EBOOK - Do Futebol Nacional Ao Pos Nacional

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Do futebol nacional ao pós-nacional:

uma análise das produções literárias


esportivas de Nelson Rodrigues e
Eduardo Galeano

1
Esta publicação é fruto do Edital PPGLC 17/2021 - Chamada
para Publicação de Pesquisa Oriunda de Dissertação Defendida no
Programa de Pós-graduação em Literatura Comparada da
Universidade Federal da Integração Latino-americana. O edital
busca promover a visibilidade de pesquisas desenvolvidas no
âmbito da literatura comparada e a aproximação entre pesquisa
acadêmica e sociedade. Além disso, visa valorizar as pesquisas
desenvolvidas no âmbito do PPGLC. Os originais foram avaliados
por pareceristas externos da área de Letras de diferentes
instituições de ensino superior.

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Cristina Allegretti

Do futebol nacional ao pós-nacional:


uma análise das produções literárias
esportivas de Nelson Rodrigues e
Eduardo Galeano

3
Copyright © Cristina Allegretti

Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra pode ser reproduzida,
transmitida ou arquivada desde que levados em conta os direitos da autora.

Cristina Allegretti

Do futebol nacional ao pós-nacional: uma análise das produções literárias


esportivas de Nelson Rodrigues e Eduardo Galeano. São Carlos: Pedro &
João Editores, 2022. 147p. 16 x 23 cm.

ISBN: 978-65-5869-856-2 [Impresso]


978-65-5869-857-9 [Digital]

1. Futebol. 2. Análise literária. 3. Nelson Rodrigues. 4. Eduardo Galeano. 5.


Identidade Nacional. I. Título.

CDD – 410

Capa: Petricor Design


Arte da capa: Daniela Serna Gallego
Ficha Catalográfica: Hélio Márcio Pajeú – CRB - 8-8828
Diagramação: Diany Akiko Lee
Editores: Pedro Amaro de Moura Brito & João Rodrigo de Moura Brito

Conselho Científico da Pedro & João Editores:


Augusto Ponzio (Bari/Itália); João Wanderley Geraldi (Unicamp/ Brasil); Hélio
Márcio Pajeú (UFPE/Brasil); Maria Isabel de Moura (UFSCar/Brasil); Maria da
Piedade Resende da Costa (UFSCar/Brasil); Valdemir Miotello (UFSCar/Brasil); Ana
Cláudia Bortolozzi (UNESP/Bauru/Brasil); Mariangela Lima de Almeida (UFES/
Brasil); José Kuiava (UNIOESTE/Brasil); Marisol Barenco de Mello (UFF/Brasil);
Camila Caracelli Scherma (UFFS/Brasil); Luis Fernando Soares Zuin (USP/Brasil).

Pedro & João Editores


www.pedroejoaoeditores.com.br
13568-878 – São Carlos – SP
2022

4
Para minha filha, Letícia - a quem eu amo "mais do que
100 gigantes encostados em um planeta";
Para meu parceiro de vida, André;
Para meus pais e irmãos.

5
6
AGRADECIMENTOS

À minha família e amigos, por todo carinho e incentivo;


À Prof. Débora Cota, pela orientação deste projeto;
À UNILA e ao Programa de Pós-Graduação em Literatura Compa-
rada, pela oportunidade de desenvolver esta dissertação e publicá-
la.
À educação pública, gratuita, laica e de qualidade, que me oportu-
nizou o acesso ao conhecimento desde que eu era criança.

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8
SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO 11

2. FUTEBOL: UMA PAIXÃO EM COMUM NAS 17


OBRAS DE NELSON RODRIGUES E EDUARDO
GALEANO
2.1. DUAS VIDAS 17
2.2. AS OBRAS ANALISADAS 25
2.3. O FUTEBOL NA VISÃO DOS AUTORES: MAIS 29
QUE UM ESPORTE
2.4. OS ESTUDOS SOBRE A TEMÁTICA DO FUTEBOL 41
NA OBRA DOS AUTORES: UMA REVISÃO
BIBLIOGRÁFICA
2.4.1. Nelson Rodrigues: identidade nacional e a 42
superação da inferioridade
2.4.2. Eduardo Galeano: futebol e denúncia 48

3. REFLEXÕES SOBRE A LITERATURA E O FUTEBOL 53


3.1. AS OBRAS E OS GÊNEROS LITERÁRIOS 53
3.2. ESTUDOS SOBRE O FUTEBOL: UMA REVISÃO 65

4. FUTEBOL E IDENTIDADE 89
4.1. FUTEBOL E A IDEALIZAÇÃO DE UMA 89
IDENTIDADE NACIONAL
4.2. IDENTIDADE: ALTERIDADE 100
4.3. IDENTIDADE EM QUESTÃO: DO FUTEBOL 113
NACIONAL AO PÓS NACIONAL

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS 131

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 137

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1. INTRODUÇÃO

Foi em 1994, na ocasião do tetracampeonato, que acompanhei,


pela primeira vez, a Seleção Brasileira conquistar um título
mundial. Embalada pela canção que afirmava “É a taça na raça,
Brasil”, a população parecia unida como nunca e o país
praticamente suspendia suas atividades em dias de partida.
Naquela Copa, os jogadores entraram de mãos dadas em todos os
jogos, simbolizando a união para chegar ao objetivo da conquista
da taça. A partida final foi uma ocasião emocionante em que o
campeão foi definido nos pênaltis, com a defesa do goleiro
brasileiro Taffarel e o erro final do grande jogador italiano daquela
geração, Roberto Baggio.
O erro de Baggio fez do Brasil tetracampeão, e o narrador
Galvão Bueno, eufórico, já sem fôlego, eternizou, na Rede Globo de
televisão, o momento: abraçado em Pelé, pulava e gritava: “É tetra,
é tetra, é tetra…”. Ao fundo ouvia-se a música instrumental que
tocava sempre que o piloto Ayrton Senna vencia na Fórmula 1.
Senna morrera em maio daquele ano, tornando-se um símbolo do
esporte brasileiro e comovendo o país. Os jogadores, comemorando
a conquista, levaram ao campo uma faixa que transmitia a seguinte
mensagem: “Senna… Aceleramos juntos, o tetra é nosso!”.
Toda essa conjuntura emocionou e comoveu o Brasil, de norte
a sul. A morte de Senna trouxe àquela copa uma vibração diferente.
E, além de vencer o campeonato mais importante do mundo, além
de ser um momento de homenagem e recordação de Ayrton Senna,
o Brasil atingia um marco que jamais outra seleção havia
conquistado: o tetracampeonato. Era, em suma, unânime: tínhamos
a melhor seleção de futebol do mundo.
Nesta ocasião, foi bem perceptível o quanto o futebol
desencadeou um sentimento incomum no Brasil. A aura que
pairava sobre o país era diferente; todos estavam orgulhosos com

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suas camisetas amarelas – naquele tempo, a propósito, a
“amarelinha” não era associada a nenhum partido político, sendo
possível seu uso sem receios. Em grande parte das residências
havia uma bandeirinha do Brasil pendurada, demonstrando um
patriotismo inigualável, e os carros também passeavam com suas
bandeirinhas ao vento. Data desta época minha curiosidade por
esse extraordinário fenômeno de identidade nacional que o futebol
é capaz de proporcionar.
Na conjuntura do tetracampeonato eu era criança e, como
grande parte das crianças, me comovi e emocionei com a conquista.
Obviamente eu não tinha consciência de quanto uma vitória como
esta poderia ser explorada pelo governo e pela mídia para a
legitimação de um conceito de uma nação bem-sucedida. Aos
poucos passei a ter esta consciência, na medida em que conhecia
um pouco sobre construções históricas e tomava consciência da
invenção de “mitos nacionais” por parte dos meios de comunicação
– que, a propósito, não trabalham com imparcialidade. A partir
deste entendimento, revisei minha percepção sobre o contexto e
compreendi que aquela relação da conquista futebolística com a
morte do Senna por parte da seleção e da mídia foi
estrategicamente utilizada no objetivo de envolver as emoções
coletivas, construindo um ideal de nação vencedora. Nesta
conjuntura, o país experimentava há poucos anos a democracia
através do voto direto e tentava sair de um contexto de anos de
recessão econômica. Eram, ademais, tempos de concretização do
plano real e estavam sendo colocadas em prática uma série de
políticas neoliberais. Nesse sentido, uma comoção nacional
proporcionada pelo futebol era extremamente conveniente, no
intuito de transmitir uma ideia de unidade, otimismo e esperança
em relação ao país.
No Ensino Médio tive contato, pela primeira vez, com os
autores aqui estudados: o brasileiro Nelson Rodrigues (Brasil, 1912
– 1980), com a obra O beijo no Asfalto e o uruguaio Eduardo Galeano
(Uruguai, 1940 – 2015), através do clássico Las venas abiertas de
América Latina. Naquela época, eu não sabia que ambos eram

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apaixonados por futebol e que tinham se dedicado em escrever
sobre o tema. Na faculdade de História li sobre a relação entre
Nelson Rodrigues e a ditadura – e aqui, pela primeira vez, tive
contato com suas crônicas esportivas. Aquele cenário de repressão
ditatorial retratado por um escritor talentoso como Rodrigues
muito me interessou e li alguns trabalhos sobre essa temática. Aos
poucos, conheci também um pouco do que a academia produzia
sobre o futebol – compreendendo que esta temática também era
digna de ser estudada a nível acadêmico – e obtive a informação de
que Galeano também havia escrito sobre o esporte. Ao ler seu livro
destinado ao futebol, me surpreendi: havia algo em comum entre
Rodrigues e Galeano. Como era possível? Rodrigues, que se
autodenominava um reacionário, defendendo a ditadura e o
modelo econômico capitalista e Galeano, crítico das ditaduras e
denunciante do capitalismo, poderiam ter algo em comum? Eis o
milagre do futebol: apaixonados por esse esporte, os autores
vislumbravam suas seleções como um instrumento de constituição
de identidade nacional e de reconhecimento mundial. A partir do
futebol, ambos trataram de escrever acerca de questões alusivas à
legitimidade de uma região e de um povo.
Estava, portanto, configurada a ideia: estudar um elemento
característico da cultura latino-americana – o futebol – a partir de
dois dos maiores nomes da nossa literatura. O Mestrado em
Literatura Comparada da Universidade Federal da Integração
Latino-Americana pareceu-me um programa perfeito para a
proposta, já que a metodologia da literatura comparada era muito
pertinente ao trabalho e, ademais, o projeto de intercâmbio cultural
desta universidade relacionava-se absolutamente com o pensar as
identidades e o lugar da América Latina no mundo.
Cumpre esclarecer que a Literatura Comparada enquanto
metodologia aplicada na presente pesquisa surge não apenas como
ferramenta de estudo comparativo entre dois autores, mas
sobretudo como um método que nos permite transitar entre
diversas disciplinas. Trata-se, portanto, de um trabalho
interdisciplinar, no qual estão presentes áreas de conhecimento

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diversas – como letras, história, sociologia e antropologia.
Destacamos, aqui, a ampliação da literatura comparada desde o seu
surgimento, no séc. XIX: esta metodologia surge como uma
ferramenta de relação entre duas literaturas diferentes, detectando
o movimento de um elemento literário de um campo literário a
outro, atravessando fronteiras literárias (CARVALHAL, 1991).
Paulatinamente, a literatura comparada “deixa a de exercer essa
função ‘internacionalista’ para converter-se em uma disciplina que
põe em relação diferentes campos das Ciências Humanas”
(CARVALHAL, 1991, p.1). Assim, além da comparação entre
literaturas, a metodologia da Literatura Comparada oferece
também a possibilidade de um diálogo entre diversas disciplinas.
É este o foco do presente trabalho.
Nesse sentido, este livro está estruturado em 3 capítulos,
conforme descrito a seguir: o primeiro capítulo destina-se a
apresentar uma introdução aos autores. Abordaremos suas vidas,
suas obras e a maneira como a temática do futebol aparece em suas
produções, traçando semelhanças e divergências. Falaremos sobre
as obras que serão abordadas e, por fim, traremos uma breve
revisão bibliográfica sobre os estudos que se propuseram a analisar
as obras de Rodrigues e Galeano. No segundo capítulo, faremos
uma discussão sobre os autores e os gêneros literários, realizando
uma reflexão literária sobre as produções futebolísticas
selecionadas e os gêneros adotados pelos autores. Ademais,
abordaremos o futebol como um campo de estudos nas ciências
humanas, buscando compreender o histórico do futebol na
América Latina e os motivos pelos quais este esporte se tornou tão
popular na região. Importa mencionar que tanto a reflexão acerca
dos gêneros quanto o fenômeno da popularidade do futebol
relacionam-se diretamente com a conjuntura do século: o contexto
de urbanização, o acirramento do capitalismo, a expansão da
imprensa e a eletrificação dos espaços conecta-se com o advento
dos gêneros literários estudados e com a popularização do futebol.
O terceiro capítulo, cuja proposta é a de analisar a relação entre
identidade nacional e o futebol na produção dos autores, está dividido

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em 3 seções principais: na primeira, discutimos como o futebol é
utilizado como elemento para constituir uma ideia de nação, trazendo
ao debate a teoria acerca das Comunidades Imaginadas, de Benedict
Anderson. Também consideramos a literatura e o futebol como um
dispositivo – conforme teoria de Giorgio Agamben – que permite a
subversão da lógica econômica vigente, segundo a qual os países
subdesenvolvidos são colocados em uma categoria de
subdesenvolvimento e inferioridade. A segunda seção contém uma
discussão acerca da identidade e alteridade, compreendendo que a
identidade é sempre uma construção efetuada a partir do outro, e esta
característica se faz presente nas produções dos autores. Finalizando o
capítulo, realizamos uma discussão sobre os sinais da fragmentação das
identidades: as produções aqui analisadas também prenunciam os
sinais de um novo contexto, caracterizado pelo deslocamento do
futebol de um campo identitário para um campo mercadológico.
Relacionamos este fenômeno à fragmentação das identidades, que, na
teoria de Stuart Hall e Zygmunt Bauman, descentra o sujeito e
diagnostica a instabilidade e a conflitividade das identidades nacionais.

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16
2. FUTEBOL:
UMA PAIXÃO EM COMUM NAS OBRAS DE
NELSON RODRIGUES E EDUARDO GALEANO

2.1. DUAS VIDAS

Nelson Rodrigues nasceu em 1912, em Recife – Pernambuco.


Mudou-se em 1916 para o Rio de Janeiro, onde permaneceu e viveu
até sua morte, em 1980. Foi um jornalista, teatrólogo, romancista,
folhetinista e cronista. Sua produção é considerada fenomenal,
embora o único nicho em que tenha sido unanimemente aceito é o
do teatro (CASTRO, 1997, p. 8). Vinte e oito anos após o nascimento
de Rodrigues, em Montevidéu - Uruguai, nasceu Eduardo Hughes
Galeano, jornalista e escritor que ficou conhecido mundialmente
pela sua produção contestadora e declaradamente denunciante.
Assim como Rodrigues, Galeano possui uma extensa obra: são mais
de 40 livros publicados, durante sua vida e postumamente.
Ambos tiveram, devido a necessidades financeiras, contato
com o jornalismo desde cedo: Rodrigues, aos 13 anos, passou a
escrever ocorrências policiais no jornal de seu pai, A Manhã
(CASTRO, 1997). Galeano, aos 14 anos, publicou sua primeira
caricatura política no Semanário do Partido Socialista Uruguaio El
Sol e firmou sua carreira na imprensa na década de 60, no periódico
uruguaio Marcha (KOVACIC, 2016). Ambos também estudaram,
cada qual em seu país, até o ensino secundário – devido à situação
precária de suas famílias, não puderam prosseguir nos estudos. A
respeito deste período caracterizado pelas dificuldades financeiras,
Rodrigues, na crônica O menino de Pernambuco, relatou:

Depois da Revolução de 30, e até 35, eu e toda minha família conhecemos


uma miséria que só tem equivalentes nos retirantes de Portinari. Ainda
agora, quando me lembro desse período, tenho vontade – vontade mesmo –

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de me sentar no meio-fio e começar a chorar. Eu e meu irmão Joffre passamos
fome e foi a fome que estourou nossos pulmões. (RODRIGUES, 2008, p. 68)

Neste trecho, o autor relata as dificuldades enfrentadas pela


sua família e faz referência à tuberculose, doença que o
acompanhou durante 15 anos e que causou a morte de um de seus
irmãos, Joffre. Em decorrência da tuberculose, Rodrigues precisou
se internar em 4 ocasiões, foi submetido inúmeras vezes ao
pneumotórax e acompanhou, no sanatório, muitos de seus colegas
sofrerem a temida hemoptise – expulsão de sangue pela boca. O
autor também sofreu, como consequência da doença, de uma
cegueira momentânea – os anti-inflamatórios fizeram a infecção
regredir, mas como sequela ocorreu a perda permanente de 30% da
visão nos seus olhos (CASTRO, 1997). Armando Nogueira, ao
introduzir o livro de crônicas esportivas À sombra das chuteiras
imortais, diz:

Nelson Rodrigues não enxergava direito. De longe, então, era incapaz de


distinguir Fulano de Beltrano. No Maracanã, que deixa o torcedor a léguas
do campo, não conseguia ver o jogo sozinho. Tinha que ter alguém soprando
no ouvido dele os lances que a vista curta não alcançava. E, no entanto,
ninguém jamais retratou um jogo de futebol com a dimensão épica que o
leitor vai encontrar neste livro. (RODRIGUES, 1993, p. 5)

Se a tuberculose marcou a biografia de Rodrigues, Galeano


também passou por um importante episódio que envolveu sua
saúde e ressignificou sua vida: uma tentativa de suicídio através da
ingestão de remédios, aos 19 anos. A sobrevivência à ocorrência,
após dias submetido a um coma, é considerada um renascimento
pelo autor, que a partir desse momento passou a assinar seus
escritos com o nome Eduardo Galeano:

Ya había elegido el hotel. Mientras caminaba por la calle Río Branco, calle abajo,
sentía que estaba muerto desde hacía horas o años, vacío de curiosidad y de
deseo, y que sólo me faltaba cumplir con los trámites. Sin embargo, al llegar al
cruce de la calle San José un automóvil se me vino encima y mi cuerpo, que
estaba vivo, pegó un salto descomunal hasta la vereda.

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Lo último que recuerdo de mi primera vida es una ranura de luz en la puerta
cerrada mientras yo me hundía en una noche serena que no iba a terminarse
nunca.
Me desperté, al cabo de varios días de coma, en la sala de presos del hospital
Maciel.
[...]
Hasta hace poco creía que lo había decidido por las dificultades fonéticas
que en castellano tiene mi apellido paterno. Al fin y al cabo, era por eso que
yo lo había castellanizado: firmaba Gius, en vez de Hughes, los dibujos que,
desde muy chiquilín, publicaba en El Sol.
Y recién ahora, una noche de éstas, me di cuenta de que llamarme Eduardo
Galeano fue, desde fines de 1959, una manera de decir: soy otro, soy un
recién nacido, he nacido de nuevo (GALEANO, 2000, p. 29,30).

Foi com a assinatura de Eduardo Galeano – suprimindo o


Hughes, seu sobrenome paterno –, que o autor ficou mundialmente
conhecido. Suas várias viagens pela América Latina e sua
experiência no semanário Marcha – cuja ênfase antifascista e anti-
imperialista estimulou os debates entre os intelectuais latino-
americanos na época – serviram como fundamentação para a
elaboração de seu livro mais famoso, Las venas abiertas de América
Latina, publicado em 1971 (KOVACIC, 2016). Este livro daria
prestígio e tornaria Galeano mundialmente famoso, impulsionado
pelo fato de que o mundo, após a Revolução Cubana, passou a se
interessar particularmente pela região da América Latina.
Enquanto Galeano tornou-se renomado a partir da publicação
de Las venas abiertas de América Latina, foi no teatro que Rodrigues
alcançou notabilidade, marcando sua geração e transformando a
dramaturgia no Brasil. Entre suas peças, Vestido de Noiva figura
como uma peça revolucionária: segundo Ruy Castro, foi dito que a
“Semana de Arte de 1922 chegara enfim ao palco e que Nelson
Rodrigues estava para o teatro como Carlos Drummond para a
poesia, Villa-Lobos para a música, Portinari para a pintura e
Niemeyer para a arquitetura” (CASTRO, 1997, p. 176). Gilberto
Freyre, na introdução do livro de crônicas rodrigueanas O
Reacionário, afirma que Rodrigues foi o maior teatrólogo brasileiro
(RODRIGUES, 2008). O cronista também é consciente da

19
importância da dramaturgia em sua carreira e vida, e menciona seu
interesse e aptidão para o teatro:

Comecei a escrever e toda a minha nostalgia de teatro explodiu. Eu não


exagero quando digo que tenho dez mil peças na cabeça. É um mar de
histórias, é uma floresta de imagens, de tipos, de figuras. Na rua, passo e
vejo uma mulher, vejo um homem e penso: esse é um belo tipo, e começo a
imaginar uma história para um vago transeunte. (RODRIGUES, 2008, pg. 51)

A manifestação política é outra particularidade bastante


presente na obra de Rodrigues e de Galeano: este posicionou-se
veementemente contra a ditadura militar em seu país e na América
Latina de maneira geral; aquele declarou abertamente simpatia ao
regime militar brasileiro. No caso de Galeano, o envolvimento nos
periódicos de esquerda, seu posicionamento crítico e sua
notoriedade já estabelecida à época acarretaram profundas
mudanças em sua vida, uma vez que o autor precisou exilar-se
duas vezes. Primeiramente, Galeano instalou-se em Buenos Aires,
em 1973, onde dirigiu a revista Crisis. O autor conta, em seu livro
Días y Noches de Amor y de Guerra, destinado às memórias dos anos
de chumbo da América Latina, a ocasião em que se apresentou à
polícia uruguaia, em Montevidéu, pouco antes do início do exílio:

Poco antes del golpe, volviendo de otro viaje, supe que la policía me había
ido a buscar a mi casa de Montevideo.
Me presenté solo. Sentí miedo al entrar. La puerta se cerró a mis espaldas
con un ruido seco, de trampa. El miedo me duró una hora. Después se me
fue del cuerpo.
¿Qué me podía ocurrir, peor que la muerte? No iba a ser la primera visita.
Estaba de cara contra la pared, en el patio. El piso de arriba era un centro de
torturas. Detrás de mí pasaban los presos. Los arrastraban por el patio.
Algunos volvían deshechos; los arrojaban al piso. A medianoche sonaba la
sirena del transmisor. Yo escuchaba el estrépito, los insultos, la excitación de
la jauría lanzándose a la caza del hombre. Los policías regresaban al
amanecer.
Un par de días después me subieron a un auto. Me trasladaron, me
encerraron en una celda.
Rayé mi nombre en la pared.
Por las noches escuchaba gritos.

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Empecé a sentir la necesidad de conversar con alguien. Me hice amigo de un
ratoncito. Yo no sabía si iba a estar encerrado días o años, y al poco tiempo
se pierde la cuenta. Fueron días. Siempre tuve suerte.
La noche que me soltaron escuché murmullos y voces lejanas, ruidos de
metales, mientras caminaba por los corredores con un guardia a cada lado.
Entonces los presos se pusieron a silbar, suavecito, como soplando paredes.
El silbido fue creciendo hasta que la voz, todas las voces en una, rompió a
cantar. La canción sacudía las paredes. Caminé hasta mi casa. Era una noche
cálida y serena. En Montevideo empezaba el otoño. Me enteré de que hacía
una semana que había muerto Picasso.
Pasó un tiempito y empezó el exilio (GALEANO, 2000, p. 57).

Os anos da Ditadura Militar foram intensos para Galeano. O


projeto da revista argentina Crisis, do qual o autor participou
ativamente durante seu primeiro exílio, em Buenos Aires, obteve
notoriedade e cooperação de vários intelectuais latino-americanos.
A proposta, desde a primeira publicação, procurou manter uma
atitude de afirmação da cultura local e das culturas geralmente não
contempladas na imprensa: a revista, por exemplo, talvez tenha
sido a primeira em língua espanhola a se ocupar de um tema como
a cultura africana (KOVACIC, 2016). Crisis obteve grande
repercussão, chegando a toda América Latina e Europa, a ponto de
atualmente ser encontrada em importantes bibliotecas de diversos
países. Seu fechamento ocorreu em decorrência das circunstâncias
de censura e cerceamento na ditadura argentina, em 1976. Galeano,
acerca da decisão de fechar a referida revista, disse: “no aceptamos
la humillación como epílogo de la hermosa aventura que nos
reunió durante más de tres años. A Crisis no la agacha nadie: la
vamos a enterrar parada como vivió” (GALEANO, 2000, p. 101).
O nome de Galeano foi incluído, em 1974, na lista da Triple A
(Alianza Anticomunista Argentina), cujo escopo consistiu em elaborar
um cadastro de artistas e intelectuais considerados ameaçadores ao
regime. O autor fora classificado como F4 - Fórmula 4 –, o que
significava estar identificado entre os intelectuais de maior nível de
periculosidade (KOVACIC, 2016). A violência presente nas ditaduras
aparece, nesse sentido, como vivência nos anos 60 e 70 e marca os
textos de Galeano, que passa a enfatizar o teor opressor e autoritário

21
das ditaduras. Esta denúncia se intensifica após o seu segundo exílio,
quando passou a morar em Callela da Costa – Espanha. Nesse sentido,
a partir do seu segundo desterro, em 1976, e durante todo o período
de permanência na Europa, o autor procurou recuperar-se da vivência
traumática a que fora submetido nos regimes do Uruguai e Argentina.
Usufruindo da liberdade fora do contexto latino-americano,
impulsiona seus escritos e produz inúmeras obras. Entre os livros
publicados neste período, estão os dois primeiros volumes da trilogia
Memoria del Fuego, que Kovacic (2016) reconhece como uma obra de
continuidade de Las venas abiertas de América Latina, já que o autor
propõe-se a traçar um panorama da história latino-americana nos
últimos 500 anos sob uma perspectiva divergente daquela produzida
pela historiografia oficial.
Nelson Rodrigues, por sua vez, procura, em várias de suas
crônicas, enaltecer o regime militar no Brasil. Contraditoriamente,
devido ao teor polêmico de sua obra, o autor sofre a censura dos
militares e, ainda assim, não reconsidera seu posicionamento. Ao
abordar temáticas inusitadas para sua época, seus escritos
ocasionaram um impacto evidente, tanto no teatro, quanto na sua
literatura. Ruy Castro, no livro biográfico de Nelson Rodrigues –
intitulado O Anjo Pornográfico –, ilustra a polêmica do folhetim
rodrigueano Asfalto Selvagem, publicado diariamente nos anos de
1959 e 1960. Segundo Castro, a história continha

3 defloramentos, uma mutilação genital, dois suicídios, uma curra, um


assassinato, agressões lésbicas, dois exames ginecológicos, incontáveis
adultérios e uma cena lindíssima de sexo debaixo de chuva torrencial – tudo
isso num diário, ao lado dos horóscopos e das receitas de pavê (CASTRO,
1997, p. 300)

Rodrigues admitia suas obsessões por determinadas temáticas


constantemente presentes em sua obra. Era chamado de “flor da
obsessão”, e não protestava contra essa denominação. Causou
diversas polêmicas através de suas histórias que abordavam temas
inusitados para a época, como o homossexualismo, o adultério, o

22
suicídio, o erotismo. Também se autointitulava um “reacionário” e
criticava constantemente os intelectuais de esquerda e o comunismo:

Toda vez que estou na televisão, arrumo um jeito de encaixar a seguinte e


pomposa declaração: “Eu sou um reacionário.” O único insulto, o único
palavrão de nossa época é esta palavra, reacionário.
Eu sou reacionário porque sou pela liberdade. O não reacionário é o
comunista que não tem liberdade nem para fazer greve. O socialista
ortodoxo teve que engolir a castração imposta pela União Soviética e vem
me falar de liberdade?
Sou, sou um reacionário. Reacionário é aquele que quer liberdade, quer o
pão e se recusa a admitir que o Estado tome conta dos seus filhos, faça eles
de palhaços. Pela primeira vez os palhaços tomam conta da História, desde
que os homens comiam paralelepípedos.
Sou anticomunista desde os 11 anos. E assumo minhas posições, mesmo
quando, hoje, o intelectual virou esquerda porque essa é uma maneira de o
sujeito ser inteligente, de ser atual, de ser moderno e, principalmente, de se
banhar na própria vaidade. (RODRIGUES, 2008, p. 81)

É perceptível, deste modo, como Rodrigues e Galeano,


vivenciando uma conjuntura histórica bipolar de Guerra Fria e de
institucionalização de regimes ditatoriais na América Latina,
manifestam-se e divergem politicamente. Ambos são considerados
grandes autores em seus países e no exterior, dotados de
versatilidade e responsáveis pela elaboração de obras importantes,
que marcaram seus contextos. Galeano, em sua obra produzida
durante o seu exílio na Espanha – El libro de los abrazos – coloca
vários escritores latino-americanos como protagonistas de suas
histórias. Em uma delas, dedica-se a falar de Rodrigues:

Las flores
El escritor brasileño Nelson Rodrigues estaba condenado a la Soledad. Tenía
cara de sapo y lengua de serpiente, y a su prestigio de feo y fama de
venenoso sumaba la notoriedad de su contagiosa mala suerte: la gente de su
alrededor moría por bala, miseria o desdicha fatal.
Un día, Nelson conoció a Eleonora. Ese día, el día del descubrimiento,
cuando por primera vez vio a esa mujer, una violenta alegría lo atropelló y
lo dejó bobo.
Entonces quiso decir alguna de sus frases brillantes, pero se le aflojaron las
piernas y se le enredó la lengua y no pudo más que tartamudear ruiditos.

23
La bombardeó con flores. Le enviaba flores a su apartamento, en lo más alto
de un alto edificio de Río de Janeiro. Cada día le enviaba un gran ramo de
flores, flores siempre diferentes, sin repetir jamás los colores ni los aromas,
y abajo esperaba: desde abajo veía el balcón de Eleonora y desde el balcón
ella arrojaba las flores a la calle, cada día, y los automóviles las aplastaban.
Y así fue durante cincuenta días. Hasta que un día, un mediodía, las flores
que Nelson envió no cayeron a la calle y no fueron pisoteadas por los
automóviles.
Ese mediodía él subió hasta el piso último, tocó el timbre y la puerta se abrió.
(GALEANO, 1989, p. 179)

É perceptível, nessa curta referência, que Galeano conhece e


admira a produção de Rodrigues – autor de “frases brilhantes”.
Além do elogio, o jornalista uruguaio faz questão de estabelecer
suas críticas ao contexto ditatorial que o brasileiro tanto defendia.
Não encontramos nenhum indício de que os autores aqui
abordados se conhecessem pessoalmente, nem referências de
Rodrigues a Galeano. Trazemos, nesse sentido, essa pequena
história em que Galeano fala sobre Rodrigues, por considerar
relevante a informação de que o uruguaio conhecia e apreciava a
literatura do brasileiro, ressaltando, também, o fato de que
Rodrigues possuía uma produção importante e respeitável.
Por fim, vale salientar que ambos os escritores procuraram dar
voz ou retratar os homens “comuns” ao longo de suas obras.
Segundo Aldo Rebelo, ao introduzir a obra rodrigueana A Pátria de
Chuteiras, o autor, ao invés de retratar nobres empoados, fez subir
aos palcos “funcionários públicos, escriturários, donas de casa e até
jogadores de futebol” (RODRIGUES, 2013, p. 8). Adicionamos a esse
argumento o fato de ter retratado, por exemplo, negros e
homossexuais em suas peças e crônicas. Galeano, por sua vez,
dedicou-se constantemente por falar em nome dos nadies, os
ninguneados – “que no tienen nombre, sino número; que no figuran
en la historia universal, sino en la crónica roja de la prensa local. Los
nadies, que cuestan menos que la bala que los mata” (GALEANO,
1989, p. 52). A partir de sua notoriedade, o autor procurou dar voz
aos negros, indígenas, mulheres e outras minorias.

24
Rodrigues morreu em 1980, aos 68 anos, no Rio de Janeiro,
vítima de insuficiência vascular cerebral. Galeano, por sua vez,
faleceu em 2015, aos 74 anos, devido a um câncer de pulmão. Ruy
Castro, ao retratar a biografia de Nelson Rodrigues, afirma que é
impossível acreditar em tudo o que aconteceu com o autor no
período de uma vida. Estendemos, diante do exposto, esta
constatação à vida de Galeano. De fato, é surpreendente pensar em
tudo o que os autores experienciaram durante suas vidas.

2.2. AS OBRAS ANALISADAS

“Bienvenidos a la fiesta!” - disse Galeano, ao finalizar seu livro


dedicado ao futebol. Este esporte, tanto na obra de Galeano quanto
na de Rodrigues, foi retratado com paixão, orgulho e alegria.
Indiscutivelmente, trata-se do esporte preferido dos dois autores.
Segundo Galeano, “como todos los uruguayos, quise ser jugador
de fútbol. Yo jugaba muy bien, era una maravilla, pero sólo de
noche, mientras dormía: durante el día era el peor pata de palo que
se ha visto en los campitos de mi país” (GALEANO, 2014, l. 114).
Além do entusiasmo pelo futebol enquanto um mecanismo
que alegra e ocupa uma posição de lazer na sociedade, Rodrigues
e Galeano vislumbraram, também, o quanto este esporte não
suscitou apenas uma discussão efêmera acerca das partidas e das
competições, das derrotas ou vitórias. Ambos trouxeram, cada qual
em seu contexto, o futebol como um elemento extremamente
importante para seus países e para o mundo. Rodrigues
evidenciou, repetidamente, o futebol como um elemento de
superação das adversidades pelas quais o Brasil passou ao longo
de sua história. Galeano, por sua vez, além de retratar o futebol
como um elemento que possibilitou visibilidade para o Uruguai e
para outros países da América Latina, dedicou-se, também, por
denunciar, a partir dos acontecimentos futebolísticos, a
desigualdade e as injustiças promovidas pelo sistema capitalista
em relação aos países subdesenvolvidos – ou, em suas palavras, aos
países do “sul do mundo”.

25
Enquanto o futebol aparece, na obra de Rodrigues, em crônicas
esportivas publicadas em colunas de periódicos brasileiros e
posteriormente editoradas em livros, em Galeano a produção
acerca do esporte foi pensada visando à construção de um livro.
Valemo-nos, nesse sentido, de crônicas rodrigueanas publicadas
nos livros: À sombra das chuteiras imortais – veiculadas
originalmente na revista Manchete Esportiva e no jornal O Globo,
entre 1955 e 1970 -; A pátria de chuteiras – publicadas entre 1950 e
1970 –; Somos o Brasil – obra bilingue, ilustrada com fotografias,
composta por crônicas publicadas entre 1956 e 1970 e por textos que
contextualizam a conjuntura – e O Reacionário – publicadas entre
1967 e 1974 em colunas do Correio da Manhã e de O Globo. Armando
Nogueira, ao apresentar o livro À sombra das chuteiras imortais, diz:

À sombra das chuteiras imortais é a obra sem igual de um cronista que nunca
deu a mínima bola para a frígida aritmética do jogo. Na ótica privilegiada de
Nelson, futebol sempre foi e há de ser arrebatamento. Paixão avassaladora.
Chuteiras sangrando pela doce abstração de um gol.
[...]
Nelson Rodrigues costumava dizer que, como um menino, via o amor pelo
buraco da fechadura. Poderia dizer, também, que via o futebol com os olhos
de um iluminado. Todo domingo, ele ia ao estádio, para contemplar os anjos
e os demônios da sua devoção. Foi assim, no entardecer de cada jogo, que
nasceu À sombra das chuteiras imortais, canto primeiro e único à epopéia do
futebol brasileiro. Nelson é o nosso Homero, sem tirar nem pôr.
(RODRIGUES, 1993, p. 05, 06)

A temática do futebol na obra de Galeano ocupa dois livros: El


fútbol a sol y sombra1, publicado originalmente em 1995 e atualizado
a cada Copa do Mundo até a edição de 2014 e Cerrado por fútbol,
publicado de maneira póstuma, em 2018, e cuja proposta foi
englobar, além dos textos presentes em El fútbol a sol y sombra,
produções não contempladas no referido livro. Kovacic, ao abordar
a produção futebolística de Galeano, diz:

1 O livro El fútbol a sol y sombra foi publicado no Brasil com o título Futebol ao sol e
à sombra, também em 1995, pela Editora L&PM.

26
En 1995, se toma la historia del fútbol como herramienta para contar la
historia humana desde otro ángulo. El fútbol como música del cuerpo, como
instrumento y reflejo de la dignidad humana, está presente en El fútbol a sol
y a sombra. Todo lo que se mueve en torno del fútbol puesto bajo la mirada
filosa de Galeano. La otra cara del fútbol como denuncia también de la
situación del mundo y la humanidad en momentos en que el principal reflejo
de este apasionante deporte no es su adrenalina y habilidad muscular y
poética, sino el reflejo de los millones de dólares o euros que mueven cada
cotización de jugadores. Asombra al mundo el costo del fichaje de un
jugador más que las piruetas con la pelota de que es capaz. Ese es el
trasfondo donde se mueven las historias breves del universo del deporte
más popular. También aquí hay un Galeano guerrillero de la palabra que,
artesanalmente elaborado y de modo certero, dispara al corazón del sistema
que se tragó a una generación, la de los cambios sociales y las utopías
libertarias adormecidas en pleno fin de milenio (KOVACIC, 2016, l. 5344).

A construção dos textos contidos nas obras aqui abordadas é


marcada, no caso de Rodrigues, pela narração de jogos – não
apenas da seleção, mas também de clubes brasileiros – e pelos
personagens escolhidos como protagonistas – que podem ser
jogadores, técnicos, juízes ou até mesmo elementos que envolvem
o futebol. O livro de Galeano, por sua vez, é composto por textos
diversos, que variam de tamanho – alguns são pequenos
fragmentos sobre um gol ou situações do futebol; outros são mais
extensos. O autor inicia o livro abordando elementos do esporte –
a bola, o goleiro, o estádio, a partida, as regras, o árbitro, entre
outros. Após esta apresentação do esporte, passa a narrar situações
do futebol e cada copa do mundo, de 1930 a 2014. Os textos acerca
das Copas Mundiais iniciam-se sempre com uma contextualização
dos acontecimentos que marcavam o mundo à época. A partir
dessa explanação histórica, Galeano entra na temática do futebol e
passa a contar as particularidades da competição:

El Mundial del 86
Baby Doc Duvalier huía de Haití, robándose todo, y robándose todo huía
Ferdinand Marcos de Filipinas, mientras los archivos norteamericanos
revelaban, más vale tarde que nunca, que Marcos, el alabado héroe filipino
de la segunda guerra mundial, había sido en realidad un desertor.

27
El cometa Halley visitaba nuestro cielo después de mucha ausencia, se
descubrían nueve lunas en torno al planeta Urano, aparecía el primer
agujero en la capa de ozono que nos protege del sol. Se difundía una nueva
droga, hija de la ingeniería genética, contra la leucemia. En el Japón se
suicidaba una cantante de moda y tras ella elegían la muerte veintitrés de
sus devotos. Un terremoto dejaba sin casa a doscientos mil salvadoreños y
la catástrofe de la central nuclear soviética de Chernobyl desataba una lluvia
de veneno radioactivo, imposible de medir y de parar, sobre quién sabe
cuántas leguas y gentes.
Felipe González decía sí a la OTAN, la alianza militar atlántica, después de
haber gritado no, y un plebiscito bendecía el viraje mientras España y
Portugal entraban al mercado común europeo. El mundo lloraba la muerte
de Olof Palme, el primer ministro de Suecia, asesinado en la calle. Tiempos
de luto para las artes y las letras: se nos iban el escultor Henry Moore y los
escritores Simone de Beauvoir, Jean Genet, Juan Rulfo y Jorge Luis Borges.
Estallaba el escándalo Irangate, que implicaba al presidente Reagan, a la CIA
y a los contras de Nicaragua en el tráfico de armas y de drogas, y estallaba
la nave espacial Challenger, al despegar de Cabo Cañaveral, con siete
tripulantes a bordo. La aviación norteamericana bombardeaba Libia y
mataba a una hija del coronel Gaddafi, para castigar un atentado que años
después se atribuyó a Irán. En una cárcel de Lima morían ametrallados
cuatrocientos presos. Fuentes bien informadas de Miami anunciaban la
inminente caída de Fidel Castro, que iba a desplomarse en cuestión de horas.
Se habían desplomado muchos edificios sin cimientos, con toda la gente
adentro, cuando un terremoto había sacudido a la ciudad de México, el año
anterior, y buena parte de la ciudad estaba todavía en ruinas mientras se
inauguraba allí el decimotercer Campeonato Mundial de Fútbol.
(GALEANO, 2014, l. 1919 – 1931)

Enquanto as crônicas aqui abordadas de Rodrigues foram


produzidas no Brasil, no período de 1954 a 1970, no intuito de
serem veiculadas na imprensa; os textos esportivos de Galeano são
publicados em um único livro, em 1995. Acreditamos que o autor
tenha escrito esses textos nesse período, no Uruguai, visando à
publicação do livro Fútbol a sol y sombra. Destacamos, nesse sentido,
que, enquanto Rodrigues escreve na própria conjuntura dos
acontecimentos, os textos de Galeano são fruto de suas memórias e
leituras sobre as Copas. Esta diferença é importante para a análise
das obras, e será retomada no próximo capítulo, ao falar dos
gêneros literários dos textos.

28
2.3. O FUTEBOL NA VISÃO DOS AUTORES: MAIS QUE UM
ESPORTE

Apresentadas as obras, focaremos, a partir de agora, na exposição


sobre como o elemento futebol é abordado na produção dos autores,
frequentemente recorrendo diretamente a suas crônicas para melhor
ilustrar suas propostas. De maneira geral, ambos o pensam além da
limitação de um jogo ou campeonato. A partir dos escritos acerca do
esporte, discutem-se questões inerentes à vida: o futebol é
representado, assim, como uma metáfora da sociedade. Rodrigues
esforçou-se em apresentá-lo como um elemento de extrema
importância para os brasileiros – como afirma Ruy Castro, o autor
dramatiza os jogos, desliga-o da realidade e joga-o numa dimensão de
eternidade (RODRIGUES, 1993, p. 10).

Amigos, vocês podem acreditar: — quem não estiver sofrendo, neste momento,
é um mau caráter. E por que mau-caráter? Vou explicar, calma, vou explicar. O
Brasil vai jogar amanhã a partida mais dramática de toda a sua história, e eu
quase diria: — como é possível não sofrer diante da formidável batalha? O
começo de qualquer partida é uma janela aberta para o infinito. Ao soar o apito
inicial, todas as possibilidades passam a ser válidas. Eu falava em sofrimento.
Tudo no jogo de amanhã justifica uma tensão intolerável. Há a angústia da
dúvida. E há a angústia inversa da certeza. Milhões de brasileiros estão certos do
bi. E, apesar disso, ou com isso mesmo, andam crispados em casa, na rua, por
toda parte. (RODRIGUES, 2013, p. 25)

Percebe-se, aqui, o julgamento do cronista a respeito daqueles


que não se envolvem com o jogo da seleção e o drama incutido
neste evento, considerado uma “batalha”. Na iminência da partida,
o autor está certo de uma angústia coletiva e apresenta o
encantamento com as possibilidades existentes após o apito inicial.
Galeano, assim como Rodrigues, expressa o seu
deslumbramento com a partida de futebol. Diante deste evento, o
autor relata o desaparecimento da cidade, o esquecimento da rotina
e a existência única do estádio – o “templo” do futebol, um espaço
sagrado:

29
Flamean las banderas, suenan las matracas, los cohetes, los tambores, llueven las
serpentinas y el papel picado: la ciudad desaparece, la rutina se olvida, sólo
existe el templo. En este espacio sagrado, la única religión que no tiene ateos
exhibe a sus divinidades. Aunque el hincha puede contemplar el milagro, más
cómodamente, en la pantalla de la tele, prefiere emprender la peregrinación
hacia este lugar donde puede ver en carne y hueso a sus ángeles batiéndose a
duelo contra los demonios de turno. (GALEANO, 2014, l. 174)

O autor pressupõe, ao anunciar que o referido esporte é a


única religião que não possui ateus, uma unanimidade em torno da
sensibilidade e do interesse pelo futebol. Assim como em
Rodrigues, há esta teorização acerca de uma universalidade e do
encantamento pelo esporte. Galeano defende, ademais, a
característica sagrada e religiosa da partida, falando em milagres e
em “anjos de carne e osso” que combatem “demônios”:

En el fútbol, ritual sublimación de la guerra, once hombres de pantalón corto


son la espada del barrio, la ciudad o la nación. Estos guerreros sin armas ni
corazas exorcizan los demonios de la multitud, y le confirman la fe: en cada
enfrentamiento entre dos equipos, entran en combate viejos odios y amores
heredados de padres a hijos. El estadio tiene torres y estandartes, como un
castillo, y un foso hondo y ancho alrededor del campo. Al medio, una raya
blanca señala los territorios en disputa. En cada extremo, aguardan los arcos,
que serán bombardeados a pelotazos. Ante los arcos, el área se llama zona
de peligro. (GALEANO, 2014, l. 283)

A compreensão do futebol como metáfora da guerra e sua


relação com a religiosidade estão presentes, assim, na visão dos
dois autores. Para Rodrigues, a crença em Deus é um arsenal
místico no futebol, que explica vitórias:

[...] achamos que Deus não se interessa por futebol! Portanto, nós o
excluímos das atribuições da nossa torcida. Domingo, nunca houve um
clube tão sem Deus como o Fluminense. Ora, nenhum brasileiro consegue
ser nada, no futebol ou fora dele, sem a sua medalhinha de pescoço, sem os
seus santos, as suas promessas e, numa palavra, sem o seu Deus pessoal e
intransferível. É esse místico arsenal que explica as vitórias esmagadoras.
(RODRIGUES, 1993, p. 43, 44)

30
Ambos preocuparam-se, deste modo, em evidenciar a atuação
da magia, da sacralidade e da disputa no futebol. Mas além desses
aspectos que causavam encantamento nos escritores e no público, as
produções também estabeleceram críticas ao esporte, sobretudo
relacionadas às mudanças trazidas pela sua comercialização.
Vivenciando um período marcado pelo acirramento da globalização,
os autores aqui estudados não deixam de manter uma posição crítica
acerca das consequências deste fenômeno no futebol:

Por outro lado, convém aceitar esta verdade recente — o campeão não é
apenas um jogador de futebol. É um herói: nenhum clube, nenhum povo tem
o direito de vender seus heróis. Nem o herói tem o direito de vender a si
mesmo. Amigos, no dia em que deixarmos de prezar os valores gratuitos,
vamos cair todos de quatro, todos. (RODRIGUES, 2013, p. 22)

Rodrigues, vivenciando um período em que se intensifica a


exportação de jogadores ao exterior, demonstra-se contrariado com
a prática, já que, para ele, os nossos grandes jogadores são figuras
míticas e heróicas do povo e da nação. Este posicionamento está
ainda mais evidente em Galeano, considerando que sua obra, como
um todo, é definida por um caráter de denúncia do sistema
capitalista, e que a exportação de jogadores é consequência dessa
logística. Além disso, como a obra de Galeano é datada de 1995, é
natural que o autor tenha presenciado, de maneira mais intensa que
Rodrigues, a ascensão do mercado do futebol, que passou a
envolver, paulatinamente, uma quantidade cada vez maior de
capital. Deste modo, Galeano diz:

Al fin del siglo, los periodistas especializados hablan cada vez menos de las
habilidades de los jugadores y cada vez más de sus cotizaciones. Los
dirigentes, los empresarios, los contratistas y demás cortadores del bacalao
ocupan un espacio creciente en las crónicas futboleras. Hasta hace algunos
años, los pases se referían al viaje de la pelota de un jugador a otro; ahora,
los pases aluden más bien al viaje del jugador de uno a otro club o de un país
a otro. ¿Cuánto están rindiendo los famosos en relación a la inversión? Los
especialistas nos bombardean con el vocabulario de los tiempos: oferta,
compra, opción de compra, venta, cesión en préstamo, valorización,
desvalorización. En el Mundial 98, las pantallas de televisión universal

31
fueron invadidas y copadas por la emoción colectiva, la más colectiva de las
emociones; pero también fueron vidrieras de exhibición mercantil. Hubo
alzas y caídas en la bolsa de piernas. (GALEANO, 2014, l. 2476)

Esta prática de cotização e exportação de jogadores, acirrada


com o final do século XX, fazia com que os mesmos não atuassem
mais em seus países, o que influía negativamente no entrosamento
dos jogadores das seleções nacionais, que passavam a não ter tanto
contato e tantas oportunidades de treino. Esta é uma crítica
bastante presente na obra de Galeano. A partir dessas constatações
acerca deste novo futebol, que emergia justamente na conjuntura
em que os autores estavam produzindo, surge um sentimento de
nostalgia do futebol antigo. Segundo Rodrigues,

Por exemplo: — o futebol antigo. Era, a meu ver, um fenômeno vital muito
mais rico, complexo e intrincado. Hoje, os jogadores, os juízes e os
bandeirinhas se parecem entre si como soldadinhos de chumbo. Não
encontramos, em ninguém, uma dessemelhança forte, crespa e taxativa. Não
há um craque, um árbitro ou um bandeirinha que se imponha como um
símbolo humano definitivo. (RODRIGUES, 1993, p. 18)

Rodrigues e Galeano foram defensores ferrenhos do futebol


genuíno, artístico, que dispensa força e preparação física.
Presenciaram, entretanto, este esporte cada vez mais tecnocrático e
exigente quanto ao preparo de seus atletas. Galeano enfatiza que a
indústria do futebol acabou o limitando e retirando sua magia:

La historia del fútbol es un triste viaje del placer al deber. A medida que el
deporte se ha hecho industria, ha ido desterrando la belleza que nace de la
alegría de jugar porque sí. En este mundo del fin de siglo, el fútbol
profesional condena lo que es inútil, y es inútil lo que no es rentable. A nadie
da de ganar esa locura que hace que el hombre sea niño por un rato, jugando
como juega el niño con el globo y como juega el gato con el ovillo de lana:
bailarín que danza con una pelota leve como el globo que se va al aire y el
ovillo que rueda, jugando sin saber que juega, sin motivo y sin reloj y sin
juez. El juego se ha convertido en espectáculo, con pocos protagonistas y
muchos espectadores, fútbol para mirar, y el espectáculo se ha convertido en
uno de los negocios más lucrativos del mundo, que no se organiza para jugar
sino para impedir que se juegue. La tecnocracia del deporte profesional ha

32
ido imponiendo un fútbol de pura velocidad y mucha fuerza, que renuncia
a la alegría, atrofia la fantasía y prohíbe la osadía. (GALEANO, 2014, l. 124)

A visão do escritor uruguaio acerca do futebol profissional fica


bem clara nesta passagem, na medida em que o autor esclarece que
a história do esporte é uma “triste viagem do prazer ao dever”. A
conversão do jogo em espetáculo, a transformação no futebol em
um lucrativo negócio e a tecnocracia do esporte – que impõe a força
e a velocidade – são temáticas recorrentes em Fútbol a sol y sombra.
Deste modo, ao evidenciar as características positivas do futebol –
como a magia de uma partida e a possibilidade de reconhecimento
de um país mediante o sucesso esportivo – e as características
negativas – como a sua industrialização a partir de sua excessiva
profissionalização –, explica-se o significado do título do referido
livro. Compreendemos que, para Galeano, a metáfora do sol no
futebol é a magia e a fascinação de uma partida despretensiosa,
enquanto a sombra está presente na imposição da tecnocracia, que,
como mencionado na citação, renuncia a alegria, atrofia a fantasia,
proíbe a ousadia. O autor menciona, ao final da primeira edição do
livro, seu propósito de realizar uma homenagem ao futebol,
celebração de suas luzes e denúncia de suas sombras:

Desde hace años, yo me he sentido desafiado por el tema, memoria y


realidad del fútbol, y he tenido la intención de escribir algo que fuera digno
de esta gran misa pagana, que tantos distintos lenguajes es capaz de hablar
y tan universales pasiones pueden desatar. Escribiendo, iba a hacer con las
manos lo que nunca había sido capaz de hacer con los pies: chambón
irremediable, vergüenza de las canchas, yo no tenia mas remedio que pedir
las palabras lo que la pelota, tan deseada, me había negado.
De ese desafío, y de esa necesidad de expiación, nacieron estos textos.
Homenaje al fútbol, celebración de sus luces, denuncia de sus sombras. Yo
no sé si ellos son lo que han querido ser, pero han crecido dentro de mí y
han llegado ya a su último minuto y ahora, ya nacidos, se ofrecen a ustedes.
Y yo me quedo con esa melancolía irremediable que todos sentimos después
del amor y al final del partido. (GALEANO, 2014, l. 2437)

Diante desta constatação da denúncia presente na obra de


Galeano, chegamos a um ponto chave que queremos enfatizar: a

33
totalidade da obra do autor é marcada pelo protesto, e no futebol não
é diferente. O jornalista utiliza-se do futebol, neste livro, para
manifestar sua contestação à logística do mundo, focando seu olhar
na desigualdade entre os países, decorrente de séculos de exploração:

Cuando el sur del mundo comete la osadía de saltar esa pared y se mete donde
no debe, el norte le recuerda, a palos, cuál es su lugar. Y lo mismo ocurre con las
invasiones desde las zonas malditas de cada país y de cada ciudad. El fútbol,
espejo de todo, refleja esta realidad. (GALEANO, 2014, l. 2012)

O futebol é apresentado, deste modo, como um reflexo da


realidade. É perceptível, neste trecho, a dicotomia entre norte e sul,
entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos. Esta é uma
constante na obra do autor e uma certificação fundamental para
compreender seu pensamento – tão influenciado pela teoria da
dependência2. Sua obra, como um todo, sustenta-se,
incansavelmente, neste paradigma. No livro Patas Arriba: La Escuela
Del Mundo Al Revés, Galeano, em um pequeno fragmento, retoma a
temática do futebol e didaticamente ilustra esta dicotomia:

La excepción
Existe un solo lugar donde el norte y el sur del mundo se enfrentan en
igualdad de condiciones: es una cancha de fútbol de Brasil, en la
desembocadura del río Amazonas. La línea del ecuador corta por la mitad el
estadio Zerâo, en Amapá, de modo que cada equipo juega un tiempo en el
sur y otro en el norte. (GALEANO, 2013, p. 19)

Fica evidente, novamente, a dicotomia entre os hemisférios


norte e sul, e Galeano utiliza a particularidade do estádio
amapaense para exemplificar, metaforicamente, a desigualdade de

2 Em síntese, a Teoria da Dependência estabelece que a compreensão de uma


unidade nacional ou regional deve ser entendida considerando sua inserção no
sistema político-econômico mundial. Nesse sentido, “a economia dos países
periféricos está condicionada pelo desenvolvimento e expansão das economias
dos países centrais” (SILVA, 2005, p. 1). Esta teoria surge no contexto latino-
americano nos anos 60, como uma tentativa de explicar o desenvolvimento da
região, buscando compreender a reprodução do sistema capitalista de produção
na periferia (DUARTE, GRACIOLI, 2007, p. 1)

34
condições existente entre os dois lados do equador. Desde Las venas
abiertas de América Latina – obra mais famosa do escritor –, esta
desproporção generalizada entre norte e sul é problematizada.
Além de utilizar-se do futebol para denunciar os problemas e
desigualdades do mundo, reiterando a teoria de dependência do
sul em relação ao norte e problematizando as questões referentes à
industrialização do esporte, Galeano também contesta a
desconsideração da historiografia acerca do esporte:

Un vacío asombroso: la historia oficial ignora al fútbol. Los textos de historia


contemporánea no lo mencionan, ni de paso, en países donde el fútbol ha
sido y sigue siendo un signo primordial de identidad colectiva. Juego, luego
soy: el estilo de jugar es un modo de ser, que revela el perfil propio de cada
comunidad y afirma su derecho a la diferencia. Dime cómo juegas y te diré
quién eres: Hace ya muchos años que se juega al fútbol de diversas maneras,
expresiones diversas de la personalidad de cada pueblo, y el rescate de esa
diversidad me parece, hoy día, más necesario que nunca. Estos son tiempos
de uniformización obligatoria, en el fútbol y en todo lo demás. Nunca el
mundo ha sido tan desigual en las oportunidades que ofrece y tan igualador
en las costumbres que impone: en este mundo de fin de siglo, quien no
muere de hambre, muere de aburrimiento. (GALEANO, 2014, l. 2434)

Galeano é um pensador que procura romper e contestar


padrões de conhecimento. Em muitas de suas obras, procurou
ressignificar o conhecimento produzido e consolidado. Com
relação à história da América Latina – temática tão cara em sua
produção –, o autor elabora versões diferentes das oficiais, sempre
procurando dar voz às minorias invisibilizadas. Quando o assunto
é futebol, o uruguaio estabelece suas críticas, ao contestar o fato de
o tema não ser abordado pelos estudiosos: nesse sentido, mais uma
vez, o autor procura preencher a ausência de atenção em relação ao
futebol por parte dos produtores oficiais de conhecimento.
Outra importante observação do uruguaio ilustrada neste
último trecho é a ideia do futebol como elemento de constituição
de identidade coletiva – questão central da nossa análise. Como
pode ser visto, Galeano defende a ideia de que o modo de jogar
revela o perfil de uma comunidade e afirma o seu direito à

35
diferença. Para o autor, o resgate da diversidade em um contexto
de padronização do esporte – fator tão presente no final do século
XX, como dito – é essencial. O autor defende, nesse sentido, a
presença de traços identitários na forma de jogar futebol e,
sobretudo, a manutenção da multiplicidade de estilos.
A ideia de identidade existente no modo de jogar também é
manifesta no pensamento de Rodrigues, de maneira incansável: o
autor utiliza-se da repetição e da demasia para convencer o seu
leitor. O escritor acredita que os sucessos provenientes das
conquistas da seleção demonstram a superioridade categórica e
irrefutável do brasileiro. O futebol, na sua visão, é essencial e
possui extrema importância para o país:

Amigos, era ali ou nunca. Setenta e cinco milhões de brasileiros precisavam


mais do gol que todo o Nordeste de água e pão. O possesso sentiu que era
chegado o instante. Caçaram Amarildo. Entre ele e o gol havia toda uma
flora de rapas, de pés na cara, palavrões, chifres. Só faltaram chupar-lhe a
carótida como a um aspargo. (RODRIGUES, 2013, p. 99)

Este trecho, escrito na crônica da ocasião da partida de oitavas-


de-final da Copa do Mundo de 1962 – na qual o Brasil consagrou-
se bicampeão –, demonstra a magnitude do futebol aos olhos do
autor: como explicitado, um gol era mais importante que os
requisitos mínimos de sobrevivência, como água e pão. Rodrigues
constantemente utiliza-se de proposições extremas para defender a
relevância do futebol no Brasil. Segundo o autor, “desde o Paraíso,
jamais houve um futebol como o nosso” (RODRIGUES, 2013, p.
113), ou “desde Pedro Álvares Cabral, nunca o Brasil conquistou
uma vitória tão gigantesca” (RODRIGUES, 2013, p. 29).

Eis por que a batalha do escrete implica toda a nação. Até os xavantes, que
põem em cima da nudez aquele casto cinto de barbante, até o xavante, dizia
eu, está pessoalmente interessado no bi. Em 50, não foi apenas um time que
fracassou no Maracanã. Foi o homem brasileiro, como em Canudos. Em 58,
quem venceu? O Brasil. Quando Bellini apanhou o caneco de ouro, era o
novo homem brasileiro que se proclamava (RODRIGUES, 2013, p. 25, 26)

36
Neste trecho, algumas questões importantes para
compreender a visão do futebol em Rodrigues estão ilustradas: a
unanimidade da população em torno do futebol – inclusive, no
exemplo, por povos indígenas, revelando uma tentativa de
homogeneizar todos sob a concepção da nação –; a comparação do
fracasso de 1950 à Guerra de Canudos, reiterando a ideia de que o
futebol é tão importante quanto eventos representativos da história
oficial e a superação do brasileiro a partir do esporte.

Mas o brasileiro é assim mesmo. Em 50, quase houve um suicídio nacional


quando não fomos campeões do mundo. Éramos, todos nós, brasileiros, uma
nação que quase toma formicida. Pois bem: — e em 58, ao conquistarmos o
título, eis que houve, aqui, um hábito instantâneo à glória jamais imaginada.
(RODRIGUES, 2013, p. 37)

A conquista da Copa do Mundo de 1958 é, para Rodrigues, um


momento crucial para a seleção e para o Brasil, já que as partidas
do escrete implicariam toda a nação. Nesse ano, a seleção brasileira
conquistou uma Copa do Mundo pela primeira vez. Rodrigues,
vivenciando e produzindo nesse período, exalta a conquista e
teoriza que ela significa a libertação nacional:

O homem do Brasil ainda não tinha amadurecido. Nas grandes partidas


internacionais, ele entrava em campo arrasado emocionalmente. Perdia
antes da derrota. Mas 58 nos libertou de todas as nossas frustrações. Os
negros, os mulatos, os brancos do país surgiram numa plenitude até então
desconhecida. E, de então para cá, o brasileiro tem um destino de campeão.
Vence tudo. Os nossos cavalos triunfam, lá fora, não porque sejam bons, mas
porque são brasileiros. As nossas caixas de fósforos ganham nas exposições.
Há coisa mais comovente do que um zebu premiado, com uma medalha
pendurada na fitinha? Se os cavalos, os zebus, as caixas de fósforos estão
brilhando — por que falharia o homem?
[...]
Acredito no bi, porque, repito, acredito no homem genial do Brasil.
(RODRIGUES, 2013, p. 26)

A partir da derrota brasileira na final da Copa do Mundo de


1950 – que ocorreu em pleno Maracanã, contra o Uruguai de
Galeano –, Rodrigues cria uma teoria que acaba se consagrando no

37
imaginário brasileiro: o “complexo de vira-latas”, cuja proposta é
ironizar o sentimento de submissão do Brasil perante o mundo.
Esta expressão é conhecida e veiculada até hoje por muitos
brasileiros para se referir à ideia de um complexo de inferioridade
aqui presente.

A pura, a santa verdade é a seguinte: — qualquer jogador brasileiro, quando


se desamarra de suas inibições e se põe em estado de graça, é algo de único
em matéria de fantasia, de improvisação, de invenção. Em suma: — temos
dons em excesso. E só uma coisa nos atrapalha e, por vezes, invalida as
nossas qualidades. Quero aludir ao que eu poderia chamar de “complexo de
vira-latas”. Estou a imaginar o espanto do leitor: — “O que vem a ser isso?”
Eu explico.
Por “complexo de vira-latas” entendo eu a inferioridade em que o brasileiro
se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. Isto em todos os
setores e, sobretudo, no futebol. Dizer que nós nos julgamos “os maiores” é
uma cínica inverdade. Em Wembley, por que perdemos? Porque, diante do
quadro inglês, louro e sardento, a equipe brasileira ganiu de humildade.
Jamais foi tão evidente e, eu diria mesmo, espetacular o nosso vira-latismo.
Na já citada vergonha de 50, éramos superiores aos adversários. Além disso,
levávamos a vantagem do empate. Pois bem: — e perdemos da maneira mais
abjeta. Por um motivo muito simples: — porque Obdulio nos tratou a
pontapés, como se vira-latas fôssemos. (RODRIGUES, 2013, p. 80)

Esta crônica, escrita na coluna “Meu personagem da semana”,


em maio de 1958, o autor levanta, pela primeira vez, sua hipótese
acerca do “complexo de vira-latas”. A derrota de 50 é colocada
como a maior humilhação a que o país fora submetido, e o pânico
de vivenciar novamente uma derrota como aquela é, segundo o
autor, um entrave ao sucesso da seleção. A “humildade” diante de
um adversário “louro e sardento” - nas palavras de Rodrigues –
teria levado à derrota degradante de 50. E todas as derrotas do
brasileiro – dentro e fora do escrete – seriam sempre consequência
da falta de fé em si.
A conquista do bicampeonato em 1962 viria, na visão
rodrigueana, para consagrar definitivamente o Brasil. Esta vitória
daria, a todos os brasileiros, indistintamente, uma posição

38
diferenciada. Todos passaram a ser, para o cronista, caracterizados
por uma grandiosidade extraordinária:

Amigos, estamos atolados na mais brutal euforia. Ontem, quando rompia a


primeira estrela da tarde, o Brasil era proclamado bicampeão do mundo. Foi
um título que o escrete arrancou de suas rútilas entranhas. E, a partir da
vitória, sumiram os imbecis, e repito: — não há mais idiotas nesta terra.
Súbito o brasileiro, do pé-rapado ao grã-fino, do presidente ao contínuo, o
brasileiro, dizia eu, assume uma dimensão inesperada e gigantesca. O
bêbado tombado na sarjeta, com a cara enfiada no ralo, também é rei. Somos
75 milhões de reis. (RODRIGUES, 2013, p. 82)

Essa euforia rodrigueana com o escrete continuou se repetindo


após o bicampeonato. Em 1970, veio o tricampeonato mundial, e
então o autor intensifica seu entusiasmo pelo Brasil e pela teoria de
genialidade do homem brasileiro. Ele encontra, no futebol
diferenciado, uma base para ancorar seu patriotismo e defender a
superioridade do país.
Enquanto Rodrigues abordou a temática do futebol brasileiro,
Galeano traz o esporte como elemento diferenciado não apenas no
seu país, Uruguai, mas também em outros países da América
Latina e do mundo. Ao escrever seus textos, o autor aborda
diversos personagens e, quando faz referência ao tricampeonato,
menciona, mais uma vez, o conhecimento da obra de Rodrigues –
desta vez, fez referência à sua produção futebolística:

La fiesta
Hay algunos pueblos y caseríos del Brasil que no tienen iglesia, pero no
existe ninguno sin cancha de fútbol. El domingo es el día que más trabajan
los cardiólogos de todo el país. Un domingo normal, cualquiera puede morir
de emoción mientras se celebra la misa de la pelota. Un domingo sin fútbol,
cualquiera puede morir de emoción mientras se celebra la misa de la pelota.
Un domingo sin fútbol, cualquiera muere de aburrimiento.
Cuando la selección de Brasil naufragó en el Mundial del 66, hubo suicidios,
ataques de nervios, banderas patrias a media asta y crespones negros en las
puertas, y una bailandera procesión de dolientes cubrió las calles y enterró
al fútbol nacional con ataúd y todo. Cuatro años después, Brasil ganó por
tercera vez el campeonato mundial. Entonces Nelson Rodrigues escribió que

39
los brasileños dejaron de tener miedo de que los llevara la perrera, y fueron
todos reyes de manto de amiño y erguida corona.
En el Mundial de 70, Brasil jugó un fútbol digno de las ganas de fiesta y la
voluntad de belleza de su gente. Ya se había impuesto en el mundo la
mediocridad del fútbol defensivo, con todo el cuadro atrás, armando el
cerrojo, y adelante uno o dos hombres jugando al solitario; ya habían sido
prohibidos el riesgo y la espontaneidad creadora. Y aquel Brasil fue un
asombro: presentó una selección canzada a la ofensiva, que jugaba con
cuatro atacantes, Jairzinho, Tostão, Pelé y Rivelino, que a veces eran cinco y
hasta seis, cuando Gerson y Carlos Alberto llegaban desde atrás. En la final,
esa aplanadora pulverizó a Italia.
Un cuarto de siglo después, semejante audacia sería considerada un suicidio.
En el Mundial del 94, Brasil ganó otra final contra Italia. Ganó en la
definición por penales, al cabo de ciento veinte minutos sin goles. De no
haber sido por penales, las vallas hubieran seguido invictas por toda la
eternidad. (GALEANO, 2014, l. 1589 – 1596)

Constata-se, aqui, um fator muito significativo para a nossa


pesquisa: Galeano conhecia também as crônicas futebolísticas de
Rodrigues. Talvez, diante de tantas perspectivas semelhantes no que
concerne ao seu pensamento sobre o futebol, tenha sido influenciado
por ele. O jornalista uruguaio também vislumbrou a unanimidade
brasileira em relação ao futebol, diante dos argumento contidos nesta
citação: a presença de campos de futebol nas comunidades, a ideia do
trabalho do cardiologista aos domingos, o futebol caracterizado pela
festa e gana do brasileiro. Esse imaginário é também bastante presente
no pensamento rodrigueano.
A partir desta explanação acerca do futebol na obra dos
autores, reiteramos as seguintes formulações: Rodrigues procurou,
a partir de suas repetições e demasias, convencer o seu leitor de que
a seleção brasileira – e consequentemente o brasileiro – é superior
às demais seleções. Elaborou a teoria de que todas as mazelas
existentes no Brasil jamais seriam decorrentes da incapacidade do
brasileiro, mas sim da sua falta de auto-estima e de auto-confiança.
Defendeu a ideia de que o futebol seria mais importante que
questões sociais e históricas do país, sendo a derrota da Copa do
Mundo de 1950, em pleno Maracanã, a maior tragédia aqui
registrada, a “hiroshima brasileira”. Galeano, por sua vez, utilizou-

40
se do futebol para desenvolver suas denúncias acerca do sistema
capitalista e das desigualdades promovidas em nome do referido
esporte. Nostálgico do futebol antigo e amante do futebol
despretensioso, o escritor faz duras críticas à sua industrialização e
registra o combate às práticas mercantis contemporâneas. A magia
e o encantamento também são evidenciados, e assim são colocadas
as sombras e as luzes do futebol. Nesse sentido, considerando a
linguagem característica e a refinada ironia de Rodrigues,
encontramos um texto inusitado e envolvente; enquanto a
perspectiva engajada e denunciante de Galeano fazem com que seu
texto seja mais previsível.
Rodrigues e Galeano foram, na totalidade de suas produções,
obsessivos por algumas temáticas. O brasileiro, em suas crônicas,
em sua literatura e em seu teatro, foi obcecado por abordar
temáticas polêmicas para a sua época, como a infidelidade, a
homossexualidade e o erotismo. Galeano, por sua vez,
constantemente procurou comprovar a teoria da dependência e
criticou incansavelmente o capitalismo. Intencionou também falar
sobre as injustiças cometidas contra minorias – indígenas, negros,
mulheres, imigrantes. Ao pensar a questão das identidades
nacionais, enquanto Rodrigues permaneceu com uma perspectiva
exclusivamente brasileira, Galeano pensou um imaginário não
somente uruguaio, mas também latino-americano, já que a pauta
latino-americanista era tão cara a ele e perpassou toda a sua obra.
Portanto, procuraremos, aqui, realizar uma análise enfocando uma
temática em comum que interessa a esses dois escritores – cujos
princípios e convicções são tão distintos: a paixão pelo futebol e sua
relação com a identidade.

2.4. OS ESTUDOS SOBRE A TEMÁTICA DO FUTEBOL NA


OBRA DOS AUTORES: UMA REVISÃO BIBLIOGRÁFICA

Ao realizar esta revisão bibliográfica, encontramos numerosos


estudos acerca da produção esportiva de Nelson Rodrigues e
poucos estudos referentes à produção de Eduardo Galeano. Os

41
estudos que abordam a obra de Galeano enfatizam sobretudo as
suas produções com viés político, considerando a ampla
notoriedade que o autor destina a essa questão. Pretendemos, nesse
sentido, considerando a centralização na perspectiva política de
Galeano, suprir, de certa forma, a ausência de estudos acerca da
produção do referido autor sobre o futebol. Ademais, não
encontramos, até o presente momento, estudos que se
propusessem a estudar conjuntamente as crônicas futebolísticas
dos dois autores. Deste modo, nossa proposta visa também a
apresentar, através da literatura comparada, uma abordagem dos
dois autores em conjunto – que concluímos relevante pelo fato de
ainda não ter sido problematizada, como já evidenciamos.
Realizaremos, nas próximas duas seções – uma destinada a Nelson
Rodrigues; outra, a Eduardo Galeano –, uma breve discussão dos
estudos que consideramos significativos para o desenvolvimento
desta pesquisa.

2.4.1. Nelson Rodrigues: identidade nacional e a superação da


inferioridade

No que concerne aos estudos realizados acerca do futebol


como elemento de constituição de identidade nacional na obra
Nelson Rodrigues, constantemente ressalta- se a investida do autor
em destacar o referido esporte como um instrumento fundamental
na superação de uma postura de inferioridade do brasileiro em
relação ao resto do mundo (MARQUES, 2012; MARQUES, 2000;
SILVA, 2016; BORGES, 2006; SILVA, 1997; ANTUNES, 2004;
VEJMELKA, 2007). Essas análises abordam, de modo geral,
temáticas recorrentes nas crônicas esportivas do autor, como a
afirmação do futebol-arte – proveniente de um conjunto de fatores
intrínsecos ao caráter do homem brasileiro –, o combate ao
“complexo de vira-latas” e a paixão do brasileiro pelo futebol.
Francisca Islandia da Silva (2016) procurou compreender
como Rodrigues contribuiu para reforçar o mito de uma identidade
nacional solidificada no futebol. Destacou que suas crônicas

42
objetivavam cultivar a imagem de um país vitorioso, que conseguiu
superar os problemas do passado. Neste intuito, os jogadores da
seleção eram encarados como personagens míticos e heroicos de
um povo que sempre valorizou a festa e a ludicidade.
Influenciado por intelectuais brasileiros cujas teorias
ressaltavam a presença da mestiçagem na identidade brasileira e
que pensaram a formação do “homem cordial” - Gilberto Freyre e
Sérgio Buarque de Holanda, respectivamente –, Nelson Rodrigues
cria o imaginário do brasileiro, pautado no ideal da mestiçagem, da
ginga e da criatividade (SILVA, 2016). Além de Freyre e Holanda,
Silva (2016) destaca também a influência de Paulo Prado na
tentativa de criar o imaginário do homem brasileiro: as crônicas de
Rodrigues contrariavam veementemente a tese da tristeza
brasileira de Prado e mostravam um brasileiro alegre e contagiante.
Nesse sentido, Fátima Antunes (2004) ressalta a influência das
obras desses 3 intelectuais nos escritos de Nelson Rodrigues,
afirmando que, na medida em que o cronista escrevia sobre futebol
em veículos de comunicação de grande circulação, voltados para
os torcedores de futebol, acabava por traduzir e divulgar certas
ideias e conceitos sobre a identidade nacional – as quais o grande
público não teria acesso. Nesse sentido, Rodrigues acaba
contribuindo na difusão das ideologias sobre o caráter e a
identidade, originariamente elaboradas por um grupo de ensaístas.
Tais noções incorporaram-se, por fim, ao imaginário acerca da
relação entre o futebol e o Brasil (ANTUNES, 2004).
Além dos termos objetivos do futebol – que Nelson chama de
termos técnicos, táticos e esportivos –, suas crônicas acabam
revelando, deste modo, uma outra dimensão, como as
interferências do sobrenatural no esporte, o dramatismo dos
grandes jogos e o lirismo do estilo dos craques. Revelam, ainda,
como todo um mundo particular em que os acontecimentos,
personagens e instituições do universo futebolístico tornam- se
signos de um universo mais amplo, que é a própria vida do
homem. A trajetória da conquista do tricampeonato mundial pelo
Brasil é representada como um drama épico através do qual o

43
cronista procura projetar um destino venturoso para a nação e fixar
uma imagem positiva do homem brasileiro (SILVA, 1997). Nesse
sentido, a crônica esportiva de Rodrigues busca ir além das
questões intrínsecas ao futebol – figura também como um meio de
disseminar a tese de que o futebol era um símbolo de uma
identidade nacional, representada também pelo negro e pelo
mestiço (SANTOS, CAPRARO, 2014).
A proposição do “complexo de vira-latas”, idealizada pelo
jornalista em suas crônicas, é outra temática constante nos estudos
aqui selecionados. O futebol teria o potencial de reinventar
tradições e de incitar a renúncia a este complexo, e os fracassos da
seleção seriam decorrentes da posição de inferioridade que corroía
a possibilidade de notabilidade da seleção. Para Rodrigues, em
suma, o “complexo de vira-latas” seria apenas abandonado nos
momentos de sucesso no esporte (SILVA, 2016). Luiz Henrique de
Azevedo Borges (2006) destaca, ademais, em sua Dissertação de
Mestrado Do complexo de vira-latas ao homem genial: o futebol como
elemento constitutivo da identidade brasileira nas crônicas de Nelson
Rodrigues, João Saldanha e Armando Nogueira, a relação que
Rodrigues estabelece entre a desvalorização do jogador brasileiro e
o fracasso do Brasil especificamente no contexto da copa de 1950: o
cronista reitera que esta derrota não estava ligada à miscigenação e
à natureza do homem brasileiro, mas sim ao seu complexo de
inferioridade. Nesse sentido, reitera-se a concepção de que as
relações criadas pelo futebol extrapolam o ambiente esportivo e
passam a avaliar a própria sociedade e suas instituições e de que
refletem os discursos sobre as percepções que o brasileiro tem de si
mesmo. Antunes (2004) ressalta, ainda, o fato de que Rodrigues
considerava o estado de espírito e a falta de auto-estima do
brasileiro pior que os próprios problemas sociais existentes no país.
Aliado ao combate à postura de inferioridade do brasileiro,
Rodrigues também apresenta um sentimento de aversão às práticas
futebolísticas europeias – cuja característica embasava-se na
utilização da força e na valorização da seleção enquanto uma
coletividade – e defende o individualismo presente no futebol

44
brasileiro (BORGES, 2006). José Carlos Marques (2012), em seu livro
O futebol em Nelson Rodrigues: o óbvio ululante, o Sobrenatural de
Almeida e outros temas, aponta uma contradição no pensamento de
Rodrigues acerca da negação da utilização da força no futebol: o
escritor defendia fervorosamente a ditadura militar, que foi
justamente a responsável pela inserção da ideia de tecnocracia no
esporte, uma vez que o regime introduziu, nas comissões esportivas,
profissionais ligados às escolas de educação física militares.
Rodrigues enaltece, então, a presença do craque, afirmando
que os jogadores brasileiros teriam o que falta nos outros: a
fantasia, a molecagem, a malandragem e a paixão (BORGES, 2006).
Para ele, o brasileiro não se parece com ninguém, nem mesmo com
os sul-americanos – ele seria, em suma, uma nova “experiência
humana”, um “homem genial’, dotado de elementos identitários
singulares (MARQUES, 2012; BORGES, 2006). Todas essas
características positivas – a criatividade, a alegria, a esperteza e a
capacidade de improvisação – são atribuídas, no pensamento do
autor, à miscigenação (BORGES, 2006).
Ocorre, desta forma, nas crônicas esportivas do autor, uma
projeção nos acontecimentos futebolísticos de certos dilemas que são
particularmente importantes para o projeto da nação da sociedade
brasileira – questões da identidade nacional, da diferença, da
diversidade étnica e cultural, do colonialismo (SILVA, 1997). O autor
entende que o futebol é elemento de primeira grandeza para o povo
brasileiro, que gera identidade compartilhada por milhões de
pessoas: o ato de torcer significa pertencer (BORGES, 2009). Nesse
sentido, Rodrigues utiliza-se desta dimensão representativa do
futebol como mediação para a construção do sentimento de
pertencimento à grande e vitoriosa comunidade nacional. Através
do escrete, em suma, o Brasil realiza-se plenamente como uma nação
(SILVA, 1997; ANTUNES, 2004).
Outro aspecto muito explorado no que diz respeito aos estudos
do futebol em Nelson Rodrigues é a questão da linguagem e dos
procedimentos retóricos utilizados pelo cronista para operar
determinados deslocamentos em sentidos que já eram associados ao

45
futebol pela opinião pública brasileira (MARQUES, 2012; SILVA,
2016; BORGES, 2006; SILVA, 1997; MARQUES, 2000; VEJMELKA,
2007). Marques (2012) e Borges (2006) argumentam que a escrita
esportiva de Rodrigues estava inserida na estética neobarroca –
conceito que definiria, segundo Marques, as características de uma
cultura miscigenada, sempre pronta a criar novas significações e até
mesmo opor-se às hegemonias dominantes no continente. Além
disso, caracteriza-se como espaço da polifonia, na medida em que o
autor dava voz às classes mais variadas da sociedade (BORGES,
2006). Marques (2012) chama a atenção, nas crônicas futebolísticas
de Rodrigues, para a excessiva utilização de metáforas
potencializadoras de sentido, de quebra da expectativa linear do
leitor e da criação de novas sínteses visuais e sintáticas, por meio de
imagens totalmente inusitadas e hiperbólicas. Este recurso de
utilização da desmesura e da excedência cria um espaço
desestabilizador e constitui-se como importante ferramenta formal
dos formuladores da estética neobarroca (MARQUES, 2012). Para
Silva (2016), ademais, a utilização dessa hiperbolização e dos
adjetivos, bem como o aspecto místico na escrita do autor, são
ferramentas utilizadas no intuito de não deixar dúvidas sobre as suas
verdades acerca do futebol.
A intertextualidade e a obsessão por determinados temas são
outras singularidades presentes nas crônicas de Rodrigues. O autor
utiliza-se de um contínuo processo de autocitação, de recuperação
incessante de suas próprias narrativas. Essas particularidades
aproximam a escrita de Nelson da nova realidade que ele cria para
dar conta do caráter dramático, hiperbólico e vislumbrado no
futebol (MARQUES, 2012). A tentativa de convencer os leitores
através da persuasão é também uma especificidade na produção de
Rodrigues: o escritor utiliza-se de uma aproximação, de um
discurso íntimo baseado na confiança profunda no destinatário, na
simpatia que ele nutre, na sensibilidade e boa vontade de sua
compreensão. Como recurso, chama a atenção do interlocutor,
através de um discurso com grau de intimidade e coloquialidade
(MARQUES, 2012). Assim, a disposição engenhosa dos recursos

46
retóricos – como a hipérbole e a ironia - ao longo do texto fica a
serviço de dois objetivos: convencer e comover o leitor (SILVA,
1997) acerca da potencialidade do Brasil e de seu povo.
A escritura caracterizada pela oralidade nas crônicas do
jornalista também é constantemente discutida nos estudos relativos
à produção esportiva. Segundo Marques (2000), sua obra deveria
ser lida em voz alta – ou representada no palco – para que se
pudesse dar conta de todos os elementos vocais e performáticos da
sua escrita, considerando a valorização dos registros sensoriais,
visuais e táteis do jogo. Borges (2006) afirma que os textos de
Rodrigues encontram-se na fronteira entre a narração radiofônica e
a escrita, considerando que são marcados pelo uso abundante de
adjetivos valorativos – norma corrente entre os locutores esportivos
de rádio – e pelo processo de repetição.
A vinculação à rubrica “crônica” foi fator essencial para que
Nelson desenvolvesse sua extravagante e rica interpretação do
futebol e dos acontecimentos do mundo esportivo: segundo
Marcelino Rodrigues da Silva (1997), a possibilidade de estabelecer
com os fatos que serviam de referência a seus textos uma relação
ambígua permitiu a Rodrigues a criação de uma concepção
particular do mundo futebolístico, em que as peças se encaixam
segundo uma lógica própria, mais ou menos desligada da realidade
objetiva. Nesses escritos, os acontecimentos do mundo do futebol
aparecem transfigurados, transformados pelo olhar do cronista,
deslocados da moldura objetiva da notícia. Este movimento, no
âmbito da imprensa esportiva, só foi possível porque, sob a rubrica
“crônica”, “o autor se encontra livre da obrigação jornalística de
revelar objetivamente os fatos” (SILVA, 1997, p. 41). Portanto,
através de um tom eminentemente oratório, com o uso dos mais
variados artifícios retóricos, o cronista torna-se um “orador
canastrão”, que retoca, transfigura e dramatiza os jogos, conferindo-
lhes uma dimensão nova e emocionante (SILVA, 1997). Além disso,
segundo Marcel Vejmelka (2007), a totalidade da obra rodrigueana
constitui uma rede complexa de referências internas e interferências

47
entre gêneros literário e jornalístico: esta densa rede intertextual
abrange o teatro, o conto e a crônica (VEJMELKA, 2007).
Por fim, considerando a faceta dramatúrgica de Rodrigues,
alguns estudiosos de suas crônicas futebolísticas dedicaram-se,
também, à relação entre o teatro e sua interpretação do esporte
(SANTOS, CAPRARO, 2014; MANDIL, 2012). Para André Mendes
Capraro e Natasha Santos (2014), Rodrigues obteve fonte de
influência e inspiração no seu próprio teatro dramático. Os autores
analisam a referidas crônicas e o roteiro da peça de teatro “A
falecida”. Destacam que o autor, ressentido pela impossibilidade
de se dedicar efetivamente ao teatro – a polêmica constante nas
suas peças, que foram proibidas, restritas e embargadas, não
tornava possível uma dedicação exclusiva –, acaba transformando
o futebol em drama teatral. Ram Avraham Mandil (2012) enaltece
a visão rodrigueana acerca do teatro ideal, em que o espectador não
deve estar distanciado, mas sim aspirado para dentro da cena e
coparticipante do seu desenrolar – interferindo e sendo afetado por
sua dinâmica. Essa figura está encarnada pelo torcedor de futebol,
como aquele que comparece ao estádio, interfere no jogo e
converte-se em um espetáculo, que se angustia, sofre, explode de
prazer, oscila em seu humor. Nesta relação intrínseca, não parece
haver distância entre o torcedor e o que se passa em campo.

2.4.2. Eduardo Galeano: futebol e denúncia

De modo geral, os estudos acadêmicos sobre a obra de


Eduardo Galeano focam suas análises na perspectiva política, fator
bastante evidente em toda a obra do autor. Relacionamos esta
constatação ao fato de que sua produção acerca do futebol é breve
se compararmos com a totalidade de sua obra: a temática obteve
uma breve consideração por parte do autor, resultando em apenas
um livro publicado. Concluímos, portanto, que a escassez de
trabalhos sobre seus escritos futebolísticos seja também
consequência disso.

48
A obra completa de Galeano é marcada pela denúncia das
desigualdades mundiais decorrentes do sistema capitalista. Mesmo
o seu livro El fútbol a sol y sombra – cujo tema principal é o esporte –
não deixa de ser uma obra de denúncia. Os poucos estudos que
encontramos acerca do futebol na obra de Galeano evidenciam essa
questão. Andrei Adornes Monteiro (2018) destaca que esta produção
acerca do futebol reflete sua visão de mundo e da sociedade,
marcada pela bipolaridade global do contexto da guerra fria. Em
seus escritos, Galeano utiliza-se do futebol para abordar, também,
grandes acontecimentos, como as ditaduras da América Latina, as
guerras mundiais, a ascensão do fascismo na Europa, entre outros.
O futebol, então, é colocado como indissociável da sociedade.
A questão da dignidade da América Latina e de sua
dependência diante da Europa são temas também constantemente
explorados em Galeano. Percebemos, a propósito, que os
estudiosos constantemente sublinham a influência da teoria da
dependência em sua obra. Nos textos sobre o futebol, esta temática
da América Latina aparece através de uma tentativa de auto-
afirmação, configurando-se um imaginário de que as seleções desta
região seriam as melhores – no Brasil, por exemplo, teria surgido o
futebol mais bonito do mundo, influenciado pela ginga e pela
capoeira (MONTEIRO, 2018).
Outra questão ressaltada por Monteiro (2018) e que importa
no nosso estudo é o fato de que, devido ao posicionamento político
esquerdista de Galeano, não se imaginava que ele acompanhasse
futebol. O estudioso destaca, aqui, a influência de Albert Camus,
cujo pensamento assinalava que o referido esporte é capaz de
preparar para a vida e para o convívio em sociedade. A partir do
futebol, Galeano posiciona-se sobre os eventos históricos
levantados ao longo do livro, enaltecendo as vitórias de
guerrilheiros e de governos de esquerda e as revoluções
anticoloniais. O fato de Galeano ter vivido todo o período Guerra
Fria é, assim, primordial para compreender seu posicionamento –
os acontecimentos históricos intencionalmente acentuados pelo
autor são consequência desta vivência e em sua produção estão

49
evidentes que os movimentos políticos que mais lhe são caros
advém dos países subdesenvolvidos (MONTEIRO, 2018).
Assim como Monteiro, Hugo Lovisolo (2001) - no artigo
intitulado Saudoso futebol, futebol querido: a ideologia da denúncia – e
Breno Pauxis Muinhos (2014) - no artigo A barbárie em campo –,
destacam o caráter de denúncia assumido por Galeano em seus
escritos sobre o futebol. Lovisolo (2001) destaca que a referida
produção opera em dois planos: a narração das situações sobre o
futebol e o conjunto de teorizações na interpretação do esporte.
Juntos, esses argumentos pretendem criar um efeito de denúncia
ideológica: no título de sua obra – El fútbol a sol y sombra – o sol
representa os aspectos positivos do futebol e a sombra simboliza
sua deterioração. Lovisolo ressalta, aqui, que Galeano apresenta o
Futebol como um esporte maravilhoso em sua essência, que sofre
uma decadência com a sua profissionalização e com a sua
vinculação ao dinheiro. Assim, o título do livro sugere que será
narrado o que se vê e o que não se vê, sendo o oculto o que será
iluminado ou denunciado na obra. (LOVISOLO, 2001). Lovisolo
contrapõe-se ao discurso de Galeano, alegando que sua produção
é baseada em um saudosismo, no qual as coisas são puras e plenas
quando nascem e se degeneram no decorrer do tempo. O estudioso,
assim, critica este desencanto com o tempo presente e a ideia de que
o futebol antigamente era mais puro e simples – ideal tão manifesto
na produção de Galeano.
Muinhos (2014), por sua vez, destaca, nos escritos de Galeano,
a presença da barbárie no futebol. Para isso, seleciona alguns textos
presentes em El fútbol a sol y sombra para ressaltar a metáfora da
guerra e o registro da violência no esporte. Também destaca que as
críticas às mazelas presentes no futebol são tão cruciais quanto a
elevação de feitos promovidos no esporte, evidenciando – assim
como Lovisolo – a ideia do sol e da sombra no futebol: a resistência
dos jogadores advindos das minorias ilustra o simbolismo das
luzes, enquanto a elitização e a manipulação dos resultados dos
esportes ilustram as sombras. Ademais, Muinhos (2014) faz
referência também ao gênero crônica, indicando que sua

50
simplicidade faz com que assuntos construam-se de maneira
familiar, aproximando o escritor do leitor.
Como mencionamos, os estudos acerca do futebol na obra de
Galeano são escassos. Os estudiosos que se propõem a estudar o
autor abordam, sobretudo, a produção cujo principal objeto são as
questões políticas e historiográficas – como o tema das ditaduras,
do exílio, das desigualdades presentes na América Latina
(MAZZIO, 2015; BARBOSA, 2009; MAFRA, 2016; ARAUJO, 2013).
Embora o autor, ao abordar o futebol, chame a atenção para essas
questões, o livro Fútbol a Sol y Sombra pouco foi analisado. Sandro
Aparecido Mazzio (2015) observa, a partir da trilogia Memoria del
Fuego, o processo de constituição de uma identidade latino-
americana, destacando que Galeano se propõe a retirar uma parte
da nossa história do esquecimento, questionando a historiografia
oficial. Resgata, assim, as tradições e costumes aqui existentes antes
dos colonizadores – mitos, lendas, contos populares – destacando
a diversidade étnica e cultural existente antes da chegada dos
colonizadores e a importância da cultura dos povos originários e
dos escravos. Nesse sentido, Galeano esforça-se para desvelar as
diversidades e contradições da região, acentuando uma identidade
latino-americana fragmentada que se recusa à homogeneização e
totalização (MAZZIO, 2015). André Francisco Berenger de Araujo
(2013) sugere que a noção de transculturação - teorizada por
Fernando Ortiz – auxilia na compreensão do trabalho de Galeano,
cujo pensamento indica um processo assimétrico, conflitivo e
complexo de formação da sociedade. Nesse sentido, o conceito de
transculturação expressaria melhor as fases do processo transitivo
de uma cultura a outra, porque este não consiste somente em
adquirir uma cultura diferente, mas indica também
necessariamente a perda ou desenraizamento de uma cultura
precedente, significando a conseguinte criação de novos
fenômenos culturais (ARAUJO, 2013).
Alguns estudos também ressaltam a experiência do exílio na
obra de Galeano: Marcia Horacio Barbosa (2009) analisa a obra Días
y noches de amor y de guerra e destaca a apresentação de um discurso

51
que se contrapõe à história oficial, enfatizando a voz das minorias
e ressignificando a historiografia acerca das ditaduras militares
presentes em vários países latino-americanos das décadas de 60 e
70. Liana Márcia Gonçalves Mafra (2016) aborda o livro Memoria del
Fuego – El siglo del viento – também produzido durante o exílio – e
enfatiza a correlação entre a experiência do autor e a sua narrativa:
com o exílio ocorre, na escrita de Galeano, uma subversão da noção
tradicional de gênero literário; seu estilo passa, então, a ser
marcado pela intertextualidade, com textos curtos e autônomos, em
forma de vinheta, organizados de forma aleatória. Esta escrita não
pertenceria a nenhum gênero fixo, constituindo-se uma escrita
“sem aduana” (MAFRA, 2016). A estudiosa ressalta, também, a
dificuldade de classificação dessa produção, que não se encaixa
como testemunho, poesia, ficção ou ensaio. Ocorre, assim, a partir
da experiência do desterro, uma desestabilização das fronteiras
entre os gêneros literários na escrita do autor (ARAUJO, 2013).
Trouxemos esta discussão porque os textos de Galeano acerca do
futebol seguem esta mesma lógica aleatória e apresentam-se em
fragmentos curtos e autônomos.

52
3. REFLEXÕES SOBRE
A LITERATURA E O FUTEBOL

3.1. AS OBRAS E OS GÊNEROS LITERÁRIOS

Nos estudos referentes às produções esportivas de Nelson


Rodrigues e Eduardo Galeano, há um consenso em enquadrar seus
escritos como pertencentes ao gênero crônica – e mais
especificamente “crônica esportiva”. Dedicaremos, no intuito de
conhecer e refletir sobre as obras dos autores, este espaço para a
discussão sobre os gêneros literários das obras aqui estudadas.
A palavra crônica procede do termo grego chronos e implica a
noção de tempo (ARRIGUCCI, 1987; MASSAUD, 1984; SIEBERT,
2014; SIMÕES, 2009). Segundo Simões (2009), o termo
originalmente ordenava feitos históricos em ordem cronológica, e
o primeiro grande cronista teria sido Heródoto. Nesse sentido, a
crônica, a princípio, teve como propósito registrar os
acontecimentos em um intervalo de tempo, servindo de memória
do passado (SIEBERT, 2014). O gênero pode ser visto, portanto,
como um precursor da historiografia moderna (ARRIGUCCI,
1987), que se limitava a registrar os eventos sem tentar interpretá-
los ou compreender suas causas (MASSAUD, 1984).
O vocábulo crônica foi também utilizado na Idade Média
como designação de um documento que registrava, a partir de uma
narração objetiva, a vida e o reinado de um monarca, bem como
seus sucessos político-militares (LOPES, 2010). No período das
circunavegações fez-se uso do gênero para documentar os
acontecimentos durante as viagens e os descobrimentos das terras
do novo mundo, registrando as conquistas além- mar (SIEBERT,
2014). Nessa acepção, a crônica seguiu sendo utilizada como um
relato cronológico dos fatos, sendo denominada como “crônica
histórica” - um relato circunstanciado sobre feitos, cenários e

53
personagens escrito pelo narrador a partir de sua vivência ou das
informações dos protagonistas e das testemunhas (SIEBERT, 2014).
Segundo Jorge de Sá (1985), no livro A Crônica, Pero Vaz de
Caminha foi um importante cronista, que se propôs a registrar o
circunstancial no contexto do contato do europeu com os indígenas
e seus costumes. O autor chega a afirmar que a literatura brasileira
“nasceu, pois, de uma circunstância. Nasceu da crônica”. (SÁ, 1985,
p. 7). Esta constatação deve ser problematizada, já que causa a
impressão de que o Brasil surge com a colonização, como se não
houvesse nada aqui anteriormente e como se a literatura fosse
exclusivamente composta por textos escritos – visão atualmente já
superada nos estudos acadêmicos.
Em contraposição ao pensamento de Sá, Simões (2009), no artigo
A evolução da crônica como gênero nacional, argumenta que a afirmação
de que a crônica vem de um tempo distante – que remonta ao século
XVI – parece exagerada: para o autor, a carta de Caminha possui
pouca relação com o modelo brasileiro de crônica estabelecido na
década de 1930. Segundo Simões, o gênero no Brasil constitui-se em
simbiose com a imprensa nacional (SIMÕES, 2009).
Esta relação da crônica brasileira contemporânea com a
imprensa originou-se com o feuilleton – folhetim, em português –,
modalidade literária que surgiu nos jornais franceses no século XIX
(SIMÕES, 2009; SCHEIBE, 2013; LOPES, 2010; CANDIDO,1993;
ARRIGUCCI, 1987). O folhetim era um espaço no rodapé do jornal,
que serviu de contraponto às notícias graves que dominavam os
periódicos e que paulatinamente popularizou-se, ganhando
tamanho e prestígio nos jornais. Nele, eram cabíveis capítulos de
romances, anedotas, comentários, poemas e crônicas (SIMÕES,
2009), que tinham como objetivo entreter e distrair os leitores
(COSTA, NETO, SOARES, 2007; ARAÚJO, BARBOSA, 2013).
Segundo Roberta Scheibe (2013), no artigo A Recriação do Real: As
Origens do Gênero Crônica no Brasil, os jornalistas vagavam pela
cidade, observavam o cotidiano e o estampavam no jornal no dia
seguinte. Assim, na medida em que os jornais tornam-se diários, a
relação entre jornalismo e literatura aproxima-se ainda mais e as

54
crônicas passam a ter estreita relação com a efemeridade do
cotidiano. No Brasil, a leitura diária do jornal incorpora-se aos
costumes da elite com a fundação, em 1808, da Gazeta do Rio de
Janeiro. Posteriormente, a partir de 1850, ocorre um aumento
considerável do espaço destinado à crônica (SCHEIBE, 2013), de
modo que a modalidade vai se consolidando no país. O gênero,
portanto, “emana da história, da literatura e do jornalismo”
(SCHEIBE, 2013, p. 3), trazendo qualidade ao jornal (LOPES, 2010).
Acerca desta relação entre o jornalismo e a crônica, Paula Cristina
Lopes (2010), em artigo intitulado A crônica (nos jornais): O que foi?
O que é? afirma que, diferentemente da eternidade da crônica
publicada em Quatrocentos, a efemeridade da crônica dos jornais
caracteriza-se como um gênero misto, literário-jornalístico. Assim,
“sua história enquanto género confunde-se, naturalmente, com a
própria história do jornalismo”. (LOPES, 2010, p. 3)
Moisés Massaud, no livro A Criação Literária, argumenta que
no século XIX a crônica libertou-se de sua conotação historicista,
passando a ter característica estritamente literária e beneficiando-
se da sua ampla difusão na imprensa (MASSAUD, 1984). Há um
consenso, assim, entre os estudiosos, de que a crônica que se
apresenta no século XIX relaciona-se com os jornais e difere muito
das acepções anteriores do vocábulo. De acordo com Arrigucci, a
crônica atual, para ser compreendida adequadamente,

deve ser pensada, sem dúvida, em relação com a imprensa, a que esteve
sempre vinculada sua produção. Mas seria injusto reduzi-la a um apêndice
do jornal, pelo menos no Brasil, onde dependeu na origem da influência
europeia, alcançando logo, porém, um desenvolvimento próprio
extremamente significativo. Teve aqui de fato um florescimento
surpreendente como forma peculiar, com dimensão estética e relativa
autonomia, a ponto de constituir um gênero propriamente literário.
(ARRIGUCCI, 1987, p. 52, 53)

Além da relação com o jornal, Scheibe defende que a crônica


moderna deve ser pensada, no Brasil, em relação à mudança
cultural proveniente do processo de urbanização e industrialização

55
das cidades do início do século XX. O movimento modernista
também é significativo para a compreensão da ascensão da crônica
brasileira, considerando que os intelectuais ligados ao grupo
estimularam o ideal de brasilidade, impulsionaram a produção da
literatura local e defenderam a simplificação dos textos. Passaram,
então, a escrever em uma linguagem coloquial, deixando de lado o
estilo formal e aproximando a linguagem dos textos à vida real dos
brasileiros (SCHEIBE, 2013, p. 6). O movimento modernista trouxe,
assim, uma aproximação entre a literatura e a comunicação
corrente da vida do brasileiro, aproximando a língua falada e a
língua escrita. Essa ênfase na oralidade traz consigo a “importância
de se inserir no texto escrito as locuções e os vocábulos presentes
na cultura popular” (HOLLANDA, 2003, p. 77).
Nesse sentido, Hollanda (2003) afirma que a crônica passa a
ser uma preciosa fonte no processo de afirmação da língua nacional
e das expressões populares brasileiras. Nela, os modernistas
vislumbraram um meio de combater a tradição de intelectuais
acadêmicos e catedráticos que consideravam hegemônicas
expressões rebuscadas. Deste modo, o movimento modernista
influencia a crônica brasileira, que ocasiona a possibilidade do
escritor utilizar-se da simplicidade, da liberdade de
experimentação, do tom coloquial e da linguagem fluida
(HOLLANDA, 2003). Essa mudança concretizada pela crônica é,
segundo Antonio Candido – em artigo intitulado A vida ao rés-do-
chão –, um milagre de simplificação e naturalidade, sobretudo num
país como o Brasil, onde se costumava identificar superioridade
intelectual e literária com grandiloquência e requinte gramatical
(CANDIDO, 1993).
Candido, mesmo compreendendo a característica daquilo que
se considera literatura no Brasil – relacionada com o requinte da
escrita – afirma que a crônica não é um “gênero maior”, alegando
que não se imagina uma literatura feita de grandes cronistas. A
constatação da crônica como gênero menor é, segundo Candido,
positiva, porque isso faz com que ela fique perto de nós; e que,
humanizando através da sua despretensão, ajusta-se à

56
sensibilidade cotidiana (CANDIDO, 1993). O autor enfatiza sua
efemeridade e sua aproximação com a realidade, afirmando que a
crônica, ao invés de “oferecer um cenário excelso, numa revoada
de adjetivos e períodos candentes, pega o miúdo e mostra nele uma
grandeza, uma beleza ou uma singularidade insuspeitadas”.
(CANDIDO, 2003, p.1)
Nesse sentido, há uma unanimidade, por parte dos estudiosos
do gênero, em atribuir à crônica uma relação com o efêmero. O
cronista aparece como um contador de uma história menor, aquém
dos grandes acontecimentos, como um comentarista dos
acontecimentos do cotidiano da cidade moderna, que escreve sobre
as pequenas coisas em tom de bate-papo entre amigos
(ARRIGUCCI, 1987, p. 55). Para não se afundar no efêmero,
Arriguci (1987) enfatiza a importância da qualidade da escrita e do
estilo da crônica como uma busca de uma saída literária, tornando
possível que palavras banais alcem voo (ARRIGUCCI, 1987). Esta
caracterização da crônica em relação ao cotidiano e à banalidade foi
reconhecida por Machado de Assis, ainda no final do século XIX.
No texto O nascimento da crônica, publicado originalmente em 1877,
o autor se propõe a falar das características do gênero, afirmando:

Há um meio certo de começar a crônica por uma trivialidade. É dizer: Que calor!
que desenfreado calor! Diz-se isto, agitando as pontas do lenço, bufando como
um touro, ou simplesmente sacudindo a sobrecasaca. Resvala-se do calor aos
fenômenos atmosféricos, fazem-se algumas conjeturas acerca do sol e da lua,
outras sobre febre amarela, manda-se um suspiro a Petrópolis, e la glace est
rompue; está começando a crônica. (ASSIS, 1994, p. 13)

Esta relação entre a crônica e o cotidiano é apontada também


por Adriana Callegaro e María Cristina Lago, no artigo La crónica
latinoamericana: cruce entre literatura, periodismo y análisis social.
Neste estudo, as autoras apontam que a crônica vem sendo, na
América Latina, um gênero que retrata a vida cotidiana das pessoas
comuns e por setores marginalizados:

Desde hace algunos años, la situación social latinoamericana es retratada con


otro registro que se aleja del estrictamente informativo característico de la

57
práctica periodística de las redacciones. La vida cotidiana de la gente común,
y de los sectores marginados, así como la puesta en escena de prácticas de
supervivencia y lucha de dichos sectores suelen ser los temas abordados por
jóvenes cronistas para contar historias que conmueven, asombran e
indignan, en un diálogo permanente con la literatura y el análisis
sociocultural. (CALLEGARO, LAGO, 2012, p. 47)

Nesse sentido, tanto no Brasil, como na América Latina de


uma maneira geral, a crônica aparece em relação ao jornal, mas está
distante de ser estritamente informativa, e utiliza-se dos eventos
banais do cotidiano para fundamentar sua concretização. Massaud
argumenta, deste modo, que a crônica oscila entre a reportagem e
a literatura; entre o relato impessoal de uma trivialidade e a
recriação por meio da fantasia (MASSAUD, 1984). O autor defende,
então, que a crônica é de uma ambiguidade irredutível, sendo a
pretensão do cronista não se caracterizar como um repórter
informativo, mas sim “o poeta ou o ficcionista do cotidiano”, que
desentranha “do acontecimento sua porção imanente de fantasia”
(MASSAUD, 1984, p. 247)
A efemeridade da crônica, de que tanto falamos aqui, possui
estreita relação com o fato do gênero ser vinculado à imprensa: o
jornal “nasce, envelhece e morre a cada 24 horas” (SÁ, 1985, p. 10)
e, nesse contexto, a crônica também assume uma transitoriedade.
O cronista acaba, considerando essa característica, sofrendo as
pressões comuns ao ambiente jornalístico: dispõe de pouco tempo
para datilografar seu texto (SÁ, 1985) e é obrigado a respeitar um
tamanho de texto previamente determinado ou restrito (SIMÕES,
2009). Esta ligação com o jornal, nesse sentido, possui uma
consequência ambígua: ao mesmo tempo que restringe o gênero,
pode também agir positivamente, demarcando um estilo e
caracterizando-o com um ritmo de texto ágil (SIMÕES, 2009).
Giovana Chiquim, em artigo intitulado A impressão do cotidiano: um
estudo das ambiguidades da crônica e a transgressão de seu caráter
efêmero, aponta para a característica desgastante do gênero,
decorrente do fato de os cronistas produzirem literatura sob
pressão, necessitando, diariamente e obrigatoriamente, ter

58
inspiração constante para falar sobre algo. Assim, segundo a
autora, “nesse ofício de opinar sobre tudo e sobre todos, o cronista
passa a ser um observador escondido na redação do jornal, um
escravo do teclado e do tempo”. (CHIQUIM, 2013, p. 33)
Deste modo, Arrigucci (1987) pertinentemente destaca o fato
de que a crônica relaciona-se diretamente à modernidade, cuja
característica imediatista e veloz é evidente. Scheibe enfatiza,
seguindo a mesma linha de raciocínio, que o gênero acaba
duelando contra o tempo e seu público constitui-se de leitores
também apressados. Com isso, o cronista vê-se, também, obrigado
a diversificar conteúdos - voltados à informação e ao
entretenimento – com vistas a tornar seus textos mais atraentes e
dinâmicos (SCHEIBE, 2013). A crônica é, portanto, um fato
moderno, que se submete aos “choques da novidade, ao consumo
imediato, às inquietações de um desejo sempre insatisfeito, à
rápida transformação e à fugacidade da vida moderna”
(ARRIGUCCI, 1987, p. 53)
Cumpre-nos, para completar a seção proposta, e considerando
a especificidade dos textos abordados nesta pesquisa, dedicar um
espaço para a reflexão acerca da crônica esportiva. Segundo
Hollanda (2003), esta modalidade de crônica começa a se destacar
nas primeiras décadas do século XX, na medida em que os clubes
futebolísticos começam a crescer e o futebol passa a se popularizar.
O autor afirma:

é possível perceber nesse período a vigência entre os literatos de uma crônica


sobre os esportes, mas não de uma crônica dos esportes. Além disso, no
ambiente diário do jornalismo, o futebol também não possuía grande espaço.
De uma forma esquemática, pode-se dizer que até 1910 apenas algumas
linhas eram concedidas ao futebol nas edições dos jornais de domingo e de
segunda-feira. Já após 1910, o futebol transformava-se paulatinamente em
assunto jornalístico, sendo que em 1917 é criada a Associação de Cronistas
Esportivos no Rio de Janeiro. Contudo, o cronista esportivo constituía ainda
uma espécie de curinga do jornalismo, desempenhando as mais variadas
funções de reportagem, o que atestava a ausência de autonomia e de
especialização dada à sua atividade. (HOLLANDA, 2003)

59
Nesse sentido, o esporte passa a ocupar, paulatinamente, no
início do século XX, as páginas dos principais diários brasileiros
(MARQUES, 2010). Nas décadas de 40 e 50, o gênero se fixa como um
detentor de formato próprio (HOLLANDA, 2003), passando a ter
maior autonomia. O crescimento da modalidade relaciona-se
diretamente com o aumento dos interessados no esporte, na medida
em que o futebol caía no gosto popular e passava a movimentar a
população (COSTA, NETO, SOARES, 2007). Nessa conjuntura, a
crônica esportiva começa a se modernizar, através da retirada dos
termos em inglês e da aproximação com as expressões correntes
faladas nos estádios. Acerca deste processo, Hollanda pontua:

A modernização da crônica esportiva caracterizava-se pela implantação de


uma nova linguagem e de uma nova narrativa, assim como pelo
estabelecimento de uma nova relação entre o cronista e o leitor. Esta relação
se prolongava muitas vezes por meio de um contato direto nas ruas, nos
bares e nos estádios ou por meio de cartas, telegramas e até telefonemas, o
que influenciava e trazia repercussões imediatas para os temas da crônica.
(HOLLANDA, 2003, p. 91)

O futebol traz, nesse sentido, uma nova forma de escrita e


novos conceitos para a crônica brasileira, massificando o gênero na
sociedade e incentivando a profissionalização dos escritores de
jornalismo esportivo (COSTA, NETO, SOARES, 2007). José Carlos
Marques, em artigo intitulado A função autor e a crônica esportiva no
Brasil: representações da Copa do Mundo em alguns jornais paulistas e
cariocas , destaca o crescimento das seções esportivas nos periódicos
brasileiros, que fez com que esta seção obtivesse o maior patrocínio
dentro do jornal. O autor acrescenta que a mídia impressa passa a
reinventar seu trabalho diante dos investimentos nas transmissões
televisivas dos jogos, considerando o poderio da imagem de TV
(MARQUES, 2010).
Com a popularização da crônica esportiva, e levando em conta
que o esporte suscitava paixões, ocorreu um nivelamento do
cronista com os demais participantes do meio esportivo – como
técnicos, jogadores, torcedores, juízes, dirigentes e jornalistas.

60
Nesse contexto, a crônica esportiva passa a ser espaço tanto de
construção das identidades nacionais quanto das clubísticas
(COSTA, NETO, SOARES, 2007). Hollanda (2003), ao debater a
função do cronista esportivo, afirma que este passou a ter função
de legislador, caracterizando-se como um crítico que deveria se
mostrar apto a “a discernir o que é justo do que é injusto, o probo
do ímprobo, o lícito do ilícito” (HOLLANDA, 2003, p. 102)
Nesse sentido, a crônica esportiva possui um embasamento
nos fatos reais e compromete-se com os acontecimentos esportivos.
Se a singularidade da crônica transita entre o ficcional e o não
ficcional, a modalidade crônica esportiva pende, nesse sentido,
para o lado jornalístico, mas com um adicional de liberdade de
transformação da notícia (COSTA, NETO, SOARES, 2007). Sobre
essa discussão, Hollanda argumenta:

No jornalismo esportivo brasileiro, os cronistas, esses “pensadores do


cotidiano e da vida imediata” vêm sendo os principais responsáveis por
manter o futebol ao nível de leitores e torcedores, à medida que o ajustam à
sensibilidade do cotidiano por meio de uma linguagem própria do dia-a-dia.
Mas, ao mesmo tempo, são os responsáveis por enriquecer o discurso da
imprensa por meio de relatos em que se destaca o trabalho de construção
literária e que superam as ortodoxias ditadas pelo próprio texto jornalístico.
E, na criação dessas palavras sobre o jogo, os cronistas fazem prevalecer o
divertido jogo com as palavras, o que reproduz nas páginas dos jornais, de
quatro em quatro anos, a festa e a magia que a seleção brasileira cumpre ao
longo das Copas. (MARQUES, 2010, p. 49)

A ascensão da crônica esportiva ocorre, assim, em


conformidade com a popularização do esporte. Nessa modalidade,
ressaltamos a leitura das crônicas como partícipe das discussões
sobre o esporte. O cronista esportivo – que acaba atuando também
como um comentarista esportivo – passa a ter um importante papel
nos bastidores dos jogos, nos momentos prévios e posteriores às
partidas, tornando-se um importante ator na esfera desportiva.
Aqui, muitas vezes surge um personagem caricato, com
personalidade própria, que se torna famoso pela qualidade de sua
escrita e de seu estilo.

61
É o caso de Nelson Rodrigues. Suas crônicas – sejam elas
esportivas ou não – seguem um padrão de escrita e estilo. O autor
acaba criando uma relação com seu leitor, com quem conversa
francamente em forma de diálogo, através de linguagem simples,
espontânea e bastante característica – plena de ideias fixas,
coloquialismos, expressões populares, gírias, ditados, ironias e
hipérboles. Através dessas características, Rodrigues acaba
estabelecendo uma amigável relação de proximidade com seu leitor.
Não há dúvidas, portanto, de que as produções esportivas de
Rodrigues que estamos abordando nesta pesquisa enquadrem-se
no protótipo de crônica brasileira. Esses textos são veiculados na
imprensa, com uma frequência determinada, abordam as situações
futebolísticas que aconteciam na conjuntura e possuem um
consumo imediato. Embora sua crônica seja jornalística, possui
uma característica crítica, liberta da objetividade que
historicamente foi imposta ao jornalismo. Tanto é que o autor
recorrentemente critica a objetividade do jornal, problematizando
os profissionais que seriam, em sua visão, “idiotas da
objetividade”. Em crônica escrita no contexto da Copa do Mundo
de 1962, na qual o Brasil sagrou-se campeão, Rodrigues comenta a
vitória brasileira na semifinal contra a seleção anfitriã – o Chile –,
mencionando sua crítica ao excesso de objetividade na imprensa:

O sujeito que, após os 4 x 2, não chorou lágrimas de esguicho é um mau-


caráter. Mas eu dizia que foi uma vitória perfeita e irretocável. Os idiotas da
objetividade querem colocar a partida em seus termos táticos e técnicos. O
futebol, porém, foi um detalhe miserável, um frívolo pretexto. Pior era o que
estava por trás. Amigos, o futebol do Chile não ameaçaria, normalmente,
nem o Rosita Sofia. (RODRIGUES, 2013, p. 39)

Se compararmos com os escritos de Rodrigues com os de


Galeano, percebemos várias diferenças. Primeiramente, o livro El
fútbol a sol y sombra, que o autor uruguaio produziu abordando a
temática do futebol, não é uma coletânea de escritos sobre o esporte
destinada originariamente para publicação na imprensa – como é o
caso dos livros sobre futebol de Rodrigues. Galeano escreveu esses

62
textos visando à construção do livro, o que implica a inexistência
de uma relação com a imprensa. Isso quer dizer que não há uma
constância determinada das produções do autor, nem a pressão do
ambiente jornalístico, que caracterizam as crônicas publicadas no
jornal. Ademais, o autor não escreve todos os seus textos
contemporaneamente aos acontecimentos. Em seu livro, há textos
que falam do esporte desde seu surgimento, no séc. XIX, e
episódios que envolvem campeonatos e copas no século XX. Assim,
Galeano acaba realizando uma abordagem histórica do futebol, não
se isentando de opinar sobre as situações trazidas. Constantemente
realiza uma explanação sobre os acontecimentos históricos da
conjuntura que retrata – como guerras, desastres ambientais,
instauração de ditaduras, ações de grandes líderes, entre outros.
Embora estejam presentes textos que abordem situações efêmeras
do futebol, o autor também aproxima-se de eventos da
historiografia mundial oficial – retrata, deste modo, não apenas
situações pontuais e pequenas acerca do esporte, como também
situações importantes abordadas por historiadores. Quanto à
linguagem, sua obra caracteriza-se pela escrita simples e fluida,
marcada pela oralidade e coloquialidade.
Deste modo, e considerando toda a reflexão acerca da crônica
que realizamos, ponderamos que os escritos de Galeano sobre
futebol, embora aproximem-se do modelo brasileiro de crônica,
não podem ser considerados precisamente como pertencentes a
este gênero. Destacamos, primeiramente, que Galeano não escreve
na própria circunstância dos acontecimentos – como o faz
Rodrigues. Além dos argumentos elencados, é importante
mencionar que existem estudos que afirmam a particularidade da
crônica brasileira, que difere da concepção da crônica no resto do
mundo: considera-se que a crônica, no Brasil, teve um
florescimento peculiar, desenvolvendo uma autonomia
(ARRICUGGI, 1987). É pertinente, esse sentido, considerar esta
discussão ao estudar Rodrigues e Galeano. Cumpre mencionar, a
propósito, que o próprio autor uruguaio recorrentemente abordou
a temática da classificação dos gêneros, mencionando, em várias

63
ocasiões, que suas produções não pertencem a gêneros literários.
No terceiro volume do livro Memoria del Fuego, o autor expõe seu
pensamento sobre essa discussão:

Este libro es el volumen final de la trilogía Memoria del Fuego. No se trata


de una antología, sino de una creación literaria, que se apoya en bases
documentales pero se mueve con entera libertad. El autor ignora a qué
género pertenece esta obra: narrativa, ensayo, poesía épica, crónica,
testimonio... Quizás pertenece a todos y a ninguno. (GALEANO, 1990, p. 14)

Em reportagem acerca do livro El fútbol a sol y sombra,


publicado no contexto do seu lançamento, em 1995, no jornal El
País, a obra é retratada como desprovida de gênero fixo, e esta
singularidade do autor também é mencionada:

Magnífico futbolista en sueños - “sólo jugaba bien cuando dormía” - Galeano


ha escrito e ilustrado una obra sin género pero llena de géneros. Memorias,
ensayo político, historia, relato breve, suspense …: “En eso, el libro se parece
mucho a otros míos, como Memoria del fuego o El libro de Ios abrazos, en los
que también violaba las fronteras de los géneros. Todo lo que se cuenta aquí
ha sucedido, pero está contado con la intención de dar vida a la historia
quieta. La pena es que hay cosas que no entraron”. (MORA, 1995, n.p)

Concluímos, nesse sentido, a partir de nossa discussão acerca


do gênero crônica e das reflexões do próprio autor, que a obra El
Fútbol a Sol y Sombra se insere em um gênero híbrido, que não é
classificável nas tradicionais categorias existentes no campo da
literatura. Regina L. Péret Dell’Isola, em artigo intitulado Gêneros
Híbridos: Contornos Difusos, afirma que este tipo de texto transgride
“convenções estabelecidas e caracteriza- se por uma estrutura em
que há ruptura do convencional, do previsível, a qual parece se
manifestar no texto sob a forma de uma incongruência (…)”
(DELL’ISOLA, 2006, p. 76, 77). Consideramos, portanto, que os
textos de Galeano enquadram-se em um protótipo híbrido de texto.
Para finalizar, cumpre esclarecer que esta discussão, mais que
discutir sobre a categorização dos gêneros nas obras estudadas, foi
realizada sobretudo no intuito de pensar e conhecer melhor os
autores aqui analisados. É inevitável relacionar o modelo dos textos

64
esportivos dos autores à vivência que ambos tiveram nos jornais
desde cedo. Pensando as características das obras, compreendemos
melhor não apenas as produções esportivas dos autores, mas
também suas obras e atuações profissionais. Destacamos, portanto,
que as obras aqui estudadas possuem grande relação com o
formato de texto proporcionado pela ascensão da imprensa, da
urbanização e da industrialização – tanto pela característica dos
textos curtos e velozes, que se utilizam da transitoriedade de
partidas de futebol, como também pela sua linguagem simples
marcada pela oralidade.

3.2. ESTUDOS SOBRE O FUTEBOL: UMA REVISÃO

O futebol foi introduzido no Brasil e na região do Rio da Prata


no final do século XIX, trazido por imigrantes ingleses que se
deslocaram para aqui residir e por jovens da elite educados na
Europa (FRANZINI, 2000; MANEIRO, 2015; DAMATTA, 2006).
Inicialmente, a atividade foi exclusivamente praticada pela
aristocracia – nas palavras de Roberto DaMatta, por “jovens
brancos estrangeirados” (DAMATTA, 2006, l. 1338). Marcos
Guterman, no livro intitulado O Futebol explica o Brasil: uma história
da maior expressão popular do país, afirma que o futebol:

aparece primeiro como atividade da elite, importado e jogado por


estrangeiros aristocráticos ou ligados aos investidores europeus que
exploraram as oportunidades abertas pelo desenvolvimento do país no final
do século XIX. Negros e operários só teriam vez ou nos campos de várzea
ou quando passaram a ser decisivos para que os times de brancos ricos
ganhassem títulos (GUTERMAN, 2010, l. 40).

Os nomes dos primeiros clubes e suas composições ilustram


essa característica elitista e estrangeira do início da prática do
futebol no Brasil. De acordo com Mário Rodrigues Filho – irmão de
Nelson Rodrigues –, em seu clássico livro O Negro no Futebol
Brasileiro, publicado originalmente em 1947, os primeiros clubes
surgidos no Brasil possuíam palavras inglesas em seus nomes –

65
como o The Bangu Athletic Club, o Paissandu Cricket Club e o Rio
Cricket e o Athletic Association (FILHO, 2010, p. 29). Os fundadores
do The Bangu, por exemplo, foram 7 ingleses, 1 italiano e 1 brasileiro
– o brasileiro era branco, enfatiza o autor (FILHO, 2010, p. 29).
Nesse sentido, os clubes das grandes cidades eram compostos
pela elite, formada em sua maioria por estudantes de direito e
medicina, cuja mentalidade se caracterizava pelo positivismo e
eurocentrismo da ciência (HOLLANDA, 2012, p. 13).
Paulatinamente, contrariando o interesse da aristocracia, o esporte
passa a se popularizar:

Os muros erguidos em torno do futebol não resistiram à formação das


metrópoles brasileiras. Foram demolidos pela massa de trabalhadores que
encontrou nesse esporte a essência democrática que lhe era negada em todas
as outras áreas. A profissionalização do futebol foi uma consequência óbvia
disso – as competições começaram a atrair grande público, e os melhores
jogadores passaram a ser disputados e remunerados por clubes cada vez
mais interessados em competir para vencer. (GUTERMAN, 2010, l. 40)

Essa popularização do futebol deu-se através do


desenvolvimento de clubes corporativos de trabalhadores. No eixo
Buenos Aires – Montevidéu, a popularização foi anterior à
experiência brasileira: por exemplo, o Peñarol de Montevidéu – um
dos mais famosos clubes sul-americanos – emerge em 1890, como
agremiação de trabalhadores da companhia ferroviária uruguaia
(MASCARENHAS, 2015, l. 1594). Como nos casos uruguaio e
argentino, os trabalhadores brasileiros também passam a criar seus
próprios clubes. A respeito dessa propagação do futebol no Brasil,
Mario Filho exemplifica com o caso do Bangu, que passa a permitir
cada vez mais a presença dos operários, colocando-os “em pé de
igualdade com os mestres ingleses” (FILHO, 2010, p. 43). De acordo
com Anatol Rosenfeld, no artigo O Futebol no Brasil, publicado
originalmente na revista Argumento em 1974, a fundação do The
Bangu Athletic Club, no ano de 1904, possui um importante
significado: Bangu é a sede de uma grande fábrica de tecidos
situada na região suburbana do Rio de Janeiro. O clube foi fundado

66
por uma maioria de ingleses, com o consentimento da direção da
fábrica, que disponibilizou também um campo próximo da região.
A distância do subúrbio, contudo, impossibilitou que os ingleses
constituíssem equipes fechadas apenas com compatriotas da
cidade, obrigando-os a recorrer aos operários da fábrica
(ROSENFELD, 2007, p. 82).
De acordo com Guterman (2010), a transição do futebol, no
contexto brasileiro, de esporte de elite para esporte de massa,
ocorre concretamente na década de 1920. Koch (2012) afirma, assim
como Guterman, que um dos grandes momentos do futebol
brasileiro deu-se na década de 20, com a popularização do esporte
e consequente entrada dos negros na modalidade: segundo o autor,
a exclusividade da prática à elite brasileira não se sustentava frente
à necessidade de vitórias nos desafios esportivos, fator que
demandou a participação de membros de outros grupos sociais, no
intuito de favorecer as equipes nas partidas e torneios. O futebol,
portanto, proporcionou a visibilidade de um grupo de indivíduos
até então invisível (KOCH, 2012). Rosenfeld (2007), acerca da
abertura do futebol ao negro, afirma:

Muitos homens de cor, de antemão desencorajados pela dificuldade da


ascensão, tornados interiormente incapazes de enfrentar as exigências a
vida, viram sua hora chegar. Daí a seriedade com que jogavam, com que
punham tudo no jogo: este tornou-se, como a embriaguez do álcool e da
dança, um caminho de fuga, certamente um caminho que parecia ir pra
cima. Apenas poucas décadas antes havia sido abolido o sistema de
escravidão. Ainda aderia uma mancha a qualquer trabalho manual. Dar
pontapés numa bola era um ato de emancipação. De repente o próprio jogo
tornou-se para eles um trabalho, e pôde igualmente relacionar-se com a
emancipação dos escravos. (ROSENFELD, 2007, p. 85)

Deste modo, a popularização do futebol trouxe a possibilidade


que o esporte fosse praticado por todos. Nesse contexto, ainda que a
aristocracia se opusesse ao processo de democratização, o futebol
começou a ser, além de uma atividade de lazer, utilizado também
como instrumento de harmonização social. De acordo com Guterman:

67
Nesse aspecto, a popularização do futebol, embora rejeitada pelos seus
praticantes aristocráticos, pode ter sido vista na época como apaziguador
social, em meio aos primeiros movimentos de organização operária. Os
ingleses sabiam bem o que isso significava – afinal, como já vimos, o futebol
servira exatamente para essa finalidade em meados do século XIX na
Inglaterra. No Rio, a capoeira, tornada definitivamente marginal depois dos
conflitos com a Revolta da Vacina (1904), deu lugar ao futebol entre os
pobres, ainda que seus times tivessem de jogar na Liga Suburbana de
Futebol, criada em 1907, e não na liga oficial da cidade, cujo estatuto vetava
atletas amadores “de cor”. Em São Paulo, os times de operários se
agruparam primeiramente na Várzea do Carmo, que havia sido o mesmo
berço do futebol da elite. O nome “várzea”, por essa razão, acabou servindo
para designar qualquer time e qualquer campo com as características
amadoras, em jogos sempre aos domingos. (GUTERMAN, 2010. l. 385)

A exemplo do que aconteceu na Inglaterra no século XIX,


portanto, o futebol, a partir de sua popularização, passou a ser visto
como um significativo instrumento de controle social: a
disseminação do esporte na sociedade, ao mesmo tempo que
desagradava os aristocratas que desejavam que o esporte se
mantivesse impermeável aos pobres, também representava um
dispositivo de canalização da violência para o campo controlado de
um esporte popular (GUTERMAN, 2010, l. 746). Considerando os
princípios próprios do futebol – como a lisura, a urbanidade, a não-
violência, o acatamento de decisões dos superiores, o bom
relacionamento entre atletas e a ideologia da harmonia e do
equilíbrio na equipe (FLORES, 1982), o esporte passa a ser oportuno
para o controle das massas. A formação de equipes corporativas é
caracterizada com o engajamento dos operários em representar
suas empresas, disputando contra operários de outras fábricas, o
que acarreta o direcionamento de conflitos internos para
confrontos externos, entre fábricas ou bairros – e isso representa um
desvio de foco vantajoso para os interesses capitalistas
(MASCARENHAS, 2015).
Há que se considerar, nesse sentido, que o contexto do início
do século XX foi propício para o desenvolvimento do esporte. A
sociedade brasileira e latino-americana em geral, recém-egressa do

68
sistema escravista, estava marcada pelo analfabetismo e pela
herança escravocrata nas mentalidades e hierarquias – este sistema
deixou em nossas cidades o sentimento de desprezo pela via
pública, já que esse era um espaço de circulação de negros e da
população pobre (MASCARENHAS, 2015). Além disso, havia uma
mentalidade que relacionava o sedentarismo à nobreza, o que
ocasionava um desprezo pelo trabalho muscular. Nesse contexto, a
casa senhorial era um espaço de ordem e moralidade, oposto aos
espaços públicos tomados como sujos e pestilentos
(MASCARENHAS, 2015). No início do século XX inicia-se uma
mudança nesses paradigmas:

De uma cidade colonial, alheia aos esportes e marcada por fortes restrições
de uso dos já escassos espaços públicos, passamos a uma “outra” cidade,
onde fervilha a prática esportiva e os espaços públicos, novos ou ampliados,
são socialmente preenchidos de forma bem mais intensa. O que não
significa, entretanto, uma vida urbana menos controlada ou previsível
(MASCARENHAS, 2015, l. 1541).

Deste modo, o contexto de urbanização promove


paulatinamente uma mudança em relação à visão acerca dos
espaços públicos. Tal característica, juntamente com incorporação
de uma nascente classe operária na sociedade, contribui para a
popularização do futebol (MASCARENHAS, 2015). Segundo
Hollanda, a formação dos contingentes operários, a ampliação das
correntes migratórias europeias e o aumento do fluxo demográfico
traziam mudanças nas cidades, caracterizadas pela mecanização e
velocidade dos tempos modernos (HOLLANDA, 2012). Este
contexto de surgimento das grandes cidades e da expansão do
capitalismo é apontado, portanto, como essencial para a
compreensão da disseminação do futebol na sociedade:

Não deveria parecer estranho que eventos esportivos como os campeonatos


mundiais de futebol e as olimpíadas tenham se desenvolvido em estreita
sintonia com a expansão do capitalismo, da democracia liberal e dos
individualismos, todos eles tão tipicamente ocidentais. Se tais eventos estão
hoje entre os mais prestigiosos, tanto em termos de público quanto de

69
rendimentos financeiros, é pela atuação coordenada de certas agências, entre
as quais podemos citar, além das instituições esportivas, os meios de
comunicação de massa, os Estados Nacionais que acolhem esses eventos, os
fabricantes esportivos, entre outros. (DAMO, 2012, p. 71)

O futebol possui, assim, um papel destacado no processo de


modernização e de racionalização da violência (LOVISOLO, 2003, p.
258). Inicialmente, o desenvolvimento deu-se sobretudo nas grandes
cidades, que viviam intensamente as transformações trazidas pela
Abolição, pela Proclamação da República – no caso brasileiro – e pela
expansão do capitalismo (FRANZINI, 2000). Em suma, essa nova
ordem burguesa de aceleração de corpos, de incentivo ao consumo,
ao trabalho e à tenacidade, estabelece um cenário urbano propício à
difusão dos esportes (MASCARENHAS, 2015). Ademais, na
transição para o século XX ocorre uma retomada dos espaços
públicos, caracterizada por uma dinâmica de adesão aos esportes e
ao lazer praticado ao ar livre, que adquirem força nas principais
cidades brasileiras (MASCARENHAS, 2015) - e podemos estender
essa constatação a toda a América Latina. Segundo o antropólogo
DaMatta, importante estudioso do futebol no Brasil, em livro
intitulado A bola corre mais que os homens, o futebol era:

Uma atividade voltada para a redenção do corpo pelo exercício físico e pela
competição, dando-lhe a higidez necessária à sua sobrevivência num
admirável mundo novo, um universo orientado pelo progresso, por coisas
estrangeiras, governado pelo mercado, dinamizado pela industrialização e
agenciado por um estranho sentido de autonomia da pessoa, não só como
parente ou amigo, mas como indivíduo e cidadão. Um claro que o “esporte”
e as novas ideias de saúde e higiene promovem uma mudança
paradigmática relativamente ao corpo na sociedade brasileira. Daí o rebuliço
em torno de tudo o que chega com ele. (DAMATTA, 2006, l. 1319)

Deste modo, o futebol aos poucos destacou-se a nível mundial


como nenhuma outra modalidade. Esta popularização relaciona-se
com a urbanização, com o advento da industrialização, com a
formação da classe operária e com a eletrificação do território
(MASCARENHAS, 2015).

70
Na medida em que o futebol se nacionaliza na América Latina,
vai também perdendo seu caráter inglês e adquirindo uma
caracterização mais regional. Para ilustrar este argumento, trazemos
como exemplo uma conduta realizada por Getúlio Vargas: em seu
governo, despenderam-se esforços para acelerar o processo de
profissionalização do esporte, estatizando seu controle
(GUTERMAN, 2010). De acordo com Rodrigo Koch (2012), o futebol
começa a assumir papel relevante na política brasileira – Getúlio
Vargas passa lançar decretos que favorecem o esporte, cujos
objetivos levavam à ideia de disciplina da nação, que estava prestes
a se envolver na Segunda Guerra Mundial. Vargas vislumbrava no
esporte uma alta capacidade de harmonização política (KOCH,
2012). Esta tentativa de institucionalização do futebol no Brasil, no
contexto de iminência de uma grande guerra, acarretou a exigência
de uma nacionalização dos clubes, com alterações de nomes e
dirigentes (FRANZINI, 2000; KOCH, 2012). Foi publicada, neste
contexto, uma portaria que decretou a proibição de manifestação das
nacionalidades em eventos esportivos, argumentando em prol da
manutenção da ordem (FRANZINI, 2000). Deste modo, foram
obrigados a mudar de nome:

Palestra Itália, Germânia em São Paulo, Hespanha em Santos, o Palestra


Itália em Belo Horizonte, todos foram obrigados a abandonar suas próprias
identidades, construídas desde as respectivas fundações e plenamente
inseridas nas sociedades das quais faziam parte, por uma outra, imposta de
cima para baixo e que se autointitulava “identidade nacional”. (FRANZINI,
2000, l. 1381)

Além disso, nesse contexto, os estádios foram utilizados para


grandes intervenções públicas de Vargas dirigidas aos
trabalhadores: de acordo com José Sérgio Leite Lopes, é no Estádio
de São Januário – maior estádio antes da construção do Maracanã
– que “a adoção do salário mínimo é anunciada em 1940, ou a
criação das leis do trabalho em 1943” (LOPES, 1994, p. 77). O autor
conclui, portanto, que “o futebol aparece assim como o pano de

71
fundo de um ritual de encenação protocolar das relações entre o
poder e o povo”. (LOPES, 1994, p. 77).
Considerando esse processo de disseminação do esporte,
muitos foram os estudiosos que se esforçaram em compreender as
motivações que acarretaram o sucesso e a popularização do futebol
no Brasil e na América Latina em geral. As análises que tratam do
assunto apontam uma unanimidade no sentido de que essa
popularização não foi um processo desprovido de tensões e
contradições, tendo em vista as ambíguas reações ao esporte –
alguns intelectuais, influenciados por um sentimento nacionalista,
posicionaram-se contra a atividade. Outra constatação relaciona-se
ao fato de que o futebol esteja associado ao advento da urbanização
e da industrialização – como já apontamos –, representando um
papel fundamental nessa conjuntura. Jacques Paul Ramírez
Gallego, estudioso do fenômeno futebolístico no Equador, no
artigo Fútbol e identidad regional en Ecuador, afirma que o esporte em
geral, e o futebol em particular:

es una esfera de la vida social destinada a contrabalancear las presiones y el


stress provocados por la rutina, sobre todo en las sociedades urbanas e
industrializadas. Es un alejarse de la realidad ordinaria.
Se trata, por lo tanto, de ver al deporte como una liberación de tensiones que
produce una excitación agradable, proveniente de cierto grado de ansiedad
y de miedo, lo que puede ser entendido como un proceso catártico
(GALLEGOS, 2003, p. 107)

Intencionando encontrar respostas sobre a popularidade do


futebol no Brasil, Roberto DaMatta aponta diversas características
do esporte, que representam explicações para o advento do
fenômeno futebolístico em nossa sociedade. O autor apresenta uma
insistente defesa em estudar o fenômeno esportivo como parte da
sociedade – e não em oposição a ela – para compreender questões
sociais no Brasil. Podemos ampliar esta observação para a América
Latina, considerando a natureza do esporte:

Pois no futebol (e nos eventos esportivos em geral), temos a oportunidade


clara e concreta de passar de um código ideológico para um código visual,

72
auditivo, táctil, corporal, e de odores, totalizando a própria experiência
humana. Daí a importância de estudar os aspectos simbólicos, ideológicos e
ritualísticos do futebol, tal como esse esporte é praticado no Brasil
(DAMATTA, 1982, p. 15)

Para o autor, a compreensão do fenômeno futebolístico no


Brasil acarreta também o entendimento da sociedade, que se revela
através do esporte. DaMatta defende a ideia de que o jogo de
futebol é uma metáfora da vida, e que deve ser analisado em
conjunto com a sociedade, e não contra ela (DAMATTA, 1982). O
futebol brasileiro é, de acordo com o antropólogo, “um modo pelo
qual a sociedade brasileira fala, apresenta-se e revela- se, deixando-
se descobrir” (DAMATTA, 1982, p. 21). Nesse sentido, uma
importante particularidade do futebol, apontada pelo autor em
diversos de seus trabalhos, é o que ele chama de “horizontalização
do poder”: a experiência futebolística fornece um instrumento que
possibilita à sociedade brasileira a experiência da igualdade – uma
forma aberta de igualdade fundada no desempenho:

Diferentemente, portanto, das classificações rotineiras, onde as pessoas são


definidas por meio de suas relações (pertencer a uma família, ter um título
de doutor, receber um determinado espírito tendo com ele relações de
compadrio, trabalhar para alguém poderoso, etc), no futebol – e em todas as
atividades recreativas em geral – as classificações são feitas pelo
desempenho, ou seja: são individuais.
Deste modo, ninguém pode ser promovido a astro de futebol pela família,
pelo compadre ou por decreto presidencial, mas deve provar suas
qualidades numa experiência empírica. (DAMATTTA, 1982, p. 39)

Outra característica que corrobora com essa teoria da igualdade


e da horizontalização do poder pensada por DaMatta é a existência,
no futebol, de regras universais, às quais todos são submetidos
durante a partida (DAMATTA, 1982). Luiz Felipe Baêta Neves
Flores, ao se propor compreender as mensagens ideológicas do
futebol, destaca a simbologia de igualitarismo presente em uma
partida esportiva: os uniformes das equipes – o fato de que todos os
jogadores se vestem da mesma maneira - apontam a igualdade, a
comunhão de objetivos, a solidariedade necessária para o alcance

73
dos objetivos e a baixa hierarquização formal entre os integrantes da
equipe. A interdependência dentro do campo, segundo o autor,
confirma o espírito de igualdade e o fato de que o individualismo
excessivo prejudica o grupo. No futebol, é postulado o esforço entre
pessoas “iguais”, demandando coesão – mas sem eliminar a
possibilidade de um sucesso individual compatível com a
coletividade (FLORES, 1982, p. 46 – 48).
Deste modo, num país onde a massa jamais tem voz e que fala
através de seus líderes, o futebol possibilita à população um
sentimento democrático baseado na horizontalização do poder e
uma certa intimidade com os símbolos nacionais (DAMATTA,
1982). É justamente essa constatação que DaMatta compreende
como uma significativa fundamentação para o entendimento da
repercussão do futebol no país:

Quero crer que a popularidade de esportes como o futebol jaz na capacidade


do esporte de possibilitar uma experiência com “estruturas permanentes”.
Com um permanente que se define por meio de regras universais que
ninguém pode modificar. Assim, ao contrário da política, onde após cada
derrota (ou ao simples vislumbrar da derrota), os grupos dominantes
buscam modificar as regras do jogo, o futebol (esse humilde e aparente
instrumento de mistificação das massas), proporciona uma experiência
exemplar de legitimidade e de acatamento às leis. Aqui as regras não
mudam, e isso faz com que todos sejam iguais no campo da disputa. Derrota
ou vitória é o prêmio a ser efetivamente colhido por quem joga melhor.
(DAMATTTA, 1982, p. 38, 39)

Em contraposição ao que ocorre na América do Norte e na


Europa, DaMatta argumenta que os nossos princípios de
identidade social não são instituições centrais de ordem – como a
Constituição, as leis, a ordem financeira e o sistema universitário.
Nos países desenvolvidos, argumenta o autor, as atividades que
representam as fontes de identidade brasileira – como o futebol –
são tomadas como fonte secundária e irrelevante na constituição da
sociedade. Assim, diz o estudioso:

Pois, se as formas de governo e a Constituição mudam constantemente, se


as universidades, o padrão monetário e os partidos políticos fazem os

74
brasileiros terem muitas dúvidas sobre sua sociedade enquanto nação
moderna, aspirante a um lugar ao sol dentro de uma ordem mundial;
futebol, carnaval e as relações pessoais dizem que a sociedade brasileira é
grande, criativa e generosa, tendo – como acontece com o futebol ali
praticado – um glorioso futuro. (DAMATTTA, 1982, p. 40)

Além da horizontalização do poder e do caráter igualitário e


popular do jogo de futebol, estudiosos apontam para outras
questões que impulsionaram a popularização do referido esporte
na América Latina. O fato do jogo do futebol ser jogado com os pés
e não com as mãos é tomado como essencial para entender seu êxito
na América Latina, considerando que o jogo com os pés ocasiona
uma imprevisibilidade e imprecisão:

Outro elemento que poderia explicar essa definitiva adoção do futebol pelo
Brasil é o fato de essa modalidade de football ser jogada com os pés e não
com as mãos, como ocorre na versão americana desse esporte. Ora, um jogo
praticado obrigatoriamente com os pés engendra uma notável imprecisão,
mesmo quando um time muito superior joga com um time sabidamente
inferior. Se o football americano é bastante preciso, desenrolando-se como
um jogo tático, aberto a uma hipertecnicalidade e especialização (pois nele
existe um time de defesa e outro de ataque), as jogadas são planejadas e
exatas, o futebol jogado com os pés apresenta de saída um problema de
coordenação motora razoável, qual seja: como fazer com que os pés que
servem para andar e correr sejam igualmente um instrumento de condução
e controle da bola. Tal prescrição explica o nível de imprevisibilidade que
estrutura essa variante futebolística, corroendo planos e táticas, liquidando
as especializações (as posições tornam-se intercambiáveis), abrindo, enfim,
esse esporte às ideias de sorte, destino e predestinação. Daí a sua imediata
ligação com crenças religiosas, algo muito mais raro de ocorrer quando se
trata de modalidades esportivas como o voleibol, a natação e o atletismo que
são esportes com uma menor dimensão aleatória. (DAMATTA, 2006, l. 1555)

O uso praticamente exclusivo dos pés para o controle da bola,


além de representar esta imprevisibilidade que faz com que o
esporte se torne dotado de grande emoção, dúvida, expectativa e
envolvimento, faz também com que seja praticado por atletas e
pessoas de biotipos diversos: o fato da bola tender a correr no chão
acaba por anular a altura ou a robustez física dos jogadores

75
(DAMATTA, 2006). Isso também é apontado como sustentação da
popularidade do futebol, já que este esporte tem a capacidade de
atrair praticantes de variados biotipos, muitas vezes preteridos por
outros esportes, como o voleibol ou o basquete. Rosenfeld
argumenta, além disso, que o jogo com os pés representa um ato de
agressão e barbárie – em contraposição ao jogo com as mãos, que é
incomparavelmente mais civilizado. Assim, afirma que “todo
homem (isto é, a criança ou o bárbaro que há nele) tem a tendência
de impelir para frente, com o pé, latas e cascas de frutas que estão
no caminho” (ROSENFELD, 2007, p. 94).
O futebol é, nesse sentido, uma expressão simbólica de
energias primitivas (ROSENFELD, 2007). A particularidade do
esporte relacionada à prática ao ar livre e sobre uma superfície de
grama ou de terra é um apelo numa sociedade cada vez mais
asfaltizada e urbanizada. Assim, o futebol, praticado na natureza,
possibilita uma sensação primitiva de dispersão das vozes
(MARQUES, 2002).

Ir a fútbol, entonces, tiene ese pequeño sabor de salir de paseo en domingo,


sujetos a todas las contingencias del clima: la lluvia, el frío, el fango en la
cancha, o el sol inclemente sin ninguna protección. El campo, así, nos
permite actualizar permanentemente esa ancestral necesidad de lo rural, lo
campestre, lo natural, contrario a los ambientes de la vida urbana y laboral.
(DÁVILA, LONDOÑO, 2003, p. 127)

Outra característica apresentada por muitos estudiosos do


futebol relaciona-se ao azar e ao destino como componente
importante do esporte. O fato de ser jogado com os pés, que já
mencionamos anteriormente, acarreta a imprevisibilidade das
partidas e sua relação com a sensação de que a sorte ou o azar podem
definir resultados. Nesse sentido, o futebol, além de ser concebido
como um jogo que requer tática, estratégias, técnicas e determinação
psicológica, também depende das incontroláveis forças do destino
(DAMATTA, 1982, p. 65). DaMatta assinala, ilustrando essa
argumentação, a presença, no Brasil, da Loteria Esportiva, na qual
há apostas de prognósticos de partidas de futebol. Acerca desta

76
propriedade do futebol, Dávila e Londoño, ao estudar a relação entre
o futebol e a identidade na Colômbia, afirmaram:

El recurso a la suerte también está presente y, aunque subordinado a lo


agonal, es a veces protagónico y prioritario. El desarrollo de un partido o
campeonato de fútbol no es conocido previamente, y en esto consiste el
placer del juego: en el riesgo de perder. La moneda para decidir el saque, el
sorteo para definir los rivales y ciertos modos de finalizar jugadas, partidos,
torneos, hablan con claridad del azar como componente básico del fútbol,
más allá de lo lúdico y lo estético, lo agonal y todas aquellas fórmulas para,
al menos, disminuir y controlar su incidencia: los esquemas tácticos, el
tratamiento al jugador, su formación y preparación, etc. En el desarrollo de
los partidos y los torneos, además, el azar, a veces con toda la carga
trascendente del destino, interpone sus oficios para confirmar o modificar el
rumbo de equipos y jugadores y, con ellos, comunidades enteras,
sociedades, países. Un tiro en el palo, un auto-gol, un rebote, una
inexplicable decisión arbitral (como por ejemplo la mano de Maradona en el
gol contra Inglaterra) definen de manera totalmente contingente, y muchas
veces en contra de toda la preparación y la estrategia para triunfar en
competencia, el resultado final. (DÁVILA, LONDOÑO, 2003, p. 128)

Nesse sentido, a atividade futebolística é apresentada como um


espaço que vai muito além da diversão e do entretenimento. Através
dele, ocorre uma tentativa de controlar e disciplinar a sociedade; mas
também vislumbra-se a possibilidade de experimentação da
democracia e da igualdade. DaMatta ratifica, então, que não foi
através da escola, da literatura ou do Parlamento que a população
começou a experimentar a igualdade – essa vivência ocorre, para o
autor, a partir de jogos de futebol (DAMATTA, 2006, l. 1386). A
horizontalização do poder apontada por DaMatta, juntamente com o
argumento da possibilidade de prática do esporte aberta aos mais
variados biotipos físicos e com a alegação acerca da imprevisibilidade
de uma atividade jogada sobretudo com os pés, faz com que muitos
estudiosos apontem, no futebol, uma possibilidade de ascensão social
aos brasileiros e, mais além, aos latino-americanos. Esta constatação
acaba relacionando-se, para muitos sociólogos, com uma
possibilidade para que pobres e negros ascendam socialmente, já que

77
a popularização do esporte traz consigo a oportunidade de uma
mobilidade social altamente verticalizada.
Além disso, a caracterização do futebol como jogo
imprevisível, no qual a habilidade com os pés é essencial, relaciona-
se, para DaMatta, no caso brasileiro e de maneira inconsciente, com
a presença de elementos africanos no país – como o samba e a
capoeira (DAMATTA, 2006, l. 1569). Este argumento é
fundamentado em análises elaboradas por outros estudiosos
brasileiros – como Mário Filho e Gilberto Freyre – que concebem
pela primeira vez o imaginário do futebol mestiço, dotado de
elasticidade e ritmo. Freyre, em matéria publicada no Diário de
Pernambuco, em 1938, afirma:

O nosso estylo de jogar foot-ball me parece contrastar com o dos europeus


por um conjunto de qualidades de surpreza, de manha, de astúcia, de
ligeireza e ao mesmo tempo de espontaneidade individual em que se
exprime o mesmo mulatismo de que Nilo Peçanha foi até hoje a melhor
afirmação na arte política.
Os nossos passes, os nossos pitu’s, os nossos despistamentos, os nossos
floreios com a bola, ou alguma coisa de dança e de capoeiragem que marca
o estylo brasileiro de jogar foot-ball, que arredonda e adoça o jogo inventado
pelos inglezes e por elles e por outros europeus jogado tão angulosamente,
tudo isso parece exprimir de modo interessantíssimo para os psychologos e
os sociologos o mulatismo flamboyant e ao mesmo tempo malandro que está
hoje em tudo que é affirmação verdadeira do Brasil. (FREYRE, 1938, n.p)

Mario Filho expõe as dificuldades do negro ao tentar ingressar


no futebol, destacando que seu aprendizado era solitário, distante
das academias e dos grandes clubes. Seu conhecimento de futebol
acontecia na “pelada” - um campo sem grama –, em contraposição
ao campo do homem branco – cercado, com arquibancada e cuja
grama era macia e bem aparada. De um lado, o branco dos field,
com professor e capitão gritando em inglês; do outro, o preto das
ruas, sozinho, sem ninguém (FILHO, 2010, p. 73). Segundo o autor,

A única coisa que o ajudava era a intuição. A certeza de uma vocação que o
fazia fabricar uma bola de meia. Para jogar, para aprender. Procurando se

78
lembrar do que tinha visto. Imitando, a memória servindo de espelho. Um
espelho não muitas vezes fiel (FILHO, 2010, p. 73).

Este imaginário de um talento natural do mestiço para o


futebol, pautado em uma ideologia de uma “democracia racial”,
surgido desde o período em que escreve Mário Filho e Gilberto
Freyre (VEJMELKA, 2018), é um sustentáculo importante na
tentativa da criação de uma identidade nacional, cujo pensamento
baseia-se no ideal de que a mistura de raças é um vantajoso
diferencial tipicamente brasileiro. Ainda que em 1950 – com a
derrota da seleção brasileira para o Uruguai em pleno Maracanã –
o negro e a mestiçagem tenham sido culpabilizados, esse
imaginário do futebol mestiço reaparece a partir das consecutivas
vitórias brasileiras ocorridas posteriormente (DAMATTA, 1982).
Ilustração emblemática dessa idealização do negro e do mestiço
como possuidores de uma vocação particular para o esporte ocorre
na Copa de 70: é neste campeonato que surge uma seleção
composta por muitos homens negros e que até hoje é indicada
unanimemente como a melhor seleção já existente.
Esta simbologia do negro e do componente africano na
composição brasileira, a propósito, está bastante presente nas
produções literárias dos escritores que estamos analisando. Tanto
Nelson Rodrigues quanto Eduardo Galeano falam de um
diferencial brasileiro diretamente relacionado à figura do negro e
do mestiço. Retomaremos esta discussão em momento pertinente,
no próximo capítulo do trabalho, quando abordaremos a questão
da identidade nas obras dos autores.
Para enriquecer esta seção destinada ao futebol, cumpre
destinar um espaço para falar de um importante debate que vem à
tona quando se fala do esporte. Há, no imaginário social e em
diversos estudos, a atribuição ao futebol como um fator alienante
da sociedade, que serve para desviar a atenção do povo em relação
às problemáticas consideradas verdadeiramente importantes.
Umberto Eco, no livro Viagem na irrealidade cotidiana, realiza duras
críticas ao esporte. Segundo o autor, o esporte é a atividade física

79
em si que, quando se transforma em competição – quando se
normatiza e comercializa –, acaba perdendo a essência marcada
pelo caráter lúdico (ECO, 1984; MARQUES, 2012). Assim, a partir
disso, Eco estabelece uma categorização do esporte: o “esporte ao
quadrado”, o “esporte ao cubo” e o ‘esporte elevado à enésima
potência”. De acordo com essa esquematização, o esporte ao
quadrado apresenta-se quando o jogo passa a ser uma atividade
praticada para determinadas pessoas, um espetáculo esportivo
para os outros, representando as “especulações e os comércios,
bolsas e transações, vendas e consumos decorrentes” (ECO, 1984,
p. 223). O esporte ao cubo surge a partir do discurso acerca do
esporte enquanto ele é assistido – este é o discurso da imprensa
esportiva. Tal discurso engendra, por sua vez, o discurso sobre a
imprensa esportiva – que é o esporte elevado à enésima potência
de Eco. Assim, a “falação esportiva” - consequência do esporte
elevado à enésima potência – faz com que o jogo não seja mais tão
importante: o esporte atual, de acordo com Eco, não é mais
genuinamente restrito ao âmbito esportivo; importando apenas a
falação a respeito do esporte. Deste modo, o autor alega que, se as
Olimpíadas fossem contadas a partir de imagens fictícias, nada
mudaria – portanto, não é mais o esporte que importa, e sim o
imaginário criado por ele (ECO, 1984, p. 223).
Ao falar especificamente sobre o futebol – até então o autor
tratou genericamente sobre esportes –, Eco apresenta a ideia de que
este seria um espetáculo cósmico sem sentido, desprovido de
sentido e ligado à inutilidade das coisas, caracterizado pela
presença de multidões de torcedores que enfartam nas
arquibancadas e de “juízes que pagam um domingo de glória com
a exposição de sua pessoa às mais graves injúrias” (ECO, 1984, p.
228). O autor indica, assim, que

(…) a discussão sobre o esporte (refiro-me ao espetáculo esportivo, ao fato


de se falar do espetáculo esportivo e dos jornalistas que falam sobre o
espetáculo esportivo e dos jornalistas que falam sobre o espetáculo
esportivo) é o substituto mais fácil da discussão política. Em vez de julgarem
os atos do ministro das Finanças (para o que é preciso entender de Finanças

80
e de outras coisas), discutem-se os atos do treinador; em vez de se criticarem
as posições do deputado, critica-se a posição do atleta; em vez de se
perguntar (pergunta difícil e obscura) se o ministro fulano assinou ou não
pactos mais obscuros com o poder sicrano, pergunta-se se a partida final ou
decisiva terá sido fruto do acaso, da forma atlética, ou de alquimias
diplomáticas (ECO, 1984, p. 231).

Deste modo, Eco procura alertar para a alienação política


causada pelo futebol, supondo que a atividade seja desprovida de
qualquer engajamento profícuo. Há, no pensamento do autor e no
senso comum, esta ideia de que o esporte é contrário à consciência
dos problemas políticos e sociais da comunidade.
A propósito deste argumento sustentado por Eco, muito se
fala do proveito que se faz do futebol nos países latino-americanos.
Na conjuntura das ditaduras militares, por exemplo, é evidente que
o referido esporte tenha sido utilizado como uma tentativa de
consolidar uma relação entre as seleções e os governos ditatoriais,
no intuito de legitimá- los. De acordo com Galeano,

En pleno carnaval de la victoria del 70, el general Médici, dictador de Brasil,


regaló dinero a los jugadores, posó para los fotógrafos con el trofeo en las
manos y hasta cabeceó una pelota ante las cámaras. La marcha compuesta
para la selección, Pra frente Brasil, se convirtió en la música oficial del
gobierno, mientras la imagen de Pelé volando sobre la hierba ilustraba, en la
televisión, los avisos que proclamaban: Ya nadie detiene a Brasil. Cuando
Argentina ganó el Mundial del 78, el general Videla utilizó con idénticos
propósitos la imagen de Kempes imparable como un huracán.
El fútbol es la patria, el poder es el fútbol: Yo soy la patria, decían esas
dictaduras militares.
Mientras tanto, el general Pinochet, mandamás de Chile, se hizo presidente
del Colo-Colo, el club más popular del país, y el general García Meza, que
se había apoderado de Bolivia, se hizo presidente del Wilstermann, un club
con hinchada numerosa y fervorosa.
El fútbol es el pueblo, el poder es el fútbol: Yo soy el pueblo, decían esas
dictaduras militares. (GALEANO, l. 1600, 2014)

O contexto brasileiro de 1970 é capaz de ilustrar esta complexa


relação entre futebol e política. De acordo com Guterman (2010),
Médici buscava, durante a referida Copa, associar sua imagem ao

81
de um torcedor comum, como um fã de futebol que procurava dar
palpites sobre a seleção, como faz usualmente um torcedor. Após a
conquista do tricampeonato, o General saiu para o meio do povo,
enrolado em uma bandeira brasileira. Procurou, com a bola,
demonstrar habilidade em fazer embaixadinhas. É sob a tutela de
Médici que a seleção brasileira conquista em definitivo a Taça Jules
Rimet – vitória que tem um simbolismo importante para o regime.
Ademais, a transmissão inédita ao vivo para todo o território
nacional colaborou para o sentimento de unidade e consenso
pretendido pela ditadura (GUTERMAN, 2010).
A figura do General Médici foi muito retratada nas crônicas de
Nelson Rodrigues. O autor era, além de grande admirador do
regime militar brasileiro – como já evidenciamos no primeiro
capítulo – amigo pessoal do general. Na crônica O homem que ainda
fala em “Pátria”, Rodrigues dedica-se em homenageá-lo:

Fiz essa pequena introdução para chegar ao nosso presidente. Quando


começou o jogo de candidaturas, disse eu: “Ganha esse, pelo nome e pela
cara”. Não é impunemente que um homem se chama Emílio Garrastazu
Médici. Tiremos o Emílio e fica Garrastazu. Tiremos o Garrastazu e ficará o
Médici. Bem sei que essa meditação sobre o nome pode parecer arbitrária e
até delirante. Não importa, nada importa. Depois vi a sua fotografia. Repeti,
na redação, para todo o mundo ouvir: "É esse o presidente". Ora, numa
redação há sempre uns três ou quatro sarcásticos. Um deles perguntou: “Só
pelo nome?” Respondi: “Pelo nome e pela cara”.
Como já disse, a história e a lenda também exigem uma certa fotogenia. E
senti que Emílio Garrastazu Médici tinha um perfil de moeda, de cédula, de
selo. Organizem uma retrospectiva presidencial e verão que os nossos
presidentes são baixos. Getúlio era baixíssimo, embora tivesse um perfil
histórico e, digamos, cesariano. Epitácio foi fisicamente pequeno. Era a pose
que o fazia mais presidencial. Garrastazu Médici é o nosso primeiro
presidente alto.
Dirão vocês que eu estou valorizando o irrelevante, o secundário, o
fantasista. Desculpem o meu possível equívoco. E se me perguntarem por
que estou dizendo tudo isso, eu me justificarei explicando: conheci,
domingo, o Presidente Emílio Garrastazu Médici. E o pretexto para o nosso
encontro foi um jogo de futebol.
Outra singularidade do chefe da Nação: gosta de futebol e sabe viver, como
o mais obscuro, o mais anônimo torcedor, todas as peripécias dos clássicos

82
e das peladas. Isso é raro, ou melhor dizendo, isso é inédito na história dos
presidentes brasileiros. Imaginem um Delfim Moreira ou um Rodrigues
Alves ou um Wenceslau Brás entrando no Estádio Mario Filho. Qualquer
um desses perguntaria: “Em que time joga o Fla-Flu?”, “Quem é a bola?” ou
“O córner já chegou?” O nosso presidente sabe tudo de futebol. Eu diria que
hoje nenhum brasileiro será estadista se lhe faltar a sensibilidade para o
futebol. (RODRIGUES, 2008, p.231, 232)

De acordo com Guterman (2010), a seleção brasileira de 1970


criou um dilema jamais resolvido no pensamento crítico nacional –
o contexto de auge da repressão e um presidente que se utilizou
dos efeitos populares do futebol transformou esta Copa na mais
paradoxal da história brasileira. Enquanto parte da
intelectualidade brasileira considerava que apoiar a seleção
significava compactuar com o regime, a Seleção de 70 é até hoje
considerada a melhor de todos os tempos. Guterman, então, relata
a abordagem dessa desconfortável contradição por parte de Henfil
em O Pasquim:

O cartunista, ele mesmo um intelectual de esquerda, bolou uma historieta


em quadrinhos protagonizada por um pensador crítico da mobilização
nacional em torno da seleção. O personagem lança imprecações contra
torcedores acotovelados diante da TV durante uma partida do Brasil. A
sequência, com a reação do intelectual, dispensa comentários: Um país
inteiro para por causa do futebol, mas não para resolver o problema da
fome… Este sim é o verdadeiro ópio do povo! Faz esquecê-lo de que são
explorados, subdesenvolvidos… Estou torcendo para o Brasil perder! Assim
o povo voltará à realidade e verá que a vida não é feita de gols, mas de
injustiças… Nossa realidade não é tão infantil como uma jogada como esta
de Pelé invadindo a grande área inglesa e… Pênalti! Pênalti! Juiz filho da
mãe! Pênalti, seu safado! (GUTERMAN, 2010, l. 2358)

Nesse sentido, o contexto da Copa de 1970 figura como um


exemplo representativo dessa utilização do futebol como desviante
dos problemas sociais. Luciano Anderson Breitkreitz, em artigo
intitulado A ditadura e o futebol na América do Sul: a construção de um
imaginário coletivo através das Copas do Mundo de 1970 e 1978 , analisa
o uso político do futebol durante a realização das Copas de 1970 e
1978 – cujos vencedores foram Brasil e Argentina, respectivamente.

83
Segundo o autor, nessas ocasiões, é evidente a utilização do futebol
como trampolim político por parte dos governos ditatoriais. No
caso brasileiro, o autor argumenta que a busca de aproximação
entre o governo e a imagem vencedora da seleção ocasionou bom
resultado ao regime, impulsionado pela popularização da
televisão. Em 1978, por sua vez, o governo ditatorial argentino
buscou utilizar-se dos benefícios de sediar uma Copa do Mundo.
Além de vencer aquela Copa – embora a vitória seja até hoje
questionada e polemizada –, a Argentina, aproveitando-se dos
holofotes, conseguiu ostentar uma imagem de nação desenvolvida
– com estádios impecáveis e aeroportos novos – perante o mundo
(BREITKREITZ, 2012). A respeito da Copa de 1978, Galeano diz:

La dictadura militar argentina, en cambio, gozaba de buena salud, y para


probarlo organizaba el undécimo Campeonato Mundial de Fútbol.
Participaron diez países europeos, cuatro americanos, Irán y Túnez. El Papa
de Roma envió su bendición. Al son de una marcha militar, el general Videla
condecoró a Havelange en la ceremonia de la inauguración, en el Estadio
Monumental de Buenos Aires. A unos pasos de allí, estaba en pleno
funcionamiento el Auschwitz argentino, el centro de tormento y exterminio
de la Escuela de Mecánica de la Armada. Y algunos kilómetros más allá, los
aviones arrojaban a los prisioneros vivos al fondo de la mar.
“Por fin el mundo puede ver la verdadera imagen de la Argentina”, celebró
el presidente de la FIFA ante las cámaras de la televisión. Henry Kissinger,
invitado especial, anunció:
- Este país tiene un gran futuro a todo nivel.
Y el capitán del equipo alemán, Berti Vogts, que dio la patada inicial, declaró
unos días despues:
- Argentina es un país donde reina el orden. Yo no he visto a ningún preso político.
(GALEANO, 2014, l. 1767)

A despeito desses exemplos em que o futebol aparece como


um alienador da sociedade, impulsionando governos ditatoriais
repressivos e que deliberadamente praticavam a violência para o
controle social, traremos exemplos em que a ocasião esportiva
aparece justamente como um lugar de protesto político –
contrariando a argumentação de Umberto Eco, cuja tese defende
que o esporte mantém-se alheio à política. Uma das ocasiões que

84
contrariam essa tese é representada pelo movimento de
democratização no contexto ditatorial brasileiro organizado pela
torcida do Corinthians – conhecido como “democracia corintiana”.
Segundo Guterman, o movimento pela democratização
identificava-se com o futebol, considerando sua característica de
esporte de massa por definição. Assim, referindo-se ao movimento
encabeçado pelo Corinthians na conjuntura do regime militar
brasileiro, Guterman afirma:

O time entrava em campo com faixas alusivas à democracia, e a camisa


passou a ser usada como outdoor das campanhas pela abertura política – às
vésperas da eleição de novembro de 1982, os corintianos exibiram a inscrição
“No dia 15, vote”. Foi um marco, seguido de outras ousadias, como “Eu
quero votar para presidente” e “Diretas já”.
(...)
Um dos personagens mais vinculados à campanha, como vimos, era
Sócrates, o líder da Democracia Corintiana e um dos símbolos do “futebol-
arte” do Brasil, contraponto completo à tecnocracia e à politicagem de
cartolas e parlamentares. E o principal animador dos comícios era Osmar
Santos, um dos maiores e mais criativos locutores de futebol do país. Osmar
perguntava à multidão: “Diretas quando, gente?”, e vinha a resposta: “Já!”.
(GUTERMAN, 2010, l. 3104)

Outro evento pertinente para contra-argumentar a tese de


futebol como alienador do povo é a vitória do Defensor, clube
uruguaio preterido pela Ditadura Militar, no campeonato nacional
de 1973. De acordo com Lorenzon (2015), os clubes hegemônicos no
contexto do regime ditatorial uruguaio eram o Peñarol e o
Nacional, caracterizados também por serem os mais ricos desde a
profissionalização do futebol no país. A conquista do Defensor de
1973 contraria as expectativas e acaba por apresentar um foco de
resistência ao governo: os jogadores, ao final da partida, realizam a
volta olímpica no sentido contrário ao tradicional, como símbolo de
contestação da ditadura. O título é conquistado novamente em
1980 e o protesto se repete: nesta ocasião, os torcedores entoam um
inflado canto que diz “se vá acabar, se vá acabar, la dictadura militar”
(LORENZON, 2015, p. 11). Nesse sentido, futebol aparece, aqui,

85
como palco em que se manifestam opiniões contrárias ao regime,
podendo ser considerado como uma “ilha de liberdade em meio a
um oceano de repressão ideológica, política, cultural, econômica”.
(LORENZON, 2015, p. 11)
Dado o exposto, e para finalizar a seção, consideramos
relevante esse debate aqui apresentado no sentido de expor a
importância e a justificativa de estudos acadêmicos a partir do
futebol e de crônicas futebolísticas. Neste esporte, muito se revela
acerca da sociedade e do debate sobre as identidades. Sergio
Villena Fiengo, em artigo intitulado El fútbol y las identidades –
Prólogo a los estudios latinoamericanos , presente no livro Futbologias:
fútbol, identidad y violência en América Latina – resultado do
Segundo Encontro do Grupo Deporte y Sociedad, realizado no
Equador, em 2000 – apresenta o argumento de que a partir de uma
análise transdisciplinar do futebol é possível realizar estudos
sobre diversos âmbitos na América Latina. Segundo o autor, os
estudos acerca do referido esporte são, atualmente, muito
diversificados: no âmbito econômico, analisa-se sua crescente
comercialização e transnacionalização; no âmbito político, estuda-
se veementemente a utilização do esporte como fator de
promoção nacionalista e de homogeneização cultural, bem como
a esfera da resistência que o futebol apresentou diante de
contextos repressivos. No âmbito cultural, destacam-se os estudos
acerca da função comunicativa e publicitária do esporte, no
sentido de que o futebol em particular acaba apresentando um
canal publicitário para produtos de diversos tipos – como os
implementos esportivos, a comida rápida, os equipamentos
eletrônicos e a cerveja. Finalmente, Fiengo destaca que a tendência
dos estudos sociais na América Latina recai - ainda que não
exclusivamente – sobre o processo de formação de identidades
socioculturais no marco dos espetáculos futebolísticos (FIENGO,
2003, p.23), âmbito no qual está inserido o presente trabalho.
Importa, portanto, salientar que nosso posicionamento
aproxima-se das teorias que defendem que o futebol não se
restringe apenas ao cumprimento de um papel de controle social,

86
que faria com que a população se isentasse de pensar questões
sociais. Entendemos que, a despeito do futebol ter sido utilizado
em diversas ocasiões como um desviante da atenção das
problemáticas da sociedade, há que se atentar ao fato de que ele
também foi capaz de canalizar importantes movimentos de
protesto e resistência, como na ocasião das ditaduras latino-
americanas. Pensamos, nesse sentido, que a consideração do
futebol como tão somente um alienante social apresenta, na
realidade, uma ignorância quanto às suas funções sociais e uma
renúncia de seu valor cultural. Neste esporte, podemos identificar,
de maneira bastante concreta, questões polêmicas da sociedade,
como os regionalismos, os nacionalismos, o racismo e o machismo,
por exemplo – motivo pelo qual a ascensão do futebol no contexto
do séc. XX é um fenômeno digno de ser pesquisado na academia.
Vislumbramos, neste esporte, concordando com diversos
estudos aqui apresentados, um espaço em que se minimizam
desigualdades, atraindo um público diversificado. Um jogo de
futebol é capaz de mobilizar – diferentemente de outras atividades
– pessoas das mais variadas estratificações sociais, de modo que
seja possível encontrar, em um estádio, desde membros das classes
sociais mais baixas até a elite; homens e mulheres; crianças e idosos.
A constatação acerca das camadas sociais é significativa, sobretudo
se considerarmos a particularidade altamente hierarquizante e
desigual das sociedades latino-americanas, em que praticamente
inexistem espaços que possibilitem encontrar, concomitantemente,
pessoas de diferentes estratificações sociais. Nesse sentido,
concordamos com DaMatta no que diz respeito ao aspecto
relativamente democrático do futebol. Além de compreender esta
caracterização igualitária do referido esporte, visualizamos,
também, um papel importante que está relacionado ao contato com
a natureza, sobretudo nas capitais – cujos espaços são intensamente
asfaltados, cuja rotina é muito estressante e onde se encontram os
clubes mais significativos e gloriosos. Todas essas argumentações
são elencadas a fim de encontrar uma justificativa plausível para a
compreensão da popularidade do futebol na América Latina, bem

87
como de sua constante utilização na formação das identidades. Por
fim, interessa reiterar a significativa possibilidade que o futebol
ocasiona aos países menos desenvolvidos – como os que compõem
a América Latina. A partir do bom desempenho no futebol, torna-
se factível a contraposição à velha ordem segundo a qual os
colonizados estariam permanentemente submetidos aos
colonizadores (DAMATTA, 2006). É essa experiência da vitória e
do desmonte de estruturas enraizadas que faz do futebol um
espaço mágico e fascinante, capaz de desconstruir uma lógica do
mundo; sobre o qual pretende-se sustentar um ideal harmonioso e
digno de identidade.

88
4. FUTEBOL E IDENTIDADE

4.1. FUTEBOL E A IDEALIZAÇÃO DE UMA IDENTIDADE


NACIONAL

Observamos, até agora, que Rodrigues e Galeano procuraram,


no que concerne às suas produções esportivas, abordar o futebol
como um importante instrumento para a superação das
adversidades a que seus países foram submetidos. Focaremos,
doravante, na discussão em torno da proposta de afirmação das
nações em cada um dos escritores, problematizando suas
idealizações com teóricos que pensam a temática da identidade.
Como vimos, Rodrigues tentou reiteradamente utilizar o
futebol e a seleção no intuito de afirmar a potencialidade do Brasil,
proclamar a virtualidade do brasileiro e teorizar sua superioridade
– o futebol funciona como superação do “complexo de vira- latas”.
Prosseguindo com essa discussão, trazemos a ideia de que o Brasil
passou a ser “descoberto” – para o mundo e para os brasileiros –
através das conquistas do escrete:

Amigos, eu ando falando muito do Brasil. E muita gente já rosna, com tédio
e irritação: — “Você está descobrindo o Brasil?” É exato. Estou, sim, estou
descobrindo o Brasil.
Eis que, de repente, cada um de nós, cada um dos setenta milhões de
brasileiros passa a ser um Pedro Álvares Cabral. Já descobrimos o Brasil e
não todo o Brasil. Ainda há muito Brasil para descobrir. Não há de ser num
relance, num vago e distraído olhar, que vamos sentir todo o Brasil. Este país
é uma descoberta contínua e deslumbrante. E Justiça se faça ao escrete: — é
ele que está promovendo, quem está anunciando o Brasil.
A princípio, o sujeito pode pensar que o escrete revelou o Brasil para o
mundo. Isso também. Todavia, o mais importante e o mais patético é a
descoberta do Brasil para os próprios brasileiros. Pergunto: — o que
sabemos nós do Brasil? Pouco ou, mesmo, nada. A partir de 58, o Brasil
começou a aparecer aos nossos olhos (RODRIGUES, 2013, p. 336)

89
Rodrigues traz, aqui, a ideia de uma revelação repentina de
uma nação ao mundo e, incrivelmente, ao próprio brasileiro. É a
conquista do primeiro campeonato mundial, em 1958, que revela o
Brasil – descoberta “contínua e deslumbrante”. Antes, na visão do
autor, pouco se sabia sobre o país – a nível nacional e internacional.
Galeano, da mesma forma que Rodrigues, aborda o futebol
como instrumento de reconhecimento da nação uruguaia.
Mencionando as vitórias olímpicas consecutivas da seleção
uruguaia em 1924, na França, e 1928, na Holanda, o autor utiliza-se
do mesmo argumento de Rodrigues – o futebol teria impulsionado
a popularidade uruguaia:

Quatro anos depois, o Uruguai ganhou a Olimpíada da Holanda. Y un


dirigente uruguayo, Atilio Narancio, que en el 24 había hipotecado su casa
para pagar los pasajes de los jugadores, comentó: —Ya no somos más aquel
pequeño punto en el mapa del mundo. La camiseta celeste era la prueba de
la existencia de la nación, el Uruguay no era un error, el fútbol había
arrancado a este minúsculo país de las sombras del anonimato universal.
Los autores de aquellos milagros del 24 y del 28 eran obreros y bohemios
que no recibían del fútbol nada más que la pura felicidad de jugar.
[...]
Apenas dos mil personas asistieron a aquel primer partido. La bandera
uruguaya fue izada al revés, con el sol para abajo, y en lugar del himno
nacional se escuchó una marcha brasileña. Aquella tarde, Uruguay derrotó
a Yugoslavia 7 a 0. Y entonces ocurrió algo así como el segundo
descubrimiento de América. (GALEANO, 2014, l. 605)

O futebol, portanto, tirava o Uruguai do anonimato – o país


deixa de ser um pequeno ponto no mapa, a camiseta comprova sua
existência, a bandeira é içada ao contrário e, ao invés do hino
uruguaio, soa uma marcha brasileira. Todos esses acontecimentos
narrados são expostos no intuito de comprovar o desconhecimento
do Uruguai perante o mundo. A partir da narrativa da vitória de 7
a 0 diante da Iuguslávia, Galeano teoriza que esse feito seria não
apenas a descoberta do Uruguai – representaria, além disso, o
segundo descobrimento da América.
Observamos, nos fragmentos aqui selecionados, que os
autores trazem a concepção de nação – cuja existência era

90
constatada através do futebol – para fundamentar seus discursos.
Valemo-nos, para compreender esse conceito, da teoria de Benedict
Anderson produzida no livro Comunidades Imaginadas – publicado
em 1983. Segundo este autor, a era do nacionalismo teve princípio
na Europa Ocidental, no século XVIII, com a ascensão do
Iluminismo e do Secularismo Racionalista. Apesar do declínio da
fé religiosa, o sofrimento que ela ajudava a apaziguar continuou a
existir, e a ideia de nação acaba se mostrando adequada para essa
finalidade. Nesse sentido, o nacionalismo, segundo Anderson,
deve ser compreendido “alinhando-o não a ideologias políticas
conscientemente adotadas, mas aos grandes sistemas culturais que
o precederam, e a partir dos quais ele surgiu, inclusive para
combatê-los” (ANDERSON, 2008, p. 39). Os sistemas culturais a
que o autor se refere são a comunidade religiosa e o reino dinástico.
Anderson defende a ideia de que a comunidade religiosa
sofreu um declínio na Idade Média, como consequência das
explorações do mundo não-europeu, que ampliaram o horizonte
cultural-geográfico e os conceitos a respeito das formas de vida
humana. Além disso, nessa época também ocorreu o rebaixamento
gradual da língua sagrada, ilustrada pelo declínio do latim. O autor
explicita, ademais, que antes da ascensão do nacionalismo, o reino
dinástico despontava como único sistema político imaginável, no
qual a organização da realeza aparecia em torno de um centro
elevado e sua legitimidade derivava da divindade, e não da
população - que nessa conjuntura é composta por súditos, e não por
cidadãos. O declínio da legitimidade automática da monarquia
sagrada manifesta-se, nesse sentido, durante o século XVII
(ANDERSON, 2008).
Porém, as Comunidades Imaginadas das nações não surgiram
apenas a partir da superação das comunidades religiosas e dos
reinos dinásticos, substituindo-os. Ocorreu, também, uma
transformação fundamental nos modos de apreender o mundo, e
essa mudança é essencial para compreender a formulação do ideal
de “nação”: na conjuntura europeia do século XVIII, floresceram
duas formas de criação imaginária – o romance e o jornal. Esses

91
dois novos meios possibilitaram a propagação de obras ligadas a
movimentos nacionalistas. Destacamos, aqui, a argumentação de
Anderson acerca da extraordinária e paradoxal “cerimônia de
massa” criada pelo jornal: sua leitura é realizada no silêncio da
privacidade de cada indivíduo, o qual possui, entretanto,
consciência de que aquele conteúdo está sendo lido
simultaneamente por milhares – ou milhões – de pessoas “cuja
existência lhe é indubitável, mas cuja identidade lhe é totalmente
desconhecida” (ANDERSON, 2008, p. 68). Assim, “o leitor do
jornal, ao ver réplicas idênticas sendo consumidas no metrô, no
barbeiro ou no bairro em que mora, reassegura-se continuamente
das raízes visíveis no mundo imaginado da vida cotidiana”
(ANDERSON, 2008, p. 68).
Nesse sentido, o declínio de convicções mutuamente
entrelaçadas, somado ao desenvolvimento dos meios de
comunicação cada vez mais velozes, acarretou na busca por uma
nova maneira de unir a fraternidade, o poder e o tempo. O
capitalismo editorial surgiu, nesse contexto, como elemento
catalisador, que permitiu que as pessoas pensassem sobre si
mesmas e se relacionassem com as demais de maneira
radicalmente nova (ANDERSON, 2008, p. 70). A idealização da
comunidade imaginada foi, portanto, confirmada pela leitura.
A partir dessa contextualização acerca da complexidade das
raízes históricas em torno do ideal de nação, Anderson propõe
defini-lo como uma comunidade política imaginada,
intrinsecamente limitada e, ao mesmo tempo, soberana. Segundo o
autor, a nação

é imaginada porque mesmo os membros da mais minúscula das nações


jamais conhecerão, encontrarão ou nem sequer ouvirão falar da maioria de
seus companheiros, embora todos tenham em mente a imagem viva da
comunhão entre eles.
[...]
Imagina-se a nação limitada porque mesmo a maior delas, que agregue,
digamos, um bilhão de habitantes, possui fronteiras finitas, ainda que
elásticas, para além das quais existem outras nações. Nenhuma delas

92
imagina ter a mesma extensão da humanidade. Nem os nacionalistas mais
messiânicos sonham com o dia em que todos os membros da espécie
humana se unirão à sua nação, como por exemplo na época em que os
cristãos podiam sonhar com um planeta totalmente cristão.
Imagina-se a nação soberana porque o conceito nasceu na época em que o
Iluminismo e a Revolução estavam destruindo a legitimidade do reino
dinástico hierárquico de ordem divina.
[...]
E, por último, ela é imaginada como uma comunidade porque,
independentemente da desigualdade e da exploração efetivas que possam
existir dentro dela, a nação sempre é concebida como uma profunda
camaradagem horizontal. No fundo, foi essa fraternidade que tornou
possível, nesses dois últimos séculos, que tantos milhões de pessoas tenham-
se disposto não tanto a matar, mas sobretudo a morrer por essas criações
imaginárias limitadas. (ANDERSON, 2008, p. 32 – 34)

Compreendemos essa teoria de Anderson sobre as


comunidades imaginadas como fundamental na discussão a
respeito da identidade nacional nas produções esportivas de
Rodrigues e de Galeano. Os autores procuram, utilizando-se das
conquistas das seleções de seus países, enaltecer a integração das
suas respectivas nações. Ambos intencionam retratar o futebol
através de uma exaltação indiscutivelmente unânime,
pressupondo que a totalidade da sociedade aclamasse as
conquistas das seleções. Nesse sentido, aquela nação – limitada
territorialmente, soberana como ideia e imaginada em torno do
princípio de fraternidade – materializa-se diante da suposta torcida
harmoniosa e integral de sua população. Segundo Anderson, o
Estado Nacional como norma internacional legítima atinge seu
auge no contexto após a Segunda Guerra Mundial (ANDERSON,
2008, p. 163). Como Rodrigues e Galeano vivenciaram essa
conjuntura, naturalmente foram influenciados por essa idealização
de nacionalidades imaginadas e unificadas. O objeto sobre o qual
escrevem – o futebol – possui elementos interessantes para pensar
essa comunidade: em um jogo entre seleções, surge uma comoção
em torno do hino nacional – cantado em uníssono e, muitas vezes,
finalizado à capela –; os jogadores e torcedores vestem-se com
camisetas da mesma cor – simbolizando a fraternidade e

93
camaradagem, de que Anderson fala; a bandeira é hasteada e está
presente também nas arquibancadas, em meio à torcida; diante do
gol surge a manifestação explosiva de amor à pátria. Assim, todos
esses elementos configuram a tentativa de promoção de um
imaginário consolidado a respeito da nação. O futebol pode ser,
portanto, compreendido como uma ocasião em que ocorre um
retrato concreto e experimental da comunidade imaginada – uma
ocasião que ultrapassa a utilização de código ideológico,
estabelecendo, também, “um código visual, auditivo, táctil,
corporal, e de odores, totalizando a própria experiência humana”
(DAMATTA, 1982, p. 15).
Cumpre destacar, também, que os autores, utilizando-se do
futebol, propagam a idealização das comunidades imaginadas
através da literatura. Retomando Anderson, a literatura possui um
papel singular no processo de confirmação da ideia de nação. No
caso de Nelson Rodrigues, esta divulgação é realizada pelas
crônicas literárias nos jornais, cujo alcance é ainda maior em relação
a livros. Assim, ressaltamos a importância da literatura no processo
de constituição de uma ideia de nação.
A propósito desta constatação, Doris Sommer, no livro Ficções
de Fundação: os romances nacionais da América Latina, publicado pela
primeira vez em 1991, destaca a existência de projetos nacionais
através da prosa de ficção, surgidos a partir da necessidade de criar
uma história que legitimasse as nações emergentes no âmbito da
América Latina. Deste modo, a autora enfatiza o fato de que os
romances caminharam de mãos dadas com a história patriótica da
América Latina, afirmando que frequentemente o romance e a
república estiveram interligados “por meio dos autores que
preparavam projetos nacionais através da prosa de ficção e
implementavam ficções de fundação através de campanhas
legislativas ou militares” (SOMMER, 2004, p. 22). Da mesma forma,
Rodrigues e Galeano, embora em um contexto diverso daquele
analisado por Sommer – a autora aborda sobretudo o contexto
oitocentista –, procuram enfatizar a existência, a legitimidade e o
destaque de seus países a partir de uma literatura embasada em

94
fatos futebolísticos reais. Cumpre mencionar que as produções dos
autores, entretanto, não possuem necessariamente o ideal de
legitimação de ideais políticos governamentais. No caso de
Rodrigues, que escreve na conjuntura da ditadura e procura
legitimar este governo, esta relação é perceptível; no caso de
Galeano, porém, esta característica não se manifesta, visto que o
autor é um grande crítico dos governos ditatoriais, mas não deixa
de elogiar o futebol que se desenvolveu na época. Concluímos,
assim, a permanência da importância da literatura quando o
propósito é auxiliar na construção de um ideal em torno da
identidade nacional, sem necessariamente pretender dar
legitimidade a algum regime de governo.
Rodrigues procura, ao narrar as vitórias da seleção brasileira,
enaltecer os jogadores, dramatizar as disputas e colocar o êxito
como extensivo a toda a nação. Em crônicas escritas na conjuntura
da Copa do Mundo do Chile, o autor menciona a vitória sobre a
seleção chilena, evidenciando os obstáculos enfrentados neste jogo:

Mas o povo brasileiro é tão formidável que, na vaga de um gênio, pôs outro
gênio. Ou, por outras palavras, na vaga de Pelé, arranjou, improvisou outro
Pelé: — Amarildo. E, no jogo seguinte, também Amarildo se machuca. Como
se não bastasse, abriu-se, nas canelas de Didi, uma constelação de feridas. E
que vimos nós? Levando nas pernas chagas deslumbrantes, Didi foi mais um
príncipe etíope do que nunca. Contra o Chile, através dos noventa minutos,
ele não perdeu, em instante nenhum, a sua ginga maravilhosa de gafieira.
Ferido na carne e na alma, o escrete do Brasil derrubou o Chile. É possível
que até a natureza tivesse preparado algum terremoto contra nós. E
ganhamos. Mesmo que atirassem contra o Brasil um furacão da Flórida,
sairíamos invictos da batalha. E pior do que o terremoto, pior do que a
torcida, pior do que as manchetes, pior do que o escárnio do rádio e da
televisão: foi o juiz. Está provado que o árbitro entrou em campo para meter
a mão no bolso do Brasil.
[…]
Pois vencemos o juiz, vencemos o escrete chileno, as manchetes, os
terremotos, a cordilheira. Apedrejaram Garrincha, e vencemos.
(RODRIGUES, 2013, p. 40, 41)

95
É evidente, aqui, que a conquista diante da seleção chilena é
não apenas da esquadra brasileira, mas também de todo o “povo
brasileiro”, de toda a comunidade imaginada e reiterada por
Rodrigues. E o cronista faz questão de enaltecer a superioridade
brasileira, invencível diante de supostos terremotos ou furacões;
destemido na presença da cordilheira dos andes; imbatível perante
a torcida adversária e a atuação tendenciosa do juiz. A imagem que
o autor cria de sua seleção é uma imagem formidável, dotada de
uma capacidade talentosa de improvisação e superação. A vitória
é consequência, para Rodrigues, não apenas da performance no
futebol, mas sobretudo de qualidades como a “coragem, a
inteligência, a imaginação, o entusiasmo e a genialidade do homem
brasileiro” (RODRIGUES, 2013, p. 25). Toda essa exorbitância ao
relatar a partida é utilizada como um recurso para engrandecer a
atuação brasileira e, consequentemente, a ideia de nação.

Observem agora o que o escrete fez por nós. Há pouco tempo o brasileiro
tinha uma certa vergonha de ser brasileiro. Conheço um patrício que andou
ensaiando um sotaque para não trair a sua nacionalidade. Agora não. Agora
acontece esta coisa espantosa: — todo mundo quer ser brasileiro. O país foi
invadido por brasileiros, ocupado por brasileiros. Dizia-me o Francisco
Pedro do Coutto: — “Nunca vi tantos brasileiros.” E outra coisa: — as
mulheres estão mais lindas, e os homens, mais fortes, e há uma bondade
difusa, volatilizada, atmosférica. Jamais se cumprimentou tanto. E como
sorrimos uns para os outros. (RODRIGUES, 2013, p. 112)

A efetivação da comunidade imaginada dá-se, para


Rodrigues, após as conquistas do escrete. São os desempenhos
positivos no futebol que fazem com que os brasileiros incorporem
e percebam a sensação de pertencimento e o sentimento de
fraternidade entre os compatriotas, que passam, segundo o autor,
a sorrir mais e a se cumprimentar mais. É o futebol que ocasiona o
orgulho da identidade nacional, a superação do “complexo de vira-
latas” e a visibilidade do país perante os brasileiros e o mundo.
Da mesma forma, Galeano também destaca a importância das
conquistas futebolísticas para obter reconhecimento, afirmando

96
que a camiseta da seleção é um importante símbolo de identidade
coletiva, não apenas para os países pequenos ou pobres:

Somos porque ganamos. Si perdemos, dejamos de ser. La camiseta de la


selección nacional se ha convertido en el más indudable símbolo de
identidad colectiva, y no sólo en los países pobres o pequeños que dependen
del fútbol para figurar en el mapa. (GALEANO, 2014, l. 2286)

A partir dessas propostas dos autores, valemo-nos da teoria do


filósofo contemporâneo Giorgio Agamben, presente no ensaio O
que é um dispositivo?, publicado no livro O que é o contemporâneo? E
outros ensaios para compreender a instrumentalização do futebol no
processo de idealização de uma nação. Neste ensaio, Agamben
parte de uma contextualização acerca da utilização do termo
técnico “dispositivo” no pensamento de Michel Foucault,
afirmando a importância do termo em sua obra. Agamben destaca
que, para Foucault, o termo refere-se a uma rede que se estabelece
entre elementos heterogêneos, como “discursos, instituições,
edifícios, leis, medidas de segurança, proposições filosóficas, etc”
(AGAMBEN, 2005, p. 9). A função do dispositivo – afirma
Agamben, ainda interpretando Foucault – é estratégica e se
inscreve em uma relação de poder.
Agamben propõe-se, então, a situar os dispositivos em um
novo contexto, abandonando a teoria foucaultiana. Chega, assim, a
uma definição acerca do termo “dispositivo”:

Generalizando posteriormente a já amplíssima classe dos dispositivos


foucaultianos, chamarei literalmente de dispositivo qualquer coisa que
tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar,
interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as
opiniões e os discursos dos seres viventes. Não somente, portanto, as
prisões, os manicômios, o panóptico, as escolas, as confissões, as fábricas, as
disciplinas, as medidas jurídicas etc, cuja conexão com o poder é em um
certo sentido evidente, mas também a caneta, a escritura, a literatura, a
filosofia, a agricultura, o cigarro, a navegação, os computadores, os telefones
celulares e – porque não – a linguagem mesma, que é talvez o mais antigo
dos dispositivos, em que há milhares e milhares de anos um primata –

97
provavelmente sem dar-se conta das consequências que se seguiriam – teve
a inconsciência de se deixar capturar. (AGAMBEN, 2005, p. 13)

Abordamos brevemente esta ideia de dispositivo por


considerá-lo importante para a compreensão da tentativa de
Nelson Rodrigues e Eduardo Galeano em idealizar, em suas
produções esportivas, a grandiosidade e a unanimidade de suas
nações. Apreendemos, diante da leitura das obras aqui analisadas,
que o futebol e a literatura funcionam como “dispositivos”,
conforme descrição de Agamben, na medida em que ambos
capturam e orientam os gestos e os discursos dos seres viventes. A
literatura esportiva e a paixão pelo futebol são dispositivos que
visam à orientação dos leitores em relação à ideia de pertencimento
e subserviência à ideia de pátria. As conquistas no futebol são
utilizadas para criar uma unanimidade em torno do esporte,
homogeneizando, controlando e moldando as pessoas; bem como
suprimindo as diferenças.
Wilson Krette Júnior, em artigo intitulado Giorgio Agamben e as
noções de dispositivo, amizade e a busca pela visão na obscuridade do
presente para entender o contemporâneo, afirma que “o dispositivo
para Agamben é compreendido como criação e proliferação de
mecanismos da política contemporânea para controlar a conduta e
as opiniões de todos os seres humanos na sociedade capitalista”
(JUNIOR, 2010, p. 183).
Vimos, no segundo capítulo deste livro, o quanto a
popularização do futebol em todo o mundo, e de maneira peculiar na
América Latina, relaciona-se com o fato de que este esporte apresenta-
se, inicialmente, como uma ferramenta – um dispositivo – de controle
dos trabalhadores operários no início do século XX. O futebol
apresentou-se, em suma, como um orientador de uma conduta – os
trabalhadores, naquele contexto, concentraram suas atenções em
torno do esporte, o que ocasionou uma amenização dos protestos por
melhores condições de trabalho. A elite, então, viu no futebol um
poderoso instrumento de controle e pacificação de massas – e essa
constatação proporcionou, então, a disseminação do esporte.

98
No que concerne às produções dos autores, o futebol surge
como um dispositivo que pode direcionar à idealização de
pertencimento de uma nação, como podemos observar nas
produções aqui abordadas. Funciona essencialmente como um
dispositivo que ameniza o discurso de subdesenvolvimento
prevalecente na América Latina na conjuntura. O futebol é, em
suma, um dispositivo que suscita um discurso de superioridade
dos países latino-americanos, a despeito da condição de
subdesenvolvimento aqui presente.
Estamos vivenciando, afirma Agamben, uma “gigantesca
acumulação e proliferação dos dispositivos” (AGAMBEN, 2005, p.
5), cuja funcionalidade é, como vimos, controlar a conduta dos
homens na sociedade capitalista. O futebol, bem como a literatura,
portanto, podem ser interpretados como exemplos de dispositivos
do pensamento agambeniano, que se relacionam ao sentimento de
nacionalismo e patriotismo nas produções dos autores que estamos
analisando.
A propósito da ideia de nacionalismo e patriotismo, cumpre
mencionar a distinção entre os referidos conceitos, cunhada por
Zygmunt Bauman no livro Modernidade Líquida, publicado em 1999.
O autor destaca, de forma geral, que o patriotismo relaciona-se
mais a aspectos positivos; enquanto o nacionalismo está ligado a
aspectos negativos. Segundo Bauman,

o patriotismo, mais postulado que empiricamente verificado, é o que o


nacionalismo (se amansado, civilizado e eticamente enobrecido) poderia ser
mas não é. O patriotismo é descrito pela negação dos traços mais rejeitados
e vergonhosos do nacionalismo. Leszek Kolakowski sugere que, enquanto o
nacionalista quer afirmar a existência tribal pela agressão e ódio aos outros,
acredita que todos os infortúnios de sua própria nação são resultado de
conspirações estrangeiras e se ressente contra todas as outras nações por não
admirarem apropriadamente nem darem o merecido crédito à sua própria
tribo, o patriota destaca-se pela “benevolente tolerância em relação à
variedade cultural e especialmente às minorias étnicas e religiosas”, assim
como por sua disposição de dizer à sua própria nação coisas que a
desagradam e que ela não gostaria de ouvir. (BAUMAN, 2001, l. 3195)

99
Nesse sentido, a ideia de nação postula que o pertencimento é
“um destino, não o produto de uma escolha ou de um projeto de
vida” (BAUMAN, 2001, l. 3222); sendo, assim, determinado desde
uma perspectiva externa. O patriotismo, por sua vez, é
caracterizado pela tolerância, hospitalidade e acessibilidade – na
medida em que “deixa a questão para os que perdem admissão”
(BAUMAN, 2001. l. 3257)
Apreendemos, diante desta reflexão, que nas produções
esportivas dos autores aqui analisados é possível encontrar ambos os
sentimentos: tanto de nacionalidade, quanto de patriotismo. Por um
lado, encontramos um imaginário de hostilidade e agressividade
entre equipes de futebol, sendo este esporte representado, muitas
vezes, como uma metáfora da guerra – que caracteriza o nacionalismo
na concepção de Bauman. Por outro lado, o futebol traz um
sentimento genuíno e voluntário de amor à pátria, característica
daquilo que Bauman denominou de patriotismo. A diferença racial é,
também, colocada como aspecto positivo – é justamente o que
diferencia o futebol presente no Brasil, no Uruguai e na América
Latina. Deste modo, é perceptível que os autores trazem, em suas
produções literárias, tanto sentimentos nacionalistas, quanto patriotas
- nos termos da teoria de Bauman.

4.2. IDENTIDADE: ALTERIDADE

Como vimos, a construção do imaginário das identidades nas


produções esportivas de Rodrigues e de Galeano sustenta-se em
uma afirmação acerca das características de seleções, que
naturalmente se opõem a outras características. Exemplificando: se
uma seleção nacional é caracterizada como veloz, por dedução é
possível concluir, também, que existem seleções lentas. Este jogo
com antônimos é uma estratégia constantemente utilizada pelos
autores, que empregam a oposição para enfatizar a grandiosidade
de determinadas seleções – e, consequentemente, de nações. Ao
mencionar a conquista do Brasil da Copa de 70, por exemplo, as

100
produções do brasileiro e do uruguaio são enfáticas em apontar o
quanto a equipe brasileira era talentosa e diferenciada:

Raríssimos acreditavam no Brasil. Um deles era o presidente, que me dizia:


— “Vamos ganhar, vamos ganhar” — e que, ainda no sábado, dava o seu
palpite para a finalíssima: — “Brasil 4 x 1”. Mas os “entendidos” juravam
que o futebol brasileiro estava atrasado trinta anos. E a famosa velocidade
européia? Essa velocidade existia entre eles, e para eles. Mas o Brasil ganhou
de todo mundo andando, simplesmente andando. Com a nossa morosidade
genial nós enterramos a velocidade burra dos nossos adversários.
(RODRIGUES, 1993, p. 214, 215)

Este trecho foi retirado da crônica rodrigueana publicada no


dia seguinte ao da conquista do tricampeonato pela seleção
brasileira, no jornal O Globo. É perceptível o empenho do autor em
demonstrar que a seleção opõe-se a uma velocidade incoerente e
inútil em sua visão: mesmo perante um imaginário de que as
seleções europeias fossem velozes, o Brasil foi capaz, na metáfora
rodrigueana, de vencer facilmente – em suas palavras, vencer
“andando”, a partir de uma genial e particular suavidade.
Da mesma forma, Galeano não deixa de elogiar a seleção
brasileira de 70 – que, a propósito, é reconhecida mundialmente
como uma seleção diferenciada, sendo frequentemente
considerada como a melhor equipe nacional que já existiu. Para o
uruguaio, em 70, a seleção brasileira apresentou um futebol
compatível com característica festiva e bonita de seu povo:

En el Mundial del 70, Brasil jugó un fútbol digno de las ganas de fiesta y la
voluntad de belleza de su gente. Ya se había impuesto en el mundo la
mediocridad del fútbol defensivo, con todo el cuadro atrás, armando el
cerrojo, y adelante uno o dos hombres jugando al solitario; ya habían sido
prohibidos el riesgo y la espontaneidad creadora. Y aquel Brasil fue un
asombro: presentó una selección lanzada a la ofensiva, que jugaba con cuatro
atacantes, Jairzinho, Tostão, Pelé y Rivelino, que a veces eran cinco y hasta
seis, cuando Gerson y Carlos Alberto llegaban desde atrás. En la final, esa
aplanadora pulverizó a Italia. (GALEANO, 2014, l. 1597)

101
Aqui, além do imaginário de um povo alegre e festivo,
Galeano determina o estilo de jogo brasileiro em oposição a um
futebol defensivo, que seria imposto no resto do mundo. A seleção
brasileira, contrariando a tendência mundial, caracterizava-se
como uma equipe ofensiva e destemida – reflexo, segundo
Galeano, do povo que representava.
Nesse sentido, concluímos, de maneira bastante simplista, que as
características determinantes na construção de uma identidade
inevitavelmente opõem-se a outras características. Stuart Hall, no
ensaio denominado Quem precisa de identidade?, publicado em 2003 no
livro Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais, reflete
sobre a questão e, dentre os debates propostos, destaca a importância
da existência da diferença na constituição das identidades:

Acima de tudo, e de forma diretamente contrária àquela pela qual elas são
constantemente invocadas, as identidades são construídas por meio da
diferença e não fora dela. Isso implica o reconhecimento radicalmente
perturbador de que é apenas por meio da relação com o Outro, da relação
daquilo que não é, com precisamente aquilo que falta, com aquilo que tem
sido chamado de seu exterior constitutivo, que o significado “positivo” de
qualquer termo – e, assim, sua “identidade” - pode ser construído (Derrida,
1981; Laclau, 1990; Buttler, 1993). As identidades podem funcionar, ao longo
de toda a sua história, como pontos de identificação e apego apenas por causa
de sua capacidade para excluir, para deixar de fora, para transformar o
diferente em “exterior”, em abjeto. Toda identidade tem, “à sua margem”,
um excesso, algo a mais. A unidade, a homogeneidade interna, que o termo
“identidade” assume como fundacional não é uma forma natural, mas uma
forma construída de fechamento: toda identidade tem necessidade daquilo
que lhe “falta” - mesmo que esse outro que lhe falta seja um outro silenciado
e inarticulado. (HALL, 2003, p. 110)

Estas reflexões são muito úteis para a análise da construção do


ideal de nação dos autores aqui estudados. Embora o ponto de partida
sejam seleções nacionais, essas produções literárias pretendem
afirmar características honradas de toda uma nação, em oposição a
outras características, na tentativa de subverter uma lógica econômica
mundial – na qual países latino-americanos frequentemente
encontram-se em desvantagem. O processo de construção de uma

102
identidade ocorre naturalmente a partir de outro referencial, como
esclarece Hall, e esta estratégia é constante nos textos dos autores. A
autoafirmação da qualidade do futebol brasileiro e uruguaio, que
reflete nobres características relacionadas às identidades nacionais, é
construída por meio da diferença. Rodrigues e Galeano, ao colocarem
o futebol brasileiro e uruguaio como dotados de beleza, alegria,
espotaneidade e criatividade, ressaltam a contraposição ao “outro” -
este “outro”, o adversário, é composto por características como
“velocidade burra” (RODRIGUES, 1993, p. 215) e “mediocridade
defensiva” (GALEANO, 2014, l. 1597). A construção da identidade,
como aponta Hall, se dá através da relação com o outro e, nos
exemplos aqui trazidos, o diferente é representado por meio de
características externas, inferiores e desprezíveis. Vejamos outros
exemplos desta construção nas produções literárias, a começar pelas
crônicas de Rodrigues:

Amigos, se me perguntarem qual é o maior defeito do futebol brasileiro, eu


direi: — a delicadeza e, reforço, a extrema delicadeza. De fato, não há na
Terra um craque que tenha a polidez do nosso. O brasileiro é um tímido, um
contido, um cerimonioso. Foi assim em 58, foi assim em 62. Nas duas Copas,
os adversários já entravam de navalha na liga.
Ao passo que, até no foul, o escrete verde-amarelo era de uma suavidade
impressionante. Vejamos em 58. O jogo Suécia x Alemanha foi uma
carnificina. Eu estava vendo a hora em que os adversários iam arrancar a
carótida uns dos outros para chupá-la como tangerina. Foram noventa
minutos de uma ferocidade recíproca e homicida. Valeu tudo,
rigorosamente tudo.
Pois o Brasil não fez um único e escasso vexame. Era de dar pena a correção
dos nossos rapazes. Jogavam na bola e só na bola. Jamais o mundo vira um
escrete tão doce e de uma inocência quase suicida. Um sociólogo que lá
estivesse havia de fazer a constatação apiedada: — “O escrúpulo é próprio
do subdesenvolvimento!” (RODRIGUES, 2013, p. 92)

O autor é enfático ao afirmar a suavidade do futebol brasileiro,


reflexo da polidez e educação de seu povo, e esta argumentação ocorre
em contraposição à característica de seus adversários, exemplificados,
aqui, em seleções europeias. Rodrigues esforça-se em estabelecer um
antagonismo entre um estilo pacífico e um estilo violento de jogo,

103
utilizando-se, como é característico de suas crônicas, de hipérboles
espalhafatosas para convencer o leitor – como, no trecho acima, a ideia
de atletas arrancando e chupando a carótida de seus adversários. Esta
idealização da educação e da urbanidade da seleção brasileira opõe-
se à violência feroz de seleções europeias – e esta conclusão é reflexo
da natureza de todo um povo:

A doçura, a cerimônia, a timidez do nosso futebol são defeitos gravíssimos.


Um jogador brasileiro tem vergonha de pisar na cara do adversário caído. O
europeu, não. O europeu não recua diante de nada. Vocês se lembram do
jogo Brasil x Alemanha, aqui, no Maracanã. Foi uma partida medíocre, mas
que teve um lance de epopeia.
Refiro-me à bola dividida entre Pelé e um alemão. Este não recuou, nem o
brasileiro. E o dilema criado para ambos foi o seguinte: — matar ou morrer.
O alemão preferiu matar e Pelé não quis morrer. O nosso levou vantagem
pelo seguinte: — porque introduziu no choque a molecagem brasileira.
Conclusão: — Pelé sobreviveu e o germânico saiu de maca.
A imprensa teve a reação própria do subdesenvolvido: — condenou Pelé. Se
a coisa fosse na Alemanha, e a vítima, Pelé, o cronista de lá ia considerar a
fratura um fato normal e intranscedente. Amigos, na Europa, o foul
praticamente não existe. O juiz só costuma apitar quando um adversário
estripa o outro.
E não há dúvida de que, por uma tendência natural e, ainda mais, por se
tratar de um tri, vão caçar os brasileiros a pauladas. Outrora, o brasileiro
babava de inveja e deslumbramento só de ouvir falar no inglês. Mas a
verdade é bem diferente. Hoje, sabemos que o único inglês da vida real é o
brasileiro. Sim, qualquer favelado nosso, desdentado e negro, é um monstro
de boas maneiras. (RODRIGUES, 2013, p. 92, 93)

Novamente, o autor estabelece uma contraposição entre a


educação e a delicadeza contra a violência e a brutalidade do
adversário, acrescentando que considera esta postura da seleção
brasileira como um “defeito gravíssimo”. Nesta citação, o autor
refere-se a uma partida entre Brasil e Alemanha, enfatizando,
novamente, a generalização do europeu. No lance “epopeico”
narrado, o jogador alemão procura atingir Pelé, que, como
resposta, utiliza-se tão somente de seu talento para se livrar do
ataque. O lance resulta na saída do alemão, que se machuca com a
jogada. O autor conclui, então, que a diferenciação de Pelé – e,

104
consequentemente, da seleção brasileira e do homem brasileiro – é
aquilo que chama de “molecagem”. Aqui, uma condição de vida
do homem brasileiro, ilustrado no homem “favelado”,
“desdentado” e “negro” é colocada como um fator importante,
como um diferenciador entre o brasileiro e o europeu. É seguindo
este raciocínio que Rodrigues chega à conclusão de que é o
brasileiro o verdadeiro “inglês” - é o brasileiro quem é
genuinamente dotado de “boas maneiras”, não obstante sua
condição. Esta argumentação, portanto, baseia-se no ideal de que o
brasileiro acabou se diferenciando a partir das dificuldades
vividas. Com esse pensamento, o autor enfatiza que o futebol
brasileiro é inimitável:

Na Suécia, o escrete era um ilustre desconhecido. Ninguém sabia dos nossos


dons, ninguém imaginava a graça, o sortilégio do nosso futebol. Os europeus
lançaram em campo o seu futebol todo medido, todo acadêmico, sem um
toque de fantasia, quadradíssimo. Muito bem. E o Brasil entrou com os seus
dons maravilhosos de molecagem, de malandragem. Cada jogada de um
Pelé, ou de um Mané, ou de um Didi, ou de um Zico vinha pesada, vinha
encharcada de imaginação. Os do Velho Mundo entraram pelo cano, e
vamos admitir: — tinham de entrar.
E quando, finalmente, os brasileiros voltaram da Suécia com o caneco no
bolso, os europeus raciocinaram: “Bem, a forra vai ser em 62!” Eles se
prepararam para 62. Estudaram planos formidáveis. E largaram-se para o
Chile, radiantes da vida e crentes que iam anular os Garrinchas, os Pelés. De
fato, o futebol da Europa está mudando. Mas isso não bastava. E tanto não
bastava que eles entraram pelo cano, outra vez.
Cabe então a pergunta: — e por quê?
É simples: — porque mudaram o futebol e não mudaram os homens. Os
brasileiros têm recursos que só eles próprios sabem usar. Por outro lado, a
sua qualidade humana é muitíssimo melhor. Amigos, vamos reconhecer
com sóbria e exata autocrítica: — não há, presentemente, no mundo, uma
figura humana tão complexa, tão rica, tão potencializada como o brasileiro.
Eis o óbvio, que nem todos enxergam: — o maior homem da época é o do
Brasil.
Os europeus podiam, sim, copiar, tanto quanto possível, o nosso futebol.
Mas não podiam imitar o inimitável, ou seja: — o homem brasileiro.
Garrincha é, por excelência, o incopiável. Pode-se imitar um europeu,
porque eles se parecem, como soldadinhos de chumbo. Mas quem pode
assemelhar-se a um Pelé? Ou a um Mané? Ou a um Zagalo? Ou a um

105
Amarildo, o Possesso? Para ter a agilidade, a imaginação, a molecagem, o
gênio de brasileiro, o tcheco não pode ser tcheco, precisa ser um brasileiro
nato (RODRIGUES, 2013, p. 28)

Além da contraposição entre a violência europeia e a polidez


brasileira, aparecem, aqui, outras características que diferenciam os
estilos de futebol: Rodrigues adiciona a ideia de fantasia e de
criatividade do estilo brasileiro, em contraposição a um futebol
tecnocrático, calculado, “quadrado”. E, embora o autor admita que
o futebol europeu esteja em evolução, jamais será possível, sob seu
ponto de vista, que seja alcançada a qualidade brasileira. Aqui,
mais uma vez, o autor argumenta que a seleção brasileira apresenta
um futebol superior em decorrência de um talento natural do
homem brasileiro. Em oposição, o Velho Mundo possui homens
idênticos – os “soldadinhos de chumbo” - que são desprovidos de
talento para o esporte. Rodrigues defende que qualquer esforço dos
europeus em estudar e tentar superar o Brasil é ineficiente, pois a
“molecagem” é exclusivamente e naturalmente brasileira. Na
crônica O escrete de loucos, publicada em 1962, Rodrigues defende
que, enquanto o brasileiro “vive de verdade e ferozmente”, o
europeu “faz uma imitação da vida” - e isso é consequência do
“mistério de nossos botecos, e a graça das nossas esquinas, e o
soluço das nossas cachaças, e a euforia dos nossos cafajestes”
(RODRIGUES, 2013, p. 45).
Galeano, como vimos, também abordou a temática do futebol
brasileiro frequentemente. A partir de pequenos textos, falava
sobre temas diversos – que variavam entre uma Copa do Mundo
específica, uma jogada importante, um determinado jogador, entre
outros. Ao escrever sobre jogadores brasileiros, o uruguaio
frequentemente realiza uma reflexão sobre um estilo de jogo. No
exemplo a seguir, Galeano fala sobre o jogador Friendenreich:

Este mulato de ojos verdes fundó el modo brasileño de jugar. Él rompió los
manuales ingleses: él, o el diablo que se le metía por la planta del pie.
Friedenreich llevó al solemne estadio de los blancos la irreverencia de los
muchachos de color café que gozaban disputando una pelota de trapo en los

106
suburbios. Así nació un estilo, abierto a la fantasía, que prefiere el placer al
resultado. Desde Friedenreich en adelante, el fútbol brasileño que es de
veras brasileño no tiene ángulos rectos, como tampoco los tienen las
montañas de Río de Janeiro ni los edifícios de Oscar Niemeyer. (GALEANO,
2014, l. 1237)

É perceptível, neste trecho, que Galeano, a partir do exemplo


de Friendeireich - jogador negro, filho de um homem alemão com
uma brasileira, que atuou pela seleção brasileira no início do século
XX - apresenta o surgimento de um estilo de jogo. Similarmente à
argumentação de Rodrigues, Galeano fundamenta seu discurso na
ideia de que o futebol brasileiro é caracterizado por uma
criatividade diferenciada, que não se utiliza de ângulos retos, mas
sim de uma naturalidade espontânea. Esta fantasia ocorre, para o
uruguaio, devido à preferência do prazer em jogar em relação à
preocupação com o resultado.
Referindo-se a um fenômeno da popularização do futebol na
América Latina, Galeano traz a ideia de reinvenção e
aperfeiçoamento do esporte na região, caracterizado pelas bolas
curtas e fintas na corrida. Diante deste novo futebol, Galeano traz
ao texto o exemplo de um escritor europeu, que reconhece o estilo
aqui presente como verdadeiro e autêntico:

Partido tras partido, la multitud se agolpaba para ver a aquellos hombres


escurridizos como ardillas, que jugaban al ajedrez con la pelota. La escuela
inglesa había impuesto el pase largo y la pelota alta, pero estos hijos
desconocidos, engendrados en la remota América, no repetían al padre.
Ellos preferían inventar un fútbol de pelota cortita y al pie, con
relampagueantes cambios de ritmo y fintas a la carrera. Henri de
Montherlant, escritor aristocrático, publicó su entusiasmo: «¡Una revelación!
He aquí al verdadero fútbol. Lo que nosotros conocíamos, lo que nosotros
jugábamos, no era, comparado con esto, más que un pasatiempo de
escolares». (GALEANO, 2014, l. 606)

Outra importante constatação presente tanto nos escritos de


Rodrigues como nos de Galeano relaciona-se com questões sociais e
raciais: ambos são enfáticos em defender que este estilo de jogo surge
a partir de uma condição de vida aqui presente. Na visão dos

107
autores, crescer na pobreza e ser negro são características que
singularizam e destacam os jogadores brasileiros. Esta questão
dialoga, inclusive, com uma discussão apresentada no segundo
capítulo, no qual abordamos algumas teorias que procuram explicar
a extraordinária popularização do esporte em nossa região.
Recordemos brevemente algumas ideias apresentadas pelos
estudiosos do fenômeno, segundo as quais o futebol apresenta: a
possibilidade de uma “horizontalização do poder” – através do
futebol, torna-se factível a experiência de um igualitarismo
inexistente na sociedade (DAMATTA, 1982) –; a possibilidade de
ascensão social a camadas que dificilmente ascendem na lógica
capitalista (DAMATTA, 1982); a ideia de que, para o homem negro,
o futebol aparece como uma possibilidade de emancipação,
sobretudo no contexto do início do século XX (ROSENFELD, 2007) e
a concepção de que o negro possui um talento natural e espontâneo
para o futebol (FREYRE, 1938; FILHO, 2010). É evidente que os
autores apresentam, também, esta teoria. Galeano, falando sobre
Garrincha, menciona a questão social, transmitindo a ideia de que o
futebol é um esporte democrático, que oferece oportunidades:

Alguno de sus muchos hermanos lo bautizó Garrincha, que es el nombre de


un pajarito inútil y feo. Cuando empezó a jugar al fútbol, los médicos le
hicieron la cruz: diagnosticaron que nunca llegará a ser un deportista este
anormal, este pobre resto del hambre y de la poliomelitis, burro y cojo, con
un cerebro infantil, una columna vertebral hecha una S y las dos piernas
torcidas para el mismo lado. Nunca hubo un puntero derecho como él. En el
Mundial del 58, fue el mejor en su puesto. En el Mundial del 62, el mejor
jugador del campeonato. Pero a lo largo de sus años en las canchas,
Garrincha fue más: él fue el hombre que dio más alegría en toda la historia
del fútbol. (GALEANO, 2014, l. 1237)

Ao falar da figura de Garrincha, Galeano evidencia que a


questão física e social não apenas não é um fator impeditivo, como
também um diferencial do jogador. Embora nascido na pobreza, e
mesmo carregando as sequelas da poliomielite, Garrincha é,
segundo Galeano, o melhor jogador do Mundial de 58: e é a sua
história de fome e de dificuldades físicas que o tornam dotado e

108
especial. Foi justamente a experiência dos jogos nos subúrbios que
ensinou o jogador a brincar e tornar o futebol uma festa
(GALEANO, 2014, l. 1237). Garrincha é, também, figura
frequentemente abordada nas crônicas rodrigueanas, como no
trecho a seguir:

Num simples lance isolado, está todo o Garrincha, está todo o brasileiro, está
todo o Brasil. E jamais Garrincha foi tão Garrincha, ou tão homem, como ao
imobilizar, pela magia pessoal, os onze latagões tchecos, tão mais sólidos,
tão mais belos, tão mais louros do que os nossos. Mas vejam vocês: de
repente, o Mané põe, num jogo de alto patético, um traço decisivo do caráter
brasileiro: — a molecagem. (RODRIGUES, 2013, p. 43)

Novamente Rodrigues trabalha, aqui, com a contraposição


entre o homem negro e branco, mencionando, ironicamente, a
concepção padronizada de beleza – os adversários são mais louros
e, consequentemente, mais belos que Garrincha. Outra ideia
presente é a colocação da “molecagem” brasileira como um
elemento diferenciador de nosso caráter, que reflete na qualidade
do futebol. Com essa argumentação, o autor prossegue
questionando uma lógica de dominação econômica, na qual o
Brasil está em desvantagem em relação a países europeus.
Retomemos, agora, a discussão teórica a respeito da formação
da identidade a partir da diferença em relação ao outro. Como
vimos, Stuart Hall apresenta a ideia de que as identidades existem
por meio da diferença, sendo constituídas “no interior do jogo do
poder e da exclusão” (HALL, 2003, p. 110, 111). Nesse sentido,
segundo o autor, as identidades só podem ser lidas a contrapelo –
“não como aquilo que fixa o jogo da diferença em um ponto de
origem e estabilidade, mas como aquilo que é construído na
différance ou por meio dela”. (HALL, 2003, p. 111) A existência do
outro é, portanto, de suma importância na própria construção das
identidades. A identidade é, então, afetada por outrem, e
consequentemente também o afeta. Sem este jogo de oposição,
resulta impossível a configuração deste imaginário.

109
Não é por acaso que Rodrigues e Galeano constantemente se
utilizam, como vimos, de um jogo de oposição, autoafirmando uma
identidade em relação a outra. A partir do exemplo do futebol
brasileiro – reflexo de uma identidade – outro estilo de futebol –
reflexo de outra identidade – é abordado. Nesta estratégia, os
autores necessitam de um exemplo oposto para defender seus
argumentos. Para Homi Bhabha, no livro O local da cultura, a
identificação nunca é previamente dada, não é autocumpridora, no
sentido de que só existe através da diferença:

Finalmente, a questão da identificação nunca é a afirmação de uma


identidade pré-dada, nunca uma profecia autocumpridora – é sempre a
produção de uma imagem de identidade e a transformação do sujeito ao
assumir aquela imagem. A demanda da identificação – isto é, ser para um
Outro – implica a representação do sujeito na ordem diferenciadora da
alteridade. A identificação, como inferimos dos exemplos precedentes, é
sempre o retorno de uma imagem de identidade que traz a marca da fissura
no lugar do Outro de onde ela vem. (BHABHA, 2001, p. 76, 77)

Nesse sentido, quando Nelson Rodrigues e Eduardo Galeano


falam sobre o futebol brasileiro – reflexo de uma identidade
nacional brasileira –, a identificação aparece sempre em relação ao
outro. Para afirmar essa identidade, uma série de qualidades foi
explorada, sempre em oposição a outras identidades, como
estratégia para criar uma singularidade. Vimos, nas amostragens
literárias aqui abordadas, que na visão dos autores o futebol
brasileiro é reflexo de uma identidade nacional, e que se caracteriza
por um estilo de jogo criativo, espontâneo, festivo, belo, destemido,
delicado, suave, dotado de naturalidade, polido, educado, ágil.
Para a composição deste imaginário, ocorre uma natural oposição
em relação a outras seleções – de maneira geral, europeias –,
definidas pela violência, pela tecnocracia, pela academia e
excessiva defensibilidade, representadas como desprovidas de
talento e naturalidade. Ademais, o elemento do homem negro é
apresentado como essencial na constituição desse estilo de jogo e
dessa identidade nacional, combatendo o pensamento eugênico

110
bastante presente no início do século XX na América Latina, que
determinava uma filosofia de branqueamento da população e a
“purificação das raças”. Rodrigues e Galeano não apenas
combatem este pensamento, como também defendem a ideia de
que é pontualmente a presença dos homens negros na América
Latina que faz com que seu povo seja tão extraordinário e
diferenciado – o que é plenamente visto na prática do futebol.
Para finalizar, cumpre mencionar que esta dicotomia entre a
polidez e a educação do futebol ocorre não apenas em relação à
seleção brasileira. Já demonstramos, ao longo desta pesquisa, que
Galeano possui uma perspectiva latino-americanista e
constantemente aborda o futebol de diversos países da região.
Nelson Rodrigues, embora enfoque sua visão sobre o Brasil,
também pensou a perspectiva de um futebol latino-americano,
sobretudo no intuito de ratificar a contraposição em relação ao
futebol europeu, que, como já vimos, afirma ser violento. Em
crônica publicada em 1966, Rodrigues aborda a seleção uruguaia,
argentina e brasileira, realizando a oposição entre um futebol
pacífico e um futebol agressivo:

Então eu vi que a tragédia do subdesenvolvimento não é só a miséria ou a


fome, ou as criancinhas apodrecendo. Não. Talvez seja um certo
comportamento espiritual. O sujeito é roubado, ofendido, humilhado e não
se reconhece nem o direito de ser vítima. Mas, senhor! No jogo Inglaterra x
Uruguai, presente a rainha, o facínora Stiles dá um tapa no uruguaio. Pois
sabem quem é o criminoso? É o uruguaio! Vejam vocês, o uruguaio! O
mesmo Stiles dá na cara de um francês e continua maravilhosamente
impune. No dia seguinte, ainda Stiles (sempre este homem fatal!) agride
outro adversário, e nada lhe acontece.
Pelé foi exterminado a coices por trás, e a tal mesa-redonda não estranha,
não vê nada de inusitado? O time da Argentina, antes de jogar com a
Inglaterra, foi advertido e ameaçado. E essa coação miserável, deslavada não
impressiona o sr. [Alberto da Gama] Malcher? O sr. Rui Porto fala em
“rispidez”. Foi, por acaso, ríspido o assassinato de Pelé? E o pior vocês não
sabem! No fim, levanta-se alguém, deplorando a histeria do brasileiro, que
só sabe ganhar e não sabe perder.
Oh, meu Deus do céu! Virgem Santíssima! Nós já somos um povo que não
faz outra coisa senão perder! Olhem a nossa cara. Reparem: — é a cara da

111
derrota. Afinal de contas, o que é o subdesenvolvimento se não a derrota
cotidiana, a humilhação de cada dia e da cada hora? E é uma ignomínia que
venha alguém dizer a esse povo desesperado: — “Vá perdendo! Continue
perdendo! Aprenda a perder!” (RODRIGUES, 2013, p. 52, 53)

É evidente, aqui, a consideração do cronista em relação a um


estilo de jogo sul-americano. Neste trecho, as seleções uruguaia,
brasileira e argentina são vítimas de uma agressividade europeia –
e, não bastando a violência dos adversários, as referidas seleções
ainda são culpabilizadas. Então, Rodrigues conclui, a partir da
referência futebolística, o que é o subdesenvolvimento: uma
humilhação constante. Em outras passagens, o autor afirma a
qualidade do futebol latino-americano, mencionando o quanto é
difícil enfrentar seleções da região. Mas, mesmo com esta
consideração, o futebol brasileiro segue sendo considerado o
melhor do mundo em suas crônicas. A partir deste exemplo, é
perceptível o jogo de oposições na construção de um imaginário
latino-americano.
Galeano também cria um imaginário de um futebol
reinventado por crioulos, ao abordar o surgimento de um estilo
próprio, relacionado a uma dança específica presente no Uruguai e
na Argentina. Rememorando a Copa de 1930, cujo primeiro e
segundo lugar ficaram, respectivamente, com o Uruguai e a
Argentina, o autor afirma: “Al fin y al cabo, se estaba repitiendo la
historia de las Olimpíadas de Amsterdam, en 1928: los dos países
del río de la Plata ofendían a Europa mostrando dónde estaba el
mejor fútbol del mundo” (GALEANO, 2014, l. 728). No Brasil, o
enriquecimento do esporte ocorre através da prática por homens
pobres. O futebol originário da Europa aqui encontrava um local
propício para se aperfeiçoar.

En las canchas de Buenos Aires y de Montevideo, nacía un estilo. Una


manera propia de jugar al fútbol iba abriéndose paso, mientras una manera
propia de bailar se afirmaba en los patios milongueros. Los bailarines
dibujaban filigranas, floreándose en una sola baldosa, y los futbolistas
inventaban su lenguaje en el minúsculo espacio donde la pelota no era
pateada sino retenida y poseída, como si los pies fueran manos trenzando el

112
cuero. Y en los pies de los primeros virtuosos criollos, nació el toque, la
pelota tocada como si fuera guitarra, fuente de música.
Simultáneamente, el fútbol se tropicalizaba en Río de Janeiro y San Pablo.
Eran los pobres quienes lo enriquecían, mientras lo expropiaban. Este
deporte extranjero se hacía brasileño a medida que dejaba de ser el privilegio
de unos pocos jóvenes acomodados, que lo jugaban copiando, y era
fecundado por la energía creadora del pueblo que lo descubría. Y así nacía
el fútbol más hermoso del mundo, hecho de quiebres de cintura,
ondulaciones de cuerpo y vuelos de piernas que venían de la capoeira, danza
guerrera de los esclavos negros, y de los bailongos alegres de los arrabales
de las grandes ciudades. (GALEANO, 2014, l. 447)

A construção de um imaginário de identidade é, portanto,


realizada a partir de outro referencial, como vimos em inúmeros
exemplos nas produções esportivas dos autores. A identidade é
nesse sentido, relacional: as identidades brasileira, uruguaia e
argentina – e latino-americanas, de maneira geral – são
constantemente abordadas como polidas, naturais, dotadas de
talento e de imaginação; em oposição a características relacionadas
à violência e à extrema objetividade europeia. A presença do
homem pobre e negro marca um estilo diferenciado e aprimorado,
e assim os autores procuram inverter uma lógica econômica, na
qual a Europa encontra-se em vantagem em relação à América
Latina.

4.3. IDENTIDADE EM QUESTÃO: DO FUTEBOL NACIONAL


AO PÓS NACIONAL

Além de sustentar o discurso da identidade em contraposição


em relação à alteridade, as produções esportivas dos autores aqui
analisados partem do pressuposto de que o futebol é
indiscutivelmente um elemento idolatrado pela totalidade da
população, sem exceções. A partir deste discurso, a ideia de
homogeneidade é construída e claramente ilustrada na ocasião das
Copas Mundiais. Os autores constantemente mencionam a
festividade presente na região na época dos campeonatos.

113
Rodrigues, em crônica escrita no dia anterior à partida final da
Copa de 1962, na qual o Brasil consagrou- se campeão, escreveu:

Ao soar o apito final, cada brasileiro presente sentiu-se fisicamente


implicado no triunfo. Aliás, o bi foi um êxito pessoal de 75 milhões de
sujeitos. Todos nós “ganhamos”, todos nós “chutamos”. E, depois do match,
cada um de nós tinha as canelas materialmente esfoladas. (RODRIGUES,
1993, p. 108)

Aqui, fica clara a imagem da totalidade da população


brasileira envolvida na conquista, sendo a vitória representada
como uma conquista pessoal de 75 milhões de pessoas – cujas
canelas estavam, sem exceções, metaforicamente esfoladas. Anos
depois, na estreia do Brasil na Copa do México de 1970, o autor
descreve uma cidade enlouquecida por um sentimento coletivo de
identidade e de fascínio unânime pelo futebol:

E, por isso, entendo que a cidade se levantasse em gigantesca apoteose.


Aquele corso dos velhos carnavais voltou. As buzinas estavam de uma
formidável histeria. Um turista que por aqui passasse e visse 5 milhões de
sujeitos urrando havia de anotar no seu caderninho: — “Esta cidade
enlouqueceu!”. E, realmente, ficamos loucos. As pessoas se olhavam na rua
e diziam umas para as outras: — “Somos brasileiros!”. Ruiu, por terra, a
sinistra impostura do futebol europeu. Sempre disse que seus jogadores têm
uma saúde de vaca premiada. Já começo a achar que até nisso levamos
vantagem; que a saúde de vaca premiada temos nós.
Choviam papel picado das sacadas, e listas telefônicas. Serpentinas, confete,
lança-perfume. Ou por outra: — lança-perfume, não. Mas confete e
serpentina, sim. Todos os automóveis incendiados de bandeiras. Mas o que
eu achei mais bonito vocês não sabem. Eis o que aconteceu: — já que não lhe
faziam a justiça, o escrete fez justiça a si mesmo. (RODRIGUES, 1993, p. 192)

A festa da cidade na ocasião da primeira disputa brasileira


naquela Copa é representada, pelo autor, como universal, histérica
e apoteótica, de modo que apenas um turista seria capaz de
diagnosticar a loucura dos milhões de sujeitos que torciam pela
seleção.
Assim como Rodrigues, Galeano procurou enfatizar que toda
a população uruguaia interessa-se por futebol e torce pela seleção.

114
O autor retrata a unanimidade em torno de uma partida uruguaia
– diante desse evento, todos voltam suas atenções à disputa:

Sin embargo, no hay ningún uruguayo que no se considere doctor en tácticas


y estrategias del fútbol y erudito en su historia. La pasión futbolera de los
uruguayos viene de aquellas lejanías, y todavía sus hondas raíces están a la
vista: cada vez que la selección nacional juega un partido, sea contra quien
sea, se corta la respiración del país y se callan la boca los políticos, los
cantores y los charlatanes de feria, los amantes detienen sus amores y las
moscas paran el vuelo (GALEANO, 2014, l. 630)

Sendo um latino-americanista, Galeano também insere todo o


continente na relação entre identidade e futebol, proclamando a
importância deste esporte na realidade da região – para o autor, às
vezes o futebol ocupa o mais importante dos lugares:

Pocas cosas ocurren, en América Latina, que no tengan alguna relación,


directa o indirecta, con el fútbol. Fiesta compartida o compartido naufragio,
el fútbol ocupa un lugar importante en la realidad latinoamericana, a veces
el más importante de los lugares, aunque lo ignoren los ideólogos que aman
a la humanidad pero desprecian a la gente. (GALEANO, 2014, l. 2512)

Deste modo, a imagem de uma cidade enlouquecida em


decorrência de uma vitória no futebol – presente na crônica
rodrigueana – e a ideia da totalidade da população uruguaia
envolvida no esporte – explicitada no trecho que trouxemos de
Galeano – fornecem uma ideia de homogeneidade em relação ao
futebol, bem como de um sentimento de fraternidade coletiva. O
futebol está, nessas produções literárias, associado diretamente à
identidade e à nacionalidade.
Nesse sentido, é evidente que os autores defendem
veementemente o caráter nacional do esporte, enfatizando a
existência de um estilo de jogo próprio e de uma predisposição à
sua prática em determinados lugares do mundo – a ideia de que o
futebol latino-americano é diferenciado aparece, como vimos na
sessão anterior, nas produções esportivas dos dois autores.
Vivenciando uma conjuntura em que se intensificam movimentos
migratórios de jogadores de futebol em decorrência de um

115
processo de mercantilização do esporte e profissionalização dos
atletas, entretanto, os autores sentem os efeitos de um fenômeno
que descentra o futebol em relação às identidades nacionais. Em
crônica intitulada O escrete é nosso!, publicada no ano de 1958,
Rodrigues aborda a questão da venda de jogadores, defendendo a
ideia de que esses esportistas deveriam ser incompráveis:

Ninguém se lembra de uma verdade tão transparente e tão óbvia: — os


campeões do mundo deviam ser incompráveis.
O jornalista Mário Filho, com sua implacável lucidez, viu, melhor e antes do
que ninguém, o grande problema do momento. Em suma: — ele faz um
apelo no sentido de que se defenda, aqui, com unhas e dentes, a integridade
do maior escrete que olhos mortais já contemplaram. E, de fato, amigos. O
futebol brasileiro praticará um suicídio se permitir, por uma questão de
cifras, que se desintegre a equipe que deslumbrou o mundo. Objetará
alguém que é um negócio para qualquer clube vender um Vavá, ou um
Garrincha, ou um Didi por uma quantia tremenda.
Ilusão! Um Garrincha, um Didi ou Vavá não tem preço. E se assim acontece
com os craques individualmente, que dizer do escrete? Ora, a equipe que
levantou a Taça Jules Rimet em 58 não é um conjunto qualquer. É um quadro
que, segundo o testemunho dos críticos europeus, alcançou o nível mais alto
do futebol, em qualquer tempo. (RODRIGUES, 2013, p. 18, 19)

Notamos, aqui, com clareza, que Rodrigues se sente


incomodado com o fenômeno de compra e venda de jogadores, que
já estava ocorrendo na época. Esta mercantilização é colocada pelo
autor como “o grande problema do momento”, e acaba afetando o
maior escrete do mundo: no drama rodrigueano, este processo é
um suicídio nacional. Consciente das consequências que a
exportação de jogadores acarreta, o autor demonstra sua angústia
ao escrever sobre o fenômeno, e conclui:

Os clubes poderão usar o argumento de um lucro certo e imenso. Ao que eu


respondi: — lucro apenas aparentemente, falso lucro.
A venda de um campeão do mundo, qualquer que seja o seu preço, implica
num prejuízo real e irrecuperável. E se os nossos clubes fossem menos
obtusos, já teriam percebido que deviam chutar os milhões que o mundo
oferecer pelos nossos supercraques. Mário Filho tem uma razão total: —
cumpre ao futebol brasileiro não desistir do seu escrete.

116
Permitir a dissolução da equipe não será um crime, porque é, antes de tudo,
um suicídio.
Um Garrincha, ou Didi, ou Vavá ou qualquer campeão do mundo devia ser
amarrado, solidamente, num pé de mesa, para que ninguém o arrancasse
daqui. (RODRIGUES, 2013, p. 19)

O protecionismo de Rodrigues em relação à permanência dos


jogadores brasileiros é, fundamentalmente, um protesto contra a
desintegração da seleção e de seu caráter nacional. Vendê-los
representa a desistência da seleção; isto seria, para o autor, um
crime e um suicídio. Já foi dito o quanto a seleção importa para
Rodrigues, que frequentemente a coloca no mesmo patamar dos
problemas relativos à miséria e à baixa taxa de alfabetização
brasileiros. Então, nessa fala desesperada, o autor finaliza com a
proposta de “amarrar” os esportistas em um pé de mesa,
impedindo o processo de evasão.
Galeano, assim como Rodrigues, posiciona-se contra o
fenômeno de comercialização do futebol. Esta posição fica evidente
quando o autor memoriza a Copa do Mundo de 1994, na qual o
Brasil conquista o tetracampeonato:

Cuando Brasil conquistó su cuarto trofeo mundial, los periodistas lo


celebraron por unanimidad, aunque algunos no ocultaron su nostalgia por
las maravillas de otros tiempos. El equipo de Romario y Bebeto había hecho
un fútbol eficaz, pero había sido bastante avaro en poesía: un fútbol mucho
menos brasileño que aquel fútbol espléndido de 1958, 1962 y 1970, cuando
las selecciones de Garrincha, Didí y Pelé se habían coronado jugando en
trance. Más de uno habló de crisis de talento, y varios comentaristas
acusaron al estilo de juego, exitoso pero sin magia, impuesto por el director
técnico: Brasil había vendido el alma al fútbol moderno. Pero hay un hecho
también revelador, que casi no fue mencionado: aquellas selecciones del
pasado estaban formadas por once brasileños que jugaban en Brasil. En el
equipo del 94, ocho de los once jugaban en Europa. Romario, el jugador
latinoamericano más cotizado, estaba recibiendo en España un sueldo
mayor que la suma de los once salarios, relativamente modestos, que
recibían en Brasil los jugadores de 1958, entre los cuales estaban algunos de
los mejores artistas de la historia del fútbol. (GALEANO, 2014, l. 2391 - 2410)

117
Nota-se, a partir dos escritos dos autores, que o processo de
comercialização do futebol, que começa a se estabelecer quando
Rodrigues publica suas crônicas, já está consolidado no contexto
em que Galeano escreve: o uruguaio afirma que a equipe de 94 é
bem diferente das equipes que venceram as 3 copas anteriores, em
consequência de um processo de entrega à lógica do futebol
moderno. O fato da maioria dos jogadores – 8, dos 11 titulares –
atuarem na Europa é decisivo para o diagnóstico: o Brasil vence a
competição, mas com um futebol técnico, desprovido da magia que
tanto caracterizava o estilo brasileiro na visão dos autores.
A partir da abordagem da profissionalização do futebol, os
autores sentem os efeitos da exportação de jogadores e da
globalização. Temendo a desintegração de seleções nacionais,
combatem veementemente a profissionalização do esporte:

Objetará alguém que eu estou misturando alhos com bugalhos. Nem tanto,
amigos, nem tanto. Qualquer profissão há de ter um sentido ético que a
justifique e valorize. O futebol profissional exige dinheiro, mas não só
dinheiro. Ele implica algo mais, ou seja: implica os tais valores gratuitos que
conferem a um jogo, a uma pelada uma dimensão especialíssima.
Um match representa algo mais que pontapés. Participam da luta dois clubes
e todos os seus bens morais, afetivos, líricos, históricos. (RODRIGUES, 2013,
p. 20, 21)

A profissionalização, no pensamento rodrigueano, surge como


um processo que desintegra valores éticos que tornam as partidas
especiais e valorosas: para o autor, o futebol vai muito além de
questões financeiras; os princípios que tornam o futebol um esporte
tão extraordinário são, em verdade, gratuitos e dotados de uma
simbologia afetiva que envolve um sentimento de fidelidade.
Galeano, da mesma forma, acredita que a moral do mercado
domina todos os setores da sociedade, e que o futebol profissional
é inescrupuloso, já que considera apenas princípios relacionados à
eficácia – ignorando, assim, os valores morais do esporte.

La moral del mercado, que en nuestro tiempo es la moral del mundo,


autoriza todas las llaves del éxito, aunque sean ganzúas. El fútbol

118
profesional no tiene escrúpulos, porque integra un inescrupuloso sistema de
poder que compra eficacia a cualquier precio. (GALEANO, 2014, l. 2038)

Este fenômeno apontado por Rodrigues e Galeano em relação


à profissionalização dos esportes relaciona-se com a hipótese de
que ocorre, no final do século XX, um fenômeno que altera
drasticamente as estruturas do futebol. Fernanda Ribeiro Haag, no
artigo Futebol e o giro neoliberal: apontamentos e o caso brasileiro, afirma
que o vínculo entre o capitalismo e o futebol remonta desde o
surgimento da prática esportiva, mas que a partir da década de 70
o futebol passa por aquilo que chama de “giro neoliberal”: neste
contexto, ocorre a dilatação da esfera da mercadoria, verificando-
se “a penetração da lógica do capitalismo na esfera da cultura”
(HAAG, 2013, p. 62). Nesse sentido, as artes e a cultura passam a
ser potenciais mercadorias, e o futebol aparece, nessa conjuntura,
como um lucrativo produto:

Como a lógica do capitalismo tardio é cultural e com a cultura imiscuída ao


econômico e se tornando produto, apreende-se que isso se passa com o
futebol. Ou seja, o futebol se torna uma mercadoria em si e passa a ser
essencial para economia do capitalismo, pois ajuda a sustentar a necessidade
de consumo, gerando lucros e alimentando o sistema. Ademais, o esporte
em geral vende muito bem os produtos e valores dominantes do capitalismo
tardio. E o futebol é fundamental para a indústria do entretenimento, pois é
uma mercadoria extremamente fácil de ser vendida das mais diferentes
formas e através dos mais distintos produtos. (HAAG, 2013, p. 63)

Este processo relaciona-se, portanto, ao desenvolvimento do


fenômeno da globalização – em curso no contexto em que escrevem
os autores – e marca uma ruptura no futebol. Como vimos, os
autores vivenciam e se preocupam com a exportação dos jogadores
– fenômeno que decorre da comercialização da cultura –, tendo em
vista o fato de que as seleções passam a ser compostas cada vez
mais por atletas que atuam em diversas localidades do mundo, e
que este processo faz com que o estilos de jogo se fragmentem.
Há uma relação direta deste debate com a questão das
identidades. O fenômeno da globalização traz consigo um

119
desligamento dos vínculos imaginados que relacionam os sujeitos
a uma determinada nação. O debate teórico acerca das identidades
é, à luz de um novo contexto, atualizado e ressignificado. Stuart
Hall, em seu livro A identidade cultural da pós-modernidade,
publicado pela primeira vez em 1992, é um dos autores que
renovam esta discussão. Segundo o autor, as culturas nacionais são
um discurso que, ao produzir sentidos sobre “a nação” - sentidos
com os quais podemos nos identificar – constroem identidades:

(…) não importa quão diferentes seus membros possam ser em termos de
classe, gênero ou raça, uma cultura nacional busca unificá-los numa
identidade cultural, para representá-los todos como pertencendo à mesma e
grande família nacional, Mas seria a identidade nacional uma identidade
unificadora desse tipo, uma identidade que anula e subordina a diferença
cultural? (HALL, 2005, p. 59)

A ênfase no futebol como importante elemento na cultura


brasileira e uruguaia por parte dos autores que estamos aqui
analisando constitui, como vimos, uma tentativa de elaborar um
discurso identificável por todos os membros da nação,
indistintamente. Na contramão deste discurso, a chave da teoria de
Hall, de modo geral, fundamenta-se no argumento de que não há
uma identidade – seja pessoal, seja nacional – unificada e estável.
Ele procura, nesse sentido, desconstruir a ideia de que a cultura
nacional é simplesmente um ponto de lealdade, união e
identificação simbólica. Ela é, para o autor, uma estrutura de poder
cultural, na medida em que a maioria da construção das nações
consiste em culturas separadas que só foram unificadas a partir de
um longo processo de conquista violenta e pela supressão forçada
da diferença cultural. Nesse sentido, os “começos violentos que se
colocam nas origens das nações modernas têm, primeiro, que ser
‘esquecidos’, antes que se comece a forjar a lealdade com uma
identidade nacional mais unificada, mais homogênea” (HALL,
2005, p. 60). Hall argumenta que as velhas identidades
estabilizadoras estão em declínio, e que no lugar delas surgem
novas identidades, a partir do processo de fragmentação do sujeito

120
moderno. Para o autor, as identidades são, atualmente,
descentradas, deslocadas e fragmentadas – essa mudança
estrutural está transformando as sociedades modernas desde o
final do século XX, na medida em que passou a fragmentar as ideias
culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade,
que, no passado, forneceram aos homens sólidas localizações como
indivíduos sociais. Tais transformações afetam, também, as
identidades pessoais, abalando a ideia construída em torno da
existência de sujeitos integrados (HALL, 2005, p. 9). As
identificações são, assim, provisórias e variáveis, e o resultado
deste processo é o sujeito pós-moderno, destituído de uma
identidade fixa, essencial ou permanente. Nas palavras de Hall,

A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma


fantasia. Ao invés disso, à medida em que sistemas de significação e
representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma
multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com
cada uma das quais poderíamos nos identificar - ao menos
temporariamente. (HALL, 2005, p. 13)

O sociólogo Zygmunt Bauman, impulsionado pelo interesse


acerca da identidade, também dá a sua contribuição teórica em
relação ao tema. O autor responde, em entrevista ao jornalista
Benedetto Vecchi, a várias indagações sobre questões relacionadas
a terminologias como comunidade, pertencimento e identidade. O
diálogo é publicado em um livro intitulado Identidade, em 2004.
Bauman defende, de maneira análoga ao pensamento de Hall, que
a identidade nasceu como ficção e que, nesse sentido, precisava de
muita coerção e convencimento para se consolidar e concretizar
numa realidade. A história do nascimento e da maturação do
Estado moderno foi permeada, segundo o autor, por essa
coercitividade (BAUMAN, 2005). Para ele,

A “identidade nacional” foi desde o início, e continuou sendo por muito


tempo, uma noção agonística e um grito de guerra. Uma comunidade
nacional coesa sobrepondo-se ao agregado de indivíduos do Estado estava
destinada a permanecer não só perpetuamente incompleta, mas

121
eternamente precária - um projeto a exigir uma vigilância contínua, um
esforço gigantesco e o emprego de uma boa dose de força a fim de assegurar
que a exigência fosse ouvida e obedecida (...). (BAUMAN, 2005, l. 324)

Importa destacar, diante desses apontamentos teóricos que


indicam a insuficiência da afirmação da estabilidade das identidades
nacionais, que, a despeito de Rodrigues e Galeano terem se
esforçado em afirmar a homogeneidade de suas nações em torno do
futebol, os sinais da fragmentação desses discursos aparecem e
relacionam-se ao processo de globalização. Vimos, ao longo deste
trabalho, o quanto os autores possuem apreço a estilos de jogo que
caracterizam as seleções nacionais. Este imaginário das identidades,
entretanto, está ameaçado pelo processo de mercantilização do
esporte, como bem percebem os autores. Rodrigues evidencia a
especulação em torno do futebol brasileiro, prenunciando a ameaça
de um processo que, em seu tempo, se iniciava:

Neste momento, o mundo todo está de olho no fabuloso escrete brasileiro.


A toda hora e em toda a parte, há quem chegue e rosne ao nosso ouvido: —
“Ofereceram tanto por fulano, tanto por cicrano, tanto por beltrano!” São os
grandes clubes de fora, da Espanha, da Itália, da França, de não sei onde que
acenam os seus milhões para os campeões do mundo. Mazzola já foi
pescado. E há ofertas nababescas para Pelé, Vavá, Didi, Garrincha, etc. etc.
(RODRIGUES, 2013, p. 18)

É possível notar, de maneira ainda mais enfática, os sinais


dessa fragmentação das seleções nacionais nos escritos de Galeano,
considerando que o autor produz até 2014. Ao narrar a Copa do
Mundo de 1998, sediada na França – que na ocasião se consagrou
campeã –, o autor apresenta a questão da seleção francesa ser
composta majoritariamente por imigrantes:

Fueron inmigrantes, o hijos de inmigrantes, casi todos los jugadores que


vistieron la camiseta azul y cantaron La Marsellesa antes de cada partido.
Thuram, elevado a la categoría de héroe nacional por dos golazos, Henry,
Desailly, Viera y Karembeu venían del África, de las islas del mar Caribe o
de Nueva Caledonia. Los demás provenían, en su mayoría, de familias
vascas, armenias o argentinas. Zidane, el más aclamado, es hijo de argelinos.

122
Zidane presidente, escribieron manos anónimas, el día de la celebración, en
el frontón del Arco del Triunfo.
¿Presidente? Hay muchos árabes, o hijos de árabes, en Francia, pero ni uno
solo es diputado. Y ministro, ni hablar.
Una encuesta, publicada durante el Mundial, confirmó que cuatro de cada
diez franceses tienen prejuicios racistas. El doble discurso del racismo
permite ovacionar a los héroes y maldecir a los demás. El trofeo mundial fue
festejado por una multitud solo comparable a la que desbordó las calles, hace
más de medio siglo, cuando llegó a su fin la ocupación alemana.
(GALEANO, 2014, l. 2532)

Referindo-se à Copa de 2010, Galeano traz como exemplo o


caso de dois irmãos ganeses – um deles jogava pela seleção alemã;
o outro, representava Gana – que não atuavam em seus países.
Como conclusão, o uruguaio conclui que a África exporta à Europa
tanto mão quanto “pé” de obra:

Muchos de los jugadores africanos dignos de su herencia de buen fútbol,


viven y juegan en el continente que había esclavizado a sus abuelos. En uno
de los partidos del Mundial, se enfrentaron los hermanos Boateng, hijos de
padre ghanés: uno llevaba la camiseta de Ghana, y el otro la camiseta de
Alemania. De los jugadores de la selección de Ghana, ninguno jugaba en el
campeonato local de Ghana. De los jugadores de la selección de Alemania,
todos jugaban en el campeonato local de Alemania. Como América Latina,
África exporta mano de obra y pie de obra. (GALEANO, 2014, l. 2688)

É nítido, nesta passagem de Galeano, que a tendência da


formação das seleções nacionais não necessariamente respeita a
nacionalidade dos atletas. No intuito de vencer a Copa, a
composição da seleção francesa de 1998 é caracterizada por
jogadores de diversas nacionalidades – imigrantes ou filhos de
imigrantes. Esta composição é, no fundo, reflexo de um processo
intenso de migrações que caracteriza o final do séc. XX. Este
fenômeno migratório também é abordado por Stuart Hall no
debate sobre o descentramento das identidades na pós-
modernidade:

Num mundo de fronteiras dissolvidas e de continuidades rompidas, as


velhas certezas e hierarquias da identidade britânica têm sido postas em

123
questão. Num país que é agora repositório de culturas africanas e asiáticas,
o sentimento do que significa ser britânico nunca mais pode ter a mesma
velha confiança e certeza. O que significa ser europeu, num continente
colorido não apenas pelas suas antigas colônias, mas também pelas culturas
americanas e agora pelas japonesas? A categoria da identidade não é, ela
própria, problemática? É possível, de algum modo, em tempos globais, ter-
se um sentimento de identidade coerente e integral? (HALL, 2005, p. 84)

O fenômeno da migração claramente aparece como um


importante processo no descentramento de identidades: Galeano, ao
abordar a seleção francesa de 1998, essencialmente está se referindo
à influência das migrações humanas sobre o futebol. Essas mesmas
migrações são apontadas por Hall ao problematizar o significado do
que é ser europeu, considerando um contexto em que o continente
está imiscuído de uma diversidade cada vez maior de culturas, e
consequentemente de uma sociedade extremamente heterogênea.
Para Hall, são justamente os processos de migração e da compressão
do espaço e do tempo – característicos da globalização – que
oferecem um impacto sobre as identidades nacionais:

Como conclusão provisória, parece então que a globalização tem, sim, o


efeito de contestar e deslocar as identidades centradas e “fechadas” de uma
cultura nacional. Ela tem um efeito pluralizante sobre as identidades,
produzindo uma variedade de possibilidades e novas posições de
identificação, e tornando as identidades mais posicionais, mais políticas,
mais plurais e diversas; menos fixas, unificadas ou trans-históricas. (HALL,
2005, p. 87)

Chegamos, então, à hipótese central deste trabalho: o


fenômeno narrado e temido por Rodrigues e Galeano de
mercantilização do futebol e exportação de jogadores nos leva a
refletir, essencialmente, acerca de um processo de desassociação
entre o futebol e o sentimento de nacionalidade. Os autores
vivenciam um processo de enfraquecimento do futebol como
provedor de sentimentos de identidade nacional, e a angústia é
sentida em suas produções. Como vimos, ambos são defensores
ferrenhos de seleções genuinamente nacionais, e elaboram um
discurso protecionista em relação aos jogadores.

124
Trouxemos, no início desta sessão, trechos que ilustram o
quanto os autores pensam na concordância unânime e fraternal de
um povo em relação à nação, e o futebol funciona como um
impulsionador deste sentimento. Se a globalização é, como
apontam Hall e Bauman, um significativo fator no processo de
descentramento e fragmentação de identidades; este mesmo
fenômeno, aliado à mercantilização cada vez mais desenfreada do
lucrativo mercado futebolístico, desloca o esporte para o campo
econômico: o futebol passa a ser menos um elemento de rito
identitário para se firmar como um produto de entretenimento.
Em crônica publicada em 1964, fora do contexto de Copa do
Mundo, Rodrigues apresenta essa preocupação com a excessiva
internacionalização da equipe de Pelé – o Santos. Para o autor, o fato
da equipe viajar constantemente e enfrentar clubes com diferenciados
sotaques reflete diretamente na qualidade de seu futebol:

Um quadro que tem Pelé está na obrigação de ganhar de todo mundo. E por
que perde? Porque deixou de ser um time brasileiro. Sim, transformou-se
numa equipe internacional. Reparem: — o Santos faz turismo no Brasil. Um
dia está na Argentina; em seguida, no Chile; e, depois, na Bolívia, no Peru.
Seus jogadores são aplaudidos, vaiados e xingados em todos os idiomas.
A meu ver, baixou no Santos o tédio desesperador de tantas viagens. Que
espécie de estímulo pode ter um time cujos adversários mudam de sotaque
três vezes por semana? A equipe voltaria à sua melhor forma, ao seu grande
ímpeto, se parasse. Ponham o Santos para jogar no Maracanã, só no
Maracanã. Eu não diria no Pacaembu. Em São Paulo há um ressentimento
contra o quadro de Vila Belmiro. Mas aqui, no maior estádio do mundo, o
Santos tornaria a encontrar o seu clima. (RODRIGUES, 1993, 127)

Nesta crônica, Rodrigues afirma que o jogador Didi – que


atuou pela seleção brasileira – ao jogar fora do país, fracassa, vítima
da nostalgia: “contam que, nas tardes frias, ele só faltava uivar de
saudade”. (RODRIGUES, 1993, p. 126).
Galeano, atento aos fenômenos da sociedade que acabam
refletindo no futebol, menciona, no texto intitulado Una industria de
exportación, o itinerário do jogador talentoso da região que denomina
“sul do mundo” - esta terminologia é frequentemente utilizada para

125
contrapor países dominantes e países dominados. O autor lamenta a
indústria de exportação presente no Uruguai, afirmando que os
jogadores da seleção uruguaia, disseminados pelo mundo, não se
convertem mais em uma verdadeira equipe – como acontecia antes da
comercialização futebolística. Este processo faz com que o público seja
cada vez menos numeroso e fervoroso:

Una industria de exportación


Al sur del mundo, éste es el itinerario del jugador con buenas piernas y
buena suerte: de su pueblo pasa a una ciudad del interior; de la ciudad del
interior pasa a un club chico de la capital del país; en la capital, el club chico
no tiene más remedio que venderlo a un club grande; el club grande,
asfixiado por las deudas, lo vende a otro club más grande de un país más
grande; y finalmente el jugador corona su carrera en Europa.
En esta cadena, los clubes, los contratistas y los intermediarios se quedan
con la parte del león. Y cada eslabón confirma y perpetúa la desigualdad
entre las partes, desde el desamparo de los clubes de barrio en los países
pobres hasta la omnipotencia de las sociedades anónimas que en Europa
manejan el negocio del fútbol al más alto nivel.
En Uruguay, por ejemplo, el fútbol es una industria de exportación, que
desprecia al mercado interno. El continuo drenaje de jugadores mediocriza
al deporte profesional y desalienta al público, cada vez menos numeroso y
menos fervoroso. La gente deserta de las canchas uruguayas y prefiere ver
partidos internacionales por televisión. Cuando llegan los campeonatos
mundiales, nuestros jugadores, diseminados a los cuatro vientos, se conocen
en el avión, juegan juntos por un rato y se dicen adiós sin tiempo para que
el equipo se convierta en un verdadero equipo, o sea: un solo bicho de once
cabezas y veintidós piernas. (GALEANO, 2014, l. 2391, 2394)

Rodrigues e Galeano estão, portanto, essencialmente


preocupados em criticar e conter o fenômeno que fragmenta e
decompõe suas seleções. Neste novo modelo de funcionamento do
esporte, as equipes possuem jogadores que não mais atuam em
seus países. Os autores, devotos do nacionalismo e entusiastas de
suas seleções, almejam a permanência de um imaginário
homogêneo, íntegro e estável das equipes nacionais – que são,
fundamentalmente, a manifestação da nação.
O afrouxamento da relação entre o futebol e o sentimento de
nacionalidade, processo cujo início Rodrigues e Galeano sentem em

126
suas produções, é detectado, também, por autores que pensam o
elemento do futebol na sociedade. Sergio Villena Fiengo, sociólogo
costa-riquenho que se dedica ao tema, em artigo publicado no livro
Futbologias: fútbol, identidad y violência en América Latina,
diagnostica, em 2003, que a política está perdendo sua capacidade
para “colonizar o futebol”:

De esta forma, la política está perdiendo su capacidad para colonizar al


fútbol y, como todo en la era neoliberal, cede su lugar al mercado
globalizado. Como consecuencia, y pese a que pasará mucho tiempo antes
de que los periodistas deportivos, jugadores, entrenadores, dirigentes,
hinchas y detractores se liberen de una lógica clasificatoria concebida para
tipificar a los seres humanos enfatizando su nacionalidad, parece ser que
poco a poco ésta resultará irrelevante en el mundo del fútbol. Leído en esta
clave, el mundial de clubes reciente parece ser una tímida bienvenida al
tercer milenio como la “era del fútbol postnacional”. Sin embargo, el escaso
interés que ha despertado ese evento parece indicar que aún es prematuro
cantar el réquiem a las selecciones nacionales. En uno u otro caso, las
interferencias de la política y/o del mercado parecen dejar poco espacio para
los amantes del fútbol como arte y como juego. (FIENGO, 2003, p. 268, 269)

Apontando para o advento do futebol “pós-nacional”, Fiengo


destaca que as interferências mercadológicas são fundamentais para a
composição deste novo cenário. Esta interferência é veementemente
sentida por Galeano, que, ao escrever sobre a Copa de 1998, afirma
que a empresa Adidas consagrou-se campeã do mundo. A empresa
Nike, por sua vez, obteve o segundo e o quarto lugar:

Pero hay que reconocer que también las empresas mutinacionales transpiran
la camisa como si fuera camiseta. Brasil no pudo ser pentacampeón. Adidas,
sí. Desde la Copa del 54, que Adidas ganó cuando ganó Alemania, ésta fue
la quinta consagración de los seleccionados que representan la marca de las
tres barras. Adidas levantó, con Francia, el trofeo mundial de oro macizo; y
conquistó, con Zinedine Zidane, el premio al mejor jugador. La empresa
rival, Nike, tuvo que conformarse con el segundo y el cuarto lugar, que
obtuvieron sus selecciones de Brasil y Holanda; y Ronaldo, la estrella de
Nike, llegó enfermo al partido final. (GALEANO, 2014, l. 2462)

127
Vivenciando o contexto em que essa desvinculação entre o
futebol e o nacionalismo está acirrada, Galeano está indicando o
novo paradigma de um futebol que se desloca para uma lógica
empresarial e mercadológica – aqui, a disputa comercial entre
grandes marcas esportivas substitui a ideia dos nacionalismos, que
já não caracterizam mais tanto os campeonatos mundiais. Esta
questão está constantemente presente em seu livro, e a intensa
midiatização dos esportes é também responsável pelo fenômeno:

Desde que la televisión empezó a mostrar de cerca a los jugadores, su


indumentaria completa fue invadida, de la cabeza a los pies, por la
publicidad comercial. Cuando una estrella se demora atándose los zapatos,
no es por torpeza de los dedos sino por astucia del bolsillo: está exhibiendo
la marca Adidas, Nike o Reebok en sus pies. Ya en la Olimpíada de 1936, que
Hitler organizó en Alemania, los atletas vencedores lucían las tres barras de
Adidas en sus zapatos. En el campeonato mundial de fútbol de 1990, las
barras de Adidas estaban en los zapatos y en todo lo demás. Dos periodistas
ingleses, Simson y Jennings, han hecho notar que en el partido final,
disputado por Alemania y Argentina, solamente el pito del árbitro no
pertenecía a la empresa. De Adidas eran la pelota y cuanta cosa cubría los
cuerpos de los jugadores, del árbitro y de los jueces de línea. (GALEANO,
2014, l. 1163)

A propósito deste debate, e para finalizar o trabalho,


consideramos pertinente trazer alguns apontamentos lançados por
estudos contemporâneos que analisam a questão das identidades
no campo da sociologia: muitos autores são concordantes em
afirmar o caráter espetacular que envolve o esporte, bem como sua
globalização e transnacionalização – fenômenos que apagaram “as
proteções das fronteiras naturais e as políticas” (LOVISOLO, 2003,
p. 242). Para citar alguns estudos, ressaltamos o livro organizado
pelo sociólogo argentino Pablo Alabarces, Futbologías: fútbol,
identidad y violência en América Latina. Neste livro, o artigo de Cruz
(2003) salienta a transformação dos clubes futebolísticos em
sociedades anônimas, evidenciando o surgimento daquilo que
chama de “torcedores nômades”. Essa nova modalidade de
torcedores segue clubes de diversos países do mundo (CRUZ,

128
2003), desfocando a atenção em relação às seleções e aos clubes
nacionais. Koch (2012), por sua vez, traz a ideia do “torcedor de
celebridade” – segundo o autor, com a comercialização, os
torcedores de futebol passam a seguir determinados atletas,
independentemente dos países ou clubes onde atuam. Por fim,
outro fenômeno apontado como dissociativo entre futebol e
identidades relaciona-se à eliminação de fatores ambientais dos
estádios: Fiengo (2003) afirma que os estádios têm se tornado “não
lugares” - segundo a teoria de Marc Augé, esses espaços são
caracterizados por uma homogeneização e purificação de qualquer
interferência ambiental, seja natural ou cultural. Este fenômeno
descaracteriza os aspectos culturais do futebol, uniformizando
inclusive seus espaços.
Embora não seja o enfoque deste trabalho, todos esses estudos
corroboram com a hipótese relacionada a um movimento
desnacionalizador do futebol, e são interessantes para a
compreensão do debate aqui iniciado. As reflexões sobre o futebol
no campo da sociologia são diversas e dialogam com fenômenos da
sociedade – como a contemporânea crise das identidades nacionais
que Rodrigues e Galeano nos levam a refletir.

129
130
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Finalizo esta pesquisa destacando a diversidade e riqueza de


debates que as produções literárias futebolísticas de Nelson
Rodrigues e Eduardo Galeano me proporcionaram em relação à
sociedade latino-americana contemporânea. As possibilidades de
discussões, a partir da leitura dos autores e da reflexão sobre o
papel que o futebol desempenhou na região, me surpreenderam ao
longo destes 2 anos.
As leituras de produções que se basearam em fatos reais
esportivos foram – mais que prazerosas e divertidas – instigantes,
fomentando debates que nos fizeram transitar entre campos do
saber. A metodologia da Literatura Comparada, mais que colocar
dois autores em confronto e comparação, foi essencial sobretudo no
sentido de oportunizar o trânsito entre a letras, a sociologia, a
história e a antropologia.
Enquanto as produções de Rodrigues enfocam, de maneira
geral, a autoafirmação da seleção brasileira – e, consequentemente,
de seu povo –, superando o que o autor chamou de “complexo de
vira-latas”; Galeano, ao falar sobre o futebol, realiza suas críticas
em relação ao sistema capitalista vigente e às desigualdades sociais.
Esta é, como vimos, uma constante característica de suas obras.
Ambos, cumpre relembrar, utilizam-se dos satisfatórios resultados
de suas seleções para subverter a lógica econômica segundo a qual
os países latino-americanos estão em uma posição de inferioridade
e subdesenvolvimento.
A partir de produções esportivas dos autores, refletimos, ao
longo do trabalho, sobre questões relacionadas a gêneros literários,
ao papel do futebol como elemento cultural na América Latina e,
por fim, à relação entre identidade e futebol. A discussão em torno
dos gêneros literários foi suscitada não tanto no intuito de
categorizar as produções esportivas dos autores, mas sim conhecê-

131
los, contrapô-los, debatê-los. Enquanto Rodrigues escreve crônicas
publicadas em jornal na própria conjuntura dos acontecimentos;
Galeano escreve a partir de suas memórias e leituras, obtendo um
texto essencialmente híbrido, com contornos difusos. Cumpre
salientar, ademais, que uma diferença essencial entre as produções
dos autores relaciona-se ao contexto em que escrevem: enquanto as
crônicas de Rodrigues aqui analisadas foram escritas e publicadas
fundamentalmente entre as décadas de 50 e 70; Galeano publicou
seu livro pontualmente em 1995. Esta constatação é fundamental
para compreender o debate em torno das identidades, já que
Rodrigues diagnostica o início de um processo de
profissionalização do esporte – fenômeno que, nas produções de
Galeano, é concreto e tangível, e que terminantemente se relaciona
com o escopo desta pesquisa. Acrescentamos também que, apesar
das considerações escritas por Galeano em relação ao futebol
contemporâneo, seu discurso também se relaciona ao apreço pelo
conceito de identidade nacional homogênea – discurso que o
remete às décadas anos 60 e 70, conjuntura em que Rodrigues
escreve. Este foi um fator que tornou o estudo comparado dos
autores ainda mais instigante.
Importa ressaltar, na finalização deste trabalho, alguns
apontamentos acerca do campo de estudo estruturado em torno do
futebol: através da pesquisa sobre o fenômeno da popularização deste
esporte, é possível compreender muito sobre o contexto social e
histórico da América Latina. Vimos que os estudiosos destacam que a
popularidade do futebol na região relaciona-se com a experiência
democrática e igualitária que o esporte pode ocasionar – fenômeno
denominado de “horizontalização do poder”, no pensamento de
DaMatta –, sobretudo se considerarmos a acentuada desigualdade
presente na região. Nessa conjuntura, o futebol apresenta uma
oportunidade de ascensão social incomum e altamente verticalizada.
É o futebol, também, um elemento que possibilita a inversão de
estruturas previamente definidas, na medida em que nele há a
possibilidade de estabelecer uma ordem hierárquica diferente das
classificações econômicas dos países do mundo.

132
Ainda sobre o futebol, importa substancialmente à pesquisa
sua relação sintonizada com a ascensão do século XX e com o
acirramento do capitalismo. Os fenômenos relacionados à
urbanização, à industrialização e à eletrificação do território são
importantes para entendermos por que o futebol se tornou tão
apreciado – não apenas na América Latina, como também no
mundo. O esporte acaba apresentando um elemento de
harmonização social, contrabalanceando as pressões
eminentemente urbanas – como o medo, a ansiedade e o stress. O
campo aberto do futebol caracteriza- se como uma oportunidade
de contato com a natureza e de sensações primitivas, sobretudo nas
grandes cidades. Ademais, salientamos também nossa defesa de
que o futebol não é tão somente um esporte alienante, que desviaria
as atenções dos problemas “reais” da sociedade. Vimos alguns
exemplos em que houve contestações da ordem social justamente
em contextos futebolísticos. O futebol, portanto, vai muito além de
uma festividade popular. Configura-se, também, como um palco
de resistência social e política, não se isentando, absolutamente, dos
conflitos presentes na sociedade.
Todos esses tópicos são pertinentes para a análise sobre a
identidade. No capítulo destinado ao debate sobre o futebol e a
identidade nacional, chegamos ao cerne principal desta pesquisa.
Destacamos, aqui, a importância da literatura na constituição do
que Benedict Anderson chama de “comunidades imaginadas”. A
literatura e o futebol funcionam como dispositivos – conforme
teoria de Giorgio Agamben – que subvertem uma lógica de
dominação capitalista e culminam em uma tentativa de criar o
sentimento de uma sociedade unânime em relação ao futebol e à
nação. Vimos, também, que a afirmação da identidade ocorre
constantemente em relação a um oposto, a uma alteridade.
Enquanto o futebol brasileiro e uruguaio são, de maneira geral,
representados como alegres, belos, talentosos, dotados de uma
naturalidade própria; o futebol adversário, ilustrado sobretudo por
seleções europeias, é representado como artificial, tecnocrático,
violento, acadêmico. Destacamos, nesta conclusão, as contribuições

133
teóricas de Stuart Hall e Hommi Bhabha, que pontuam a
importância do outro na constituição de um ideal de identidade.
Esta característica é evidente nos escritos dos autores, e não
poderíamos deixar de discutir a questão.
Por fim, identificamos que, a despeito dos autores terem se
esforçado em criar uma homogeneidade embasada no futebol em
torno da nação, é perceptível a preocupação com um fenômeno que
desloca o esporte – que passa a ser menos um elemento de
identidade nacional, para se firmar fundamentalmente como um
produto mercadológico. Os autores, sendo entusiastas dos
selecionados nacionais, sentem os efeitos da globalização, da
exportação dos jogadores e da profissionalização do futebol,
criticando, em suma, este fenômeno que ameaça a integridade das
equipes. Destacamos, aqui, o fenômeno de penetração do
capitalismo no campo cultural, que fez com que a cultura e os
esportes fossem comercializados: nesta conjuntura, o futebol
demonstrou-se um produto extremamente lucrativo.
O desenvolvimento da globalização, nesse sentido, relaciona-
se diretamente com o fenômeno de comercialização dos jogadores
e de mercantilização do futebol. Relacionamos esta questão ao
processo de declínio das velhas identidades estabilizadoras
discutido por Stuart Hall e Zygmunt Bauman. Para esses autores,
as identidades experimentaram um movimento de descentramento
e fragmentação, passando, então, a ser caracterizadas como
deslocadas e fluidas. As identidades nacionais também são
discutidas pelos autores e colocadas como ficcionais e fantasiosas.
Todas essas questões podem ser pensadas na literatura de
Rodrigues e Galeano, que apontam para a tendência da migração
de atletas e consequentemente para a desconfiguração das seleções
nacionais. Em nossa análise, portanto, as preocupações dos
escritores latino-americanos aqui analisados estão inseridos em um
contexto de fragmentação das identidades, dignosticada por Hall e
Bauman, e do advento de um futebol “pós-nacional”, conforme
indicou o sociólogo Sérgio Villena Fiengo. Se o futebol, como
afirma Galeano (2014), é um “espelho de tudo”, que reflete a

134
realidade; acrescentamos, para finalizar este estudo, que, sendo
importantes componentes culturais, tanto a literatura quanto o
futebol apresentam-se como elementos nos quais é possível
compreender uma diversidade de questões – econômicas, políticas
e sociais – de um determinado contexto. Concluímos, nesse sentido,
que, propondo um determinado ponto de vista da realidade, a
literatura esportiva de Rodrigues e Galeano muito nos dizem sobre
a relação entre o futebol e a identidade nacional – e a partir dessas
perspectivas foi possível pensar diversas contradições e
transformações da sociedade.

135
136
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