua alta medicalização que, com o objetivo de acalmar, colabora
para que estas pacientes não questionem e se adaptem ao seu papel
de gênero (RODRIGUES in ZANELLO, 2010).

60
Corpo e Gênero

Para compreender a relação entre loucura e gênero, também é


necessário debater a construção social do corpo, como sintetiza
Saffioti (2009, p. 1): “O gênero é socialmente construído, desde que
se considere o substrato material – O CORPO – sobre o qual a
sociedade atua”.
Silvino Santin (1989) realiza uma reflexão sobre como os
filósofos trataram do corpo e também as dimensões da psique e da
alma. Muitos chegaram à seguinte conclusão: o homem é razão e
corpo, pensamento e existência. Essas dualidades corpo-alma são
visualizadas em outros momentos, inclusive no momento atual
com a consolidação de instituições que cuidam do material, como
os bancos, e do espiritual, como as igrejas, há uma medicina
patológica e uma psiquiatra, há uma educação intelectual e uma
educação física.
O corpo do homem construiu-se assim como a norma e foi só
no século XVIII que fizeram uma estrutura do esqueleto feminino,
pois a estrutura básica era masculina. O que chamamos de sexo e
gênero existia em um modelo de sexo único. No entanto, o corpo
feminino era visto como algo inferior e incompleto. Ser homem e
ser mulher era manter uma posição social, um lugar na sociedade.
O sexo antes do século XVII era uma categoria sociológica e não
ontológica (LAQUEUR, 2001).
A contribuição feminina independente para a reprodução
acompanhou a desvalorização da procriação. O “trabalho exclusivo
das mulheres”, enquanto ovuladora espontânea como outros animais,
de alguma forma a desvalorizou e, até a década de 1960, pouco se
sabia sobre a questão hormonal da ovulação (LAQUEUR, 2001).
Fabíola Rodhen, em suas considerações sobre a construção da
ginecologia, lembra que as mulheres eram reconhecidamente
diferentes do homem e que “teriam ficado para trás em relação aos
homens, o que as colocaria em uma posição mais próxima dos
primitivos e das crianças” (RODHEN, 2001, p. 39). A justificativa
para tal consideração, segundo a autora, era que, para a evolução

61
da espécie humana, seria prioritário o desenvolvimento na mulher
dos órgãos reprodutivos e nos homens a inteligência e força.
No contexto moderno, aparentemente, o corpo é celebrado
como livre. Contudo, como descreve Foucault, ele é atravessado
por vários sistemas de dominação e, a partir do século XVIII, é visto
como alvo de mudanças e poder:

O soldado se tornou algo que se fabrica [...] de um corpo inapto fez-se


máquina de que se precisa; corrigiram-se lentamente as posturas [...]. É dócil
um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser
transformado e aperfeiçoado. (FOUCAULT, 1997, p. 117)

Assim, esse processo de disciplinamento favoreceu o


desenvolvimento capitalista, transformando esse homem em força
de trabalho (FEDERICI, 2017).
A partir das alterações da posição social das mulheres na
produção da força de trabalho, Silvia Federici (2017) examina
fenômenos como a divisão sexual do trabalho e trata da
mecanização do corpo proletário que se transformou em máquina
de produção. No caso das mulheres, em máquinas de produção de
novos trabalhadores.
O corpo é o local das ambiguidades dos sujeitos humanos e
espaço por excelência da loucura. O corpo feminino e,
principalmente, a sexualidade feminina inspiraram grande temor
dos médicos e alienistas. Dessa forma, constitui-se em alvo
prioritário das intervenções normalizadoras da medicina e
psiquiatria (ZANELLO, 2018). No entanto, para medicar ou
normalizar esse corpo é necessário diagnosticá-lo.
Na história da Psiquiatria em específico, da Psicanálise, as
pesquisas sobre as mulheres histéricas são famosas. Freud, em seu
estudo sobre o caso Dora, assim define a histeria:

Eu consideraria histérica, sem hesitar, toda pessoa, quer ela seja capaz de
gerar sintomas somáticos ou não, em quem uma ocasião de excitação sexual
produz sensações desprazerosas de maneira predominante ou exclusiva
(FREUD, 2019, p. 67)

62
Apesar de considerar histérica toda a pessoa com esse padrão
de comportamento, é possível visualizar que há
predominantemente em seus estudos mais casos clínicos femininos
do que masculinos.
Em 1952, influenciada pela psicanálise, a Associação
Americana de Psiquiatria lançou um manual para sistematizar e
organizar terminologias associadas aos transtornos mentais, o
chamado Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais
(DSM). Em sua primeira edição registrou 106 categorias e, na
última edição, de 2013, o DSM-V tem mais de 330 categorias de
classificação de transtornos. Há muitas críticas sobre seu uso,
principalmente em relação às atualizações, pois transforma o
sofrimento psíquico em patologias de cunho cerebral
(MARTINHAGO et al., 2019).
Para classificar um determinado transtorno mental, os sujeitos
têm que ter um certo número de sintomas, mas existem algumas
limitações e a primeira delas é a criação dos sintomas. Por exemplo:
o choro é relacionado à tristeza, só que, desde crianças, os homens
são incentivados a não demonstrar fraqueza, não chorar, e isso não
quer dizer que não sintam tristeza. A segunda limitação é sobre o
que é o sintoma, que muitas vezes pode estar relacionado e
enquadrado nos valores de gênero, por exemplo, quando a mulher
deixa de cuidar da casa. Por fim, são os valores do médico que
prevalecem quando enquadram as queixas em sintomas
(ZANELLO, 2018).
O próprio processo de diagnóstico não é desprovido de
estereótipos de gênero. As diversas demandas das mulheres, como
precarização do trabalho, duplas jornadas, violência doméstica, entre
outras, são transformadas pela racionalidade biomédica em sintomas
ao buscar um olhar sobre a natureza, o que denota, assim, uma visão
biologizante do sofrimento feminino (ANDRADE, 2014).
Uma possível consequência desses olhares seria a
hiperdiagnosticação das mulheres e um não olhar para os
sofrimentos dos homens. É possível que isso ocorra em relação à

63
depressão, patologia considerada como predominantemente
feminina (ZANELLO, 2014).
Essa hiperdiagnosticação também pode levar a uma
hipermedicalização das mulheres (ZANELLO 2014). Nos serviços
de saúde mental, as mulheres são predominantes e as maiores
usuárias de medicamentos psicotrópicos. Por trás dessa visão há
uma concepção de vulnerabilidade que faz parte da natureza
feminina e, dessa forma, seus sofrimentos mentais também teriam
essa origem (ANDRADE, 2014).

A violência de gênero no contexto da globalização

As ativistas e teóricas feministas foram as primeiras a enfatizar


a importância de se analisar transversalmente a violência
continuada - física, sexual, emocional, econômica e ideológica -,
bem como a importância de sua dimensão material e seu uso
instrumental, isto é, sua importância social, política e econômica,
afirma Falquet (2017). Neste sentido, ao examinar a violência contra
as mulheres em sociedades latino-americanas, como no México, El
Salvador e Guatemala, a autora traz ao debate o que qualifica de
uma “guerra de baixa intensidade” contra as mulheres,
enfatizando que:

A violência doméstica era tão grave quanto uma tortura política,


interpretando a mesma como prática estrutural e sistemática, cuja tendência
é de “polarizar o mundo social e dividi-lo em dois campos opostos que se
excluem mutuamente a fim de produzir uma desmoralização e
desorganização a longo prazo do grupo contra o qual a violência é dirigida”
(FALQUET, 2017, p.13).3

O movimento feminista desenvolveu a luta contra a violência


sobre as mulheres que tornou-se um tema socialmente menos
polêmico, afirma Falquet. Por este motivo, as instituições
internacionais usaram este tema como uma das principais vertentes

3 Tradução livre do espanhol.

64
para globalizar e impor ao mundo uma noção despolitizada do
conceito de “gênero”.
A autora se refere aos feminicídios brutais de trabalhadoras
havidos na cidade Juarez, fronteira norte do México com os Estados
Unidos, que levou grupos feministas, instituições internacionais e
legisladores internacionais a elaborar políticas públicas e leis que
coibissem estes assassinatos.
Assim, o feminicídio passou a ser considerado de forma
ampla, “como um conjunto de violências exercidas pelos homens
contra as mulheres desde agressões emocionais, físicas e materiais
mais variadas, individuais ou estruturais até o assassinato...”
(FALQUET, 2017, p. 86), e esta ampliação de conceito gerou certa
confusão, ora abrindo para novas pistas de reflexão, ora também se
distanciando de uma perspectiva universalizante e atemporal
sobre o feminicídio. O México, importante território de progressão
do neoliberalismo – por seu papel preponderante na construção da
hegemonia dos Estados Unidos, provê este país de reservas de
matérias primas e mão de obra regida pelo tratado de livre
comércio (TLC), e conhece nesta região desaparecimentos, estupros
e assassinatos sobretudo de mulheres da classe operária,
aparentemente por parte de grupos organizados e protegidos pelo
poder político. Entre as várias reflexões e trabalhos sobre estes
feminicídios, destaca-se o da antropóloga Rita Segato que afirma:

A barbárie falsamente incontrolada exercida sobre o corpo de algumas


mulheres através desses feminicídios deve ser relacionada com o
desenvolvimento de novas lógicas econômicas políticas e territoriais que
enfrentam diferentes grupos de narcotraficantes que disputam o poder com
o Estado (SEGATO apud FALQUET, 2017, p. 93).4

Seguindo por esta via, quando trabalhou no Brasil com homens


condenados por violações e assassinatos de mulheres, Segato
classificou os “feminicídios como linguagem de homens delinquentes
rivais que enviam mensagens por meio de corpos torturados de

4 Id.

65
mulheres”, que considera como uma nova linguagem de terror, poder
e controle sobre o território da globalização. Assim, as mulheres são
vistas como objetos de rivalidade entre homens e não como sujeitos
(FALQUET, 2017, p. 94).
O fato é que o feminicídio, em diferentes países do continente
que conheceram a ditadura e as técnicas de `guerra suja`5
desenvolvidas para combater os movimentos de esquerda, como
ocorreu no México, “causaram a militarização do narcotráfico e da
ultraviolência” (FALQUET, 2017, p. 100).
Para Falquet (2019)6 os tempos atuais não são de paz e há, na
vida das mulheres, violências físicas, incestos e feminicídios
cometidos pelo Estado, marido, irmãos, patrões, sobretudo no meio
operário, pois a guerra multifacetada de grupos está se realizando
e tem relação com a classe das mulheres. Na Guatemala, por
exemplo, onde as comunidades indígenas são as primeiras a serem
atingidas, dentro da mesma lógica colonial, as feministas
descoloniais atuam no âmbito do “feminismo comunitário” e
propõem a `sanação`. Segundo Falquet (2019) elas são as analistas
mais argutas destes fenômenos urgentes nos últimos tempos. Há
grupos de resistência simultânea sobre o ´território terra´ e
´território corpo´ que surgem nestes anos de luta coletiva das
feministas, indígenas e trabalhadoras mineiras e, graças a esta luta,
um ditador foi condenado.
Ao discorrer sobre a violência, Faria & Nobre (1997) afirmam
que:

5 Falquet (2019) lembra que, com o apoio da França, a Escola das Américas, desde
os anos 1960, foi responsável pela formação militar no continente latino-americano
e utilizou técnicas e táticas contra os insurgentes – elemento histórico fundamental
para se compreender a formação de grupos paramilitares e outros transformados
em organizações que usam a violência.
6 Entrevista concedida à Profa. Dra. Maria Inês Amarante sobre a obra “Pax

Neoliberália”, em 28/08/2019, na Universidade Federal da Integração Latino-


Americanas - UNILA, em Foz do Iguaçu. Disponível em: https://www.youtube.
com/watch?v=kzxTeytG_lI. Acesso em 10/10/2020.

66
A violência contra as mulheres expressa a demonstração de poder dos
homens e a ideia de que as mulheres são objeto de posse. É uma forma de
reproduzir o machismo e de dizer o tempo todo que a mulher é inferior. Esse
tipo de violência se manifesta de muitas maneiras: espancamentos, insultos,
ameaças, estupros, assédio, assassinatos, mas também em formas sutis de
desqualificação das mulheres, como quando alguém diz que uma mulher é
boa profissional, “apesar de ser mulher”.” (FARIA & NOBRE, 1997, p. 18)

Para as autoras, a manutenção dessa violência está


diretamente ligada à impunidade dos agressores, que, via de regra,
transformam a vítima em ré “(pois a mulher é sempre a culpada, é
quem provocou, é quem fez por onde.)” (FARIA & NOBRE, 1997,
p. 19). O silêncio só vem agravar a situação, pois, apesar de
existirem as Delegacias da Mulher, a maioria das mulheres hesitam
em denunciar as agressões sofridas por medo de represálias ou
vingança por parte dos homens. Falquet (2019) também parte da
premissa que a violência é uma ferramenta que se usa em
determinadas circunstâncias quando, especialmente, se sabe que
vai haver impunidade.

Discussão das entrevistas e violência de gênero

A partir do que foi observado em campo e pelas entrevistas foi


possível notar como as mulheres usuárias dos equipamentos de
saúde mental tinham um histórico amplo com relação à violência,
tanto psicológica, moral, física ou sexual. Segundo Alemany (2009):

As violências praticadas contra as mulheres devido ao seu sexo assumem


múltiplas formas. Elas englobam todos os atos que, por meio de ameaça,
coação ou força, lhes infligem, na vida privada ou pública, sofrimentos
físicos, sexuais ou psicológicos com a finalidade de intimidá-las, puni-las,
humilhá-las, atingi-las na sua integridade física e na sua subjetividade.
(ALEMANY, 2009, p. 271)

Expressões dessas violências podem ser vistas de diversas


formas no cotidiano das mulheres, nem sempre manifestadas por
meio da violência física. A maior parte das entrevistadas sofreu
violência no espaço doméstico, pelo marido, padrasto ou pessoas

67
próximas às famílias que frequentavam a casa. A seguir serão
apresentados alguns desses relatos7.
Uma das entrevistadas, Estela8, natural de Minas Gerais,
branca, 55 anos, aposentada e com curso superior completo, conta
que sua família era muito pobre e que havia pessoas em sua casa
propondo a adoção dela e de seus irmãos. Sobre sua família hoje,
ela diz que teve apoio quando adoeceu, que todos adoeceram
junto, mas atualmente está em processo de divórcio do segundo
marido. Apesar de sentir gratidão por ele ter cuidado dela quando
adoeceu, sua família sempre teve conflito, pois ele chegou a
proibir que sua primeira filha, de outro casamento, a visitasse. E
se ela fosse visitar a filha, ameaçava expulsá-la de casa. Devido a
essas situações, Estela foi encaminhada ao Centro de Referência à
Mulher (CRAM) onde, desde 2018, também é acompanhada.
Para Estela, o marido várias vezes a impediu de ser mãe, não
a deixava conversar com a filha sozinha e sempre interferia na
conversa, em suas palavras, a anulava:

Ele perguntou para mim: - como é que você se dá bem com todo mundo e todo mundo
gosta de você, e aqui em casa você é uma merda, você é desse jeito? Aí eu perguntei
para ele, “pois é A., é uma boa pergunta para você refletir, porque será que, eu tenho,
nós somos em 17 irmãos, eu me dou bem com todos eles, tantas cunhadas que eu
tenho, sobrinhas, sobrinhos, me dou bem com todos eles, quantos vizinhos a gente
tem, quanto pessoal da igreja, me procura e eu consigo ajudar os outros. Agora dia
primeiro de fevereiro minha irmã morreu, a única filha que ela deixou é ginecologista
em Maringá, como que ela liga para mim, e a gente fica 1h30 conversando, como que
é eu consigo ajudar ela e você não me deixa ajudar a nossa filha? Eu sou mãe dela e
você não me deixa chegar perto dela, quem será que está errado, onde será que está o
problema?” Então eu tenho muita esperança que agora eu consiga ser mãe dela,
porque eu sou mãe da outra há 33 anos e quero ser mãe da D. também, dar um abraço,
um carinho, fazer a sopa paraguaia que ela gosta, fazer o doce de arroz que gosta,
fritar um ovo, fazer qualquer coisa. (ESTELA, 2019)

7 Todos os nomes aqui utilizados são fictícios e foram escolhidos pelas


entrevistadas
8 Entrevista realizada em 26/11/2019, em Foz do Iguaçu.

68
Outro tipo de violência muito presente é a violência sexual:
das seis entrevistadas, três relataram terem sofrido abuso sexual
quando ainda eram crianças, duas por padrastos e uma por pessoas
próximas às suas famílias. Para Alemany:

O estupro particularmente supõe o não consentimento da vítima, elas


desenvolvem análises teóricas distinguindo-se dos estudos criminológicos
que, com seus preconceitos androcêntricos, privilegiam as teorias
vitimológicas (ou interacionistas), que fazem da relação entre a vítima e o
autor um elemento explicativo fundamental. (ALEMANY, 2009, p. 272)

A entrevistada Ana Paula9, de 47 anos, branca, solteira, natural


de Foz do Iguaçu, interrompeu seus estudos no primeiro ano do
ensino fundamental, recebendo atualmente benefício
previdenciário. Ela relata que sua primeira memória foi de um
estupro que sofreu quando tinha cinco anos, cujo autor foi o
padrasto:

Eu só lembro quando eu fui estuprada para cá, eu lembro que eu tinha 5 anos, daí a
mãe (incompreensível) passou a noite inteira cuidando do meu padrasto (...). Não
lembro mais o que aconteceu comigo, eu só acordei no hospital. Mas eu não sabia o
que tinha acontecido, aí eu deitada, eu lembro da enfermeira falando L., sua filha
acordou, a mãe (incompreensível) não tava nem aí, aí naquela hora não lembra o que
estava acontecendo, nem lembrava o que estava acontecendo comigo,
(incompreensível) daí a enfermeira me deu bolacha de água e sal, uma maçã e uma
bonequinha pequenininha, assim sabe? Aí ela pegou, olhou para minha mãe e
perguntou assim: - você não vai ver sua filha? E daí (incompreensível) nem pegar
na minha mão não pegou. (ANA PAULA, 2019)

Outra participante da pesquisa foi Laura10, natural de Foz do


Iguaçu, 22 anos, branca, com ensino fundamental incompleto e
desempregada. Ela iniciou seu relato ressaltando que sempre foi
uma criança tímida e, apesar de brincar com outras crianças, tinha
poucos amigos. Lembra que, aos 8 anos, foi violentada e isso a
marcou muito, além de relacionar este fato diretamente com seu
sofrimento mental:

9 Entrevista realizada em 03/12/2019, em Foz do Iguaçu.


10 Entrevista realizada em 10/12/2019, em Foz do Iguaçu.

69
Quando eu tinha oito anos fui abusada, isso ficou muito na minha cabeça, parou
minha vida até o dia que eu fui internada, isso explodiu. Muita coisa na cabeça eu
nunca falei para ninguém, quando eu falei aí eu fui internada (...) Tinha oito anos
(...) Assim, foi uma pessoa próxima da minha família que ia em casa quase todo dia,
daí eu só tive coragem de falar agora, depois de grande [no momento da entrevista
estava com 22 anos].(LAURA, 2019)

A entrevistada, Rosa11, 51 anos, natural do Paraguai, mas


registrada em Foz do Iguaçu, relatou sobre sua infância: ela foi
criada por seus avós no Paraguai, só indo morar com a mãe aos oito
anos de idade. Nasceu em um sítio e foi deixada com os avós sem
nunca ter sabido quem foi seu pai. Por volta dos 10 anos de idade,
depois de ter ido morar com a mãe, começou a sofrer abusos do
padrasto. Ao contar para sua mãe sobre a situação, apanhou e essa
violência na casa da mãe não acontecia antes na casa dos avós:

Quando eu fui morar na casa dela tinha esse marido dela e com o passar do tempo ele
começou a abusar de mim, então foi muito triste. (...) Isso com 10. Então eu falei com
minha mãe, ele falou que não era para mim falar nada, aí eu fiquei muito ruim e acabei
falando para minha mãe e minha mãe acabou se revoltando comigo. (ROSA, 2019)

Como apresentado muitas vezes, a própria família, inclusive


as mães, não oferece o suporte necessário para essas crianças e
mulheres. No entanto, o mais agravante é que pesquisas recentes
sobre o fenômeno da violência demonstram que, muitas vezes, ela
é invisível onde mais deveria ser acolhida, nos serviços de saúde e
assistência. Foi notada a falta de suporte das demandas de
violência em serviços de saúde mental e, ao mesmo tempo, a falta
de amparo para questões de saúde mental em serviços
especializados em situações de violência (BARBOSA et al, 2014).
Dessa forma, faz-se necessário capacitar profissionais para
atenderem essas demandas, além da articulação dos equipamentos
públicos, já que, por ser uma questão de grande complexidade, é
preciso uma intervenção interdisciplinar, das diversas profissões

11 Id.

70
da saúde e da assistência e intersetorial, dos diversos equipamentos
públicos, inclusive do campo jurídico.

Considerações

Para se refletir sobre uma visão mais ampla de saúde mental é


necessário compreender a complexidade e as demandas dos
sujeitos que são carregados de história e atravessamentos sociais.
O trabalho que traz trajetórias de vida pode colaborar para
discussões mais amplas sobre contextos sociais e históricos, em
específico a abordagem da história oral que traz ‘as testemunhas
oculares da história’ antes pouco escutadas, agora como as
principais narradoras. O processo de contar sua história é o
processo de repensar também suas experiências e, de algum modo,
ressignificá-las.
Encontramos, nos relatos das mulheres estudadas, muitos
fatores que incidem no sofrimento psicológico, que vão desde as
exigências do trabalho, muitas vezes precarizado e informal, à
necessidade do cuidado dos outros, da família etc. e destacamos,
sobretudo, a violência que atinge diretamente a mulher na
sociedade latino-americana herdeira do patriarcado colonial.
Foi possível notar, pelas entrevistas realizadas, que esses
diversos aspectos da vida cotidiana, como a violência doméstica e
sexual que permeiam os relatos, são recorrentes e afetam a saúde
mental das mulheres, podendo incidir no processo de adoecimento
e necessidade de cuidados especializados.
Desse modo, é possível compreender que o sofrimento mental
também pode ser analisado a partir das histórias de vida das
mulheres. Nesse contexto específico, todas as entrevistadas que
participaram dessa pesquisa já haviam passado por instituições
especializadas, como hospitais e centros de atenção psicossocial.
Assim, estavam diagnosticadas, medicadas e, de certa forma,
marcadas por procedimentos ligados à saúde que, na maioria das
vezes, procuram respostas biológicas para processos sociais e
negligenciam as questões de gênero.

71
Não se descarta aqui nenhum desses aspectos e/ou diferentes
abordagens de cuidado, mas se considera de máxima importância
a escuta qualificada das pessoas que vivenciam o sofrimento
mental de forma intensa e, muitas vezes, por um período
prolongado de tempo. A escuta de suas histórias pode colaborar
também para o apoio e suporte necessários.
Desse modo, a história oral, especificamente as trajetórias de
vida que foram aqui expostas, trazem questões essenciais em nossa
sociedade, como as diferenciações e a hierarquia dos gêneros que
continuam a afetar as mulheres nos dias atuais.

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74
Argentina em fins do século XIX e início do século XX:
o campo intelectual na revista Criminalogia Moderna
e sua relação com o projeto positivista1

Hugo Quinta2
Andrea Ciacchi3

Resumo: Este artigo propõe-se a discutir o início da criminologia na


Argentina de finais do século XIX e início do século XX, para compreender
de que modo ela foi articulada durante o processo de consolidação do
Estado-nação. Para atingir esse intento, faz-se uma reflexão do projeto de
Estado desdobrado na perspectiva criminológica que está alicerçada no
positivismo jurídico do período. O país foi vanguarda no interesse pela
criminologia na medida em que alguns intelectuais-juristas publicaram
inúmeros artigos sobre os estudos do crime no primeiro periódico de
criminologia da Argentina, a revista Criminalogia Moderna, fundada, em
1898, e dirigida pelo professor, advogado e intelectual italiano, Pietro
Gori. A partir de uma análise bibliográfica, vislumbra-se a influência de
uma perspectiva sociológica europeia na criminologia argentina. O exame
de alguns artigos publicados na revista indica como a criminologia
fecundada na Europa fundamenta a intelectualidade bonaerense. Alguns
autores vincularam a criminologia aos fenômenos sociais de uma nação
cada vez mais industrializada, proletarizada, politizada e urbanizada.
Palavras-Chave: Criminología Moderna. Intelectualidade. Pietro Gori. Estado-
nação.

1 A primeira versão deste trabalho foi publicada no volume 2, número 2 (2016) de


RELACult - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura e Sociedade.
2 Especialização em Artes da Escrita (UNL), Mestre em Estudos Latino-

Americanos (UNILA) e Doutorando em História (UNESP). Atualmente é bolsista


da FAPESP.
3 Docente e Pesquisador do PPG-IELA/UNILA.

75
A criminologia positivista e o Estado-nação na Argentina
moderna

A carreira jurídica promovida nas universidades latino-


americanas no início do século XIX formava um profissional
para ser jurista das instituições públicas criadas após a
independência dos diversos países. Essa formação letrada foi
mantida durante o século, porém se acentuou o caráter político,
de ciências políticas, na formação dessa carreira.
O estabelecimento e a solidificação dos estados nacionais foi
um processo lento no continente. O surgimento de uma
consciência nacional e de uma cidadania acompanha a letargia
dos processos históricos, mas foi durante o século XIX que os
graduados em direito podiam ser declarados como intelectuais,
à medida que eram considerados como possuidores de um
“saber superior” e que possuíam habilidades para a escrita e a
oralidade. Portanto, os juristas eram profissionais que tinham
um elevado conhecimento do estudo jurídico e multidisciplinar,
pois escreviam livros de direito, política, criminologia e/ou
desempenhavam funções como professores nas universidades.
Diante desse contexto, é importante destacar que uma parte
significativa dos juristas formados no continente abraçaram as
causas da independência. Entre os líderes civis estavam também os
juristas como constituintes, e, portanto, foram os grandes ideólogos
do novo regime pelo fato de terem planificado os novos estados e
mudado a legitimidade do poder (PÉREZ PERDOMO, 2008).
Durante o século em questão, as universidades e as escolas de
direito passaram a ter um papel fundamental de promover a
reunião entre as pessoas interessadas no direito e nas demais
ciências sociais da época. O fato é que essas pessoas liam os livros
com temáticas que estavam em voga no momento, e por esse
motivo os estudantes e graduados em direito acabavam por
praticar o jornalismo, a dramaturgia, a história e a docência

76
universitária. Assim, à produção intelectual de um conjunto de
“homens da ciência” vislumbraram no positivismo jurídico o
esteio para a compreensão do mundo “na era da sciencia”
(SCHWARCZ, 1993).
O pensamento social moderno está ancorado num conjunto
de características universais que foram desenvolvidas a partir do
enfoque europeísta à noção de modernidade. Uma perspectiva,
portanto, eurocêntrica, lapidada a partir das relações que a Europa
vinha estabelecendo com o restante do mundo durante séculos, e
que foram codificadas diante da classificação racial da população
do mundo após a “descoberta” da América. O colonialismo
europeu e a classificação das populações em raças construiu um
universo simbólico a imprimir um padrão de poder onde o centro
do mundo era a Europa (QUIJANO, 2005).
O intenso processo de transformações econômicas, ocorrido
no litoral e na zona dos pampas, alterou significativamente a
paisagem urbana da capital argentina e gerou um crescimento
da estrutura produtiva e social na cidade entre finais do século
XIX e início do século XX. Nesse período, com prioridade ao
desenvolvimento de uma infraestrutura capaz de avalancar o
crescimento econômico, foram construídos estradas de ferro,
portos, edifícios públicos, rodovias, fábricas e hidrelétricas a
serem incorporados aos espaços urbanos de maneira caótica: um
cidadão bonaerense nascido em 1870 teria uma visão
absolutamente diferente da cidade trinta anos depois.
O processo de urbanização e industrialização ocorrido em
Buenos Aires andou de mãos dadas com o positivismo europeu,
ressignificado na Argentina. O positivismo argentino deu mais
importância aos estudos das ciências sociais, da biologia e da
psicologia as quais foram aplicadas e desenvolvidas utilizando
uma perspectiva evolucionista.
De acordo com uma historiadora espanhola,

77
El positivismo constituyó en Argentina una etapa cultural cuyas
proyecciones se hicieron sentir en todos los campos del espíritu. El
fenómeno europeo se presentó en este país en estrecho acuerdo con
caracteres propios de su realidad política-social. Son precisamente las
particularidades de la historia socio-política y las condiciones especiales del
desarrollo de la ciencia argentina las que permiten hablar de unas
modalidades propias y de una orientación del positivismo argentino
diferente al europeo (CODES, 1988, p. 199).

A geração de intelectuais de 1880 fazia parte da pequena e


média burguesia bonaerense que foi substancialmente positivista
(TERÁN, 2000 e 2008). Alguns ocupavam postos de trabalho na
burocracia estatal e outros eram catedráticos da Universidad de
Buenos Aires. Esses intelectuais criaram a Sociedad de
Antropología Jurídica que tinha o fito de estudar a criminalidade.
Luis Maria Drago, José Ingenieros, Rodolfo Rivarola, Manuel T.
Podestá, entre outros estudiosos da ciência criminológica,
pertenceram à alcunhada geração de 80, que produziu uma intensa
atividade acadêmica e que se dedicou a promover a escola positiva
com um interesse específico na criminologia.
Esses intelectuais tentaram elaborar um projeto de nação a
partir dos pressupostos positivistas, tanto na dimensão filosófica
quanto na dimensão científica. Essa é uma época em que a
Argentina se constituiu como um Estado nacional, através de um
poder centralizado exercido pelo militar Julio Argentino Roca, que
federalizou a cidade de Buenos Aires e, consequentemente,
imprimiu uma perspectiva republicano-conversadora por meio da
qual tentou articular o país com o mercado mundial.
Esse projeto envolveu as políticas imigratórias para atrair
estrangeiros europeus que vieram a tonificar a engrenagem do
desenvolvimento industrial que se pôs em marcha no
presidencialismo de Roca. Isso provocou não só uma forte
concentração urbana e um desenvolvimento do proletariado, como
também a formação de uma elite intelectual que acompanha esse
processo, tendo o positivismo como o pensamento a explicar a
realidade a partir dos dados empíricos. Para esses intelectuais, o

78
mundo era produto de um conjunto de comportamentos
individuais observáveis e, portanto, todo o saber era passível de ser
ordenado e classificado por meio de dados experimentais.

Campo intelectual liderado por Pietro Gori e a revista


Criminalogia Moderna

As propostas de Pierre Bourdieu em “Campo Intelectual e


Projeto Criador” fornecem subsídios teóricos e metodológicos para
entender o campo intelectual onde o criador manifesta a sua obra. A
criação da obra é um ato de comunicação a estabelecer a posição do
criador na estrutura de um campo específico, composto por um
círculo de pessoas a revelar um sistema de linhas de forças dispostas,
opostas e compostas num determinado momento histórico.
E a partir desse campo há a posição de cada um dos membros a
atuarem de diversas maneiras “no campo cultural enquanto sistema de
relações entre temas e problemas” a deflagrar “um tipo determinado de
inconsciente cultural, ao mesmo tempo em que é, intrinsicamente, dotado
daquilo que chamaremos de peso funcional” (BOURDIEU, 1968, p.106).
O poder, ou a possível autoridade exercida, somente é possível de
ser definida quando se determina a posição que o agente ocupa no
campo. Bourdieu lembra que esse procedimento é concebível a partir
do momento em que se define o campo intelectual organizado a partir
de regras próprias que são definidas direta e indiretamente pelos
agentes.
A vida intelectual organiza-se a partir da autonomia do
criador na divulgação de suas obras e, portanto, a permitir a
expansão e a diversificação de um público que acaba por
transformar “o campo intelectual num sistema mais complexo e
mais independente das influências externas” (Ibidem, p.107).
Bourdieu indica que no século XIX houve um movimento –
fundamentado na revolução industrial e nas teorias científicas – a
revigorar a intenção criadora, a redefinir a vocação do intelectual e
a sua função na sociedade. (BOURDIEU, 1968).

79
É através do sistema de relações sociais estabelecidas pelo
criador com o conjunto de agentes a conformar o campo intelectual
de um dado período do tempo – os editores, os críticos, o público –
que se realiza a caracterização progressiva da obra. Para o
sociólogo francês é necessário

Lembrar que o campo intelectual como sistema autônomo ou pretendente à


autonomia é o produto de um processo histórico de autonomização
metodológica, autorizando a pesquisa da lógica específica das relações que
se instauram no interior desse sistema e o constituem enquanto tal (...) esse
sistema não pode ser dissociado das condições históricas e sociais de sua
constituição (BOURDIEU, 1968, p.113).

Em junho de 1898, o advogado e anarquista italiano, Pietro


Gori (1865-1911), depois de um passado de luta política e de
processos e detenções em sua terra natal, bem como em outros
países da Europa e nos Estados Unidos, chegou a Buenos Aires,
fugindo da Itália de onde os tribunais o teriam condenado a 12 anos
de reclusão com o argumento de que seu discurso inflamava os
ânimos do povo4.
O renome de Gori foi adquirido pelas múltiplas tarefas exercidas
por ele no campo da propaganda oral e escrita. Além de suas funções
jornalísticas e intelectuais, ele escrevia versos, canções e peças de
teatro representadas por círculos melodramáticos e dramatúrgicos
anarquistas tanto na Argentina como no Brasil (ALBORNOZ, 2014;
HARDMANN, 2002). Conforme descreve Zaragoza:

Además de orador, Gori era un escritor prolífico. Em Avvenire aparecen


frecuentemente sus textos teóricos, comentarios sobre la situación de la clase
obrera europea, polémicas con individualistas y socialistas, y también
poemas, canciones, relatos cortos y obritas de teatro como Primo Maggio (...)
(ZARAGOZA, 1996, p. 238).

Residindo em Buenos Aires, Gori passa a proferir palestras


diante de distintos públicos e desenvolve seu trabalho de jurista,

4 Sobre o período latino-americano de Gori, cf. QUINTA (2018).

80
especialista e pesquisador em criminologia e, eventualmente, como
professor universitário.
Ainda em 1898, Pietro Gori funda, coordena, edita e dirige a
revista Criminalogia Moderna, o primeiro periódico publicado na
Argentina a tratar de temas relacionados à área do Direito, das
Ciências Sociais e mais especificamente do pensamento
criminológico. Cabe ressaltar a existência do periódico Revista
Criminal, editado durante o ano de 1873 e dirigido por Pedro Bourel
(DEL OLMO, 1992). Apesar de antecessora, a revista, com dez
números, narrou diversos tipos de crime, sem contudo, tratar a
Criminologia como ciência.
Assim, com enfoque inédito, o corpo de redação da revista
Criminalogia Moderna era composto por jovens catedráticos de Direito
e estudiosos da antropologia criminal da Argentina, que fizeram parte
da geração de 80, como, entre outros, Rodolfo Rivarola, Manuel T.
Podestá, Luis María Drago, José Ingenieros, Antonio Dellepiane, Juan
Vucetich e os famosos intelectuais da “nova escola” de antropologia
criminal fundada pelos italianos Cesare Lombroso, Enrico Ferri e
Raffaele Garofalo. Além destes, existiam outros autores nacionais e
estrangeiros que publicaram na revista os seus artigos científicos cujos
eixos teóricos versavam sobre distintos ramos do Direito Penal,
relacionando-os a questões do contexto histórico, social, político da
Argentina e de outros países.
As teorias utilizadas pelos autores da revista circulavam,
basicamente, pela área do Direito Penal, sobre as preposições do
Código Penal, de modo a utilizar essas teorias como pretexto para
a investigação das questões locais. O primeiro editorial da revista,
intitulado “Guerra al delito”, não deixava dúvidas sobre a que
público se destinaria:

Escribiremos no solo para los estudiosos de derecho y ciencias sociales en


sus relaciones con la criminolojía, sino también para todos aquellos que
desean conocer la trágica realidad de la vida criminal y estudiar de cerca el
proceso de la perversión antropolójica y moral (...) que jeneran al delicuente
ó preparan socialmente las condiciones (...) del delito (EDITORIAL, “Guerra
al delito”, Criminalogia Moderna, Buenos Aires, 1, 1898, p. 2).

81
Assim como revela seu público alvo, o periódico esclarece a
maneira como a meta proposta pela revista é contemplada ao longo
das publicações. O mesmo editorial do primeiro número da revista
ainda informa:

Trataremos de acumular empeñosamente materiales sólidos y completos en


lo posible que pueden luego servir de fundamentos á mas vastos estudios
orgânicos que la moderna Criminalogia tiene derecho á esperar de las
inteligencias y enerjias investigadoras de este jóven país (EDITORIAL,
“Guerra al delito”, Criminalogia Moderna, Buenos Aires, 1, 1898, p. 2).

Um dos artigos da primeira publicação da revista, intitulado


Crónica Judicial, tratava sobre El proceso Etchegaray, isto é: um
processo contra Gabriel Etchegaray, que matou Juan B. Wanklin e,
segundo o autor do texto, foi um fato que impressionou a sociedade
bonaerense pela classe social do agente do crime.
O artigo não é assinado, porém, logo no primeiro parágrafo,
anuncia as bases doutrinárias que embasariam o argumento do autor:

También en la República Argentina, el soplo de las nuevas doctrinas


criminalistas empieza a hacerse sentir en los anales del empirismo penal que
informa esta y las demás legislaciones modernas. (“Crónica Judicial: el
proceso Etchegaray”, Criminalogia Moderna, Buenos Aires, 1, 1898, p. 28).

Segundo o artigo, a família Etchegaray é fundadora de uma


das mais famosas redes industrias da argentina daquele período.
Entretanto, os negócios da família ruíram e acabaram por gerar
intrigas financeiras. Em seguida, eles passam a descrever o choque
sofrido por Gabriel Etchegaray diante das circunstâncias de quebra
financeira da família, e isso delineou “una profunda alteración en
su carácter.” (“Crónica Judicial: el proceso Etchegaray”,
Criminalogia Moderna, Buenos Aires, 1, 1898, p. 28).
Mostra-se coerente identificar como a ciência criminológica de
finais do século XIX pensava um delito e como as peças da defesa
e da acusação de Gabriel produziram “trabajos de verdadero
mérito que demuestran el progreso alcanzado por las nuevas
ciencias aplicadas.” (“Crónica Judicial: el proceso Etchegaray”,

82
Criminalogia Moderna, Buenos Aires, 1, 1898, p. 28). Ou seja, o
positivismo criminológico era o nexo intelectual a fundamentar a
teoria dos cientistas sociais que escreveram na revista.
Outro exemplo notório de como o denominador científico
seria o condão dos homens “ilustrados” foi o artigo Pro Scientia de
autoria do médico C. del Campo (hijo). Neste texto, o cientista
persevera diante dos argumentos contrários ao desenvolvimento
científico da Argentina, quando afirma que há pessoas no país que
se mostram adversas às profissões liberais, e portanto se mostram
favoráveis a impor barreiras à carreira universitária. Para o autor,
é compreensível pensar em adversários da ciência, na medida em
que o país passava a dar passos mais concretos no desenvolvimento
da ciência positiva. C. del Campo considerava que até aquele
momento o país apenas importava conhecimentos estrangeiros.

“(...) hasta ahora no hemos hecho más que acumular conocimientos importados;
juntar unos cuantos ladrillos extranjeros que servirán de cimiento para futura
ciencia nacional, cuya aurora está aún léjos de brillar en nuestro cielo. Un cálculo
optimista nos lleva a entrever un dia felíz, no lejano, en el que nuestros sabios
pesen en el mundo científico y sean, no ya simples asimiladores, sinó focos de
luz con irradiación propia (...) necesitamos pasar por la lenta evolución por la
que han pasado las que son hoy grandes naciones.” (Pro Scientia”, Criminalogia
Moderna, Buenos Aires, 1, 1898, p. 33).

Os artigos supracitados, além de muitos outros da revista


fundada por Gori, estão repletos de dogmas científico-positivistas
daquele tempo e parecem vislumbrar um conjunto de intelectuais
a apresentarem possíveis afinidades existentes no círculo
intelectual liderado pelo refugiado italiano. Os autores exibiram
interesses em comum, decorrentes dos valores compartilhados, das
origens de cada integrante e da formação cultural e intelectual
recebida nas escolas onde estudaram, sendo posteriormente
reforçadas com a formação em Direito. A revista, portanto,
conformou um meio de sociabilidade do círculo intelectual
concebido por Pietro Gori.

83
Tempo heterogêneo e modernidade na nação Argentina

O processo de industrialização e urbanização, juntamente com


a vinda de imigrantes italianos, espanhóis e de outros países,
correspondendo a cerca de 80% da população da cidade no final do
século XIX, promoveu modificações culturais em Buenos Aires.
(QUIJANO, 2005). Isso desaguou em um profundo movimento que
se operou nas distintas camadas da sociedade. Em decorrência
dessas transformações, houve a conformação de uma incipiente
classe operária que passa a trabalhar em fábricas, oficinas e no setor
de serviços.
Os imigrantes e os migrantes compunham um novo tecido
social – indivíduos que se deslocaram até a cidade portenha com o
intento de ascensão social e intelectual. A nova configuração da
cidade favorece o desenvolvimento e o enraizamento de tendências
contestatárias, em várias dimensões organizacionais e políticas.
Essa mobilidade social sedimentou as bases para a promoção
econômica de uma parcela de trabalhadores, porém excluía uma
porção significativa. A ausência de conciliação entre o capital e o
trabalho e a efêmera presença do Estado aprofundavam, também,
a forma vil como muitos trabalhadores eram tratados. Essas
idiossincrasias representaram um terreno fértil para o surgimento
da classe operária bonaerense e de suas manifestações ideológicas,
políticas ou sindicais de um lado; enquanto, de outro lado, os
patrões e o Estado geravam confrontações entre os grupos
dominantes e as organizações da classe trabalhadora.
Nesse contexto, o anarquismo foi a ideologia a corroborar com
a luta dos trabalhadores em Buenos Aires e em outros centros
urbanos e a orientar a organização da classe trabalhadora a partir
da criação de círculos libertários, onde imigrantes e criollos com
passado artesão, campesino ou fabril caminharam por um espaço
contestatário – disputado por socialistas e anarquistas (GILIMÓN,
2011; OVED, 1978; SANTILLÁN e ARANGO, 2014).
O movimento anarquista fecundado na cidade portenha foi
vital para o rápido fortalecimento dos sindicatos dos trabalhadores,

84
entre o final do século XIX e início do XX. Esse panorama retrata
não só um quadro da atuação crescente do proletariado, como
também da ampliação da base e da conformação da ideologia
anarquista por setores da classe média. Além disso, o movimento
libertário esteve presente na imprensa e na criação de Círculos ou
Casas do Povo. Sobre esses espaços, Suriano esclarece:

El Círculo era un ámbito de educación y adoctrinamiento integral que


alcanzaba no sólo al trabajador sino también a su familia, llegando adonde
no lo podía hacer la sociedad de resistencia (...). Se trataba, además, de un
espacio específico de deformación de activistas y, a la vez, concientizador y
adoctrinador de los sectores populares vinculado directamente a la esfera
pública asociativa de los trabajadores y previo a la configuración de las
sociedades de resistencia o sindicatos (…) los círculos anarquistas
comenzaron su actividad como pequeños maleamientos con claros fines
ideológicos editando folletos y periódicos. (...) al filo del siglo, los grupos se
convirtieron en centros políticos y culturales con una propuesta integral, que
abarca desde la clásica edición de folletos y periódicos o el dictado de
conferencias, cursos doctrinarios y formación de grupos de estudio hasta las
actividades recreativas (SURIANO, 2001, p. 39 e 41).

Partha Chatterjee critica a afirmação de Benedict Anderson de


que a política habita um espaço-tempo homogêneo e vazio na
modernidade. O sociólogo indiano afirma, por outro lado, que o
tempo é heterogêneo e abundantemente denso: “no todos los
trabajadores industriales interiorizan la disciplina de trabajo del
capitalismo, e incluso cuando lo hacen, esto no ocurre de la misma
manera.” (CHATTERJEE, 2007, p. 60). Diante disso, o autor diz que
a política não é a mesma para todas as pessoas e, portanto, há dois
planos temporais que interatuam na narrativa da nação. Num
primeiro plano, o povo é objeto de uma pedagogia nacional que
está constantemente em construção. O segundo plano tem a ver
com a unidade do povo e a sua identificação permanente com a
nação, que “debe ser continuamente significada, repetida y
escenificada.” (Ibidem).
A Argentina com rasgos de modernidade para os preceitos
capitalistas e eurocentristas conflagrou-se como um país que

85
implementava uma urbanização e industrialização que, somadas à
vinda dos imigrantes europeus, imprimiam a tentativa de
homogeneizar uma nação heterogênea e nada representativa de
uma realidade nacional. Esse mesmo país tinha se tornado
independente à custa de extrema concentração de terras e acabou
por constituir-se num Estado republicano oligárquico. A política
que vinha sendo gestada pelo Presidente militar, Julio Argentino
Roca, enquadrava-se no discurso institucional de pátria moderna e
civilizada. Porém, a tentativa de embranquecimento da população
com a vinda de europeus deixa claro o quanto os ideais positivistas
instrumentalizaram a política nacional e foram um fator
promocional dos processos de construção de um Estado-nação
alicerçado no modelo europeu de conhecimento.

Considerações finais

A independência política dos países latino-americanos desde


o início do século XIX está não só acompanhada pelo
fortalecimento das carreiras jurídicas por meio dos profissionais
que se tornaram ilustrados, detentores do conhecimento
supostamente culto e burocratas do “novo Estado”, mas também
está seguida pela estagnação do capital que fortaleceu o caráter
colonial de uma dominação social e política diante de Estados
formalmente independentes.
A Argentina, de finais de século XIX e início de século XX é um
caso paradigmático de como a ciência é instrumentalizada para
justificar a existência de uma nação moderna que segue os preceitos
de uma doutrina positivista de matriz europeia. A adoção de traços
característicos do velho continente, desde o significados que os
europeus criaram a partir das grandes navegações, desemboca em
uma perspectiva nova, entranhada de uma visão de alteração
histórica, é dizer: seguir o pensamento e a “raça” europeia era
sinônimo de estar caminhando paralelamente com o continente
pretensamente evoluído, era estar entoando o ritmo do futuro. Essa
moldura pode ser identificada no fato de que o positivismo

86
criminológico desenvolvido na Europa orienta as discussões
desenvolvidas na revista Criminalogia Moderna, e alimenta as
teorias criminológicas nacionais que se relacionavam de certo
modo com a construção de uma ideia de nação.
A vinda de imigrantes e a consolidação de novas ideologias
demonstram o quanto é inócua a afirmação de que o espaço-tempo
da modernidade é homogêneo e vazio. A Argentina é um caso
pontual, pois o pensamento dos intelectuais anarquista-
positivistas-criminologistas é uma prova da heterogeneidade em
detrimento da busca por homogeneidade que legitimou o discurso
institucional positivista.

Referências

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87
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ZARAGOZA, Gonzalo. Anarquismo Argentino (1876 – 1902).
Madrid: Ediciones de la Torre, 1996.

88
Alargar os horizontes: uma análise sobre o
Projeto Nosso Nordeste, Nosso Lugar de Fala

Jonas Mateus Ferreira Araujo1


Angela Maria de Souza2

Resumo: Este artigo tem como objetivo analisar os caminhos que


viabilizaram os processos de mapeamento das experiências de resistência
através das ações do projeto Nosso Nordeste, Nosso Lugar de Fala:
Articulando Resistências e Propondo uma Educação Popular.
Metodologicamente, a discussão está pautada desde as perspectivas
metodológicas da pesquisa-ação e escrevivência da autora Conceição
Evaristo. O mapeamento resultou num total de 109 experiências de
resistências no Nordeste, localizadas nos estados da Bahia, Ceará, Paraíba,
Pernambuco, Rio Grande do Norte e Sergipe. Dentre estas, 24
participaram diretamente do projeto Nosso Nordeste, Nosso Lugar de
Fala (N.N.) e elaboraram Planos de Formação a partir das suas
experiências. As análises sobre esses caminhos que viabilizaram o
processo de mapeamento evidenciaram contribuições para a educação
popular e para as formas de fazer pesquisa, considerando os
atravessamentos que nossos corpos têm nesses processos, tensionando a
não-neutralidade existente na pesquisa ao refletir como nossas dimensões
constituintes implicam nesse caminhar.
Palavras-chave: Educação Popular. Interseccionalidade. Pesquisa-ação.
De(s)colonial.

1Mestre PPG - IELA - UNILA Docente de Português brasileiro da Rede Básica de


Ensino no Estado do Ceará. Mestre em Estudos Latino-americanos. Bacharel em
Serviço Social.
2Docente Curso de Antropologia e PPG - IELA – UNILA (Universidade Federal da

Integração Latino Americana). Coordenadora do NEALA - Núcleo de Estudos


Afro Latino Americanos.

89
Introdução

Este artigo tem como objetivo analisar os caminhos que


viabilizaram os processos de mapeamento das experiências de
resistência através das ações do projeto Nosso Nordeste, Nosso
Lugar de Fala: Articulando Resistências e Propondo uma Educação
Popular. Para isso, iniciaremos vendo alguns pontos importantes
para conhecer o projeto, para logo em seguida, debruçarmo-nos
sobre os seus caminhares. Ademais, esse artigo nasce como um dos
desdobramentos da dissertação de mestrado, defendida no PPG-
IELA, de Jonas Mateus, sob a orientação Ângela Maria de Souza.
Aqui, adotamos, igualmente como na dissertação, os caminhos
metodológicos com base na pesquisa-ação de forma articulada com
o conceito de escrevivência, cunhado por Conceição Evaristo3.
O projeto N. N.4 teve como base o uso dos instrumentais:
Diário de Campo, Carta Convite, Planos de Formação e Termos de
Anuência. Aqui, daremos especial atenção para o Diário de Campo,
onde foram feitos os registros desse percurso metodológico, que é
principal objetivo deste artigo, e alguns aspectos do Modelo de
Plano de Formação que aparecem nesses registros.
O N.N teve como objetivo mapear e convidar experiências de
resistências distintas do Nordeste brasileiro para a elaboração de
Planos de Formação a partir das suas experiências, esse
mapeamento resultou num total de 109 experiências de
resistências, localizadas nos estados de Bahia, Ceará, Paraíba,
Pernambuco, Rio Grande do Norte e Sergipe. Dentre estas, 24
participaram diretamente do projeto Nosso Nordeste, Nosso Lugar
de Fala (N.N.) e elaboraram Planos de Formação5 a partir de suas

3 Conceição Evaristo. Escrevivências. Disponível em: https://www.youtube.


com/watch?v=QXopKuvxevY&list=PLB4_ZSpYqMXRCHAaqLOTWY45lR98z7a
q8&index=3&t=0s. Acesso: 18 jul. 2020.
4 O projeto Nosso Nordeste, Nosso Lugar de fala será chamado apenas N.N. para

fins práticos.
5 Os Planos de Formação estão em processo de edição para serem publicados no

formato de um livro: “Rompendo o cerco: a educação por toda parte”.

90
vivências. O que aqui será debatido são os caminhos que
viabilizaram a construção destes Planos, levantando questões sobre
o processo de realização de uma pesquisa-ação, principalmente
como se relacionam os corpos e vivências implicadas no processo,
dentre outros pontos importantes no percurso.
Vale pontuar, mesmo que a título de introdução, tendo em conta
que não é objetivo da pesquisa apresentar os Planos de Formação, que
esse material foi composto por experiências de resistências de
natureza e objetivos distintos, possuindo exemplos de experiências
como ocupações artísticas urbanas, projetos gastronômicos de
ancestralidade africana/afro-brasileira, clubes de leitura com enfoques
distintos, grupos artísticos de tradições nordestinas, etc. Foram muitas
as temáticas abordadas e vínculos estabelecidos, e a grande maioria
das/os interlocutoras/es foram mulheres, assim como o percentual de
pessoas não brancas foi superior ao de pessoas brancas, quase todas
negras, podendo contar com a escrita de um participante indígena. E
no que toca a presença dos homens participantes, grande parte não se
identifica como heterossexual.
E por mais que o mapeamento das 109 experiências de
resistências tenha contemplado diversos estados, as Planos de
Formação foram escritos por pessoas dos estados do Ceará e do
Pernambuco.
Nesta pesquisa, as noções de educação popular6 adotadas não
apenas recorrem aos marcos do século XX, pautam-se em

6
Carrillo (2011, p. 18) sintetiza algumas possíveis definições de educação popular
que podem nos ajudar a perceber a amplitude dessa discussão e nos guiar neste
artigo, essas definições podem ser: “1. Una lectura crítica del orden social vigente
y un cuestionamiento al papel integrador que ha jugado allí la educación formal.
2. Una intencionalidad política emancipadora frente al orden social imperante. 3.
El propósito de contribuir al fortalecimiento de los sectores dominados como
sujeto histórico, capaz de protagonizar el cambio social. 4. Una convicción que
desde la educación es posible contribuir al logro de esa intencionalidad, actuando
sobre la subjetividad popular. 5. Un afán por generar y emplear metodologías
educativas dialógicas, participativas y activas.

91
referências de(s)coloniais para considerar e valer-se das
experiências de resistências que se gestam aqui desde os
primórdios da colonização, como por exemplo o Quilombo dos
Palmares7 e o Caldeirão de Santa Cruz8. Pensar desde essas bases
significa compreender que a discussão sobre educação popular
adotada neste artigo se vale das contribuições desses grupos
historicamente subalternizados, que também possuem suas pautas,
muitas vezes colocadas em lugar secundário, quando, na verdade,
a educação popular tem como uma de suas premissas a abertura
para o diálogo com a realidade (FREIRE, 2011). E uma dessas
realidades, historicamente secundarizadas, nos ensina que:

[...] o associativismo e espírito comunitário são uma das marcas mais


evidentes da história da população negra do país. Marca que se expressa
historicamente pela organização dos quilombos, das manifestações
religiosas (candomblé, umbanda, as irmandades), a imprensa negra, as
escolas de samba, as congadas, a Frente Negra, o Teatro Experimental do
Negro e os movimentos e organizações contemporâneas (PEDAGOGIA DA
VIDA, 1999, p. 3 apud LIMA, 2009, p. 266).

Ademais, corroborando com essa perspectiva de educação


popular, Mejia J. (2013, p. 397) contribui com a discussão ao
argumentar que esse projeto educativo precisa ser fruto:

[...] de ese acumulado que hoy se hace a los educadores como una propuesta
para hacer educación desde los intereses populares, en un horizonte de
reconstruir la sociedad, con unos nuevos sentidos de lo humano diferentes

7O Quilombo dos Palmares foi uma importante organização da história das resistências
brasileiras, ele que surge no final do século XVI e segundo alguns pesquisadores
atravessa o século XVII e chega até o início do XVIII. Para mais informações sobre
Palmares, ver curso de 8 módulos. Quilombo dos Palmares. Disponível
em:https://www.youtube.com/watch?v=C5_68c_iXVQ. Acesso: 05 out. 2020.
8O Caldeirão de Santa Cruz foi uma importante organização comunitária no Cariri

cearense que foi dizimada pelo Estado e ainda sofre com o constante apagamento da sua
memória de resistência. Para mais informações, consultar. “Sítio do Caldeirão no CE é
massacrado”. Disponível em: http://memorialdademocracia.com.br/card/comunidade-
do-caldeirao-e-massacrada. Acesso: 05 out. 2020. Também é possível encontrar no
Youtube documentários sobre a experiência de resistência.

92
a los del capitalismo, la capacidad de conocer múltiples y variadas maneras
y escenarios para ser educador popular y en ello, [...] desde sus particulares
capacidades y ámbitos de acción.

Então, é preciso compreender que tendo a educação popular


essa premissa pela liberdade diante das opressões, reiteramos que
existem e sempre existiram outras formas de se organizar e ter
experiências de resistência que não estejam necessariamente
relacionadas às formas mais clássicas de organização como
partidos políticos, movimentos sociais, dentre outras. E é desse
lugar da diversidade de resistências que educam, que nasceu o
projeto “Nosso Nordeste, Nosso Lugar de Fala”.
Ademais, seria impossível resistir, e logo educar, de uma única
forma, porque somos diversos e porque as formas de opressões que
nos assolam também são diversas e se transformam ao longo da
história; então, pensar uma definição única e fechada de resistência
e educação popular é imaginar que as pessoas resistem de igual
forma, o que seria desconsiderar a multiplicidade desses processos.
Essa mesma abertura para compreensões se aplica a noção de
Nordeste entendida aqui, pois historicamente foi criada uma
estigmatização e cristalização deste como o lugar da seca, do
sofrimento e da pobreza, colaborando para a construção de uma
história única9 sobre a região. E a opção por desenvolver a pesquisa
nesse território se dá por um dos autores ser nordestino e possuir
muitos atravessamentos desse contexto, principalmente ao cruzar
o Brasil e experienciar a vida no Sul.
Outras motivações que levaram à construção do projeto N.N.
e a elaboração de uma pesquisa que tivesse em conta o seu
caminhar como objetivo de investigação são do campo das
epistemologias e da autocrítica, pois, tratando-se da educação
popular, não é raro que encontremos diversos espaços que se
propõem a tal prática como fim último, mas não se atentam ao

9Categoria referenciada em “O perigo da história única”. Chimamanda Adichie -


Dublado em português. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=
qDovHZVdyVQ. Acesso em: 27 set. 2020.

93
percurso, ou que desconsideram outras existências já
historicamente subalternizadas nesse processo, como a população
trans e travesti, os povos originários e a população negra, tendo-as
apenas como objeto de estudo. Por isso, também, a adoção desta
opção metodológica escrevivente.
Ao final do percurso do projeto N.N., oficialmente
compreendido entre maio de 2019 e maio de 2020, foram mapeadas
109 experiências de resistência; destas, 54 foram Convidadas Não
Participantes Diretamente (CNP)10, 24 Convidadas Participantes
(CP) e 26 foram apenas mapeadas, mas se localizam dentro do
projeto N.N. como Não Convidadas (NC). E ser CP significa que
foram mapeadas, convidadas e aceitaram elaborar os Planos de
Formação a partir das suas experiências. Uma ampla discussão
sobre esse mapeamento e suas relações com a educação popular e
o Nordeste pode ser encontrada na dissertação; aqui, começaremos
a partir de algumas análises sobre a busca de um olhar atento do
caminhar.

Caminhos e reflexões sobre o projeto “Nosso Nordeste, Nosso


Lugar de Fala”

As análises apresentadas a partir daqui também funcionam


como formas de apresentar e conhecer o projeto N.N., tendo em
conta que ele nasceu em 2019 e ainda se gesta nesse constante
movimento. Quando ele nasceu, a ideia era reunir pessoas que não
precisariam estar vinculadas diretamente a alguma experiência de
resistência, porque essas pessoas agiriam no sentido de mapear as
experiências de seu estado, entrar em contato com elas e, a partir
disso, ver que tipo de abordagem cada experiência iria ter, se elas
mesmas iriam elaborar seu material (os Planos de Formação), ou se
essas pessoas, participantes mais diretos do projeto, iriam fazê-lo

10Trago aqui o termo diretamente pois mesmo as que não aceitaram, puderam
e/ou quiseram escrever sobre suas experiências, também contribuíram com a
pesquisa na medida em que também colaboraram para a construção do
mapeamento, e logo, do Nordeste.

94
através da coleta de informação. Em outras palavras, as
experiências de resistência, que desenvolviam (ou desenvolvem)
alguma prática de educação popular, e aceitassem participar do
projeto, decidiriam se iriam querer sua história contada por eles ou
por outros, em primeira ou em terceira pessoa.
Essa estratégia de articulação apresentou suas limitações,
devido ao seu caráter virtual decorrente do período da pandemia11
e, mesmo já estando trabalhando com uma categoria de amostragem
instrumental (THIOLLENT, 2011), ao encontrar algumas
dificuldades no retorno dos convites, também impulsionamos essa
intencionalidade para grupos que de alguma forma já tinham nos
atravessado ao longo da nossa história de resistências.
E no decorrer desse movimento de mapear fomos percebendo
a forma como as pessoas estavam mais interessadas em contar suas
próprias histórias e que a opção de reunir essas pessoas para que
elas ajudassem na construção desse mapeamento estava se
tornando inviável no momento. Então, as pessoas que
permaneceram trabalharam diretamente na elaboração do material
sobre as experiências com as quais elas possuíam vínculo. E nos
tocou, sozinhas, fazer o mapeamento das demais experiências,
mesmo que muitas não conseguissem participar diretamente da
pesquisa, pois o próprio encontro com elas já representava um
aprendizado para nós. Essa situação foi importante para uma
análise sobre a ação de mapear, pois serviu para refletir sobre o
lugar da pesquisa como ação (TRIP, 2005) e a reflexão sobre esse
caso resultou de síntese para se pensar como o percurso
investigativo não precisa ser rígido, pois a realidade se movimenta
e exige de nós atenção e estratégia política para refletir e
redimensionar a ação, assim como nos ensina Nilma Bentes (2002,
p. 123) com o “‘Método da Capoeira de Angola’, que consiste em

11O ano de 2020 foi marcado pela pandemia do COVID – 19, tendo alterado de
forma significativa a vida e a rotina de todo o mundo, por exigir um rígido grau
de isolamento social. Essa dinâmica afetou e tem afetado as condições de trabalho,
estudo, psicológicas etc, transformando nossa sociabilidade e reconfigurando na
virtualidade alguns espaços de interação.

95
atacar, recuar, agachar, saltar, mas sempre gingando, para
conseguir avançar”.
É fundamental termos em conta, também, que o projeto N.N.
e a pesquisa-ação12 envolvendo-o se aproximam na medida em que
a ação pesquisada da dissertação é a ação do projeto N. N., por isso,
trata-se, também, de lembrar o que Streck (2013) diz ao argumentar
que as pesquisas com um caráter investigativo da ação costumam
ser irmãs gêmeas da educação popular.
O olhar para o projeto e o seu movimento levou em conta
também os seus instrumentais, pois ainda é comum que um dos
principais mediadores das relações entre as pessoas envolvidas na
pesquisa acabe secundarizado e/ou esquecido nos apêndices. Dessa
forma, analisamos alguns elementos que aí apareciam. Em especial,
no Modelo de Plano de Formação foi importante ver como o nosso
escreviver estava presente, na medida em que apresentamos, junto
com o instrumental, o desejo e a necessidade de criação de redes a
partir das experiências de resistência mapeadas. Também
compõem a nossa história esse fazer coletivo e o contato não
hierarquizante com as outras pessoas, o que nos coloca no lugar
estratégico da luta contra as diversas opressões que nos cerceiam,
pois evidencia o reconhecimento do nosso compromisso com a
mudança da sociedade (FREIRE, 2014), além da consciência de que o
nosso conhecimento é limitado (hooks, 2013). Por isso, mapear
resistências diversas e somar forças é um caminho a ser trilhado
diariamente.
Ademais, esse olhar analítico sobre o próprio caminhar nos
levou a compreender como o movimento de mapear as

12A adoção da pesquisa-ação também foi fundamental para esse exercício de


mapeamento, pois uma das motivações para tal foi o aprimoramento da prática de
mapear como uma estratégia de perceber a diversidade de experiências de resistências
desenvolvendo práticas que se aproximam e fortalecem o debate sobre a educação
popular, bem como aprimorar a nossa prática de se perceber em contato com as
diversidades apresentadas no momento da pesquisa. E sendo essas, duas
premissas dessa abordagem metodológica: o aprimoramento da prática e a tomada de
consciência (THIOLLENT, 2011)

96
experiências de resistências no território nordestino foi importante,
por também tensionar o nosso lugar de fala (RIBEIRO, 2017), pois
nos colocou em contato com outras experiências alheias às nossas
vivências. Estas, por sua vez, evidenciaram a importância de nos
deslocarmos de alguns lugares de privilégio para compreender
outras realidades.
E sendo o Nordeste o lugar de investigação, as análises acerca
do projeto N.N. concluíram que buscar conexões com tantas
experiências, no caso as 109 pontuadas, também despertou o que
Freire (2011) chama de curiosidade epistêmica, pois, além dessas
experiências contribuírem para a desmistificação desse Nordeste
homogêneo, também reacenderam a necessidade de nós,
educadores/as, conhecermos cada vez mais o que nos cerca. Assim
como a necessidade de estarmos atentos/as à importância desse
movimento de mapear, num processo de reflexão e autocrítica que
nos leva a direcionarmos nossas forças.

Uma pesquisa-ação escrevivente

Da calma e do silêncio
Conceição Evaristo

Quando eu morder
a palavra,
por favor,
não me apressem,
quero mascar,
rasgar entre os dentes,
a pele, os ossos, o tutano
do verbo,
para assim versejar
o âmago das coisas.

Quando meu olhar


se perder no nada,
por favor,
não me despertem,
quero reter,

97
no adentro da íris,
a menor sombra,
do ínfimo movimento.
Quando meus pés
abrandarem na marcha,
por favor,
não me forcem.
Caminhar para quê?
Deixem-me quedar,
deixem-me quieta,
na aparente inércia.
Nem todo viandante
anda estradas,
há mundos submersos,
que só o silêncio
da poesia penetra.13

É comum que professores/as, em nível de graduação e


mestrado, desestimulem seus estudantes a realizarem pesquisa-
ações, por acreditarem que o tempo é curto para isso. Então,
quando é o tempo de colocar as palavras na ação do cotidiano e se
deitar sobre elas para sentir o seu caminhar? A ação nos movimenta
em todos os sentidos, e foi nessa pesquisa-ação - que não é começo
nem fim, é palavra “viandante” - que mergulhamos no movimento
de reviver memórias, estabelecer pontes e montar o material tecido
por muitas mãos, que foram os Planos de Ação.
Fazer pesquisa-ação é um caminho muito peculiar, exige que
olhemos verdadeiramente para nossas ações, com o cuidado de não
deixar passar despercebido o avanço, mas também o estanque e a
interseccionalidade (AKOTIRENE, 2019). Esta, aliada à educação
popular, nos ajuda quando informam que os caminhos feitos estão
cheios das contradições coloniais que ainda SOBREvivem em nós.
Colaboram para dar a perceber como ainda caímos nas armadilhas
dos opressores. Mas não só, também ensinam como traçar
caminhos que levam por estradas outras, longe dessas opressões.

13Poema de Conceição Evaristo. Da Calma e do Silêncio; Disponível em:


https://www.youtube.com/watch?v=Iez_LTqSrkg. Acesso: 14 jun. 2020.

98
E pensando a pesquisa-ação como essa reflexão sobre uma
pesquisa em movimento (TRIP, 2005), e este movimento como o
reflexo necessário para não aceitarmos as injustiças sociais, é
importante levar em consideração as palavras de bell hooks (2013,
p. 148) em relação às barreiras que separam as mulheres brancas
das negras, e quando ela nos diz que “temos de produzir mais
trabalhos escritos e testemunhos orais que documentem as
maneiras pelas quais as barreiras são derrubadas, as coalizões se
formam e a solidariedade é partilhada”. O mesmo é válido para
outras opressões que nos assolam. Precisamos de arquivos e
memórias para colaborarmos com a construção de um futuro livre
das opressões, e o olhar e análise sobre a própria prática pode ser
um exemplo disso.
Um dos resultados do processo de mapeamento foi a
construção dos Planos de Formação, por parte das experiências que
aceitaram participar do projeto N. N., o que já representa uma
possibilidade de coalização de forças em torno de um projeto com
proposições pautadas na educação popular. Então, as análises
sobre esse caminhar do projeto levam em conta o processo de
mapeamento das experiências de resistências, e também alguns
sucintos elementos sobre a construção dos Planos de Formação.
Foi energizante ver essa produção coletiva acontecer, porque
se o mapeamento tivesse trabalhado apenas com as experiências de
resistência com as quais nós participamos, a pesquisa igualmente
sairia, mas foi bonito ver a participação acontecer, receber
mensagens de madrugada com dúvidas, justificativas por atrasos
na entrega dos Planos, etc. Também foi incentivador conhecer
alguns dos motivos que levaram as pessoas a escrever, pois o
processo de mapeamento desencadeado pelo projeto N. N. chegou
a muitas experiências de resistência detentoras de práticas
educativas com vetores emancipadores, apresentadas através de
metodologias diversas pautadas na construção de pensamentos
críticos desde distintos campos de atuação (PESSOA, 2013).
O que pôde ser visto com as experiências mapeadas, com os
Planos de Formação posteriormente situados no Livro (ainda em

99
edição) Rompendo o Cerco e com o próprio movimento que gerou
tudo isso, foi a importância de aprender com quem já faz, com
pessoas mais velhas, inclusive, tentando diminuir muito do
etarismo14 ainda existente, pois:

[...] se os membros mais jovens de uma comunidade veem os mais velhos


como desprezíveis ou suspeitos ou dispensáveis, eles nunca poderão dar as
mãos e examinar a memória viva da comunidade, nem fazer a pergunta mais
importante: “Por quê?”. Isso provoca uma amnésia histórica que nos
mantém trabalhando na invenção da roda toda vez que precisamos ir ao
mercado comprar pão (LORDE, 2019, p. 147).

Com o projeto N. N. não estamos inventando a roda, talvez


trocando os seus aros por outros que no momento parecem mais
resistentes. Revisitando, mediante a pesquisa-ação, uma postura de
educador popular que precisa estar em constante diálogo crítico e
construtivo da realidade. E essa troca de aros é um constante devir,
incessante, de repetições e mudanças a partir do nosso passado
também, pois pensar sobre esse tema é revisitarmos e revisarmos
nossas pesquisas anteriores, sabendo-nos reprodutores da
colonialidade (assim como esse próprio artigo em alguma medida
também o faz). Este reconhecimento é fundamental para
pensarmos sobre a autocrítica, nesse espaço de tensionamentos que
é a academia.
Tendo em conta isso, bem como os propósitos do N. N., é
possível conceber o projeto como uma experiência de educação
popular, tendo em vista a sua abertura para o diálogo com a
realidade, com o novo, e com a autocrítica. Pois, até mesmo
experiências que se localizam mais no campo da “teoria” podem se
vincular a essa categoria, uma vez que a escrita também é uma
prática. Essa falsa dicotomia teoria-prática tem as mesmas raízes
que tentam esvaziar as contribuições teóricas das experiências de
resistência nas periferias.

14Forma de discriminação com pessoas pertencentes a uma faixa etária mais velha
que a nossa, normalmente essa forma de violência costuma atingir as pessoas
idosas.

100
Outro elemento que atravessa essa pesquisa-ação escrevivente
é o seu local de acontecimento, porque, por mais que ela tenha se
viabilizado por conta da internet e nas redes sociais, ela nem
começa nem termina aí. Trata-se de uma proposta de mapeamento
que surge no real, passa pelo virtual para voltar ao real, com o
propósito de ocupar muitos outros espaços.
O âmbito virtual aparece como espaço de mediação entre nós
e as experiências de resistência; nem elas nascem aí, nem a
pesquisa-ação busca ter seus fins no meio virtual. O movimento de
usar o meio virtual para ocupá-lo com lutas que nascem em outras
dimensões nos ajuda a borrar as fronteiras existentes entre real e
virtual, não esquecendo da importância de tomarmos em conta a
interseccionalidade (AKOTIRENE, 2019) nessa discussão, pois essas
fronteiras continuarão existindo para grande parte da população
que não tem acesso à internet, ou o tem de forma muito precária15.
Realizar pesquisas pelo virtual tem ganhado destaque frente
ao desenvolvimento e incorporação das tecnologias digitais,
tornando-se também um lugar de disputa16, pois essas relações:

[...] van mostrando nuevas formas de asociación y lucha frente a estas


nuevas realidades. Allí tenemos formas de organización, por ejemplo, de
grupos por software y el hardware libre, que muestran que esos campos se
va mucho más por el acceso y el derecho al uso de las nuevas realidades de
la tecnología y el reconocimiento, abriéndose un nuevo campo mucho más
vasto, que requiere una reflexión para encontrar esos nuevos nichos
organizativos (MEJIA J., 2013, p. 389).

15 Vale pontuar que a pesquisa-ação ainda estava em andamento durante o início


da pandemia do COVID-19 e se ela não tivesse um caráter hegemonicamente
virtual seguramente teria o seu desenvolvimento comprometido.
16 É importante trazer para a discussão a compreensão de que por mais que as

redes sociais existam dentro e partir das lógicas de funcionamento da sociedade


capitalista, funcionando muitas vezes, inclusive, como forma de disseminar uma
falsa democratização ao acesso às informações, é indispensável que ocupemos
também esse espaço, pois, igualmente também temos o direito de nos
apropriarmos dessas tecnologias sociais e usar os seus meios para também
tensionar as opressões que vivemos.

101
Assim, um dos aspectos importantes das experiências de
resistências existirem também nas redes sociais é que elas
permitiram, através do mapeamento, que as análises pudessem ser
feitas desde uma perspectiva relacional. De alguma forma, se
consideraram aspectos das conexões proporcionadas pelo encontro
com elas, dos seus atributos, pois foram consideradas características
das pessoas e grupos mapeados no momento de selecionar quais
grupos seriam mapeados de acordo com os alinhamentos do
projeto N. N., como também o “conjunto das ações” e as suas relações
com um contexto social que, no caso desta pesquisa-ação, é o
Nordeste (AGUIAR, 2008).
Valendo-se do aspecto relacional que o processo de mapeamento
teve (AGUIAR, 2008), outro elemento que merece destaque, ao se
pensar sobre o caminhar da pesquisa-ação, refere-se às epistemologias
do armário, apresentadas por Sedgwick (2007). Esta abordagem é sobre
como a vida de quase todas as pessoas com sexualidades dissidentes
das normas impostas carrega o peso do armário consigo para todos os
lugares, tendo que pensar em como se apresentar socialmente e
ponderar se as orientações sexuais e as identidades de gênero serão
elementos mediadores das relações, e em que medida é possível ou
não se apresentar fora desse espaço de opressão, o armário. Esse dado
aparece na pesquisa, pois felizmente por ter sido feita através das
redes sociais de um dos autores, não houve por parte dele o
sentimento de pressão para voltar, em alguma medida, para esse
armário, e fazer alterações de sua imagem nas redes por conta dos
momentos de contato e interação com as demais pessoas, como já
aconteceu em outras situações, com outras pesquisa-ações no plano
real e também virtual.
Essas epistemologias do armário não cabem para a população
trans e travesti, pois, quase sempre, seus corpos, que transgridem
os padrões coloniais de gênero, já destroem esses armários por
onde passam17.

17Existe um termo dentro da comunidade trans que é a passabilidade, usado por


pessoas transexuais que conseguem transitar socialmente sem precisar passar

102
É importante pensar a partir desta perspectiva, pois não existe
uma neutralidade da sexualidade, da raça e da classe no momento
do mapeamento e da interação com as pessoas. Nossas identidades
se apresentam nessas interações e podem confluir e/ou tensionar
esses encontros, provocados com a pesquisa. Algumas situações
nos levaram a refletir de forma mais profunda sobre isso, uma vez
que uma das experiências convidadas a participar questionou se na
pesquisa se problematizava a nossa identidade étnico-racial. Além
disso, outra pessoa perguntou se outras travestis, além dela, já
participavam da proposta. São perguntas muito importantes, com
amplo potencial de aprendizado e tensionamento, e que felizmente
não foram uma surpresa por já estarmos atentas/os a essas
questões. Em relação à primeira, explicamos que sim, e que
inclusive essa era uma questão que atravessava toda a pesquisa.
A segunda pergunta tensiona um lugar muitas vezes utilitário
que os grupos historicamente subalternizados têm ocupado nas
pesquisas, pois esses grupos, aos poucos, estão ocupando os bancos
da universidade e tendo consciência sobre o quão colonial tem sido
grande parte das pesquisas, o que reforça a necessidade de
ocuparmos a universidade com trabalhos comprometidos com os
nossos interesses e dos nossos pares. O que também pode ser
realizado e estimulado na relação de orientação, quando o(a)
docente é comprometido com estas questões - no caso desta
pesquisa, uma mulher negra ocupa esta orientação.
Tal tensionamento, além do fato dos Planos de Formação não
contemplarem nenhuma pessoa trans e/ou travesti falando em
primeira pessoa, nos levou à reflexão sobre como é fundamental
que o diálogo com essas pessoas parta de estratégias de vida
específicas e menos coloniais, o que, em alguma medida, foi
insuficiente nessa pesquisa-ação. Apenas quando o processo de
mapeamento já estava bem avançado percebemos que o mesmo
diálogo, que estava sendo estabelecido de maneira quase idêntica

pelas violências que a maioria passam apenas por existir como pessoa trans, ou
seja, não sofrem violências por não serem reconhecidas dentro da cisgeneridade.

103
com todas as experiências, não era acessível para a população trans
e travesti. Embora também seja possível avaliar como um avanço o
fato de que, no início da proposição do projeto N. N., era usado o
termo heteropatriarcado, e com o avançar da pesquisa-ação e a
aproximação do movimento transfeminista, passamos a trabalhar
com a categoria cisheteropatriarcado18. O que pode ser explicado,
também, por esses tensionamentos que o movimento do
mapeamento proporcionou.
Esse refletir sobre a prática é o que compõe a práxis nas palavras
de Freire (2011) e hooks (2013), pois essa ação não pode se limitar ao
simples fazer, precisa vir acompanhada da reflexão sobre ela.

18Cisheteropatriarcado é um termo cunhado pelos movimentos feministas


protagonizados por pessoas trans, ou também pelos transfeminismos que visa
partir de um lugar de enunciação que amplia a noção do patriarcado considerando
as opressões que esse sistema também imprime diante das pessoas não-
heterossexuais e nãocigênero, pois como Ariel Silva (2016) apresenta “a partir do
nascimento o conjunto social de regras que compulsoriamente forçam o indivíduo
à uma (cis) heterossexualidade a partir do observado em seu genital ao nascer. Por
exemplo, uma pessoa nascida com vagina será tida automaticamente como uma
mulher heterossexual que desempenhará todos os papeis de gênero à ela
atribuídos na sociedade em que está inserida. A norma não permite que essa
mesma pessoa se identifique com algo além de mulher ou que sua sexualidade
seja vivenciada além do modelo heterossexual instalado, já que na organização
social há um espaço já demarcado (e subalterno) para que seja ocupado”.
Disponível em: https://transfeminismo.com/materializando-as-identidadesnao-
binarias-a-bicha-enquanto-identidade-de-genero-brasileira-a-fluidez-de-genero-
para-alem-dos-murosuniversitarios/. Acesso: 18 jun. 2020.
E o movimento transfeminista, ou transfeminismo, pode ser entendido como a
forma de pensar e problematizar as desigualdades de gênero e sexualidade que
compreendam a vida das pessoas trans. E nas palavras de Jaqueline de Jesus (2015,
p. 19) “O transfeminismo, algumas raras vezes chamado de feminismo
transgênero, prolifera pela internet, anuncia-se em blogs e se confraterniza em
redes sociais, e pode ser definido como uma linha de pensamento e prática
feminista que rediscute a subordinação morfológica do gênero (como construção
psicossocial) ao sexo (como biologia), condicionada por processos históricos,
criticando-a como uma prática social que tem servido como justificativa para a
opressão sobre quaisquer pessoas cujos corpos não estão conformes à norma
binária homem/pênis e mulher/vágina [...]”.

104
Um projeto de resistir além da razão

Durante o desenvolvimento da pesquisa-ação pudemos


pensar sobre a experiência do projeto N. N., porém esse movimento
nos levou a revisitar algumas das experiências de resistências nas
quais participamos e percebê-las, hoje, depois um tempo distante19.
Escrever sobre essa pesquisa-ação, assim como sobre as
experiências de resistência anteriores, foi um movimento de retirar
a máscara colonial que está grudada em nós e em tantas outras
pessoas historicamente silenciadas (KILOMBA, 2019), pois a
academia, como um reflexo da sociedade de modo geral, também
exerce esse poder de silenciar vozes que não se enquadram nos
diversos tipos de pesquisa, de formas de escrever, de temas, etc.
Por exemplo, na realização dessa e de outras pesquisas durante
mestrado tivemos que escutar que essa pesquisa era “conversa de
mesa de bar”, ou que a linguagem que usávamos era muito
informal para a academia e melhor seria “gravar um áudio”.
Importante pensarmos sobre o que estes questionamentos
representam, já que eles podem estar falando de algo que está
oculto, ou seja, da dificuldade, por parte de quem faz esse tipo de
questionamento, de entender a pesquisa de uma forma ampla e
diversa, dentro da sua complexidade.
Sobre isso, Audre Lorde (2019) nos lança a reflexão de que
mais vale partirmos da premissa “sinto, logo sou livre”, do que
“penso, logo existo”, pois de que valeria pensar sobre os processos
de escrita se não pudéssemos ter dado vazão a esses sentimentos
que surgem nesse ínterim? Escrever para ocupar um lugar na
academia, onde não caibam dimensões para além do objetivo e do
racional, não deveria ser um lugar-comum nas pesquisas.
Sentimentos movem o mundo porque são eles que também movem
as bases das ações. Streck et al. (2014, p. 135) aporta ao debate,
partindo da educação popular:

As experiências em questão são Projeto Educação, Gênero e Sexualidade (PEGS) e o


19

Ocupa Estação, que aparecerão como Planos de Formação no Livro Rompendo o Cerco.

105
A partir de um contexto universitário, Fals Borda (2009) questiona o
distanciamento entre aquilo que se chama de conhecimento científico do
conhecimento do povo e coloca como perspectiva o conhecimento vivencial.
Vivência é uma experiência total dentro do qual a pessoa se coloca, com ação,
pensamento e sentimento. Por isso também propõe, como sociólogo, que se
deveria desenvolver uma sociologia sentipensante .

A suposta neutralidade, advogada pelos campos conservadores,


precisa ser combatida em todas as suas dimensões. Não há vida sem
afeto, estamos afetando e sendo afetados a todo instante. E essa foi uma
dimensão que se sobressaiu na pesquisa, tanto no nosso percurso, como
no de outras pessoas que escreveram os Planos de Formação, porque
reviver as experiências para contá-las é recordar os sentimentos que
essas experiências geraram. Dois casos onde isso se deu podem ser
relacionados com o pensamento de bell hooks, quando nos diz que
“professores que tentam institucionalizar práticas pedagógicas
progressistas são alvo de críticas que buscam desacreditá-los” (hooks,
2013, p. 189). Um dos casos ilustrativos ocorreu com uma experiência
sistematizada por Jonas, um dos autores deste texto, e que pode ser
vista no livro Rompendo o Cerco, no Plano de Formação “Projeto
Educação e De(s)colonização”. Reviver algumas dimensões da
experiência para contá-la foi necessariamente sentir tensões que
aconteceram durante o processo, pois as violências sofridas foram
muitas. Por exemplo, ter as aulas gravadas por estudantes (e ser salvo
pela intuição do Orí de suspeitar que algo estava errado), sofrer
linchamento virtual, escutar de colegas de trabalho feministas que era
demais e exagero debater religião e sexualidade na escola20. Nessa
época, o autor já tinha a consciência de que, sendo uma bixa negra e
periférica, corria mais riscos só por existir, e que cada avanço obtido
com o projeto em direção ao movimento de libertação individual e
coletiva, movimentada as estruturas de opressão.

20A fala em questão surgiu a partir da exibição desse vídeo “O que a bíblia (não)
diz sobre a homossexualidade”, do canal Muro Pequeno. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=OYy2Vn15xVI&t=757s. Acesso em: 11 jun.
2020. Foi a exibição e debate do mesmo vídeo que levou estudantes a gravarem a
aula e ameaçarem denunciar (!).

106
Mais um caso onde pôde ser percebido como os sentimentos
estão imbricados com as experiências de resistências e a pesquisa,
ocorreu durante a sistematização de outro Plano de Formação
derivado de um espaço institucional escolar. Neste caso, a pessoa nos
enviou o material e ficamos com dúvida em relação a um dos tópicos
apresentados; então, questionada se seria possível desenvolver
melhor aquela ideia, a sua resposta foi que no atual momento da sua
vida não era possível falar mais sobre o tema, pois isso significava ter
que voltar ao passado e reviver situações traumáticas.
Seguramente, várias experiências das que aparecem no
mapeamento teriam histórias similares para contar, pois as tensões e
avanços das lutas sociais não acontecem sem que passemos por
muitos desgastes. Então, a quem interessa não saber sobre os
sentimentos que motivam e acompanham as resistências? O lugar da
resistência é também o lugar das contradições, pois elas não estão
isolados das relações sociais, e sim, nascem a partir delas. E nossas
vozes precisam ecoar em todos os sentidos possíveis para quebrar a
máscara que nos impuseram (KILOMBA, 2019) e ressonar as
resistências históricas e ancestrais que nos trouxeram até aqui, como
nos mostra Conceição Evaristo nos versos deste poema:

[...] A voz da minha filha


recolhe todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas na garganta
A voz da minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem - o hoje - o agora.
Na voz da minha filha
se fará ouvir a ressonância
O eco da vida-liberdade21.

21Vozes-Mulheres, Conceição Evaristo. Disponível em: http://www.letras.


ufmg.br/literafro/literafro/autoras/24-textos-das-autoras/923-conceicao-evaristo-
vozes-mulheres. Acesso em: 19 jul. 2020.

107
Até na forma como escrevemos, sentimentos-pensamentos
podem ou não ter mais liberdade para aparecerem. A linguagem
muito engessada da academia normalmente direciona para que não
exista lugar para isso, a não ser que a sua pesquisa seja um áudio (!).
A vazão e produção de sensibilidades adormecidas pelas
estruturas opressoras, para além de ser uma ótima estratégia de
fortalecimento da nossa capacidade de re-existir e reiventar-se
como humanidade, também é uma possível forma de contágio, de
ensino que se faz pela poesia, pela arte, pelo despertar de sentidos
esquecidos dentro de nós por gerações inteiras de silêncio imposto.
Reconhecendo essa dimensão mais ampla do que representa nossa
humanidade negada, vale dizer que “a única cosmovisão a usar
apenas os olhos é a ocidental e esses olhos nos dizem que somos
pessoas de cor, que somos Outros. A concepção de mundo que
interessa ao feminismo negro se utiliza de todos os sentidos.”
(AKOTIRENE, 2019, p. 24). Na mesma esteira, Galeano nos lembra
sobre como desaprendemos a ler o mundo ao nosso redor sem as
lentes coloniais:

[...] graças aos caracóis os índios shipibos não morrem cada vez que o rio
Ucayali fica de mau humor e suas águas alvoroçadas invadem a terra e
atropelam tudo que encontram pela frente. Os caracóis avisam. Antes de
cada calamidade, deixam seus ovos grudados nos troncos das árvores,
bastante acima da altura onde as águas chegarão. E jamais erram o cálculo
(GALEANO, 2010, p. 78).

Tendo em conta essas questões, o projeto N. N. esteve


preocupado em aproximá-las da educação popular e vice-versa,
considerando nossa postura como pesquisadores/as, mas também
como professores/as, e valendo-se da importância de “[...]
recuperar um conhecimento fora da escola, fora do sistema formal
de ensino e trabalhá-lo no interior da escola pública. É aí que se
encerra a importância, e a exigência até, da competência do
educador” (VALE, 1992, p. 92).
Dessa forma, um dos principais resultados que pode ser
tomado em consideração com o desenvolvimento do projeto N. N.,

108
é a importância de lembrarmos que atuar no campo da educação
popular significa estar atento ao caminhar, ter nas práticas a matriz
das reflexões e por isso mesmo não querer que um projeto abranja
e seja capaz de dar conta de todas as dimensões da realidade, pois
essa realidade está em constante movimento. De outra forma, seria
lê-la impondo-lhe categorias abstratas. Atentar-se para esse
movimento significa entender e se deslocar de acordo com ele e
com os distintos lugares sociais aí existentes, pois essa relação
demanda entendermos, justamente, os lugares de fala (RIBEIRO,
2017), dos/as nossos/as interlocutores/as.

Considerações Finais

Participar de uma experiência de resistência como foi o projeto


Nosso Nordeste, Nosso Lugar de Fala, seja através dos processos
organizativos, seja como participante que elabora os Planos de
Formação, configura uma manifestação do novo que já se anuncia
há tempos e tensiona os espaços acadêmicos com as presenças não
conformes, com as vidas que não põem a sua existência no jogo,
sem também ditar as regras.
Por isso, a escolha da educação popular e da interseccionalidade
como caminhos possíveis para se pensar esse caminhar do projeto e
da pesquisa-ação foram fundamentais. Essas categorias, e seus
históricos ancestrais, nos ensinaram e ensinam que é preciso olhar
para os lados, pedir ajuda, aprender com os/as mais velhos/as e
calibrar as rodas sempre que preciso for, porque se o movimento da
realidade é constante, e nossa capacidade de compreender e analisá-
lo precisa estar diretamente conectada com esse devir.
As análises acima nos mostraram que essas conexões precisam
acontecer desde o movimento de (re) pensarmos nossas posições
no mundo, nas pesquisas, na academia. De que forma o nosso lugar
de fala permite acessos ou limitações, e de que maneira podemos
articular esses acessos e limitações com outras realidades, para que
possamos pensar e atuar em projetos de mundo onde caibam todas
as pessoas. São perguntas retóricas que têm como resposta

109
possível: é preciso conhecer as dores que não nos doem para
também lutarmos por algo que vá além das nossas compreensões.
Nesse movimento de conhecer o que não nos afeta
diretamente, outra análise realizada pela pesquisa e que merece
relevo, diz respeito a posição ocupada pelas nossas identidades
dentro desse espaço de pesquisa. É importante que comecemos a
fazer pesquisas que levem em conta quem está escrevendo: de que
forma nosso corpo, nossas subjetividades, o que sentimos, afeta as
relações das pesquisas de campo, nos afeta, e até mesmo determina
a forma como escrevemos. Se (en)trevamos, ou se fluímos.
(En)trevar é quase o mesmo que Conceição Evaristo apresenta
quando nos fala em engasgar – desengasgar as vozes que
secularmente foram silenciadas. Se não falamos, nosso corpo vira
treva e os que tentam nos silenciar, nos nor-destinar, seguem
falando, porque, para eles, a vazão de suas razões nunca foi um
problema. Nos toca continuarmos pensando e propondo formas
para refundarmos e seguirmos tensionando os espaços acadêmicos.
Escutando quem nos cerca, buscando por quem está distante
porque foi distanciado/a e, finalmente, aprendendo a caminhar
enquanto se anda.

Referências

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Castiel Vitorino. Devorações: descolonizando corpos, desejos e
escritas. Vitória (ES): Castiel Vitorino Brasileiro, 2018.
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Produção Editorial LTDA, 2019.
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fim. In: Núcleo de Estudos Negros. Educação Popular Afro-
Brasileira. 1ª ed. Florianópolis: Atilènde, 1999.
DE JESUS, Jaqueline Gomes. Interlocuções Teóricas do Pensamento
Transfeminista. In: DE JESUS, Jaqueline Gomes et al.

110
Transfeminismos: teorias e práticas. 2. Ed. Rio de Janeiro:
Metanoia, 2015.
FREIRE. Paulo. Educação e Mudança. 36. ed. São Paulo: Paz e
Terra, 2014.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à
prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2011.
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da liberdade. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013.
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cotidiano. Rio de Janeiro. Editora Cobogó, 2019.
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2019.
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Janeiro e Santa Catarina (1970-2000): implicações teóricas e
políticas para a educação brasileira. 2009. Tese (Doutorado em
Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Federal do
Ceará, Fortaleza, 2009.
MEJIA J., Marco Raúl. Posfácio - La educación popular: una
construcción colectiva desde el sur y desde abajo. In: STRECK,
Danilo R.; ESTEBAN, Maria Teresa (org.). Educação Popular: lugar
de construção social coletiva. Petrópolis: Vozes, 2013.
PESSOA, Festa Popular e Educação Popular: Lugares em
Movimento. In: STRECK, Danilo R.; ESTEBAN, Maria Teresa (org.).
Educação Popular: lugar de construção social coletiva. Petrópolis:
Vozes, 2013.
RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala?. Belo Horizonte:
Letramento: Justificando, 2017.
SEDGWICK, Eve Kosofsky. Epistemologias do armário. Cadernos
Pagu, Campinas, n. 28, p. 19-54, 2007.
STRECK, Danilo R. et al. Educação popular e docência. São Paulo:
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STRECK, Danilo R. Territórios de resistência e criatividade:
reflexões sobre os lugares de educação popular. In: STRECK,
Danilo R.; ESTEBAN, Maria Teresa (org.). Educação Popular: lugar
de construção social coletiva. Petrópolis: Vozes, 2013.

111
THIOLLENT, Michel. Metodologia da Pesquisa-Ação. 18. ed. São
Paulo: Cortez, 2011.
TRIP, Dayvid. Pesquisa-ação: uma introdução metodológica.
Educação e Pesquisa. São Paulo, v. 31, n. 3, p. 443 – 466, set/dez. 2005.

112
O canto do chamamé e a identidade musical do
nordeste argentino

Adrielly Oissa1
Analía Chernavsky2

À inesquecível Ramona Galarza

Resumo: Este trabalho propõe uma reflexão sobre a construção da


identidade musical vinculada ao canto do chamamé. A escuta e análise do
comportamento vocal associado a este canto, realizados com base nos
trabalhos de Tatit e de outros estudiosos da canção e do canto popular,
conduzem, em primeiro plano, este estudo interdisciplinar. Por outro
lado, esta pesquisa também se nutre do trabalho com fontes
historiográficas e de memórias criadas em torno a esse gênero
característico da região do nordeste argentino e que se tornou definidor
da identidade musical das províncias dessa região.
Palavras-chave: Chamamé. Canto popular. Música litoraleña. Identidade musical.
Canção latino-americana.

Pesquisas que relacionam música e identidade são frequentes


no campo dos estudos em música popular. Em seu livro Pensar la
música desde América Latina: problemas e interrogantes, publicado em
2013, Juan Pablo González descreve várias pesquisas que abordam
esse conceito, trabalhado com maior relevância a partir da última
década do século XX. Explica que é importante perceber e

1 Mestranda do PPG-IELA da UNILA. Professora de canto especialista em


Educação Aplicada à Performance Musical – UNIS e Bacharel em Música-Canto
pela UNILA.
2 Professora do Curso de Música e do PPG-IELA da UNILA. Coordenadora do projeto

“Entre tangos, sambas e guarânias: um estudo sobre o comportamento vocal na canção


urbana latino-americana” e co-responsável do Proyecto Musicat, do Instituto de
Investigaciones Estéticas da Universidad Nacional Autónoma de México.

113
compreender como a música é capaz de articular identidades,
afetos, atitudes e padrões de comportamento, os quais, entre outras
questões, representam preocupações centrais na análise semiótica
da canção. E um dos principais problemas, afirma González, é que
não se sabe exatamente como operam os processos de transmissão,
recepção e construção de significados em lugares e momentos
históricos específicos (GONZÁLEZ, 2013, p. 51).
O trabalho de Alejandro L. Madrid sobre o compositor
mexicano Julián Carrillo é um exemplo desse tipo de abordagem.
Nessa pesquisa, explica González, Madrid busca descontruir “o
essencialismo nacionalista do discurso desenvolvido em torno da
música artística mexicana e do conceito estático de identidade que
o sustenta”. González aponta que esta ideia pode ser aplicada à
situação latinoamericana em seu conjunto, uma vez que as
propostas musicais nacionalistas e os discursos que as
acompanham são bastante semelhantes nesta porção do continente.
Em contrapartida, explica, “Madrid propõe um conceito dinâmico
de identidade que é relativa, fluida, mutante, ‘que reflete as
relações de poder entre os indivíduos e a rede ideológica, social e
cultural que os rodeia’ (GONZÁLEZ, 2013, p. 30).
Percebemos que esse modo de conceber a identidade é
bastante próximo daquele adotado por Cragnolini, estudiosa do
imaginário sobre o chamamé em migrantes correntinos residentes
em Buenos Aires, quando explica, situando o seu marco teórico,
que concebe

a música enquanto ‘entidade simbólica’ (Feld 1994, Frith 1898, Middleton


1985), como um espaço de produção de significados gerados na articulação
dos aspectos sonoros, com os estilos de vida (em termos de Boudieu 1991)
dos fazedores dessa música. O estilo de vida supõe uma determinada
posição dos sujeitos dentro do sistema sociocultural, a geração de certas
práticas, e a consequente elaboração de conceitos e juízos de valor. Quem
executa, escuta ou fala sobre a música, a interpreta gerando representações
que a ordenam, a classificam, a estigmatizam e a dotam de sentido [...]”. E

114
ao falar da música, as pessoas falam também de si mesmas, elaborando
identidade [...]”. (CRAGNOLINI, p. 235).3

Como vemos, Cragnolini aponta quem executa, quem escuta e


quem fala sobre a música como potenciais agentes da construção da
identidade musical. Acreditamos que quem canta (pensando em
sujeitos) também é parte responsável nessa construção. E o como
canta tal intérprete, ou o como se canta tal gênero, são elementos de
estudo fundamentais para a compreensão das identidades
musicais fluidas, mutantes, associadas às identidades estanques.
(MADRID, 2003). Elementos infelizmente negligenciados pela
maior parte dos estudos que enfocam o chamamé, que tratam o
gênero como dança, esquecendo a relevância da produção de
chamamés-canção. Ao longo deste texto, vamos trazer alguns
apontamentos e reflexões a respeito do canto do chamamé e sugerir
parte de seu papel na construção da identidade musical do
nordeste argentino, especialmente da província de Corrientes.

Identidade musical. O chamamé

Ramona Galarza, cujo canto se confunde com o próprio canto


do chamamé, faleceu em Buenos Aires em setembro deste ano de
2020, com oitenta anos, mais de sessenta de carreira. Nascida em
Corrientes, cidade reconhecida como berço do chamamé e que
desde os anos noventa sedia a Festa Nacional do Chamamé,
Ramona se destacou como intérprete deste gênero e da música

3 No original: “a la música como una ‘entidad simbólica’ (Feld 1994, Frith 1898,
Middleton 1985), como un espacio de producción de significados generados en la
articulación de los aspectos sonoros, con los estilos de vida (en términos de
Boudieu 1991) de los hacedores de esa música. El estilo de vida supone una
determinada posición de los sujetos dentro del sistema sociocultural, la generación
de ciertas prácticas, y la consecuente elaboración de conceptos y juicios de valor.
Quienes ejecutan, escuchan o hablan sobre la música, la interpretan generando
representaciones que la ordenan, la clasifican, la estigmatizan y la cargan de
sentido [...]”. Y al hablar de la música, las personas hablan también de sí mismas,
elaborando identidad [...]“ (CRAGNOLINI, p. 235).

115
litoraleña em geral. Explica Adorni que o repertório da canção
popular litoraleña teve seu auge entre as décadas de 1950 e 1960,
período que coincidiu com o boom do folclore na Argentina. E que
sonoramente se vincula principalmente com o chamamé, embora
possa apresentar outros ritmos regionais como a guarânia, a
galopa, o rasguido doble, e outros (ADORNI, 2019, p. 2). 4
“La novia del Paraná”, como ficou conhecida Ramona, migrou
a Buenos Aires no final da década de 1950, começo da de 1960, do
mesmo modo que milhares de correntinos que rumaram à capital
do país em busca de melhores oportunidades de emprego e
qualidade de vida.

Em 1958 [Ramona] participa do filme Alto Paraná, cantando um chamamé.


Para a dublagem de sua própria voz viaja a Buenos Aires e desde então atua
e é contratada por um selo discográfico que a lança para o reconhecimento
total de sua virtuosa voz. Fez sua primeira apresentação estelar na Capital
na Rádio Splendid, em fevereiro de 1960. Temas como “Río manso”,
“Galopera” e “La del vestido celeste” a catapultaram de imediato à fama.
Atuações no rádio, televisão, peñas, festivais de música folclórica, a apontam
entre seus artistas prediletos (PIÑERO; PAIVA, s/d).5

Adorni destaca que Galarza representa uma das mais


importantes referências femininas na interpretação da canción

4 A “região do Litoral” compreende o território ocupado pelas províncias da


Mesopotâmia argentina, banhada pelas águas dos rios Paraná, Paraguai e Uruguai
– Misiones, Corrientes e Entre Ríos – e outras províncias às margens do Paraná e
do Paraguai – Formosa, Chaco e Santa Fé. Atravessada por grandes ríos, esta
Mesopotamia se extende ao longo das fronteiras com o Paraguai, sul do Brasil e
oeste do Uruguai, em grande área ligada por características geográficas,
linguísticas, culturais e históricas.” (ADORNI, 2019, p.2).
5 No original: “En 1958 [Ramona] participa en la película Alto Paraná, cantando

un chamamé. Para el doblaje de su propia voz viaja a Buenos Aires y desde


entonces actúa y es contratada por un sello discográfico que la lanza para el
reconocimiento total de su virtuosa voz. Hizo su primera presentación estelar en
la Capital en Radio Splendid, en febrero de 1960. Temas como “Río manso”,
“Galopera” y “La del vestido celeste” la catapultaron de inmediato a la fama.
Actuaciones en radio, televisión, peñas, festivales de música folclórica, la cuentan
entre sus artistas predilectos”.

116
litoraleña. A industrialização da música popular urbana, iniciada no
nosso continente na primeira década do século XX, favoreceu a
fixação e a consagração de condutas vocais específicas,
consideradas adequadas à interpretação de cada gênero. Nessa
definição entraram em jogo diversos fatores, especialmente os
vinculados aos discursos de identidade cultural.6
A respeito do nome “chamamé”, Boettner afirma que este termo
teria sido usado pela primeira vez pela gravadora RCA Victor de
Buenos Aires no início da década de 1930 para designar um gênero
nascido da polca paraguaia e “ligeiramente regionalizado” pelos
músicos da província de Corrientes, na Argentina, que adotaram o
acordeão (no lugar da harpa paraguaia) como o instrumento
executante por excelência (BOETTNER, s/d, p. 196). Cardoso, por
outro lado, explica que “a primeira vez que o termo chamamé aparece
– nos registros da sociedade de autores e compositores argentinos –
data de 1930 e corresponde à gravação do tema Corrientes Potí (Flor de
Corrientes) por Francisco Pracánico, autor da música, e Diego Novillo
Quiroga, da letra (CARDOSO, 2006, p. 255).
O mito de origem também se expressa em uma versão que
aponta a gravação de um disco em 1930, em Buenos Aires, pelo
cantor paraguaio Samuel Aguayo, contendo a canção Corrientes Potí,
batizada por ele de chamamé. Sobre a etimologia da palavra,
Cardoso nota que já existia na língua guarani e significa algo como
‘feito de improviso’, ‘com descuido’. Segundo o autor, Samuel
Aguayo estava a caminho de Buenos Aires e, numa pousada na
região de Corrientes, falou para seus músicos, companheiros de

6Adorni, trabalhando na perspectiva dos estudos de gênero, aponta outras frentes


projetadas para Ramona Galarza pela indústria cultural. Ela identifica diversas
estratégias comerciais produzidas em dois sentidos. Por um lado, o
branqueamento e a domesticação da música litoraleña e do chamamé,
tradicionalmente associado às classes baixas e à desordem. Por outro, a
transmissão de um modelo femenino fortemente enraizado nos papéis
tradicionais da mulher como esposa, filha e mãe (ADORNI, 2019). Não vamos
desenvolver neste artigo um diálogo com a crítica a esse papel imprimido pela
indústria cultural a Galarza, mas entendemos que o trabalho de Adorni traz
importante contribuição à bibliografia crítica produzida em torno ao chamamé.

117
viagem: ‘mbae catu ña mbopu?’ (da língua guarani, significando: ‘o
que vamos tocar de bom?’) e outro músico respondeu: ‘nã mo
chamame – name mbaena’ (‘vamos improvisar alguma coisa para
segurar os presentes’) (CARDOSO, 2006, p. 255; apud MARCON,
2011, p. 13). Para além da discussão a respeito da origem do termo
“chamamé”, a bibliografia especializada, como foi dito
anteriormente, considerou o chamamé como componente
importante na formação da identidade cultural do nordeste
argentino, a região do litoral, ou mesopotâmia argentina, como prefere
o folclorista e musicólogo Carlos Vega. Identidade híbrida, mutante,
fundada na mistura de elementos oriundos de diferentes tradições
culturais, como mostram as discussões a respeito do nome, ritmo,
forma e outros materiais intrinsecamente musicais do chamamé.

A gestualidade oral na construção da identidade musical

A construção cultural através da gestualidade oral requer uma


busca pelas memórias, tradições e ensinamentos, transmitidos por
aqueles que procuram manter seus elos culturais no decorrer das
gerações. São diversos os instrumentos de transmissão cultural que
participam da gestualidade oral, dentre os quais destacamos o canto e
o cantar.
Em uma das obras mais importantes de análise da música
brasileira, Luiz Tatit propõe compreender a canção como uma
forma de gestualidade oral, uma maneira especial e específica de
dizer as coisas.

“Cantar é uma gestualidade oral, ao mesmo tempo contínua, articulada, tensa e


natural, que exige um permanente equilíbrio entre os elementos melódicos,
linguísticos, os parâmetros musicais e a entoação coloquial [...]. No mundo dos
cancionistas não importa tanto o que é dito, mas a maneira de dizer, e a maneira
de dizer é essencialmente melódica” (TATIT, 2002, p. 9).

Através desse gesto é possível, entre outras coisas, preservar


cultura, transmitir ensinamentos, incutir valores e, além disso,
distrair as pessoas. Os relatos e retratos transmitidos de geração em

118
geração através das letras das canções, ajudam a compor o
imaginário regional e novos elementos de representação simbólica
passam a ser acrescentados, reelaborando as identidades e as
crenças e tornando-as parte do cotidiano das pessoas que vivem o
canto: quem canta, quem toca, quem escuta e também quem vende
e compra o canto.
No entanto, aponta Juan Pablo González quando discorre
sobre a recente virada dada pelo campo de estudos da música
popular especialmente no tratamento da canção, não se avançou o
suficiente na compreensão do texto musical a partir da escuta,
percepção ou consumo (GONZÁLEZ, 2013). E, podemos
acrescentar que, apesar do desenvolvimento notável que
alcançaram os estudos em música popular principalmente a partir
da década de 1990, a produção intelectual em torno da performance
ou do comportamento vocal associado à canção popular ainda
continua escassa. Se pensarmos no canto do chamamé, então,
poderíamos dizer que ela é praticamente inexistente. Embora
existam alguns estudos a respeito desse gênero musical, tais
estudos referem-se principalmente à origem histórica do gênero,
aos parâmetros musicais, instrumentais, rítmicos, melódicos, e
também, à dança propriamente dita. Não há pesquisas específicas
que se desdobrem sobre o aspecto vocal ou interpretativo dos
cantores de chamamé e sobre a importância desse cantar no que diz
respeito à transmissão de conhecimentos acerca da vida e da
história das pessoas que pertencem àquela região e a sua
importância na identidade cultural correntina em particular e
litoraleña em geral.
Explica Tatit que

a fala pura é, em geral, instável, irregular e descartável no que tange à


sonoridade. Não mantém ritmo periódico, não se estabiliza nas frequências
entoativas e, assim que transmite a mensagem, sua cadeia fônica pode ser
esquecida”. É por isso que “fazer uma canção é também criar uma
responsabilidade sonora. Alguma ordem deve ser estabelecida para
assegurar a perpetuação sonora da obra, pois seu valor, ao contrário do
colóquio, depende disso (TATIT, 1996, p. 12).

119
Este autor trabalha com os conceitos de passionalização e
tematização, diferentes estados que compõem a enunciação (como
a suspensão, asseveração, interrogação etc.) e reafirma a
importância do lastro entoativo que persiste na silhueta melódica
da canção. “O processo geral de programação entoativa da melodia
e de estabelecimento coloquial do texto pode ser denominado
figurativização por sugerir ao ouvinte verdadeiras cenas (ou
figuras) enunciativas [...]” (TATIT, 1996, p. 21), que se traduzem em
jogos de intervalos ordenados no tempo e cantados com
intensidade, textura, soprosidade e ornamentação (só pra citar
alguns dos elementos que configuram o comportamento vocal)
conforme o estado de enunciação que se pretende materializar.
Explicando o processo de “tematização” das canções,
vinculado especialmente aos gêneros dançáveis, como é o caso do
chamamé, Tatit aponta que este processo é caracterizado por uma

progressão melódica mais veloz e mais segmentada pelos ataques insistentes


das consoantes. Os contornos são, então, rapidamente transformados em
motivos e processados em cadeia. O centro de tensividade instala-se na
ordenação regular da articulação, na periodicidade dos acentos e na
configuração de saliências, muito bem identificadas como temas. A
aceleração dessa descontinuidade melódica, cristalizada em temas
reiterativos, privilegia o ritmo e sua sintonia natural com o corpo: de um
lado, as pulsações orgânicas de fundo (batimento cardíaco,
inspiração/expiração) refletem de antemão a periodicidade, de outro a
gestualidade física reproduz visualmente os pontos demarcatórios
sugeridos pelos acentos auditivos.

Essa “concentração de tensividade na pulsação, decorrente da


reiteração dos temas, tende a um encontro com o gênero explícito”.
Neste caso, o chamamé, que se toca, se dança e se canta.

Identidade musical e vocal. O canto do chamamé

Como dissemos anteriormente, entendemos que o cantar é


oralidade, gestualidade oral e interpretativa, capaz de aproximar a
canção, o cantor e o cantar, da cultura e do cotidiano do intérprete

120
e do ouvinte. O cantor popular, muitas vezes, aprende o ofício
ouvindo e imitando outros cantores e, baseando-se nestas
influências musicais, busca definir uma identidade vocal através de
sua própria interpretação da canção. E é esta interpretação, aliada
à sua habilidade técnica, que soma ao processo de construção de
uma identidade musical específica.
A continuação, procuraremos descrever com maior
especificidade alguns dos elementos que, em conjunto com a
gestualidade oral própria da composição-canção, integram o
comportamento vocal no canto do chamamé, levando em conta
aspectos como qualidade vocal, ajustes fisiológicos e recursos
estilísticos e interpretativos utilizados nesse canto, que implicam,
necessariamente, uma escuta e análise das posições laríngea,
palatal, velar, ressonâncias, articulações (pensando na língua, na
abertura do maxilar, nos lábios...) dicção e fonética, nasalidade, etc.
Para isso, utilizaremos dados colhidos em um desdobramento do
projeto de pesquisa “Entre tangos, sambas e guarânias: um estudo
do comportamento vocal na canção urbana latino-americana”7,
cujos principais objetivos foram sistematizar procedimentos
técnicos e estilísticos utilizados no canto do chamamé e esboçar um
perfil do comportamento vocal deste gênero a partir dos resultados
das análises de um conjunto expressivo de gravações.
Nesse contexto foram analisados 9 (nove) chamamés-canção,
gravados entre 1946 e 1980. Como método, procedeu-se à
comparação entre duas interpretações de cada canção, uma mais
antiga, outra mais recente. Os parâmetros utilizados para as
análises musicais e de comportamento vocal de cada uma das
interpretações foram baseados naqueles utilizados por Piccolo

7Projeto de pesquisa desenvolvido na UNILA desde 2015, sob a coordenação da


Profa. Analía Chernavsky. Adrielly Oissa foi bolsista da iniciação científica do
projeto durante o segundo semestre de 2018 e primeiro semestre de 2019, com o
plano de trabalho "Estudo do comportamento vocal no canto do chamamé".

121
(2006) e Machado (2012) em suas propostas de análise do canto
popular brasileiro8.
A sistematização dos procedimentos técnicos, estilísticos e
recursos vocais utilizados foi feita através da audição e análise deste
material. Elaboraram-se três tabelas contendo os resultados das
escutas para posterior análise dos resultados. A seguir, apresentamos
uma síntese do conteúdo das tabelas de análise utilizadas:
●Tabela 1 - DADOS DE IDENTIFICAÇÃO: Título /
Compositor / Letrista / Intérprete / Álbum / Série/ Faixa /
Gravadora / Ano / Repositório digital / Arranjador.
●Tabela 2 - ELEMENTOS PARA ANÁLISE MUSICAL:
Tonalidade / Compasso / Andamento / Forma / Tessitura da
melodia / Instrumentação / Dinâmica / Língua.
●Tabela 3 - ELEMENTOS PARA ANÁLISE DA
PERFORMANCE VOCAL - ELEMENTOS DE APRECIAÇÃO
VOCAL: Ataque vocal / Articulação da melodia / Articulação do
texto / Brilho / Projeção / Ressonância.
POSIÇÃO FISIOLÓGICA DO CANTO: Posição da laringe /
Posição dos lábios / Posição da língua / Posição da mandíbula /
Registros / Sub-registros.
QUALIDADE VOCAL – EFEITOS INTERPRETATIVOS: Voz
nasal / Voz rouca / Voz tensa / Voz suja / Voz com ar / Voz falada.
QUALIDADE VOCAL – RECURSOS INTERPRETATIVOS:
Portamento / Vibrato / Melisma / Trêmulo.
Dos resultados observados destacamos pelo menos três
aspectos do comportamento vocal associados, quase que
obrigatoriamente, ao canto do chamamé. Definem-se na ação da
fala no canto, no âmbito da tessitura e do registro e nos recursos
utilizados para garantir a dramaticidade do canto.

8Consideramos que, apesar de trabalharem com o canto popular brasileiro, as


propostas de Piccolo e Machado, assim como as de Tatit, admitem a sua utilização
com cantares populares de outras origens, línguas e misturas, pois aplicam
conceitos de fisiologia da voz e sugerem amplas gamas de gestos interpretativos
utilizados no canto.

122
A fala no canto

Da escuta das gravações, o primeiro aspecto que chamou a


nossa atenção é que no canto do chamamé os intérpretes utilizam-
se de recursos vocais que aproximam a voz cantada da voz falada.
Piccolo (2005, p. 412) relata um dos recursos responsáveis por essa
sensação de aproximação, ao descrever que “a predominância do
registro de peito poderia explicar a sensação de proximidade com
a voz falada”. Nesse sentido, também foi possível perceber que a
maioria dos intérpretes optou por uma articulação precisa e
demarcada do texto.
A fala no canto pode ser, ao mesmo tempo, a fala
propriamente dita, intencional e com sua articulação específica, que
difere da articulação utilizada no ato de cantar; ou ainda, pode se
referir à voz que fala dentro da voz que canta. Segundo Tatit, “sem
a voz que fala por trás da voz que canta, não há atração nem
consumo”, isso porque “o público quer saber quem é o dono da
voz” (TATIT, 2012, p. 14). Ainda segundo Tatit, “da voz que fala
emana o gesto oral mais corriqueiro, mais próximo da imperfeição
humana” e “dessa singular convivência entre o corpo vivo e o
corpo imortal brotam o efeito de encanto e o sentido de eficácia da
canção popular” (TATIT, 2012, p. 16). Nesse sentido, a fala no canto,
ou seja, o lastro entoativo da melodia da fala presente na melodia
do canto é o que proporciona em grande parte as sensações de
identificação, pertencimento e representatividade, que atuam na
elaboração da identidade do grupo social que dança, toca, canta ou
escuta uma determinada música.

Tessitura e registro

Com relação à posição fisiológica do canto, é importante ressaltar


que nenhuma das gravações utilizadas se trata de registro
audiovisual. Por esse motivo torna-se mais difícil afirmar com
precisão detalhes da posição fisiológica utilizada. Se tomarmos em
consideração apenas a análise auditiva, podemos supor que, em todas

123
as gravações das canções, os intérpretes encontravam-se com a laringe
em posição neutra ou pouco elevada, o dorso da língua elevado ou
pouco elevado, lábios e mandíbula com abertura média e/ou alta.
Também foi observado que os intérpretes cantaram em registro modal
com sub-registro de peito. As canções do chamamé dificilmente
ultrapassam uma oitava de extensão, o que também confere ao canto
a proximidade com a fala, desta vez em relação ao timbre.

Dramaticidade: tensão e vibrato

A escuta traz outro resultado que também diz respeito ao


comportamento vocal, especificamente interpretativo do
chamamé. Grande parte dos intérpretes apresentaram tensão na
voz, um recurso que, possivelmente, fora usado para dar ênfase nas
frases mais dramáticas da canção. Segundo Machado (2012: 46), “a
condução da voz em sub-registro de peito a regiões agudas, confere
uma percepção de tensionamento físico que muitas vezes reforça,
na própria percepção do ouvinte, o componente dramático da
interpretação”. O uso da voz em sub-registro de peito foi percebido
em todas as gravações dos intérpretes de chamamé analisados,
incluindo as três interpretações de Ramona Galarza, conforme
podemos ver na tabela 3 das imagens A, B e C, referente ao âmbito
da performance vocal.
Outros dois recursos muito utilizados por esses intérpretes
foram o vibrato e o portamento. O primeiro geralmente nas
terminações das frases e o segundo, em sua maioria, no seu início.
Também foi possível perceber que, em relação à projeção e à
ressonância, 12 (doze) – dentre eles Ramona Galarza, conforme
destaca nas imagens – apresentaram projeção e ressonância de
forma equilibrada, ou seja, distribuída entre laríngea, oral e nasal,
e 6 (seis) laringo-faríngea, onde há predomínio do foco na região
do pescoço. Além disso, todos apresentaram uma voz com bastante
brilho. Recursos identificados com uma expressão oral expansiva e
bastante grandiloquente.

124
Imagem A

125
Imagem B

As letras de chamamés geralmente se referem à beleza, ao


baile, à paisagem, à vida no campo, etc. Contam histórias de beleza
e de amor, seja o amor fraterno, o amor romântico ou mesmo o
amor por suas origens, sua terra e sua gente. Tal temática traz em
si uma carga dramática que o intérprete busca conseguir transmitir
ao cantar. Grande parte dos resultados do estudo realizado nos
mostram que no canto do chamamé há uma necessidade de
aproximação entre o ouvinte e a narrativa, de modo que o ouvinte
também deve se sentir como protagonista da trama cantada. É
nesse contexto e também com esse sentido que os cantores lançam
mão de recursos vocais que trazem a sensação da fala no canto e de
elementos capazes de transmitir dramaticidade, como tensão e
vibrato, e cantam em registro modal, com voz de peito
predominante.

126
Imagem C

O recente trabalho de Lezcano e Zubieta (2017) destaca a


importância da indústria cultural na propagação e na
transformação do chamamé em fenômeno comercial entre as
décadas de 1930 e 1960. A exploração de elementos identitários é
prática naturalizada pela indústria e pelo mercado musical.
Entendendo o canto como uma gestualidade oral, elemento
privilegiado no processo de construção de identidades musicais,

127
realizamos uma análise a partir da escuta. Nosso foco foi o canto e
os modos de cantar do chamamé, gênero musical representativo do
nordeste da Argentina. Esta análise preliminar revelou alguns
aspectos do comportamento vocal característico associado a esse
canto, notadamente a presença da fala no canto, aspectos
vinculados a registro e ajustes de ressonância, e recursos de
dramaticidade, como a tensão e o uso de vibrato. Esses aspectos do
canto do chamamé, preferido em vozes como a de Ramona Galarza,
nosso exemplo, são compatíveis, por um lado, com um caráter
declamatório e declaratório do canto e, por outro, com uma estética
vocal grandiloquente. Ao lado do acordeão, do zapateo e da
umidade dos rios, ajudam a compor a identidade musical híbrida,
misturada, do nordeste argentino.

Referências

ADORNI, A. “¿Un hada bienhechora en el baile de sirvientas?


Ramona Galarza y sus discos de música litoraleña argentina en los
sesenta”. Contrapulso. Revista latinoamericana de estudios en
música popular. 1/1 (2019) ISSN-2452-5545.
BOETTNER, J. M. Música y músicos del Paraguay. Asunción:
Edición de Autores Paraguayos Asociados, s/d.
CARDOSO, J. Ritmos y formas musicales de Argentina, Paraguay
y Uruguay. Posadas: EDUNaM, 2006.
CRAGNOLINI, A. “Representaciones sobre el origen del
‘chamamé’ entre migrantes correntinos residentes en Buenos Aires:
imaginario, música e identidad”. Revista de Música
Latinoamericana, vol. 20, n. 2, 234-252. Disponible en: http://www.
jstor.org/stable/780023.
FREITAS, M. H. S. “Oralidade e Cultura”. In: I Congresso
Memórias e Identidade Cultural Paulista: "Do Material ao
Imaterial". São Paulo: Instituto de Artes, UNESP, 2010.

128
GONZÁLEZ, J. P. Pensar la música desde América Latina.
Problemas e interrogantes. Santiago, Chile: Ediciones Universidad
Alberto Hurtado, 2013.
HIGA, E. R. Polca paraguaia, guarânia e chamamé: estudos sobre
três gêneros musicais em Campo Grande-MS. Campo Grande, MS:
Editora UFMS, 2010.
MACHADO, R. “Análise do comportamento vocal em três
gravações de ‘Na batucada da vida’ – uma abordagem
desenvolvida a partir da semiótica da canção”. Revista Brasileira
de Estudos da Canção. Natal, n.4, jul-dez 2013. Disponível em:
www.rbec.ect.ufrn.br. Acesso em: 5 de fev. de 2017.
_______. Da intenção ao gesto interpretativo: análise semiótica do
canto popular brasileiro. Tese de Doutorado apresentada à
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo. São Paulo, 2012.
MADRID, A. L. “Transculturación, performatividad e identidad en
la Sinfonía N.o 1 de Julián Carrillo”. In: Resonancias vol. 7, n°12,
mayo 2003, pp. 61-86.
MARCON, F. “Los viajes del río: migração, festa e alteridade entre
chamameceiros e chamameceiras das províncias de Buenos Aires,
Corrientes e Entre Ríos, Argentina. Tese submetida ao Programa de
Pós-Graduação em Antropologia Social pela Universidade Federal
de Santa Catarina. Florianópolis, 2014.
PICCOLO, A. N. O canto popular brasileiro: uma análise acústica e
interpretativa. Dissertação de Mestrado em Música. Universidade
Federal do Rio de Janeiro, 2006.
TATIT, L. “Gabrielizar a vida”. In: Três canções de Tom Jobim. São
Paulo: CosacNaify, s.d.
_______. O cancionista: composições de canções no Brasil. 2.a ed. São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2002. https://web.
archive.org/web/20090401033302/http://www.corrienteschamame.
com/vermusicos.asp?id_musico=3&ids=2. Acesso em: 23.10.2020

129
130
Cuidar cantando.
Sobre una ética del cuidado con registro cimarrón en
San Basilio de Palenque1

Lucía Castillo Rincón2


Angela Maria de Souza3

Resumen: En este artículo abordaremos la experiencia de las cantaoras de


bullerengue y lumbalú que, en territorios como San Basilio de Palenque,
ubicado en la región del Caribe colombiano, ejercen un liderazgo
espiritual a partir del cual es posible evidenciar, no solo las huellas de
africanía presentes en el territorio, sino sobre todo el registro de aquellos
procesos de cimarronaje femenino que se encuentran vinculados tanto a
las formas de agencia y politización de la vida cotidiana por parte de las
mujeres, como a las estrategias asociadas a una ética del cuidado, con
vocación comunitaria ejercida a partir de cantos y prácticas musicales,
tendientes a propender por la colectivización del dolor en eventos tales
como la enfermedad y la muerte; además de vivificar los circuitos de
espiritualidad que definen tanto el anclaje ancestral de la comunidad,
como las formas de organización social gestadas dentro del territorio.
Palabras clave: Cimarronaje Femenino. Liderazgo Espiritual. Prácticas Musicales.
Ética del cuidado.

1 Este artículo deriva del proceso investigativo adelantado durante los años 2018-
2020, titulado “Ellas hicieron de Palenque una Fiesta. Notas y paisajes de un
Feminismo Cimarrón.” Orientado por la docente Angela María de Souza, en el
marco de la Maestría Interdisciplinar en Estudios Latinoamericanos
2 Trabajadora Social colombiana. Magíster en Estudios Latinoamericanos por la

Universidad Federal de Integración Latinoamericana (Brasil).


3 Universidad Federal de Integración Latinoamericana. Docente do Curso de

Antropologia e do PPG - IELA Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em


Estudos Latino-Amerianos. Coordenadora do NEALA - Núcleo de Estudos
Afrolatino Americanos.

131
Una introducción en lugar

San Basilio de Palenque es uno de los tantos territorios que, en


Colombia, componen la geografía negra afro-diaspórica,
desplegada por los litorales y riberas que van desde el Pacífico,
extendiendo su presencia por el Caribe alto y sabanero, y cuyo eco
ha llegado hasta las grandes ciudades, con ocasión, entre otras
cosas, de las dinámicas asociadas al conflicto armado y el
desplazamiento forzado que en el país ha significado el destierro
de aproximadamente 9.000.000 personas afros, indígenas y
campesinos en su mayoría.
El territorio ancestral de San Basilio de Palenque, por su parte,
se encuentra ubicado en el departamento de Bolívar, en uno de los
valles que limitan con la subregión montañosa de Montes de María.
Cuenta con una población estimada de 3.500 personas, cifra que
varía regularmente gracias a los constantes flujos intermunicipales
e interdepartamentales, liderados, sobre todo, por las mujeres del
pueblo, quienes desde hace aproximadamente veinte años han
ideado estrategias laborales vinculadas a la venta y
comercialización de frutas y dulces tradicionales en diferentes
ciudades, llegando incluso a tener presencia y reconocimiento en el
país vecino de Venezuela. Este movimiento entre lugares puede
representar la ausencia de las mujeres dentro del pueblo por un par
de horas, un par de días, o extenderse por meses, esto, de acuerdo
a las necesidades económicas de cada familia, y la posibilidad de
gestionar de manera oportuna el regreso a casa. Vale destacar que
este no es el oficio de todas las mujeres del pueblo, y que son las
ciudades de Cartagena y Barranquilla, en donde se halla la mayor
cantidad de mujeres que, con sus porcelanitas o puncheras sobre la
cabeza, entonan a la orilla del mar o por las calles del Centro
Histórico de Cartagena, un musical y altisonante pregón:
“alegríaaas, cocaaadas, caballitos.”4

4Ver vídeo: Las alegrías de las palenqueras: https://www.youtube.com/watch?


v=bG8xAYMuHu8.

132
El anterior, es solo un registro de las múltiples agencias y
estrategias que las mujeres de San Basilio de Palenque lideran en
favor del sostenimiento familiar y comunitario por extensión, y es
además, es solo un registro de la manera en que han convertido sus
voces en instrumentos para la subsistencia y permanencia de
legados y costumbres asociadas a una historia de resistencia
cimarrona y musical.
He descrito, en primer lugar y de manera sucinta, la
experiencia de las vendedoras de frutas y dulces tradicionales de
San Basilio de Palenque, pues es posiblemente ésa la representación
más invocada y convocada que existe sobre las mujeres
palenqueras, en el territorio nacional. Sin embargo, mi interés es
situar y trasladar esta representación hasta el lugar y los lugares que
las mujeres han ideado y producido históricamente dentro de la
comunidad que habitan y construyen aún en medio de sus
constantes idas, y sus siempre certeros regresos. Dentro de la
comunidad, las mujeres que son vendedoras de dulces son además
cocineras, rezanderas, médicas tradicionales y cantaoras de
bullerengue y lumbalú. Sobre este último oficio se ocupa este
trabajo, con la intención de situar y profundizar acerca de la
experiencia particular de quienes ejercen un liderazgo espiritual
por medio del canto y las prácticas musicales desarrolladas con
ocasión del rito fúnebre del lumbalú; correspondiente a una de las
más valiosas e insignes tradiciones del saber-hacer palenquero que,
dentro de la comunidad, permiten evocar la existencia y
permanencia de una serie de códices y expresiones asociadas a la
historia de enraizamiento y resistencia cultural ejercida por los
hijos y las hijas de África en Colombia.
En estos términos planteo, además, la posibilidad de acudir a
esta experiencia como un referente posible para la construcción de
marcos de pensamiento asociados a una ética del cuidado con
perspectiva feminista, con la gestión y politización de la vida
cotidiana en manos de las mujeres, y la producción de
conocimientos en los albores de la experiencia comunitaria y su
respectivo anclaje ancestral.

133
Todo lo planteado, y la exposición a seguir, corresponde a un
ejercicio investigativo adelantado en el marco de la Maestría en
Estudios Latinoamericanos por la Universidad Federal de
Integración Latinoamericana. Durante el año 2019, fue diseñado y
gestado el trabajo en campo en el territorio de San Basilio de
Palenque; proceso que dio lugar a una labor etnográfica sustentada
en una serie de herramientas metodológicas coherentes con el
interés dialógico y relacional con el cual fue formulada la
propuesta, y con una perspectiva feminista, antirracista y
decolonial que permitió el establecimiento de relaciones co-
laborativas y comprometidas, en un proceso pedagógico continuo
de enseñanza-aprendizaje, en donde el diálogo, el intercambio de
experiencias y la reflexión constante sobre la acción investigativa y
la vida cotidiana, constituyeron las fuentes primarias para la
recolección y posterior análisis colectivo de la información.
En este sentido, el artículo que compartiremos, se presenta
como una de las múltiples conclusiones –aún en construcción- de un
trabajo investigativo que tuvo como objetivo el reconocimiento y la
comprensión de los diversos y complejos lugares que, en el
desarrollo de la vida comunal\comunitaria y cotidiana, gestan y
entretejen las mujeres negras de San Basilio de Palenque.

El lumbalú de Graciela: La parrandera de la muerte5

Para nosotros la muerte es parte de la vida, no es como muchas veces dicen que aquí
lloramos el nacimiento y le cantamos a la muerte, aquí le cantamos a la vida y a la
muerte también, es la forma que tenemos y que nos enseñaron para expresar nuestro
dolor por la partida de un ser querido, si en épocas pasadas llorábamos el nacimiento
es porque era un nacimiento en esclavitud, nosotras no queríamos traer criaturas a
ese mundo de esclavos y dueños, y si cantamos y si tocamos el tambor cuando alguien
fallece es porque sabemos que esa persona partió de este mundo para encontrarse con
nuestros ancestros, nosotras guiamos ese paso por medio del ritual, ese tránsito que
es un re-encuentro, un regreso al África, y así mismo podemos sacarnos todo ese
dolor que deja su partida de este mundo (Entrevista personal con Yeraldín
Cáceres, 2019).

5 Graciela Salgado: ver ilustración N° 2

134
Referirnos a la muerte en San Basilio de Palenque nos permite,
de alguna manera, ampliar nuestros paisajes de representación
acerca de lo posible, y aproximarnos a un lugar que, construido a
partir de las memorias y reconstruido gracias a la necesidad de
articular el cuerpo y el recuerdo con el horizonte Africano, nos da
cuenta de una elaboración ética, epistémica, ritual, estética y
comunitaria entretejida en el preludio de la resistencia y la magia
de la fuerza creadora.

La muerte no es un estado definitivo sino una enseñanza sobre la brevedad


de la vida; es un evento dinámico que anuncia una nueva inmortalidad. Los
ancestros adquieren la sabiduría de quien ha traspasado el umbral de lo
incógnito y ha descifrado el mensaje de armonía divino. En la reminiscencia
del fallecido, evocan a África y sobre todo a Angola, como lugares de
procedencia de muchos de los primeros cimarrones fundadores del
Palenque. Al velorio va toda la comunidad que es invitada a través del
repique del tambor. El canto-lloro inicia al responsorio y durante este se
alternan las solistas y el coro. Las palmas de las manos y los toques del
tambor se ejecutan con determinados ritmos. Hay recitativos, cantos y
golpes rítmicos y danzas. Durante el ritual las mujeres danzan alrededor del
cuerpo y hacen invocaciones con los brazos, algunas se llevan las manos a la
cabeza mientras actúan y cantan (JARAMILLO, 2011, pág. 7).

Esta descripción corresponde al lumbalú, lloro o baile muerto,


“nombres diferentes del mismo ceremonial que constituye un rito
de muerte de indudable ascendencia africana” (ZAPATA
OLIVELLA, 1962, pág. 4), en el que cantarle a la muerte tiene como
propósito evocar el reencuentro con la tierra arrebatada, con los
ancestros y con quienes en la disputa por la libertad entregaron sus
vidas. Este ritual nos sugiere una profunda vinculación con la
historia, dada la preponderancia otorgada a los sucesos del pasado
como parte substancial para la comprensión y construcción de la
experiencia presente. Esta vinculación implica, a su vez, un habitar
la historia por medio de corporalidades y sonoridades que
entrelazan el pasado y el presente en una suerte de invocación a los
ancestros, afirmando de esta manera la trascendencia del verbo y
la palabra en tanto fuentes inagotables de energía para el

135
reencuentro y la prolongación de la armonía entre temporalidades
y territorialidades. La convergencia de la vida y de la muerte en el
lumbalú ha reunido así vivos y muertos, almas y espíritus en un
espacio donde las mujeres ocupan el segmento sagrado medular
del rito mortuorio, son dueñas del muerto y de la palabra en los
cantos que van hasta el otro mundo (FRIEDEMANN,1994, citado
en NEGRETE, 2012, p. 3).

Ilustración Mujeres acompañando un velorio.


San Basilio de Palenque, 2019.

Fuente: Elaboración propia.

El lumbalú, como hemos mencionado, tiene que ver con una


ceremonia fúnebre propia de los velorios en Palenque, sustentada en
una serie de códigos que permiten evidenciar, por un lado, la
permanencia en el tiempo de prácticas significantes propias de la
ancestralidad africana, y por otro, la reestructuración a la que fueron
sometidos muchos de los encuentros ceremoniales sostenidos por los
esclavizados y esclavizadas en territorio americano dadas las
condiciones y los encuentros entre etnias que tuvieron lugar en el
marco de los procesos esclavistas. De esta forma, el lumbalú
representa, tanto el arraigo y la continuidad, como la creatividad y las
re-existencias desplegadas por los descendientes de África en
América; sus raíces se expanden desde el paisaje africano hasta el
suelo americano recogiendo legados musicales que relatan la

136
profundidad de la vida pasada, en donde los tambores repican al
ritmo de la eternidad, y la osadía con la que fue alcanzada la libertad,
en donde los cánticos emanan sollozos y venturas.
En esta práctica ritual, las mujeres han asumido un liderazgo
espiritual de profunda vinculación ancestral por medio de una
serie de prácticas/insurgencias y actitudes ancladas a las
representaciones sobre el cuidado y la preservación de los circuitos
de espiritualidad que permean las relaciones comunitarias y
armonizan el ejercicio de la vida cotidiana.

Aquí cuando una persona muere no son todos los que le cantan, son las mujeres en
el ritual del lumbalú. Por ejemplo, cuando se sabe que a la persona en vida le gustó
mucho el tambor, el sonido del tambor y su música, entonces son nueve noches de
velorio, son nueve noches de ritual de lumbalú. Y esto dice así “Chi ma nkongo,chi
ma (n) Luango; chi ma ri Luango de Angola, Huan gungú me ñamo yo, Huan
gungú, má a ré ñamá, kuando so to kaí mam é.”6 Eso se lo cantamos nosotras al ser
querido para que se consiga con los del más allá en África, porque nosotros venimos
es de África, entonces esa alma se va, ese canto lo ayuda a llegar, esa es nuestra
creencia, que se va a encontrar con los otros que se hayan muerto antes (Entrevista
personal con Teresa Reyes, 2019). 7

Los tamboleros iniciados en el sonido sagrado de la percusión


en las lejanas naciones africanas eran conocidos en todo ese
continente con el nombre de Olubatá o también Omoaña, y eran
llamados en toda la región bantú y la región del África
Subsahariana, como “los hijos del tambor” (Prada, 2003). Teresa
Reyes es vendedora de frutas y dulces tradicionales, y es además,
una de las hijas de Graciela Salgado: la hija del tambor en Palenque.
Graciela fue heredera de la dinastía Batata8, la única mujer a quien

6 Traducción: “De los Congos (soy); de los Loangos (soy): De los Loangos de Angola
(soy); Juan Gungú me llamo yo, Juan Gungú me ha (n) de llamar; cuando se le cae el
sol a su mamá (=cuando se le muere el hijo a su mamá)” (Schewegler, 1996, p. 525).
7 Teresa Reyes, ver ilustración N° 3

8 “Los Batata son un linaje que desciende de una tribu de príncipes africanos que

se asentó en Palenque (…) En 1980, los hermanos Batata –Paulino y Graciela


Salgado Valdéz– formaron el legendario grupo Las Alegres Ambulancias de San
Basilio de Palenque, con el que dieron a conocer al mundo los primeros cantos y
ritmos tradicionales palenqueros como el Bullerengue, la Chalupa, el Fandango y

137
le fue concedido el don de interpretar el tambor pechiche9, la
primera tambolera reconocida por el pueblo, la guardiana de la
muerte y la reina del lumbalú. De acuerdo a la tradición, en el ritual
del lumbalú son los hombres los encargados del repique del tambor
y las mujeres las encargadas de emitir el canto, los lekos y los llantos
musicales, sin embargo, Graciela se consagró como la parrandera de
la muerte gracias a la entonación de sus lamentos y los repiques que
brotaban de sus manos.10

Mi mamá, sus compañeras y nosotras cuando la acompañábamos, teníamos su


presencia en los velorios de toda persona mayor de edad que le haiga gustado el
tambor, mi mamá decía "oye, vamo’ pa’ donde Nicolasa, pa’ ponerle uno o dos son"
y ahí ella invitaba a “Lámpara” que era su tambolero que a veces acompañaba a mi
mamá. Ella le decía "oye, vamo’ pa´ donde Nicolasa pa´ ponele uno o dos son de
tambó" y ahí se iban y le ponían su música y ahí la gente llegaba, la gente rodeaba a
esas mujeres cuando estaban cantando porque eso sí es lastimoso. Mi mamá no
quería faltar a ningún velorio, y los velorios no eran igual sin ella porque era especial
que una mujer cantara sus lumbalú y tocara el tambó, a veces el pechiche, a veces el
alegre o a veces solo el canto pero siempre con su música. Ella decía que era esa su
forma de acompañar a los dolientes y que eso para la comunidad era importante
porque si ella cantaba era seguro que esa persona iba a tener buena ida, y mi mamá

el Lumbalú (cantos de muerto). Entre Paulino – hombre excéntrico, bebedor y


brujo de los cueros–, sus hermana Graciela y Dolores Salinas, Rosalina Cañate
entre otras, se consagraron como tomadores de ron y cantadores de los velorios
de Palenque, ellos eran el Cabildo Lumbalú: un grupo de sacerdotisas del ritmo
de la muerte. El nombre del grupo deviene del sonido bulloso que hacen las
ambulancias, que por lo general andan con personas moribundas, pero estas
ambulancias eran alegres, hacían una bulla alegre” (Roa, 2016, pág. 2).
9 “Pechiche en la Costa Caribe colombiana quiere decir mimado o consentido […].

El tambor pechiche es un tótem de metro y medio hecho de madera y cuero de


chivo, nació por la necesidad de los palenqueros para comunicarse con otros
pueblo. Para tocarlo había que acostarlo suavemente sobre la tierra y sentarse
sobre él; acomodar su boca en dirección al pueblo hacia donde se quería mandar
el mensaje. Tres golpes eran suficientes para enviar los mensajes a los pueblos
cercanos como San Pablo, San Cayetano, Mahates, Matuya y María Labaja. Con el
sonido se sabía que en Palenque había novedad o que había entierro. Ese tambor
era sagrado, no se tocaba cualquier día” (Roa, 2016, p. 3).
10 Consultar: Hijos de Benkos part 4 -English Version. Disponible en: https://

www.youtube.com/watch?v=prIo1tL0DTI.

138
quería que con su música las personas se sintieran acompañadas y apoyadas en su
desgracia (Entrevista personal con Teresa Reyes, 2019).11

Ilustración Graciela Salgado “La Parrandera de la Muerte” cantando e


interpretando el tambor junto a la comunidad. Fotografía tomada del archivo
comunitario: Palenge Tiela Suto Kusa Ngande Pá Tó

Dentro de las prácticas/insurgencias que han permitido cultivar


el liderazgo espiritual ejercido, en su momento, por Graciela y sus
compañeras de cánticos y adioses: Dolores Salinas, Emperatriz

Consultar: Chimankongo - Lumbalú de Graciela Salgado en Palenque.


11

Disponible en: https://www.youtube.com/watch?v=ZS57wkyqbM0.

139
Salinas y Francisca Tejedor12, y heredado a su vez a las mujeres del
pueblo encargadas de acompañar a los muertos en su camino de
retorno, se destacan profusamente las prácticas musicales, las
cuales armonizan la existencia de los palenqueros y las palenqueras
incluso antes del nacimiento y hasta después de su muerte. Antes
del nacimiento, son las madres las encargadas de generar la
conexión vital entre la criatura y el paisaje musical que acompañará
su vida; y después de la muerte, son las cantaoras y sabedoras de
la comunidad, quienes entonan versos y lanzan lekos con el
propósito de custodiar y proteger el camino de regreso a casa.
Con respecto a los lekos, tenemos que, estos se presentan como
la primera y más profunda expresión de dolor ante la partida del
ser querido, y así mismo como expresión que, junto al repique del
tambor, anuncia a la comunidad que uno de sus miembros ha
dejado el mundo de los vivos. Según Moraima Simarra, “los lekos
demuestran nuestro arraigo musical, son entonaciones
espontáneas que uno no prepara, simplemente salen de nuestras
entrañas y demuestran nuestro sentir” (2019)13. Los lekos
acompañan tanto el anuncio a la comunidad, como la ceremonia
fúnebre; son emitidos por las cantaoras y las mujeres más cercanas
al fallecido y se expresan en sintonía rítmica con los versos del
lumbalú. Tanto la entonación de los lekos como la interpretación de
los versos del lumbalú derivan de la tradición de bailes cantaos
particularmente vinculados al bullerengue. En términos musicales
el leko corresponde a un canto onomatopéyico (Hernández D., 2006)

12 Durante muchos años y desde su fundación en 1905, “Las Alegres


Ambulancias” se caracterizaron por ser una agrupación musical compuesta
principalmente por mujeres, constituyendo así, un proceso inédito en San Basilio
de Palenque, pues aunque la música en tanto práctica y expresión vinculada al
ejercicio de la vida cotidiana de hombres y mujeres dentro de la comunidad, hace
parte inherente tanto de las actividades diarias como de las formas de
organización social, la conformación de agrupaciones representativas fue hasta
ese momento un asunto destinado a los hombres. Esto debido a que este tipo de
actividades han estado asociadas a otras prácticas tales como beber ron, ausentarse
del hogar y permanecer durante muchas horas por las calles del pueblo.
13 Moraima Simarra, conversación personal.

140
en el que se procura pronunciar de forma altisonante el nombre del
fallecido. De acuerdo a Nina S. De Friedemann, “estos cantos de
lágrimas, a su vez rememoran aquellos que acompañados por
toques de tambor se oían cuando morían los esclavos recién
desembarcados de los navíos negreros en Cartagena de Indias en
los primeros cabildos de negros del siglo XVII ” (1990, p. 76).
En tal sentido, los lekos constituyen una práctica/insurgencia
musical por medio de la cual podemos señalar que justo de donde
yace la vida, yace también el lamento sanador: los cuerpos de las
mujeres, pues tal como lo hemos indicado, se afirman como lugares
de la memoria en los que, para el caso particular del rito de muerte,
se erige y se despliega la sabiduría musical por medio de la cual se
honra y se relata el dolor, la vida, la muerte, la vida después de la
muerte y la muerte en vida que para los y las hijas de África
significó la esclavización.
En cuanto a la interpretación y verseo de lumbalús, las mujeres
cantan y danzan ejecutando movimientos, en un ancestral enlace
entre la vida y la muerte, combinados con gestos de dolor, dada la
ausencia del ser querido (Ospina, 2019). Este enlace se vivifica
cuando las mujeres danzan masajeando sus senos y sus vientres en
una suerte de ovación a los procesos de gestación y emanación de
la vida humana. Así mismo, levantar los brazos con dirección al
cielo y llevar las manos al cuello y a la cabeza con desespero
expresa el dolor propio de la ausencia. Esta conjunción armónica
de movimientos da cuenta de una inseparable comprensión de la
existencia, en donde la vida y la muerte no se presentan como
experiencias antagónicas, sino como experiencias complementarias
de una sensación de mundo en donde las temporalidades se
complejizan más allá del principio y el fin, anunciando una
continuidad perpetua.
Los cantos, por su parte, se componen a partir de una base
rítmica y son complementados con improvisaciones en donde las
mujeres narran los momentos más importantes de la vida de la
persona fallecida, se rememoran sus gustos, sus hazañas y la razón
por la cual su partida significa una pérdida para la comunidad

141
(VARGAS, 2018). De igual manera, algunas interpretaciones pueden
contener palabras ininteligibles incluso para quien las emite, lo cual
corresponde, según María Teresa Ramírez (2011), a un proceso
lingüístico, probablemente innovador que se conecta directamente
con la africanización intencional del lenguaje ritual.

Los versos del lumbalú son como sortilegios que conectan al ser humano con
lo sagrado, pues se afianzan en lo inescrutable y crean un ambiente de
misterio trascendental por medio de la palabra que se convierte en un
vehículo de comunicación sagrado, siempre ligada a las memorias y
creencias ancestrales […] Los sonidos, las entonaciones y las palabras son
parte de esa huella de Africanía, y la evocación de sonidos ancestrales crean
vínculos entre el pasado y el presente y hacen visible el legado cultural
(JARAMILLO, 2011, p. 10).

Así mismo, Ana Gilma Ayala añade:

Cantar es hacer presencia de corazón y con sentimiento profundo despedir


al difunto de su comunidad. Cantar es una especie de mano cambiada: “hoy
te toca a ti, mañana a mí o a los míos”. Cantar, es estar en vela junto a los
deudos o dolientes para transmitirles energía y decirles que no están solos
(AYALA, 2011, citado en REYES, 2020, p. 82).

El propósito del canto en tanto práctica\insurgencia musical, es el


de acompañar el infortunio que experimentan los miembros de la
comunidad; corresponde al ejercicio de una práctica solidaria por
medio de la cual se reafirma la colectivización de las emociones en
tanto proceso relacional que involucra un profundo compromiso de
reciprocidad y co-responsabilidad; en este sentido, el canto convoca,
conmueve, reúne y conecta, el repique del tambor acompaña la
melodía y profundiza la invocación a los ancestros, y gracias a esta
armonía confluyen las presencias y se disipan las ausencias.

Sobre una ética del cuidado con registro cimarrón

Las representaciones sobre el cuidado que han sido


elaboradas, en el marco de la experiencia comunitaria, se
constituyen en gran medida como dinamizadoras de estas

142
prácticas/insurgencias musicales, por medio de las cuales se afirma
que cuidar es acompañar y, en estos términos, se acompaña
cantando y se canta acompañando. Así, el llanto musical armoniza
y vivifica tanto los procesos de cuidado y acompañamiento, como
los procesos de sanación mutua que, para el caso del territorio
colectivo de San Basilio de Palenque, corresponden a procesos
comunitarios de carácter ancestral, en donde sanar implica sanar
también las memorias por medio de la re-significación del derecho
a ser, y en donde dignificar el sentir y expresar el dolor permite
afirmar la condición de humanidad negada durante el periodo
esclavista. De ahí que, durante la celebración del lumbalú se
convoque por medio de cantos y tambores la presencia de quienes
ya partieron y se honre la existencia de quienes perecieron a causa
de la deshumanización a la que fueron sometidos los pueblos
negros, por cuenta del proyecto colonial. En tal sentido, las
prácticas/insurgencias musicales ejercidas por las mujeres de la
comunidad se despliegan con el propósito de cuidar, sanar y
acompañar, pues cantar implica la presencia y la confluencia de
corporalidades y sonoridades que, al mismo tiempo que
exteriorizan el dolor, generan conexiones sensitivas a partir de las
cuales se comparte la desdicha y se re-significa la posibilidad de ser
y de sentir en comunidad.
De manera correspondiente, las mujeres que han asumido el
liderazgo espiritual por medio de las prácticas/insurgencias musicales,
se presentan como protectoras de la comunidad y guardianas de la
muerte en actitud esencialmente cimarrona, pues el compromiso que
han adquirido con la comunidad se expande mucho más allá de los
límites temporales y las fronteras territoriales, preservando la común-
unión entre los ancestros: dueños del mundo del más allá y los
vivientes: dueños del mundo de los vivos, y entre el territorio
habitado que simboliza la victoria de la vida y la libertad, y el territorio
lejano, en el que yacen sus raíces.

Nadie falta, nadie puede faltar en el velorio, eso me lo enseñó mi mamá. Qué
nadie se sienta solo, qué todos se sientan acompañados en su dolor, el que pueda

143
tocar qué toque, y a la que le toque cantar qué cante, eso no se puede perder
porque eso fue lo que nos enseñaron, pa’ eso aprendimos a cantar y pa´ eso los
pelaos aprenden a tocar, pa’ que la comunidad llore y los dolientes se abracen,
por eso vivimos todos juntos, pa’ eso la música que nos enseñaron los mayores
(Entrevista personal con Teresa Reyes, 2019).

Este liderazgo se presenta, entonces, como una estrategia


vincular y vinculante, con dimensiones éticas y políticas que a su
vez permiten definirla como una práctica/insurgencia situada; estas
dimensiones son perceptibles, en la medida en que se reafirman
principios tales como la solidaridad, la co-responsabilidad y la
ayuda mutua, al mismo tiempo que controvierten los efectos del
dolor, ocasionado por el infortunio y la desdicha. Así mismo, este
liderazgo espiritual corresponde a una práctica/insurgencia de
carácter pedagógico, dada la confluencia: enseñanza-
palabra\cantada-aprendizaje, la cual se produce gracias al
encuentro, en el seno de la experiencia colectiva, en el marco de un
intercambio de voces y experiencias que re-afirman la existencia y
las posibilidades de ser, saber, sentir y resistir en comunidad.
En estos términos, reconocer la dimensión pedagógica del
canto y las prácticas/insurgencias, asociadas a la celebración del rito
fúnebre en Palenque, permite destacar el carácter epistémico y
trasgresor del encuentro entre mujeres, en donde la palabra, el leko,
y la entonación compartida logra articularse como herramienta
liberadora, sanadora y protectora, y como artefacto que permite
anidar los circuitos de espiritualidad que componen las formas de
organización social y comunitaria dentro del territorio. De esta
forma, la voz y la palabra compartida desde el dolor y su
tramitación respectiva, sugiere formas posibles de creación y
relacionamiento, es decir, politiza el encuentro a partir de la
instauración de lugares para la re-existencia: los lugares de la vida,
en donde la solidaridad y el cuidado mutuo se presentan como
principios vectores ante el surgimiento de alianzas protectoras
entre mujeres y de cara al conjunto de la comunidad.

144
Consideraciones finales

Ilustración: Teresa Reyes. Vendedora de dulces tradicionales, cantaora de


bullerengue y lumbalú, e hija de Graciela Salgado.

Fuente: Elaboración propia, San Basilio de Palenque, 2019.

Yo de mi mamá recuerdo su voz, esa voz que no me puedo olvidar jamás. Ella usó su
voz para sostenernos toda la vida, porque, por ejemplo, cuando no había pa’ cantar
aquí y nos tocaba que salir a Cartagena, yo salía con ella a vender lo que fuera, si los
dulces, si la frutas, nosotras las vendíamos por las calles de Cartagena, ahí ella usaba
su voz porque si no era así no nos compraban, ella me enseñó a rebuscar las formas
de salir adelante, una de esas era vendiendo y lanzando pregón por la calle. Pero
también aquí, lo más importante es cuando se requiere de su voz aquí en la
comunidad, cuando hay que cantar se canta pa’ ayudar a aliviar esos dolores de esas
familias, entonces como ella decía: uno o dos son pa’ el que lo quiera. Ahí estaba la
voz y sigue estando, cantando pa’ vender y tener con qué comer, y cantando aquí pa’
cuidar de esa alma, y también pa’ festejar, pa’ celebrar, siempre la voz estará presente
(Entrevista personal con Teresa Reyes, 2019).

La experiencia histórica y comunitaria que han gestado y


producido las mujeres de San Basilio de Palenque dentro del
territorio, se encuentra atravesada por el registro de una serie de
expresiones, oficios y saberes cultivados de generación en
generación, y cuyo origen data de aquellos procesos históricos de
sublevación y cimarronaje que, en el marco del periodo esclavista

145
permitieron allanar los caminos de la libertad, la soberanía, y la
salvaguardia del arsenal ético, político, estético, pedagógico y onto-
epistémico traído desde África hasta el territorio americano. En
estos términos, referirnos al lumbalú y a las prácticas asociadas a
este ceremonial, implica referirnos a una de las tantas estrategias
de vinculación comunitaria que idearon y recrearon los pueblos
negros asentados en los palenques, una vez alcanzada la libertad.
Implica, además, reconocer la preponderancia del lugar que las
mujeres ocuparon y continúan ocupando en la producción y
reproducción de este saber-hacer.
Tanto la permanencia en comunidad como la exteriorización y
colectivización del dolor, además del despliegue de expresiones
para manifestar y procurar el cuidado mutuo, constituyen la razón
de ser de este tipo de prácticas, y permiten evidenciar las
dimensiones políticas y pedagógicas de cada una de ellas. El canto,
por su parte, se presenta como un mecanismo para la evocación y
el establecimiento de relaciones continuas entre el pasado y el
presente, en una suerte de ritual memorístico que invita a la
articulación perpetúa entre la comunidad y sus memorias. De igual
manera, cantar para sí, para los vivos y para los muertos
representa, no solo un ejercicio de responsabilidad y co-
responsabilidad con la comunidad y la tramitación de sus dolores,
sino sobre todo un compromiso con la historia, con las huellas de
ancestralidad y con la herencia cimarrona.
Finalmente, es posible destacar que, el liderazgo espiritual
ejercido por las mujeres de San Basilio de Palenque durante el ritual
del lumbalú, y por medio de prácticas\insurgencias tales como el
canto y la entonación de lekos, se comporta como un referente ético-
político y estético-corporal frente a las representaciones sobre el
cuidado, y sobre una ética del cuidado con perspectiva feminista.
La agencia de las mujeres durante este ceremonial queda en
evidencia, al ser ellas las portadoras de la palabra y las tejedoras de
la memoria; la gestión que, pasa por un proceso de auto-percepción
y auto-reconocimiento sobre sus cuerpos y el potencial creativo y
creador que de él emana, y un proceso colectivo de vinculación

146
emocional, corresponde a una gestión para la compartimentación
del dolor, la prolongación de la vida en comunidad, y la puesta en
práctica de oficios y saberes tendientes a inscribirse en el extenso
camino del cimarronaje femenino.

Referencias

DE FRIEDEMANN, N. S. (1990). Lumbalú: Ritos de la muerte en


San Basilio de Palenque Colombia. América Negra, 65-92.
HERNÁNDEZ, D. (20 de Octubre de 2006). El Bullerengue:
aspectos históricos y actualidad. Recuperado el 01 de Junio de
2020, de María Mulata: http://bullerengue.blogspot.com/2006/
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147
148
Entre a América Latina e o Vasto Mundo:
uma crítica à colonização das formas de crer e
sentir desde o chão

Lívia Santos de Souza1


Anaxsuell Fernando da Silva2

Chegando no largo da igreja logo me maravilhei de


ver tanta gente junta, cumprindo suas promessas e
por aquilo avaliei quanto de dor e agonia há nesse
mundo de Deus, pra exigir tanta promessa.
Admirei-me de ver como o povo conseguia mudar a
dor em alegria, porque ali pra todo lado se cantava,
se tocava, se conversava e sorria, se vendia e se
comprava, se chorava de alegria, se cantava de
tristeza, se rezava, se gozava da festa da romaria.
(Maria Valéria Rezende, O Voo da Guará Vermelha)

Resumo: Neste capítulo discutimos como formas de crer e sentir que


contrariam a lógica de domínio colonial na América Latina estão
expressas na literatura. De maneira particular, selecionamos o romance
Vasto mundo, de Maria Valéria Rezende, publicado em 2001, como locus
de análise. Nossa intenção é promover diálogo entre Antropologia da
religião e a Crítica Literária e, nesta interface, viabilizar a leitura do objeto
artístico como ferramenta para compreensão da nossa realidade. A partir
deste esforço podemos observar que Vasto Mundo aborda questões
relativas à práticas religiosas de sujeitos subalternizados e periferizados
na região nordeste do Brasil evidenciando o papel comunitário
desempenhado por suas crenças e demonstrando a existência de formas
do crer que em grande medida rejeitam aspectos do catolicismo
institucionalizado. Ao descrever essa faceta não-hegemônica da
crença/devoção efetivamente vivida no Brasil, Rezende elabora um

1 Doutora em Letras Neolatinas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.


Professora do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Estudos Latino-
Americanos da Unila.
2 Doutor em Ciências Sociais, com concentração em Antropologia Social, pela Unicamp.

Professor da Universidade Federal da Integração Latino-americana (Unila).

149
delicado retrato que revela toda a beleza que assumem as formas do crer
e a inadequação destas ao projeto moderno de colonialidade, largamente
difundidas no sul global.

Introdução

Repensar a modernidade em sua faceta colonial tem sido um


esforço intelectual empreendido não apenas pela crítica literária, mas
também por vários pesquisadores e pesquisadoras pertencentes às
humanidades, sobretudo nas últimas décadas nos Estudos Latino-
Americanos. No contexto mais amplo desta reflexão crítica-
emancipadora estão os trabalhos do intelectual peruano Aníbal
Quijano (1928-2018). Ele foi o responsável pela formulação de uma
teoria fundacional (filosófica, epistemológica, ética e política) a
respeito das particularidades do pensamento social latino-americano.
A “colonialidade de poder”, expressão convertida a partir dos seus
trabalhos em um conceito-chave, refere-se a uma estrutura de poder
própria do domínio colonial na qual foram submetidos os povos
originários a partir de 1492, e que ainda perdura, mesmo após as
independências (cf. QUIJANO, 1992, p.12). Em termos gerais, a
colonialidade seria a outra face da modernidade.
Pensar o texto literário a partir dessas concepções implica,
portanto, entender que o fazer artístico, sua recepção e as reflexões
evocadas por ele são frequentemente permeadas pelas estruturas de
poder do domínio colonial. Uma vez cientes disso, é imperativo
estudar obras que subvertem a lógica colonial, adotando para isso
também uma perspectiva anticolonial de leitura. Antes de adentrar o
texto literário, a fim de compreender melhor as proposições que vão
matizar nossa leitura, voltemos ao debate em torno das premissas
epistemológicas centrais na apreciação crítica a qual propomos
desenvolver. Mas façamos isto tomando a modernidade não somente
como um período histórico, tal qual é feito usualmente. Na esteira do
pensamento de Quijano, propomos compreender a modernidade
como uma história do imperialismo.

150
No período que ficou conhecido como Renascimento, o centro
geopolítico do mundo mudara para Roma. Ali, sob o governo de
Constantino (288-337 d.C.), o cristianismo seria incorporado ao
Império Romano e se tornaria a religião oficial – acontecimento
fundamental para compreender a expansão da fé cristã no “velho” e
“novo”3 mundo. Esta época de ocidentalização do cristianismo
coincide com a expulsão dos judeus e dos mouros da região da
Península Ibérica e, ao deslocar-se do Mediterrâneo em direção ao
Atlântico teremos os primeiros relatos de conversão dos povos recém
descobertos, instantaneamente nomeados bárbaros e infiéis. Este
“auto relato da modernidade” (MIGNOLO, 2013), enreda-se a partir
das vantagens que a conversão ao cristianismo traria para o resto do
mundo. Configura-se uma nobre justificação da expansão imperial
dos Estados, monárquicos e seculares, europeus do Atlântico.
Contudo, não podemos perder de vista que o Cristianismo
como doutrina sistematizada foi resultado de negociações
posteriores a outros processos mais simples, cotidianos e plurais,
vividos em seu início embrionário no âmbito do contexto africano.
A ênfase ocidental da historiografia4 religiosa no cristianismo tem
sido justificada pela escassez de fontes de informações sobre o
chamado “cristianismo primitivo em outros espaços geográficos,
como o Egito, África, Meroé”, conforme aponta Arminda Lozano

3 As aspas utilizadas nestes termos são, antes de tudo, para apontar uma posição
político-epistêmica. As expressões mencionadas nomeiam regiões do mundo e
pessoas. Não se trata, portanto, de distinções ontológicas, como a historiografia
hegemônica nos apresenta. São classificações epistêmicas, e quem classifica
controla o conhecimento. Uma das marcas da diferença colonial é uma estratégia
fundamental, nos mais diferentes períodos da história, para depreciar e
subalternizar grupos populacionais.
4 Neste ponto, cabe relembrar a afirmação de Daniel Marguerat, para ele: “A

historiografia, pois, não é descritiva, mas reconstrutiva. Ela não alinha os fatos
nus, mas unicamente unifica fatos interpretados em função de uma lógica
estabelecida pelo historiador. A veracidade, pois, da história não depende da
realidade em si, do acontecimento relatado; ela depende da interpretação que ele
dá de uma realidade, sempre suscetível, em si, de uma pluralidade de opções
interpretativas” (MARGUERAT, 2003, p.18).

151
(LOZANO, 2002, p.49-74). Até 1869, Israel estava ligada ao Egito –
e por conseguinte conectado a toda África. Seria apenas quando o
Canal de Suez foi concluído que Israel se separaria da África. Até o
final do sec. XIX, Israel era considerado parte do nordeste africano.
O neocolonialismo impulsionou a repartição do continente
africano e asiático, e, ao fazê-lo, viabilizou o capitalismo industrial
ao mesmo tempo que criava condições necessárias para sua
manutenção. No continente americano, o processo se dava noutra
direção, ali tínhamos a derrogação do colonialismo histórico-
político e a conseguinte constituição de nações independentes.
Encadeamento semelhante se daria, tardiamente, na África e Ásia.
Nestes continentes, a descolonização só ganharia vigor em meados
do século XX e, ainda assim, sem força suficiente para efetivar a
completa emancipação político-econômica das nações periféricas.
A este respeito, o antropólogo venezuelano Fernando Coronil
(2000) argumenta que a acumulação colonial resultante destes
processos históricos fora um elemento indispensável à dinâmica
interna do desenvolvimento capitalismo da sociedade europeia, a
qual posteriormente se expandiria para outras regiões.
Posteriormente, a continuidade se expressaria por meio dos
projetos nacionais de modernização e desenvolvimento que teriam
lugar no pós-guerra.
Assim, com o advento do episódio chamado “descobrimento das
américas” o cristianismo – já incorporado à cultura da civilização
ocidental – reproduziu nos territórios colonizados a naturalização da
noção de superioridade dos colonizadores. Este empreendimento
filosófico-religioso foi central na consequente justificação da
dominação política, social, econômica e epistêmica dos povos ditos
civilizados sobre os bárbaros5. Mignolo (2005) argumenta que as
concepções teológicas cristãs sustentam um conhecimento universal

5Bartolomeu de Las Casas classificava, em Apologética História Sumária, classifica


como “bárbaros” todos aqueles que não possuem uma “religião verdadeira”, nem
abraçam a fé cristã e por este motivo seriam infiéis e pagãos (Las Casas, 1552 apud
MIGNOLO 2005).

152
eurocentrado que estende ao “novo mundo” uma taxionomia
preexistente do espaço, da natureza e da humanidade.
O fazer literário, ao longo do tempo, esteve majoritariamente
restrito aos grupos que detêm a hegemonia cultural. Isto, inclusive,
está refletido na reprodução das personagens nas obras. Negros e
pobres estão sub-representados, além da evidente disparidade de
gênero (Cf. Souza & Silva, 2020). Em seus primeiros escritos
Antônio Gramsci definiu a cultura contrastando o que seria uma
perspectiva burguesa das expectativas, necessidades e história dos
trabalhadores. Assim, o valor da cultura para as classes obreiras
evidencia-se na crítica à cultura burguesa e às formas de dominação
intelectual e política que tal cultura proporcionava aos que
detinham o poder. Por isso, em sua perspectiva, seria fundamental
afastar-se criticamente de um intelectualismo estéril expresso na
cultura enciclopédica a qual repercutiria de maneira destrutiva no
processo de organização política dos trabalhadores. Em suas
palavras: “é necessário perder o hábito e deixar de conceber a
cultura como saber enciclopédico” (1975, p. 22). Este saber-poder
que se perpetua em nossos modos de transmissão de saber, como
apontou Maldonado-Torres:

se mantém viva em manuais de aprendizagem, nos critérios para o bom


trabalho acadêmico, na cultura, no senso comum, na autoimagem dos povos,
nas aspirações dos sujeitos e em muitos outros aspectos de nossa experiência
moderna. Neste sentido, respiramos a colonialidade na modernidade
cotidianamente. (MALDONADO-TORRES, 2007, p. 131)

Dito de outro modo, seria imprescindível deixar de tratar


quaisquer manifestações da cultura como algo abstrato, distante, e
acentuar o seu vínculo com a vida concreta, social e política. Esta
proposição, em síntese, enleva a importância de um
desdobramento cultural que possibilite a formação de uma nova
concepção de mundo cuja concreticidade se produza no curso das
lutas por uma nova sociedade.
A literatura latino-americana contemporânea, em especial a
escritura recente de certas autoras, demonstra profunda sintonia

153
com essas reflexões e questionam o papel desse cristianismo
hegemônico em nossa cultura, prática religiosa tão eurocentrada
quanto fulcral na formação das sociedades latino-americanas.
Nesse sentido, um caso específico salta à vista: as narrativas da
escritora paulista radicada no nordeste do Brasil, Maria Valéria
Rezende. Neste texto partimos de uma leitura do artístico como
estratégia de compreensão da realidade. Buscamos, portanto,
lançar um olhar socioantropológico sobre o texto literário, para em
diálogo com ele refletir sobre temas caros aos autores como
exclusão, religiosidades e formas violência.

O Vasto mundo de Maria Valéria Rezende

Missionária católica há mais de cinco décadas, Maria Valéria


Rezende tem percorrido sertões e periferias do nordeste brasileiro
neste período. O encontro com a literatura foi tardio. Apenas aos 59
anos, foi inserida oficialmente no circuito literário e tornou-se a autora
de uma significativa obra formada por romances, volumes de crônicas
e conto e livros dedicados ao público infanto-juvenil que com enorme
frequência inclui episódios inspirados em sua trajetória como
educadora e religiosa6. Embora reflita sobre temas que tem figurado
com maior frequência na crítica literária na atualidade, seus textos
ainda são escassamente estudados. Tal marginalidade revela a ainda
persistente desigualdade que existe entre textos literários vinculados
aos grandes centros e obras escritas desde outros eixos geopolíticos do
conhecimento e das artes.
Na contramão dessa lógica, neste capítulo queremos refletir
sobre as estratégias adotadas por Rezende para falar do sertão
brasileiro rejeitando estereótipos e colocando em cena toda a
complexidade da articulação entre religião, literatura e sociedade na
região. Com uma sensibilidade ímpar, a autora elabora tramas que

6Uma lista mais precisa inclui os seguintes títulos: Outros cantos (2016); Quarenta
dias (2014); O voo da guará vermelha (2005); Vasto mundo (2001) A face serena
(2018) Histórias nada sérias (2017) Histórias daqui e d'acolá (2009) A utilidade da
cobra (2008) Modo de apanhar pássaros à mão (2006).

154
rechaçam a ideia de crença como elemento de controle social e assim
evidencia a necessidade pensar o crer e o sentir para além da lógica do
cristianismo hegemônico. Para tanto, selecionamos como objeto
específico de análise Vasto Mundo, cuja primeira edição foi publicada
em 2001, pela editora Alfaguara. Texto de difícil classificação, o livro
é constituído por um conjunto de narrativas curtas que podem ser
lidas separadamente, como contos, mas que possuem a mesma
ambientação, e personagens que se alternam, por vezes como
protagonistas, em outras como coadjuvantes nas narrativas, como o
padre Franzs, o jovem Preá ou o coronel Assis Tenório.
Assim, ao longo das 108 páginas do livro, Maria Valéria
Rezende apresenta o universo de uma cidade ficcional no interior
da Paraíba, Farinhada, engendrado a partir das pequenas histórias,
das narrativas do cotidiano que tratam a crença e devoção popular
de maneira a tensionar o discurso cristão hegemônico. Essas
narrativas, a voz do chão a que faz referência o título do capítulo,
representam, portanto, um valioso discurso artístico sobre
expressões do crer e do sentir.

Dando voz ao chão: uma leitura do crer na literatura brasileira


contemporânea

As novas tentativas de reflexão crítica emancipadora –


expressas, sobretudo, nos estudos pós-coloniais, decoloniais,
subalternos ou pós-ocidentais – engendrados principalmente no
sul global (África, Ásia e América Latina), não devem ser
entendidas apenas como uma recomendação a respeito da
necessidade de diversificação de referenciais teóricos, sugestão
recorrente do multiculturalismo hegemônico. Mais que expressão
geopolítica do conhecimento, o ponto nodal é a imposição de
compreender que a reflexão filosófica pode exceder “em muito a
racionalidade moderna, com as suas zonas de luz e sombra, as suas
forças e fraquezas” (Meneses, 2008). Estas bases epistemológicas
tonificam o pensamento e encadeiam uma mirada que põe em

155
perspectiva a peculiaridade colonial da expansão ocidental: seu
projeto cultural (Cf. CAJIGAS-ROTUNDO, 2007).
Não à toa, Boaventura de Sousa Santos, em 1995, sugeriu o
conceito de “epistemologia do Sul”. Mote a partir do qual se
aglutinou este debate. A proposta é não apenas aprender que existe
o Sul; afinal, ao contrário da modernidade, esta nova proposição
epistemológica não é um destino ou finalidade. É preciso também
aprender a partir do Sul e com o Sul. E, assim, efetivar um giro
colonial (BELESTRIN, 2013).
Este movimento também se torna fundamental para a
compreensão de textos literários que têm afinidade com esse
conceito de sul apresentado por Boaventura de Sousa Santos.
Assim, literaturas que subvertem a lógica colonial, tenham ou não
sido escritos no sul global, devem também ser lidos a partir de um
repertório crítico e teórico identificado com o sul global.
Os conflitos sociais que se desdobram a partir de crenças
religiosas têm sido recorrentes na história moderna. Moralidades
religiosas podem funcionar como justificativas para controle de
corpos, perseguição, violências simbólicas e condenações (Cf.
Mbembe, 2014). Ao mesmo tempo, expressões religiosas em textos
sagrados têm encorajado indivíduos no enfrentamento de situações
hostis, facultando a seus destinatários uma compreensão do
mundo que não pode prescindir da mobilização coletiva como
alternativas de ação às práticas de silenciamentos e opressão
presentes nas epistemes coloniais.
Neste sentido, é fundamental ressaltar o fato de que algumas
expressões religiosas não-hegemônicas tem sido, ao longo da
história, alvos preferenciais de mecanismos de invalidação,
desqualificação e subalternização. Fatos que as colocam numa
condição de desigualdade e não reconhecimento social. Num
quadro geral de diversificação de crenças, saberes e formas de
sentir, este mecanismo social de menosprezo e demérito destas
práticas deriva em formas de violência e racismo religioso.
Não podemos perder de vista que a própria noção de religião
é resultante de uma reflexão ocidental, e, por isso, carrega consigo

156
um conjunto de pressupostos colonialistas. Esta expressão advém
das palavras latinas religio, religare e religere. Ela aponta para uma
compreensão cristã de qualquer sistema de crença, uma vez que
pressupõe uma ligação originária (criação), sucedida de uma
ruptura (narrativa de queda/pecado) que se desdobra numa
necessidade de religação (adesão religiosa e reconhecimento
salvífico). O regime colonial perseguiu sistemas de crenças que não
se ajustava a este modelo ocidental e coube ao contexto político
pós-independência de muitos estados-nação replicar as formas de
silenciamento destas formas de crer e sentir desajustadas às
expectativas coloniais. A literatura e as formas artísticas pós-
coloniais buscaram dá-lhe voz e lugar no espaço público.
Deste modo, texto literário pode desempenhar um papel de
grande relevância no sentido de dar visibilidade a essas práticas
religiosas subalternizadas e escamoteadas pelo discurso
hegemônico. Nesse sentido, narrativas elaboradas por escritores do
sul global podem apresentar uma significativa sensibilidade para
desvelar essas práticas de desqualificação, evidenciando a
heterogeneidade do crer nesses espaços. O capítulo de Vasto Mundo
“Não se vende jumento velho”, é claramente um desses textos. No
conto, a voz narrativa elaborada por Maria Valéria Rezende
apresenta a relação entre um padre católico identificado como a
teologia da libertação e o povoado do interior do nordeste
brasileiro em que desenvolve as atividades eclesiásticas:

O entusiasmo pela Igreja dos pobres não arrefecia o interesse do alemão por
fenômenos extraordinários. Pouco depois de sua chegada, tinha encontrado
todos os rezadores e curandeiros da vila e dos sítios da redondeza e tinha
descoberto Cícero Só, cuja fama de catimbozeiro era motivo de certo medo e
respeito por parte da gente da vila que mantinha cerrada discrição quanto ao
assunto. Nunca se sabe... No início pensaram que os estava procurando para
recriminá-los e exigir que abandonassem essas atividades malvistas pela Igreja.
Para surpresa geral, a atitude do padre Franz era amigável, queria ver,
compreender, aprender. Passava horas acompanhando as sessões de reza e cura.
Guardava os raminhos de arruda que murchavam nas mãos das rezadeiras ao
absorverem o mal que afligia o cliente e submetia-os a observações e
comparações com outros ramos sadios (2015, p. 45).

157
O catolicismo praticado naquela região em que se passa a história
– como em vários outros lugares da América Latina – comporta uma
série de práticas aparentemente incompatíveis com os dogmas da
Igreja7. A figura bem-intencionada do Padre Franz e seu interesse por
essas tradições representam uma tentativa de conciliação entre essas
duas instâncias. No episódio que segue o trecho citado, um dos sítios
da região passa por um fenômeno sobrenatural ao ser acometido por
uma chuva de pedras e o pároco aplica seus conhecimentos em
parapsicologia para solucionar o caso.
O desenrolar da narrativa, no entanto, não deixa espaço para
o esforço de racionalização ocidental proposto pelo religioso:

Padre Franz suava em bicas e preparava-se para começar tudo de novo


quando a pedra veio: um calhau maior que o punho de Tonhão acertou bem
no meio da careca do parapsicólogo, que caiu para trás desacordado.
Crisenaldo aproveitou-se da confusão da gente que se precipitou sobre o
ferido e desapareceu no mato.

Maria Valéria Rezende, dessa forma, enuncia a falibilidade do


conhecimento e das formas hegemônicas do crer e do sentir em
Farinhada, a cidade em que se passam as narrativas que compõe o
romance. Não cabe à autoridade religiosa definir a causa ou
resolver a questão, e no desfecho do texto é o povo da cidade a
determinar o destino do pároco:

professor Paulo Afonso, escolhido como porta-voz pelo seu prestígio de


intelectual da vila, adiantou-se e desfiou a curta fala tantas vezes ensaiada:
“Excelentíssimo Senhor Bispo, em nome do povo da vila da Farinhada,
declaro-lhe que daqui o padre Franz não sai. A voz do povo é a voz de
Deus.” Tudo o que o bispo tentou dizer a partir daí foi abafado pelo alarido
da multidão. Não houve jeito nem argumento nem autoridade que
adiantasse. Ao fim de duas horas o bispo se deu por vencido, meteu o rabo
entre as pernas, com o perdão da má palavra, e foi-se embora.

7Por Igreja, aqui, devemos entender o órgão máximo de salvaguarda e promoção


do catolicismo – o Vaticano.

158
Os movimentos de silenciamento de grupos subalternizados
inscrevem-se naquilo que Sirin Adlbi Sibai (2016), politóloga e
especialista em teoria democrática, define como a colonialidade da
religião. Categoria analítica utilizada pela pensadora muçulmana
decolonial para se referir às diferentes formas de violência
epistemológica, espiritual e conceitual aplicada a grupos
considerados marginais desde o conceito eclesiocêntrico de
religião8. Aqui, cabe lembrar que este conceito tem sido
pretensamente mobilizado pela literatura especializada como
sendo de valor heurístico universal. A qual, a partir de rasos
procedimentos de análise comparativa, equipara experiências,
saberes, cosmovisões e formas distintas de ser/estar no mundo
produzindo invisibilizações, apagamentos ou inferiorizações do
crer, saber e sentir. Em perspectiva religiosa, esta noção foi
fundante das dicotomias entre religião e paganismo. Em termos
conceituais, deveríamos considerar a inadequação desta categoria
para se compreender práticas culturais ou grupos sociais que se
configuraram segundo modelos e padrões estruturais distintos
daqueles que forjaram este conceito.
Os estudos subalternos9 tiveram início em 1982 como uma
série de debates acerca da necessidade de reescrever a história
indiana moderna. Um dos expoentes deste coletivo, Ranajit Guha
(2002), à época professor de história na Universidade de Sussex, em
companhia de outros oito colegas, apontaram os problemas de
considerar uma história pós-colonial na Índia sem evidenciar o
conflito de interesses entre a elite nacionalista e seus partidários

8 Ao propor uma genealogia do conceito de Religião, Talal Asad argumenta que


sugere que a própria classificação de uma prática qualquer como sendo “religiosa”
constitui-se como um ato inextricavelmente a serviço de configurações de poder
preexistentes. Este tema é foco de discussão pormenorizada em artigo anterior
(Silva; Procopio, 2019).
9 Coletivo editorial Subaltern Studies foi o nome dado, inicialmente, a uma série de

publicações que se dedicava a repensar a partir de outras bases a história indiana,


atualmente consideramos tais produções como marco inaugural para o que
chamamos estudos pós-coloniais.

159
socialmente subordinados, ou seja, os grupos subalternos. Esta
insatisfação manifestava-se epistemologicamente, uma vez que a
produção acadêmica estava intricada aos antigos paradigmas
positivistas oriundos da tradição historiográfica inglesa10. Isto nos
permite pôr em contexto os chamados estudos subalternos os quais
emergem como uma mudança paradigmática – uma nova maneira
de pensar e escrever história.
Como desdobramento dos trabalhos deste grupo está não
apenas a crítica que antes fora realizada no nível da produção de
uma outra historiografia, mas também uma crítica à dominação
epistemológica, mas que põe em evidência a singularidade das
experiências dos subalternos, para uma crítica da própria
concepção de história, de religião e de política. A subordinação
epistêmica, então, devia ser reposicionada na perspectiva da
investigação das relações de poder.
A relação de poder, material e histórica, expressa por meio de
forças políticas e econômicas, é que explica o europeu falando pelo
“não-europeu”, e jamais o contrário. Ao subalterno estaria
destinado o silêncio. Há quem fale por ele, há quem o represente.
(Cf. SPIVAK, 2010). Nesta direção, podemos localizar o dispositivo
colonial na concretude do poder político e econômico, ou, dito de
outro modo, na aceitação tácita do valor heurístico do referente de
identidade universal europeu justificado pelo que Edward Said
denomina de afirmação e reafirmação de uma suposta
“superioridade sobre o atraso oriental” e acrescenta

10 Esta abordagem historiográfica foi também questionada por outros grupos


intelectuais que se tornaram mais conhecidos no mundo ocidental, tais como os
historiadores ingleses: Rodney Hilton, Christopher Hill, George Rudé, Edward
Palmer Thompson, Eric Hobsbawm. A esta tentativa nomearam como History from
below (Cf. Bhattacharya, 1983). Ambas (tanto a inglesa, como a indiana) têm raízes
marxistas e, de maneira particular, em Antonio Gamsci, uma vez que o conceito
de “hegemonia” e a própria terminologia “subalterno” e remetem aos escritos do
filósofo italiano (Gramsci, 2004). O propósito manifesto dos estudos subalternos
seria produzir uma análise histórica na qual os grupos subalternos fossem
considerados como os sujeitos de sua própria história.

160
Sob o título geral de conhecimento do Oriente e no âmbito da hegemonia
ocidental sobre o Oriente a partir do fim do século XVIII, surgiu um Oriente
complexo, adequado para o estudo na academia, para a exibição no museu,
para a reconstrução na repartição colonial, para a ilustração teórica em teses
antropológicas, biológicas, linguísticas, raciais e históricas sobre a
humanidade e o universo, para exemplo de teorias econômicas e
sociológicas de desenvolvimento, revolução, personalidade cultural, caráter
nacional ou religioso. (2013, p. 35, grifos dos autores)

Essa demanda por fazer a voz do subalterno ouvida, que


reflete necessariamente um reposicionamento hierárquico de
saberes é representada na literatura de Maria Valéria Rezende em
diversos momentos. Nos textos da autora, a voz do subalterno é
ouvida não quando tutelada pelo sujeito detém o poder, seja ele
religioso, político ou econômico, mas sim quando articulada às
vozes de outros sujeitos subalternizados, a chave, para Rezende,
está sempre na coletividade.
O capítulo “Aurora dos Prazeres”, também de Vasto mundo nos
parece um exemplo específico bastante eficiente desse movimento.
Na narrativa a jovem Aurora dos Prazeres opta ainda muito jovem,
como a própria autora, pela vida religiosa. No convento, seu nome
é considerado inadequado para uma freira e ela passa por uma
experiência significativamente simbólica: muda de nome. Para ser
aceita no novo universo que a acolhe ela passa a ser conhecida
como irmã Helga, em homenagem a uma freira alemã que
desempenhou suas atividades religiosas na mesma região.
A vontade de estar ao lado dos mais pobres, no entanto, faz
com que a jovem retorne a seu lugar de origem, onde seu nome
europeu se torna inviável:

A vida de Aurora mudou outra vez da água para o vinho: a casinha de taipa
numa ponta de rua, difícil de manter limpa, o belo hábito branco trocado por
uma roupinha qualquer, para ficar igual a todo o mundo de pobres, a zoada
dos rádios, a meninada da vizinhança metendo-se pela porta adentro e a
impossibilidade de o povo dizer seu nome alemão. Irmã Helga virava
invariavelmente irmã Égua. As irmãs concordaram em que não podia ser:
voltou a chamar-se Aurora dos Prazeres. Seus conhecimentos de menina do
sítio passaram a ter uso na tarefa de viver como os pobres e era com ela que

161
as companheiras de outra origem aprendiam. Tinha entendido tudo o que o
bispo dissera e procurou os mais pobres e desprezados para visitar e
evangelizar. Descobriu o Rabo da Gata, a rua das mulheres da vida, e
passava com elas as horas em que não tinham freguesia. Ouvia suas
misérias, falava-lhes de Jesus e de como as putas entravam primeiro no
Reino dos Céus.

É como Maria dos Prazeres e não como Helga que a


personagem consegue se reinserir na região e assim articular a
população local em torno da luta por direitos trabalhistas. Unida às
putas do Rabo da Gata, ela inicia um cortejo por Cataventos e
envolve grande parte da população local:

Por onde passava, o cortejo das perdidas, cantando velhos benditos, com
irmã Aurora dos Prazeres à frente, ia acordando o povo e arrastando os
curiosos. Quando chegou ao lugar do piquete, já trazia centenas atrás de si.
Correu rápida a notícia de que as putas tinham saído da zona e estavam
cantando benditos lá na beira da estrada. Às quatro da manhã, a estrada
estava tomada pela multidão. Muitos nem sabiam o que tinham ido ver ali,
mas não se iriam embora sem ver alguma coisa. Quando o primeiro
caminhão de sertanejos apontou na curva, Aurora dos Prazeres gritou: “Não
deixa passar!” Primeiro as raparigas e depois toda a multidão ecoou,
entusiasmada: “Não passa! Não passa!” E não passou aquele nem os que
vieram depois. A festa na estrada continuou o dia inteiro. Os assessores da
Federação, eufóricos, suados, ainda ensaiaram alguns discursos politizantes,
mas acabaram por entregar o microfone do carro de som à sanfona de
Faustino. Vieram os fiteiros com seus carrinhos de vender confeitos;
armaram-se as barraquinhas de café, cachaça e refrigerante; venderam-se
roletes de cana, laranja descascada, picolés e pastéis e tudo o mais. Às cinco
horas da tarde, a fumaça da chaminé da usina foi diminuindo, diminuindo
e sumiu. Cataventos descobriu o gosto da vitória e explodiu em alegria.

O episódio da greve puxada pela freira e pelas putas é,


portanto, um exemplo da potência da voz coletiva, que se articula
não a partir da movimentação política tradicional, representada no
texto pelos assessores da federação, nem pelo catolicismo
tradicional. O subalterno aqui reconhece que precisa encontrar
formas para falar e assim o faz, cantando.
Dessa forma, a emergência da religião como categoria analítica
e difusão do uso deste conceito, nesta versão que assume uma

162
postura de crítica pós-colonial, está relacionada com a
modernidade enquanto projeto político e epistemológico forjado
no contexto de exploração das colônias do sul pelas metrópoles do
norte. Assim, explicitar essa relação poder como parte da
colonialidade do saber-poder que se prolonga na construção de
categorias tais como religião contribui para problematizar e
suplantar o pressuposto valor explicativo universal desse conceito.
Assumir esta postura de vigilância epistemológica implica
trabalhar para deslegitimar as os mecanismos estratificação
intelectual vigentes. Trata-se de desvelar os instrumentos de
desvaloração pela perspectiva de raça, da classe e do gênero. Em
termos das humanidades, implica pensar que muito do que
conhecemos sob o guarda-chuva dos estudos da religião é
pensamento euro-americano que fala pelos não-euro-americanos
sobre as realidades não-euro-americanas, mas a partir de
referências euro-americanas.

Considerações finais

Pensar, a partir destas outras epistemes, - seja pelo esforço de


redefinição do conceito de religião, seja na proposição de uma
abordagem mais complexa dos fenômenos religiosos que se deseja
apreender - passa pela tarefa de visibilizar novas formas de crer e
sentir o sagrado – marginalizadas ou estigmatizadas pela ciência
social contemporânea. Passa também por pôr em xeque a estrutura
disciplinar do conhecimento moderno, tanto nas formas de
disciplinas acadêmicas, quanto nas estruturas institucionalizadas
dos centros de produção intelectual que compartimentalizam os
saberes em uma estrutura organizativa no intento de gerir os
modos de conhecer ou saber. E, na medida que o faz, endossa e
justifica desigualdades permitindo a emergência de outras formas
de opressão, as quais reproduzem a divisão abissal da nossa
realidade e legitimam mecanismos de exclusão social.
A emergência da religião como categoria analítica e difusão do
uso deste conceito, nesta versão da crítica à colonização do

163
crer/sentir, está relacionada com a modernidade enquanto projeto
político e epistemológico forjado no contexto de exploração das
colônias do sul pelas metrópoles do norte. Assim, explicitar essa
relação de poder como parte da colonialidade do saber-poder que
se prolonga na construção de categorias tais como religião
contribui para problematizar e suplantar o pressuposto valor
explicativo universal desse conceito. Assumir esta postura de
vigilância epistemológica implica trabalhar para deslegitimar as os
mecanismos estratificação intelectual vigentes.
Em termos das Ciências Sociais e da Crítica Literária, implica
pensar que muito do que conhecemos sob o guarda-chuva dos
estudos latino-americanos é a sociologia/antropologia euro-
americana que fala pelos não-euro-americanos sobre as realidades
não-euroamericanas, mas a partir de referências sociológicas e
antropológicas euro-americanas.
No presente capítulo, tentamos evidenciar os caminhos
seguidos por Maria Valéria Rezende para dar voz a formas não-
hegemônicas do crer, e em especial a um catolicismo que dialoga e
incorpora elementos de diferentes origens. A chave para essa
reflexão pode ser encontrada na própria literatura da autora.
Rezende escolhe falar do crer não a partir do céu, mas sim do chão.
Em sintonia com as correntes teóricas que têm repensado os modos
de ver e pensar religião, ela propõe um deslocamento do olhar,
uma exploração de pontos de vista marginais para essas questões.
Pensar, a partir destas outras epistemes, passa pela tarefa de
visibilizar novas formar de crer e sentir o sagrado – marginalizadas
ou estigmatizadas pela ciência social contemporânea, ao mesmo
tempo que põe em xeque a estrutura disciplinar do conhecimento
moderno que compartimentaliza os saberes em uma estrutura
organizativa no intento de gerir os modos de conhecer.
Não é coincidência, portanto, que os trechos curtos de texto
que entremeiam os capítulos de vasto mundo sejam chamados “A
voz do chão”, e é um com uma citação desse trecho que concluímos
esse capítulo:

164
Eu os conheço a todos. Reconheço-os pelas pisadas e por elas sei de seus
humores, de seus sentimentos, de suas urgências, preguiças, de seu
contentamento ou aflição. Sei de sua grandeza e mesquinhez. Leio seus passos
quando apenas roçam minhas lajes em corridas alegres de pés pequenos ou
quando me oprimem com o peso de vidas inteiras. Foi seu tropel incessante que
me despertou do meu sono de pedra (REZENDE, 2015, p. 7)

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167
168
Memória, autonomia e identidade na construção do
canal televisivo mapuche “wall kintun tv”

Estela Rocha de Ungaro1


Laura Janaina Dias Amato2

Resumo: Neste artigo buscamos trazer um recorte da dissertação de


mestrado intitulada “Olhares e Narrativas, do meio ao redor - Wall Kintun
TV e a trajetória do primeiro canal televisivo de povos originários na
Argentina”, com o intuito de traçar um debate acerca da transformação
do Wall Kintun, canal televisivo mapuche criado a partir da LSCA - a Lei
de Meios argentina -, em uma ferramenta possibilitadora de amplificação
de vozes mapuche. Para tanto, trouxemos dois aspectos evidenciados na
pesquisa como intrínsecos à existência da emissora e às relações que
compõem e compuseram seu processo de construção, quais sejam: I) a
inserção do Wall Kintun no contexto cultural, histórico e social mapuche
e, portanto, as dinâmicas próprias desse universo que carrega consigo; II)
a urgência de falar com a própria voz tal qual a emergência de ser
escutado como elementos fundamentais da construção contínua do canal,
decorrentes de uma construção histórica que sistematicamente exclui os
povos originários, de maneira geral, como parte ativa das decisões
políticas no país.

Introdução

Integrando as mudanças nas regulamentações


comunicacionais que vinham acontecendo ao longo dos anos 2000
em vários países da América Latina, e que trouxeram à tona o

1Mestre em Estudos Latino-Americanos pela UNILA.


2Doutora em Letras pela UFPR e docente do PPG-IELA e da área de Letras e
Linguística na UNILA.

169
problema da concentração dos meios de comunicação na região3,
estava a Argentina, com a Lei 26.522 de Serviços de Comunicação
Audiovisual – também conhecida como “Lei de Meios” ou “Ley de
Medios” –, doravante LSCA, aprovada pelo seu congresso em
outubro de 2009. Até então, a legislação vigente responsável por
regulamentar o sistema de radiodifusão no país era o Decreto-Lei
22.2854, aprovado durante o governo ditatorial de Jorge Rafael
Videla em 1980, a partir do qual foi estruturado um sistema
midiático vigorosamente voltado para o mercado e inserido em um
cenário de caráter oligopólico, ainda que sob controle do Estado.
Em decorrência disso, bem como em reação a tal cenário, no
início dos anos 2000, a problematização e o debate em torno da
concentração dos meios de comunicação nas mãos de poucos e
poderosos grupos na Argentina se tornaram cada vez mais crescentes
e ganharam visibilidade. Desse modo, discussões promovidas por
organizações da sociedade civil que reivindicavam o acesso
democrático a licenças de rádio e televisão conquistaram seu espaço e
culminaram no documento apresentado publicamente em agosto de
2004 – quando se completaram 21 anos do fim do período ditatorial
na Argentina – intitulado “21 puntos básicos por el derecho a la
comunicación”, que estabelecia 21 pontos considerados
indispensáveis para a elaboração de uma nova lei de radiodifusão que
garantisse o pluralismo comunicacional e colaborasse com o
fortalecimento da democracia no país. Simultaneamente, a união
dessas organizações deu origem à Coalición por una Radiodifusión

3 Como por exemplo a Ley Resorte de 2004, na Venezuela, e a Ley Orgánica de


Comunicación de 2013, no Equador. Martín Becerra trata das mudanças através
de intervenções estatais em diversos sistemas de comunicação na América Latina,
caracterizados pela concentração, centralização, conglomeração, no capítulo
“América Latina a contramano: poder mediático y regulaciones” (Becerra, 2015b).
4 Caracterizada por configurar os meios de rádio e televisão como bens comerciais

sob controle do Estado, a regulamentação sofreu modificações parciais a partir de


1989 na gestão de Carlos Menem, e ao longo de seus anos de vigência nos governos
constitucionais posteriores, que propiciaram o fortalecimento da concentração
mercadológica dos meios por pelo menos duas décadas (BECERRA, 2015a; 2015b;
CÓRDOBA, 2011).

170
Democrática – atualmente denominada Coalición por una
Comunicación Democrática –, formada por diversos grupos5 que
constituíram, assim, um coletivo multiorganizacional focado em uma
só demanda comum a todos eles.
No ano de 2008, quase quatro anos após a primeira
apresentação pública da proposta com os “21 pontos”, as
reivindicações elaboradas pela Coalición, com a finalidade de
compor a nova regulamentação foram finalmente incorporadas à
agenda de prioridades do governo nacional argentino (CÓRDOBA,
2011; BECERRA, 2015a). Naquele período tinha início a gestão
presidencial de Cristina Fernandez de Kirchner, que inaugurava,
paralelamente, uma “nova política de mídias” composta por uma
série de ações, entre as quais estave a sanção da LSCA (BECERRA,
2015a; 2015b). Um ano mais tarde, em março de 2009, foi
anunciado, pela então presidenta, o pré-projeto da nova Lei de
Serviços de Comunicação Audiovisual, baseado no documento
com os “21 pontos para uma radiodifusão democrática”,
paralelamente à divulgação de fóruns de discussão que seriam
realizados em todo o país em torno da pauta.
Naquele mesmo mês, ao se depararem com a ausência de
reivindicações específicas para os povos originários, tanto no
documento da Coalición quanto no projeto apresentado pela
presidência, comunicadores indígenas de diversas regiões da
Argentina se reuniram com a finalidade de elaborar uma proposta
de “comunicación con identidad” que garantisse “el derecho a la
libertad de expresión e información de los pueblos indígenas de
Argentina” (YANIELLO, 2014, p. 61), a fim de incorporá-la à LSCA.
Foi construída, dessa maneira, a equipe de comunicadores do

5 Entre os grupos estavam rádios comunitárias, trabalhadores da comunicação


organizados com seus sindicatos, acadêmicos especialistas da área, movimentos
políticos atuantes em questões territoriais e de direitos humanos, funcionários de
setores governamentais relacionados à comunicação social, além da Asociación de
Radiodifusoras Universitarias Nacionales Argentinas (ARUNA) e da Asociación
Iberoamericana de Derecho de la Información y de la Comunicación (AIDIC).

171
Encontro Nacional de Organizações Territoriais dos Povos
Originários (ENOTPO).
Constituída por dezenas de organizações de diversos povos
indígenas do país, a formação do ENOTPO e sua equipe de
comunicadores, como mostra Yaniello (2014, p. 27), foi
impulsionada especialmente pela “invisibilización, estigmatización y
el estereotipo de los pueblos originarios en los medios de comunicación
comerciales”, com a finalidade de formulação do documento,
posteriormente apresentado ao Comité Federal de Radiodifusión
(COMFER). Integrantes da Mapuradio e do coletivo Kona
Produciones, localizados na província de Neuquén, no sudoeste da
Argentina, explicam, em depoimento para a jornalista Florencia
Yaniello (2014, p. 26), no livro “Descolonizando la Palabra: Los
medios de comunicación del Pueblo Mapuche en Puelmapu”, a
“comunicación con identidad” como aquela que se faz “desde lo
que nosotros somos: gente de la tierra, guardianes, protectores del
ixofijmogen (o biodiversidad), promotores de la lucha de una
nación originaria”. A proposta surge, então, como uma
reivindicação para que se possibilite e se viabilize, por meio da
inclusão de suas demandas à LSCA, o acesso a meios próprios de
comunicação também para os povos originários, para que estes
possam participar do processo comunicacional argentino de forma
ativa e a partir de suas próprias perspectivas.
Desse modo, foram finalmente acrescentados, ao pré-projeto
da Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual, os apontamentos
que garantiriam para os povos originários na Argentina o direito à
comunicação através da gestão de seus próprios meios de rádio e
televisão. Entre esses pontos, consequentemente incorporados
também à versão final da LSCA aprovada pelo congresso em
outubro de 2009, estão: “la preservación y promoción de la
identidad y de los valores culturales” indígenas como um dos
objetivos da nova norma (Argentina, 2010, p. 3); a possibilidade de
que tanto a programação quanto a publicidade veiculadas nos
meios contemplados pela lei fossem realizados opcionalmente

172
também nos idiomas dos povos originários e a reserva de
frequências de rádio e televisão para os povos originários no país.
Assim, no final de 2012, por meio da inclusão do artigo 151,
que trata da autorização para a instalação e o funcionamento de
serviços de radiodifusão sonora e televisiva para os povos
indígenas, foi viabilizada a criação do primeiro canal de televisão
aberta coordenado por povos originários no país, criado a partir da
regulamentação: o Wall Kintun, cuja tradução da expressão que o
denomina, do mapuzungun (língua mapuche) para o espanhol, é
“mirar alrededor” ou “buscar alrededor” .
Inaugurado oficialmente no dia 7 de dezembro de 2012 - o
“7D”6 -, o Wall Kintun teve sua licença concedida à comunidade
mapuche Lof Che Buenuleo, localizada a 8 quilômetros da região
central de San Carlos de Bariloche no Lote Pastoril 127, aos pés do
Cerro Ventana, e formada atualmente por cerca de 90 membros
descendentes de Antonio Buenuleo e María del Pilar Curinao. Seu
lançamento foi realizado na cidade de San Carlos de Bariloche
durante o Pre MICA Patagonia, em que estavam presentes
autoridades estatais, representantes governamentais e membros
mapuche da cooperativa Coordinadora de Comunicación Audiovisual
Indígena de Argentina (CCAIA) - integrantes da então equipe técnica
e administrativa do canal -, que celebraram publicamente, em seus
discursos, o lançamento do Wall Kintun como uma conquista da
LSCA e da luta dos comunicadores originários na Argentina por
uma “comunicación con identidad” e do início de um novo
processo de “darle voz a aquellos que no tuvieron voz”7.

6 A partir de uma campanha televisiva promovida pela AFSCA (Autoridad Federal de


Servicios de Comunicación Audiovisual), o dia 7 de dezembro de 2012 ficou conhecido
como “7D” – “Diciembre, Diversidad y Democracia” – ao ser enfatizado como marco
de aplicação integral da LSCA (ARUGUETE e KOZINER, 2014).
7 Discursos disponibilizados em vídeo no canal do Ministerio de Cultura de la

Nación no YouTube, com o título “Lanzamiento del canal mapuche WALL


KINTUN TV, en el Pre MICA Patagonia”. Disponível em: https://www.youtube.
com/watch?v=t9WP9FRprdE&t=150s.

173
Apesar de seu início ter sido marcado por uma forte celebração
pública, ao longo de seu primeiro ano de existência, o Wall Kintun
foi permeado por uma considerável instabilidade na realização de
suas atividades e na consolidação de sua equipe. Assim, após
algumas modificações internas entre seus integrantes, em abril de
2013 a emissora realizou seu relançamento público. A estreia de
suas atividades enquanto realizadora audiovisual, no entanto, só
aconteceu dois anos mais tarde, com a operação de sua primeira
produção própria após outros processos de conflitos, alterações e
reorganizações internas8.
Sediado em um pequeno escritório no Centro Administrativo
Provincial emprestado pelo governo da província de Río Negro,
localizado próximo à região central da cidade de San Carlos de
Bariloche, o Wall Kintun possuía, no ano de 2018 - período de
finalização da pesquisa em que se ancora o presente artigo -, uma
equipe técnica e administrativa composta por seis membros, em
sua maioria integrantes da comunidade Buenuleo. Sua
programação era integrada por duas realizações próprias,
videoclipes musicais e documentários mapuche e indígenas de
maneira geral, além de conteúdos relacionados a temáticas
culturais e educativas concedidos pelo Banco Audiovisual de
Contenidos Universales Argentino (BACUA), pelo Instituto Nacional
de Cine y Artes Audiovisuales (INCAA) e produzidos por
cooperativas audiovisuais.
A primeira produção própria da emissora foi um jornal com
cerca de uma hora de duração, gravado e transmitido diariamente,
de segunda a sexta-feira em sua programação, intitulado Muley
Zungu, cujo significado é traduzido no próprio programa como
“hay novedad, hay noticia”. Lançado após a obtenção de recursos
através do FOMECA (Fondo de Fomento Concursable para Medios de
Comunicación Audiovisual), no final de 2014, o informativo teve sua
realização interrompida em novembro de 2015 com o esgotamento

8Para um debate mais amplo e detalhado acerca deste assunto, ver Ungaro (2018,
p. 162-186).

174
dos fundos. Após um ano e meio com sua produção paralisada, o
Wall Kintun reestreia seu jornal em junho de 2017, também a partir
de recursos obtidos por meio do FOMECA, recebidos no início do
mesmo ano.
Simultaneamente, nesse mesmo mês, o canal iniciou a
realização de exibições públicas e gratuitas de documentários de
povos originários, compondo sua programação através do Ciclo de
Cine Indígena realizado mensalmente, em parceria com a
Subsecretaría de Cultura de San Carlos de Bariloche, na Escuela
Municipal de Artes La Llave. Dois meses depois, o Wall Kintun
recebeu, em sua sede, a Defensoría del Público, que entregou à
emissora um reconhecimento pelo “trabajo de promoción, de
defensa y el ejercicio del derecho a la comunicación que el canal
desarrolla y que le aporta diversidad informativa y cultural al
sistema de comunicación argentina”9.
No ano seguinte, em maio de 2018, o Wall Kintun estreou sua
segunda produção própria, “un programa semanal que busca
reflejar la vida del pueblo Mapuche a ambos lados de la cordillera
a través de la palabra y el testimonio de la gente de la tierra”10,
intitulado Nutramkan – La conversación Mapuche.
Apresentado por Oscar Moreno, o programa tem em média
uma hora de duração e, através de entrevistas com mapuches de
diversos lugares, tanto no território atualmente argentino como no
chileno, evidencia seus relatos acerca de atividades políticas e
culturais das quais participam ou desenvolvem.
Para a difusão e divulgação de seus conteúdos e atividades,
atualmente o Wall Kintun utiliza também a plataforma de vídeos

9 Declaração da representante da Defensoría del Público Sofía Hammoe segundo


a publicação da agência de notícias “Bariloche Opina”. Disponível em: http://
www.barilocheopina.com/noticias/2017/08/18/31945-entregaron-reconocimiento-
al-canal-mapuche-wall-kintun-tv.
10 Texto de divulgação do programa publicado na página oficial do Wall Kintun

no Facebook, disponível em: https://www.facebook.com/WallKintun/posts/7186


87641588198.

175
YouTube11 e a rede social Facebook12, espaços online onde é
possível encontrar grande parte das edições de suas duas
produções próprias disponibilizadas integralmente.
Para a realização do presente artigo, em que buscamos fazer
um recorte da dissertação “Olhares e Narrativas, do meio ao redor
- Wall Kintun TV e a trajetória do primeiro canal televisivo de
povos originários na Argentina”, nos ancoramos especialmente nos
capítulos com os quais contribuem com suas narrativas três
membros da comunidade mapuche Lof Che Buenuleo e da atual
equipe técnica e de gestão do Wall Kintun, que vivenciaram e
vivenciam o processo contínuo de construção da emissora,
enquanto colaboradores entrevistados para a realização da
pesquisa. São eles: Deolinda Buenuleo, diretora e apresentadora do
Wall Kintun e werken (porta-voz) da comunidade Buenuleo, seu pai
Salvador Buenuleo, inalonko (sucessor do lonko) da comunidade, e
Oscar Moreno, produtor e apresentador do Wall Kintun e
comunicador mapuche, cuja trajetória profissional antecede sua
participação na emissora.

Difusão de memórias e transmissão de saberes

Porque nosotros ya venimos haciendo comunicación. El pueblo Mapuche


hace miles de años que viene haciendo comunicación con la naturaleza, con
las personas, con el mundo espiritual, con el mundo sobrenatural, con el
mundo natural, con el universo mismo. Nosotros sabemos hacer
comunicación y eso está en la cultura mapuche. (MORENO).

Na história e na cultura mapuche, a comunicação se apresenta


ao longo do tempo sob diversas formas e para diversos fins. Da
oralidade à escrita, dos instrumentos sonoros aos corporais, das
transmissões radiofônicas locais à utilização da internet como
amplificação de suas vozes para além das fronteiras nacionais, o

11 Canal do Wall Kintun no YouTube disponível em: https://www.youtube.com/


channel/UCixGQOD99p9BWXPiJ70GPzA.
12 Página do Wall Kintun no Facebook disponível em: https://www.facebook.

com/WallKintun.

176
universo comunicativo mapuche vem sendo historicamente
conformado e transformado por meio de e para um intercâmbio de
perspectivas, saberes e vivências entre seres, mundos e gerações.
Nesse sentido, a multiplicidade e a particularidade deste universo
de formas e fins comunicativos próprios dos mapuche se
manifestam, por exemplo, através da utilização de instrumentos
musicais como o kultrun para uma comunicação com o mundo
espiritual e o kul kul para alertas e avisos, da execução de danças
como o purrun, choikepurrun, mazatun e tregvlpurrun em espaços
cerimoniais, da utilização da escrita a partir do século XVIII para
uma comunicação com autoridades governamentais e entre os
próprios mapuche (MARIMÁN, 2006 apud GUTIÉRREZ RÍOS,
2014, p. 24-27), e da oralidade como ferramenta para as
transmissões do werkun, do nutram e do weupin.
Deolinda Buenuleo, além de diretora do Wall Kintun, é também
werken da comunidade à qual pertence, e foi eleita para assumir tal
função com a responsabilidade de, segundo suas próprias palavras,
“difundir lo que está pasando dentro de nuestro territorio”.
Historicamente, a função do werken está precisamente relacionada à
viabilização de uma comunicação entre as comunidades para fins
políticos e convocações de trawünes (reuniões)13. Desde antes das
expansões territoriais e ocupações militares chilena e argentina em
Wallmapu14, o werken era o integrante responsável por levar e trazer

13 Conforme explica Gutiérrez Ríos (2014, p. 23-24): “El espacio del trawün, como
cuenta el relato de Felipe Reyes, era la convocatoria entre los distintos lonkos para
tomar decisiones sobre los temas de común importancia. En este espacio de
discusión pública queda expresada con claridad la importancia del buen manejo
de la oratoria en el mundo mapuche.”
14 Wallmapu, como é chamado o território ancestral mapuche, abarca uma imensa

região hoje ocupada pelos Estados chileno e argentino “que va desde los valles
transversales por el norte, a Chiloé por el sur, y hacia la vertiente oriental de la
cordillera de los Andes” (Millánen, 2006, p. 20), onde estão Puelmapu, ao leste
da cordilheira, e Gulumapu, ao oeste. Os dois termos, utilizados para denominar
os espaços de acordo com a localização de cada um deles em relação à cordilheira
dos Andes, correspondem aos territórios hoje denominados pela sociedade winka
como Chile (Gulumapu) e Argentina (Puelmapu).

177
informações de sua comunidade, cruzando as cordilheiras e extensas
áreas, se necessário, para compartilhá-las de acordo com as
solicitações feitas pelo lonko, principal autoridade sociopolítica da
comunidade (Marimán, 2006; Gutiérrez Ríos, 2014). A essa mensagem
enviada pelo lonko e transmitida oralmente pelo werken - que
atualmente seria como o porta-voz de sua comunidade - se dá o nome
de werkun.
O propósito da comunicação mapuche, no entanto, pode estar
relacionado também à memória coletiva e à transmissão de saberes,
como por exemplo no weupin, transmitido pelo weupife:

[…] el weupin, el discurso excelso, arte que solo algunos – los weupife – pueden
enunciar con autoridad y en ocasiones rituales, en donde se transmite el
conocimiento del pasado en lengua de la tierra – mapudungun – y aquello que
algunos denominan los marcos de la memoria colectiva. Weupin enunciados en
las mismas ceremonias en donde el ritual del nguillatun recuerda la comunión
de los linajes con la tierra y los ancestros,donde el ül, el canto mapuche, canta
con la tierra, en donde el purrun, la danza mapuche, gira con la tierra. (TOLEDO
LLANCAQUEO, 2007, p. 2).

Se o weupin está atrelado a cerimônias e rituais e, como o


werkun, deve ser transmitido por uma autoridade designada
especialmente para essa tarefa, o nutram, por sua vez, está presente
de forma cotidiana e informal entre os mapuche. Através do nutram
enquanto relato oral é que se realiza o nutramkan, isto é, a
transmissão entre gerações das histórias das famílias e
comunidades mapuche. Nas palavras do historiador Toledo
Llancaqueo (2007, p. 2),

El devenir de la familia, las líneas de parentesco, se cuentan en un nutram,las


luchas y dichas de la comunidad se guardan y rememoran en un nutram, el
propio relato de las aventuras y desventuras por el mundo de cada
mapuche, se guardan en un nutram.(TOLEDO LLANCAQUEO, 2007, p. 2).

Nesses termos, o nutramkan se mostra um importante difusor


das memórias e narrativas que compõem a identidade mapuche, e
possivelmente por essa razão inspirou a segunda produção
audiovisual própria do Wall Kintun, lançada em sua programação

178
em maio de 2018 sob o título Nutramkan – La conversación
Mapuche, desde então exibido semanalmente no canal e
apresentado por Oscar Moreno.
No primeiro episódio da produção, Oscar segura um kultrun à
frente do lago Nahuel Huapi em San Carlos de Bariloche e explica
ao público que o intuito de sua realização é que

[..] a través de la conversación todas y todos podamos ir conociendo a


nuestro pueblo, podamos ir reconociéndonos en las miradas de nuestros
abuelos, nuestra gente mayor, la gente jóven y también a través de la mirada
y la palabra de nuestros niños en el trabajo que se realiza en todo el
Wallmapu, en todo el territorio ancestral de oceano a oceano, de manera
colectiva y individual. (Moreno, no primeiro episódio do Nutramkan).

Sua explicação realça o papel do nutramkan no fortalecimento


da memória coletiva e da identidade mapuche, ao mesmo tempo
em que traz para a linguagem audiovisual de um programa
televisivo os princípios de uma forma de comunicação ancestral
própria anteriormente fundamentada na oralidade e agora
reforçados com a integração entre as linguagens. Isso se revela,
igualmente, no decorrer do próprio programa que, com duração de
aproximadamente uma hora, apresenta depoimentos de
integrantes de comunidades mapuche dos dois lados da cordilheira
entrevistados por Oscar Moreno em torno das ações que
desenvolvem, tais como iniciativas culturais e educativas e
mobilizações políticas de comunidades, organizações e
movimentos aos quais pertencem ou apoiam.
No primeiro episódio, por exemplo, a primeira parte do
programa traz a fala de Olga Paillao Marillan, lonko da comunidade
Mapu Rayen, acerca do processo de construção do Centro Cerimonial
Mapuche, localizado em Padre Hurtado, no Chile, e a segunda parte,
entrevistas com diversos participantes e organizadores da
inauguração do Centro de Formação Mapuche Intercultural
Kimeltuwe Ruka localizado em Villa La Angostura, na Argentina.
O segundo episódio, por sua vez, apresentado por Oscar de
dentro do espaço comunitário da comunidade Ranquehue em

179
Bariloche, dá espaço a depoimentos de participantes e
organizadores de duas ações em torno da memória e do genocídio
do povo Mapuche, cada uma também de um lado da cordilheira: a
primeira em Gulumapu (Chile) com a inauguração do memorial por
162 mapuches presos e desaparecidos no Chile entre 1973 e 1990, e
a segunda em Puelmapu (Argentina) com as Jornadas de Memoria,
Verdad y Justiça “Tierra y Libertad: Territorio y Genocidio”
realizadas na cidade de Esquel.
Ao registrar narrativas mapuche em toda Wallmapu e
transmiti-las para além das fronteiras nacionais – considerando que
o programa está disponível também on-line –, o Wall Kintun
amplia, tanto quanto reforça, a potencialidade de difusão da
memória coletiva mapuche por meio dos relatos dos sujeitos que
conformam esse povo. Da mesma forma, tal característica pode ser
observada também nos próprios temas trazidos à tona nos dois
primeiros episódios do programa, em geral relacionados à
construção de espaços e a realizações de eventos referentes à
memória e à cultura mapuche. Nesse sentido, linguagem e
conteúdo compõem, então, uma proposta comunicacional onde
convergem em seus pontos de partida e a partir da qual é possível
observar uma fluente correspondência entre tempo e identidade.
Se voltarmos à apresentação do Nutramkan, em seu primeiro
episódio, nos deparamos com a fala de Oscar Moreno sobre a forma
com que tem sido promovido o diálogo entre as perspectivas de
cada mapuche em Wallmapu para atender à finalidade do
programa. Segundo ele, os relatos são registrados em “cada uno de
los territorios, las grandes ciudades y las grandes extensiones de
territorio donde nuestra gente está volviendo a ser mapuche,
nuestra gente sigue siendo mapuche y nuestra gente se proyecta al
futuro como mapuche”. Tendo em vista a recíproca relação entre
tempo e identidade supracitada, é possível vislumbrar, então, que
dentro da potencialidade de difusão das memórias mapuche que
discutimos até aqui, está a necessidade do fortalecimento de suas
identidades através do tempo, para “voltar a ser”, “seguir sendo”
e “projetar um futuro”. O mapuche em seu processo

180
comunicacional é, desse modo, ponto de partida e de chegada,
tanto quanto o próprio trajeto, permeado constantemente pela
continuidade da memória.

Además nosotros no nos limitamos a hacer comunicación solamente.


Nosotros somos actores sociales, somos protagonistas también del proceso
de lucha y de la historia del pueblo Mapuche. Nosotros somos una
generación que continúa a la generación anterior que nos dejaron un legado,
un camino, y nosotros seguimos esa reivindicación. O sea, nosotros no
escribimos la historia, la historia ya viene escribiéndose. Nosotros nos la
continuamos [...] (MORENO).

Com essa fala destacada da entrevista concedida, Oscar reafirma


a ideia de uma memória que permeia gerações enquanto atravessa
uma larga escala de tempo e promove, assim, uma interação contínua
entre a ancestralidade e os tempos presente e futuro na multiplicação
e na transmissão de suas histórias. Tal perspectiva é reiterada quando,
em outro momento, ele diz: “Creemos que hay una continuidad a la
lucha, hay una continuidad a la historia, una continuidad del pueblo
Mapuche que se proyecta en el tiempo.”
Um claro exemplo desse aspecto, ou seja, de uma contínua
interação entre gerações através do tempo por meio da memória e
das narrativas, surge na mesma entrevista quando lhe pergunto
sobre a relação com sua família atualmente. Nesse momento sua
resposta nos coloca, primeiramente, em contato com um histórico
traçado por Oscar desde o século XIX e as expansões territoriais em
Wallmapu, entre explicações sobre as formas próprias da
organização mapuche e histórias de desapropriação territorial,
trabalho escravo e genocídio que viveram seus ascendentes. Em
seguida ele traz, em sua narrativa, as memórias de como seus pais
se conheceram naquele contexto e relatos do impacto desse
processo no seu nascimento e na sua infância. Somente após traçar
uma introdução com histórias que antecedem sua própria
existência enquanto indivíduo, Oscar retorna ao tempo presente
para explicar como se relaciona atualmente com seus familiares.

181
Se grande parte das histórias trazidas por Oscar não foram de
fato vividas por ele, é porque, conforme seu próprio relato foram
contadas por sua avó. Elas demonstram, assim, serem ainda
fundamentais para a compreensão do presente, de maneira que, ao
atravessarem o tempo para compor a narrativa de cada sujeito
pertencente a um mesmo povo, evidenciam a multiplicação e a
continuidade como aspectos elementares da conformação de sua
memória social. Reiterando tal percepção, Oscar elucida:

La forma que yo pienso, la forma que yo siento, la forma en que entiendo,


forma parte de un pueblo, la forma que ese pueblo piensa, vive, sigue
existiendo. Entonces yo sé que el criterio que yo tengo no es un criterio
personal. Yo no puedo decir que es mi forma de pensar o que todo lo que
estoy diciendo, ese conocimiento, me pertenece. No me pertenece a mí. Ese
conocimiento le pertenece a todo un pueblo. (MORENO).

Por meio dessa configuração é tecida, assim, uma trama capaz


de fortalecer, simultaneamente, as memórias e as identidades
mapuche em um necessário processo de resistência diante do
contexto de negação e inferiorização ao qual seus sujeitos foram
historicamente submetidos. É nesse sentido que Oscar diz que “lo
que no pudieron matar los winka fue la memoria de nuestro
pueblo, lo que no pudieron matar ellos fue la cultura de nuestro
pueblo”. A continuidade se configura, desse modo, como elemento
essencial para a sustentação de suas memórias à medida que
ultrapassa a temporalidade dos corpos, ainda que a participação de
cada sujeito seja notavelmente significativa nesse processo.
Nessa mesma direção, Deolinda comenta sobre os mapuche
que atualmente não se reconhecem como tal, mas que ainda assim
trazem em seus nomes, corpos e ações, elementos que os
caracterizam dessa maneira:

[…] hay muchos mapuche que no se reconocen como mapuche. Sin


embargo, todos ven los rasgos, el apellido, las costumbres que tenés. Viste
que la mal llamada Campaña del Desierto como que quisieron eliminar todo:
la cultura, la espiritualidad, toda la cosmovisión mapuche. Pero se ve que en
algún momento, algunos abuelitos... como que lo guardaron, pero a la vez

182
lo iban transmitiendo en el quehacer diario. Cómo hacer una ceremonia,
cómo comíamos, la palabra, la voz, o sea, que circule. Muchas costumbres
que no se perdieron, muchas veces el andar descalzos... ¿Viste que los
mapuche como que es muy común que anden descalzos? O sea, cosas que
son muy nuestras y no se perdieron. (BUENULEO, D.).

É interessante observar no relato de Deolinda Buenuleo uma


sutil continuidade dessa cultura originária através de práticas e
narrativas cotidianas, ainda que a conformação de suas memórias
estejam historicamente inseridas em um contexto de colonização,
inferiorização e negação. Isso é possível devido à própria natureza
comunicativa da cultura, tanto quanto às particularidades culturais
da comunicação no contexto mapuche. Nesse mesmo sentido,
Oscar relata também a experiência que viveu com sua família:

[...] gracias a la historia de mi mamá, la historia de la familia, uno de chiquito


empezó a los 8 años, 7 años a saber que nosotros éramos diferentes, y que
veníamos de otra historia. Y que también los padres, los abuelos, enseñan por
las cosas que hacen. Muchos hábitos, cosas que nosotros hacemos son mapuche,
pero no porque nos decían que era mapuche, sino porque en una familia
mapuche se enseña y es una lógica mapuche cómo hacer las cosas. (MORENO).

Dessa forma, as práticas e as narrativas cotidianas promovem


então, mesmo que de forma despretensiosa, uma articulação de
suas memórias através do tempo e dos sujeitos, de modo que a
continuidade se apresenta como importante elemento em um
processo de resistência de suas identidades. Isso acontece por
estarem - memória e identidade - uma atrelada à outra. Elas se
articulam, então, sob uma lógica de multiplicação e movimento de
forma conjunta e complementar nos processos comunicativos,
entre os sujeitos.
No contexto de elaboração da proposta de uma “comunicación
con identidad” para ser agregada à LSCA, esse aspecto se reflete
nitidamente no processo de concepção do projeto. Segundo o relato
de Oscar, “a nosotros nos interesaba dejar la propuesta que
nosotros venimos elaborando a través de lo años de comunicación
y que eso pueda servir para otros medios de comunicación en todo

183
el país”. Isso significa que antes mesmo da participação dos povos
originários na concepção da LSCA já havia um projeto próprio de
comunicação entre os comunicadores mapuche, pensado pelo viés
da continuidade. O próprio Wall Kintun, aliás, é visto por Oscar
como parte desse projeto prévio de comunicação, ao mesmo tempo
em que é pretendido como uma ferramenta que atravesse o tempo
para além dos sujeitos que hoje o conformam:

Nosotros miramos al canal a cincuenta, cien años. No lo miramos para diez años,
veinte años. Nosotros miramos al canal para que a largo plazo exista. Y no
solamente el canal, o sea, el canal es parte de un proyecto de comunicación. El
proyecto de comunicación mapuche es mucho más amplio. (MORENO).

Nesse sentido, se o canal é visto como parte de um projeto de


comunicação muito mais amplo e, logo, não se limita àqueles que o
integram hoje, é possível afirmar então que o propósito de sua
existência, da perspectiva desses mesmos sujeitos, está atrelado ao
aspecto da continuidade da própria memória social mapuche que
discutimos até aqui. Estamos falando, portanto, de um meio de
comunicação inserido em todo o contexto cultural, histórico e social
mapuche, que carrega consigo as dinâmicas próprias desse
universo. Dessa forma, podemos compreender o Wall Kintun como
parte de uma concepção de comunicação inserida, por sua vez, em
um “projeto de vida” maior, a partir do qual cada passo dado é
pensado na estruturação desse meio de comunicação. Em outras
palavras, os aspectos culturais próprios dos mapuche são como um
reflexo permanente na construção da emissora, de maneira que não
se percam de vista sua cultura e filosofia originárias.

Avkin – nosotros sí tenemos voz

Porque hoy por hoy se dice: “Los pueblos indígenas no tienen voz, hoy
hablan los sin voz”. Y nosotros decimos: Nosotros sí tenemos voz. Lo que no
teníamos era la posibilidad de darnos a conocer o que la gente escuche o vea
nuestra voz, pero nosotros sí tenemos voz. Nosotros no necesitamos que
nadie hable por nosotros. Nosotros sí tenemos cosas para decir, sí que
tenemos cosas para comunicar. (MORENO).

184
Esta fala de Oscar nos leva a uma parte fundamental de toda a
história do Wall Kintun: a urgência de falar com a própria voz tal
qual a emergência de ser escutado. No contexto geral do canal, tal
aspecto surge claramente como a própria razão de sua existência,
mas também nas relações que compõem e compuseram todo o seu
processo de construção.
Antes de nos debruçarmos sobre esse ponto específico da
trajetória da emissora, no entanto, é necessário destacar que,
evidentemente, anos antes de sua criação, durante a própria
elaboração da LSCA, as dinâmicas em torno dessa questão
fundamentavam e permeavam também o desenvolvimento desse
processo. Isso porque, se por um lado a criação da nova
regulamentação foi resultado de uma demanda de inúmeros
grupos e organizações da sociedade civil sobre o acesso legal a
meios próprios de comunicação social, por outro, a inserção dos
pontos correspondentes, especificamente aos povos originários, só
aconteceu cinco anos após sua primeira elaboração e um ano depois
de sua inserção à agenda de prioridades do governo nacional.
Dessa forma, a inclusão dos povos originários, enquanto sujeitos de
direito à comunicação, tal qual os demais grupos da sociedade civil
– considerando, porém, suas particularidades enquanto população
indígena –, só se efetivou, então, quando grupos de comunicadores
indígenas tiveram acesso ao projeto e identificaram a ausência de
pontos que os contemplassem, elaborando, assim, a proposta de
uma “comunicación con identidad”. Conforme nos lembra Oscar,

Se empezó a generar una discusión, un debate a nivel nacional donde se


involucraba las Abuelas de Plaza de Mayo, los organismos de derechos
humanos, la iglesia católica, todos empezaron a hablar y debatir cómo sería la
ley. Pero no los pueblos indígenas. O sea, los pueblos indígenas como que
siempre fueron los últimos, siempre fueron los negados de la historia.
(MORENO).

Oscar explica e contextualiza a ausência dos povos originários


em quase toda a construção da LSCA através da histórica exclusão
dessa população da participação política no contexto argentino, de

185
maneira geral. Nessa mesma direção, vale lembrar ainda que
semelhante distanciamento, também acerca do processo de
elaboração da LSCA, foi evidenciado na experiência relatada por
Deolinda e Salvador, ao contarem que ambos só tiveram
conhecimento acerca da regulamentação tempos após a nomeação
da comunidade Buenuleo como titular legal da primeira emissora
televisiva de povos originários no país.
Por outro lado, é interessante observar que ainda que eles não
estivessem envolvidos e não tivessem informações sobre as
políticas comunicacionais que lhes diziam respeito, enquanto
pertencentes à população indígena na Argentina, a necessidade de
ter um meio próprio de comunicação social já se mostrava urgente,
diante do contexto de conflitos territoriais que viviam as
comunidades mapuche da região. Sobre isso, Deolinda relata que
“para poder difundir a toda la gente lo que estaba pasando, los
conflictos que tenían los Mapuche” a criação de uma rádio se fazia
crucial, pois “[…] no salía a la luz... Era como que siempre
estábamos en una pelea constante por la lucha y resulta que nadie
escuchaba, entonces salta la idea de una radio”.
É nesse contexto, então, que um conselheiro do CODECI
(Consejo de Desarrollo de Comunidades Indígenas) apresenta à
comunidade Buenuleo a possibilidade de possuírem seu próprio
canal televisivo e, assim, através dele, transmitirem e divulgarem o
que julgassem necessário, enquanto povos originários. “Entonces
ahí la comunidad acepta por estar de la personería jurídica para
que se baje un medio de comunicación para que podamos
difundir”, relata Deolinda.
Dessa forma, podemos compreender que a expectativa daqueles
que seriam os responsáveis legais da emissora era de que esta tivesse,
em primeiro lugar, a função de amplificação e disseminação de suas
perspectivas acerca do contexto em que viviam. Ou seja, ao aceitar a
proposta do Estado, essa comunidade projetava o Wall Kintun, desde
o princípio, como uma ferramenta através da qual seus membros
pudessem falar, por meio de suas próprias vozes. Assim, é
interessante observar de que maneira essa ferramenta de

186
comunicação é utilizada atualmente por seus integrantes, em um
contexto de amadurecimento e consolidação do canal.
O Wall Kintun, de maneira geral, significa a possibilidade de
mostrar à sociedade sua particularidade, enquanto meio de
comunicação mapuche, assim como a possibilidade da realização
de uma comunicação feita por sujeitos originários “que podían usar
cámaras, que podían editar, que podían presentar noticias, que
podían escribir, que podían también hacer comunicación al igual
que otros periodistas, que otros medios” (MORENO).
Uma outra maneira encontrada de se explicitar, a partir de
suas perspectivas, os problemas que enfrentavam na
implementação do Wall Kintun, foi através da comunicação com as
próprias comunidades mapuche locais:

[…] empezamos a ir a las comunidades Quijada, los Tacul Cheuque, a la


Ranquehue., y después a algunas organizaciones, a la Ruka, a diferentes
lugares contando. Después hicimos un parlamento acá contando a todas las
comunidades que pudimos, contando lo que había pasado […].
(BUENULEO, D.).

Paralelamente, é interessante observar esse processo, ainda


que a intenção inicial dos integrantes do Wall Kintun fosse explicar
a situação àqueles mapuche que não participavam da realização do
canal. Segundo as narrativas presentes nesta pesquisa, o que se
traçou com esse contato foi um diálogo entre os grupos. Isso
significa que, ao mesmo tempo, foi aberto um espaço para que os
integrantes dessas outras comunidades pudessem também falar:
“Por un lado eso, empezamos a hablar con la gente, empezamos a
discutir y a plantear. Y la gente nos empezaba a hablar a nosotros,
y a acompañar pero también a decirnos cosas de como teníamos
que ir nosotros”, conta Oscar.
Esse aspecto vai de encontro à compreensão da emissora
enquanto espaço de fala para os mapuche evidenciada, por
exemplo, no comentário de Salvador quando este afirma que o
canal “está abierto para quien quiera expresar sus cosas”, ao se
referir justamente à aproximação gradativa das comunidades

187
mapuche locais com o Wall Kintun. Nesse mesmo sentido, Oscar
Moreno projeta também a amplificação dessa participação como
um dos propósitos futuros para a emissora:

La idea es en algún momento empezar a formar gente mapuche que genere


contenidos propios. La idea es en algún momento que comunidades
mapuche, organizaciones mapuche de Neuquén, de Río Negro, de Chubut,
empiecen a ellos armar programas mapuche de acuerdo a su próprio
interese y que eso empiece a reflejarse dentro del canal. (MORENO).

Segundo Oscar, a partir desse envolvimento e,


consequentemente, da variedade de “vozes, posturas e formas de
compreensão do mundo” transmitida pelas diversas histórias
contadas por tais sujeitos através dessa ferramenta audiovisual, a
pluralidade do próprio povo Mapuche seria refletida no Wall Kintun.

[…] lo importante ahí es el proyecto de comunicación del pueblo Mapuche,


y que en algún momento el pueblo Mapuche tiene que hacerse parte de eso,
involucrarse, meterse adentro de ese proyecto y reflejarse en ese proyecto. Y
que todo lo que la gente vea, vea ese pueblo, y que ese pueblo todo lo que
ve ahí en la televisión es lo que ese pueblo quiere contar. (MORENO).

Considerando, então, o contexto histórico, político e social em


que se insere tal necessidade, onde “falar é antes de tudo deter o
poder de falar” (CLASTRES, 2014) e que, através da perspectiva
dominante, os mapuche são apresentados por olhares exteriores,

Hay que abrir espacio, hay que generar espacios, hay que meter en la
sociedad el tema mapuche. Pero nosotros meter a los mapuche, no que ellos
como pasa ahora con los grandes medios de comunicación, como pasa con
el gobierno nacional, que habla de los mapuche pero el lado de la
criminalización, que habla de los mapuche planteando que nosotros somos
terroristas, que habla de los mapuche tratando de descalificar y tratando de
justificar todas las represiones, el encarcelamiento y la negación y el racismo
que existe. Eso es lo que pasa por un lado, digamos. Nosotros decimos que
los espacios los tenemos que generar nosotros, empezar a hablar y empezar
a diversificar. (MORENO).

188
De maneira geral, é possível vislumbrar, portanto, o Wall
Kintun, assim como a experiência de seus integrantes ao longo de
sua construção, inevitavelmente atrelado à emergência de uma
autonomia comunicativa, por meio da qual é reivindicada a
participação ativa nesse processo, para que se possa falar de fato
com a própria voz .

Referências

ARUGUETE, Natalia; KOZINER, Nadia. La cobertura mediática


del “7D” en la prensa argentina. Aplicación de encuadres
noticiosos genéricos a los principales diarios nacionales. Anuario
Electrónico de Estudios en Comunicación Social “Disertaciones”,
v.7, n.1, p. 129-165, jan-jun 2014.
ARGENTINA. Ley 26522 Servicios de Comunicación Audiovisual.
1a ed. Buenos Aires: Boletín Oficial de la República Argentina,
2010.
BECERRA, Martín. Muda, tudo muda: Sistema de mídias e
regulação na argentina contemporânea. RCJ – Revista Culturas
Jurídicas, v. 2, n. 4, p 146-167, 2015a.
BECERRA, Martín. De la concentración a la convergencia:
Políticas de medios en Argentina y America Latina. 1a ed. Ciudad
Autónoma de Buenos Aires: Paidós, 2015b.
BUENULEO, Deolinda. Entrevista concedida em 18 de outubro de
2017.
BUENULEO, Salvador. Entrevista concedida em 25 de outubro de
2017.
CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado. Editora Cosac
Naify, 2014.
CÓRDOBA, Liliana. La Coalición por una radiodifusión
democrática: regeneración del espacio público y exercício de
ciudadania. Argumentos. Revista de Crítica Social, 13, p. 133-157,
outubro 2011.

189
GUTIÉRREZ RÍOS, Felipe. We Aukiñ Zugu: Historia de los medios
de comunicación mapuche. 1a ed. Santiago de Chile: Editorial
Quimantú, 2014.
MARIMÁN, Pablo. Los Mapuche antes de la conquista militar
chileno-argentina. In: MARIMÁN, Pablo et al. ¡Escucha, winka!
Cuatro ensayos de Historia Nacional Mapuche y un epílogo sobre
el futuro. Santiago de Chile: Ediciones LOM, 2006, p. 53-127.
MILLÁNEN, Jose. La sociedad Mapuche prehispánica: Kimun,
Arqueologia e Etnohistoria. In: MARIMÁN, Pablo et al. ¡Escucha,
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p. 17-52.
MORENO, Oscar. Entrevista concedida em 20 de outubro de 2017.
TOLEDO LLANCAQUEO, Victor. La memoria de las tierras
antiguas tocando a las puertas del derecho: Políticas de la
memoria mapuche en la transición chilena. Revista de Historia
Social y de las Mentalidades, Universidad de Santiago de Chile, v.
1, n. 11, p. 67-85, 2007.
UNGARO, Estela Rocha de. Olhares e narrativas, do meio ao
redor: Wall Kintun TV e a trajetória do primeiro canal televisivo de
povos originários na Argentina. 2018. Dissertação (Mestrado
Interdisciplinar em Estudos Latino-Americanos) - Universidade
Federal da Integração Latino-Americana, Foz do Iguaçu, 2018.
YANIELLO, Florencia. Descolonizando la palabra: los medios de
comunicación del pueblo Mapuche en Puelmapu. 1a ed. La Plata:
Ediciones de la Caracola, 2014.

190
Encontros nas margens:
percursos urbanos, corpo e desejo na filmografia de
Marcelo Caetano1

Fábio Allan Mendes Ramalho2

Resumo: Neste texto, analiso como os locais públicos e as zonas liminares


desempenham um papel central nos filmes Bailão (2009), Na sua companhia
(2011) e Corpo elétrico (2017), dirigidos por Marcelo Caetano. O que está
em jogo nestas obras é a própria possibilidade de experienciar espaços
urbanos como lugares de encontro afetivo e desejo erótico. Mediante um
investimento em relações e itinerários à margem, traçamos uma tensão e
também uma ambivalência recorrente em relação às cidades que os
personagens habitam. A forma cinematográfica destaca a cidade como
topografia imaginada e, ainda, como um plano de percepção composto
por várias modulações entre desconexão e pertencimento, disciplina e
prazer, proximidade e exclusão.
Palavras-chave: Cidade. Corpo. Sexualidade. Cinema brasileiro. Marcelo Caetano.

Modernidade, desejo e perambulação

Sendo zonas de entrecruzamento e de passagem, de exploração


sensível e de perambulação, de heterogeneidade e de choque, as
cidades constituem o lugar privilegiado no qual a imaginação
cinematográfica vai recorrentemente demarcar zonas de contato,
pontos para a instauração de encontros e enlaces. Neste texto, analiso

1Uma primeira versão desse texto foi publicada anteriormente na Revista


Maracanan, da UERJ, como parte do dossiê “A cidade e suas imagens”, edição
n.24, 2020.
2Docente do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Estudos Latino-

Americanos, leciona também no bacharelado em Cinema e Audiovisual e no Ciclo


Comum de Estudos da UNILA. Doutor em Comunicação pela UFPE, com ênfase
em estudos de cinema e cultura audiovisual.

191
um conjunto de filmes brasileiros contemporâneos que inscrevem no
centro de suas propostas a pergunta pela possibilidade de explorar os
espaços urbanos como lugares de encontros sexuais e amorosos,
cartografias desejantes e instâncias para articulação de sensibilidades
partilhadas. São eles Bailão (2009), Na sua companhia (2011) e Corpo
elétrico (2017), de Marcelo Caetano.3
Mediante um investimento afetivo em percursos alternativos,
dissidentes, as obras desse diretor traçam uma recorrente tensão
em torno das cidades e dos sujeitos que as habitam. Busco
apresentar de que maneira a forma cinematográfica desponta
nesses filmes como recurso para sublinhar os interstícios e
ambivalências que se estabelecem entre público e privado,
proximidade e exclusão, desconexão e pertencimento, disciplina e
prazer. Ao assumir uma abordagem interdisciplinar, o que busco
enfatizar a partir do cinema é ainda uma inflexão do conceito de
“margem” não apenas como condição social, econômica e
geográfica, mas também como campo de afirmação de
experiências, práticas e subjetividades que se estabelecem fora das
normas das sociedades contemporâneas. A urbe se torna, assim,
um território no qual ensaiar modos imaginativos de viver,
produzir relações e transformar a realidade.
A reflexão sobre as formas da experiência na modernidade
contribuiu para delimitar um escopo de questões voltadas para o
problema da vida nas cidades, gerando amplas discussões que não
poderiam ser resumidas sem que perdêssemos de vista a própria
história e complexidade desse pensamento. Não obstante, alguns
aspectos permitem apontar os traços daquilo que seria uma forma

3Deixarei de fora desse corpus o média-metragem Verona (2013), do mesmo


diretor, pois, se nele também existe a construção de um circuito de afetos e uma
centralidade do corpo e das relações homoafetivas, falta-lhe justamente a inscrição
do espaço urbano, que aqui nos interessa particularmente. Em Verona, a retirada
dos personagens para uma casa de campo constitui justamente o afastamento em
relação aos movimentos da cidade que poderiam impulsionar o pequeno grupo –
formado ora por três, ora por cinco homens – rumo a um “lá fora” capaz de
postular outras possibilidades e de multiplicar os encontros.

192
moderna de percorrer e habitar o espaço urbano. O trabalho de
Walter Benjamin nos indica um caminho, sobretudo em suas
análises a respeito de Paris como a cidade que condensa e
emblematiza as transformações sociais e urbanas que
transcorreram ao longo do século XIX e primeiras décadas do
século XX. Suas análises se inserem em um contexto no qual tais
questões vinham sendo colocadas desde perspectivas não raras
vezes conflitantes, que viam as dinâmicas urbanas e as multidões
de transeuntes ora com entusiasmo – entendendo-as como campo
fértil, repleto de possibilidades – ora com suspeita, apontando-as
como sintomas de uma sociedade cujo pretenso desenvolvimento
a impelia à constituição de um aglomerado irreconciliável consigo
mesmo – modo de vida de indivíduos entregues a uma coexistência
a um só tempo tumultuada e solitária.
Benjamin discutiu a intensificação de processos que
abrangiam desde as formas de transporte até as novas tecnologias;
das reconfigurações da força de trabalho e das ocupações que se
desenvolveram no meio urbano até os novos materiais usados para
erguer as edificações; da iluminação pública aos novos modos de
exposição e aos valores assumidos pela forma mercadoria; das
novas maneiras de apreender o tempo até as mudanças culturais e
psicológicas desencadeadas pela experiência da velocidade e do
novo. Tais transformações, bem como a multiplicidade de
estímulos delas decorrentes, teriam não apenas conduzido ao
surgimento de novas formas de vida e de organização em
sociedade, como também estendido seus efeitos à própria
percepção humana, alterando-a (BENJAMIN, 1985, p. 169).
Dispositivos de captação e disseminação de imagens como a
fotografia e o cinematógrafo tomaram parte nesta mudança
perceptiva, uma vez que radicalizaram a mediação tecnológica na
apreensão dos fenômenos sensíveis, operaram uma passagem do
valor de culto ao valor de exposição na arte e instauraram um
princípio de serialidade na produção, tornando em certa medida
obsoletas as noções de autenticidade e unicidade das obras. Além
disso, eles manifestaram a capacidade de conceder ao público uma

193
imagem das massas e da banalidade cotidiana, da amplitude e dos
ritmos da vida moderna.
Nas palavras de Giuliana Bruno (2006, p. 23), o “filme é um
produto da modernidade, a era da metrópole, e expressou um
ponto de vista urbano desde sua origem”. Cinema e espaço urbano
se encontram, assim, agrupados sob o signo da modernidade, em
um laço pensado ainda a partir da analogia entre o trem e a câmera,
sugerida dentre outras razões pelo fato de ambos combinarem
movimentos circulares e longitudinais (AUMONT, 2004, p. 53). Tal
associação, no entanto, vai muito além dos mecanismos de
funcionamento das máquinas ou de seu protagonismo, no que diz
respeito tanto à modificação das paisagens quanto à reconfiguração
da visualidade através das imagens mecânicas. O aspecto mais
relevante aqui é o fato de que ambos, dispositivo cinematográfico
e topografia urbana, abastecem a imaginação pública com todo um
repertório cultural, técnico e perceptivo para pensar os modos de
existência emergentes e abrir caminho para a sua inserção no
mundo visível.
Neste sentido, as observações de Jacques Aumont (2004, p.51)
– segundo o qual o cinema surge no momento de passagem do
“momento pregnante” para o “momento qualquer” – não parecem
tão distantes da convicção que, segundo Benjamin, teria sido
manifestada por Charles Baudelaire: a de que é ao indivíduo
comum que cabe o lugar do herói moderno, não tanto porque ele é
um herói, mas porque desempenha este papel4. Tal observação nos
sugere algumas implicações: primeiramente, o fato de que a
irrupção da vida das pessoas comuns como matéria de interesse
estético amplia os domínios da arte, possibilitando o
estabelecimento de novos vínculos entre a experiência e as formas
culturais em circulação. Em segundo lugar, situa em outra
perspectiva o olhar que a arte lança sobre os habitantes das cidades,

4“Pois o herói moderno não é herói – apenas representa o papel do herói. A


modernidade heroica se revela como uma tragédia onde o papel do herói está
disponível” (BENJAMIN, 1989, p.94).

194
questão que repercute na posição que os personagens e o espaço
urbano assumem nas obras. Ainda, configura um campo de
visibilidade sem precedentes, pautado por um crescente interesse
pelas formas de vida à margem e alguns de seus tipos
característicos: o assalariado, o trapeiro, o apache, a prostituta, o
caixeiro viajante, dentre outros. Por fim, a pergunta sobre o lugar
do herói na modernidade demarca no cotidiano um potencial de
encenação capaz de reconfigurar as maneiras pelas quais o
leitor/espectador percebe a si próprio, aos outros e ao seu entorno.
Para continuarmos com as observações de Jacques Aumont: a
já mencionada analogia entre trem e cinema vai mais longe e se
estende ao fato de que ambos “transportam o sujeito para a ficção,
para o imaginário, para o sonho e também para outro espaço onde
as inibições são, parcialmente, sanadas” (AUMONT, 2004, p. 53).
Este universo de ficção e sonho se encontra replicado na cidade dita
real, não tanto devido à tendência a disseminar os discursos
pautados pelo anseio por uma cidade idealizada, imaginária, mas
porque sonho e fantasia, sendo partes do desejo que o transeunte
investe no seu percurso, emprestam uma forma às aspirações que
o impelem a empreender suas buscas:

Conforme as belas análises de Walter Benjamin, se o homem habita uma


cidade real, ele é, ao mesmo tempo, habitado por uma cidade de sonho. A
realidade onírica remete aqui ao sonho coletivo, ao sonho do coletivo, ao
desejo do corpo coletivo, suas utopias e esperanças abortadas, as miragens e
fantasmagorias que o assediam. Os trajetos reais dos personagens na cidade
remetem aos trajetos do sonho coletivo, como se houvesse duas cidades
superpostas, uma real, outra imaginária, e a apologia de um trânsito
metódico entre elas (PÁL PELBART, 2000, p. 43)

O caráter diferencial e a intensa mobilidade manifestados pela


cidade real impedem sua fixação. As imagens e discursos operam
uma espécie de corte em seu fluxo, não apenas porque isolam um
instante, mas porque decorrem de um recorte sempre parcial e
precário, alçando ao campo do visível o fragmento de uma rede
mais complexa que é inapreensível em sua totalidade. Esse desejo

195
de representação é mobilizado pelos mecanismos de poder, cujos
procedimentos têm como fim o controle sobre tal multiplicidade
dispersa, propiciando uma extensão dos seus domínios. Não
obstante, a insuficiência ou, em última instância, o fracasso
resultante de qualquer tentativa de representação retroalimentam
o movimento que os discursos pretendem fixar, garantindo a
abertura da cidade como território nunca inteiramente circunscrito.
Assim, o controle e a imaginação operam, ambos, no visível, mas
com ao menos uma grande diferença que os distingue: o primeiro
está amparado na ação restritiva sobre a multiplicidade urbana
com vistas ao poder, enquanto a conformação de um repertório
compartilhado abre caminho para pensar a cidade para além dos
limites que a circunscrevem5. Nesta segunda perspectiva, tudo que
está fora de campo remete aos possíveis de uma cidade (PÁL
PELBART, 2000, p. 48-49).
Se é verdade que “perder-se na cidade” implica a aquisição de
um saber (BENJAMIN, 1987, p. 73), tal aprendizado repousa em
grande parte sobre a ação de traçar cartografias capazes de
subverter os trajetos funcionais – previstos, programados – dos
espaços urbanos para apreender suas configurações mais
excêntricas, observar seus tipos, desfrutar de um anonimato apenas
possível porque toda a heterogeneidade e a dispersão do território
impedem o controle total sobre o mesmo. A cidade moderna, com
suas áreas limítrofes e zonas de penumbra, sua agitação e
impermanência, seria aquela capaz de permitir uma maior
liberdade de experimentação, na medida em que propicia
múltiplas oportunidades de exposição e interação e, ao mesmo
tempo, dificulta as operações de classificação e/ou rastreamento
dos seus habitantes.
A possibilidade de diluir-se na massa e, ao mesmo tempo,
preservar certo grau de privacidade configura o tipo de arranjo
sobre o qual se fundam e podem ser pensadas duas formas

5Um “duplo fenônemo”, como diria Néstor Perlongher (1997, p. 71): “selvageria
da desordem cotidiana; assepsia da ordem discursiva”.

196
modernas de habitar a cidade: a do flâneur e a do detetive. O
primeiro seria aquele que se sente suficientemente à vontade nas
ruas, percorrendo-as como se estas fossem um interior
(BENJAMIN, 1989, p. 192), explorando a cidade como um labirinto
(Idem, p. 203) e fazendo, enfim, uma espécie de “botânica do
asfalto” (Idem, p. 34), na medida em que se dedica a colher nas
fisionomias e nas paisagens a inspiração e o estado de espírito que
o conduzem a um modo peculiar de perceber o seu entorno – algo
como uma apreensão estética do espaço e da época6. O detetive, por
sua vez, seria aquele que, apoiando-se também na habilidade da
observação, mostra-se capaz de recompor, a partir dos vestígios, a
trajetória de um anônimo a fim de recobrar-lhe a identidade, à qual
será atribuída a responsabilidade pelos atos criminosos. Como
argumenta Ricardo Piglia (2006, p. 81), o detetive configura um tipo
muito especial e sofisticado de leitor: aquele que “se interna no
mundo da cultura e age como um especialista”.
O fato de que a cidade seja “o lugar onde a identidade se
perde” (PIGLIA, 2006, p. 78) constitui simultaneamente uma
oportunidade e uma ameaça, e é em grande parte em resposta a
isso que surgem as duas figuras anteriormente mencionadas.
Ambas sustentam uma habilidade aprendida que lhes permite
atravessar o interior e o exterior, a multidão e o isolamento,
configurando nestes trânsitos um ponto que se situa entre a
curiosidade e a distração, a imersão e o distanciamento, a
segurança e o perigo, o tédio e o entusiasmo. Na aspiração a essa
instável conciliação entre zonas e qualidades conflitantes residiria
um desejo de modernidade, a forma de um engajamento cuja
configuração está historicamente situada.
Que essa modernidade desejada nem sempre seja vivida tal
como descrita em sua cidade-protótipo, suposta capital de todo um
século, não chega a ser uma novidade. Em primeiro lugar porque, no

6De fato, dentre as habilidades que configuram a experiência da flânerie destaca-se


a possibilidade de alcançar um tipo de observação distraída que se distancie tanto
da indiferença quanto do deslumbramento. Este último seria mais comumente
associado à figura do “basbaque”.

197
que diz respeito às possibilidades de apagar os rastros e conexões que
permitiriam circunscrever para determinadas existências uma posição
ou lugar fixo em meio à multidão, é importante observar que elas não
se restringem às condições específicas encontradas em Paris ou em
qualquer outra metrópole moderna da época analisada por Benjamin.
De fato, poderíamos mesmo argumentar que, em cidades nas quais a
desordem vem minar de modo mais incisivo as iniciativas
institucionais estabelecidas com vistas a controlar o espaço urbano,
essa ineficácia vai favorecer a proliferação de formas de vida tidas
como desviantes. Em segundo lugar, porque a marginalidade esteve
sempre presente nas reflexões sobre os diferentes modos de habitar o
espaço urbano. Se artistas, teóricos e cronistas da vida nas metrópoles
com frequência lançaram mão das potencialidades do espaço urbano
em sua abertura para o inesperado, podemos dizer que eles estiveram
também desde cedo interessados em tensionar os limites desse
mesmo espaço, pensar suas interdições e pontos cegos, de modo que
as áreas limítrofes e as vidas que se conduzem nas margens assumem
um lugar decisivo na configuração da cidade como lugar da
experiência. Assim, se é verdade que o pensamento sobre a
modernidade em certo sentido apagou os seus outros7, é notável
também que as práticas e sujeitos marginais exerceram grande
atratividade, chegando mesmo a fornecer os elementos para o
aprendizado de múltiplas maneiras de percorrer a cidade.
A persistência da margem se faz perceber, então, mesmo nos
contextos mais favoráveis à errância. Na Paris do século XIX, as
galerias constituíam “um meio-termo entre a rua e o interior da
casa” (BENJAMIN, 1989, p. 35) e, por isso mesmo, forneciam as
condições para que a flânerie se desenvolvesse “em toda sua
plenitude” (Idem, p. 34). Não obstante, esta topografia estaria
incompleta se desconsiderássemos o já mencionado interesse, tão
presente em Baudelaire, por todos aqueles que ocupam a “periferia

7Ver, a este respeito, as considerações de John Kraniauskas (1997) sobre a quase


completa omissão, nas análises de Benjamin, do contexto colonial que seria parte
de uma “dimensão internacional” do capitalismo.

198
da sociedade e da cidade grande” (Idem, p. 78) – o criminoso, o
conspirador, o apache – ou se ignorássemos a simetria entre o poeta
e o trapeiro valorizada em sua obra (Idem, p. 77-79). Seria preciso
igualmente lembrar a importância que assume, para o pensamento
de Benjamin, a prostituta e sua relação radical com o mercado.
Por sua vez, a evidência da margem se faz presente também
nos contextos em que os processos de modernização ocorreram sob
as circunstâncias de uma relativa defasagem ou descompasso em
relação às cidades europeias, sendo que estas atuariam como
centros cujos influxos viriam catalisar as transformações de uma
“modernidade periférica”. Partindo de um tempo e de um espaço
bastante específicos – a Buenos Aires de 1920 e 1930 –, Beatriz Sarlo
(2007) observa que, na literatura, a margem passa a ocupar uma
posição de maior evidência:

O cenário das bordas já não é o lugar literário dos Outros considerados como
pura alienação, como ameaça à ordem social, à moral estabelecida, à pureza
do sangue, aos costumes tradicionais; tampouco se trata somente dos Outros
a que é preciso compreender e redimir. São Outros que podem configurar
um nós com o eu literário de poetas e intelectuais; são Outros próximos,
quando não um eu mesmo (SARLO, 2007, p. 180, tradução nossa)

Desse modo, podemos afirmar que não apenas entre as


cidades europeias e as metrópoles periféricas, mas também no
interior de cada uma delas, ocorre um constante movimento de
mescla e interpenetração. O que implica dizer que não há algo
como uma experiência incontaminada da cidade: o
enfraquecimento dessas polarizações é parte constitutiva do
moderno. Dito isso, o que interessa sobretudo aos objetivos deste
texto e das obras que pretendo analisar não é exatamente a
configuração de tipos marginais que ocupariam a cidade, nem a
demarcação de posições fixas em torno de um binômio centro-
periferia, mas os aspectos que poderiam apontar para algo como
uma margem ou liminaridade presente nas formas e movimentos
da vida urbana. É nesse sentido que podemos encontrar, na
produção audiovisual de Marcelo Caetano, uma perspectiva

199
contemporânea particularmente interessada em traçar dinâmicas
de exploração afetiva da cidade a fim de situar, na própria rede de
relações que os filmes imaginam e mapeiam, a configuração de
zonas marginalizadas da experiência.

“No meio desse desbunde deve haver um lugar para nós”

No primeiro plano de Bailão (2009)8, um globo prateado


começa a girar, refletindo uma miríade de luzes e tendo ao fundo o
piso quadriculado do salão. Em seguida, vemos uma fachada
filmada a partir da outra calçada, entrecortada por carros em
movimento e animada pelos ruídos da rua. É o ABC Bailão,
tradicional casa noturna destinada majoritariamente a um público
masculino com faixa etária que percebemos acima da média das
baladas paulistanas. Uma sucessão de planos da pista de dança,
que agora já começa a ficar povoada, mostra-nos rostos com traços
marcados pelo tempo, cabeças calvas e cabelos grisalhos. Na trilha
sonora escutamos um bolero. Em seguida, vemos planos de um
homem caminhando pelas ruas durante o dia. A câmera o
acompanha, seguindo-o por trás. O curta segue uma estrutura
clássica: planos com imagens dos entrevistados atravessando
distintos espaços urbanos são acompanhados por suas falas em voz
over. Os relatos discorrem sobre certa temporalidade do desejo e
suas manifestações, bem como sobre as diferentes táticas de
efetivação do encontro sexual.
Há uma profusão de calçadas e fachadas que configuram acessos
a espaços cifrados, destinados a práticas desviantes. Bailão traça no
espaço fílmico uma arquitetura do trânsito e do desejo, para
parafrasearmos Giuliana Bruno (2006), que é feita de muitos limiares,
zonas de passagem, negociações e sobretudo gradações.9 No tipo de
dinâmica mapeada pelo curta de Marcelo Caetano, o sexo não se

8Disponível na íntegra em: https://vimeo.com/46066663. Acesso em 27 nov. 2019.


9A liminaridade, para Bruno (2006, p. 24), “corrói oposições tais como
imobilidade-mobilidade, dentro-fora, privado-público, moradia-viagem”.

200
define por um ato que acontece ou não acontece, simplesmente: ele
encontra múltiplas formas e graus de satisfação mediante a prática do
cruising, entendido como conjunto de formas de aproximação e
interação sexual em contextos públicos e semipúblicos.
O interesse do filme por zonas liminares incide especialmente
sobre a configuração do cinema pornô: a cortina que separa o
corredor e o espaço interno em que são exibidos os filmes reabilita o
imaginário longamente alimentado acerca da constituição do espaço
da sala escura como dispositivo de suspensão da realidade cotidiana.
A cortina vermelha, limiar que o frequentador atravessa, demarca a
possibilidade de um atravessamento entre o dentro e o fora que é
emblemática da maneira como os personagens negociam os seus
prazeres. O estabelecimento de um corte entre interior e exterior é
manejado para ativar a promessa não apenas da consumação de um
intercurso sexual, mas das múltiplas formas de satisfação – ainda
que não sem poucos conflitos – do desejo de olhar. As práticas
sexuais por meio das quais estes homens conseguiram, ao longo do
tempo10, dar vazão às suas inclinações indizíveis ocupam uma
posição conflitiva em relação à performatividade heteronormativa
que – conforme depreendemos de seus relatos – orientou em grande
medida a construção de suas identidades sociais. Afinal, ao mesmo
tempo em que suscita um senso de possibilidade que, em seu limite,
leva à reativação de certas “esperanças utópicas”, a prática do
cruising pode também, de acordo com José Esteban Muñoz (2009, p.
34), ser remetida a “economias libidinais elitistas, excludentes e
ferozmente hierarquizadas”.
De fato, muitos dos encontros que a configuração urbana
assumida pelos grandes centros potencializa estão marcados pela
efemeridade e pelo imediatismo, aspectos que atribuem certo grau
de opacidade às trajetórias singulares, preservando ou tornando
ilegíveis as conexões que permitiriam traçar a cadeia de vínculos e
funções que o indivíduo mantém e desempenha perante as

Os discursos se voltam sobretudo para o passado, assinalando um componente


10

geracional indubitável para os acontecimentos rememorados.

201
diversas ordens pelas quais transita: as ordens social, econômica,
profissional, familiar, sexual. Sob este ponto de vista, a
instabilidade e a impermanência de tais cruzamentos deixam de
indicar uma mera negatividade – sintoma da solidão e do
empobrecimento da experiência nos grandes centros – para
configurar linhas de fuga, na medida em que criam a possibilidade
de abertura para uma experimentação mais livre, um tipo de
dinâmica ou jogo capaz de colocar em suspenso, mesmo que
parcialmente, as inibições e ancoragens fornecidas pelas
identificações prévias.
As vozes dos personagens demarcam uma cumplicidade e ao
mesmo tempo um persistente conflito entre biografia e desejo: a
narração de um fragmento de suas vidas se organiza como o relato
de processos a partir dos quais se coloca em jogo muito mais do
que a possibilidade da relação sexual. A sexualidade emerge dessa
falas numa acepção forte, como via para constituir subjetividades e
grupos, recriar formas de pertencimento e habitar a cidade. É assim
que se configura o bailão, portanto: como manifestação material –
espacial e concreta – de uma comunidade possível, na medida em
que atualiza, a partir das margens, um imaginário urbano onde é
possível ser outro, ser anônimo, ser ninguém ou qualquer um.
Um personagem de Bailão afirma: “comecei a perceber que não
era eu sozinho no mundo que tinha interesse por homem”. A
comunidade homossexual que floresce na clandestinidade se funda
no reconhecimento e, não raras vezes, no pacto de manutenção de
uma duplicidade dos códigos de sociabilidade. O cruising
demanda, assim, um tipo específico de leitura da cidade, que, nesse
caso, é de ordem muito distinta daquela empreendida pelo
“detetive”. Os adeptos da prática não leem o espaço urbano a partir
da norma e da identidade, e sim contra elas, numa constante busca
pelas brechas – nesse sentido, podemos dizer que empreendem
uma contraleitura. Um dos conflitos que atravessam os
depoimentos do curta é justamente o do desejo como delito.
Transpassar limites entre os corpos, ensaiar a reciprocidade sempre
incerta, é correr o risco do flagra, da resposta violenta, da punição.

202
Some-se ao rechaço intrínseco de sexualidades desviantes, tomadas
como anomalias, a incidência de formas de controle num contexto
de exacerbação dos discursos de saúde pública e de intensificação
dos estigmas. A prática do cruising se torna ela mesma, após a
emergência da pandemia de HIV/Aids, uma forma de
fantasmagoria (MUÑOZ, 2009), uma vez que instaura outro tipo de
laço entre trauma histórico e desejos coletivos – ou “desejo de um
corpo coletivo”, para retomar a ideia de Peter Pál Pelbart
anteriormente citada.
O curta de Marcelo Caetano encontra nas vozes que colhe ao
longo de sua duração a conformação de uma memória cultural que
dá testemunho de contradições enraizadas no cerne das
subjetividades homossexuais masculinas. Suas histórias trazem
inscritas, como contrapartida ou subtexto, não um “modelo”, algo
a que voltar nostalgicamente, mas uma série de perguntas
direcionadas ao presente do tempo fílmico, que é também o nosso
tempo como espectadores – tempo esse no qual vemos sucederem
intensas transformações na configuração das cidades e das suas
complexas cartografias. As inúmeras maneiras pelas quais o poder
da norma atravessa os corpos desemboca em considerações por
vezes bastante cruas a respeito dos modos pelos quais as
condicionantes sociais do desejo se manifestam em subjetividades
cindidas. Conforme afirma um dos personagens: “o meu desejo foi
ensinado a se manifestar somente em situações ligadas à
marginalidade”. A questão política tecida por essas vozes é uma
que se funda na ambivalência e na negociação. Ela se conecta a
posições de sujeito que operam pequenas “insurgências” ou
“rebeldias”, conforme expressa um dos homens, porém nem
sempre engendrando uma ruptura mais radical com a lógica
cisheteronormativa.
A promessa da cidade, para os homens entrevistados em
Bailão, é a de ofertar uma ampla gama de lugares onde seria
possível ensaiar a experimentação do corpo sem o peso de prestar
contas à identidade nem de corresponder à sua imagem social; sem
a obrigação de equivaler sempre, sem rasuras nem restos, a uma

203
ideia preconcebida de si mesmos. Fora, portanto, da família e do
mundo do trabalho. Talvez, por isso mesmo, a ênfase recaia
sobretudo na vida noturna das cidades como universo de
possibilidade, aventura, fuga dos marcos restritivos da
masculinidade. A noite é explicitamente vinculada ao feminino
como qualidade associada ao obscuro, ao indefinido, ao marginal,
em contraposição à claridade e à primazia da razão que regem o
dia, mais tradicionalmente associado ao tempo produtivo, à ordem
e à convenção.
Os depoimentos dão testemunho, enfim, de uma história de
interdições tanto diretas quanto internalizadas – como quando um
dos homens afirma que “a possibilidade de ter uma relação
vivendo juntos não existia” –, mas também das táticas individuais
e coletivas que emergem como resposta. Essas e outras passagens
do curta tornam mais pungente a cena final, uma imagem-síntese
para o trabalho coletivo levado a cabo ao longo de gerações: o filme
termina mais uma vez com um plano plongée do salão
quadriculado, iluminado pelas luzes coloridas do baile, mas dessa
vez ocupado por dois homens que dançam, assinalando essa tarefa
infindável, a de inventar formas possíveis de amar.
No curta seguinte do diretor, Na sua companhia (2011)11, a
abertura da noite como convite à perambulação é reencenada. A
movimentação noturna da cidade é vista da janela de um
apartamento, filmada primeiramente no que parece ser o plano-
ponto-de-vista de um dos personagens, depois já ao nível do solo,
como que liberando-se dessa perspectiva subjetiva para
acompanhar os fluxos, misturar-se entre os passantes, somar-se às
dinâmicas pouco legíveis de um entorno que se encontra, em
muitos momentos, esvaziado pela temporalidade peculiar da
madrugada. Em certo momento, chegamos a uma praça cheia de
pessoas interagindo entre si, silhuetas iluminadas apenas pela luz
artificial dos postes, quando então reencontramos, por fim, os dois
personagens que antes estavam deitados nus na cama.

11Disponível na íntegra em: https://vimeo.com/46047890. Acesso em 27 nov. 2019.

204
Descobrimos assim que eles também desceram, aderiram ao
chamado da cidade.
Se a experiência urbana se estabelece sobre um “saber
sentido”, amparado na apreensão das paisagens e dos percursos
como algo experimentado e vivido” (BENJAMIN, 1989, p. 186), ela
implica uma presença física que é capaz de absorver e processar
estímulos em uma escala intensiva. Tais variações de intensidade
decorrem, portanto, de um engajamento do corpo que o torna
capaz de capturar as oscilações de um mesmo ou de vários
ambientes. Temos, assim, a ideia de “plano de percepção”
(PERLONGHER, 1997, p.144) na qual se funda a interação entre os
corpos e a cidade. Como observa Néstor Perlongher:

Este perder-se na cidade, requisito de seu “conhecimento” exploratório, é


então intensivo. De que tipo de conhecimento se trata? Falta a clássica
distância/oposição entre o sujeito e o objeto. Quem se perde, perde o eu. Se
eu me perco… Errar é uma submersão nos odores e nos sabores, nas
sensações da cidade. O corpo que erra “conhece” com o seu deslocamento
(PERLONGHER, 1997, p. 143-144, tradução nossa)

Seguindo esse entendimento, é possível delinear uma dimensão


afetiva da experiência urbana, assentada sobre a noção de um saber
do corpo e operada a partir de múltiplos deslocamentos
impulsionados menos por um objetivo específico do que pelo próprio
prazer da errância. Essa experiência envolve uma relação complexa
que se estabelece entre o sujeito, a paisagem e a coletividade de
transeuntes e cuja consequência é a perda ou apagamento, mesmo que
temporário, da identidade. Com isso, a ênfase recai sobre um grau de
despersonalização presente em certos modos de experimentar a cidade.
Neles, o que se encontra em jogo não é tanto uma “personalidade”,
mas uma singularidade; não um sujeito unificado ou “eu” consciente
que processa e elabora todas as informações colhidas pelo ambiente,
mas um corpo que entra em relações com outros corpos. O corpo
presente seria aquele que é afetado mas que, ao mesmo tempo, afeta
o seu meio circundante de modo a apreendê-lo e transformá-lo,

205
instaurando com isso uma relação da qual todos os elementos
envolvidos resultam modificados.
Como dito anteriormente, em Bailão a alusão mais explicitamente
cinematográfica figura no curta a partir da importância histórica das
salas escuras para experimentações diversas em torno de práticas
sexuais dissidentes. Por seu turno, em Na sua companhia o cinema
reaparece como dispositivo que produz relações, mas dessa vez
mediante uma ênfase nos modos pelos quais a câmera demarca
posições entre quem filma e quem é filmado. O registro audiovisual
se converte no catalisador de um jogo erótico: o aparato técnico de
filmagem, inserido no espaço diegético e operado pelos personagens,
funciona como mediador durante incursões exploratórias ao corpo do
outro: sinais, pelos, cicatrizes, tatuagens são inscrições que revestem o
corpo de signos a serem descifrados, não à distância, mas mediante
uma exploração tátil. A centralidade da câmera e a maneira como ela
organiza jogos de sedução retorna numa sequência posterior, durante
a qual homens sambam em meio a uma festa. Essa breve sequência é
filmada sem nenhuma intenção naturalista. De fato, os homens
dançam em primeiro lugar para a câmera, postados numa perspectiva
frontal, olhando diretamente para esse ponto que alinha olhares: o
olhar da câmera, o do cinegrafista e o nosso de espectadores.12
Nessa mesma festa, em certo ponto ensaia-se uma cerimônia
de casamento relida sob a perspectiva de uma reconhecível paródia
homossexual.13 A ostensiva teatralidade demarca os papéis de
gênero e, em especial, a comoção daquela que pode ser lida
visualmente como a “noiva”, com buquê em punho. Se em Bailão
havia uma cisão por vezes intransponível entre os impulsos
desejantes e as regras hegemônicas de sociabilidade, aqui, como

12Temos aí, uma vez mais, um alinhamento de corpos e miradas que tem sido
crucial para pensar as corporeidades no registro audiovisual, reforçando com isso
o fato de que, quando falamos em corpo no cinema, referimo-nos sempre a essa
multiplicidade de corpos e olhares, com todos os seus desdobramentos.
13É ambígua também a própria noção de família, que parece ser apenas outro nome

para essa comunidade onde perceptivelmente prevalece uma sociabilidade não-


heteronormativa.

206
fala a “noiva” em certo ponto, “o amor que não podia dizer seu
nome agora grita”. Que essa cerimônia tradicional assuma
contornos paródicos é algo que fica reforçado pelos planos
seguintes: a dança recomeça, as pessoas agora sambam não mais
em rodas ou grupos, mas em pares, numa coreografia de corpos
que se aproximam e se alternam, olhares que se cruzam e peles que
se tocam. O desejo segue seu fluxo, os afetos não se cristalizam em
formações sedimentadas pelo rito tradicional. Reafirma-se, de
algum modo, que a própria circularidade faz parte da história e do
rito dessas comunidades. A circularidade é em si mesma promessa,
arrebatamento e jogo. Cercada de ambivalência, essa dinâmica
suscita paixões igualmente sutis: não se trata da oposição binária
entre fidelidade ou traição conjugal, mas de questões mais
ambíguas, como aquela, cercada de tensão, que implica distinguir
ou correlacionar ciúme e inveja. Ao emergir na fala de um dos
personagens de Na sua companhia, esta tensão assinala de forma
mais contundente a questão dos acessos e limites que marcam o
trânsito de diferentes corpos nos múltiplos circuitos sexuais e
afetivos nos quais se inscreve o desejo.
Anos depois, no primeiro longa-metragem dirigido por
Marcelo Caetano, as condicionantes que marcam diferentes corpos
e posições sociais, bem como as desigualdades daí resultantes,
ganham uma inflexão muito mais, digamos, afirmativa, movendo-
se em direção a uma celebração ainda mais enfática da potência dos
corpos em detrimento das forças sociais de captura. Corpo elétrico
(2017)14 sustenta desde seu título uma ênfase patente nas presenças
físicas em cena. Nele, as figurações do corpo cinemático se
articulam em consonância com as múltiplas formas de sua inserção
em regimes de produção social, econômica, subjetiva, sexual e
afetiva. Isso se delineia sobretudo com a centralidade conferida ao
mundo do trabalho e também às dinâmicas sexuais e amorosas que
vão tecendo uma rede de encontros. Elias (Kelner Macêdo), o
protagonista, é um jovem que se insere nos fluxos da cidade

14Trailer disponível em: https://vimeo.com/223849311. Acesso em 27 nov. 2019.

207
compondo relações com outros corpos que sustentam diferentes
inscrições no que se refere a performatividades de gênero e
também a marcadores de raça, classe, idade.
Nesse filme de poucos conflitos diretos há, no entanto, tensões
que pairam: a família ausente; os silêncios que pontuam certas
conversas, instaurando o não-dito na temporalidade do cotidiano; a
pressão exercida pelo superior hierárquico da fábrica para que sejam
resguardadas certas separações que organizam a experiência social –
as esferas da intimidade e do trabalho e seus papéis sociais
correspondentes. De fato, a disciplina e o prazer, as forças constritivas
do social e as pequenas subversões organizam o filme em torno de
uma constante modulação. Cabe observar, no entanto, que essas duas
dimensões – a ordem dos prazeres e a ordem produtiva – nunca
chegam a se organizar em torno de uma dualidade engessada. A obra
manifesta um fascínio pelas formas de divertimento como elementos
dotados de um estatuto social, no sentido de estarem atrelados a certa
experiência de classe: a bebida, o sexo, a dança, as práticas esportivas,
bem como a ênfase em certas localidades, tais como o boteco, a rua na
saída da fábrica, a casa de periferia, o campo de futebol de várzea, o
interior de um ônibus que serve ao prolongamento de uma
celebração. Nesse sentido, a amizade é também uma juntura que se
estabelece a partir da circulação, como no plano-sequência dos
trabalhadores perambulando à noite, cansados mas ainda dispostos a
estarem juntos. A câmera se desloca entre os pequenos grupos que se
fazem e desfazem durante a caminhada, eles também se
reconfigurando sempre, assumindo uma composição que nunca
chega a se tornar estática.
A experiência circula também pela palavra: à medida que a
cadeia de encontros se desdobra, o relato das práticas é levado
adiante, passando a integrar também a dinâmica erótica. O ato de
contar constitui, assim, outra dimensão do sexo. Ele instaura um
vínculo de cumplicidade entre sujeitos para os quais a posse, a
exclusividade e a dissimulação comumente associadas às
estruturas de relação monogâmicas pareceriam ter sido, em grande
medida, superadas ou ao menos colocadas em suspenso. A

208
exposição que Elias faz de suas peripécias forja uma partilha, sem
deixar grande margem a arestas como as que, em Na sua companhia,
assinalavam de maneira mais marcada um conflito subjacente.
Uma tática desviante que o filme estabelece consiste em evitar
qualquer cristalização de posições sexuais e hierarquias do corpo:
há uma ênfase decidida no toque, na pele, na boca, no investimento
erótico em mamilos e pés, mais que em genitais. Podemos lembrar
do que em Bailão já despontava como repertório de formas
desviantes de contato: como diz um dos entrevistados, “o namoro
começava com a perna”. Não é o olhar, necessariamente, o meio
privilegiado que demarca uma abertura à proximidade. Pode ser
um membro, um toque esquivo. A diferença é que, se naquele curta
o desvio se colocava como sutileza aprendida em contextos nos
quais a aproximação envolve sobretudo um cálculo de risco, em
Corpo elétrico o desvio se funda menos na consciência de um perigo
– de ser pego, de ser violentamente rechaçado – do que numa
liberdade de exploração que expande os limites daquilo que pode
ser tomado como cartografia corporal na relação sexo-afetiva. A
pele se espraia, o toque se dissemina.
Nisso tudo – no fascínio por certa sensibilidade operária, na
partilha das peripécias através da fala, na desierarquização das
zonas erógenas do corpo – parece haver um tipo de utopia. As
assimetrias e diferenças de acesso – ao sexo, ao afeto – não
necessariamente deixam de existir, mas parecem colocadas num
parêntese pelo filme. Operários, imigrantes, drag queens, travestis,
bichas afeminadas: em Corpo elétrico parece existir para todas as
pessoas a possibilidade do sexo, da afetividade e das trocas
intersubjetivas entre alteridades. Esses corpos atravessados por
fluxos de energia e pela potencialidade do encontro poderiam ser
tomados assim, também, como uma espécie de corpo utópico,
entendido não como um corpo que transcende ou escapa às
contingências, mas que nelas se instala, tomando-as como campo
de experiências. Uma utopia não apesar do corpo ou contra o corpo,
mas do corpo.

209
No campo de experiências que o filme mapeia, a princípio
ninguém está excluído, nenhuma corporeidade está fora dos
marcos de possibilidade. No entanto, há ainda os limites: a
exaustão, a ressaca. O corpo pode vir a sucumbir aos movimentos
repetitivos da atividade laboral ou aos excessos que são também a
eventualidade dos percursos exploratórios no plano de percepção.
Se as marcas e condicionantes que atravessam as existências em
cena não determinam a exclusão a priori de nenhuma
corporeidade, elas, no entanto, seguem lá. Tal aspecto reforça a
inevitabilidade das ambivalências do corpo: nas palavras de Michel
Foucault (2013, p.7-8), “nunca em outro lugar” e “sempre em outro
lugar”; ao mesmo tempo “topia implacável” e algo que não se deixa
apreender a não ser mediante desvios.
Encontraríamos, talvez, a síntese dessas operações que, nos
filmes de Marcelo Caetano, fazem do corpo um campo de forças e
lugar de criação na figura que desce a escada quase ao final do curta
Na sua companhia. Enquanto dubla uma canção que fala sobre
lucidez e desatino, amor e desencontro, essa presença em cena
aciona um jogo de máscaras e propõe a partilha de uma
sensibilidade com personagens e espectadores. Nós a vemos sob a
forma de um corpo que tem ainda sede do outro e que nos olha.
Uma existência física que não tem a ilusão da perda de limites –
corporais, sociais, urbanos –, mas que manifesta sua força tendo
como ponto de partida a própria fragilidade e as contingências,
convertendo a si mesma num campo de criação estética.

Considerações finais

Nos filmes aqui discutidos, a cidade constitui um território


que se presta ao investimento desejante em modalidades diversas
de encontro. Em particular, ela suscita o estabelecimento de
dinâmicas que envolvem a reconversão de espaços tais como ruas,
bares, discotecas, cinemas, banheiros, galerias e centros comerciais,
dentre outros, em lugares reapropriados para práticas clandestinas,
desviantes. Com isso, a metrópole latino-americana reiteradamente

210
elaborada pela filmografia de Marcelo Caetano desencadeia um
trabalho da imaginação que não deixa de mobilizar tensões
históricas. Os encontros sexuais e amorosos que se dão nas
margens apontam para os limites e condicionantes inerentes às
maneiras de vivenciar o desejo e o prazer nas sociedades
contemporâneas. Que esses encontros sigam se inscrevendo no
horizonte de possibilidades que os filmes reiteradamente celebram
e atualizam é um traço que nos permite aproximar as sensibilidades
destes filmes de uma força utópica.
Para retomarmos Muñoz (2009, p. 37), a utopia constitui um
vislumbre que permite fazer “uma crítica do presente e de seus
limites”. Nas sociedades contemporâneas, os corpos se encontram
fortemente marcados por forças que os esquadrinham e os dispõem
em uma série de hierarquias, categorias e lógicas de poder. Em seu
limite, tais lógicas atrofiam o universo da intimidade, ou seja, a
capacidade não apenas de desejar e ser desejado, mas também de
circular pelos espaços e pelas redes de encontros; em suma, a
capacidade de instaurar circuitos, vínculos de pertencimento cultural,
social, afetivo. Nesse contexto, imaginar a cidade como lugar de
encontro e, mais do que isso, dotar as obras de um impulso de habitar
as margens como território físico e subjetivo é um gesto político.
Ao fazer uso da forma cinematográfica para ensaiar diferentes
variações em torno das relações entre espaços urbanos, práticas
sexuais e sensos de comunidade, Bailão, Na sua companhia e Corpo
elétrico apontam, conjuntamente, para uma rearticulação muito
particular do corpo como elemento de intervenção política, tomado
a partir da perspectiva das dissidências sexo-afetivas. A promessa
de uma comunidade por (re)articular-se emerge nesses filmes de
dois grandes pilares: 1) uma política do corpo que propõe
redistribuir os modos pelos quais o desejo e o prazer circulam
socialmente, e 2) um marco de sensibilidades que aludem a
maneiras de perceber, experimentar e reinventar a cidade e as
relações que nela se desenrolam. Essa dupla tarefa opera um
entrecruzamento ou sobreposição de temporalidades: o passado
retorna via depoimentos, canções e mesmo condensado em certas

211
localidades (o bar, a discoteca, a rua escura), suscitando um olhar
que é menos de nostalgia do que de reabilitação daquilo que
historicamente permitiu e permite, ainda que sob as limitações de
cada momento e dos sujeitos envolvidos, converter a margem num
lugar de encontro.

Referências

AUMONT, Jacques. O olho interminável: cinema e pintura. São


Paulo: Cosac & Naify, 2004.
BENJAMIN, Walter. “Paris, a capital do século XIX <Exposé de
1935>”. In: Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo:
Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2007, p. 39-51.
______. Obras Escolhidas III: Charles Baudelaire, um lírico no
auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1989.
______. Obras Escolhidas II: Rua de mão única. São Paulo:
Brasiliense, 1987.
______. Obras Escolhidas I: Magia e técnica, arte e política. São
Paulo: Brasiliense, 1985.
BRUNO, Giuliana. Visual Studies: Four Takes on Spatial Turns.
Journal of the Society of Architectural Historians, Vol. 65, n.1, p.
23-24, Mar. 2006. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/250
68236. Acesso em 24 de nov. de 2019.
FOUCAULT, Michel. O corpo utópico, as heterotopias. São Paulo:
n-1 edições, 2013.
KRANIAUSKAS, John. “Cuidado, ruínas mexicanas!: ‘Rua de Mão
Única’ e o inconsciente colonial”. In: A filosofia de Walter
Benjamin: Destruição e experiência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1997, p. 149-164.
MUÑOZ, José Esteban. “Ghosts of public sex: utopian longings,
queer memories” In: Cruising utopia: the then and there of queer
futurity. New York; London, NYU Press, 2009, p. 33-48.

212
PÁL PELBART, Peter. “Cidade, lugar do possível”. In: Vertigem
por um fio: políticas da subjetividade contemporânea. São Paulo:
Iluminuras, 2000, p. 43-52.
PERLONGHER, Néstor. “Poética urbana”. In: Prosa plebeya: ensayos
1980-1992. Buenos Aires: Ediciones Colihue, 1997, p. 143-148.
PIGLIA, Ricardo. “Leitores imaginários”. In: O último leitor. São
Paulo: Companhia das letras, 2006, p. 74-97.
SARLO, Beatriz. Una modernidad periférica: Buenos Aires 1920
y1930. Buenos Aires: Nueva Visión, 2007.

Filmografia

CORPO elétrico. Direção de Marcelo Caetano. São Paulo: Plateau


Produções, Desbun Filmes, África Filmes, 94 min., cor, 2017.
NA sua companhia. Direção de Marcelo Caetano. São Paulo:
Plateau Produções, Desbun Filmes, 22 min., cor, 2011.
BAILÃO. Direção de Marcelo Caetano. São Paulo: PaleoTV,
Desbun Filmes, 17 min., cor, 2009.

213
214
Sobre os/as autores/as

Adrielly Oissa. Especialista em Educação Aplicada à


Performance Musical pelo Centro Universitário do Sul de Minas,
Bacharel em Música - Canto pela Universidade Federal da
Integração Latino-Americana e, Mestranda em Estudos Latino-
Americanos pela mesma universidade. Atua como professora de
Canto Popular, Canto Coral, Técnica Vocal, Interpretação Vocal e
Performance, Pedagogia Vocal, Educação Musical e Regente Coral.

Analía Chernavsky. Professora de Canto na UNILA,


Universidade Federal da Integração Latino-Americana e co-
responsável do catálogo on-line (OPAC) e da catalogação de papéis
de música do Arquivo do Cabido-Catedral Metropolitano do
México, dentro do marco do projeto Musicart, Instituto de
Investigaciones Estéticas de la UNAM - Universidad Nacional
Autónoma de México. Graduada em História (1999) e em Música
(2003) pela Universidade Estadual de Campinas. Possui Mestrado
em História Social (2003) e Doutorado em Música (2009) pela
mesma universidade. Participa como professora convidada do
Seminario de Música en la Nueva España y el México
Independiente, da Universidad Nacional Autónoma de México.
Tem experiência em canto popular, ensino de canto, arquivos
musicais e história da música.

Anaxsuell Fernando da Silva. Doutor em Ciências Sociais,


concentração em Antropologia Social, pela Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp). É especialista em Saúde Pública (UCAM) e
possui, além do mestrado em Ciências Sociais, o grau de Bacharel em
Sociologia e Licenciado em Ciências Sociais pela Universidade
Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e Diploma Superior em

215
Salud Internacional y Soberanía Sanitária pela FLACSO - República
Dominicana. Atualmente é professor da área de Antropologia da
Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila).
Desenvolve pesquisas na região da Tríplice Fronteira Latino-
americana (Argentina/Brasil/Paraguai). Seus interesses de
investigação incluem Antropologia da Saúde; Migrações/Fronteiras;
Religião e Pensamento Social Latino-Americano e Caribenho.

Andrea Ciacchi. Professor da Universidade Federal da


Integração Latino-Americana (UNILA), depois de ter sido docente
na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Pará e
professor de Antropologia no Departamento de Ciências Sociais da
Universidade Federal da Paraíba de 2000 a 2010. Antes (1994-1999),
foi docente e pesquisador no Departamento de Letras Clássicas e
Vernáculas da UFPB. Formado em Antropologia na Universidade
de Roma La Sapienza (1984), com Mestrado em Letras na UFPB
(1988), Doutorado em Estudos Ibéricos na Universidade de
Bolonha (1993), Pós-Doutorado no Departamento de Antropologia
da UNICAMP (2005-2007) e Pós-Doutorado também em
Antropologia na Universidade de Roma – La Sapienza. Atuando
agora no campo da história intelectual e do pensamento
antropológico em particular: trajetórias de intelectuais e artistas e
perfis de instituições culturais latino-americanas (revistas, museus,
academias, universidades etc.). Foi membro da Comissão de
Direitos Humanos da UFPB e da Comissão de Direitos Humanos
da Associação Brasileira de Antropologia.

Ângela Maria de Souza. Possui Doutorado (2009) e Mestrado


(1998) em Antropologia Social, graduação em Ciências Sociais pela
Universidade Federal de Santa Catarina (1994) e Pós-doutorado no
Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas,
na mesma Universidade. Foi Pró-Reitora de Extensão da UNILA -
Universidade Federal da Integração Latino-Americana (2012-2017). É

216
Docente da UNILA no curso de Antropologia e no Mestrado PPG-
IELA - Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Estudos
Latino Americanos. Coordena o NEALA - Núcleo de Estudos Afro
Latino Americanos. É associada da ABA - Associação Brasileira de
Antropologia e da ABPN - Associação Brasileira de Pesquisadores/as
Negros/as. Tem experiência na área de Antropologia, com ênfase em
Antropologia Afro Brasileira e Antropologia Urbana, atuando
principalmente nos seguintes temas: movimento hip hop, rap,
relações étnico-raciais, Mulheres Negras, diáspora, consumo, música,
ações afirmativas. Atua e coordena Projetos de Extensão na área de
Educação das Relações Étnico-raciais com professores da rede pública
de ensino para a implementação das Leis 10.639/03 e 11.645/08.

Camila Viviane Lui de Sousa


Possui graduação em Terapia Ocupacional (2008) e bacharelado
em Ciências Sociais (2015) pela Universidade de São Paulo. Tem
experiência na área de Terapia Ocupacional Social, Saúde Mental
(relacionada à Álcool e outras Drogas e Gênero). Hoje trabalha em um
Centro de Atenção Psicossocial e Leciona na UNIGUAÇU - FAESI, no
Oeste do Paraná. No momento, realiza o Mestrado na Universidade
Federal da Integração Latino-Americana (UNILA).

Estela Rocha de Ungaro. Possui graduação em Comunicação


Social com habilitação em Cinema (2011) e formação específica em
Criação de Roteiro para Produções em Cinema (2009), pela
Universidade Anhembi Morumbi, e Mestrado Interdisciplinar em
Estudos Latino-Americanos pela Universidade Federal da Integração
Latino-Americana (2018). Tem experiência na área de Comunicação.

Fábio Allan Mendes Ramalho. Professor adjunto na


Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA),
leciona no bacharelado em Cinema e Audiovisual, no Ciclo Comum

217
de Estudos e é também docente permanente do Programa de Pós-
Graduação Interdisciplinar em Estudos Latino-Americanos (PPG-
IELA-UNILA). Doutor em Comunicação pela Universidade Federal
de Pernambuco (2014), vinculado à linha de pesquisa em Estéticas e
Culturas da Imagem e do Som, desenvolveu uma tese acerca da
apropriação e o deslocamento de repertórios audiovisuais como
modos de engajamento afetivo. Realizou estágio de doutoramento
(doutorado sanduíche) na McGill University, Montréal, Canadá.
Mestre em Comunicação pela UFPE (2009), com dissertação sobre
cinema latino-americano contemporâneo. Especialista em Jornalismo
Cultural pela UNICAP (2006) e graduado em Ciências da
Administração pela FCAP-UPE (2004). É um dos coordenadores do
Grupo de pesquisa NATLA - Núcleo de Arte e Tecnologia Latino-
Americano. É um dos codiretores da Imagofagia - Revista de la
Asociación Argentina de Estudios de Cine y Audiovisual (AsAECA),
e membro do comitê científico da revista Artefacto Visual, publicação
vinculada à Red de Estudios Visuales Latinoamericanos (ReVLaT).
Ensaísta premiado no II Concurso de Ensaios Mário Pedrosa sobre
Arte e Cultura Contemporânea. Membro fundador do coletivo
independente de realização audiovisual Surto & Deslumbramento.

Hugo Quinta. Possui graduação em Direito pela Universidade


do Vale do Itajaí (2010), especialização em Artes da Escrita pela
Universidade Nova de Lisboa (2013), mestrado em Estudos Latino-
Americanos pela Universidade Federal da Integração Latino-
Americana (2017) e atualmente é doutorando em História pela
Universidade Estadual Paulista.

Jonas Mateus Ferreira Araujo. Possui graduação em Letras -


Língua Portuguesa e Suas Respectivas Literaturas pela
Universidade Estadual do Ceará - UECE (2012) e Bacharelado em
Serviço Social pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia do Ceará - IFCE (2017), Especialização em Literatura,

218
Cultura e Ensino da Arte (2018), e é mestrando em Estudos Latino-
Americanos pela Universidade Federal da Integração Latino-
Americana - UNILA. Atualmente é professor efetivo da rede Básica
Estadual de Ensino do Ceará. Tem experiência na área de Letras,
com ênfase em Língua Portuguesa, atuando principalmente nos
seguintes temas: educação e emancipação, português brasileiro, e
educação, relações de gênero, classe, raça, etnia e sexualidade.

Laura Janaina Dias Amato. Possui graduação em Letras pela


Universidade Federal do Paraná (2001), mestrado em Letras pela
Universidade Federal do Paraná (2005) e doutorado em Letras pela
Universidade Federal do Paraná (2012). Atualmente é
pesquisadora associada do Centro Latino-Americano de Estudos
em Cultura e professor adjunto iv da Universidade Federal da
Integração Latino-Americana. Líder do grupo de pesquisa
Linguagem, Política e Cidadania e membro do Grupo de Estudos
Interdisciplinares: políticas linguísticas, diversidade e fronteiras.
Tem experiência na área de Lingüística, com ênfase em Lingüística
Aplicada, atuando principalmente nos seguintes temas: educação
intercultural, alemão como língua estrangeira, efl, aquisição de
língua estrangeira e cultura.

Lívia Santos de Souza. Possui graduação em Letras


Português/Espanhol (2011), mestrado (2014) e doutorado (2018) em
letras neolatinas, todos pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ).Trabalhou com ensino básico na rede estadual do
Rio de Janeiro e em 2014 atuou como professora substituta do curso
de Letras Português/Espanhol na Universidade Federal Rural do
Rio de Janeiro (UFRRJ). Tem experiência na área de Letras, com
ênfase em Estudos da Tradução, Literatura Latino Americana e
Estudos Latino Americanos nos Estados Unidos (Latinx Studies).
Atualmente é professora adjunta de Espanhol Língua Adicional na
Universidade Federal da Integração Latino Americana (Unila) e

219
docente permanente no Programa de Pós-Graduação
Interdisciplinar em Estudos Latino Americanos (IELA) e no
Programa de Pós-Graduação em Literatura Comparada (PPGLC).

Lucía Castillo Rincón. Possui graduação em Trabajo Social -


UNIVERSIDAD COLEGIO MAYOR DE CUNDINAMARCA
(2017). Tem experiência na área de Trabajo Social, com ênfase em
Estudios feministas y sobre la mujer

Marcos de Jesus Oliveira. Professor-Adjunto da Universidade


Federal da Integração Latino-Americana (UNILA). Doutor em
Sociologia pela Universidade de Brasília com estágio no Center for
Interdisciplinatory Gender Studies do Departamento de Sociologia
e Política Social da Universidade de Leeds (Reino Unido).
Especialista em Gestão de Políticas Públicas em Gênero e Raça pela
Universidade de Brasília e Democracia Participativa, República e
Movimentos Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais.
Possui Licenciatura em Letras e mestrado em Literatura e Práticas
Sociais, ambos pela Universidade de Brasília. Também é licenciado
em Sociologia pela Universidade Regional do Noroeste do Estado
do Rio Grande do Sul. Realizou pós-doutorado no Departamento
de Sociologia da Universidade de Brasília.

Maria Inês Amarante. Pós-Doutora em Ciências Sociais


(Antropologia) e Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP
(2010); Mestre e Especialista em Comunicação Social - UMESP
(2000/04) e Licenciada em Letras pela Université Libre de Bruxelles -
ULB (1992), na Bélgica. Pesquisadora e Professora Adjunta da UNILA
- Universidade Federal da Integração Latino-Americana. Área:
Comunicação - junto ao Instituto Latino-Americano de Artes, Cultura
e História e no Mestrado Interdisciplinar em Estudos Latino-
Americanos-IELA; Desenvolve pesquisas sobre feminismo e gênero;

220
cultura; memória; oralidade, lusofonia e sobre os processos de
comunicação alternativa/comunitária e suas relações com cidadania e
participação nos movimentos sociais do Brasil, África e América
Latina. Radialista especializada em produções socioculturais,
educativas, dramatizadas e formação radiofônica. Membro ativo de
grupos de pesquisa (CNPq): CEI-Comuni - Núcleo de Estudos de
Comunicação Comunitária e Mídia Local (UERJ); Comunicação e
Cultura: Barroco, Oralidades e Mestiçagem (PUC-SP), DIGITART:
Teorias das Mídias Digitais, Tecnologias, Artes e Culturas (UNESP) e
outros. Membro associado da Intercom - Sociedade Brasileira de
Estudos Interdisciplinares da Comunicação e ABPCom – Associação
Brasileira de Pesquisadores e Comunicadores em Comunicação
Popular, Comunitária e Cidadã. Na cooperação internacional
brasileira foi professora do Programa de Formação de Docentes em
Língua Portuguesa no Timor-Leste (MEC/CAPES/DGCI); e no
Leitorado junto à UniCV - Universidade de Cabo Verde (DPLP/
MRE). Atuou na cooperação belga (Voluntariado ONG) pela Agência
Geral de Coopération pour le Développement - AGCD. É revisora/
parecerista de revistas da área de comunicação, feminismo e gênero;
autora da obra: ''Rádio Comunitária na Escola: adolescentes,
dramaturgia e participação cidadã (2012); de artigos científicos e
socioculturais em publicações nacionais e internacionais e co-
organizadora do livro África - Múltiplos Olhares sobre a
Comunicação (2013).

Mayra Alejandra Bernal Huertas. Mestre em Estudos Latino-


Americanos pelo Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em
Estudos Latino-Americanos, cursando bacharelado em Antropologia e
Diversidade Cultural, ambos pela Universidade Federal da Integração
Latino-Americana. Licenciada em Educação Especial pela Corporação
Universitária Iberoamericana (Colômbia-Bogotá). É membro do projeto
de pesquisa Núcleo de Estudos Afro-Latino-Americanos (NEALA), nas
linhas de pesquisa: América Latina: Diáspora e interseccionalidade e
Educação para as Relações Étnico-raciais (Cnpq).

221

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