EBOOK - Do Futebol Nacional Ao Pos Nacional
EBOOK - Do Futebol Nacional Ao Pos Nacional
EBOOK - Do Futebol Nacional Ao Pos Nacional
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Esta publicação é fruto do Edital PPGLC 17/2021 - Chamada
para Publicação de Pesquisa Oriunda de Dissertação Defendida no
Programa de Pós-graduação em Literatura Comparada da
Universidade Federal da Integração Latino-americana. O edital
busca promover a visibilidade de pesquisas desenvolvidas no
âmbito da literatura comparada e a aproximação entre pesquisa
acadêmica e sociedade. Além disso, visa valorizar as pesquisas
desenvolvidas no âmbito do PPGLC. Os originais foram avaliados
por pareceristas externos da área de Letras de diferentes
instituições de ensino superior.
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Cristina Allegretti
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Copyright © Cristina Allegretti
Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra pode ser reproduzida,
transmitida ou arquivada desde que levados em conta os direitos da autora.
Cristina Allegretti
CDD – 410
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Para minha filha, Letícia - a quem eu amo "mais do que
100 gigantes encostados em um planeta";
Para meu parceiro de vida, André;
Para meus pais e irmãos.
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AGRADECIMENTOS
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SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO 11
4. FUTEBOL E IDENTIDADE 89
4.1. FUTEBOL E A IDEALIZAÇÃO DE UMA 89
IDENTIDADE NACIONAL
4.2. IDENTIDADE: ALTERIDADE 100
4.3. IDENTIDADE EM QUESTÃO: DO FUTEBOL 113
NACIONAL AO PÓS NACIONAL
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1. INTRODUÇÃO
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suas camisetas amarelas – naquele tempo, a propósito, a
“amarelinha” não era associada a nenhum partido político, sendo
possível seu uso sem receios. Em grande parte das residências
havia uma bandeirinha do Brasil pendurada, demonstrando um
patriotismo inigualável, e os carros também passeavam com suas
bandeirinhas ao vento. Data desta época minha curiosidade por
esse extraordinário fenômeno de identidade nacional que o futebol
é capaz de proporcionar.
Na conjuntura do tetracampeonato eu era criança e, como
grande parte das crianças, me comovi e emocionei com a conquista.
Obviamente eu não tinha consciência de quanto uma vitória como
esta poderia ser explorada pelo governo e pela mídia para a
legitimação de um conceito de uma nação bem-sucedida. Aos
poucos passei a ter esta consciência, na medida em que conhecia
um pouco sobre construções históricas e tomava consciência da
invenção de “mitos nacionais” por parte dos meios de comunicação
– que, a propósito, não trabalham com imparcialidade. A partir
deste entendimento, revisei minha percepção sobre o contexto e
compreendi que aquela relação da conquista futebolística com a
morte do Senna por parte da seleção e da mídia foi
estrategicamente utilizada no objetivo de envolver as emoções
coletivas, construindo um ideal de nação vencedora. Nesta
conjuntura, o país experimentava há poucos anos a democracia
através do voto direto e tentava sair de um contexto de anos de
recessão econômica. Eram, ademais, tempos de concretização do
plano real e estavam sendo colocadas em prática uma série de
políticas neoliberais. Nesse sentido, uma comoção nacional
proporcionada pelo futebol era extremamente conveniente, no
intuito de transmitir uma ideia de unidade, otimismo e esperança
em relação ao país.
No Ensino Médio tive contato, pela primeira vez, com os
autores aqui estudados: o brasileiro Nelson Rodrigues (Brasil, 1912
– 1980), com a obra O beijo no Asfalto e o uruguaio Eduardo Galeano
(Uruguai, 1940 – 2015), através do clássico Las venas abiertas de
América Latina. Naquela época, eu não sabia que ambos eram
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apaixonados por futebol e que tinham se dedicado em escrever
sobre o tema. Na faculdade de História li sobre a relação entre
Nelson Rodrigues e a ditadura – e aqui, pela primeira vez, tive
contato com suas crônicas esportivas. Aquele cenário de repressão
ditatorial retratado por um escritor talentoso como Rodrigues
muito me interessou e li alguns trabalhos sobre essa temática. Aos
poucos, conheci também um pouco do que a academia produzia
sobre o futebol – compreendendo que esta temática também era
digna de ser estudada a nível acadêmico – e obtive a informação de
que Galeano também havia escrito sobre o esporte. Ao ler seu livro
destinado ao futebol, me surpreendi: havia algo em comum entre
Rodrigues e Galeano. Como era possível? Rodrigues, que se
autodenominava um reacionário, defendendo a ditadura e o
modelo econômico capitalista e Galeano, crítico das ditaduras e
denunciante do capitalismo, poderiam ter algo em comum? Eis o
milagre do futebol: apaixonados por esse esporte, os autores
vislumbravam suas seleções como um instrumento de constituição
de identidade nacional e de reconhecimento mundial. A partir do
futebol, ambos trataram de escrever acerca de questões alusivas à
legitimidade de uma região e de um povo.
Estava, portanto, configurada a ideia: estudar um elemento
característico da cultura latino-americana – o futebol – a partir de
dois dos maiores nomes da nossa literatura. O Mestrado em
Literatura Comparada da Universidade Federal da Integração
Latino-Americana pareceu-me um programa perfeito para a
proposta, já que a metodologia da literatura comparada era muito
pertinente ao trabalho e, ademais, o projeto de intercâmbio cultural
desta universidade relacionava-se absolutamente com o pensar as
identidades e o lugar da América Latina no mundo.
Cumpre esclarecer que a Literatura Comparada enquanto
metodologia aplicada na presente pesquisa surge não apenas como
ferramenta de estudo comparativo entre dois autores, mas
sobretudo como um método que nos permite transitar entre
diversas disciplinas. Trata-se, portanto, de um trabalho
interdisciplinar, no qual estão presentes áreas de conhecimento
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diversas – como letras, história, sociologia e antropologia.
Destacamos, aqui, a ampliação da literatura comparada desde o seu
surgimento, no séc. XIX: esta metodologia surge como uma
ferramenta de relação entre duas literaturas diferentes, detectando
o movimento de um elemento literário de um campo literário a
outro, atravessando fronteiras literárias (CARVALHAL, 1991).
Paulatinamente, a literatura comparada “deixa a de exercer essa
função ‘internacionalista’ para converter-se em uma disciplina que
põe em relação diferentes campos das Ciências Humanas”
(CARVALHAL, 1991, p.1). Assim, além da comparação entre
literaturas, a metodologia da Literatura Comparada oferece
também a possibilidade de um diálogo entre diversas disciplinas.
É este o foco do presente trabalho.
Nesse sentido, este livro está estruturado em 3 capítulos,
conforme descrito a seguir: o primeiro capítulo destina-se a
apresentar uma introdução aos autores. Abordaremos suas vidas,
suas obras e a maneira como a temática do futebol aparece em suas
produções, traçando semelhanças e divergências. Falaremos sobre
as obras que serão abordadas e, por fim, traremos uma breve
revisão bibliográfica sobre os estudos que se propuseram a analisar
as obras de Rodrigues e Galeano. No segundo capítulo, faremos
uma discussão sobre os autores e os gêneros literários, realizando
uma reflexão literária sobre as produções futebolísticas
selecionadas e os gêneros adotados pelos autores. Ademais,
abordaremos o futebol como um campo de estudos nas ciências
humanas, buscando compreender o histórico do futebol na
América Latina e os motivos pelos quais este esporte se tornou tão
popular na região. Importa mencionar que tanto a reflexão acerca
dos gêneros quanto o fenômeno da popularidade do futebol
relacionam-se diretamente com a conjuntura do século: o contexto
de urbanização, o acirramento do capitalismo, a expansão da
imprensa e a eletrificação dos espaços conecta-se com o advento
dos gêneros literários estudados e com a popularização do futebol.
O terceiro capítulo, cuja proposta é a de analisar a relação entre
identidade nacional e o futebol na produção dos autores, está dividido
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em 3 seções principais: na primeira, discutimos como o futebol é
utilizado como elemento para constituir uma ideia de nação, trazendo
ao debate a teoria acerca das Comunidades Imaginadas, de Benedict
Anderson. Também consideramos a literatura e o futebol como um
dispositivo – conforme teoria de Giorgio Agamben – que permite a
subversão da lógica econômica vigente, segundo a qual os países
subdesenvolvidos são colocados em uma categoria de
subdesenvolvimento e inferioridade. A segunda seção contém uma
discussão acerca da identidade e alteridade, compreendendo que a
identidade é sempre uma construção efetuada a partir do outro, e esta
característica se faz presente nas produções dos autores. Finalizando o
capítulo, realizamos uma discussão sobre os sinais da fragmentação das
identidades: as produções aqui analisadas também prenunciam os
sinais de um novo contexto, caracterizado pelo deslocamento do
futebol de um campo identitário para um campo mercadológico.
Relacionamos este fenômeno à fragmentação das identidades, que, na
teoria de Stuart Hall e Zygmunt Bauman, descentra o sujeito e
diagnostica a instabilidade e a conflitividade das identidades nacionais.
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2. FUTEBOL:
UMA PAIXÃO EM COMUM NAS OBRAS DE
NELSON RODRIGUES E EDUARDO GALEANO
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de me sentar no meio-fio e começar a chorar. Eu e meu irmão Joffre passamos
fome e foi a fome que estourou nossos pulmões. (RODRIGUES, 2008, p. 68)
Ya había elegido el hotel. Mientras caminaba por la calle Río Branco, calle abajo,
sentía que estaba muerto desde hacía horas o años, vacío de curiosidad y de
deseo, y que sólo me faltaba cumplir con los trámites. Sin embargo, al llegar al
cruce de la calle San José un automóvil se me vino encima y mi cuerpo, que
estaba vivo, pegó un salto descomunal hasta la vereda.
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Lo último que recuerdo de mi primera vida es una ranura de luz en la puerta
cerrada mientras yo me hundía en una noche serena que no iba a terminarse
nunca.
Me desperté, al cabo de varios días de coma, en la sala de presos del hospital
Maciel.
[...]
Hasta hace poco creía que lo había decidido por las dificultades fonéticas
que en castellano tiene mi apellido paterno. Al fin y al cabo, era por eso que
yo lo había castellanizado: firmaba Gius, en vez de Hughes, los dibujos que,
desde muy chiquilín, publicaba en El Sol.
Y recién ahora, una noche de éstas, me di cuenta de que llamarme Eduardo
Galeano fue, desde fines de 1959, una manera de decir: soy otro, soy un
recién nacido, he nacido de nuevo (GALEANO, 2000, p. 29,30).
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importância da dramaturgia em sua carreira e vida, e menciona seu
interesse e aptidão para o teatro:
Poco antes del golpe, volviendo de otro viaje, supe que la policía me había
ido a buscar a mi casa de Montevideo.
Me presenté solo. Sentí miedo al entrar. La puerta se cerró a mis espaldas
con un ruido seco, de trampa. El miedo me duró una hora. Después se me
fue del cuerpo.
¿Qué me podía ocurrir, peor que la muerte? No iba a ser la primera visita.
Estaba de cara contra la pared, en el patio. El piso de arriba era un centro de
torturas. Detrás de mí pasaban los presos. Los arrastraban por el patio.
Algunos volvían deshechos; los arrojaban al piso. A medianoche sonaba la
sirena del transmisor. Yo escuchaba el estrépito, los insultos, la excitación de
la jauría lanzándose a la caza del hombre. Los policías regresaban al
amanecer.
Un par de días después me subieron a un auto. Me trasladaron, me
encerraron en una celda.
Rayé mi nombre en la pared.
Por las noches escuchaba gritos.
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Empecé a sentir la necesidad de conversar con alguien. Me hice amigo de un
ratoncito. Yo no sabía si iba a estar encerrado días o años, y al poco tiempo
se pierde la cuenta. Fueron días. Siempre tuve suerte.
La noche que me soltaron escuché murmullos y voces lejanas, ruidos de
metales, mientras caminaba por los corredores con un guardia a cada lado.
Entonces los presos se pusieron a silbar, suavecito, como soplando paredes.
El silbido fue creciendo hasta que la voz, todas las voces en una, rompió a
cantar. La canción sacudía las paredes. Caminé hasta mi casa. Era una noche
cálida y serena. En Montevideo empezaba el otoño. Me enteré de que hacía
una semana que había muerto Picasso.
Pasó un tiempito y empezó el exilio (GALEANO, 2000, p. 57).
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das ditaduras. Esta denúncia se intensifica após o seu segundo exílio,
quando passou a morar em Callela da Costa – Espanha. Nesse sentido,
a partir do seu segundo desterro, em 1976, e durante todo o período
de permanência na Europa, o autor procurou recuperar-se da vivência
traumática a que fora submetido nos regimes do Uruguai e Argentina.
Usufruindo da liberdade fora do contexto latino-americano,
impulsiona seus escritos e produz inúmeras obras. Entre os livros
publicados neste período, estão os dois primeiros volumes da trilogia
Memoria del Fuego, que Kovacic (2016) reconhece como uma obra de
continuidade de Las venas abiertas de América Latina, já que o autor
propõe-se a traçar um panorama da história latino-americana nos
últimos 500 anos sob uma perspectiva divergente daquela produzida
pela historiografia oficial.
Nelson Rodrigues, por sua vez, procura, em várias de suas
crônicas, enaltecer o regime militar no Brasil. Contraditoriamente,
devido ao teor polêmico de sua obra, o autor sofre a censura dos
militares e, ainda assim, não reconsidera seu posicionamento. Ao
abordar temáticas inusitadas para sua época, seus escritos
ocasionaram um impacto evidente, tanto no teatro, quanto na sua
literatura. Ruy Castro, no livro biográfico de Nelson Rodrigues –
intitulado O Anjo Pornográfico –, ilustra a polêmica do folhetim
rodrigueano Asfalto Selvagem, publicado diariamente nos anos de
1959 e 1960. Segundo Castro, a história continha
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suicídio, o erotismo. Também se autointitulava um “reacionário” e
criticava constantemente os intelectuais de esquerda e o comunismo:
Las flores
El escritor brasileño Nelson Rodrigues estaba condenado a la Soledad. Tenía
cara de sapo y lengua de serpiente, y a su prestigio de feo y fama de
venenoso sumaba la notoriedad de su contagiosa mala suerte: la gente de su
alrededor moría por bala, miseria o desdicha fatal.
Un día, Nelson conoció a Eleonora. Ese día, el día del descubrimiento,
cuando por primera vez vio a esa mujer, una violenta alegría lo atropelló y
lo dejó bobo.
Entonces quiso decir alguna de sus frases brillantes, pero se le aflojaron las
piernas y se le enredó la lengua y no pudo más que tartamudear ruiditos.
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La bombardeó con flores. Le enviaba flores a su apartamento, en lo más alto
de un alto edificio de Río de Janeiro. Cada día le enviaba un gran ramo de
flores, flores siempre diferentes, sin repetir jamás los colores ni los aromas,
y abajo esperaba: desde abajo veía el balcón de Eleonora y desde el balcón
ella arrojaba las flores a la calle, cada día, y los automóviles las aplastaban.
Y así fue durante cincuenta días. Hasta que un día, un mediodía, las flores
que Nelson envió no cayeron a la calle y no fueron pisoteadas por los
automóviles.
Ese mediodía él subió hasta el piso último, tocó el timbre y la puerta se abrió.
(GALEANO, 1989, p. 179)
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Rodrigues morreu em 1980, aos 68 anos, no Rio de Janeiro,
vítima de insuficiência vascular cerebral. Galeano, por sua vez,
faleceu em 2015, aos 74 anos, devido a um câncer de pulmão. Ruy
Castro, ao retratar a biografia de Nelson Rodrigues, afirma que é
impossível acreditar em tudo o que aconteceu com o autor no
período de uma vida. Estendemos, diante do exposto, esta
constatação à vida de Galeano. De fato, é surpreendente pensar em
tudo o que os autores experienciaram durante suas vidas.
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Enquanto o futebol aparece, na obra de Rodrigues, em crônicas
esportivas publicadas em colunas de periódicos brasileiros e
posteriormente editoradas em livros, em Galeano a produção
acerca do esporte foi pensada visando à construção de um livro.
Valemo-nos, nesse sentido, de crônicas rodrigueanas publicadas
nos livros: À sombra das chuteiras imortais – veiculadas
originalmente na revista Manchete Esportiva e no jornal O Globo,
entre 1955 e 1970 -; A pátria de chuteiras – publicadas entre 1950 e
1970 –; Somos o Brasil – obra bilingue, ilustrada com fotografias,
composta por crônicas publicadas entre 1956 e 1970 e por textos que
contextualizam a conjuntura – e O Reacionário – publicadas entre
1967 e 1974 em colunas do Correio da Manhã e de O Globo. Armando
Nogueira, ao apresentar o livro À sombra das chuteiras imortais, diz:
À sombra das chuteiras imortais é a obra sem igual de um cronista que nunca
deu a mínima bola para a frígida aritmética do jogo. Na ótica privilegiada de
Nelson, futebol sempre foi e há de ser arrebatamento. Paixão avassaladora.
Chuteiras sangrando pela doce abstração de um gol.
[...]
Nelson Rodrigues costumava dizer que, como um menino, via o amor pelo
buraco da fechadura. Poderia dizer, também, que via o futebol com os olhos
de um iluminado. Todo domingo, ele ia ao estádio, para contemplar os anjos
e os demônios da sua devoção. Foi assim, no entardecer de cada jogo, que
nasceu À sombra das chuteiras imortais, canto primeiro e único à epopéia do
futebol brasileiro. Nelson é o nosso Homero, sem tirar nem pôr.
(RODRIGUES, 1993, p. 05, 06)
1 O livro El fútbol a sol y sombra foi publicado no Brasil com o título Futebol ao sol e
à sombra, também em 1995, pela Editora L&PM.
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En 1995, se toma la historia del fútbol como herramienta para contar la
historia humana desde otro ángulo. El fútbol como música del cuerpo, como
instrumento y reflejo de la dignidad humana, está presente en El fútbol a sol
y a sombra. Todo lo que se mueve en torno del fútbol puesto bajo la mirada
filosa de Galeano. La otra cara del fútbol como denuncia también de la
situación del mundo y la humanidad en momentos en que el principal reflejo
de este apasionante deporte no es su adrenalina y habilidad muscular y
poética, sino el reflejo de los millones de dólares o euros que mueven cada
cotización de jugadores. Asombra al mundo el costo del fichaje de un
jugador más que las piruetas con la pelota de que es capaz. Ese es el
trasfondo donde se mueven las historias breves del universo del deporte
más popular. También aquí hay un Galeano guerrillero de la palabra que,
artesanalmente elaborado y de modo certero, dispara al corazón del sistema
que se tragó a una generación, la de los cambios sociales y las utopías
libertarias adormecidas en pleno fin de milenio (KOVACIC, 2016, l. 5344).
El Mundial del 86
Baby Doc Duvalier huía de Haití, robándose todo, y robándose todo huía
Ferdinand Marcos de Filipinas, mientras los archivos norteamericanos
revelaban, más vale tarde que nunca, que Marcos, el alabado héroe filipino
de la segunda guerra mundial, había sido en realidad un desertor.
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El cometa Halley visitaba nuestro cielo después de mucha ausencia, se
descubrían nueve lunas en torno al planeta Urano, aparecía el primer
agujero en la capa de ozono que nos protege del sol. Se difundía una nueva
droga, hija de la ingeniería genética, contra la leucemia. En el Japón se
suicidaba una cantante de moda y tras ella elegían la muerte veintitrés de
sus devotos. Un terremoto dejaba sin casa a doscientos mil salvadoreños y
la catástrofe de la central nuclear soviética de Chernobyl desataba una lluvia
de veneno radioactivo, imposible de medir y de parar, sobre quién sabe
cuántas leguas y gentes.
Felipe González decía sí a la OTAN, la alianza militar atlántica, después de
haber gritado no, y un plebiscito bendecía el viraje mientras España y
Portugal entraban al mercado común europeo. El mundo lloraba la muerte
de Olof Palme, el primer ministro de Suecia, asesinado en la calle. Tiempos
de luto para las artes y las letras: se nos iban el escultor Henry Moore y los
escritores Simone de Beauvoir, Jean Genet, Juan Rulfo y Jorge Luis Borges.
Estallaba el escándalo Irangate, que implicaba al presidente Reagan, a la CIA
y a los contras de Nicaragua en el tráfico de armas y de drogas, y estallaba
la nave espacial Challenger, al despegar de Cabo Cañaveral, con siete
tripulantes a bordo. La aviación norteamericana bombardeaba Libia y
mataba a una hija del coronel Gaddafi, para castigar un atentado que años
después se atribuyó a Irán. En una cárcel de Lima morían ametrallados
cuatrocientos presos. Fuentes bien informadas de Miami anunciaban la
inminente caída de Fidel Castro, que iba a desplomarse en cuestión de horas.
Se habían desplomado muchos edificios sin cimientos, con toda la gente
adentro, cuando un terremoto había sacudido a la ciudad de México, el año
anterior, y buena parte de la ciudad estaba todavía en ruinas mientras se
inauguraba allí el decimotercer Campeonato Mundial de Fútbol.
(GALEANO, 2014, l. 1919 – 1931)
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2.3. O FUTEBOL NA VISÃO DOS AUTORES: MAIS QUE UM
ESPORTE
Amigos, vocês podem acreditar: — quem não estiver sofrendo, neste momento,
é um mau caráter. E por que mau-caráter? Vou explicar, calma, vou explicar. O
Brasil vai jogar amanhã a partida mais dramática de toda a sua história, e eu
quase diria: — como é possível não sofrer diante da formidável batalha? O
começo de qualquer partida é uma janela aberta para o infinito. Ao soar o apito
inicial, todas as possibilidades passam a ser válidas. Eu falava em sofrimento.
Tudo no jogo de amanhã justifica uma tensão intolerável. Há a angústia da
dúvida. E há a angústia inversa da certeza. Milhões de brasileiros estão certos do
bi. E, apesar disso, ou com isso mesmo, andam crispados em casa, na rua, por
toda parte. (RODRIGUES, 2013, p. 25)
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Flamean las banderas, suenan las matracas, los cohetes, los tambores, llueven las
serpentinas y el papel picado: la ciudad desaparece, la rutina se olvida, sólo
existe el templo. En este espacio sagrado, la única religión que no tiene ateos
exhibe a sus divinidades. Aunque el hincha puede contemplar el milagro, más
cómodamente, en la pantalla de la tele, prefiere emprender la peregrinación
hacia este lugar donde puede ver en carne y hueso a sus ángeles batiéndose a
duelo contra los demonios de turno. (GALEANO, 2014, l. 174)
[...] achamos que Deus não se interessa por futebol! Portanto, nós o
excluímos das atribuições da nossa torcida. Domingo, nunca houve um
clube tão sem Deus como o Fluminense. Ora, nenhum brasileiro consegue
ser nada, no futebol ou fora dele, sem a sua medalhinha de pescoço, sem os
seus santos, as suas promessas e, numa palavra, sem o seu Deus pessoal e
intransferível. É esse místico arsenal que explica as vitórias esmagadoras.
(RODRIGUES, 1993, p. 43, 44)
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Ambos preocuparam-se, deste modo, em evidenciar a atuação
da magia, da sacralidade e da disputa no futebol. Mas além desses
aspectos que causavam encantamento nos escritores e no público, as
produções também estabeleceram críticas ao esporte, sobretudo
relacionadas às mudanças trazidas pela sua comercialização.
Vivenciando um período marcado pelo acirramento da globalização,
os autores aqui estudados não deixam de manter uma posição crítica
acerca das consequências deste fenômeno no futebol:
Por outro lado, convém aceitar esta verdade recente — o campeão não é
apenas um jogador de futebol. É um herói: nenhum clube, nenhum povo tem
o direito de vender seus heróis. Nem o herói tem o direito de vender a si
mesmo. Amigos, no dia em que deixarmos de prezar os valores gratuitos,
vamos cair todos de quatro, todos. (RODRIGUES, 2013, p. 22)
Al fin del siglo, los periodistas especializados hablan cada vez menos de las
habilidades de los jugadores y cada vez más de sus cotizaciones. Los
dirigentes, los empresarios, los contratistas y demás cortadores del bacalao
ocupan un espacio creciente en las crónicas futboleras. Hasta hace algunos
años, los pases se referían al viaje de la pelota de un jugador a otro; ahora,
los pases aluden más bien al viaje del jugador de uno a otro club o de un país
a otro. ¿Cuánto están rindiendo los famosos en relación a la inversión? Los
especialistas nos bombardean con el vocabulario de los tiempos: oferta,
compra, opción de compra, venta, cesión en préstamo, valorización,
desvalorización. En el Mundial 98, las pantallas de televisión universal
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fueron invadidas y copadas por la emoción colectiva, la más colectiva de las
emociones; pero también fueron vidrieras de exhibición mercantil. Hubo
alzas y caídas en la bolsa de piernas. (GALEANO, 2014, l. 2476)
Por exemplo: — o futebol antigo. Era, a meu ver, um fenômeno vital muito
mais rico, complexo e intrincado. Hoje, os jogadores, os juízes e os
bandeirinhas se parecem entre si como soldadinhos de chumbo. Não
encontramos, em ninguém, uma dessemelhança forte, crespa e taxativa. Não
há um craque, um árbitro ou um bandeirinha que se imponha como um
símbolo humano definitivo. (RODRIGUES, 1993, p. 18)
La historia del fútbol es un triste viaje del placer al deber. A medida que el
deporte se ha hecho industria, ha ido desterrando la belleza que nace de la
alegría de jugar porque sí. En este mundo del fin de siglo, el fútbol
profesional condena lo que es inútil, y es inútil lo que no es rentable. A nadie
da de ganar esa locura que hace que el hombre sea niño por un rato, jugando
como juega el niño con el globo y como juega el gato con el ovillo de lana:
bailarín que danza con una pelota leve como el globo que se va al aire y el
ovillo que rueda, jugando sin saber que juega, sin motivo y sin reloj y sin
juez. El juego se ha convertido en espectáculo, con pocos protagonistas y
muchos espectadores, fútbol para mirar, y el espectáculo se ha convertido en
uno de los negocios más lucrativos del mundo, que no se organiza para jugar
sino para impedir que se juegue. La tecnocracia del deporte profesional ha
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ido imponiendo un fútbol de pura velocidad y mucha fuerza, que renuncia
a la alegría, atrofia la fantasía y prohíbe la osadía. (GALEANO, 2014, l. 124)
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totalidade da obra do autor é marcada pelo protesto, e no futebol não
é diferente. O jornalista utiliza-se do futebol, neste livro, para
manifestar sua contestação à logística do mundo, focando seu olhar
na desigualdade entre os países, decorrente de séculos de exploração:
Cuando el sur del mundo comete la osadía de saltar esa pared y se mete donde
no debe, el norte le recuerda, a palos, cuál es su lugar. Y lo mismo ocurre con las
invasiones desde las zonas malditas de cada país y de cada ciudad. El fútbol,
espejo de todo, refleja esta realidad. (GALEANO, 2014, l. 2012)
La excepción
Existe un solo lugar donde el norte y el sur del mundo se enfrentan en
igualdad de condiciones: es una cancha de fútbol de Brasil, en la
desembocadura del río Amazonas. La línea del ecuador corta por la mitad el
estadio Zerâo, en Amapá, de modo que cada equipo juega un tiempo en el
sur y otro en el norte. (GALEANO, 2013, p. 19)
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condições existente entre os dois lados do equador. Desde Las venas
abiertas de América Latina – obra mais famosa do escritor –, esta
desproporção generalizada entre norte e sul é problematizada.
Além de utilizar-se do futebol para denunciar os problemas e
desigualdades do mundo, reiterando a teoria de dependência do
sul em relação ao norte e problematizando as questões referentes à
industrialização do esporte, Galeano também contesta a
desconsideração da historiografia acerca do esporte:
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diferença. Para o autor, o resgate da diversidade em um contexto
de padronização do esporte – fator tão presente no final do século
XX, como dito – é essencial. O autor defende, nesse sentido, a
presença de traços identitários na forma de jogar futebol e,
sobretudo, a manutenção da multiplicidade de estilos.
A ideia de identidade existente no modo de jogar também é
manifesta no pensamento de Rodrigues, de maneira incansável: o
autor utiliza-se da repetição e da demasia para convencer o seu
leitor. O escritor acredita que os sucessos provenientes das
conquistas da seleção demonstram a superioridade categórica e
irrefutável do brasileiro. O futebol, na sua visão, é essencial e
possui extrema importância para o país:
Eis por que a batalha do escrete implica toda a nação. Até os xavantes, que
põem em cima da nudez aquele casto cinto de barbante, até o xavante, dizia
eu, está pessoalmente interessado no bi. Em 50, não foi apenas um time que
fracassou no Maracanã. Foi o homem brasileiro, como em Canudos. Em 58,
quem venceu? O Brasil. Quando Bellini apanhou o caneco de ouro, era o
novo homem brasileiro que se proclamava (RODRIGUES, 2013, p. 25, 26)
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Neste trecho, algumas questões importantes para
compreender a visão do futebol em Rodrigues estão ilustradas: a
unanimidade da população em torno do futebol – inclusive, no
exemplo, por povos indígenas, revelando uma tentativa de
homogeneizar todos sob a concepção da nação –; a comparação do
fracasso de 1950 à Guerra de Canudos, reiterando a ideia de que o
futebol é tão importante quanto eventos representativos da história
oficial e a superação do brasileiro a partir do esporte.
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imaginário brasileiro: o “complexo de vira-latas”, cuja proposta é
ironizar o sentimento de submissão do Brasil perante o mundo.
Esta expressão é conhecida e veiculada até hoje por muitos
brasileiros para se referir à ideia de um complexo de inferioridade
aqui presente.
38
diferenciada. Todos passaram a ser, para o cronista, caracterizados
por uma grandiosidade extraordinária:
La fiesta
Hay algunos pueblos y caseríos del Brasil que no tienen iglesia, pero no
existe ninguno sin cancha de fútbol. El domingo es el día que más trabajan
los cardiólogos de todo el país. Un domingo normal, cualquiera puede morir
de emoción mientras se celebra la misa de la pelota. Un domingo sin fútbol,
cualquiera puede morir de emoción mientras se celebra la misa de la pelota.
Un domingo sin fútbol, cualquiera muere de aburrimiento.
Cuando la selección de Brasil naufragó en el Mundial del 66, hubo suicidios,
ataques de nervios, banderas patrias a media asta y crespones negros en las
puertas, y una bailandera procesión de dolientes cubrió las calles y enterró
al fútbol nacional con ataúd y todo. Cuatro años después, Brasil ganó por
tercera vez el campeonato mundial. Entonces Nelson Rodrigues escribió que
39
los brasileños dejaron de tener miedo de que los llevara la perrera, y fueron
todos reyes de manto de amiño y erguida corona.
En el Mundial de 70, Brasil jugó un fútbol digno de las ganas de fiesta y la
voluntad de belleza de su gente. Ya se había impuesto en el mundo la
mediocridad del fútbol defensivo, con todo el cuadro atrás, armando el
cerrojo, y adelante uno o dos hombres jugando al solitario; ya habían sido
prohibidos el riesgo y la espontaneidad creadora. Y aquel Brasil fue un
asombro: presentó una selección canzada a la ofensiva, que jugaba con
cuatro atacantes, Jairzinho, Tostão, Pelé y Rivelino, que a veces eran cinco y
hasta seis, cuando Gerson y Carlos Alberto llegaban desde atrás. En la final,
esa aplanadora pulverizó a Italia.
Un cuarto de siglo después, semejante audacia sería considerada un suicidio.
En el Mundial del 94, Brasil ganó otra final contra Italia. Ganó en la
definición por penales, al cabo de ciento veinte minutos sin goles. De no
haber sido por penales, las vallas hubieran seguido invictas por toda la
eternidad. (GALEANO, 2014, l. 1589 – 1596)
40
se do futebol para desenvolver suas denúncias acerca do sistema
capitalista e das desigualdades promovidas em nome do referido
esporte. Nostálgico do futebol antigo e amante do futebol
despretensioso, o escritor faz duras críticas à sua industrialização e
registra o combate às práticas mercantis contemporâneas. A magia
e o encantamento também são evidenciados, e assim são colocadas
as sombras e as luzes do futebol. Nesse sentido, considerando a
linguagem característica e a refinada ironia de Rodrigues,
encontramos um texto inusitado e envolvente; enquanto a
perspectiva engajada e denunciante de Galeano fazem com que seu
texto seja mais previsível.
Rodrigues e Galeano foram, na totalidade de suas produções,
obsessivos por algumas temáticas. O brasileiro, em suas crônicas,
em sua literatura e em seu teatro, foi obcecado por abordar
temáticas polêmicas para a sua época, como a infidelidade, a
homossexualidade e o erotismo. Galeano, por sua vez,
constantemente procurou comprovar a teoria da dependência e
criticou incansavelmente o capitalismo. Intencionou também falar
sobre as injustiças cometidas contra minorias – indígenas, negros,
mulheres, imigrantes. Ao pensar a questão das identidades
nacionais, enquanto Rodrigues permaneceu com uma perspectiva
exclusivamente brasileira, Galeano pensou um imaginário não
somente uruguaio, mas também latino-americano, já que a pauta
latino-americanista era tão cara a ele e perpassou toda a sua obra.
Portanto, procuraremos, aqui, realizar uma análise enfocando uma
temática em comum que interessa a esses dois escritores – cujos
princípios e convicções são tão distintos: a paixão pelo futebol e sua
relação com a identidade.
41
estudos que abordam a obra de Galeano enfatizam sobretudo as
suas produções com viés político, considerando a ampla
notoriedade que o autor destina a essa questão. Pretendemos, nesse
sentido, considerando a centralização na perspectiva política de
Galeano, suprir, de certa forma, a ausência de estudos acerca da
produção do referido autor sobre o futebol. Ademais, não
encontramos, até o presente momento, estudos que se
propusessem a estudar conjuntamente as crônicas futebolísticas
dos dois autores. Deste modo, nossa proposta visa também a
apresentar, através da literatura comparada, uma abordagem dos
dois autores em conjunto – que concluímos relevante pelo fato de
ainda não ter sido problematizada, como já evidenciamos.
Realizaremos, nas próximas duas seções – uma destinada a Nelson
Rodrigues; outra, a Eduardo Galeano –, uma breve discussão dos
estudos que consideramos significativos para o desenvolvimento
desta pesquisa.
42
objetivavam cultivar a imagem de um país vitorioso, que conseguiu
superar os problemas do passado. Neste intuito, os jogadores da
seleção eram encarados como personagens míticos e heroicos de
um povo que sempre valorizou a festa e a ludicidade.
Influenciado por intelectuais brasileiros cujas teorias
ressaltavam a presença da mestiçagem na identidade brasileira e
que pensaram a formação do “homem cordial” - Gilberto Freyre e
Sérgio Buarque de Holanda, respectivamente –, Nelson Rodrigues
cria o imaginário do brasileiro, pautado no ideal da mestiçagem, da
ginga e da criatividade (SILVA, 2016). Além de Freyre e Holanda,
Silva (2016) destaca também a influência de Paulo Prado na
tentativa de criar o imaginário do homem brasileiro: as crônicas de
Rodrigues contrariavam veementemente a tese da tristeza
brasileira de Prado e mostravam um brasileiro alegre e contagiante.
Nesse sentido, Fátima Antunes (2004) ressalta a influência das
obras desses 3 intelectuais nos escritos de Nelson Rodrigues,
afirmando que, na medida em que o cronista escrevia sobre futebol
em veículos de comunicação de grande circulação, voltados para
os torcedores de futebol, acabava por traduzir e divulgar certas
ideias e conceitos sobre a identidade nacional – as quais o grande
público não teria acesso. Nesse sentido, Rodrigues acaba
contribuindo na difusão das ideologias sobre o caráter e a
identidade, originariamente elaboradas por um grupo de ensaístas.
Tais noções incorporaram-se, por fim, ao imaginário acerca da
relação entre o futebol e o Brasil (ANTUNES, 2004).
Além dos termos objetivos do futebol – que Nelson chama de
termos técnicos, táticos e esportivos –, suas crônicas acabam
revelando, deste modo, uma outra dimensão, como as
interferências do sobrenatural no esporte, o dramatismo dos
grandes jogos e o lirismo do estilo dos craques. Revelam, ainda,
como todo um mundo particular em que os acontecimentos,
personagens e instituições do universo futebolístico tornam- se
signos de um universo mais amplo, que é a própria vida do
homem. A trajetória da conquista do tricampeonato mundial pelo
Brasil é representada como um drama épico através do qual o
43
cronista procura projetar um destino venturoso para a nação e fixar
uma imagem positiva do homem brasileiro (SILVA, 1997). Nesse
sentido, a crônica esportiva de Rodrigues busca ir além das
questões intrínsecas ao futebol – figura também como um meio de
disseminar a tese de que o futebol era um símbolo de uma
identidade nacional, representada também pelo negro e pelo
mestiço (SANTOS, CAPRARO, 2014).
A proposição do “complexo de vira-latas”, idealizada pelo
jornalista em suas crônicas, é outra temática constante nos estudos
aqui selecionados. O futebol teria o potencial de reinventar
tradições e de incitar a renúncia a este complexo, e os fracassos da
seleção seriam decorrentes da posição de inferioridade que corroía
a possibilidade de notabilidade da seleção. Para Rodrigues, em
suma, o “complexo de vira-latas” seria apenas abandonado nos
momentos de sucesso no esporte (SILVA, 2016). Luiz Henrique de
Azevedo Borges (2006) destaca, ademais, em sua Dissertação de
Mestrado Do complexo de vira-latas ao homem genial: o futebol como
elemento constitutivo da identidade brasileira nas crônicas de Nelson
Rodrigues, João Saldanha e Armando Nogueira, a relação que
Rodrigues estabelece entre a desvalorização do jogador brasileiro e
o fracasso do Brasil especificamente no contexto da copa de 1950: o
cronista reitera que esta derrota não estava ligada à miscigenação e
à natureza do homem brasileiro, mas sim ao seu complexo de
inferioridade. Nesse sentido, reitera-se a concepção de que as
relações criadas pelo futebol extrapolam o ambiente esportivo e
passam a avaliar a própria sociedade e suas instituições e de que
refletem os discursos sobre as percepções que o brasileiro tem de si
mesmo. Antunes (2004) ressalta, ainda, o fato de que Rodrigues
considerava o estado de espírito e a falta de auto-estima do
brasileiro pior que os próprios problemas sociais existentes no país.
Aliado ao combate à postura de inferioridade do brasileiro,
Rodrigues também apresenta um sentimento de aversão às práticas
futebolísticas europeias – cuja característica embasava-se na
utilização da força e na valorização da seleção enquanto uma
coletividade – e defende o individualismo presente no futebol
44
brasileiro (BORGES, 2006). José Carlos Marques (2012), em seu livro
O futebol em Nelson Rodrigues: o óbvio ululante, o Sobrenatural de
Almeida e outros temas, aponta uma contradição no pensamento de
Rodrigues acerca da negação da utilização da força no futebol: o
escritor defendia fervorosamente a ditadura militar, que foi
justamente a responsável pela inserção da ideia de tecnocracia no
esporte, uma vez que o regime introduziu, nas comissões esportivas,
profissionais ligados às escolas de educação física militares.
Rodrigues enaltece, então, a presença do craque, afirmando
que os jogadores brasileiros teriam o que falta nos outros: a
fantasia, a molecagem, a malandragem e a paixão (BORGES, 2006).
Para ele, o brasileiro não se parece com ninguém, nem mesmo com
os sul-americanos – ele seria, em suma, uma nova “experiência
humana”, um “homem genial’, dotado de elementos identitários
singulares (MARQUES, 2012; BORGES, 2006). Todas essas
características positivas – a criatividade, a alegria, a esperteza e a
capacidade de improvisação – são atribuídas, no pensamento do
autor, à miscigenação (BORGES, 2006).
Ocorre, desta forma, nas crônicas esportivas do autor, uma
projeção nos acontecimentos futebolísticos de certos dilemas que são
particularmente importantes para o projeto da nação da sociedade
brasileira – questões da identidade nacional, da diferença, da
diversidade étnica e cultural, do colonialismo (SILVA, 1997). O autor
entende que o futebol é elemento de primeira grandeza para o povo
brasileiro, que gera identidade compartilhada por milhões de
pessoas: o ato de torcer significa pertencer (BORGES, 2009). Nesse
sentido, Rodrigues utiliza-se desta dimensão representativa do
futebol como mediação para a construção do sentimento de
pertencimento à grande e vitoriosa comunidade nacional. Através
do escrete, em suma, o Brasil realiza-se plenamente como uma nação
(SILVA, 1997; ANTUNES, 2004).
Outro aspecto muito explorado no que diz respeito aos estudos
do futebol em Nelson Rodrigues é a questão da linguagem e dos
procedimentos retóricos utilizados pelo cronista para operar
determinados deslocamentos em sentidos que já eram associados ao
45
futebol pela opinião pública brasileira (MARQUES, 2012; SILVA,
2016; BORGES, 2006; SILVA, 1997; MARQUES, 2000; VEJMELKA,
2007). Marques (2012) e Borges (2006) argumentam que a escrita
esportiva de Rodrigues estava inserida na estética neobarroca –
conceito que definiria, segundo Marques, as características de uma
cultura miscigenada, sempre pronta a criar novas significações e até
mesmo opor-se às hegemonias dominantes no continente. Além
disso, caracteriza-se como espaço da polifonia, na medida em que o
autor dava voz às classes mais variadas da sociedade (BORGES,
2006). Marques (2012) chama a atenção, nas crônicas futebolísticas
de Rodrigues, para a excessiva utilização de metáforas
potencializadoras de sentido, de quebra da expectativa linear do
leitor e da criação de novas sínteses visuais e sintáticas, por meio de
imagens totalmente inusitadas e hiperbólicas. Este recurso de
utilização da desmesura e da excedência cria um espaço
desestabilizador e constitui-se como importante ferramenta formal
dos formuladores da estética neobarroca (MARQUES, 2012). Para
Silva (2016), ademais, a utilização dessa hiperbolização e dos
adjetivos, bem como o aspecto místico na escrita do autor, são
ferramentas utilizadas no intuito de não deixar dúvidas sobre as suas
verdades acerca do futebol.
A intertextualidade e a obsessão por determinados temas são
outras singularidades presentes nas crônicas de Rodrigues. O autor
utiliza-se de um contínuo processo de autocitação, de recuperação
incessante de suas próprias narrativas. Essas particularidades
aproximam a escrita de Nelson da nova realidade que ele cria para
dar conta do caráter dramático, hiperbólico e vislumbrado no
futebol (MARQUES, 2012). A tentativa de convencer os leitores
através da persuasão é também uma especificidade na produção de
Rodrigues: o escritor utiliza-se de uma aproximação, de um
discurso íntimo baseado na confiança profunda no destinatário, na
simpatia que ele nutre, na sensibilidade e boa vontade de sua
compreensão. Como recurso, chama a atenção do interlocutor,
através de um discurso com grau de intimidade e coloquialidade
(MARQUES, 2012). Assim, a disposição engenhosa dos recursos
46
retóricos – como a hipérbole e a ironia - ao longo do texto fica a
serviço de dois objetivos: convencer e comover o leitor (SILVA,
1997) acerca da potencialidade do Brasil e de seu povo.
A escritura caracterizada pela oralidade nas crônicas do
jornalista também é constantemente discutida nos estudos relativos
à produção esportiva. Segundo Marques (2000), sua obra deveria
ser lida em voz alta – ou representada no palco – para que se
pudesse dar conta de todos os elementos vocais e performáticos da
sua escrita, considerando a valorização dos registros sensoriais,
visuais e táteis do jogo. Borges (2006) afirma que os textos de
Rodrigues encontram-se na fronteira entre a narração radiofônica e
a escrita, considerando que são marcados pelo uso abundante de
adjetivos valorativos – norma corrente entre os locutores esportivos
de rádio – e pelo processo de repetição.
A vinculação à rubrica “crônica” foi fator essencial para que
Nelson desenvolvesse sua extravagante e rica interpretação do
futebol e dos acontecimentos do mundo esportivo: segundo
Marcelino Rodrigues da Silva (1997), a possibilidade de estabelecer
com os fatos que serviam de referência a seus textos uma relação
ambígua permitiu a Rodrigues a criação de uma concepção
particular do mundo futebolístico, em que as peças se encaixam
segundo uma lógica própria, mais ou menos desligada da realidade
objetiva. Nesses escritos, os acontecimentos do mundo do futebol
aparecem transfigurados, transformados pelo olhar do cronista,
deslocados da moldura objetiva da notícia. Este movimento, no
âmbito da imprensa esportiva, só foi possível porque, sob a rubrica
“crônica”, “o autor se encontra livre da obrigação jornalística de
revelar objetivamente os fatos” (SILVA, 1997, p. 41). Portanto,
através de um tom eminentemente oratório, com o uso dos mais
variados artifícios retóricos, o cronista torna-se um “orador
canastrão”, que retoca, transfigura e dramatiza os jogos, conferindo-
lhes uma dimensão nova e emocionante (SILVA, 1997). Além disso,
segundo Marcel Vejmelka (2007), a totalidade da obra rodrigueana
constitui uma rede complexa de referências internas e interferências
47
entre gêneros literário e jornalístico: esta densa rede intertextual
abrange o teatro, o conto e a crônica (VEJMELKA, 2007).
Por fim, considerando a faceta dramatúrgica de Rodrigues,
alguns estudiosos de suas crônicas futebolísticas dedicaram-se,
também, à relação entre o teatro e sua interpretação do esporte
(SANTOS, CAPRARO, 2014; MANDIL, 2012). Para André Mendes
Capraro e Natasha Santos (2014), Rodrigues obteve fonte de
influência e inspiração no seu próprio teatro dramático. Os autores
analisam a referidas crônicas e o roteiro da peça de teatro “A
falecida”. Destacam que o autor, ressentido pela impossibilidade
de se dedicar efetivamente ao teatro – a polêmica constante nas
suas peças, que foram proibidas, restritas e embargadas, não
tornava possível uma dedicação exclusiva –, acaba transformando
o futebol em drama teatral. Ram Avraham Mandil (2012) enaltece
a visão rodrigueana acerca do teatro ideal, em que o espectador não
deve estar distanciado, mas sim aspirado para dentro da cena e
coparticipante do seu desenrolar – interferindo e sendo afetado por
sua dinâmica. Essa figura está encarnada pelo torcedor de futebol,
como aquele que comparece ao estádio, interfere no jogo e
converte-se em um espetáculo, que se angustia, sofre, explode de
prazer, oscila em seu humor. Nesta relação intrínseca, não parece
haver distância entre o torcedor e o que se passa em campo.
48
A obra completa de Galeano é marcada pela denúncia das
desigualdades mundiais decorrentes do sistema capitalista. Mesmo
o seu livro El fútbol a sol y sombra – cujo tema principal é o esporte –
não deixa de ser uma obra de denúncia. Os poucos estudos que
encontramos acerca do futebol na obra de Galeano evidenciam essa
questão. Andrei Adornes Monteiro (2018) destaca que esta produção
acerca do futebol reflete sua visão de mundo e da sociedade,
marcada pela bipolaridade global do contexto da guerra fria. Em
seus escritos, Galeano utiliza-se do futebol para abordar, também,
grandes acontecimentos, como as ditaduras da América Latina, as
guerras mundiais, a ascensão do fascismo na Europa, entre outros.
O futebol, então, é colocado como indissociável da sociedade.
A questão da dignidade da América Latina e de sua
dependência diante da Europa são temas também constantemente
explorados em Galeano. Percebemos, a propósito, que os
estudiosos constantemente sublinham a influência da teoria da
dependência em sua obra. Nos textos sobre o futebol, esta temática
da América Latina aparece através de uma tentativa de auto-
afirmação, configurando-se um imaginário de que as seleções desta
região seriam as melhores – no Brasil, por exemplo, teria surgido o
futebol mais bonito do mundo, influenciado pela ginga e pela
capoeira (MONTEIRO, 2018).
Outra questão ressaltada por Monteiro (2018) e que importa
no nosso estudo é o fato de que, devido ao posicionamento político
esquerdista de Galeano, não se imaginava que ele acompanhasse
futebol. O estudioso destaca, aqui, a influência de Albert Camus,
cujo pensamento assinalava que o referido esporte é capaz de
preparar para a vida e para o convívio em sociedade. A partir do
futebol, Galeano posiciona-se sobre os eventos históricos
levantados ao longo do livro, enaltecendo as vitórias de
guerrilheiros e de governos de esquerda e as revoluções
anticoloniais. O fato de Galeano ter vivido todo o período Guerra
Fria é, assim, primordial para compreender seu posicionamento –
os acontecimentos históricos intencionalmente acentuados pelo
autor são consequência desta vivência e em sua produção estão
49
evidentes que os movimentos políticos que mais lhe são caros
advém dos países subdesenvolvidos (MONTEIRO, 2018).
Assim como Monteiro, Hugo Lovisolo (2001) - no artigo
intitulado Saudoso futebol, futebol querido: a ideologia da denúncia – e
Breno Pauxis Muinhos (2014) - no artigo A barbárie em campo –,
destacam o caráter de denúncia assumido por Galeano em seus
escritos sobre o futebol. Lovisolo (2001) destaca que a referida
produção opera em dois planos: a narração das situações sobre o
futebol e o conjunto de teorizações na interpretação do esporte.
Juntos, esses argumentos pretendem criar um efeito de denúncia
ideológica: no título de sua obra – El fútbol a sol y sombra – o sol
representa os aspectos positivos do futebol e a sombra simboliza
sua deterioração. Lovisolo ressalta, aqui, que Galeano apresenta o
Futebol como um esporte maravilhoso em sua essência, que sofre
uma decadência com a sua profissionalização e com a sua
vinculação ao dinheiro. Assim, o título do livro sugere que será
narrado o que se vê e o que não se vê, sendo o oculto o que será
iluminado ou denunciado na obra. (LOVISOLO, 2001). Lovisolo
contrapõe-se ao discurso de Galeano, alegando que sua produção
é baseada em um saudosismo, no qual as coisas são puras e plenas
quando nascem e se degeneram no decorrer do tempo. O estudioso,
assim, critica este desencanto com o tempo presente e a ideia de que
o futebol antigamente era mais puro e simples – ideal tão manifesto
na produção de Galeano.
Muinhos (2014), por sua vez, destaca, nos escritos de Galeano,
a presença da barbárie no futebol. Para isso, seleciona alguns textos
presentes em El fútbol a sol y sombra para ressaltar a metáfora da
guerra e o registro da violência no esporte. Também destaca que as
críticas às mazelas presentes no futebol são tão cruciais quanto a
elevação de feitos promovidos no esporte, evidenciando – assim
como Lovisolo – a ideia do sol e da sombra no futebol: a resistência
dos jogadores advindos das minorias ilustra o simbolismo das
luzes, enquanto a elitização e a manipulação dos resultados dos
esportes ilustram as sombras. Ademais, Muinhos (2014) faz
referência também ao gênero crônica, indicando que sua
50
simplicidade faz com que assuntos construam-se de maneira
familiar, aproximando o escritor do leitor.
Como mencionamos, os estudos acerca do futebol na obra de
Galeano são escassos. Os estudiosos que se propõem a estudar o
autor abordam, sobretudo, a produção cujo principal objeto são as
questões políticas e historiográficas – como o tema das ditaduras,
do exílio, das desigualdades presentes na América Latina
(MAZZIO, 2015; BARBOSA, 2009; MAFRA, 2016; ARAUJO, 2013).
Embora o autor, ao abordar o futebol, chame a atenção para essas
questões, o livro Fútbol a Sol y Sombra pouco foi analisado. Sandro
Aparecido Mazzio (2015) observa, a partir da trilogia Memoria del
Fuego, o processo de constituição de uma identidade latino-
americana, destacando que Galeano se propõe a retirar uma parte
da nossa história do esquecimento, questionando a historiografia
oficial. Resgata, assim, as tradições e costumes aqui existentes antes
dos colonizadores – mitos, lendas, contos populares – destacando
a diversidade étnica e cultural existente antes da chegada dos
colonizadores e a importância da cultura dos povos originários e
dos escravos. Nesse sentido, Galeano esforça-se para desvelar as
diversidades e contradições da região, acentuando uma identidade
latino-americana fragmentada que se recusa à homogeneização e
totalização (MAZZIO, 2015). André Francisco Berenger de Araujo
(2013) sugere que a noção de transculturação - teorizada por
Fernando Ortiz – auxilia na compreensão do trabalho de Galeano,
cujo pensamento indica um processo assimétrico, conflitivo e
complexo de formação da sociedade. Nesse sentido, o conceito de
transculturação expressaria melhor as fases do processo transitivo
de uma cultura a outra, porque este não consiste somente em
adquirir uma cultura diferente, mas indica também
necessariamente a perda ou desenraizamento de uma cultura
precedente, significando a conseguinte criação de novos
fenômenos culturais (ARAUJO, 2013).
Alguns estudos também ressaltam a experiência do exílio na
obra de Galeano: Marcia Horacio Barbosa (2009) analisa a obra Días
y noches de amor y de guerra e destaca a apresentação de um discurso
51
que se contrapõe à história oficial, enfatizando a voz das minorias
e ressignificando a historiografia acerca das ditaduras militares
presentes em vários países latino-americanos das décadas de 60 e
70. Liana Márcia Gonçalves Mafra (2016) aborda o livro Memoria del
Fuego – El siglo del viento – também produzido durante o exílio – e
enfatiza a correlação entre a experiência do autor e a sua narrativa:
com o exílio ocorre, na escrita de Galeano, uma subversão da noção
tradicional de gênero literário; seu estilo passa, então, a ser
marcado pela intertextualidade, com textos curtos e autônomos, em
forma de vinheta, organizados de forma aleatória. Esta escrita não
pertenceria a nenhum gênero fixo, constituindo-se uma escrita
“sem aduana” (MAFRA, 2016). A estudiosa ressalta, também, a
dificuldade de classificação dessa produção, que não se encaixa
como testemunho, poesia, ficção ou ensaio. Ocorre, assim, a partir
da experiência do desterro, uma desestabilização das fronteiras
entre os gêneros literários na escrita do autor (ARAUJO, 2013).
Trouxemos esta discussão porque os textos de Galeano acerca do
futebol seguem esta mesma lógica aleatória e apresentam-se em
fragmentos curtos e autônomos.
52
3. REFLEXÕES SOBRE
A LITERATURA E O FUTEBOL
53
personagens escrito pelo narrador a partir de sua vivência ou das
informações dos protagonistas e das testemunhas (SIEBERT, 2014).
Segundo Jorge de Sá (1985), no livro A Crônica, Pero Vaz de
Caminha foi um importante cronista, que se propôs a registrar o
circunstancial no contexto do contato do europeu com os indígenas
e seus costumes. O autor chega a afirmar que a literatura brasileira
“nasceu, pois, de uma circunstância. Nasceu da crônica”. (SÁ, 1985,
p. 7). Esta constatação deve ser problematizada, já que causa a
impressão de que o Brasil surge com a colonização, como se não
houvesse nada aqui anteriormente e como se a literatura fosse
exclusivamente composta por textos escritos – visão atualmente já
superada nos estudos acadêmicos.
Em contraposição ao pensamento de Sá, Simões (2009), no artigo
A evolução da crônica como gênero nacional, argumenta que a afirmação
de que a crônica vem de um tempo distante – que remonta ao século
XVI – parece exagerada: para o autor, a carta de Caminha possui
pouca relação com o modelo brasileiro de crônica estabelecido na
década de 1930. Segundo Simões, o gênero no Brasil constitui-se em
simbiose com a imprensa nacional (SIMÕES, 2009).
Esta relação da crônica brasileira contemporânea com a
imprensa originou-se com o feuilleton – folhetim, em português –,
modalidade literária que surgiu nos jornais franceses no século XIX
(SIMÕES, 2009; SCHEIBE, 2013; LOPES, 2010; CANDIDO,1993;
ARRIGUCCI, 1987). O folhetim era um espaço no rodapé do jornal,
que serviu de contraponto às notícias graves que dominavam os
periódicos e que paulatinamente popularizou-se, ganhando
tamanho e prestígio nos jornais. Nele, eram cabíveis capítulos de
romances, anedotas, comentários, poemas e crônicas (SIMÕES,
2009), que tinham como objetivo entreter e distrair os leitores
(COSTA, NETO, SOARES, 2007; ARAÚJO, BARBOSA, 2013).
Segundo Roberta Scheibe (2013), no artigo A Recriação do Real: As
Origens do Gênero Crônica no Brasil, os jornalistas vagavam pela
cidade, observavam o cotidiano e o estampavam no jornal no dia
seguinte. Assim, na medida em que os jornais tornam-se diários, a
relação entre jornalismo e literatura aproxima-se ainda mais e as
54
crônicas passam a ter estreita relação com a efemeridade do
cotidiano. No Brasil, a leitura diária do jornal incorpora-se aos
costumes da elite com a fundação, em 1808, da Gazeta do Rio de
Janeiro. Posteriormente, a partir de 1850, ocorre um aumento
considerável do espaço destinado à crônica (SCHEIBE, 2013), de
modo que a modalidade vai se consolidando no país. O gênero,
portanto, “emana da história, da literatura e do jornalismo”
(SCHEIBE, 2013, p. 3), trazendo qualidade ao jornal (LOPES, 2010).
Acerca desta relação entre o jornalismo e a crônica, Paula Cristina
Lopes (2010), em artigo intitulado A crônica (nos jornais): O que foi?
O que é? afirma que, diferentemente da eternidade da crônica
publicada em Quatrocentos, a efemeridade da crônica dos jornais
caracteriza-se como um gênero misto, literário-jornalístico. Assim,
“sua história enquanto género confunde-se, naturalmente, com a
própria história do jornalismo”. (LOPES, 2010, p. 3)
Moisés Massaud, no livro A Criação Literária, argumenta que
no século XIX a crônica libertou-se de sua conotação historicista,
passando a ter característica estritamente literária e beneficiando-
se da sua ampla difusão na imprensa (MASSAUD, 1984). Há um
consenso, assim, entre os estudiosos, de que a crônica que se
apresenta no século XIX relaciona-se com os jornais e difere muito
das acepções anteriores do vocábulo. De acordo com Arrigucci, a
crônica atual, para ser compreendida adequadamente,
deve ser pensada, sem dúvida, em relação com a imprensa, a que esteve
sempre vinculada sua produção. Mas seria injusto reduzi-la a um apêndice
do jornal, pelo menos no Brasil, onde dependeu na origem da influência
europeia, alcançando logo, porém, um desenvolvimento próprio
extremamente significativo. Teve aqui de fato um florescimento
surpreendente como forma peculiar, com dimensão estética e relativa
autonomia, a ponto de constituir um gênero propriamente literário.
(ARRIGUCCI, 1987, p. 52, 53)
55
das cidades do início do século XX. O movimento modernista
também é significativo para a compreensão da ascensão da crônica
brasileira, considerando que os intelectuais ligados ao grupo
estimularam o ideal de brasilidade, impulsionaram a produção da
literatura local e defenderam a simplificação dos textos. Passaram,
então, a escrever em uma linguagem coloquial, deixando de lado o
estilo formal e aproximando a linguagem dos textos à vida real dos
brasileiros (SCHEIBE, 2013, p. 6). O movimento modernista trouxe,
assim, uma aproximação entre a literatura e a comunicação
corrente da vida do brasileiro, aproximando a língua falada e a
língua escrita. Essa ênfase na oralidade traz consigo a “importância
de se inserir no texto escrito as locuções e os vocábulos presentes
na cultura popular” (HOLLANDA, 2003, p. 77).
Nesse sentido, Hollanda (2003) afirma que a crônica passa a
ser uma preciosa fonte no processo de afirmação da língua nacional
e das expressões populares brasileiras. Nela, os modernistas
vislumbraram um meio de combater a tradição de intelectuais
acadêmicos e catedráticos que consideravam hegemônicas
expressões rebuscadas. Deste modo, o movimento modernista
influencia a crônica brasileira, que ocasiona a possibilidade do
escritor utilizar-se da simplicidade, da liberdade de
experimentação, do tom coloquial e da linguagem fluida
(HOLLANDA, 2003). Essa mudança concretizada pela crônica é,
segundo Antonio Candido – em artigo intitulado A vida ao rés-do-
chão –, um milagre de simplificação e naturalidade, sobretudo num
país como o Brasil, onde se costumava identificar superioridade
intelectual e literária com grandiloquência e requinte gramatical
(CANDIDO, 1993).
Candido, mesmo compreendendo a característica daquilo que
se considera literatura no Brasil – relacionada com o requinte da
escrita – afirma que a crônica não é um “gênero maior”, alegando
que não se imagina uma literatura feita de grandes cronistas. A
constatação da crônica como gênero menor é, segundo Candido,
positiva, porque isso faz com que ela fique perto de nós; e que,
humanizando através da sua despretensão, ajusta-se à
56
sensibilidade cotidiana (CANDIDO, 1993). O autor enfatiza sua
efemeridade e sua aproximação com a realidade, afirmando que a
crônica, ao invés de “oferecer um cenário excelso, numa revoada
de adjetivos e períodos candentes, pega o miúdo e mostra nele uma
grandeza, uma beleza ou uma singularidade insuspeitadas”.
(CANDIDO, 2003, p.1)
Nesse sentido, há uma unanimidade, por parte dos estudiosos
do gênero, em atribuir à crônica uma relação com o efêmero. O
cronista aparece como um contador de uma história menor, aquém
dos grandes acontecimentos, como um comentarista dos
acontecimentos do cotidiano da cidade moderna, que escreve sobre
as pequenas coisas em tom de bate-papo entre amigos
(ARRIGUCCI, 1987, p. 55). Para não se afundar no efêmero,
Arriguci (1987) enfatiza a importância da qualidade da escrita e do
estilo da crônica como uma busca de uma saída literária, tornando
possível que palavras banais alcem voo (ARRIGUCCI, 1987). Esta
caracterização da crônica em relação ao cotidiano e à banalidade foi
reconhecida por Machado de Assis, ainda no final do século XIX.
No texto O nascimento da crônica, publicado originalmente em 1877,
o autor se propõe a falar das características do gênero, afirmando:
Há um meio certo de começar a crônica por uma trivialidade. É dizer: Que calor!
que desenfreado calor! Diz-se isto, agitando as pontas do lenço, bufando como
um touro, ou simplesmente sacudindo a sobrecasaca. Resvala-se do calor aos
fenômenos atmosféricos, fazem-se algumas conjeturas acerca do sol e da lua,
outras sobre febre amarela, manda-se um suspiro a Petrópolis, e la glace est
rompue; está começando a crônica. (ASSIS, 1994, p. 13)
57
práctica periodística de las redacciones. La vida cotidiana de la gente común,
y de los sectores marginados, así como la puesta en escena de prácticas de
supervivencia y lucha de dichos sectores suelen ser los temas abordados por
jóvenes cronistas para contar historias que conmueven, asombran e
indignan, en un diálogo permanente con la literatura y el análisis
sociocultural. (CALLEGARO, LAGO, 2012, p. 47)
58
inspiração constante para falar sobre algo. Assim, segundo a
autora, “nesse ofício de opinar sobre tudo e sobre todos, o cronista
passa a ser um observador escondido na redação do jornal, um
escravo do teclado e do tempo”. (CHIQUIM, 2013, p. 33)
Deste modo, Arrigucci (1987) pertinentemente destaca o fato
de que a crônica relaciona-se diretamente à modernidade, cuja
característica imediatista e veloz é evidente. Scheibe enfatiza,
seguindo a mesma linha de raciocínio, que o gênero acaba
duelando contra o tempo e seu público constitui-se de leitores
também apressados. Com isso, o cronista vê-se, também, obrigado
a diversificar conteúdos - voltados à informação e ao
entretenimento – com vistas a tornar seus textos mais atraentes e
dinâmicos (SCHEIBE, 2013). A crônica é, portanto, um fato
moderno, que se submete aos “choques da novidade, ao consumo
imediato, às inquietações de um desejo sempre insatisfeito, à
rápida transformação e à fugacidade da vida moderna”
(ARRIGUCCI, 1987, p. 53)
Cumpre-nos, para completar a seção proposta, e considerando
a especificidade dos textos abordados nesta pesquisa, dedicar um
espaço para a reflexão acerca da crônica esportiva. Segundo
Hollanda (2003), esta modalidade de crônica começa a se destacar
nas primeiras décadas do século XX, na medida em que os clubes
futebolísticos começam a crescer e o futebol passa a se popularizar.
O autor afirma:
59
Nesse sentido, o esporte passa a ocupar, paulatinamente, no
início do século XX, as páginas dos principais diários brasileiros
(MARQUES, 2010). Nas décadas de 40 e 50, o gênero se fixa como um
detentor de formato próprio (HOLLANDA, 2003), passando a ter
maior autonomia. O crescimento da modalidade relaciona-se
diretamente com o aumento dos interessados no esporte, na medida
em que o futebol caía no gosto popular e passava a movimentar a
população (COSTA, NETO, SOARES, 2007). Nessa conjuntura, a
crônica esportiva começa a se modernizar, através da retirada dos
termos em inglês e da aproximação com as expressões correntes
faladas nos estádios. Acerca deste processo, Hollanda pontua:
60
Nesse contexto, a crônica esportiva passa a ser espaço tanto de
construção das identidades nacionais quanto das clubísticas
(COSTA, NETO, SOARES, 2007). Hollanda (2003), ao debater a
função do cronista esportivo, afirma que este passou a ter função
de legislador, caracterizando-se como um crítico que deveria se
mostrar apto a “a discernir o que é justo do que é injusto, o probo
do ímprobo, o lícito do ilícito” (HOLLANDA, 2003, p. 102)
Nesse sentido, a crônica esportiva possui um embasamento
nos fatos reais e compromete-se com os acontecimentos esportivos.
Se a singularidade da crônica transita entre o ficcional e o não
ficcional, a modalidade crônica esportiva pende, nesse sentido,
para o lado jornalístico, mas com um adicional de liberdade de
transformação da notícia (COSTA, NETO, SOARES, 2007). Sobre
essa discussão, Hollanda argumenta:
61
É o caso de Nelson Rodrigues. Suas crônicas – sejam elas
esportivas ou não – seguem um padrão de escrita e estilo. O autor
acaba criando uma relação com seu leitor, com quem conversa
francamente em forma de diálogo, através de linguagem simples,
espontânea e bastante característica – plena de ideias fixas,
coloquialismos, expressões populares, gírias, ditados, ironias e
hipérboles. Através dessas características, Rodrigues acaba
estabelecendo uma amigável relação de proximidade com seu leitor.
Não há dúvidas, portanto, de que as produções esportivas de
Rodrigues que estamos abordando nesta pesquisa enquadrem-se
no protótipo de crônica brasileira. Esses textos são veiculados na
imprensa, com uma frequência determinada, abordam as situações
futebolísticas que aconteciam na conjuntura e possuem um
consumo imediato. Embora sua crônica seja jornalística, possui
uma característica crítica, liberta da objetividade que
historicamente foi imposta ao jornalismo. Tanto é que o autor
recorrentemente critica a objetividade do jornal, problematizando
os profissionais que seriam, em sua visão, “idiotas da
objetividade”. Em crônica escrita no contexto da Copa do Mundo
de 1962, na qual o Brasil sagrou-se campeão, Rodrigues comenta a
vitória brasileira na semifinal contra a seleção anfitriã – o Chile –,
mencionando sua crítica ao excesso de objetividade na imprensa:
62
textos visando à construção do livro, o que implica a inexistência
de uma relação com a imprensa. Isso quer dizer que não há uma
constância determinada das produções do autor, nem a pressão do
ambiente jornalístico, que caracterizam as crônicas publicadas no
jornal. Ademais, o autor não escreve todos os seus textos
contemporaneamente aos acontecimentos. Em seu livro, há textos
que falam do esporte desde seu surgimento, no séc. XIX, e
episódios que envolvem campeonatos e copas no século XX. Assim,
Galeano acaba realizando uma abordagem histórica do futebol, não
se isentando de opinar sobre as situações trazidas. Constantemente
realiza uma explanação sobre os acontecimentos históricos da
conjuntura que retrata – como guerras, desastres ambientais,
instauração de ditaduras, ações de grandes líderes, entre outros.
Embora estejam presentes textos que abordem situações efêmeras
do futebol, o autor também aproxima-se de eventos da
historiografia mundial oficial – retrata, deste modo, não apenas
situações pontuais e pequenas acerca do esporte, como também
situações importantes abordadas por historiadores. Quanto à
linguagem, sua obra caracteriza-se pela escrita simples e fluida,
marcada pela oralidade e coloquialidade.
Deste modo, e considerando toda a reflexão acerca da crônica
que realizamos, ponderamos que os escritos de Galeano sobre
futebol, embora aproximem-se do modelo brasileiro de crônica,
não podem ser considerados precisamente como pertencentes a
este gênero. Destacamos, primeiramente, que Galeano não escreve
na própria circunstância dos acontecimentos – como o faz
Rodrigues. Além dos argumentos elencados, é importante
mencionar que existem estudos que afirmam a particularidade da
crônica brasileira, que difere da concepção da crônica no resto do
mundo: considera-se que a crônica, no Brasil, teve um
florescimento peculiar, desenvolvendo uma autonomia
(ARRICUGGI, 1987). É pertinente, esse sentido, considerar esta
discussão ao estudar Rodrigues e Galeano. Cumpre mencionar, a
propósito, que o próprio autor uruguaio recorrentemente abordou
a temática da classificação dos gêneros, mencionando, em várias
63
ocasiões, que suas produções não pertencem a gêneros literários.
No terceiro volume do livro Memoria del Fuego, o autor expõe seu
pensamento sobre essa discussão:
64
esportivos dos autores à vivência que ambos tiveram nos jornais
desde cedo. Pensando as características das obras, compreendemos
melhor não apenas as produções esportivas dos autores, mas
também suas obras e atuações profissionais. Destacamos, portanto,
que as obras aqui estudadas possuem grande relação com o
formato de texto proporcionado pela ascensão da imprensa, da
urbanização e da industrialização – tanto pela característica dos
textos curtos e velozes, que se utilizam da transitoriedade de
partidas de futebol, como também pela sua linguagem simples
marcada pela oralidade.
65
como o The Bangu Athletic Club, o Paissandu Cricket Club e o Rio
Cricket e o Athletic Association (FILHO, 2010, p. 29). Os fundadores
do The Bangu, por exemplo, foram 7 ingleses, 1 italiano e 1 brasileiro
– o brasileiro era branco, enfatiza o autor (FILHO, 2010, p. 29).
Nesse sentido, os clubes das grandes cidades eram compostos
pela elite, formada em sua maioria por estudantes de direito e
medicina, cuja mentalidade se caracterizava pelo positivismo e
eurocentrismo da ciência (HOLLANDA, 2012, p. 13).
Paulatinamente, contrariando o interesse da aristocracia, o esporte
passa a se popularizar:
66
por uma maioria de ingleses, com o consentimento da direção da
fábrica, que disponibilizou também um campo próximo da região.
A distância do subúrbio, contudo, impossibilitou que os ingleses
constituíssem equipes fechadas apenas com compatriotas da
cidade, obrigando-os a recorrer aos operários da fábrica
(ROSENFELD, 2007, p. 82).
De acordo com Guterman (2010), a transição do futebol, no
contexto brasileiro, de esporte de elite para esporte de massa,
ocorre concretamente na década de 1920. Koch (2012) afirma, assim
como Guterman, que um dos grandes momentos do futebol
brasileiro deu-se na década de 20, com a popularização do esporte
e consequente entrada dos negros na modalidade: segundo o autor,
a exclusividade da prática à elite brasileira não se sustentava frente
à necessidade de vitórias nos desafios esportivos, fator que
demandou a participação de membros de outros grupos sociais, no
intuito de favorecer as equipes nas partidas e torneios. O futebol,
portanto, proporcionou a visibilidade de um grupo de indivíduos
até então invisível (KOCH, 2012). Rosenfeld (2007), acerca da
abertura do futebol ao negro, afirma:
67
Nesse aspecto, a popularização do futebol, embora rejeitada pelos seus
praticantes aristocráticos, pode ter sido vista na época como apaziguador
social, em meio aos primeiros movimentos de organização operária. Os
ingleses sabiam bem o que isso significava – afinal, como já vimos, o futebol
servira exatamente para essa finalidade em meados do século XIX na
Inglaterra. No Rio, a capoeira, tornada definitivamente marginal depois dos
conflitos com a Revolta da Vacina (1904), deu lugar ao futebol entre os
pobres, ainda que seus times tivessem de jogar na Liga Suburbana de
Futebol, criada em 1907, e não na liga oficial da cidade, cujo estatuto vetava
atletas amadores “de cor”. Em São Paulo, os times de operários se
agruparam primeiramente na Várzea do Carmo, que havia sido o mesmo
berço do futebol da elite. O nome “várzea”, por essa razão, acabou servindo
para designar qualquer time e qualquer campo com as características
amadoras, em jogos sempre aos domingos. (GUTERMAN, 2010. l. 385)
68
sistema escravista, estava marcada pelo analfabetismo e pela
herança escravocrata nas mentalidades e hierarquias – este sistema
deixou em nossas cidades o sentimento de desprezo pela via
pública, já que esse era um espaço de circulação de negros e da
população pobre (MASCARENHAS, 2015). Além disso, havia uma
mentalidade que relacionava o sedentarismo à nobreza, o que
ocasionava um desprezo pelo trabalho muscular. Nesse contexto, a
casa senhorial era um espaço de ordem e moralidade, oposto aos
espaços públicos tomados como sujos e pestilentos
(MASCARENHAS, 2015). No início do século XX inicia-se uma
mudança nesses paradigmas:
De uma cidade colonial, alheia aos esportes e marcada por fortes restrições
de uso dos já escassos espaços públicos, passamos a uma “outra” cidade,
onde fervilha a prática esportiva e os espaços públicos, novos ou ampliados,
são socialmente preenchidos de forma bem mais intensa. O que não
significa, entretanto, uma vida urbana menos controlada ou previsível
(MASCARENHAS, 2015, l. 1541).
69
rendimentos financeiros, é pela atuação coordenada de certas agências, entre
as quais podemos citar, além das instituições esportivas, os meios de
comunicação de massa, os Estados Nacionais que acolhem esses eventos, os
fabricantes esportivos, entre outros. (DAMO, 2012, p. 71)
Uma atividade voltada para a redenção do corpo pelo exercício físico e pela
competição, dando-lhe a higidez necessária à sua sobrevivência num
admirável mundo novo, um universo orientado pelo progresso, por coisas
estrangeiras, governado pelo mercado, dinamizado pela industrialização e
agenciado por um estranho sentido de autonomia da pessoa, não só como
parente ou amigo, mas como indivíduo e cidadão. Um claro que o “esporte”
e as novas ideias de saúde e higiene promovem uma mudança
paradigmática relativamente ao corpo na sociedade brasileira. Daí o rebuliço
em torno de tudo o que chega com ele. (DAMATTA, 2006, l. 1319)
70
Na medida em que o futebol se nacionaliza na América Latina,
vai também perdendo seu caráter inglês e adquirindo uma
caracterização mais regional. Para ilustrar este argumento, trazemos
como exemplo uma conduta realizada por Getúlio Vargas: em seu
governo, despenderam-se esforços para acelerar o processo de
profissionalização do esporte, estatizando seu controle
(GUTERMAN, 2010). De acordo com Rodrigo Koch (2012), o futebol
começa a assumir papel relevante na política brasileira – Getúlio
Vargas passa lançar decretos que favorecem o esporte, cujos
objetivos levavam à ideia de disciplina da nação, que estava prestes
a se envolver na Segunda Guerra Mundial. Vargas vislumbrava no
esporte uma alta capacidade de harmonização política (KOCH,
2012). Esta tentativa de institucionalização do futebol no Brasil, no
contexto de iminência de uma grande guerra, acarretou a exigência
de uma nacionalização dos clubes, com alterações de nomes e
dirigentes (FRANZINI, 2000; KOCH, 2012). Foi publicada, neste
contexto, uma portaria que decretou a proibição de manifestação das
nacionalidades em eventos esportivos, argumentando em prol da
manutenção da ordem (FRANZINI, 2000). Deste modo, foram
obrigados a mudar de nome:
71
fundo de um ritual de encenação protocolar das relações entre o
poder e o povo”. (LOPES, 1994, p. 77).
Considerando esse processo de disseminação do esporte,
muitos foram os estudiosos que se esforçaram em compreender as
motivações que acarretaram o sucesso e a popularização do futebol
no Brasil e na América Latina em geral. As análises que tratam do
assunto apontam uma unanimidade no sentido de que essa
popularização não foi um processo desprovido de tensões e
contradições, tendo em vista as ambíguas reações ao esporte –
alguns intelectuais, influenciados por um sentimento nacionalista,
posicionaram-se contra a atividade. Outra constatação relaciona-se
ao fato de que o futebol esteja associado ao advento da urbanização
e da industrialização – como já apontamos –, representando um
papel fundamental nessa conjuntura. Jacques Paul Ramírez
Gallego, estudioso do fenômeno futebolístico no Equador, no
artigo Fútbol e identidad regional en Ecuador, afirma que o esporte em
geral, e o futebol em particular:
72
auditivo, táctil, corporal, e de odores, totalizando a própria experiência
humana. Daí a importância de estudar os aspectos simbólicos, ideológicos e
ritualísticos do futebol, tal como esse esporte é praticado no Brasil
(DAMATTA, 1982, p. 15)
73
dos objetivos e a baixa hierarquização formal entre os integrantes da
equipe. A interdependência dentro do campo, segundo o autor,
confirma o espírito de igualdade e o fato de que o individualismo
excessivo prejudica o grupo. No futebol, é postulado o esforço entre
pessoas “iguais”, demandando coesão – mas sem eliminar a
possibilidade de um sucesso individual compatível com a
coletividade (FLORES, 1982, p. 46 – 48).
Deste modo, num país onde a massa jamais tem voz e que fala
através de seus líderes, o futebol possibilita à população um
sentimento democrático baseado na horizontalização do poder e
uma certa intimidade com os símbolos nacionais (DAMATTA,
1982). É justamente essa constatação que DaMatta compreende
como uma significativa fundamentação para o entendimento da
repercussão do futebol no país:
74
brasileiros terem muitas dúvidas sobre sua sociedade enquanto nação
moderna, aspirante a um lugar ao sol dentro de uma ordem mundial;
futebol, carnaval e as relações pessoais dizem que a sociedade brasileira é
grande, criativa e generosa, tendo – como acontece com o futebol ali
praticado – um glorioso futuro. (DAMATTTA, 1982, p. 40)
Outro elemento que poderia explicar essa definitiva adoção do futebol pelo
Brasil é o fato de essa modalidade de football ser jogada com os pés e não
com as mãos, como ocorre na versão americana desse esporte. Ora, um jogo
praticado obrigatoriamente com os pés engendra uma notável imprecisão,
mesmo quando um time muito superior joga com um time sabidamente
inferior. Se o football americano é bastante preciso, desenrolando-se como
um jogo tático, aberto a uma hipertecnicalidade e especialização (pois nele
existe um time de defesa e outro de ataque), as jogadas são planejadas e
exatas, o futebol jogado com os pés apresenta de saída um problema de
coordenação motora razoável, qual seja: como fazer com que os pés que
servem para andar e correr sejam igualmente um instrumento de condução
e controle da bola. Tal prescrição explica o nível de imprevisibilidade que
estrutura essa variante futebolística, corroendo planos e táticas, liquidando
as especializações (as posições tornam-se intercambiáveis), abrindo, enfim,
esse esporte às ideias de sorte, destino e predestinação. Daí a sua imediata
ligação com crenças religiosas, algo muito mais raro de ocorrer quando se
trata de modalidades esportivas como o voleibol, a natação e o atletismo que
são esportes com uma menor dimensão aleatória. (DAMATTA, 2006, l. 1555)
75
(DAMATTA, 2006). Isso também é apontado como sustentação da
popularidade do futebol, já que este esporte tem a capacidade de
atrair praticantes de variados biotipos, muitas vezes preteridos por
outros esportes, como o voleibol ou o basquete. Rosenfeld
argumenta, além disso, que o jogo com os pés representa um ato de
agressão e barbárie – em contraposição ao jogo com as mãos, que é
incomparavelmente mais civilizado. Assim, afirma que “todo
homem (isto é, a criança ou o bárbaro que há nele) tem a tendência
de impelir para frente, com o pé, latas e cascas de frutas que estão
no caminho” (ROSENFELD, 2007, p. 94).
O futebol é, nesse sentido, uma expressão simbólica de
energias primitivas (ROSENFELD, 2007). A particularidade do
esporte relacionada à prática ao ar livre e sobre uma superfície de
grama ou de terra é um apelo numa sociedade cada vez mais
asfaltizada e urbanizada. Assim, o futebol, praticado na natureza,
possibilita uma sensação primitiva de dispersão das vozes
(MARQUES, 2002).
76
propriedade do futebol, Dávila e Londoño, ao estudar a relação entre
o futebol e a identidade na Colômbia, afirmaram:
77
a popularização do esporte traz consigo a oportunidade de uma
mobilidade social altamente verticalizada.
Além disso, a caracterização do futebol como jogo
imprevisível, no qual a habilidade com os pés é essencial, relaciona-
se, para DaMatta, no caso brasileiro e de maneira inconsciente, com
a presença de elementos africanos no país – como o samba e a
capoeira (DAMATTA, 2006, l. 1569). Este argumento é
fundamentado em análises elaboradas por outros estudiosos
brasileiros – como Mário Filho e Gilberto Freyre – que concebem
pela primeira vez o imaginário do futebol mestiço, dotado de
elasticidade e ritmo. Freyre, em matéria publicada no Diário de
Pernambuco, em 1938, afirma:
A única coisa que o ajudava era a intuição. A certeza de uma vocação que o
fazia fabricar uma bola de meia. Para jogar, para aprender. Procurando se
78
lembrar do que tinha visto. Imitando, a memória servindo de espelho. Um
espelho não muitas vezes fiel (FILHO, 2010, p. 73).
79
em si que, quando se transforma em competição – quando se
normatiza e comercializa –, acaba perdendo a essência marcada
pelo caráter lúdico (ECO, 1984; MARQUES, 2012). Assim, a partir
disso, Eco estabelece uma categorização do esporte: o “esporte ao
quadrado”, o “esporte ao cubo” e o ‘esporte elevado à enésima
potência”. De acordo com essa esquematização, o esporte ao
quadrado apresenta-se quando o jogo passa a ser uma atividade
praticada para determinadas pessoas, um espetáculo esportivo
para os outros, representando as “especulações e os comércios,
bolsas e transações, vendas e consumos decorrentes” (ECO, 1984,
p. 223). O esporte ao cubo surge a partir do discurso acerca do
esporte enquanto ele é assistido – este é o discurso da imprensa
esportiva. Tal discurso engendra, por sua vez, o discurso sobre a
imprensa esportiva – que é o esporte elevado à enésima potência
de Eco. Assim, a “falação esportiva” - consequência do esporte
elevado à enésima potência – faz com que o jogo não seja mais tão
importante: o esporte atual, de acordo com Eco, não é mais
genuinamente restrito ao âmbito esportivo; importando apenas a
falação a respeito do esporte. Deste modo, o autor alega que, se as
Olimpíadas fossem contadas a partir de imagens fictícias, nada
mudaria – portanto, não é mais o esporte que importa, e sim o
imaginário criado por ele (ECO, 1984, p. 223).
Ao falar especificamente sobre o futebol – até então o autor
tratou genericamente sobre esportes –, Eco apresenta a ideia de que
este seria um espetáculo cósmico sem sentido, desprovido de
sentido e ligado à inutilidade das coisas, caracterizado pela
presença de multidões de torcedores que enfartam nas
arquibancadas e de “juízes que pagam um domingo de glória com
a exposição de sua pessoa às mais graves injúrias” (ECO, 1984, p.
228). O autor indica, assim, que
80
e de outras coisas), discutem-se os atos do treinador; em vez de se criticarem
as posições do deputado, critica-se a posição do atleta; em vez de se
perguntar (pergunta difícil e obscura) se o ministro fulano assinou ou não
pactos mais obscuros com o poder sicrano, pergunta-se se a partida final ou
decisiva terá sido fruto do acaso, da forma atlética, ou de alquimias
diplomáticas (ECO, 1984, p. 231).
81
de um torcedor comum, como um fã de futebol que procurava dar
palpites sobre a seleção, como faz usualmente um torcedor. Após a
conquista do tricampeonato, o General saiu para o meio do povo,
enrolado em uma bandeira brasileira. Procurou, com a bola,
demonstrar habilidade em fazer embaixadinhas. É sob a tutela de
Médici que a seleção brasileira conquista em definitivo a Taça Jules
Rimet – vitória que tem um simbolismo importante para o regime.
Ademais, a transmissão inédita ao vivo para todo o território
nacional colaborou para o sentimento de unidade e consenso
pretendido pela ditadura (GUTERMAN, 2010).
A figura do General Médici foi muito retratada nas crônicas de
Nelson Rodrigues. O autor era, além de grande admirador do
regime militar brasileiro – como já evidenciamos no primeiro
capítulo – amigo pessoal do general. Na crônica O homem que ainda
fala em “Pátria”, Rodrigues dedica-se em homenageá-lo:
82
e das peladas. Isso é raro, ou melhor dizendo, isso é inédito na história dos
presidentes brasileiros. Imaginem um Delfim Moreira ou um Rodrigues
Alves ou um Wenceslau Brás entrando no Estádio Mario Filho. Qualquer
um desses perguntaria: “Em que time joga o Fla-Flu?”, “Quem é a bola?” ou
“O córner já chegou?” O nosso presidente sabe tudo de futebol. Eu diria que
hoje nenhum brasileiro será estadista se lhe faltar a sensibilidade para o
futebol. (RODRIGUES, 2008, p.231, 232)
83
Segundo o autor, nessas ocasiões, é evidente a utilização do futebol
como trampolim político por parte dos governos ditatoriais. No
caso brasileiro, o autor argumenta que a busca de aproximação
entre o governo e a imagem vencedora da seleção ocasionou bom
resultado ao regime, impulsionado pela popularização da
televisão. Em 1978, por sua vez, o governo ditatorial argentino
buscou utilizar-se dos benefícios de sediar uma Copa do Mundo.
Além de vencer aquela Copa – embora a vitória seja até hoje
questionada e polemizada –, a Argentina, aproveitando-se dos
holofotes, conseguiu ostentar uma imagem de nação desenvolvida
– com estádios impecáveis e aeroportos novos – perante o mundo
(BREITKREITZ, 2012). A respeito da Copa de 1978, Galeano diz:
84
contrariam essa tese é representada pelo movimento de
democratização no contexto ditatorial brasileiro organizado pela
torcida do Corinthians – conhecido como “democracia corintiana”.
Segundo Guterman, o movimento pela democratização
identificava-se com o futebol, considerando sua característica de
esporte de massa por definição. Assim, referindo-se ao movimento
encabeçado pelo Corinthians na conjuntura do regime militar
brasileiro, Guterman afirma:
85
como palco em que se manifestam opiniões contrárias ao regime,
podendo ser considerado como uma “ilha de liberdade em meio a
um oceano de repressão ideológica, política, cultural, econômica”.
(LORENZON, 2015, p. 11)
Dado o exposto, e para finalizar a seção, consideramos
relevante esse debate aqui apresentado no sentido de expor a
importância e a justificativa de estudos acadêmicos a partir do
futebol e de crônicas futebolísticas. Neste esporte, muito se revela
acerca da sociedade e do debate sobre as identidades. Sergio
Villena Fiengo, em artigo intitulado El fútbol y las identidades –
Prólogo a los estudios latinoamericanos , presente no livro Futbologias:
fútbol, identidad y violência en América Latina – resultado do
Segundo Encontro do Grupo Deporte y Sociedad, realizado no
Equador, em 2000 – apresenta o argumento de que a partir de uma
análise transdisciplinar do futebol é possível realizar estudos
sobre diversos âmbitos na América Latina. Segundo o autor, os
estudos acerca do referido esporte são, atualmente, muito
diversificados: no âmbito econômico, analisa-se sua crescente
comercialização e transnacionalização; no âmbito político, estuda-
se veementemente a utilização do esporte como fator de
promoção nacionalista e de homogeneização cultural, bem como
a esfera da resistência que o futebol apresentou diante de
contextos repressivos. No âmbito cultural, destacam-se os estudos
acerca da função comunicativa e publicitária do esporte, no
sentido de que o futebol em particular acaba apresentando um
canal publicitário para produtos de diversos tipos – como os
implementos esportivos, a comida rápida, os equipamentos
eletrônicos e a cerveja. Finalmente, Fiengo destaca que a tendência
dos estudos sociais na América Latina recai - ainda que não
exclusivamente – sobre o processo de formação de identidades
socioculturais no marco dos espetáculos futebolísticos (FIENGO,
2003, p.23), âmbito no qual está inserido o presente trabalho.
Importa, portanto, salientar que nosso posicionamento
aproxima-se das teorias que defendem que o futebol não se
restringe apenas ao cumprimento de um papel de controle social,
86
que faria com que a população se isentasse de pensar questões
sociais. Entendemos que, a despeito do futebol ter sido utilizado
em diversas ocasiões como um desviante da atenção das
problemáticas da sociedade, há que se atentar ao fato de que ele
também foi capaz de canalizar importantes movimentos de
protesto e resistência, como na ocasião das ditaduras latino-
americanas. Pensamos, nesse sentido, que a consideração do
futebol como tão somente um alienante social apresenta, na
realidade, uma ignorância quanto às suas funções sociais e uma
renúncia de seu valor cultural. Neste esporte, podemos identificar,
de maneira bastante concreta, questões polêmicas da sociedade,
como os regionalismos, os nacionalismos, o racismo e o machismo,
por exemplo – motivo pelo qual a ascensão do futebol no contexto
do séc. XX é um fenômeno digno de ser pesquisado na academia.
Vislumbramos, neste esporte, concordando com diversos
estudos aqui apresentados, um espaço em que se minimizam
desigualdades, atraindo um público diversificado. Um jogo de
futebol é capaz de mobilizar – diferentemente de outras atividades
– pessoas das mais variadas estratificações sociais, de modo que
seja possível encontrar, em um estádio, desde membros das classes
sociais mais baixas até a elite; homens e mulheres; crianças e idosos.
A constatação acerca das camadas sociais é significativa, sobretudo
se considerarmos a particularidade altamente hierarquizante e
desigual das sociedades latino-americanas, em que praticamente
inexistem espaços que possibilitem encontrar, concomitantemente,
pessoas de diferentes estratificações sociais. Nesse sentido,
concordamos com DaMatta no que diz respeito ao aspecto
relativamente democrático do futebol. Além de compreender esta
caracterização igualitária do referido esporte, visualizamos,
também, um papel importante que está relacionado ao contato com
a natureza, sobretudo nas capitais – cujos espaços são intensamente
asfaltados, cuja rotina é muito estressante e onde se encontram os
clubes mais significativos e gloriosos. Todas essas argumentações
são elencadas a fim de encontrar uma justificativa plausível para a
compreensão da popularidade do futebol na América Latina, bem
87
como de sua constante utilização na formação das identidades. Por
fim, interessa reiterar a significativa possibilidade que o futebol
ocasiona aos países menos desenvolvidos – como os que compõem
a América Latina. A partir do bom desempenho no futebol, torna-
se factível a contraposição à velha ordem segundo a qual os
colonizados estariam permanentemente submetidos aos
colonizadores (DAMATTA, 2006). É essa experiência da vitória e
do desmonte de estruturas enraizadas que faz do futebol um
espaço mágico e fascinante, capaz de desconstruir uma lógica do
mundo; sobre o qual pretende-se sustentar um ideal harmonioso e
digno de identidade.
88
4. FUTEBOL E IDENTIDADE
Amigos, eu ando falando muito do Brasil. E muita gente já rosna, com tédio
e irritação: — “Você está descobrindo o Brasil?” É exato. Estou, sim, estou
descobrindo o Brasil.
Eis que, de repente, cada um de nós, cada um dos setenta milhões de
brasileiros passa a ser um Pedro Álvares Cabral. Já descobrimos o Brasil e
não todo o Brasil. Ainda há muito Brasil para descobrir. Não há de ser num
relance, num vago e distraído olhar, que vamos sentir todo o Brasil. Este país
é uma descoberta contínua e deslumbrante. E Justiça se faça ao escrete: — é
ele que está promovendo, quem está anunciando o Brasil.
A princípio, o sujeito pode pensar que o escrete revelou o Brasil para o
mundo. Isso também. Todavia, o mais importante e o mais patético é a
descoberta do Brasil para os próprios brasileiros. Pergunto: — o que
sabemos nós do Brasil? Pouco ou, mesmo, nada. A partir de 58, o Brasil
começou a aparecer aos nossos olhos (RODRIGUES, 2013, p. 336)
89
Rodrigues traz, aqui, a ideia de uma revelação repentina de
uma nação ao mundo e, incrivelmente, ao próprio brasileiro. É a
conquista do primeiro campeonato mundial, em 1958, que revela o
Brasil – descoberta “contínua e deslumbrante”. Antes, na visão do
autor, pouco se sabia sobre o país – a nível nacional e internacional.
Galeano, da mesma forma que Rodrigues, aborda o futebol
como instrumento de reconhecimento da nação uruguaia.
Mencionando as vitórias olímpicas consecutivas da seleção
uruguaia em 1924, na França, e 1928, na Holanda, o autor utiliza-se
do mesmo argumento de Rodrigues – o futebol teria impulsionado
a popularidade uruguaia:
90
constatada através do futebol – para fundamentar seus discursos.
Valemo-nos, para compreender esse conceito, da teoria de Benedict
Anderson produzida no livro Comunidades Imaginadas – publicado
em 1983. Segundo este autor, a era do nacionalismo teve princípio
na Europa Ocidental, no século XVIII, com a ascensão do
Iluminismo e do Secularismo Racionalista. Apesar do declínio da
fé religiosa, o sofrimento que ela ajudava a apaziguar continuou a
existir, e a ideia de nação acaba se mostrando adequada para essa
finalidade. Nesse sentido, o nacionalismo, segundo Anderson,
deve ser compreendido “alinhando-o não a ideologias políticas
conscientemente adotadas, mas aos grandes sistemas culturais que
o precederam, e a partir dos quais ele surgiu, inclusive para
combatê-los” (ANDERSON, 2008, p. 39). Os sistemas culturais a
que o autor se refere são a comunidade religiosa e o reino dinástico.
Anderson defende a ideia de que a comunidade religiosa
sofreu um declínio na Idade Média, como consequência das
explorações do mundo não-europeu, que ampliaram o horizonte
cultural-geográfico e os conceitos a respeito das formas de vida
humana. Além disso, nessa época também ocorreu o rebaixamento
gradual da língua sagrada, ilustrada pelo declínio do latim. O autor
explicita, ademais, que antes da ascensão do nacionalismo, o reino
dinástico despontava como único sistema político imaginável, no
qual a organização da realeza aparecia em torno de um centro
elevado e sua legitimidade derivava da divindade, e não da
população - que nessa conjuntura é composta por súditos, e não por
cidadãos. O declínio da legitimidade automática da monarquia
sagrada manifesta-se, nesse sentido, durante o século XVII
(ANDERSON, 2008).
Porém, as Comunidades Imaginadas das nações não surgiram
apenas a partir da superação das comunidades religiosas e dos
reinos dinásticos, substituindo-os. Ocorreu, também, uma
transformação fundamental nos modos de apreender o mundo, e
essa mudança é essencial para compreender a formulação do ideal
de “nação”: na conjuntura europeia do século XVIII, floresceram
duas formas de criação imaginária – o romance e o jornal. Esses
91
dois novos meios possibilitaram a propagação de obras ligadas a
movimentos nacionalistas. Destacamos, aqui, a argumentação de
Anderson acerca da extraordinária e paradoxal “cerimônia de
massa” criada pelo jornal: sua leitura é realizada no silêncio da
privacidade de cada indivíduo, o qual possui, entretanto,
consciência de que aquele conteúdo está sendo lido
simultaneamente por milhares – ou milhões – de pessoas “cuja
existência lhe é indubitável, mas cuja identidade lhe é totalmente
desconhecida” (ANDERSON, 2008, p. 68). Assim, “o leitor do
jornal, ao ver réplicas idênticas sendo consumidas no metrô, no
barbeiro ou no bairro em que mora, reassegura-se continuamente
das raízes visíveis no mundo imaginado da vida cotidiana”
(ANDERSON, 2008, p. 68).
Nesse sentido, o declínio de convicções mutuamente
entrelaçadas, somado ao desenvolvimento dos meios de
comunicação cada vez mais velozes, acarretou na busca por uma
nova maneira de unir a fraternidade, o poder e o tempo. O
capitalismo editorial surgiu, nesse contexto, como elemento
catalisador, que permitiu que as pessoas pensassem sobre si
mesmas e se relacionassem com as demais de maneira
radicalmente nova (ANDERSON, 2008, p. 70). A idealização da
comunidade imaginada foi, portanto, confirmada pela leitura.
A partir dessa contextualização acerca da complexidade das
raízes históricas em torno do ideal de nação, Anderson propõe
defini-lo como uma comunidade política imaginada,
intrinsecamente limitada e, ao mesmo tempo, soberana. Segundo o
autor, a nação
92
imagina ter a mesma extensão da humanidade. Nem os nacionalistas mais
messiânicos sonham com o dia em que todos os membros da espécie
humana se unirão à sua nação, como por exemplo na época em que os
cristãos podiam sonhar com um planeta totalmente cristão.
Imagina-se a nação soberana porque o conceito nasceu na época em que o
Iluminismo e a Revolução estavam destruindo a legitimidade do reino
dinástico hierárquico de ordem divina.
[...]
E, por último, ela é imaginada como uma comunidade porque,
independentemente da desigualdade e da exploração efetivas que possam
existir dentro dela, a nação sempre é concebida como uma profunda
camaradagem horizontal. No fundo, foi essa fraternidade que tornou
possível, nesses dois últimos séculos, que tantos milhões de pessoas tenham-
se disposto não tanto a matar, mas sobretudo a morrer por essas criações
imaginárias limitadas. (ANDERSON, 2008, p. 32 – 34)
93
camaradagem, de que Anderson fala; a bandeira é hasteada e está
presente também nas arquibancadas, em meio à torcida; diante do
gol surge a manifestação explosiva de amor à pátria. Assim, todos
esses elementos configuram a tentativa de promoção de um
imaginário consolidado a respeito da nação. O futebol pode ser,
portanto, compreendido como uma ocasião em que ocorre um
retrato concreto e experimental da comunidade imaginada – uma
ocasião que ultrapassa a utilização de código ideológico,
estabelecendo, também, “um código visual, auditivo, táctil,
corporal, e de odores, totalizando a própria experiência humana”
(DAMATTA, 1982, p. 15).
Cumpre destacar, também, que os autores, utilizando-se do
futebol, propagam a idealização das comunidades imaginadas
através da literatura. Retomando Anderson, a literatura possui um
papel singular no processo de confirmação da ideia de nação. No
caso de Nelson Rodrigues, esta divulgação é realizada pelas
crônicas literárias nos jornais, cujo alcance é ainda maior em relação
a livros. Assim, ressaltamos a importância da literatura no processo
de constituição de uma ideia de nação.
A propósito desta constatação, Doris Sommer, no livro Ficções
de Fundação: os romances nacionais da América Latina, publicado pela
primeira vez em 1991, destaca a existência de projetos nacionais
através da prosa de ficção, surgidos a partir da necessidade de criar
uma história que legitimasse as nações emergentes no âmbito da
América Latina. Deste modo, a autora enfatiza o fato de que os
romances caminharam de mãos dadas com a história patriótica da
América Latina, afirmando que frequentemente o romance e a
república estiveram interligados “por meio dos autores que
preparavam projetos nacionais através da prosa de ficção e
implementavam ficções de fundação através de campanhas
legislativas ou militares” (SOMMER, 2004, p. 22). Da mesma forma,
Rodrigues e Galeano, embora em um contexto diverso daquele
analisado por Sommer – a autora aborda sobretudo o contexto
oitocentista –, procuram enfatizar a existência, a legitimidade e o
destaque de seus países a partir de uma literatura embasada em
94
fatos futebolísticos reais. Cumpre mencionar que as produções dos
autores, entretanto, não possuem necessariamente o ideal de
legitimação de ideais políticos governamentais. No caso de
Rodrigues, que escreve na conjuntura da ditadura e procura
legitimar este governo, esta relação é perceptível; no caso de
Galeano, porém, esta característica não se manifesta, visto que o
autor é um grande crítico dos governos ditatoriais, mas não deixa
de elogiar o futebol que se desenvolveu na época. Concluímos,
assim, a permanência da importância da literatura quando o
propósito é auxiliar na construção de um ideal em torno da
identidade nacional, sem necessariamente pretender dar
legitimidade a algum regime de governo.
Rodrigues procura, ao narrar as vitórias da seleção brasileira,
enaltecer os jogadores, dramatizar as disputas e colocar o êxito
como extensivo a toda a nação. Em crônicas escritas na conjuntura
da Copa do Mundo do Chile, o autor menciona a vitória sobre a
seleção chilena, evidenciando os obstáculos enfrentados neste jogo:
Mas o povo brasileiro é tão formidável que, na vaga de um gênio, pôs outro
gênio. Ou, por outras palavras, na vaga de Pelé, arranjou, improvisou outro
Pelé: — Amarildo. E, no jogo seguinte, também Amarildo se machuca. Como
se não bastasse, abriu-se, nas canelas de Didi, uma constelação de feridas. E
que vimos nós? Levando nas pernas chagas deslumbrantes, Didi foi mais um
príncipe etíope do que nunca. Contra o Chile, através dos noventa minutos,
ele não perdeu, em instante nenhum, a sua ginga maravilhosa de gafieira.
Ferido na carne e na alma, o escrete do Brasil derrubou o Chile. É possível
que até a natureza tivesse preparado algum terremoto contra nós. E
ganhamos. Mesmo que atirassem contra o Brasil um furacão da Flórida,
sairíamos invictos da batalha. E pior do que o terremoto, pior do que a
torcida, pior do que as manchetes, pior do que o escárnio do rádio e da
televisão: foi o juiz. Está provado que o árbitro entrou em campo para meter
a mão no bolso do Brasil.
[…]
Pois vencemos o juiz, vencemos o escrete chileno, as manchetes, os
terremotos, a cordilheira. Apedrejaram Garrincha, e vencemos.
(RODRIGUES, 2013, p. 40, 41)
95
É evidente, aqui, que a conquista diante da seleção chilena é
não apenas da esquadra brasileira, mas também de todo o “povo
brasileiro”, de toda a comunidade imaginada e reiterada por
Rodrigues. E o cronista faz questão de enaltecer a superioridade
brasileira, invencível diante de supostos terremotos ou furacões;
destemido na presença da cordilheira dos andes; imbatível perante
a torcida adversária e a atuação tendenciosa do juiz. A imagem que
o autor cria de sua seleção é uma imagem formidável, dotada de
uma capacidade talentosa de improvisação e superação. A vitória
é consequência, para Rodrigues, não apenas da performance no
futebol, mas sobretudo de qualidades como a “coragem, a
inteligência, a imaginação, o entusiasmo e a genialidade do homem
brasileiro” (RODRIGUES, 2013, p. 25). Toda essa exorbitância ao
relatar a partida é utilizada como um recurso para engrandecer a
atuação brasileira e, consequentemente, a ideia de nação.
Observem agora o que o escrete fez por nós. Há pouco tempo o brasileiro
tinha uma certa vergonha de ser brasileiro. Conheço um patrício que andou
ensaiando um sotaque para não trair a sua nacionalidade. Agora não. Agora
acontece esta coisa espantosa: — todo mundo quer ser brasileiro. O país foi
invadido por brasileiros, ocupado por brasileiros. Dizia-me o Francisco
Pedro do Coutto: — “Nunca vi tantos brasileiros.” E outra coisa: — as
mulheres estão mais lindas, e os homens, mais fortes, e há uma bondade
difusa, volatilizada, atmosférica. Jamais se cumprimentou tanto. E como
sorrimos uns para os outros. (RODRIGUES, 2013, p. 112)
96
que a camiseta da seleção é um importante símbolo de identidade
coletiva, não apenas para os países pequenos ou pobres:
97
provavelmente sem dar-se conta das consequências que se seguiriam – teve
a inconsciência de se deixar capturar. (AGAMBEN, 2005, p. 13)
98
No que concerne às produções dos autores, o futebol surge
como um dispositivo que pode direcionar à idealização de
pertencimento de uma nação, como podemos observar nas
produções aqui abordadas. Funciona essencialmente como um
dispositivo que ameniza o discurso de subdesenvolvimento
prevalecente na América Latina na conjuntura. O futebol é, em
suma, um dispositivo que suscita um discurso de superioridade
dos países latino-americanos, a despeito da condição de
subdesenvolvimento aqui presente.
Estamos vivenciando, afirma Agamben, uma “gigantesca
acumulação e proliferação dos dispositivos” (AGAMBEN, 2005, p.
5), cuja funcionalidade é, como vimos, controlar a conduta dos
homens na sociedade capitalista. O futebol, bem como a literatura,
portanto, podem ser interpretados como exemplos de dispositivos
do pensamento agambeniano, que se relacionam ao sentimento de
nacionalismo e patriotismo nas produções dos autores que estamos
analisando.
A propósito da ideia de nacionalismo e patriotismo, cumpre
mencionar a distinção entre os referidos conceitos, cunhada por
Zygmunt Bauman no livro Modernidade Líquida, publicado em 1999.
O autor destaca, de forma geral, que o patriotismo relaciona-se
mais a aspectos positivos; enquanto o nacionalismo está ligado a
aspectos negativos. Segundo Bauman,
99
Nesse sentido, a ideia de nação postula que o pertencimento é
“um destino, não o produto de uma escolha ou de um projeto de
vida” (BAUMAN, 2001, l. 3222); sendo, assim, determinado desde
uma perspectiva externa. O patriotismo, por sua vez, é
caracterizado pela tolerância, hospitalidade e acessibilidade – na
medida em que “deixa a questão para os que perdem admissão”
(BAUMAN, 2001. l. 3257)
Apreendemos, diante desta reflexão, que nas produções
esportivas dos autores aqui analisados é possível encontrar ambos os
sentimentos: tanto de nacionalidade, quanto de patriotismo. Por um
lado, encontramos um imaginário de hostilidade e agressividade
entre equipes de futebol, sendo este esporte representado, muitas
vezes, como uma metáfora da guerra – que caracteriza o nacionalismo
na concepção de Bauman. Por outro lado, o futebol traz um
sentimento genuíno e voluntário de amor à pátria, característica
daquilo que Bauman denominou de patriotismo. A diferença racial é,
também, colocada como aspecto positivo – é justamente o que
diferencia o futebol presente no Brasil, no Uruguai e na América
Latina. Deste modo, é perceptível que os autores trazem, em suas
produções literárias, tanto sentimentos nacionalistas, quanto patriotas
- nos termos da teoria de Bauman.
100
produções do brasileiro e do uruguaio são enfáticas em apontar o
quanto a equipe brasileira era talentosa e diferenciada:
En el Mundial del 70, Brasil jugó un fútbol digno de las ganas de fiesta y la
voluntad de belleza de su gente. Ya se había impuesto en el mundo la
mediocridad del fútbol defensivo, con todo el cuadro atrás, armando el
cerrojo, y adelante uno o dos hombres jugando al solitario; ya habían sido
prohibidos el riesgo y la espontaneidad creadora. Y aquel Brasil fue un
asombro: presentó una selección lanzada a la ofensiva, que jugaba con cuatro
atacantes, Jairzinho, Tostão, Pelé y Rivelino, que a veces eran cinco y hasta
seis, cuando Gerson y Carlos Alberto llegaban desde atrás. En la final, esa
aplanadora pulverizó a Italia. (GALEANO, 2014, l. 1597)
101
Aqui, além do imaginário de um povo alegre e festivo,
Galeano determina o estilo de jogo brasileiro em oposição a um
futebol defensivo, que seria imposto no resto do mundo. A seleção
brasileira, contrariando a tendência mundial, caracterizava-se
como uma equipe ofensiva e destemida – reflexo, segundo
Galeano, do povo que representava.
Nesse sentido, concluímos, de maneira bastante simplista, que as
características determinantes na construção de uma identidade
inevitavelmente opõem-se a outras características. Stuart Hall, no
ensaio denominado Quem precisa de identidade?, publicado em 2003 no
livro Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais, reflete
sobre a questão e, dentre os debates propostos, destaca a importância
da existência da diferença na constituição das identidades:
Acima de tudo, e de forma diretamente contrária àquela pela qual elas são
constantemente invocadas, as identidades são construídas por meio da
diferença e não fora dela. Isso implica o reconhecimento radicalmente
perturbador de que é apenas por meio da relação com o Outro, da relação
daquilo que não é, com precisamente aquilo que falta, com aquilo que tem
sido chamado de seu exterior constitutivo, que o significado “positivo” de
qualquer termo – e, assim, sua “identidade” - pode ser construído (Derrida,
1981; Laclau, 1990; Buttler, 1993). As identidades podem funcionar, ao longo
de toda a sua história, como pontos de identificação e apego apenas por causa
de sua capacidade para excluir, para deixar de fora, para transformar o
diferente em “exterior”, em abjeto. Toda identidade tem, “à sua margem”,
um excesso, algo a mais. A unidade, a homogeneidade interna, que o termo
“identidade” assume como fundacional não é uma forma natural, mas uma
forma construída de fechamento: toda identidade tem necessidade daquilo
que lhe “falta” - mesmo que esse outro que lhe falta seja um outro silenciado
e inarticulado. (HALL, 2003, p. 110)
102
identidade ocorre naturalmente a partir de outro referencial, como
esclarece Hall, e esta estratégia é constante nos textos dos autores. A
autoafirmação da qualidade do futebol brasileiro e uruguaio, que
reflete nobres características relacionadas às identidades nacionais, é
construída por meio da diferença. Rodrigues e Galeano, ao colocarem
o futebol brasileiro e uruguaio como dotados de beleza, alegria,
espotaneidade e criatividade, ressaltam a contraposição ao “outro” -
este “outro”, o adversário, é composto por características como
“velocidade burra” (RODRIGUES, 1993, p. 215) e “mediocridade
defensiva” (GALEANO, 2014, l. 1597). A construção da identidade,
como aponta Hall, se dá através da relação com o outro e, nos
exemplos aqui trazidos, o diferente é representado por meio de
características externas, inferiores e desprezíveis. Vejamos outros
exemplos desta construção nas produções literárias, a começar pelas
crônicas de Rodrigues:
103
utilizando-se, como é característico de suas crônicas, de hipérboles
espalhafatosas para convencer o leitor – como, no trecho acima, a ideia
de atletas arrancando e chupando a carótida de seus adversários. Esta
idealização da educação e da urbanidade da seleção brasileira opõe-
se à violência feroz de seleções europeias – e esta conclusão é reflexo
da natureza de todo um povo:
104
consequentemente, da seleção brasileira e do homem brasileiro – é
aquilo que chama de “molecagem”. Aqui, uma condição de vida
do homem brasileiro, ilustrado no homem “favelado”,
“desdentado” e “negro” é colocada como um fator importante,
como um diferenciador entre o brasileiro e o europeu. É seguindo
este raciocínio que Rodrigues chega à conclusão de que é o
brasileiro o verdadeiro “inglês” - é o brasileiro quem é
genuinamente dotado de “boas maneiras”, não obstante sua
condição. Esta argumentação, portanto, baseia-se no ideal de que o
brasileiro acabou se diferenciando a partir das dificuldades
vividas. Com esse pensamento, o autor enfatiza que o futebol
brasileiro é inimitável:
105
Amarildo, o Possesso? Para ter a agilidade, a imaginação, a molecagem, o
gênio de brasileiro, o tcheco não pode ser tcheco, precisa ser um brasileiro
nato (RODRIGUES, 2013, p. 28)
Este mulato de ojos verdes fundó el modo brasileño de jugar. Él rompió los
manuales ingleses: él, o el diablo que se le metía por la planta del pie.
Friedenreich llevó al solemne estadio de los blancos la irreverencia de los
muchachos de color café que gozaban disputando una pelota de trapo en los
106
suburbios. Así nació un estilo, abierto a la fantasía, que prefiere el placer al
resultado. Desde Friedenreich en adelante, el fútbol brasileño que es de
veras brasileño no tiene ángulos rectos, como tampoco los tienen las
montañas de Río de Janeiro ni los edifícios de Oscar Niemeyer. (GALEANO,
2014, l. 1237)
107
autores, crescer na pobreza e ser negro são características que
singularizam e destacam os jogadores brasileiros. Esta questão
dialoga, inclusive, com uma discussão apresentada no segundo
capítulo, no qual abordamos algumas teorias que procuram explicar
a extraordinária popularização do esporte em nossa região.
Recordemos brevemente algumas ideias apresentadas pelos
estudiosos do fenômeno, segundo as quais o futebol apresenta: a
possibilidade de uma “horizontalização do poder” – através do
futebol, torna-se factível a experiência de um igualitarismo
inexistente na sociedade (DAMATTA, 1982) –; a possibilidade de
ascensão social a camadas que dificilmente ascendem na lógica
capitalista (DAMATTA, 1982); a ideia de que, para o homem negro,
o futebol aparece como uma possibilidade de emancipação,
sobretudo no contexto do início do século XX (ROSENFELD, 2007) e
a concepção de que o negro possui um talento natural e espontâneo
para o futebol (FREYRE, 1938; FILHO, 2010). É evidente que os
autores apresentam, também, esta teoria. Galeano, falando sobre
Garrincha, menciona a questão social, transmitindo a ideia de que o
futebol é um esporte democrático, que oferece oportunidades:
108
especial. Foi justamente a experiência dos jogos nos subúrbios que
ensinou o jogador a brincar e tornar o futebol uma festa
(GALEANO, 2014, l. 1237). Garrincha é, também, figura
frequentemente abordada nas crônicas rodrigueanas, como no
trecho a seguir:
Num simples lance isolado, está todo o Garrincha, está todo o brasileiro, está
todo o Brasil. E jamais Garrincha foi tão Garrincha, ou tão homem, como ao
imobilizar, pela magia pessoal, os onze latagões tchecos, tão mais sólidos,
tão mais belos, tão mais louros do que os nossos. Mas vejam vocês: de
repente, o Mané põe, num jogo de alto patético, um traço decisivo do caráter
brasileiro: — a molecagem. (RODRIGUES, 2013, p. 43)
109
Não é por acaso que Rodrigues e Galeano constantemente se
utilizam, como vimos, de um jogo de oposição, autoafirmando uma
identidade em relação a outra. A partir do exemplo do futebol
brasileiro – reflexo de uma identidade – outro estilo de futebol –
reflexo de outra identidade – é abordado. Nesta estratégia, os
autores necessitam de um exemplo oposto para defender seus
argumentos. Para Homi Bhabha, no livro O local da cultura, a
identificação nunca é previamente dada, não é autocumpridora, no
sentido de que só existe através da diferença:
110
bastante presente no início do século XX na América Latina, que
determinava uma filosofia de branqueamento da população e a
“purificação das raças”. Rodrigues e Galeano não apenas
combatem este pensamento, como também defendem a ideia de
que é pontualmente a presença dos homens negros na América
Latina que faz com que seu povo seja tão extraordinário e
diferenciado – o que é plenamente visto na prática do futebol.
Para finalizar, cumpre mencionar que esta dicotomia entre a
polidez e a educação do futebol ocorre não apenas em relação à
seleção brasileira. Já demonstramos, ao longo desta pesquisa, que
Galeano possui uma perspectiva latino-americanista e
constantemente aborda o futebol de diversos países da região.
Nelson Rodrigues, embora enfoque sua visão sobre o Brasil,
também pensou a perspectiva de um futebol latino-americano,
sobretudo no intuito de ratificar a contraposição em relação ao
futebol europeu, que, como já vimos, afirma ser violento. Em
crônica publicada em 1966, Rodrigues aborda a seleção uruguaia,
argentina e brasileira, realizando a oposição entre um futebol
pacífico e um futebol agressivo:
111
derrota. Afinal de contas, o que é o subdesenvolvimento se não a derrota
cotidiana, a humilhação de cada dia e da cada hora? E é uma ignomínia que
venha alguém dizer a esse povo desesperado: — “Vá perdendo! Continue
perdendo! Aprenda a perder!” (RODRIGUES, 2013, p. 52, 53)
112
cuero. Y en los pies de los primeros virtuosos criollos, nació el toque, la
pelota tocada como si fuera guitarra, fuente de música.
Simultáneamente, el fútbol se tropicalizaba en Río de Janeiro y San Pablo.
Eran los pobres quienes lo enriquecían, mientras lo expropiaban. Este
deporte extranjero se hacía brasileño a medida que dejaba de ser el privilegio
de unos pocos jóvenes acomodados, que lo jugaban copiando, y era
fecundado por la energía creadora del pueblo que lo descubría. Y así nacía
el fútbol más hermoso del mundo, hecho de quiebres de cintura,
ondulaciones de cuerpo y vuelos de piernas que venían de la capoeira, danza
guerrera de los esclavos negros, y de los bailongos alegres de los arrabales
de las grandes ciudades. (GALEANO, 2014, l. 447)
113
Rodrigues, em crônica escrita no dia anterior à partida final da
Copa de 1962, na qual o Brasil consagrou- se campeão, escreveu:
114
O autor retrata a unanimidade em torno de uma partida uruguaia
– diante desse evento, todos voltam suas atenções à disputa:
115
processo de mercantilização do esporte e profissionalização dos
atletas, entretanto, os autores sentem os efeitos de um fenômeno
que descentra o futebol em relação às identidades nacionais. Em
crônica intitulada O escrete é nosso!, publicada no ano de 1958,
Rodrigues aborda a questão da venda de jogadores, defendendo a
ideia de que esses esportistas deveriam ser incompráveis:
116
Permitir a dissolução da equipe não será um crime, porque é, antes de tudo,
um suicídio.
Um Garrincha, ou Didi, ou Vavá ou qualquer campeão do mundo devia ser
amarrado, solidamente, num pé de mesa, para que ninguém o arrancasse
daqui. (RODRIGUES, 2013, p. 19)
117
Nota-se, a partir dos escritos dos autores, que o processo de
comercialização do futebol, que começa a se estabelecer quando
Rodrigues publica suas crônicas, já está consolidado no contexto
em que Galeano escreve: o uruguaio afirma que a equipe de 94 é
bem diferente das equipes que venceram as 3 copas anteriores, em
consequência de um processo de entrega à lógica do futebol
moderno. O fato da maioria dos jogadores – 8, dos 11 titulares –
atuarem na Europa é decisivo para o diagnóstico: o Brasil vence a
competição, mas com um futebol técnico, desprovido da magia que
tanto caracterizava o estilo brasileiro na visão dos autores.
A partir da abordagem da profissionalização do futebol, os
autores sentem os efeitos da exportação de jogadores e da
globalização. Temendo a desintegração de seleções nacionais,
combatem veementemente a profissionalização do esporte:
Objetará alguém que eu estou misturando alhos com bugalhos. Nem tanto,
amigos, nem tanto. Qualquer profissão há de ter um sentido ético que a
justifique e valorize. O futebol profissional exige dinheiro, mas não só
dinheiro. Ele implica algo mais, ou seja: implica os tais valores gratuitos que
conferem a um jogo, a uma pelada uma dimensão especialíssima.
Um match representa algo mais que pontapés. Participam da luta dois clubes
e todos os seus bens morais, afetivos, líricos, históricos. (RODRIGUES, 2013,
p. 20, 21)
118
profesional no tiene escrúpulos, porque integra un inescrupuloso sistema de
poder que compra eficacia a cualquier precio. (GALEANO, 2014, l. 2038)
119
desligamento dos vínculos imaginados que relacionam os sujeitos
a uma determinada nação. O debate teórico acerca das identidades
é, à luz de um novo contexto, atualizado e ressignificado. Stuart
Hall, em seu livro A identidade cultural da pós-modernidade,
publicado pela primeira vez em 1992, é um dos autores que
renovam esta discussão. Segundo o autor, as culturas nacionais são
um discurso que, ao produzir sentidos sobre “a nação” - sentidos
com os quais podemos nos identificar – constroem identidades:
(…) não importa quão diferentes seus membros possam ser em termos de
classe, gênero ou raça, uma cultura nacional busca unificá-los numa
identidade cultural, para representá-los todos como pertencendo à mesma e
grande família nacional, Mas seria a identidade nacional uma identidade
unificadora desse tipo, uma identidade que anula e subordina a diferença
cultural? (HALL, 2005, p. 59)
120
moderno. Para o autor, as identidades são, atualmente,
descentradas, deslocadas e fragmentadas – essa mudança
estrutural está transformando as sociedades modernas desde o
final do século XX, na medida em que passou a fragmentar as ideias
culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade,
que, no passado, forneceram aos homens sólidas localizações como
indivíduos sociais. Tais transformações afetam, também, as
identidades pessoais, abalando a ideia construída em torno da
existência de sujeitos integrados (HALL, 2005, p. 9). As
identificações são, assim, provisórias e variáveis, e o resultado
deste processo é o sujeito pós-moderno, destituído de uma
identidade fixa, essencial ou permanente. Nas palavras de Hall,
121
eternamente precária - um projeto a exigir uma vigilância contínua, um
esforço gigantesco e o emprego de uma boa dose de força a fim de assegurar
que a exigência fosse ouvida e obedecida (...). (BAUMAN, 2005, l. 324)
122
Zidane presidente, escribieron manos anónimas, el día de la celebración, en
el frontón del Arco del Triunfo.
¿Presidente? Hay muchos árabes, o hijos de árabes, en Francia, pero ni uno
solo es diputado. Y ministro, ni hablar.
Una encuesta, publicada durante el Mundial, confirmó que cuatro de cada
diez franceses tienen prejuicios racistas. El doble discurso del racismo
permite ovacionar a los héroes y maldecir a los demás. El trofeo mundial fue
festejado por una multitud solo comparable a la que desbordó las calles, hace
más de medio siglo, cuando llegó a su fin la ocupación alemana.
(GALEANO, 2014, l. 2532)
123
questão. Num país que é agora repositório de culturas africanas e asiáticas,
o sentimento do que significa ser britânico nunca mais pode ter a mesma
velha confiança e certeza. O que significa ser europeu, num continente
colorido não apenas pelas suas antigas colônias, mas também pelas culturas
americanas e agora pelas japonesas? A categoria da identidade não é, ela
própria, problemática? É possível, de algum modo, em tempos globais, ter-
se um sentimento de identidade coerente e integral? (HALL, 2005, p. 84)
124
Trouxemos, no início desta sessão, trechos que ilustram o
quanto os autores pensam na concordância unânime e fraternal de
um povo em relação à nação, e o futebol funciona como um
impulsionador deste sentimento. Se a globalização é, como
apontam Hall e Bauman, um significativo fator no processo de
descentramento e fragmentação de identidades; este mesmo
fenômeno, aliado à mercantilização cada vez mais desenfreada do
lucrativo mercado futebolístico, desloca o esporte para o campo
econômico: o futebol passa a ser menos um elemento de rito
identitário para se firmar como um produto de entretenimento.
Em crônica publicada em 1964, fora do contexto de Copa do
Mundo, Rodrigues apresenta essa preocupação com a excessiva
internacionalização da equipe de Pelé – o Santos. Para o autor, o fato
da equipe viajar constantemente e enfrentar clubes com diferenciados
sotaques reflete diretamente na qualidade de seu futebol:
Um quadro que tem Pelé está na obrigação de ganhar de todo mundo. E por
que perde? Porque deixou de ser um time brasileiro. Sim, transformou-se
numa equipe internacional. Reparem: — o Santos faz turismo no Brasil. Um
dia está na Argentina; em seguida, no Chile; e, depois, na Bolívia, no Peru.
Seus jogadores são aplaudidos, vaiados e xingados em todos os idiomas.
A meu ver, baixou no Santos o tédio desesperador de tantas viagens. Que
espécie de estímulo pode ter um time cujos adversários mudam de sotaque
três vezes por semana? A equipe voltaria à sua melhor forma, ao seu grande
ímpeto, se parasse. Ponham o Santos para jogar no Maracanã, só no
Maracanã. Eu não diria no Pacaembu. Em São Paulo há um ressentimento
contra o quadro de Vila Belmiro. Mas aqui, no maior estádio do mundo, o
Santos tornaria a encontrar o seu clima. (RODRIGUES, 1993, 127)
125
contrapor países dominantes e países dominados. O autor lamenta a
indústria de exportação presente no Uruguai, afirmando que os
jogadores da seleção uruguaia, disseminados pelo mundo, não se
convertem mais em uma verdadeira equipe – como acontecia antes da
comercialização futebolística. Este processo faz com que o público seja
cada vez menos numeroso e fervoroso:
126
suas produções, é detectado, também, por autores que pensam o
elemento do futebol na sociedade. Sergio Villena Fiengo, sociólogo
costa-riquenho que se dedica ao tema, em artigo publicado no livro
Futbologias: fútbol, identidad y violência en América Latina,
diagnostica, em 2003, que a política está perdendo sua capacidade
para “colonizar o futebol”:
Pero hay que reconocer que también las empresas mutinacionales transpiran
la camisa como si fuera camiseta. Brasil no pudo ser pentacampeón. Adidas,
sí. Desde la Copa del 54, que Adidas ganó cuando ganó Alemania, ésta fue
la quinta consagración de los seleccionados que representan la marca de las
tres barras. Adidas levantó, con Francia, el trofeo mundial de oro macizo; y
conquistó, con Zinedine Zidane, el premio al mejor jugador. La empresa
rival, Nike, tuvo que conformarse con el segundo y el cuarto lugar, que
obtuvieron sus selecciones de Brasil y Holanda; y Ronaldo, la estrella de
Nike, llegó enfermo al partido final. (GALEANO, 2014, l. 2462)
127
Vivenciando o contexto em que essa desvinculação entre o
futebol e o nacionalismo está acirrada, Galeano está indicando o
novo paradigma de um futebol que se desloca para uma lógica
empresarial e mercadológica – aqui, a disputa comercial entre
grandes marcas esportivas substitui a ideia dos nacionalismos, que
já não caracterizam mais tanto os campeonatos mundiais. Esta
questão está constantemente presente em seu livro, e a intensa
midiatização dos esportes é também responsável pelo fenômeno:
128
2003), desfocando a atenção em relação às seleções e aos clubes
nacionais. Koch (2012), por sua vez, traz a ideia do “torcedor de
celebridade” – segundo o autor, com a comercialização, os
torcedores de futebol passam a seguir determinados atletas,
independentemente dos países ou clubes onde atuam. Por fim,
outro fenômeno apontado como dissociativo entre futebol e
identidades relaciona-se à eliminação de fatores ambientais dos
estádios: Fiengo (2003) afirma que os estádios têm se tornado “não
lugares” - segundo a teoria de Marc Augé, esses espaços são
caracterizados por uma homogeneização e purificação de qualquer
interferência ambiental, seja natural ou cultural. Este fenômeno
descaracteriza os aspectos culturais do futebol, uniformizando
inclusive seus espaços.
Embora não seja o enfoque deste trabalho, todos esses estudos
corroboram com a hipótese relacionada a um movimento
desnacionalizador do futebol, e são interessantes para a
compreensão do debate aqui iniciado. As reflexões sobre o futebol
no campo da sociologia são diversas e dialogam com fenômenos da
sociedade – como a contemporânea crise das identidades nacionais
que Rodrigues e Galeano nos levam a refletir.
129
130
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
131
los, contrapô-los, debatê-los. Enquanto Rodrigues escreve crônicas
publicadas em jornal na própria conjuntura dos acontecimentos;
Galeano escreve a partir de suas memórias e leituras, obtendo um
texto essencialmente híbrido, com contornos difusos. Cumpre
salientar, ademais, que uma diferença essencial entre as produções
dos autores relaciona-se ao contexto em que escrevem: enquanto as
crônicas de Rodrigues aqui analisadas foram escritas e publicadas
fundamentalmente entre as décadas de 50 e 70; Galeano publicou
seu livro pontualmente em 1995. Esta constatação é fundamental
para compreender o debate em torno das identidades, já que
Rodrigues diagnostica o início de um processo de
profissionalização do esporte – fenômeno que, nas produções de
Galeano, é concreto e tangível, e que terminantemente se relaciona
com o escopo desta pesquisa. Acrescentamos também que, apesar
das considerações escritas por Galeano em relação ao futebol
contemporâneo, seu discurso também se relaciona ao apreço pelo
conceito de identidade nacional homogênea – discurso que o
remete às décadas anos 60 e 70, conjuntura em que Rodrigues
escreve. Este foi um fator que tornou o estudo comparado dos
autores ainda mais instigante.
Importa ressaltar, na finalização deste trabalho, alguns
apontamentos acerca do campo de estudo estruturado em torno do
futebol: através da pesquisa sobre o fenômeno da popularização deste
esporte, é possível compreender muito sobre o contexto social e
histórico da América Latina. Vimos que os estudiosos destacam que a
popularidade do futebol na região relaciona-se com a experiência
democrática e igualitária que o esporte pode ocasionar – fenômeno
denominado de “horizontalização do poder”, no pensamento de
DaMatta –, sobretudo se considerarmos a acentuada desigualdade
presente na região. Nessa conjuntura, o futebol apresenta uma
oportunidade de ascensão social incomum e altamente verticalizada.
É o futebol, também, um elemento que possibilita a inversão de
estruturas previamente definidas, na medida em que nele há a
possibilidade de estabelecer uma ordem hierárquica diferente das
classificações econômicas dos países do mundo.
132
Ainda sobre o futebol, importa substancialmente à pesquisa
sua relação sintonizada com a ascensão do século XX e com o
acirramento do capitalismo. Os fenômenos relacionados à
urbanização, à industrialização e à eletrificação do território são
importantes para entendermos por que o futebol se tornou tão
apreciado – não apenas na América Latina, como também no
mundo. O esporte acaba apresentando um elemento de
harmonização social, contrabalanceando as pressões
eminentemente urbanas – como o medo, a ansiedade e o stress. O
campo aberto do futebol caracteriza- se como uma oportunidade
de contato com a natureza e de sensações primitivas, sobretudo nas
grandes cidades. Ademais, salientamos também nossa defesa de
que o futebol não é tão somente um esporte alienante, que desviaria
as atenções dos problemas “reais” da sociedade. Vimos alguns
exemplos em que houve contestações da ordem social justamente
em contextos futebolísticos. O futebol, portanto, vai muito além de
uma festividade popular. Configura-se, também, como um palco
de resistência social e política, não se isentando, absolutamente, dos
conflitos presentes na sociedade.
Todos esses tópicos são pertinentes para a análise sobre a
identidade. No capítulo destinado ao debate sobre o futebol e a
identidade nacional, chegamos ao cerne principal desta pesquisa.
Destacamos, aqui, a importância da literatura na constituição do
que Benedict Anderson chama de “comunidades imaginadas”. A
literatura e o futebol funcionam como dispositivos – conforme
teoria de Giorgio Agamben – que subvertem uma lógica de
dominação capitalista e culminam em uma tentativa de criar o
sentimento de uma sociedade unânime em relação ao futebol e à
nação. Vimos, também, que a afirmação da identidade ocorre
constantemente em relação a um oposto, a uma alteridade.
Enquanto o futebol brasileiro e uruguaio são, de maneira geral,
representados como alegres, belos, talentosos, dotados de uma
naturalidade própria; o futebol adversário, ilustrado sobretudo por
seleções europeias, é representado como artificial, tecnocrático,
violento, acadêmico. Destacamos, nesta conclusão, as contribuições
133
teóricas de Stuart Hall e Hommi Bhabha, que pontuam a
importância do outro na constituição de um ideal de identidade.
Esta característica é evidente nos escritos dos autores, e não
poderíamos deixar de discutir a questão.
Por fim, identificamos que, a despeito dos autores terem se
esforçado em criar uma homogeneidade embasada no futebol em
torno da nação, é perceptível a preocupação com um fenômeno que
desloca o esporte – que passa a ser menos um elemento de
identidade nacional, para se firmar fundamentalmente como um
produto mercadológico. Os autores, sendo entusiastas dos
selecionados nacionais, sentem os efeitos da globalização, da
exportação dos jogadores e da profissionalização do futebol,
criticando, em suma, este fenômeno que ameaça a integridade das
equipes. Destacamos, aqui, o fenômeno de penetração do
capitalismo no campo cultural, que fez com que a cultura e os
esportes fossem comercializados: nesta conjuntura, o futebol
demonstrou-se um produto extremamente lucrativo.
O desenvolvimento da globalização, nesse sentido, relaciona-
se diretamente com o fenômeno de comercialização dos jogadores
e de mercantilização do futebol. Relacionamos esta questão ao
processo de declínio das velhas identidades estabilizadoras
discutido por Stuart Hall e Zygmunt Bauman. Para esses autores,
as identidades experimentaram um movimento de descentramento
e fragmentação, passando, então, a ser caracterizadas como
deslocadas e fluidas. As identidades nacionais também são
discutidas pelos autores e colocadas como ficcionais e fantasiosas.
Todas essas questões podem ser pensadas na literatura de
Rodrigues e Galeano, que apontam para a tendência da migração
de atletas e consequentemente para a desconfiguração das seleções
nacionais. Em nossa análise, portanto, as preocupações dos
escritores latino-americanos aqui analisados estão inseridos em um
contexto de fragmentação das identidades, dignosticada por Hall e
Bauman, e do advento de um futebol “pós-nacional”, conforme
indicou o sociólogo Sérgio Villena Fiengo. Se o futebol, como
afirma Galeano (2014), é um “espelho de tudo”, que reflete a
134
realidade; acrescentamos, para finalizar este estudo, que, sendo
importantes componentes culturais, tanto a literatura quanto o
futebol apresentam-se como elementos nos quais é possível
compreender uma diversidade de questões – econômicas, políticas
e sociais – de um determinado contexto. Concluímos, nesse sentido,
que, propondo um determinado ponto de vista da realidade, a
literatura esportiva de Rodrigues e Galeano muito nos dizem sobre
a relação entre o futebol e a identidade nacional – e a partir dessas
perspectivas foi possível pensar diversas contradições e
transformações da sociedade.
135
136
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