Programa de Pós-Graduação em História: POLICIADOS: Controle e Disciplina Das Classes Populares Na
Programa de Pós-Graduação em História: POLICIADOS: Controle e Disciplina Das Classes Populares Na
Programa de Pós-Graduação em História: POLICIADOS: Controle e Disciplina Das Classes Populares Na
PÓS-GRADUAÇÃO
EM HISTÓRIA
UNIVERSIDADE
FEDERAL DE
PERNAMBUCO
Recife, 2001.
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
DOUTORADO EM HISTÓRIA
Recife
2001
AGRADECIMENTOS
Resumo......................................................................................................................10
Abstract.....................................................................................................................11
Introdução.................................................................................................................12
-O criado de servir....................................................................................................51
-Período Imperial....................................................................................................73
-A polícia civil e militar no Império........................................................................74
-Características pré-burguesas.................................................................................91
-Período Republicano...............................................................................................99
-A Guarda Local republicana.................................................................................100
-A Repartição Central de Polícia...........................................................................112
-Gabinete de Estatística e Identificação.................................................................115
Capítulo 3: Polícia versus policiados ...................................................................123
-Escravos e capoeiras.............................................................................................124
-A violência policial...............................................................................................154
-Presídio ou penitenciária?.....................................................................................190
-Os loucos..............................................................................................................207
Fontes.....................................................................................................................242
Bibliografia citada.................................................................................................243
Anexos.....................................................................................................................251
10
RESUMO
ABSTRACT
1
Eric Hobsbawn, A era das revoluções, pp.255-266 e A era dos impérios, pp.125-131, 363-367; Alan
Touraine, Crítica da modernidade, pp.9-11 e 213-218.
2
Apesar de muitas dessas condições terem tido o seu auge na Europa do século XVIII – como o êxodo
rural –, elas persistiram em maior ou menor grau até pelo menos meados do século XIX. Paris, por
exemplo, possuía 500 mil habitantes em 1800 e o dobro em 1840, em sua maioria formada de imigrantes,
esmagadoramente composta de operários (...). Freqüentemente explorados e mal pagos,
sistematicamente despedidos dos empregos em épocas de crise desacostumados com a vida urbana, mal
alojados, atingidos por doenças epidêmicas... , cf. Jerrold Seigel, Paris boêmia, pp.30-31. Na Inglaterra,
a situação neste período não era muito diferente: houve desemprego, ciclos comerciais oscilando
19
a burguesia sentia a necessidade de uma nova ordem urbana, diferente daquela que até
então tinha base na cultura popular, uma ordem fundada em seus próprios valores. Este
novo padrão básico 3 de ordenamento urbano era instituído pelo Estado, que
progressivamente estendia mais a sua vigilância ao espaço tradicionalmente neutro e
visto como desorganizado – o espaço da rua – 4 , com o intuito de criar uma sociedade
disciplinada em sua vida pública. Esta preocupação nascia de um profundo medo de
uma catástrofe social produzida pelas classes populares, vistas como elementos
vulcânicos, cuja violência explosiva [podia] destruir a estrutura da sociedade.5
É neste momento que países como a Inglaterra criam uma organização policial
fardada e burocrática, que iria ajudar no desenvolvimento de novas noções sobre a
ordem urbana e a disciplina social. O que os ingleses estavam tentando criar, na
verdade, era uma comunidade ideológica, tratava-se de instituir novos padrões de
moralidade entre as camadas populares em seu uso da urbe, isto é, novos padrões para o
que fosse ordenado/desordenado, aceitável/inaceitável, estável/instável na ordem
pública. 6
Os problemas que atingiam a Europa, advindas com o desenvolvimento do
capitalismo, repercutiam a um certo grau nas elites brasileiras, sempre influenciadas
pela burguesia européia no que seria o seu ideal de civilização nos trópicos. O
sentimento de exaltação do progresso, me sclado ao medo das classes populares, e o
desejo de estabelecer um ordenamento próprio no espaço urbano, seriam sentimentos
compartilhados por elas – embora em graus diferentes e por razões diferentes. Aqui, o
que se apresentava era uma massa de trabalhadores escravos que deviam ser controlados
conjuntamente a um grande número de homens livres desocupados. Além disso,
configuravam-se dois novos problemas: a passagem do trabalho escravo para o trabalho
descontroladamente, crises industriais na década de 1840, epidemias de cólera e tifo causadas pela
insalubridade das cidades industriais, insatisfação da classe operária, aumento da criminalidade etc. Os
salários dos trabalhadores só iriam ter um aumento real no final do século, mas mesmo assim, o temor da
burguesia em relação às classes pobres de uma forma geral, aglomeradas nestas cidades, ainda era
bastante presente, como uma reação aos anos anteriores. Cf., Robert D. Storch, “O Policiamento do
cotidiano na cidade vitoriana”, in Revista Brasileira de História, São Paulo, v.5, nº8/9, set.1984/abr.1985,
p.11; Eric Hobsbawn, A era das revoluções, 1789-1848, pp.226-230, e A era do capital, 1848-1875,
pp.221-240.
3
Este padrão básico de comportamento urbano seria ...o estabelecimento do controle em todos os
espaços públicos e a vigilância constante do comportamento em público. Robert D. Storch, op. cit., p.19.
4
Para uma análise da rua como um espaço social em oposição ao da casa na sociedade brasileira, vide
Roberto DaMatta, Carnavais, malandros e heróis, pp.90-102.
5
Robert D. Storch, op.cit., pp.7, 9, 30.
6
Idem, p.8, 9, 10.
20
livre, que teve seu momento mais crítico nas décadas de 1870 e 1880 e o burocratismo
paulatino do Estado Imperial, que se tornaria formalmente burguês com a República. 7
A necessidade da passagem do trabalho escravo para o livre trouxe para as elites
brasileiras novas exigências de controle social que as levou a concentrar no Estado o
monopólio da violência e da repressão, o que antes era exercido com freqüência pelos
senhores de terras e escravos. Esta tarefa teve mais êxito nas áreas urbanas de maior
concentração populacional, onde também as relações de apadrinhamento eram menos
significativas do que na área rural. 8
À polícia seria destinada a incumbência de assumir o papel de protetor da
propriedade e de exercer o controle sobre o comportamento da população urbana. O
governo imperial de fins dos anos de 1860 e depois o republicano das primeiras décadas
do séc. XX, tentaram seguir a experiência européia de formar uma polícia capaz de
exercer esse controle sobre a vida pública do povo, mas sempre atentos às
peculiaridades que atuavam em torno de uma questão tão delicada, num país como o
Brasil, quanto à de concentrar o poder de polícia nas mãos do Estado e querer criar um
padrão de comportamento urbano para as classes populares, acostumadas à liberdade
que detinham na rua. Apesar do liberalismo brasileiro tentar implementar um projeto de
hegemonia ideológica e cultural, combatendo a cultura popular como um fator de atraso
para a sociedade, este intento foi desde cedo alvo de resistência, e a polícia – agente
mais visível de sua aplicação – vista como o principal inimigo. Ao contrário dos
ingleses, não havia consenso entre a classe dominante brasileira, nem entre as camadas
mais pobres da população, quanto à interferência dela nas relações sociais. 9
Segundo Boudon e Bourricaud, o controle social é um conjunto dos recursos
materiais e simbólicos que uma sociedade dispõe para assegurar a conformidade do
comportamento de seus membros a um conjunto de regras e princípios prescritos e
sancionados. 10 Não tem, no entanto, uma eficácia duradoura se estas regras forem
sistematicamente vantajosas para uma parte e desvantajosas para a outra.
7
Essas duas questões são discutidas nas obras de Décio Saes, A formação do Estado burguês no Brasil,
1888-1891; e de Ademir Gebara, O mercado de trabalho livre no Brasil, 1871-1888.
8
O controle exercido pelo Estado Imperial sobre os escravos urbanos é estudado in Leila Mezan Algranti,
O feitor ausente.
9
João José Reis, A morte é uma festa, p.275; Thomas H Holloway, Policia no Rio de Janeiro, pp.22-23.
10
R. Boudon e F. Bourricaud, Dicionário crítico de sociologia, pp.100-106.
21
11
Leila Mezan Algranti, op.cit., pp.195-197 e Clarissa Nunes Maia, Sambas , batuques, vozerias e farsas
públicas, capítulo 1.
12
A questão da violência na sociedade brasileira é discutida no livro de Maria Silvia de Carvalho Franco,
Homens livres na ordem escravocrata, capítulo 1; e de Ruben Oliven, Violência e cultura no Brasil, p.13.
22
nas camadas inferiores, uma vez que havia uma espécie de violência institucionalizada
perpassando a sociedade, e que resistiria por muito tempo ainda na República.
Para criar um consenso, portanto, era necessário dispor de um discurso que fosse
aceito não apenas pelas elites, como pelas camadas que deveriam ser diretamente
controladas. Era o caso de se instituir uma nova moralidade para as classes pobres,
fundada no trabalho, que até então, era aviltada pela escravidão. A passagem para o
trabalho livre sugeria uma legislação que regulasse as novas relações de trabalho entre
patrão e empregado, uma redefinição sobre o próprio conceito de trabalho que deveria
ser absorvido pela população livre e um aparato preventivo/repressivo que tivesse a
missão de salvaguardar os bens dos proprietários e garantir a aplicação das normas que
criaria uma nova moralidade urbana para as classes populares. Esta transição exigia que
o trabalhador livre fosse disciplinado e a vadiagem coibida. Era o caso de reeducar o
liberto e os homens livres pobres numa nova visão do que deveria ser o novo
trabalhador não mais compelido compulsoriamente ao trabalho: ordeiro, eficiente e sem
vícios que os afastassem de suas obrigações. 13 Esta foi uma situação que se apresentou
cedo em Pernambuco, uma vez que a crise econômica da Província levou a que seus
14
escravos fossem vendidos para as fazendas de café do Sudeste do País.
De acordo com Isabel Marson, o Estado imperial teria preparado ao longo do
século XIX toda uma legislação que ...registrou e mapeou a força de trabalho,
controlou o comportamento dos trabalhadores, coibiu as ameaças contra a
propriedade, orientou a produção e circulação das mercadorias, dos produtores e
consumidores, e ajudou a delinear a figura do cidadão. Essas leis tinham o objetivo de
preparar os cidadãos livres a venderem sua força de trabalho, transformando o sentido
que era atribuído ao ócio pelos homens livres pobres: antes de sua expropriação – efeito
da expansão agrícola – caracterizava a autonomia que possuíam frente aos proprietários
de terras, o que os diferenciavam dos escravos; à medida que se avançava com a
expropriação e se colocava em marcha o processo de venda da mão-de-obra livre, o ócio
desfrutado pelos homens livres pobres passa a ser combatido como origem da
marginalidade. É desta forma que as elites irão construir um projeto para o país onde o
13
Ademir Gebara, op. cit., pp.55-60; S. Chalhoub, G.S.Ribeiro, M.A.Esteves, “Trabalho escravo e
trabalho livre na cidade do Rio: vivência de libertos ‘galegos’ e mulheres pobres”, in Revista Brasileira
de História, São Paulo, v.55, nº8/9, set.1984/abr.1985, passim.
14
Cf. P. Eisenberg, Modernização sem mudança, pp.172-182.
23
As posturas municipais
15
Isabel Andrade Marson, “Trabalho livre e progresso”, in Revista Brasileira de História, v.7, pp.82-
83,87-89 e 91.
16
Idem, ibidem, pp.86 e 89.
17
Michel de Certeau, A invenção do cotidiano, pp.173-174.
24
18
Marta Abreu, O império do Divino, pp.196-219 e 250; J. J. Reis, op. cit., p.275-279; Ademir Gebara,
op. cit., capítulo 2.
19
A edição de uma postura municipal era redigida da seguinte forma:
O bacharel Henrique Pereira de Lucena (...), presidente da provincia de Pernambuco:
Faço saber a todos os seus habitantes que a Assembleia Provincial sob proposta da Câmara Municipal
da cidade... decretou as seguintes posturas: (...).
Palacio da presidencia de Pernambuco. Cf. APEJE, CLPPE, Lei nº 1129, de 26 de junho de 1873.
20
Sobre o controle social realizado através dessas posturas em relação aos escravos em Pernambuco, vide
Clarissa Nunes Maia, op.cit., passim.
25
municipais temos uma visão geral do que a elite recifense considerava como indesejável
para o bom funcionamento da cidade, ao mesmo tempo em que descobrimos os
principais pontos de atritos entre os dirigentes do Recife e seus habitantes. 21
Das posturas publicadas entre os anos de 1868 a 1887 na Coleção de Leis
Provinciais de Pernambuco (quadro 1), podemos isolá- las em seis categorias principais,
de acordo com os assuntos mais tratados, respectivamente:
21
Uma quadrinha do século XIX revelava a resistência da população em acatá-las passivamente: Se há
posturas de galinhas/Também há municipais;/Aquelas produzem ovos/Estas, sono, e nada mais. Apud
Francisco Pacífico do Amaral, Escavações, fatos da história de Pernambuco.
22
O conceito de controle de circulação foi utilizado por Michel Foucault para analisar a circulação das
coisas ou dos elementos, ou seja, dos miasmas, que a medicina urbana do século XVIII considerava
perigoso para a saúde das pessoas, cf. Microfísica do poder, p.90-91. Em nosso trabalho usaremos esse
conceito em relação à circulação dos indivíduos enquanto fator de segurança pública, como estudado por
Raimundo Arrais in “O espaço público que testemunha e edifica”, capítulo de tese de doutorado, USP;
com a diferença de que em nossa análise nos servimos da leitura das posturas municipais existentes no
período, como já havíamos feito em nossa dissertação de Mestrado em relação ao controle de escravos.
26
Seria, porém, muito para desejar que, limitado como é o circulo das
atribuições da policia, no que diz respeito ás prisões que tiver de effectuar, de
modo que nem para averiguações lhe é facultado esse direito, mais cuidado
23
Clarissa Nunes Maia, op. cit., pp.97-110.
24
APEJE, CLPPE, Lei nº1129, de 26 de junho de 1873, art.74 e 183.
27
Quadro 1
Posturas Municipais da Cidade do Recife, 1868-1887
TÍTULO ONDE
PENALIDADE A QUEM SE ESTAVA
ASSUNTOS
DESTINA INSERIDO E / OU
ANO DA LEI
Proibindo os animais
de tais veículos " " 1869
andarem sem uma
campa ao pescoço.
Proibindo os dobres e
repiques de sinos, 10$ e o dobro na Povo e Clero 1871
exceto os dados pelas reincidência.
igrejas em ocasiões
certas.
Proibindo os
espetáculos públicos 4$ Livres e escravos 1872
sem licença prévia.
Proibindo os
ajuntamentos de
pessoas nas tabernas à 2$ e o dobro na Livres, escravos e os 1872
noite, e os jogos e reincidência. donos das tabernas
danças a qualquer
hora do dia.
25
Idem, Relatórios dos Chefes de Polícia, 1905, pp.13-15.
28
(continuação)
TÍTULO ONDE
ESTAVA
PENALIDADE A QUEM SE
ASSUNTOS INSERIDO E / OU
DESTINA
ANO DA LEI
Proibindo o
entrudo 15$ ou 8 dias de " "
prisão.
Proibindo a
venda de limas de 4$ " "
cheiro
Proibindo
andar mascarado nas 30$ " "
ruas
Proibindo acender
fogueiras nas festas 20$ e o dobro na " "
juninas reincidência.
(continuação)
TÍTULO ONDE
PENALIDADE A QUEM SE ESTAVA
ASSUNTOS
DESTINA INSERIDO E / OU
ANO DA LEI
Proibindo
soltar fogos de 10$ Principalmente os 1873
artifício encarregados das
festividades.
1873/
"Sobre vozerias,
Proibindo vozerias e 1$ Livres e escravos obscenidades que se
alaridos. praticam em lugares
públicos e polícia
acerca de escravos".
Proibindo
andar nas ruas 2$ " "
indecentemente
vestido
30
(continuação)
TÍTULO ONDE
PENALIDADE A QUEM SE ESTAVA
ASSUNTOS
DESTINA INSERIDO E / OU
ANO DA LEI
Proibindo
tomar banho de rios 2$ " "
sem a devida
decência.
Proibindo
escravos nas ruas Recolhido a Casa de Escravos e senhores "
depois do toque de Detenção e multa de
recolher até a alvorada 2$ para o senhor.
(continuação)
TÍTULO ONDE
PENALIDADE A QUEM SE ESTAVA
ASSUNTOS
DESTINA INSERIDO E / OU
ANO DA LEI
Idem, proibindo
funcionarem nos " " "
domingos e dias
santos depois das duas
horas da tarde.
(continuação)
TÍTULO ONDE
PENALIDADE A QUEM SE ESTAVA
ASSUNTOS
DESTINA INSERIDO E / OU
ANO DA LEI
(continuação)
TÍTULO ONDE
ESTAVA
PENALIDADE A QUEM SE
ASSUNTOS INSERIDO E / OU
DESTINA
ANO DA LEI
Proibindo o depósito
de lixo, trapos e ossos Não especifica Livres e escravos 1883
na praia de Santa Rita.
*
Proibindo abrir as 30$ e o dobro na Comerciantes 1886
casas de negócios nos reincidência
domingos e dias
santificados
Proibindo exercer o 20$ e oito dias de Livres 1887
cargo de “criado de prisão
servir” sem a inscrição
no livro de registro da
Secretaria de Polícia
Fonte: Coleção de Leis Provinciais e Estaduais de Pernambuco, v. 1868-1887.
*
Exceções: casas de mercado, barbearias, cabeleireiros, açougues, hospedarias, cafés, tabacarias, bilhares,
farmácias e padarias; e as tabernas, que só poderiam funcionar até o meio dia.
34
26
APEJE, CLPPE, Lei nº1129, de 26 de junho de 1873, art.187 e Lei nº1882 de 10 de setembro de 1886,
art.83.
27
T. Holloway, op. cit., p.235.
35
28
APEJE, CLPPE, Lei n° 1245, de17 de junho de 1876, art.9, e Lei nº 1261, de 21 de junho de 1877,
art.8.
29
Idem, Lei nº 994 de 13 de junho de 1871, art.7, §8. Cf. tb.: Lei nº 903, de 25 de julho de 1870, art.7, §7;
Lei nº 1061, de 13 de junho de 1872, art.7, §8; Lei nº 1115, de 17 de junho de 1873, art.7, §7 e Lei nº
1141, de 8 de junho de 1874, ar.7, §7.
30
Idem, Lei nº1129, de 26 de junho de 1873, art.179.
36
obrigados a andar com lampião aceso depois das seis e meia, e os animais de tração
deveriam trazer uma campa ao pescoço que alertasse aos transeuntes de sua passagem.
Era terminantemente proibido andar a galope ou correr em animal pelas ruas e pontes da
cidade, a não ser as ordenanças e os oficiais em serviço 31 Com essas posturas, as
autoridades tinham condições de evitar tanto os acidentes quanto controlar os
movimentos de pessoas ou mercadorias suspeitas que circulassem pela capital, como no
caso dos escravos, que só poderiam conduzir mercadorias após o toque de recolher se
provasse estar indo ou voltando de viagem a serviço de seu senhor.
O uso de máscaras estava igualmente inserido neste tipo de controle. As máscaras,
trazidas dos bailes venezianos pelas classes mais abastadas, tornou-se moda nas festas
carnavalescas realizadas em clubes, e com o tempo foi absorvido pelas camadas
populares. Era, portanto, um perigo potencial o de malfeitores utilizarem-se desse
expediente para praticarem delitos sem serem reconhecidos, o que motivou a Câmara
Municipal do Recife a consenti- las apenas nos três dias de carnaval, até as oito horas da
noite. Fora desses dias, mesmo que o indivíduo estivesse todo a caráter para um baile à
fantasia, pagaria uma multa elevada – 30$ réis – e seria preso por oito dias.
Os oficiais mecânicos e os magarefes – profissões ligadas principalmente ao
ambiente urbano –, eram igualmente objetos de vigilância. Não poderiam circular pela
cidade com seus instrumentos de trabalhos a qualquer hora do dia. Aos oficiais
mecânicos era permitido levá- los ... para as suas oficinas ou lugares de suas
occupações... até às seis horas da tarde, enquanto os magarefes não poderiam ... andar
nas ruas com as facas e utensilios de seu officio, sem ser dentro de uma bolsa de couro
atada por três fivelas. O magarefe que fosse pego nas ruas sem atender as exigências da
postura, seria suspenso por oito dias, e na reincidência perderia sua licença. Esta era
uma penalidade severa, uma vez que as licenças eram renovadas anualmente e para
consegui- las, entre outras exigências, estava a de ter bom comportamento. 32
O objetivo dessas posturas era prevenir os conflitos desses profissionais com
outras pessoas, que porventura pudessem acabar em ferimentos graves, e evitar que
ladrões se utilizassem desses instrumentos para arrombar casas, passando-se por
trabalhadores. A preocupação das autoridades com o uso indevido de instrumentos de
31
Existiam 33 artigos no código de posturas de 1873, dedicada ao tráfego de veículos no Recife, cf.
APEJE, CLPPE, Lei nº 1129 de 26 de junho de 1873, arts.144 a 177.
32
APEJE, CLPPE, Lei nº1129, de 26 de junho de 1873, arts.210, 239 e 240.
37
33
Idem, ibidem, arts.205-209.
34
Rita de Cássia B. de Araújo, Festas: máscaras do tempo (entrudo, mascarada e frevo no carnaval do
Recife), pp.6-13.
38
Sr. redactor da Revista Diaria – rogamos-lhe o obsequio de, por meio de seu
conceituadissimo Diario, chamar a attenção da policia da freguesia da Bôa-
Vista, para uma sucia de vadios, que anda pelas ruas do Visconde de
Camaragibe, e logo que anoitece, lançando limas de cheiro para dentro das
casas, molhando e inutillisando moveis, quebrando vidros, como succedeu
hontem na rua do Visconde de Camaragibe.
Será isto permittido? Pois será prohibido a qualquer família reunir-se á
noite, em sua casa, sob pena de ver chegar á janela dous ou tres peraltas, e
lançar limas para dentro e irem-se muito frescos, rindo de sua gentileza, para
fazerem adiante o mesmo?
Rogamo-lhe que peça ao Sr. Subdelegado providencias, contra este abuso,
que alem de ser selvagem, pode ser causador de graves conseqüencias.
35
Roberto DaMatta, op. cit., p.65.
36
Miguel do Sacramento Lopes Gama, O Carapuceiro, v.1, p.2 e 4. Uma reclamação publicada em jornal
do início do século XIX, descreve como um matuto podia ser vítima da brincadeira e o porquê do mau
humor de muitos a respeito dela:
39
brinquedo popular era proibido, bem como a venda de limas de cheiro utilizadas nas
batalhas de ruas, chegando seus infratores a sofrerem uma multa de 15$ ou oito dias de
prisão.
A proibição ao entrudo, entretanto, era difícil de se fazer cumprir, pois era um
folguedo muito difundido entre a classe pobre, tendo apreciadores inclusive entre os de
classe mais abastada. Mário Sette descreve em detalhes e com saudades, como a
fabricação das limas-de-cheiro em algumas dessas famílias já havia se tornado uma
tradição:
Barbaro he o costume do entrudo, costume, que parece herdamos dos tempos do feudalismo, no qual os
Grandes se divertião com os males, os mais horrorosos, dos pequenos, pois que vemos que este
brinquedo he mais ou menos insultante, mais ou menos indecente, picoso, e infame conforme o asseio,
ou distinção do paciente, e do agente; barbaro costume, sim; porem que alem de toda a barbaridade do
brinquedo, ou melhor da patifaria, que alem de hum pobre matuto ser apupado, emporcalhado com agoa
suja, e lama, de se lhe dar com tintas até de oleo na cara, e na roupa, de se lhe deitar a perder seus
effeitos, que conduzem, muitas vezes de padecer avarias, de se atravessarem na rua cordas de hum a
outro lado para espantar, e fazer recuar os seus cavallos, ou a elles mesmos, se passão a pé, e de todas
as outras insolências, que lembrão a hum bando de biltres réos de policia, que vadião quando devião
trabalhar, que alem de tudo isto, digo, tenha essa gente o atrevimento essa gente (sic), ou esses brutos de
espancar, a appedrejar aqqueles pacíficos homens, que não muito prudentes reprezentão o seu
incommodo, ou prejuízo, e repellem tantos insultos com vãos improperios (...) A rua direita (sic) he o
principal Theatro destes factos, e com bem pouco custo me parece se atalhará o mal maior que deve ser
no resto do corrente mez. (...)
Hum Matuto. DP., 23/02/1823.
37
Mário Sette, Maxambombas e maracatus, p.49.
40
pós e tauás deveriam ser substituídos por ramalhetes de flores,... como usado em
algumas cidades francesas e italianas; ao invés do corre-corre do entrudo, passeatas de
clubes carnavalescos e apresentações públicas de bandas de música. 38 Estava-se criando
um carnaval apropriado às classes urbanas mais privilegiadas, não apenas privatizando-
o nos salões dos clubes recreativos e teatros 39 , mas transformando a própria festa da rua
em uma comemoração mais européia:
A idéia surtiu efeito e tornou-se tradição enfeitar as principais ruas da capital para
as festas carnavalescas, bem como os desfiles dos máscaras. Em 1901, um jornalista se
comprazia com o magnífico efeito produzido pela iluminação a gás em forma de arcada,
com que havia sido ornamentada a rua do Cabugá, enquanto outro se divertia com a
38
DP, 16/02/1882.
39
Cf. Luiz Felipe de Alencastro, “Vida privada e ordem privada no Império”, in História da vida privada
no Brasil: Império, v.2, p.51.
40
DP, 14/02/1882.
41
extravagância da mascarada que passava estalando sua castanhola.41 Mas apesar dos
esforços, por muito tempo ainda o entrudo se faria presente no carnaval recifense, nas
brincadeiras do mela- mela e mesmo no corso. No início do século XX as autoridades
policiais ainda expediam editais proibindo o jogo do entrudo, o que demonstra a sua
persistência. 42 Na verdade, neste confronto cultural, nenhuma das partes sairia
perdedora, pois o carnaval assimilaria aspectos culturais de ambas as classes sociais
passando a ter contornos tipicamente brasileiros e até regionais, como no caso de
Pernambuco.
Outras tradições populares, como acender fogueiras nas festas juninas, soltar
balões por meio de aguarrás ou fogos de artifícios a qualquer tempo, eram igualmente
proibidos como perigosos e inconvenientes ao sossego público. Os fogos de artifícios
eram proibidos de serem fabricados dentro da cidade, e só poderiam ser comercializados
em determinadas freguesias. Os fogos que fossem ser utilizados dentro do Recife
deveriam ser soltos em lugares espaçosos que não tivesse aglomerações pelos
fogueteiros ou outra pessoa habilitada indicada por ele, que ficaria responsável pelo seu
uso indevido. Ficaria igualmente responsável por qualquer irregularidade, os
encarregados das festividades. 43
Mesmo os dobres e repiques de sino deveriam servir a finalidades bem definidas,
atendendo as exigências do clero e seguindo um número de batidas pré-estabelecidas,
como nos avisos dos horários das missas, da morte de algum membro de irmandade,
procissões etc. 44 As batidas insistentes dos sinos das igrejas além de incomodarem os
41
Idem, 17 e 21/02/1901.
42
Idem, 24/01/1901.
43
APEJE, CLPPE, Lei nº 1129, de 26 de junho de 1873, arts.124, 134, 135, 136. As freguesias onde
poderiam se vender fogos de artifícios eram: São Lourenço da Mata, Jaboatão, Muribeca, Afogados e
Várzea, em casas isoladas e fora dos povoados; na freguesia da Boa Vista, na estrada de João de Barros
até Belém, na estrada de Olinda até a ponte de Tacaruna; na freguesia do Poço da Panela, na Estrada do
Arraial.
44
A postura prescrevia as seguintes normas para o uso dos sinos: Art.63. Ficam prohibidos os dobres e
repique de sinos, excepto nos seguintes casos: 1º Um dobre com duração de cinco minutos por ocasião
da morte de qualquer fiel, dado na igreja onde for depositado o cadáver; 2º um dito por ocasião do
officio de corpo presente e da visitação de cova; 3º um dito em cada uma das matrizes no dia de finados;
4º um repique na véspera de qualquer de qualquer festividade, dado na igreja onde ela se fizer; 5º três
ditos durante o dia de festa e com duração também de cinco minutos cada um. Além desses, haverá por
occasião de passar o Santissimo Sacramento e as autoridades que a isso tiverem direito, da chamada dos
fieis para a missa e para acompanharem o Santíssimo Sacramento ou Viatico, um só dobre na véspera de
quarta-feira de cinza s, nas dos sermões quaresmaes e festivos, somente nas igrejas onde se fizerem esses
autos, os signaes do meio dia,trindade,oito e nove horas da noute, de fogo(sic) e rebate: os infractores
42
vizinhos – como se percebe até pela limitação que a Câmara impôs ao seu uso – muitas
vezes eram utilizados pelos capoeiras como um meio de comunicação, que se serviam
desses toques como sinais entre si, para serem alertados da presença da polícia ou de
grupos rivais. 45
Por conta de todas essas restrições, aqueles que desejassem levar a efeito algum
espetáculo público deveriam pedir autorização da Câmara Municipal ou do chefe de
polícia, para realizarem maracatus, sambas, pastoris, apresentações circenses etc.
Alguns autos de Natal, como o bumba- meu-boi, por exemplo, eram alvos do
cerceamento das autoridades, por criticarem e tornarem centro de pilhérias, figuras
tradicionais da sociedade patriarcal, como os senhores de engenho, os sacerdotes, os
militares e os médicos. Seus infratores recebiam, por isso, multas elevadas, de 30$ réis
ou quatro dias de prisão, se fossem escravos. 46
No caso dos presépios e pastoris 47 – que ocorriam no período das festas de fim de
ano e iam até o dia da padroeira do Poço da Panela (2 de fevereiro) –, as restrições se
prendiam em razão do conteúdo das suas apresentações. Embora os pastoris terem tido
sua origem nos autos natalinos que recordavam o nascimento de Jesus, aos poucos
sofreram alterações de caráter profano que lhes caracterizariam como uma espécie de
revista teatral. Eram por isso considerados licenciosos, e davam margem a constantes
confusões que ocorriam durante as arrematações das flores, quando então se disputava a
atenção das pastoras, algumas delas dadas à prática da prostituição. 48 Por outro lado, os
pagarão a multa de 10$000 e o dobro na reincidencia. Cf., APEJE, CLPPE, Lei nº 1129 de 26 de junho
de 1873.
45
Valdemar de Oliveira, Frevo, capoeira e passo, pp.76-77.
46
APEJE, CLEPE, Lei nº 1129 de 26 de junho de 1873, art.181.
47
Roberto Benjamin, em suas notas inseridas no livro de Ascenso Ferreira, O maracatu, presépios e
pastoris e o bumba-meu-boi, p.105, diz ter encontrado apenas uma indicação de sinonímia entre presépio
e pastoril feita por Pereira da Costa, e que ...Caso tenha havido mesmo, algum tempo, sinonímia
pernambucana entre Pastoril e Presépio, isso não se vulgarizou bem lá. O que observamos é que os
termos eram usados como sinônimo no século XIX, o que deixou de acontecer nos primeiros anos do
século XX:
Acertada Providencia – O (...) subdelegado da freguesia de Santo Antonio, expedio terminantes ordens
aos inspectores de sua freguezia, para que providenciem de modo a que se acabem hoje (...), os presepios
ou pastoris onde se dão os disturbios por causa de arrematações de cravos....(Grifos meus), Jornal do
Recife, 22/01/1881.
Em 1901 encontramos outra referencia a presépio com o mesmo significado de pastoril: As 2 horas da
madrugada de ante-hontem, n’um presepio no viveiro do Muniz, houve grande barulho.... A Província,
24/12/1901. Cf. tb. DP, 03 e 07/11/ e 13/12/1881, 05 e 24/01/ e 08/ 02/1882 e 11/01/1886.
48
Ascenso Ferreira, op. cit., pp.39-44.
43
moradores vizinhos a esses bailes populares sentiam-se incomodados com o barulho que
provocavam:
49
Jornal do Recife, 14/12/1886.
50
APEJE, CLEPE, Lei nº 1129 de 26 de junho de 1873, arts. 178, 179, 180 e 185.
44
51
Costa Porto, Os tempos da República Velha, pp.35, 43 e 53-56.
52
Cf. APEJE, Fundo SSP, 1ª Delegacia da Capital, Ofício de 13 de março de 1890.
53
Marta Abreu, O império do Divino, p.339 e 346; Sidney Chalhoub, Cidade Febril, pp.19-20 e Flávio
Weinstein Teixeira, As cidades enquanto palco da modernidade, pp.4 e 21.
45
54
APEJE, CLPPE, Lei nº140, de 28 de junho de 1895, art.4, 5 e 7.
55
Idem, ibidem.
56
Um bom artigo sobre O Periquito foi escrito por Raimundo P. Alencar Arrais, “O Periquito: uma
revista licenciosa no Recife da entrada do século XX” in Revista do Arquivo Público, nº47, pp.10-23,
1997.
46
a realizar manifestações públicas contra atos do governo, como pode ser avaliado pelo
levante no Rio de Janeiro contra a vacina obrigatória, que segundo o chefe de polícia
Santos Moreira, teria dado lugar ...ao levantamento revolucionário contra os poderes
constituídos, sob o pretexto de opposiçao á lei votada pelo congresso... . A preocupação
do chefe de polícia se prendia ao fato de que o Recife não ficou indiferente ao episódio.
Os acontecimentos tinham sido largamente relatados pelo Jornal Pequeno, periódico de
apelo bastante popular. Vários telegramas informando sobre a revolta no Rio haviam
sido afixados a porta de sua redação e o jornal convidara ao povo a participar de
passeatas nos dias 16 e 17 de novembro, participando do ato estudantes de direito e,
segundo o chefe, indivíduos da mais baixa esphera social. 57
O saldo da passeata foi mais de duzentos lampiões de gás e lâmpadas de álcool
quebrados, tabuletas de casas comerciais arrancados, confusão no funcionamento dos
bondes e a morte de um capitão da polícia militar. Segundo a versão oficial, os
manifestantes teriam realizado provocações no quartel da polícia no Pátio do Paraíso,
dando margem ao confronto que culminaria com a morte do capitão Figueirôa. A
acusação foi negada pelo Jornal Pequeno, que afirmava não ter a passeata sequer
chegado perto do Pátio do Paraíso, e que de antemão, o estudante de direito Benjamim
Lins havia pedido a massa popular que evitasse a pratica de qualquer acto de
vandalismo.58
A atitude virulenta do jornal, que dizia abertamente aplaudir a revolução porque
esta é um sagrado direito que só a violencia pode tirar a um povo livre59 , e a
participação popular nos atos de apoio aos manifestantes do Rio, confirmavam os
temores das autoridades de que os jornais tinham um poder de penetração bem maior
entre a população pobre do que se supunha, justificando para eles as medidas
cerceadoras da liberdade de imprensa, que até então não havia existido na monarquia.
57
APEJE, Relatório dos Chefes de Polícia, 1905, p.10. A respeito da Revolta da Vacina, vide José Murilo
de Carvalho, Os bestializados, pp.91-139. Segundo o autor, o ex-governador Barbosa Lima, então
deputado federal, foi o que mais se destacou na Câmara contra o projeto da vacinação obrigatória, como
um meio de fazer oposição ao governo de Rodrigues Alves, cf., op. cit., p.96.
58
Jornal Pequeno, 18/11/1904.
59
Idem, ibidem.
47
60
APEJE, CLEPE, Regulamento para o Serviço de Hygiene Publica do Estado de Pernambuco, 23 de
outubro de 1894. Barbosa Lima chegou a enviar um médico do Instituto Vacínico para estudar
microbiologia no Instituto Pasteur, cf., José Murilo de Carvalho, op.cit., p.96.
61
Maria da Glória D. Medeiros, O social no governo de Sigismundo Gonçalves, pp.216-218 e 226-228.
62
Idem, Regulamento para o Instituto Vaccinico de Pernambuco, art. 16, v. 1883; Lei nº 267, de 15 de
março de 1898, art.1; Fundo Secretários Gerais do Estado, Relatório apresentado ao Exº Sr. Governador
do Estado de Pernambuco, pelo Secretario Geral Elpídio de Abreu e Lima Figueiredo, em 31 de janeiro
de 1908, p.111.
48
63
Victoria E. Thompson, “Urban renovation, moral regeneration: domesticating the Halles in second-
empire Paris”, p.87.
64
Em seu diário, o viajante Tollenare, que esteve no Recife em 1817, comenta a existência desse mercado
ao lado da Igreja da Penha, em São José. Segundo Flávio Guerra, ao tempo era (...) cheio de balcões
grosseiros, com mulherio e homens acordados pelo pátio, vendendo verduras ou frutas. Viam-se cavalos
e animais soltos estropiando, enlameando; peixeiros desovando ou entornando vísceras de peixes por ali
afora; um grande chafariz ao centro da praça, a enlamear ainda mais o chão grosseiro, e onde os negros
iam com seus baldes ou grandes vasilhames buscar água para os seus senhores; vendedoras de doces e
afelôs, mascates, ambulantes, almocreves descarregando seus cavalos; fressureiros, vendedores de
passarinhos, etc., tudo invadindo os oitões e as calçadas da Igreja e do Convento. Cf. Flávio Guerra,
Velhas igrejas e subúrbios históricos, pp.58-59 e ilustração nos anexos.
49
seção do peixe, que ficaria aberta até às 9h da noite. Esta seria mais uma forma de dar
organização ao trabalho dos comerciantes e de facilitar a fiscalização, distribuindo os
balcões por categorias de alimentos. Como meio de moralizar o ambiente, era proibido a
quem não estivesse trajado adequadamente entrar nas dependências do mercado. Nesta
mesma linha era proibida a entrada de pessoas embriagadas ou loucas, de músicos,
cantores, saltimbancos e ambulantes - uma vez que seus comerciantes deveriam ser
cadastrados junto a Câmara. A venda de bebidas alcoólicas, de loterias, e a promoção de
jogos, dariam a seus infratores a pena de 24h de prisão, e quem perturbasse a ordem
...por meio de rixas, gritos, queixas, castigos, etc, pagaria 3$ réis ou seria preso por um
dia. 65
A moralização do mercado era acompanhada pelos cuidados com a higiene e a
preservação do edifício, que deveriam expressar a nova relação dos comerciantes com o
seu local de trabalho. Banheiros foram instalados para impedir o mau costume de se
urinar pelos cantos, o lixo ou qualquer outro objeto não deveria ser amontoado pelas
passagens do mercado, cães e outros animais que não os permitidos para a venda, não
poderiam circular em seu interior, e os “grafiteiros” daqueles tempos terminantemente
proibidos de ...emporcalhar e desenhar, ou borrar os muros, ferros ou paredes... do
edifício. 66
Como um meio de transformar as relações habituais entre comerciantes e
consumidores – despojados de formalismos, o que caracterizava tão bem a “confusão” e
o “barulho” reinante nas feiras livres – , uma das normas do Mercado de São José
acabava com o costumeiro pregão das mercadorias. O comerciante era proibido de
...annunciar, por meio de gritos e vozerias, a natureza e preço dos artigos á venda. 67
Por outro lado, o mercado deveria seguir um ritmo exclusivamente comercial, não
podendo ser utilizado como uma extensão da casa dos comerciantes, ou melhor, de suas
relações íntimas, algo que costumeiramente acontecia nesses locais de comércio
popular, onde filhos e parentes muitas vezes acompanhavam os pais ao trabalho tanto
para ajudar, como para se divertir, o que ocorria também com quem simplesmente ia
fazer suas compras. Neste sentido, era proibido
65
APEJE, CLPPE, Lei nº 1355, de 6 de março de 1879, art.14, §1, art.15, §§ 3 e 8.
66
Idem, ibidem, art.14, §§ 2,3 e 5; art.15, § 6.
67
Idem, ibidem, art.14, §8.
50
68
Idem, ibidem.
69
Victoria E. Thompson, op.cit., p.98.
70
Idem, ibidem.
51
comerciantes e usuários. Nestas novas posturas, os infratores eram na maior parte das
vezes levados diretamente à presença do chefe de polícia, e além das penas previstas
tanto pelas posturas quanto pelo Código Penal – quando fosse o caso – teriam a sua
entrada impedida por até trinta dias. 71
A insistência em medidas mais rigorosas para normatizar o espaço do Mercado de
São José mostrava, por outro lado, a resistência de seus usuários em atender as
exigências das autoridades. Não apenas dentro do Mercado como à sua volta, criou-se
um grande espaço cultural popular. Já durante a época de Dantas Barreto, havia se
espalhado pela Praça do Mercado – como ficou conhecida a Praça Dom Vital – uma
enorme quantidade de ambulantes, camelôs, cantadores, poetas e vendedores de
cordel. 72 A cultura popular mostrava ter raízes bem mais profundas que as elites
imaginavam.
O criado de servir
De um modo geral, como foi visto, as posturas municipais tentavam criar novos
hábitos nas classes populares de moderação, bons costumes e higiene, os quais deveriam
compor o novo trabalhador livre que iria substituir a mão-de-obra escrava. Embora
essas tentativas civilizatórias viessem desde o início do século XIX, na segunda metade
em diante, o controle sobre esses assuntos tornava-se mais persistente como
conseqüência do fim do tráfico internacional e a intensificação do tráfico
interprovincial, que levou a Pernambuco a vender uma grande parte de seus escravos
para o Sul do país, e o Recife, presumivelmente foi um dos locais que mais exportou
escravos da Província. Essa perda levou a que houvesse uma substituição paulatina de
escravos por trabalhadores livres: em 1872, a proporção em Pernambuco entre
71
APEJE, CLPPE, Lei nº1934, de 17 de novembro de 1888.
72
Liêdo Maranhão de Souza, O Mercado, sua praça e a cultura popular do Nordeste, pp.15-20. As
ilustrações nos anexos, mostra a transformação ocorrida no espaço ocupado hoje em dia pelo Mercado de
São José: primeiro uma feira popular; depois, já construído o Mercado, um local aburguesado; e no início
do século XX, novamente com características populares.
52
trabalhadores escravos e livres sem profissão era de 4:1; entre os lavradores, criados e
jornaleiros, de 5:1; e entre os empregados domésticos, de 5:1. 73
Poderia se argumentar que o Recife era uma cidade de pouca ou nenhuma
expressão industrial a ponto de despertar o interesse das elites locais em desenvolver um
aparato de disciplinamento e controle dos trabalhadores urbanos, mas devemos levar em
consideração o grau de dependência da sociedade recifense ao trabalho escravo e que o
porto do Recife tornava a cidade um local fundamental na engrenagem que punha em
funcionamento a economia agro-exportadora da província. Era natural que seus
dirigentes, tanto em nível provincial quanto municipal, procurassem seguir a tendência
de outras cidades importantes do Império, desenvolvendo mecanismos que dessem uma
orientação ao processo de formação do mercado de trabalho livre, e uma dessas medidas
seria a regulamentação do serviço doméstico, iniciadas no final dos anos de 1880.
A capital, onde uma grande parte dos serviços de abastecimento de água e
alimentos, transporte de mercadorias e serviços domésticos, ficavam a cargo de
escravos, teve que se adaptar a nova realidade, cuidando de disciplinar a população com
hábitos condizentes com a sua situação de trabalhador, evitando os desperdícios de
tempo atrelados à sua cultura de lazer e criando legalmente a figura do trabalhador
doméstico, no caso, o “criado de servir”. Na verdade, a lei que regulava as novas
relações entre patrões e empregados abrangia outras atividades além das puramente
domésticas, discriminando na lei estas atividades relacionadas a estabelecimentos
comerciais. A postura de 1887 definia assim o “criado de servir”:
73
P. Eisenberg, Modernização sem mudança, p.201.
74
APEJE, CLPPE, 4ª Secção – Palácio da Presidência de Pernambuco em 19 de julho de 1887, p.5.
53
serviços não visava apenas ao liberto, mas também a população livre, que no caso de
Pernambuco constituía-se em grande parte de descendentes de escravos. 75
A lei possuía 34 artigos que minuciavam os direitos e deveres de patrões e
criados, evidenciando uma preocupação do Estado em intermediar ao máximo possível
esse novo tipo de relacionamento de trabalho. O controle passava tanto pelas mãos da
Câmara Municipal – autora da postura – quanto da Secretaria de Polícia, a qual deveria
possuir um livro de registro do empregado com o seu nome, sexo, idade, naturalidade,
filiação, cor, estado, ocupação que exerceria e demais características que ajudassem em
sua identificação. Com a inscrição, o empregado receberia uma caderneta, no valor de
1$000 rs., constando as informações referentes a sua identificação, rubricada por um
funcionário da polícia e assinada pelo secretário, anotada com todos os artigos da
postura. Quem exercesse a função de criado sem estar devidamente regularizado ou
contratasse alguém que não o estivesse, ainda que fosse menor de idade, levaria uma
multa de 20$ rs. e poderia ser preso por oito dias.
A caderneta – precursora da Carteira de Trabalho atual – seria o ponto chave no
controle do trabalhador, uma vez que nela constaria a sua vida profissional, de forma a
que pudesse ser avaliado por um empregador futuro. As duas principais funções desta
caderneta eram assegurar a obediência do criado e o controle de sua permanência no
serviço, aspectos que preocupavam a classe senhorial quando não tivessem mais o
direito legal de castigar seus trabalhadores insubordinados ou de retê-los junto a si. O
criado que fosse contratado por tempo indeterminado e desejasse abandonar o emprego
deveria dar o aviso prévio de oito dias; caso o contrato fosse por tempo determinado, era
obrigado a cumpri- lo integralmente, ficando sujeito a pagar uma multa de 30$ rs. e
sofrer oito dias de prisão, a não ser que apresentasse justa causa para isso. O
empregador, por sua vez, não poderia demitir o empregado sem um aviso prévio de
cinco dias, se o contrato fosse determinado. A penalidade para o patrão infrator desta
postura, por outro lado, seria o correspondente a um mês de salário quando o contrato
fosse por tempo indeterminado, e o valor correspondente ao tempo que restava para
expirar o contrato, quando este fosse determinado.
75
Margaret Marchiori Bakos, “Regulamento sobre o serviço dos criados: um estudo sobre o
relacionamento Estado e sociedade no Rio Grande do Sul (1887-1889)”, in Revista Brasileira de História,
São Paulo, ANPUH/Marco Zero, mar.1984, pp.94-104.
54
Havia quatro motivos que eram consideradas causas justas para o criado que
desejasse deixar o emprego:
Art.14.(...)
§1. Doença repentina, que vizivelmente o impossibilite do serviço ou
moléstia grave em pessoa do conjuge, filho, pai ou mãe.
§2. Falta de pagamento de seu salario no tempo ajustado.
§3. Sevicias ou máos tratos de seu patrão ou de pessoa de sua família,
verificados por qualquer autoridade policial. (grifos meus)
§4. Exigencias de serviços, que não os do contracto ou de outros, que forem
contrarios ás leis, á moral e aos bons costumes. 76
Um dos motivos que seriam justa causa para o criado se demitir antes do prazo
estipulado por lei – “doença repentina” –, na verdade se transformava em benefício para
o patrão, que não teria responsabilidade com o estado de saúde de seu trabalhador, coisa
que nem nas relações escravistas era permitido por lei. As “enfermidades passageiras”
deveriam ser tratadas por conta do salário do criado, a não ser que estivesse ajustado na
caderneta outro tipo de acordo. Mas se a doença se prolongasse por mais de oito dias ou
fosse grave e contagiosa, então ele seria enviado para algum estabelecimento de
caridade para ser tratado, isto se não tivesse família que o pudesse tratar em casa.
Quanto aos “maus tratos”, é difícil avaliar o que seria considerado como tal numa
sociedade onde vigoravam relações violentas entre patrões e trabalhadores. O fato ainda
de qualquer autoridade policial poder constatar a violência do patrão, poderia na
verdade beneficiá-lo, uma vez que subdelegados e delegados estavam mais próximos de
sua classe social e compartilhavam dos mesmos valores que tinham na violência física
um dos meios de se relacionar com seus subalternos.
Nas casas de família, algumas crianças trabalhavam como criadas, às vezes
fazendo companhia aos filhos pequenos de seus patrões, outras vezes prestando-se a
qualquer tipo de serviço doméstico. Gregório Bezerra em suas memórias, conta como
76
APEJE, CLPPE, 4ª Secção - Palácio da Presidência de Pernambuco, em 19 de julho de 1887, p.5.
55
77
Gregório Bezerra, Memórias, pp.104-105.
56
Art.16. (...)
§1. Doença do criado que o impossibilite da prestação dos serviços para que
se contractou.
§2. Embriaguez habitual.
§3. Recusa ou impericia para o serviço contractado, excepto neste caso si o
criado já estiver a serviços por mais de um mez.
§4. Negligência, desmasello no serviço depois de ser advertido.
§5. Injuria, calumnia feita ao patrão ou a qualquer pessoa da familia d’este.
§6.Sahida da casa a passeio ou a negocio sem licença do patrão,
principalmente á noite.
§7. A pratica de actos contrarios ás leis, á moral e bons costumes e de vicios
torpes.
§8. O costume de enredar e de promover discórdia no seio da família, ou
entre os outros creados da casa.
§9. A manifestação da gravidez na creada solteira ou na casada, que estiver
ausente de seu marido.
78
Jornal do Recife, 22/01/1879.
79
APEJE, Fundo Secretaria de Segurança Pública (FSSP), 1ª Delegacia da Capital, Ofício de 14 de julho
de 1915.
57
80
Idem, ibidem.
81
O Periquito, 07/01/1907, apud Raimundo P. A. Arrais, “O Periquito: uma revista licenciosa no Recife
da entrada do século XX”, in Revista do Arquivo Público, Recife, v.42, nº47, p.10.
58
alforrias, o que os tornava mais leais aos seus senhores na esperança de um dia se
tornarem livres. 82
Às criadas pesava mais fortemente uma vigilância que envolvia a moral e a
higiene. Isso se explica pela grande influência que detinham sobre a formação dos
filhos- famílias, principalmente no caso das amas-de- leite. Além disso, as criadas eram
tidas como as principais responsáveis pelos namoros proibidos entre as moças de
família e os jovens sedutores que rondavam as janelas dos sobrados, como os folhetins
da época costumavam descreve r. 83
O Estado desejava afastar de dentro do ambiente familiar e urbano a moral da
senzala, onde as escravas costumeiramente engravidavam sem o respaldo do casamento
ou do marido. Muitas engravidavam de seus senhores, que não raras vezes tornavam- nas
escravas domésticas. A iniciação sexual de grande parte de filhos de senhores – e depois
de seus similares, os patrões – era dada através dessas mulheres. Torna-se claro, no
entanto, que, mais uma vez, seria a mulher de origem pobre que arcaria com todo o peso
do estigma de ser mãe solteira, não importando neste caso se havia ou não
responsabilidade por parte dos homens para quem trabalhava. Havia, na verdade, um
artigo da postura (art.29) que responsabilizava o patrão ou pessoa de sua família que
induzisse ao seu empregado a praticar atos contra a lei ou os bons costumes, mas no
caso de uma criada engravidar de seu patrão, seria sempre a sua palavra contra a dele, o
que estabelecia já quase uma sentença, fosse pela sua posição social, fosse pela moral
machista compartilhada com os seus pares.
As amas-de-leite, além de todas a exigências requeridas aos outros tipos de
criados, teriam que passar por um exame na Secretaria de Polícia com o médico da
Câmara Municipal, que anotaria suas condições de saúde na caderneta. O exame deveria
ser realizado quantas vezes o patrão solicitasse, mas nunca menos de uma vez por mês.
Se apresentassem vícios, falta de leite, leite fraco ou demonstrasse falta de carinho com
a criança, poderia ser imediatamente despedida. Em nenhuma hipótese poderiam
amamentar duas crianças. Eram- lhe assegurado, no entanto, o direito de sair do emprego
a qualquer tempo caso a amamentação lhe trouxesse alguma enfermidade ou se a
criança estivesse com doença contagiosa.
82
G. Freyre, Casa grande e senzala, pp.352, 354; Kátia Mattoso, Ser escravo no Brasil, p.185.
83
Raimundo P. A. Arrais, “O Periquito: uma revista licenciosa no Recife da entrada do século XX”, in
Revista do Arquivo Público, Recife, v.42, nº47, pp.13-14.
59
remontava a uma questão que ainda estava sendo encaminhada pelas elites, no que dizia
respeito às relações entre empregados e patrões, e o papel que o Estado teria nelas. Uma
indicação disso era o fato de haver várias modificações no texto da lei, a primeira das
quais, o controle sobre o criado ficar a cargo totalmente da Prefeitura, aonde o
interessado faria a matrícula. Em um primeiro instante, a sensação que se tem é de que o
controle exercido sobre os trabalhadores domésticos teria se abrandado, mas logo
percebemos que a coisa não é bem assim. Além da caderneta que a Prefeitura expedia
com as informações pertinentes ao trabalhador, seriam fornecidos conjuntamente uma
placa com o número de matrícula e um cartão, pelos quais seriam pagos 2$ réis. Todas
as vezes que o criado estivesse na rua, ele deveria levar consigo a placa e o cartão de
identificação. Mais para o final da lei, um artigo contra a vagabundagem, aparentemente
deslocado do contexto, toma sentido com a obrigação de se ter à mão a placa e o cartão
da Prefeitura, que distinguiria o trabalhador do vadio:
Artigo Vigésimo Quarto. Todo aquelle individuo que for reconhecido como
vagabundo, ou que não tenha officio ou meio licito de vida, será preso e
remetido ao Juiz Districtal para lhe dar o conveniente destino, remettendo-o
para as colônias, ou para as obras publicas estadoaes ou municipaes ou para
quaesquer outros trabalhos que o individuo preferir. 86
Por outro lado, ninguém poderia contratar como criado quem não estivesse
inscrito na Prefeitura, mesmo que este lhe prestasse serviço gratuito. As “pessoas do
povo” eram convidadas a denunciar ao juiz Distrital ou ao prefeito quem estivesse
trabalhando irregularmente, ficando o patrão sujeito a uma multa de 20$ rs. e o
empregado a 10$ rs. ou cinco dias de prisão. Se, no entanto, fosse infundada a denúncia,
o autor seria multado em 10$ rs. ou cumpriria pena de dez dias de prisão. Esta foi uma
das duas alterações em que houve do primeiro ao segundo projeto apresentado no
Conselho Municipal para a redação definitiva da lei. 87 Resta saber se essas exigências
estavam direcionadas exclusivamente à vigilância dos trabalhadores domésticos ou se
com elas o Conselho Municipal tentava também arrecadar fundos para a
municipalidade, uma vez que deve ser levado em conta que com o fim da escravidão ela
86
Idem, ibidem.
87
APEJE, FCMR, Atas de 9 de maio de 1896, v.6, pp.24-25.
61
perdeu uma de suas fontes de renda com os escravos de ganho – os quais também
deveriam ser matriculados e seus senhores obrigados a pagarem anualmente uma taxa
para a sua renovação 88 .
Uma outra diferença que a nova lei dos criados apresentava em relação à de 1887,
é que ela favorecia aos empregados que não recebessem seus salários corretamente.
Enquanto na primeira lei o patrão ficava obrigado a pagar o que estivesse devendo
acrescido da multa de 30$ réis (art.28), na lei republicana, embora a multa caísse para
20$ réis, ele teria que pagar ao criado além do que devesse mais o correspondente a oito
dias de trabalho. Para isso, o criado deveria fazer queixa verbal ao juiz Distrital
apresentando duas testemunhas, sendo o caso julgado em 48 horas (arts.10º, 11º e 12º).
No geral, a lei republicana que regulamentava o serviço doméstico pode ser
percebida como um avanço nas relações entre patrões e empregados. Tinha um caráter
menos paternalista ao excluir de seu texto os deveres dos patrões e dos criados, que
terminava por beneficiar mais ao primeiro. Reduzia também o número de motivos pelos
quais se poderia demitir o empregado por justa causa pela metade, retirando do texto
causas subjetivas como “o costume de enredar ou provocar discórdias” dentro do lar e a
demissão da criada que engravidasse.
Cabe ressaltar mais uma vez, que apesar da lei ser novamente sancionada, não nos
parece que ela tenha sido bem aceita pelas partes interessadas. Uma primeira impressão
que nos vem para explicar isso está no próprio paternalismo que permeava ainda com
muita intensidade as relações entre empregados domésticos e patrões. O susto inicial de
uma desagregação dos antigos laços que prendiam senhores e escravos, e o medo desse
novo trabalhador que invadiria as casas e a privacidade das famílias, foram aos poucos
se acomodando à realidade que demonstrava não se ter modificado substancialmente a
submissão das classes pobres.
88
Esta taxa era da ordem de 6$ réis em 1887, cf. APEJE, CLPPE, Lei nº1897, art.2º, §77.
62
89
APEJE, Relatórios dos Presidentes da Província de Pernambuco, Falla com que o Exmº Sr. Dr.
Adolpho Barros Cavalcante de Lacerda, presidente da provincia de Pernambuco, abrio a sessão da
Assembleia Legislativa em 19 de dezembro de 1878, p.4.
90
Idem, Falla com que o Exmº Sr. Dr. Lourenço Cavalcante de Albuquerque, abriu a sessão da
Assembléia Provincial de Pernambuco no dia 1º de março de 1880, p.3.
91
Sobre estes movimentos ver: Hamilton Monteiro, Crise agrária e luta de classes; Armando Souto
Maior, Quebra-Quilos; Isabel Marson, Movimento Praieiro: imprensa, ideologia e poder político.
92
APEJE, AS, v.1896, p.25.
63
É com este objetivo que será criada em 1874 a Colônia Orfanológica Isabel, que
funcionaria até o início do século XX. Embora dirigida mais às necessidades dos
engenhos, também atenderia a demanda de mão-de-obra profissionalizada da capital,
sendo um bom exemplo dos esforços das elites em disciplinar a nova mão-de-obra. Ao
mesmo tempo em que retiraria da indigência crianças órfãs e “desvalidas”, habilitar- lhe-
ias a tornarem-se ...cidadãos pacíficos e moralisados, úteis a si e á sua pátria,
93
Cf. Isabel Marson, “O ‘cidadão criminoso’: o engendramento da igualdade entre homens livres e
escravos no Brasil durante o Segundo Reinado”, in Estudos Afro-Asiáticos, nº 16, 1989, pp.150-152.
94
APEJE, Relatório apresentado a S. Exc. o Sr. presidente da província de Pernambuco, pelo respectivo
doutor chefe de policia, em 13 de fevereiro de 1877.
95
Idem, AAP, v.1865, p.16.
64
Quadro 2
100
Nayala, S. F. Maia, op. cit., p.38.
101
Diário de Pernambuco, 17/03/1882.
102
Nayala S. F. Maia, op. cit., p.18.
66
agricultura ligada ao funcionamento de sua usina modelo. Esta escola de agricultura não
conseguiria alcançar o nível teórico com o qual habilitaria uma mão-de-obra mais
qualificada do que a já existente, servindo-se praticamente apenas do aprendizado
prático rotineiro. A alteração no nome da Colônia ao mesmo tempo em que prenuncia o
seu afastamento das diretrizes de administração monarquista – mudando o seu nome de
Isabel para o do republicano Frei Caneca – também anuncia o próprio desvirtuamento
do objetivo primeiro da Colônia, que era educar e profissionalizar jovens órfãos ou sem
recursos, com o qual se inicia a decadência da Colônia Isabel. Isto começa a acontecer
com a aquisição de três propriedades antes destinadas ao assentamento de colonos, que
não dá certo. Com estas propriedades, a Colônia passa a ser gerida com o intuito de dar
lucro, cada vez menos cuidando da educação dos jovens. Como o empreendimento sofre
revezes, os gastos com a manutenção dessas propriedades levam a Colônia a falência,
sendo então arrendada em 1904, pelo governador Sigismundo Gonçalves, em benefício
da oligarquia Rosa e Silva. 103
103
Nayala S. F. Maia, op. cit., pp.23, 55, 70-75, 94-95. O desvirtuamento da Colônia Isabel em atender
outros interesses que não os dos órfãos, foi criticado por um senador em plenário na Câmara; cf. Anais da
Assembléia Estadual de Pernambuco, 14ª Sessão em 2 de maio de 1892, p.55.
104
APEJE, CLPPE, Lei nº 1756 de 5 de junho de 1883. Desde a ocupação holandesa que em Pernambuco
já existia um asilo para o recebimento de órfãos. Depois disso, apenas em 1830 o governo destinaria os
bens da extinta congregação dos padres de São Néri para a fundação de dois estabelecimentos para
abrigar e educar os órfãos de ambos os sexos. A Colônia Isabel se distingue dessas iniciativas por
acrescentar aos seus objetivos de amparo aos órfãos à formação de mão-de-obra qualificada, no que se
torna nítido pelo aceitamento de colonos pensionistas que pagavam para receber esta habilitação
profissional, cf. Nayala S. F. Maia, op. cit., pp.19-20.
67
que se teve no Império com o trabalho dos detentos na Casa de Detenção (vide capítulo
4). Mais uma vez, colocava-se a ideologia do trabalho como agente moralizador, sempre
apoiada por experiências em países industrializados da Europa:
Nas discussões que houve entre 1898 e 1899, sobre a criação dessas colônias – as
quais por motivos financeiros não seriam levadas a efeito 106 –, estava prevista a
instalação de três tipos delas: uma penitenciária, para sentenciados de várias categorias;
uma correcional, para os que incorressem em crimes de capoeiragem, vagabundagem,
embriaguez e mendicância; e outra voltada exclusivamente para jovens infratores.
Apenas as duas últimas foram aprovadas, o que provocou a reação de um senador que
considerava essencial a colônia penitenciária como meio de recuperar criminosos e
diminuir os custos do Estado com eles através do trabalho forçado. 107
Ao que parece, esta não foi uma decisão que levou em conta apenas os gastos que
o governo teria de despender com a criação de tais tipos de estabelecimentos, uma vez
que ao lado das colônias estatais, poderiam ser fundadas colônias privadas, as quais
ficariam sob a supervisão do governo, na pessoa do chefe de polícia. Seria um negócio
interessante, na medida em que a remuneração dos presos deveria ser pequena, além dos
administradores reterem vinte por cento de seus salários para lhes serem entregues na
forma de pecúlio quando saíssem da colônia. 108 Isto leva a crer que a intenção era
justamente resolver o problema das elites em face daquela parte da população que não
105
APEJE, Relatórios dos Chefes de Polícia, 1905, p.12.
106
As colônias correcionais para menores e adultos foram instituídas pelo governo federal pelo Decreto
nº145, de 12 de julho de 1893, posteriormente ampliado em suas determinações pela Lei 947, de 29 de
dezembro de 1902, depois regulamentada com o Decreto 6.994, de 19 de junho de 1908. Em Pernambuco
elas foram uma demanda constante entre os chefes de polícia, mas no relatório de 1923, ainda era
reclamada a execução da lei de 1899. Houve, no entanto, três experiências com escolas correcionais para
menores, uma em 1908 (vide capítulo 4), a segunda em 1917-20, e a última em 1924-29. Ao contrário das
duas primeiras, esta recolheria tanto menores desvalidos quanto condenados. Cf. Mozart Vergetti
Menezes, Prevenir, disciplinar e corrigir, p.86.
107
APEJE, AS, 29 de maio de 1899, p.65.
108
Idem, CLPPE, Lei nº 370, de 9 de junho de 1899, arts.5, 6 e 8.
68
109
APEJE, AS, v.1898, p.130.
69
Esta visão incorporava a crença, difundida não apenas no Brasil, como na Europa,
de que o pobre era um homem preguiçoso e sem capacidade de iniciativa, que deveria
ser compelido ao trabalho por forças externas ao seu querer, como a necessidade de
satisfazer as suas carências mais básicas ou a sua ressocialização através da prisão com
pena de trabalhos forçados. Neste último caso, as colônias deveriam oferecer condições
severas de vida para que o indivíduo não desejasse mais retornar às colônias. 111
Se a coação ao trabalho parecia uma solução razoável para os problemas de mão-
de-obra das elites, por outro lado, o afastamento dessas pessoas da sociedade
apresentava-se como um meio plausível de diminuir a criminalidade e de conservar uma
imagem da cidade de limpa e civilizada – e os mendigos eram os principais
responsáveis, na visão das elites, pelo “enfeiamento” do Recife. Problema tipicamente
das grandes cidades, onde a pobreza se aglomera e torna-se mais visível, os mendigos
tinham a facilidade de terem uma grande quantidade de transeuntes e de casas próximas
para viverem de seu auxílio, o que irritava sobremaneira a classe média urbana.
Chagados, aleijados ou simplesmente os de “ofício”, tornavam-se figuras
indesejáveis aos símbolos de progresso que se queria firmar para a capital de
Pernambuco. Era, no entanto, uma imagem persistente, e que chamava a atenção dos
estrangeiros que passavam pela cidade desde os tempos da Colônia:
110
Idem, AS, v.1898, p.131.
111
Idem, ibidem. Sobre a visão da burguesia européia a respeito dos pobres e das causas da pobreza, vide
Gertrude Himmelfarb, La idea de la pobreza: Inglaterra a princípios de la era industrial. Uma idéia
comum defendida por Tocqueville e até certo ponto por Malthus, era a de que dos dois estímulos que
levava uma pessoa a trabalhar – a necessidade de viver e o desejo de melhorar de vida – apenas o
primeiro atuava na maioria delas, refletindo a imagem malthusiana do homem preguiçoso, que
unicamente se via impulsionado a trabalhar pela terrível necessidade; cf. op. cit., p.180.
70
112
Henry Koster, Viagens ao Nordeste do Brasil, p.401
113
APEJE, Fundo Secretários Gerais, Relatório apresentado ao Exmº Sr. Governador do Estado de
Pernambuco pelo Secretário Geral, Elpídio Figueiredo, em 31 de janeiro de 1908, p.111.
114
DP, 13/04/1882.
71
quantidade de mendicantes que existam na cidade, e muitos dos que eram recolhidos
pela polícia eram enviados para a Casa de Detenção, para o Hospital Pedro II ou
simplesmente repreendidos pela autoridade policial e soltos, o que os levava a
retornarem a mendicância, provocando a indignação da classe média urbana:
Asylo de Mendicidade
Chama-se a attenção das autoridades competentes para o crescido numero
de mendigos que transitam palas ruas da cidade, o que nos faz crer que, ou
não existe o Asylo, ou se existe só tem um mendigo e sua familia.
A continuar assim é melhor acabar com tal estabelecimento.
E entretanto há uma verba de 3% em despachos a favor do Asylo!... 115
O fato de ficarem asilados não significava, por sua vez, que as ruas estariam livres
deles. Alguns fugiam, preferindo a vida livre na indigência ao regime fechado do Asilo.
Possivelmente muitos que sofriam de alcoolismo não suportavam a abstinência forçada
e preferiam voltar as ruas. Havia, por outro lado, denúncias de que seus diretores não
tinham tanto interesse assim em receber mendigos de outros estabelecimentos, como do
Hospital Pedro II, uma vez que isso reduzia a despesa da instituição, fato este reforçado
por acusações de se estar economizando na ração oferecida aos asilados. Outra acusação
que se fazia era a das autoridades policiais estarem enviando para o Asilo, ébrios e
vadios, transformando o local em prisão correcional, fugindo desta forma ao seu fim e
agravando o problema de lotação, embora muitos suspeitassem da suposta falta de vagas
no estabelecimento. 116
Estas dúvidas e polêmicas, que eram suscitadas nos jornais da época, demonstram
a atenção que o problema causava aos habitantes mais abastados do Recife. Cinco anos
depois da reclamação transcrita acima, encontramos uma outra bem semelhante, que
denotava a decepção causada pelo Asilo por não ter conseguido reter o aumento de
mendigos nas ruas, nem de conseguir acomodá- los todos em suas dependências, sempre
transparecendo a visão de que a mendicância era um problema de repressão, no máximo
de filantropia pública:
115
DP, 09/07/1877.
116
Idem, 04/10/1870, 06/10/1970, 16/11/1870, 05/04/1871, 13/04/1882.
72
Se houve ou não abusos por parte dos administradores, é algo que dificilmente
ficaremos sabendo, mas com certeza podemos avaliar que o Asilo de Mendicidade não
conseguia suprir a demanda de indivíduos que viviam na indigência na cidade do
Recife. De 30 mendigos capturados na cidade no mês de abril de 1882, apenas 18
puderam ser admitidos por falta de leitos disponíveis. Afora esses da capital, o Asilo
ainda recebia alguns mend igos de cidades do interior, dificultando ainda mais o
problema de lotação. 118
Não é de se admirar, nesse contexto, a ação “higiênica” – alguns anos antes da
proposta das colônias correcionais já mencionadas –, do governador de Pernambuco,
Albino Meira, acusado de mandar prender aos magotes e sem culpa formada, mendigos
que circulavam pelo Recife para serem enviados ao Presídio de Fernando de
Noronha. 119 Com efeito, caberia à polícia a missão de manter as ruas o máximo possível
ordenadas e “limpas” dos efeitos das desigualdades sociais que geravam mendigos,
“vadios” e prostitutas.
117
DP, 13/04/1882.
118
Idem, 15/04/1882.
119
APEJE, AS, 46ª Sessão em 3 de junho de 1896, p.218 e 47ª Sessão em 5 de junho de 1896, p.222.
CAPÍTULO 2
• Período Imperial
1
Sobre a influência da formação do mercado nacional e da transição da mão-de-obra na organização da
polícia, ver, Neder, Naro, e Silva, A polícia na Corte e no Distrito Federal, 1831-1930, pp.157-159 e 234-
237; a respeito das propostas de descentralização administrativa ver Tavares Bastos, A Província, pp.
159-169.
2
Em sua tese de doutorado, Raimundo Arrais, trata de como a imagem do Recife na segunda metade do
séc. XIX foi elaborada pelas elites em função da noção de progresso, instituindo nas obras públicas um
sentido instrutivo e moralizador, uma vez que se tinha nelas a perspectiva de utilização de trabalhadores
livres, além de incutir hábitos europeus, como por exemplo, no uso dos passeios e jardins públicos.
Investia-se, desta forma, a cidade de uma missão civilizadora. Cf. O pântano e o riacho: a formação do
espaço público no Recife do século XIX.
74
A polícia imperial estava dividida em civil e militar, embora tal divisão não fosse
oficial como aconteceria na República, e nela incorresse a prevalênc ia das autoridades
civis sobre as militares. Esta separação só começaria a ser mais questionada nas últimas
décadas do século XIX, com a discussão sobre a criação da Guarda Urbana e depois da
Guarda Local, ambas formadas para serem forças civis e paisanas. A polícia civil teria a
sua origem ligada a administração local, abrangendo algumas funções judiciárias de
menor importância, enquanto a polícia militar tinha a sua tradição ligada aos
patrulhamentos realizados por tropas de linha desde os tempos da colônia. 3
A polícia civil foi organizada a partir da Lei de 3 de Dezembro de 1841, com a
definição das funções desempenhadas pela Secretaria de Polícia 4 , tendo sido
reestruturada pelo decreto nº 1.897 de 21 de fevereiro de 1857. Este órgão era dirigido
pelo che fe de polícia, escolhido pelo presidente da província entre um dos juízes de
Direito, permanecendo no cargo por dois anos, podendo ser substituído por um
desembargador em caso de necessidade. Contava com um secretário, três oficiais – um
dos quais fazia o serviço de vistoria no porto –, quatro amanuenses, dos quais um fazia
o serviço de arquivista, um porteiro e um contínuo. Logo abaixo do chefe de polícia
vinham os dois delegados da capital, que detinham autoridade cada qual sobre um dos
dois distritos policiais que dividiam a cidade; os subdelegados – subordinados aos
delegados –, que substituíram os juízes de Paz depois da reforma de 1841, tomando para
si a jurisdição das freguesias que também eram divididas em distritos, e os inspetores de
quarteirão, escolhidos pelos subdelegados entre um dos moradores do quarteirão, onde
ficava responsável pela vigilância de no mínimo vinte e cinco fogos, informando
3
Marcos Luiz Bretas, Ordem na cidade, pp.40, 43.
4
A Secretaria de Polícia já existia desde 1833, mas ainda não tinha suas funções claramente definidas,
com o chefe de polícia ainda tendo que dividir atribuições com os juízes de Paz. Também não haviam
sido criados ainda os cargos de delegado e subdelegado. Cf. Thomas Holloway, op cit., pp.110-112.
75
5
APEJE, Relatórios dos Chefes de Polícia, 1886, p. 8; Almanak administrativo, mercantil, industrial e
agrícola de Pernambuco, 1876, p.62; Thomas H. Holloway, op. cit., pp.159-161. O inspetor de quarteirão
usava como distintivo uma faixa, um boné de galão e espada, cf. Ofício do inspetor João de Oliveira
Guimarães, para o subdelegado do 2º Distrito, 20 de julho de 1867, p.152.
6
Thomas H. Holloway, op. cit., pp. 227-228.
7
APEJE, Relatórios dos Chefes de Polícia, 1886, pp. 7-8.
8
A. J. Barbosa Vianna, Recife, capital de Pernambuco, p.58; Almanak ..., pp.91-94, 1885; APEJE,
Relatórios dos Chefes de Polícia, 1905, pp.21-22.
9
APEJE, AAP, v. 1875, pp. 70 e 71.
76
oficiais, sem contar com os interrogatórios e um número grande de cópias que haviam
sido extraviadas. 10 Além da documentação enviada pelas delegacias, o chefe de polícia
recebia relatórios periódicos do administrador da Casa de Detenção. Os resultados
dessas informações eram repassados através de relatórios anuais ao presidente da
Província. O prédio onde funcionava a Secretaria de Polícia, na rua da Aurora, era
também a residência do chefe de polícia. Os funcionários trabalhavam no pavimento
térreo, onde eram despachadas as diligências mais reservadas a serem cumpridas pelos
delegados da capital e pela polícia secreta. 11
Uma das dores de cabeça do chefe de polícia e dos delegados era o serviço
médico- legal. Encontrar médicos que estivessem dispostos a fazer o corpo de delito
quando solicitados era uma das reclamações constantes das autoridades policiais, que
muitas vezes tinham suas diligências prejudicadas por conta disso:
Esta capital, que é uma das mais populosas do Império, ainda ressente-se da
falta de medicos propriamente da policia e que como tais tenham obrigação de
funcionar perante as autoridades policiaes.
As vistorias são feitas pelo (...) cirurgião do Corpo de Policia.
Entretanto, nem sempre são elles encontrados facilmente, e não poucas
vezes lucta a autoridade policial com serias difficuldades para a formação dos
corpos de delicto, que é a base principal do processo. 12
O cargo de médico de polícia somente veio a ser criado em 1870, com duas vagas
para estes profissionais que deveriam dar conta de todo o trabalho dentro da capital.
Logo, no entanto, foram reduzidas para uma, em 1872. O serviço deles compreendia os
corpos de delito, exames de sanidade, exumações e demais diligências médicas a que
fossem solicitadas pelas autoridades policiais. Teriam ainda que tratar até seu completo
restabelecimento daquelas vítimas que não tivessem condições financeiras para pagar o
tratamento. Não davam expedientes dentro da Secretaria de Polícia, tendo que declarar o
local de residência ao chefe de polícia a fim de serem convocados prontamente ao
serviço, coisa que freqüentemente não ocorria. As autópsias eram realizadas no
10
Idem, AAP, Sessão Presidencial de Abertura em 10 de abril de 1869, no item Polícia; Relatórios dos
Chefes de Polícia, 1886, p.8.
11
Idem, Relatórios dos Chefes de Polícia, 1886, pp. 5 e 7.
12
Idem, 1886, p.6.
77
(...) O Dr. subdelegado de Stº Antonio (...), declara que tendo procurado os
médicos da policia para vistoriar aqquele individuo não forão esses
encontrados! E não é a primeira vez que a policia tem necessidade dos
serviços de seus médicos e não os encontra; dando isso lugar a serem
retardadas as vistorias e não medicamentados ou receitados os offendidos em
tempo oportuno. Peço-vos que providencieis á respeito.15
13
APEJE, CLPPE, Lei nº 961, de 14 de julho de 1870 e Relatórios dos Chefes de Polícia, 1910, item:
Serviço Médico-Legal. Não temos informações se os exames laboratoriais dos médicos legistas eram
feitos no Instituto Vacínico durante o Império. Sabemos, no entanto, que em casos de suspeita de
envenenamento, os exames das vítimas eram realizados na Bahia. Cf. capítulo 3, p.126.
14
APEJE, CLPPE, Lei nº 1499 de 29 de junho de 1880, art.1, parágrafo 44.
15
Idem, Fundo SSP, 1ª Delegacia da Capital, Ofício do delegado Luís d’Andrade, para o chefe de polícia
Gaudino Eudóxio de Brito, 25 de outubro de 1890.
78
16
Idem, CLPPE, Lei nº 982, de 02 de maio de 1871, arts. 2º e 5º.
79
pagava razoavelmente bem. Era, no entanto, menos que um oficial mecânico ganhava, e
por isso, muitos aproveitavam o tempo livre para fazerem algum biscate. Ao contrário
dos oficiais que eram nomeados e pagavam contribuições ao Erário, não tinham direito
a aposentadoria por invalidez ou tempo de serviço, como os demais funcionários do
Estado. O fato de servirem por contrato, fazia com que não fossem considerados
empregados públicos, embora os soldados do Exército estivessem sob as mesmas
condições e tivessem o direito à reforma. Depois de servir dez, vinte ou mais anos, um
soldado de polícia era simplesmente abandonado à sua própria sorte. 17
Uma outra parte dos recrutados vinha do Exército, que como se sabe, mantinha o
sistema de recrutamento forçado e de punição a criminosos por meio do serviço militar.
Muitas vezes ocorriam permutas de soldados indisciplinados do Corpo Policial por
soldados com bom comportamento no Exército, como forma de expurgar a corporação
dos elementos perniciosos e lhes punir com um regime militar mais severo. 18
A criação da Guarda Local e da Guarda Urbana mostram duas tentativas de se
constituir forças policiais diferenciadas das corporações militares. Ambas tiveram suas
origens nas idéias de políticos progressistas da Corte, como Tavares Bastos e o
Visconde de Uruguay que aconselhavam a acabar com a polícia militarizada através da
criação de uma polícia mais descentralizada administrativamente, que pudesse ser
gerida de acordo com as necessidades locais das províncias, seus municípios e centros
19
urbanos, seguindo os modelos americanos e ingleses da época. Tavares Bastos
colocava como uma medida fundamental em questões como a da emanc ipação dos
escravos, o fato dos governos locais tomarem as medidas de segurança pública que mais
lhes conviesse:
(...) Não posso compreender como deixe de ter caracter militar uma
corporação de indivíduos encarregados de manter a ordem publica, uma
corporação de indivíduos que necessariamente devem ter uma disciplina e
andar armados para que se possam prestar ao fim da creação dessa guarda
local.
(...) Não quero dizer que a guarda local tenha o rigor da disciplina militar,
mas não pode ella deixar de ter um certo caracter militar, visto que seu mister
20
Tavares Bastos, op. cit., pp.172 e 176.
21
APEJE, AAP, v. 1874, pp.160, 177 e 183; CLPPE, Lei nº 1130 de 30 de abril de 1874.
81
Estas não eram preocupações isoladas do deputado Ratis e Silva, como o deputado
Oliveira Andrade – um dos signatários do projeto de criação da Guarda Local – deixou
claro ao responder às suas indagações afirmando ser ...isto justamente o que os nobres
deputados querem.23 Houve até quem levantasse a questão se a nova força seria ou não
aquartelada. 24
O que as discussões sobre o projeto de criação da Guarda Local deixa
transparecer, era o desejo de se criar uma polícia que combinasse as exigências de
controle sobre a população e sobre os próprios praças, usando-se da disciplina militar,
embora sem as formalidades burocráticas dos quartéis – o que não deixava de ser uma
contradição, pois as queixas em relação à disciplina dos policiais militares sempre se
fizeram presente entre as autoridades policiais. A idéia era formar uma polícia com
pessoas da localidade que não pudessem ser destacadas, que conhecessem bem a região
e os indivíduos que teriam que controlar, e que ficassem subordinados diretamente às
autoridades policiais. Era este o princípio geral de distinção entre uma polícia civil local
e uma polícia com organização militar para os deputados provinciais. Com isso, além de
uma melhor prevenção ao crime e de se ter uma força sem a necessidade do
aquartelamento, ainda se economizaria com as despesas de troca de pessoal vinda de
fora. Este era um problema que afetava tanto a segurança dos municípios mais afastados
– como as do alto Sertão –, quanto os cofres públicos. A comarca de Tacaratú, por
exemplo, distante 120 léguas do Recife, possuía em 1875 um destacamento de oito
praças. De dois em dois meses, três dessas praças iam à capital buscar o pagamento do
destacamento, levando 15 dias de viagem para ir e outros 15 para voltar, ficando na
comarca apenas cinco soldados para a guarda da cadeia, as diligências e a condução de
presos ao tribunal. Por conta disso, a população local era convocada a auxiliar no
22
APEJE, AAP, Sessão de 22 de abril, v.1874, p.190. Cf. tb. p.166.
23
Idem, ibidem.
24
Idem, ibidem, p.177.
82
25
A presença do Estado no interior de Pernambuco foi uma preocupação que acompanhou os seus
dirigentes pelo menos até o final da Primeira República. Ela não decorria apenas da falta de efetivos da
força policial, mas também do uso privado que os ocupantes dos cargos públicos faziam deles,
prevalecendo-se principalmente da distancia entre os municípios e o centro da administração
provincial/estadual. Era justamente nestas áreas de pouca atuação do Estado que o banditismo sertanejo
florescia, contando muitas vezes com o auxílio da população local que desta forma exprimia a sua
insatisfação com a ordem estabelecida. A esse respeito vide: Maria Sylvia de Carvalho Franco, Homens
livres na ordem escravocrata, capítulo III; Stela Mary Alves de Oliveira, O Poder Executivo em
Pernambuco (1890-1904), pp.178-179; Eric Hobsbawn, Bandidos, p.90.
26
APEJE, AAP, v. 1874, pp.162-204 e v. 1875, pp.70-71.
83
deputado Ratis e Silva ins istia em dizer não entender uma corporação encarregada de
manter a ordem pública sem isso. Como muitos, acreditava que sem o aparato militar,
sem a sua disciplina e distinção, a guarda perderia o prestígio e o respeito.27
Seja como for, o projeto passou sem dar à Guarda Local aparato militar, e sem
prescrever as bases para o seu regulamento, que ficaria a critério do presidente da
Província. 28 Mas estas propostas lançadas na Assembléia Legislativa eram vistas pelos
signatários do projeto como matéria a ser tratada separadamente no regulamento, o que
leva a crer que a maioria foi aceita pelo presidente da Província. Entre as propostas,
estava uma, bem aceita entre os deputados, que pedia o uso de algum distintivo ou
uniforme para diferenciar os guardas do resto da população.
Um ano depois, em abril de 1875, os deputados provinciais avaliavam como
insatisfatório o desempenho da nova força civil, que não havia conseguido ser
implementada em todos os municípios. A promessa de o governo geral enviar verbas
para a formação de uma força policial, preferencialmente desmilitarizada, para substituir
a Guarda Nacional neste serviço nos municípios, nunca foi concretizada, embora
constasse na lei de sua criação que ela seria financiada com o auxílio de 70 contos do
governo imperial. Diante deste fato, a sua organização não pôde ser realizada nas
comarcas mais pobres e distantes; e naquelas que foi, alistou-se metade do número de
praças determinado pelo governo provincial. Embora fosse verdade que a distribuição
dos praças não seguisse exatamente o critério da necessidade e sim o do prestígio
político, de forma que certas localidades tinham um contingente maior do que o
necessário em detrimento de outras, havia também o desestímulo causado pelos baixos
salários que levava a poucos desejar o serviço. Um praça ganhava mil réis diários, sem
as outras gratificações e vantagens oferecidas aos policiais militares. Esse salário
tornava-se menos atraente ainda, nas comarcas próximas ao Recife e nas áreas por onde
passava a estrada de fe rro. Nestes locais, a diária de um trabalhador rural ficava em
torno de 1$500 a 2$500 réis. 29
A situação do guarda local foi bem resumida pelo deputado Ratis e Silva, um dos
defensores da melhoria de condições para as praças de policia:
27
APEJE, AAP, v.1874, p.190.
28
Infelizmente não encontramos os regulamentos nem da Guarda Local, nem da Guarda Cívica, que
poderiam nos esclarecer melhor a respeito do funcionamento delas e se sua disciplina teve alguma relação
com a militar ou não.
29
APEJE, AAP, vls. 1875, p.70 e 1874, p.184.
84
30
Idem, ibidem, v. 1874, p.190.
31
Idem, ibidem, pp.163, 164 e 190.
85
superando o valor de 70 contos de réis com que o governo geral prometia destinar a
cada província para a formação de sua polícia municipal. A criação desses postos e a
remuneração dada eram justificadas como sendo uma necessidade de se ter um
substituto à autoridade policial quando este estivesse ausente, e de se ter um comando
mais estimulado a cumprir as suas funções corretamente. Estes cargos, contudo,
pareciam ser dispensáveis, pois cada destacamento poderia ser comandado
simplesmente por um guarda designado para tanto, recebendo uma gratificação pelo
serviço, uma vez que de toda forma – com ou sem comissário e sargento – estavam sob
as ordens dos delegados e subdelegados. Era praxe isso acontecer na Guarda Nacional:
dos 22 destacamentos designados para o serviço de policiamento de Pernambuco,
apenas 5 eram comandados por oficiais, enquanto os 17 restantes eram comandados por
inferiores, ficando todos sob as ordens das autoridades policiais. Ao que tudo indica,
esta foi mais uma forma de criar cargos públicos, em detrimento de uma força policial
bem paga e organizada. No ano seguinte, os oficiais do Corpo de Polícia recebiam novo
aumento. 32
A experiência com a Guarda Local se encerrou em 27 de março de 1878, apesar
da hesitação do vice-presidente da Província, que acreditava valer a pena dar mais
tempo para a Guarda ser avaliada e melhorada de acordo com a experiência. Uma lei de
1877, autorizava a sua alteração, supressão ou incorporação no Corpo de Polícia. 33
Embora representasse uma economia para a Província no que dizia respeito ao antigo
sistema de troca de pessoal vindo de fora, a principal causa para a sua extinção deve ter
sido a falta de recursos para a sua devida implementação no interior. No ano que foi
criada, Pernambuco teve uma despesa com a força policial de 311:079$700, incluindo
as despesas com iluminação de quartéis e armamentos. Nesta despesa a Guarda Local
não estava incluída, certamente com o governo contanto com a verba do governo geral.
Sem receber o prometido, o orçamento da Província com a força policial para o ano
seguinte subiu para 497:231$000. Até a sua extinção, a Guarda Local constava da folha
de pagamento do governo provincial: 218:000$000, em 1877, bem mais que os 70
32
APEJE, AAP, v. 1874, pp.163, 166-167, 184-185; CLPPE, Lei nº 1162 de 26 de abril de 1875, art.3: o
comandante e o 1º cirurgião passaram a receber mais 20$000, e os demais oficiais, inclusive o
2ºcirurgião, mais 10$000.
33
APEJE, Relatório com que o Ex. Sr. Dr. Adelino Antonio de Luna Freire 1º vice-presidente passou ao
Ex. Sr. Dr. Adolpho de Barros Cavalcante Lacerda, presidente effectivo a administração desta provincia
a 20 de maio de 1878, p. 25; CLPPE, Lei nº 1235 de 1º de junho de 1876, art.9.
86
contos que lhe seriam destinados. 34 Embora fosse verdade que a despesa com a força
policial ficasse nesse patamar antes da Guarda Local ser criada, o governo provincial
esperava não ter mais esse gasto com a ajuda do governo imperial.
Havia, por outro lado, dúvidas sobre os resultados de sua atuação e organização.
Dois anos depois de criada, o presidente da Província ainda não tinha certeza de como
deveria ser mantida sua organização, principalmente no que se referia à sua direção e
inspeção que, pelo regulamento, deveria ficar a cargo dele próprio. Para decidir sobre o
seu futuro, foi feito um levantamento sobre seus serviços pelos juízes de Direito e por
um oficial. O resultado, contudo, não conseguiu convencer os deputados provinciais a
fazer com que a Guarda Local permanecesse por mais tempo. 35 Ela, no entanto, seria
reorganizada no período republicano.
A outra tentativa de constituição de uma polícia civil, foi realizada com a criação
de uma força destinada exclusivamente ao policiamento da cidade, que seria a Guarda
Urbana. Foi criada a partir dos moldes da polícia de mesmo nome criada em 1866 na
Corte. Esta seria o corpo civil da força policial urbana, estando diretamente subordinada
ao chefe de polícia, que não precisaria fazer requis ições ao presidente da Província para
utilizá- la, e desembaraçada da disciplina militar, vista pelos políticos de então, como um
fator de dispersão ao objetivo do policial, o qual estaria mais empregado nas obrigações
impostas dentro dos quartéis do que na vigilância preventiva das ruas. Os guardas
urbanos, seguindo o modelo do policial londrino – os famosos bobbies – seriam
policiais remunerados que deveriam morar no distrito aonde atuariam, de forma a
reconhecerem os indivíduos inclinados às contravenções e crimes e com isso poderem
prevenir suas ações. Como os bobbies, não portariam armas de fogo, embora fossem
armados de sabres, e usassem uniforme, como também ocorria com policiais civis de
algumas cidades americanas. Em cada distrito existiam estações e postos de vigilância
com um comandante que ficaria responsável pelo destacamento diante dos
34
APEJE, Relatório com que o Exm. Sr. Dr. Manoel Clementino Carneiro da Cunha passou a
administração dessa província ao Ex. Sr. Desembargador Francisco de Assis Oliveira Maciel, em 15 de
novembro de 1877, p.12; CLPPE, Lei nº 1141 de 8 de junho de 1874 e Lei nº 1179 de 12 de junho de
1875.
35
APEJE, FALLA com que o Ex. Sr. Dr. Manoel Clementino Carneiro da Cunha abriu a sessão da
Assembléia Legislativa Provincial de Pernambuco, em 2 de março de 1877, p. 16; Relatório com que o
Exm. Sr. Dr. Manoel Clementino Carneiro da Cunha passou a administração dessa província ao Ex. Sr.
Desembargador Francisco de Assis Oliveira Maciel, em 15 de novembro de 1877 , p.12.
87
36
Thomas H. Holloway, op. cit., pp.22, 216-217; Neder, Naro, e Silva, op. cit., pp.158-165.
37
APEJE, AAP, Sessão Presidencial de Abertura em 10 de abril de 1869, item Força Pública.
38
APEJE, CLPPE, Lei nº 1235 de 1º de junho de 1876.
88
seria aumentada em mais cem praças, mas nos anos seguinte esse número seria
novamente reduzido para 100 e 150. 39
O comandante geral da Guarda Cívica ganhava o equivalente a um capitão do
Corpo de Polícia, e os comandantes de distrito igual aos alferes. As praças ganhavam
1$500 réis diários, mais que os 1$300 diários dos soldados do corpo militar e, como
eles, recebiam fardamento gratuito; não tinham, no entanto, direito a refeições,
alojamentos e serviços médicos, como seus colegas da polícia militar. Podiam, contudo,
se valer do horário de folga para exercerem outra atividade profissional. 40
A Guarda Cívica durou até o fim do Império, o mesmo não tendo acontecido com
sua similar do Rio de Janeiro, que foi extinta em 1885 por não ter conseguido alcançar
seus objetivos. Ao contrário do que as autoridades civis do Rio de Janeiro esperavam, a
falta de uma disciplina mais rígida agravou os problemas de insubordinação, abuso de
força , falta de decoro durante o serviço, além de conivência com determinados crimes e
contravenções. No caso do Recife, ela demonstrou que poderia ter dado certo, caso as
autoridades tivessem dado mais apoio a instituição. Em menos de um ano de seu
funcionamento, de agosto de 1876 a março de 1877, ela conseguiu diminuir os crimes
contra a propriedade. O chefe de polícia se comprazia com o fato de que nos três
últimos meses do ano – os meses em que os moradores mais abastados iam passar o
verão no campo, deixando suas casas desprotegidas, quando então os ladrões
aproveitavam para “fazer a festa” – só havia ocorrido dois casos de roubo a
residências. 41 Mas com o passar do tempo foi apresentando problemas que levaram a
sua extinção no início da República.
Um desses problemas era o número pequeno da força que não conseguiu
acompanhar o crescimento da população e os muitos serviços que tinha de
desempenhar. Além do policiamento da cidade – para a qual ela havia sido criada
exclusivamente –, tinha que escoltar presos para o tribunal e salas de audiência. Em
certos anos, o seu contingente chegou a cem – embora os problemas de segurança da
39
APEJE. CLPE, Lei nº 1263 de 4 de julho de 1877, Lei nº 1351 de 6 de março de 1879. Lei nº 1500 de
29 de junho de 1880, Lei nº 1710 de 14 de julho de 1882, Lei nº 1802 de 2 de junho de 1884 e a Lei nº
1900 de 4 de junho de 1887.
40
APEJE, CLPPE, Lei nº 1235 de 1º de junho de 1876, art. 6; Thomas H. Holloway, op.cit., p.216; Naro,
Neder e Silva, op. cit., p.163.
41
APEJE, Relatório apresentado ao Ex. Sr. presidente da província de Pernambuco pelo respectivo
doutor chefe de policia em 13 de fevereiro de 1877,p.5.
89
cidade aumentassem – e a redução dos salários, que ainda que tenha atingindo toda a
Força Policial, indicando um esforço da Província em cortar despesas, teve um impacto
muito grande sobre os guardas cívicos, que de 1$500 diários, passaram a receber 1$100,
menos até do que os praças do corpo militar que anteriormente percebiam um soldo
inferior ao deles. 42
Pouco tempo antes de sua extinção definitiva, já durante a República, foi aberto
inquérito contra um sargento e um comissário da corporação que estavam emprestando
dinheiro aos praças a juros de até 20%; e isto, segundo o sargento, com o conhecimento
do Comandante Geral da Guarda Cívica, que quando qualquer soldado lhe procurava
pedindo adiantamento, mandava procurá- lo. O esquema de agiotagem envolvia também
pessoas de fora, os quais seriam os verdadeiros usurários. No inquérito contra o
comissário da guarda cívica, ele aparecia como intermediário dessas pessoas, a quem
repassava diretamente o soldo dos guardas como pagamento dos juros, sem que ao
menos estes chegassem a receber o salário do mês. 43
A redução nos salários e a agiotagem que devia estar acontecendo já algum
tempo, deve ter causado um desestímulo grande nos guardas cívicos na execução de
suas obrigações e dado margem para que muitos usassem da autoridade que possuíam
para fins pessoais. O mais comum desses desvios era o abuso de força, o que levou ao
presidente da Província a afirmar que ...seria preciso reorganizar esta guarda, de modo
que ella, conciliando a delicadeza com a energia e actividade, se tornasse apta para
evitar conflictos, prevenindo ou reprimindo, mas nunca provocando.44
Uma reclamação contra a Guarda Cívica, publicada no Jornal do Recife em maio
de 1877, resume bem os problemas que atingiam essa instituição:
42
APEJE, CLPPE, Lei nº 1900 de 4 de junho de 1887; cf. tb. as referências da nota nº 17.
43
Idem, Fundo SSP, 1ª Delegacia da Capital, Ofícios de 17 de outubro e 3 de novembro de 1890.
44
APEJE, FALLA que á Assembleia Legislativa de Pernambuco no dia de sua installação a 2 de março
de 1887 dirigio o Ex. Sr. presidente da provincia Dr. Pedro Vicente de Azevedo, p.21.
90
agentes são ou devem ser homens calmos e versados da lei para antes
evitarem crimes ou faltas do que punil-os, deixa-se ver a luz da evidencia, que,
se não fora esse grande principio, escusado seria a confecção das leis
preventivas, mas infelizmente além do pessimo pessoal e o requintado
analphabetismo, somos testemunhas dos effeitos praticados por autorisação
de alguns dos officiaes que compõem a guarda cívica...45
A falta de disciplina era tão grande entre os policiais civis, que o subdelegado de
São José chegou a solicitar ao delegado do 1º Distrito da Capital que substituísse o
destacamento de guardas cívicos da freguesia por policiais militares, porque
abandonavam o posto a pretexto de ir tomar o café da manha ou almoçar e só
retornavam à noite. 46
Seja como for, não há razões para pensar que a Guarda Cívica teve um
desempenho muito diferente da criada na Corte. O fato de manterem relações pessoais
com a comunidade a que policiavam, teve um efeito contrário ao que era esperado pelas
elites. Na discussão sobre a constituição da Guarda Local, o deputado Nascimento
Portella, com a experiência de quem já havia sido presidente de Pernambuco, acreditava
que muito mais que alguém da própria localidade, um estranho estaria mais no caso de
ser cooptado pela rede de favores, uma vez que ...dentro em pouco as relações se
formam da mesma maneira ou talvez que com mais força, por isso mesmo que se
recebem obsequios, favores, attenções. 47
Como o próprio deputado afirmava, os favores prendiam, mesmo que em graus
diferentes, tanto o estranho quanto o indivíduo da localidade, uma vez que a troca de
favores entre os homens pobres livres era uma forma de complementar as suas
necessidades, numa sociedade onde a economia escravista deixava-os à margem do
mercado de trabalho. 48 As relações interpessoais em nossa sociedade serviam não para
coib ir os possíveis desvios que pudessem acontecer, mas como uma forma de fugir à
punição, caso fosse amigo do guarda, ou de sofrer perseguições, caso fosse um desafeto.
45
Jornal do Recife, 19/05/1877.
46
APEJE, Fundo SSP, 1ª Delegacia da Capital, Ofício de 23 de junho de 1887.
47
APEJE, AAP, v. 1874, p.162. Os grifos são meus.
48
Maria Sylvia de Carvalho Franco, op. cit, capítulo III.
91
49
Décio Saes, A Formação do Estado burguês no Brasil (1888-1891), pp.102, 127-128. Grifos do autor.
92
comportamento de indivíduos que pudessem alterar a ordem pública. Mas as coisas não
funcionavam exatamente assim. 50
Apesar do fato de que pertencer a Guarda Nacional fosse uma forma de escapar ao
recrutamento, os praças desta corporação, não foram poupados de serem convocados
para a guerra, na defesa das fronteiras e costas do Império, função essa destinada, nos
países de burocratismo burguês, fundamentalmente ao Exército. 51 O decreto 3.383, de
31 de janeiro de 1865, convocaria 14.996 guardas nacionais, sendo enviadas da
província de Pernambuco 2.424 praças. 52
Da mesma forma o Corpo de Polícia também cumpriria serviço de guerra, como
Voluntários da Pátria, embora esta “voluntariedade” tenha sido posta em dúvida por
alguns dos deputados provinciais. Em sua fala de abertura da Assembléia Legislativa, o
presidente da província, Antonio Borges Leal Castello Branco, colocava a questão do
Corpo Policial se oferecer para os esforços de guerra, e assim juntar mais um trophéo á
gloria e heroísmo de Pernambuco. Confiante nesta decisão, já pedia a Assembléia que
decidisse se iriam marchar por conta da Província ou do Estado, se deveria ser criado
outro corpo policial e em que condições. 53 Já o deputado pelo Partido Liberal, José
Maria, não parecia muito confiante de que os soldados da polícia estivessem tão
interessados assim em honrar os brios de Pernambuco. Em seu discurso na discussão
sobre o projeto que autorizava ao presidente da província a deixar marchar o Corpo de
Polícia, afirmou não ter este o gosto pela guerra, uma vez que não eram propriamente
militares, e sim homens engajados para fazer o serviço de policiamento, não para
50
Idem, p.126.
51
Embora constasse do regulamento da Guarda Nacional ser uma de suas funções o de proteger as
fronteiras e as costas do Império, o nosso propósito é ressaltar a confusão de atribuições entre as forças
de um modo geral, não importando se isto se dava por conta da falta de regras claras ou simplesmente
devido às próprias regras que sobrepunham as funções de cada corporação, gerando por isso desgastes no
relacionamento delas. Ainda que a guerra seja um momento de exceção em que todos os esforços são
concentrados no sentido de combater o inimigo, os países que adotam o burocratismo burguês mantêm
uma força reserva subordinada ao Exército (ou às Forças Armadas), a qual no momento em que precise
ser ativada é convocada formalmente e recebem um treinamento básico anterior ao momento de ir para a
frente de batalha. Este não era o caso da Guarda Nacional que sempre atuou independentemente do
Exército, não aceitando no seu oficialato, oficiais vindos desta corporação, como ocorria com os corpos
de polícia, além de ser uma força paramilitar. Cf. Jeanne Berrance de Castro, “A Guarda Nacional” in
História Geral da Civilização Brasileira, pp.274-298; Antônio Rodrigues et all, A Guarda Nacional no
Rio de Janeiro, 1831-1918, pp.45 e 221-224.
52
APEJE, AAP, Sessão Presidencial de Abertura em 1º de maio de 1865, p.12. Pernambuco enviou sete
batalhões de Voluntários da Pátria para a guerra, o mesmo número que o Rio de Janeiro, sendo superado
apenas pela Bahia, que enviou treze. Cf., Neder, Naro, e Silva, op. cit., p.141.
53
APEJE, AAP, Sessão Presidencial de Abertura em 1º de maio de 1865,p.12.
93
54
Idem, Sessão de 30 de março de1865, p.206. Apesar de que corpos de polícia de outras províncias já
tivessem se oferecido para lutar no Paraguai, isto não significava um maior patriotismo do que o dos
pernambucanos. O deputado José Maria denunciava em plenário que os oficiais das outras províncias se
apresentaram para a guerra devido às ameaças de demissão dos presidentes, e cita como exemplo o
presidente da Bahia que havia demitido todos os oficiais que haviam se negado a marchar. Conta ainda
este deputado, que um presidente havia feito um emocionado discurso sobre os sacrifícios que faria pela
pátria, indo ele próprio lutar nos campos paraguaios se assim o pudesse, e pediu que aqueles que
quisessem fazer o mesmo dessem um passo a frente junto com ele. Ao olhar para trás, no entanto, viu que
ninguém o tinha seguido. Diante disso, o presidente teria dito: Senhores, se não quereis ir como
voluntários, ireis como recrutados, e em lugar de irdes amarrados como porcos, é melhor irdes como
voluntários. Cf. Idem, ibidem, p.211.
55
Márcio Lucena Filho, Pernambuco e a Guerra do Paraguai, pp.39-65.
94
a colégio pago pela província enquanto estivessem fora, ou até a maioridade, caso
viessem a falecer. Os oficiais que tivessem se distinguido na guerra não poderiam ser
demitidos, senão a seu pedido ou por sentença condenatória de prisão ou degredo por
mais de 2 anos. Estes foram benefícios que nenhum outro cidadão teve, nem mesmo os
guardas nacionais, e que na visão de alguns deputados, desestimularia aos cidadãos
comuns a sentarem praça como Voluntários da Pátria. 56
Esta confusão de atribuições causou problemas na hora de definir como o Corpo
de Polícia marcharia para a guerra e por quem seria ele pago, uma vez que as forças
policiais não eram legalmente tidas como forças auxiliares e de reserva do Exército,
como ocorre hoje em dia 57 . Caso fosse considerado em comissão extraordinária, deveria
ser pago pela província; se como corpo de voluntários, deveria ser pago pelos Cofres
Gerais. Necessariamente, para servirem como voluntários, teriam de pedir baixa porque
não poderiam exercer duas funções ao mesmo tempo, mas mesmo nessas condições a
província os considerava como Polícia e assegurava todas as vantagens dadas a esse
Corpo mais aquelas que o beneficiava como em missão especial. 58
Na ausência do Corpo de Polícia, foi criado em seu lugar um Corpo Provisório de
Polícia, que seria dissolvido logo após o regresso das praças em missão de guerra.
Como este Corpo Provisório só contasse com 500 praças para fazer o policiamento de
toda a província, a Guarda Nacional teve que auxiliar na condução dos presos para o
tribunal, além da guarnição de todas as fortalezas, que era fe ita por soldados de 1ª linha,
como também por destacamentos de polícia. 59
Poderia se pensar que esta invasão de atribuições de uma força pública por outra
fosse uma condição temporária, causada por efeito de uma situação extraordinária como
a guerra. Mas não era. A Guarda Nacional tinha como uma de suas principais
obrigações o auxílio no policiamento dos municípios e paróquias, além da guarda das
respectivas cadeias, serviço esse que era muito criticado, principalmente no interior, por
falta de homens e de quem o quisesse fazer, chegando mesmo os seus soldados a
abandonarem uma prisão que estava sob seus cuidados. Fora as da capital, as praças da
Guarda Nacional quase não tinham fardamento, armamento e instrução militar. O
56
APEJE, AAP, v.1865, pp.117, 118, 153, 154, 155, 168, 205.
57
Cf. Luiz Carlos Rocha, Organização policial brasileira, p.246.
58
APEJE, AAP, v.1865, pp.157-158.
59
Idem, ibidem,v.1865, p.10 e v.1869, item Força Pública, s/p.
95
desinteresse dessa força era compreensível: seus integrantes não recebiam remuneração
pelos seus serviços, tinham que fornecer armas, fardamento e cavalos, além de terem
que abandonar os seus meios de vida. Talvez essa tenha sido um das razões pelas quais
o governo imperial tenha lhe dispensado do serviço ativo pela Lei nº 2.395 de 10 de
setembro de 1873, e incentivado as províncias a criarem uma nova força para o
policiamento do interior. 60
A falta de remuneração não era um aspecto que atingia apenas a Guarda Nacional.
Fora os oficiais e soldados do Corpo de Polícia – que tinha caráter militar e como o
Exército recebia soldo –, bem como o chefe de polícia, os delegados, subdelegados e
inspetores de quarteirão – tipo de policial à paisana que funcionou até inícios da
República –, não recebiam nenhum tipo de pagamento; ao contrário, muitas vezes
tinham que empregar seus próprios meios materiais para o serviço público. Não era para
menos que o perfil da antiga autoridade policial era a do cidadão abastado, ativo e
disposto a servir à causa pública, quase sempre um fazendeiro ou comerciante. 61
Lógico que não era só isso. Atrás de toda essa disponibilidade para o serviço
público havia os interesses políticos que uma força armada podia oferecer. A lei de
1841 dava direito judicial aos delegados e subdelegados que, além de investigar crimes,
reunir provas e indiciar suspeitos, podiam julgar e sentenciar aqueles culpados de
crimes menores. Esta sobreposição de poder policial e judicial só foi modificada com a
reforma do código criminal em 1871. 62 Até esta reforma, as autoridades policiais
podiam utilizar com mais facilidade o seu poder de forma arbitrária, em seus interesses
particulares, o que tornava os cargos bastante cobiçados. Depois de 1871, começa a se
sentir o desestímulo entre a classe dominante em querer ocupar uma vaga de delegado
ou subdelegado. 63 É neste momento também que se começa a falar em remuneração
àqueles que exercem um desses cargos, querendo atribuir a eles um caráter mais
60
APEJE, AAP, v.1874, pp.168 e 175.
61
Idem, ibidem, v.1874, p.167.
62
Thomas H. Holloway, op. cit. p.227.
63
Até o final da Primeira República, mais ou menos, os cargos de delegado e subdelegados seriam
ocupados comumente por oficiais da polícia militar ou por membros da classe média. Alguns deles eram
homens de cor e sabiam jogar capoeira. É importante frisar, no entanto, que mesmo sem o poder e o
prestígio que tinham antes da reforma de 1871, eles continuaram a ter presença marcante no cenário
político da época, na medida em que muitos eram cabos eleitorais em seus distritos. Cf. Oscar Mello,
Recife sangrento, pp.102-119.
96
profissional, embora este fosse um ponto que trouxesse implicações sobre as obrigações
das elites perante o serviço público.
Em 1875, em uma das discussões sobre a criação da guarda local para as
freguesias na Assembléia Provincial, é levantada a questão da remuneração aos
delegados e subdelegados, uma vez que todos concordavam que o cerceamento das
atribuições pela reforma de 1871 fez com que quase mais ninguém quisesse os cargos.
A opinião se dividia no momento em que se colocava em cheque o dever moral dos
membros mais abastados da sociedade em mostrar o seu patriotismo e abnegação ao
serviço da sociedade, e não apenas nas suas próprias causas, como ficava evidente. Ao
afirmar não ter dúvidas de que ... polícia boa e gratuita é uma utopia, o deputado
conservador Oliveira Andrade ao mesmo tempo em que ganhou “apoiados”, teve que
enfrentar manifestações de desagrado de seus colegas de partido, que afirmavam ainda
ter muitos patriotas que serviriam a causa pública:
(...) não podemos dizer sem offensa dos bons cidadãos que em todos os
tempos de um e outro partido, de uma e outra situação, tiveram sempre
abnegação aos seus commodos e aos seus interesses (apoiados), tiveram
sempre bastante patriotismo para sacrifical-os e até a própria vida no
cumprimento dos deveres de um cargo policial (apoiados); tiveram sempre
bastante patriotismo para sujeitarem-se á disposição da lei que os obriga a
servir.
(...) ainda há muitos homens de bem, que se dedicam pela causa pública, que
não terão duvida de aceitar uma commissão policial e sacrificar-se no
desempenho della (apoiados), respond ia indignado o deputado Nascimento
Portella. 64
No meio dessa discussão sobre os deveres morais das elites para com o Estado,
um outro deputado conservador colocava as razões de não se ter boas autoridades
policiais, no fato das nomeações recaírem em pessoas que não eram as mais capazes e
habilitadas, reafirmando sem querer com essas palavras, a falta de profissionalismo que
existia nessa área, ao não se ter uma polícia paga e de carreira. 65 O chefe de polícia,
64
APEJE, AAP, v.1875, pp. 167 e 172.
65
APEJE, AAP, v.1875, pp. 169.
97
66
APEJE, Relatórios dos Chefes de Polícia, 1886, pp.7-8.
98
destinado ao delegado, ele se queixava de que daquela forma era impossível cumprir
com suas obrigações. 67
Outro fato ocorrido no interior de Pernambuco mostra que as funções policiais
poderiam ser facilmente desvirtuadas, caso não houvesse interesse do presidente da
Província em apaziguar os conflitos entre a própria classe senhorial. Este caso envolvia
o assassinato do alferes Iago Rodrigues Lins de Albuquerque, na freguesia de Águas
Belas, do termo de Bonito, já como resposta ao assassinato do major Lourenço Bezerra
de Albuquerque Maranhão. Como membros dessas famílias estavam investidos de
cargos policiais e juravam vingança recíproca, o delegado de Bonito, o tenente-coronel
Manoel Camello Pessoa Cavalcanti, que não pertencia a nenhum dos grupos envolvidos,
preferiu não se envolver no caso e pediu demissão, aproveitando o presidente da
Província deste fato para demitir o subdelegado e os suplentes, e deixar o caso nas mãos
de um juiz Municipal. 68
Se os cargos maiores dentro da hierarquia da polícia serviam aos interesses
econômicos e políticos da classe senhorial, que não tinham problemas em não receber
remuneração pelo serviço, os cargos menores serviam como um meio de se conseguir
um dinheiro extra, a quem muita diferença fazia em não ter o seu tempo de trabalho
remunerado. Era o que ocorria com os inspetores de quarteirão. Embora
reconhecidamente sem grandes poderes dentro da hierarquia policial69 , mesmo assim
conseguia se valer dos poucos que tinha em proveito próprio. Muitos eram
freqüentemente envolvidos em acusações de suborno e contravenções. Enquanto certas
tabernas eram denunciadas por funcionarem em dias e horários proibidos, outras tinham
liberdade de agir como bem entendesse, contando com a cooperação tanto dos fiscais da
Câmara Municipal, quanto dos inspetores de quarteirão, igualmente responsáveis por
fazer cumprir as posturas municipais, isto em troca de propinas. Um jornal da época
denunciava os abusos cometidos por um inspetor de quarteirão da Madalena,
analphabeto e preguiçoso, que delegava seus poderes de polícia a um seu filho. Este,
com a conivência do pai, era um visitante assíduo dos galinheiros da região, além de
67
APEJE, Fundo SSP, 1ª Delegacia da Capital, Ofício do inspetor de quarteirão para o subdelegado do
2º distrito de (São José ?), 20 de julho de 1867.
68
APEJE, AAP, Sessão Presidencial de Abertura em 10 de abril de 1869, s/p.
69
Pereira da Costa recolheu uma quadrinha popular que brinca com a condição deste policial paisano:
Caranguejo é doutor,/O siri é capitão,/Aratu por ser pequeno/Inspetor de quarteirão. Folk -lore
pernambucano, p.511. Agradeço a Raimundo Arrais por esta indicação.
99
apreender frutos e outros gêneros trazidos por escravos e almocreves, sob o pretexto de
serem roubados. 70
Por último, temos como uma outra característica pré-burguesa da constituição da
polícia imperial, a interdição de escravos no quadro policial, o que era natural numa
sociedade escravista que tinha como uma de suas metas o controle sobre os escravos.
Não havia, no entanto, sinais de discriminação racial na composição de sua tropa,
constituída de elementos vindos das camadas mais pobres da população, e por isso
mesmo, daqueles que mais haviam experimentado a miscigenação. 71
• Período Republicano
70
DP, 16/12/1887 e 22/10/1879.
71
Décio Saes afirma em seu trabalho que não há evidências de escravos terem sido aceitos na tropa da
polícia; Thomas Holloway, porém, encontrou vários casos de escravos fugidos que passavam-se por livres
e conseguiram se engajar na força policial da Corte. Cf. op. cit., pp.127-128 e Thomas Holloway, op. cit.,
p.163.
72
Cf. Décio Saes, op.cit., pp.349-353.
73
Op. cit., pp.172-180.
100
Logo que se inicia a República, uma das primeiras providências dos novos
governantes – integrantes do antigo Partido Conservador – em relação à força policial
em Pernambuco, é a extinção do Corpo de Polícia e da Guarda Cívica, sendo em seus
lugares restabelecida a Guarda Local, a qual ficaria agora com a incumbência de
policiar também a capital. Os motivos para a reformulação desta guarda se prendiam a
vários fatores já discutidos no governo imperial, como uma melhor vigilância feita por
74
Cf. Marcos Bretas, op. cit., pp.44 e 66.
101
polícia só poderia destacar a força para fora de seus municípios de origem em casos de
grande necessidade, ...taes como perseguição aos criminosos que estiverem em bandos
e grave alteração na ordem publica. 78
No seu novo regulamento, no entanto, o que mais chama atenção é a sua
militarização, imposta pelo novo governo. Ao contrário da criada pelos políticos
progressistas dos tempos do Império, a Guarda Local dos Municípios além de possuir
aparato militar, seria aquartelada. 79 As punições para as faltas e crimes cometidos, eram
similares às dadas às corporações militares. 80 Outra influência deve ter sido a admissão
de muitas praças do Corpo de Polícia, que haviam acabado de perder seus empregos. A
presença do Exército ficaria mais patente com a criação da Brigada Policial do Estado
de Pernambuco, formada pela Guarda Local e o Esquadrão de Cavalaria. 81
Como aconteceu no Império, a Guarda Local teve vida breve durante a República.
Em pouco mais de um ano o Corpo de Polícia foi restaurado para exercer as funções de
guarnição dos estabelecimentos públicos e condução dos presos, uma vez que a Guarda
Local não estava sendo suficiente. 82 Ela havia sido criada com o intuito de ser
substituída por uma outra força logo que os municípios estivessem definitivamente
organizados e aptos a custearem essa despesa. Entretanto, o Congresso pernambucano
não aceitou continuar sustentando a polícia municipal, 83 considerando-a insatisfatória ao
serviço policial dos municípios devido ao pouco número de praças que formavam seus
destacamentos, por ser onerosa ao Estado, que economizaria cem contos de réis com a
sua extinção, e prejudicial a unidade de comando que se esperava reaver com a
reestruturação da força estadual. 84
78
APEJE, Relatório do Barão de Lucena, p.3 e o anexo Regulamento da Guarda Local de 9 de outubro
de 1890, art.4º, p.41.
79
Cf. Idem, Regulamento da Guarda Local..., arts.30, 34 e 41.
80
As punições eram as seguintes: 1ª Repreensão em particular; 2ª Repreensão por ofício; 3ª Carregamento
de armas; 4ª Limpeza de armamento; 5ª Serviço dobrado; 6ª Desconto para reposição; 7ª Perda parcial do
soldo; 8ª Prisão simples; 9ª Prisão com isolamento; 10ª Baixa do serviço local; 11ª Exclusão da Guarda
Local com destino ao Exército ou a Armada, se não tiver isenção do recrutamento; 12ª Demissão do
posto. Cf. Regulamento da Guarda Local de 9 de outubro de 1890, art.75.
81
APEJE, CLEPE, Decreto de 19 de dezembro de 1891.
82
Idem, ibidem. Na verdade, a falta de praças para esse serviço continuou a ser sentida. O juiz do 2º
Distrito Municipal do Recife, reclamava em um ofício ao questor, de que por duas vezes seguidas havia
solicitado a presença de um réu à Sala das Audiências, sem que o administrador da Casa de Detenção o
enviasse, alegando ...a falta do comparecimento da força destinada para esse fim. , o que ...embaraçava a
marcha da justiça....APEJE, Série Juízes Municipais, 24 de abril de 1896.
83
APEJE, AS, 1892, p.224.
84
Idem, CLEPE, Decreto de 1º de outubro de 1892.
103
Embora fosse prevista a autonomia dos municípios em todos os seus níveis pela
Constituição do Estado, inclusive no que se referia à formação de uma milícia própria,
era sentida a fragilidade deles em razão dos poucos recursos que tinham para sustentá-
la, além dos perigos impostos pela própria forma de dominação. Caso um município não
tivesse condições de sustentar a sua própria polícia, ele deveria ser anexado à jurisdição
de outro que tivesse os recursos necessários, o que geraria conflito dentro da própria
classe dominante. Havia o perigo dos coronéis do interior terem a seu comando uma
força que poderia ser utilizada em rixas pessoais entre os mandões dos municípios ou
que poderia ser antagônica aos interesses do governo do Estado, sem que a situação
fosse restabelecida com a prontidão exigida, por falta de uma força sob o comando do
governador. 85
Por outro lado, a polícia municipal traria problemas operacionais. Sendo cada uma
restrita a sua municipalidade, as autoridades não poderiam agir com a mesma eficiência
que uma força estadual na captura de criminosos que fugissem de sua jurisdição;
prender, processar e punir aqueles que fossem de outros municípios; combinar
85
Idem, AS, 1893, pp.123-152. Este ofício de um juiz de Distrito da vila de Boa Vista ao questor policial,
dá uma idéia de como se processavam esses conflitos entre autoridades policiais e os “coronéis” dos
partidos rivais:
Juízo Districtal de Bôa Vista, 12 de julho de 1894
Cidadão
No dia 5 de fevereiro do corrente anno, pelas 5 horas e tantos minutos da tarde, chegou em casa de
minha rezidencia o Cidadão Manoel Hygino, dando-me um recado; que o Cidadão João Marinho de
Mello, Feitor da linha telegráfica aqui estacionada, mandara dizer-me que fizesse o favôr de hir atté á
casa de sua rezidencia; e logo prontamente segui.
Quando cheguei na casa do ditto Feitor, disse-me elle, que tendo feito pagamento a um operario da
mesma linha, de nome André Thomé, e esse não querendo conformar-se com o que justamente tinha á
receber uzou de heroismo com o dito Feitor, ameaçando-o, e ao mesmo tempo, dirigindo palavras, que, á
decencia manda calar.
Pelo que me chamara á minha attenção, para na qualidade de autoridade policial, a fim de acomodar
semelhante agressão, imediatamente chamei duas praças da guarda municipal d’esta Villa, e mandei
effetuar á prisão do individuo de nome André Thomé, e este armado com um punhal, resistiu, contra á
força publica, porem, sendo o numero de praça rezumido, não tive força para repelir semelhante
agressão, eis, quando aparece o cidadão Major Vicente de Carvalho Vintera, e meia duzia de capangas,
todos da politica adversa, dando, o braço ao agressor, conduzindo para sua casa, dizendo que não tinha
quem o prendesse.
Neste interin tomei serias providencias; porem, não contando com elemento da força, visto ser rezumido,
aguardei-me até que chegasse ao vosso conhecimento, afim de mandar para aqui um numero de praças,
para garantia das autoridades, e á moral publica d’esta Villa.(grifos meus). O juiz de Direito da mesma
vila, por sua vez, apressou-se a comunicar o fato ao governador Barbosa Lima, pedindo reforço policial,
uma vez que no local havia uma aglomeração de operários trabalhando na linha telegráfica e na comissão
de melhoramento do Rio São Francisco, com sede naquele município, o que poderia dar ocasião a que os
oposicionistas utilizassem outros conflitos iguais ao que havia acontecido. APEJE, Série Juízes de
Direito, 1894, pp.385-387.
104
diligências ou destacar forças para outras localidades. 86 Por isso, era visto a necessidade
de se manter a polícia do Estado ao lado da municipal, o que, do contrário, seria para
alguns como ... um atentado que se commette contra a bôa ordem e harmonia social
(...) principalmente quando as municipalidades estão anarchisadas e entregues a
corporações cuja autoridade é desconhecida. 87
O problema com os municípios e a quebra de comando na polícia podem ser mais
bem entendidos através da organização da Questura Policial. Instituída em novembro de
1891, inicialmente ela havia sido pensada como uma forma de substituir a organização
policial da monarquia, que persistia nas figuras dos delegados e subdelegados, ficando
em seus lugares os subquestores, os quais supervisionariam a polícia organizada pelos
municípios, e ficariam subordinados ao questor, que teria funções semelhantes ao antigo
chefe de polícia. O questor, no entanto, teve suas atribuições prejudicadas pela
incapacidade dos governos municipais em organizarem suas polícias, gerando uma
confusão de atribuições policiais no âmbito de várias autoridades. Até a nomeação dos
subquestores – coisa que nunca aconteceu, uma vez que a maioria dos municípios não
conseguiu organizar suas próprias forças policiais –, ficaram exercendo os delegados e
subdelegados. 88
Ao lado destes, também tinham atribuições policiais os juízes de Distrito –
espécie de juiz de Paz dos primeiros tempos da República –, que, como autoridades
municipais, não eram subordinados à Questura, embora tivessem que apresentar
relatórios sobre o movimento policial de sua jurisdição e, nos municípios com força
insuficiente, fossem obrigados a solicitar as praças ao questor. Deveria caber a eles, no
entanto, o papel principal de autoridade sobre a polícia municipal89 . O questor, por
86
Havia por essa época, um bandido com o nome de Ipyranga que estava ...praticando depredações de
toda sorte no sertão, e que não conseguiu ser detido pela Guarda Local por falta de força suficiente. Cf.
APEJE, ACD, p.221, 1892.
87
APEJE, AS, 1893, pp.123-152.
88
Os delegados do Recife ganhavam uma remuneração de 200$000 mensais; os subquestores, por sua
vez, não receberiam salário. APEJE, CLEPE, 4ª Secção, Decreto de 19 de fevereiro de 1892.
89
Embora na discussão sobre a Questura os senadores afirmassem a autonomia dos juízes Distritais,
ofícios desses juízes ao questor deixam claro que dependiam dele no que se refere ao envio de reforço
policial:
Juizado do Districto do Municipio de Bôa-Vista, em 18 de junho de 1896.
Ao Cidadão Doutor Questor
Comunico-vos que hontem as 10 horas do dia no logar denominado Cachoeira da Vieira deste municipio
de Bôa vista (...), o individuo Martiniano Ribeiro da Silva, assacinou (sic) a sua mulher, dando-lhe cinco
facadas a qual morrera estantaneamente, tendo evadido-se o assacino (sic), por não haver força e nem
cadeia para prisão de correição, quanto mais para criminozos; é lamentavel este municipio com os
105
conseguinte, quase só agia dentro da capital, sem exercer grande presença no interior.
Por essas razões, a Questura Policial era tida como ineficiente. Dois anos após sua
criação, já havia um parecer favorável do Congresso pernambucano para a sua extinção,
o que, no entanto, só veio acontecer em 1898.
Daí em diante, vamos encontrar outras forças policiais militares que só se
diferenciariam basicamente em seu tamanho, possuindo uma organização mais
complexa e próxima ao do Exército, o que teria início no governo do capitão Barbosa
Lima. Enfrentando sérias oposições de quase todas as correntes partidárias de então,
com as quais só momentaneamente faria aliança para conseguir anular seus opositores,
Barbosa Lima, representante da tendência que desejava uma República unitária e
ditatorial, teria seu governo apoiado principalmente numa força policial bem armada e
militarizada. No ano de 1893, aplicaria dos créditos extraordinários do orçamento do
Estado 605:164$835 de um total de 743:221$619; e 203:489$274 de um total de
290:236$929 dos créditos suplementares. 90
O armamento excessivo da polícia em seu governo foi motivo de denúncia no
Senado Estadual a respeito de contrabandos de armas e a utilização de reforços ilegais
vindos do interior – cerca de 180 homens – para fazer parte do contingente policial. 91
Um senador classificou o Recife da época como sendo uma Calábria, e a polícia como
o Corpo Calabrez. 92
Através dos regulamentos da força policial, podemos verificar como a sua
organização neste período tornou-se acentuadamente semelhante às forças federais. O
Regulamento de 1894, por exemplo, estabelecia que a polícia militar poderia servir ao
Exército fora do Estado, recebendo para isso armamento e instrução profissional iguais
factos que de vez em quando está se dando; por tanto pesso-vos (sic) providencia neste sentido afim de
garantir as autoridades e os habitantes deste municipio. APEJE, Série Juízes de Direito, 1896, p.341.
Sobre a autonomia dos juízes Distritais, vide AS, 1893, pp.123 e 151.
90
Costa Porto, Os tempos da República Velha, pp.4-5 e 114, e Stela Mary Alves de Oliveira, op. cit.,
pp.187-189.
91
O armamento contrabandeado supostamente teria sido importado dos Estados Unidos e entrado
ilegalmente na alfândega como máquinas para usinas. Segundo o senador Serra Martins, seriam utilizadas
no motim preparado pelo governador Barbosa Lima e José Mariano, em adesão à Revolta da Armada, a
qual Barbosa Lima recuaria do intento. Cf. APEJE, AS, Sessões de 10 e 15 de abril de 1893, pp.104 e
121.
92
A Calábria era uma região da Itália, próxima ao reino das Duas Sicílias, que teve no século XIX um
governante em comum com este reino, o qual havia prometido uma Constituição ao povo, mas acabou
preferindo governar sem ela. Cf. Enciclopédia Multimídia Encarta 2000. A título de curiosidade, a
imperatriz Teresa Cristina, esposa de D. Pedro II, era irmã de Fernando II, rei das Duas Sicílias, cf., Luiz
Felipe de Alencastro, op. cit., p.51.
106
ao daquela instituição, o que, no caso de uma guerra externa, como ocorreu com a do
Paraguai, não ficaria mais a critério da corporação a decisão final de ir ou não para o
campo de batalha. A cada ano um dos Batalhões de Infantaria era enviado para servir no
interior, ficando estacionado em um dos municípios – geralmente Triunfo 93 –, não
podendo permanecer lá por um período superior a um ano, a fim de ser reconstituída a
sua disciplina, um dos fatores que mais preocupação dava as autoridades. A Secretária
de Justiça – à qual a Questura estava ligada – designava periodicamente um oficial
superior do dia e um ou mais inferiores para a “ronda de visita”, que fiscalizava o
serviço das guardas. Só o governador e o secretário de Justiça poderiam mover os
Batalhões. O questor poderia requisitar por escrito aos comandantes dos Batalhões ou
do Corpo de Cavalaria no máximo 50 praças, e os delegados e subdelegados até 20, para
diligências dentro do Recife. 94
A unidade de comando que se esperava ter com uma força estadual e militar vinha
da evidência de que a hierarquia e a disciplina do quartel dava uma coesão maior à tropa
e ao comando, fatores essenciais na preservação da nova ordem que se tentava
estabelecer com a República.
A preocupação do governo em aproximar o regulamento da polícia militar ao do
Exército, trouxe, por outro lado, benefícios para as praças. Um projeto sobre a força
policial, confeccionado pela Câmara dos Deputados de Pernambuco, em 1892, e
aprovado na íntegra pelo Senado, ao lado do Regulamento de 1896, concediam
aposentadoria integral às praças que contassem 25 anos de serviços e que fossem
considerados pela junta médica incapazes de continuar a servir, bem como àqueles que
se invalidassem em ação. Os oficiais e praças que tivessem servido ao Exército,
poderiam contar até 8 anos desse serviço para se aposentarem. O projeto da Câmara
estendia, ainda, o benefício em meio soldo para as viúvas e filhas que não se casassem,
e para os filhos menores de idade. Para este fim era descontado o equivalente a um dia
93
A escolha de Triunfo para se enviar tropas anuais se devia ao fato de lá ter sido, das cidades que
haviam se rebelado contra o governo estadual em razão da dissolução das municipalidades, a que mais
trabalho dera para ser controlada. Segundo a oposição, a polícia de Barbosa Lima reagiu com grande
truculência em Triunfo, saqueando casas e se apropriando de animais que foram leiloados. Cf. APEJE,
AS, Sessão de 10 de abril de 1893, e Costa Porto, op. cit., pp.54-55.
94
APEJE, Regulamento Geral da Força Pública Estadual, 1894.
107
de soldo por mês das praças. As praças de pré teriam estes mesmos direitos reduzidos a
meio soldo. 95
O interesse em se ter uma tropa com o mínimo de instrução que acompanhou os
políticos do final do Império, agora seria posto em prática, com a instalação de uma
escola para ministrar o ensino primario sufficiente as praças de pret e a instrucção
elementar do soldado, correspondente ás differentes graduações até a de sargento...
Para o alistamento, era dada preferência em igualdade de condições aos ex-praças do
Exército, Armada e Corpo de Bombeiros, sendo, no entanto, preferidos os que tivessem
algum ofício que pudesse ser aproveitado no serviço do Corpo ou que soubessem ler e
escrever. Estes foram os primeiros passos dados em direção à profissionalização
definitiva da corporação da polícia militar. 96
Essas mudanças em seu conjunto, revelam a preocupação do Estado em
proporcionar estabilidade à corporação da polícia militar, o que, por sua vez, iria
refletir-se numa melhor resposta aos objetivos a que estavam destinados. Esta
estabilidade é sentida também no maior prazo de engajamento, que de dois anos pulou
para quatro. Pelo projeto da Câmara, mesmo os oficiais – que antes podiam ser
exonerados livremente pelo governador –, à exceção dos comandantes, não poderiam
ser demitidos antes de dois anos, a não ser por incapacidade física, moral ou condenação
maior de dois anos. Este fato gerou o protesto do senador Serra Martins, opositor de
Barbosa Lima, que via nisso uma ameaça à subordinação plena da polícia militar ao
novo governo, que poderia ficar à mercê de uma força policial comandada por oficiais
ainda dos tempos do governo anterior:
...[O Corpo de Polícia], de certo tempo para cá, tem tido uma organização
de exercito permanente. (Apartes).
95
Idem, AS, Parecer nº 83, arts.7º e 8º, 1892, p.210; Regulamento do Corpo Policial de 25 de agosto de
1896, Fundo Prefeitura Municipal do Recife, Regulamentos e Regimentos. Não sabemos quando o direito
de aposentadoria para as praças se iniciou. Em 1889, a Lei nº 2145 de 9 de novembro, autorizava em seu
art.1º, ao presidente da Província a reformar, com o soldo por inteiro, a qualquer soldado da Guarda
Cívica e de polícia que tiver 35 annos de serviço nos mesmos corpos. A Guarda Local republicana, no
entanto, não tinha este benefício, e em caso de doença, a praça só estaria garantida por 30 dias: Art. 97.
Nos casos de reconhecida ou comprovada enfermidade serão tratadas em suas próprias casas as praças
da Guarda Local, percebendo os respectivos soldos até 15 dias. Se a moléstia se prolongar, perceberão
meio soldo por igual tempo e d’ahi por diante não terão mais direito a soldo algum. APEJE, Relatório do
Barão de Lucena, anexo Regulamento da Guarda Local de 9 de outubro de 1890.
96
APEJE, AS, Parecer n º83, art.12, 1892, p.210; Regulamento do Corpo Policial de 25 de agosto de
1896, art.26.
108
que se refere às promo ções, o Regulamento de 1896 não deixa claro quais os seus
critérios, apenas estabelecendo que os oficiais inferiores e os praças com graduações
seriam nomeados pelos comandantes dos Batalhões, ... precedendo, porém, propostas
dos commandantes das companhias , relativamente a capacidade daquellas ultimas
classes. 99
Essas alterações no texto da lei traria, como desejava o senador Serra Martins,
maior subordinação do Corpo de Polícia aos interesses do governo, que teria o seu
oficialato na rede de favores pessoais. Perdia-se, no entanto, no que se refere à
disciplina da corporação. Mesmo levando-se em conta que em todas as corporações
militares as ligações de simpatia influem na ascensão dos indivíduos a um certo grau, a
partir do momento em que a hierarquia não se estabelece principalmente como efeito do
tempo de serviço prestado e do mérito pessoal de cada um – como ocorre hoje em dia –,
a disciplina não é vista como um fator primordial para se alcançar à mobilidade dentro
da corporação militar, o que levará a um afrouxamento dela. 100
Este parece ter sido um dos fatores que levava o Corpo de Polícia a freqüentes
desregramentos dentro e fora da corporação, desde os tempos do Império, embora com
o desenrolar da República, fosse alcançado um maior grau de coesão da força. Por este
período as forças públicas dos maiores Estados da Federação já estavam
suficientemente bem organizadas com o padrão militar. A polícia paulista,
principalmente, se tornará um exemplo de disciplina e eficiência, recebendo treinamento
de uma Missão Francesa a partir de 1906, a qual permaneceu em São Paulo até o início
da Primeira Guerra Mundial. Foi por isso comparada com o exército prussiano e deve
ter encorajado aos outros Estados a procurar manter suas forças bem treinadas e
disciplinadas, de acordo com suas possibilidades financeiras. 101
99
Idem, Regulamento do Corpo Policial de 25 de agosto de 1896, arts. 12, 13, 14, 152, 198, 216, 226,
231, 232.
100
Neste sentido, vale a pena discutir um pouco o conceito de antigüidade utilizada nas organizações
militares de hoje em dia. Este conceito militar, que não diz respeito a uma ordem temporal, combina o
mérito e o tempo de serviço na avaliação das promoções, o que torna impossível dois indivíduos terem a
mesma posição hierárquica, ainda que tenham o mesmo tempo de serviço e a mesma idade. Neste caso, o
desempate se daria através do mérito, ou seja, da avaliação sobre quem obteve as melhores notas nos
cursos oferecidos, no desempenho dos serviços designados e na observação dos preceitos da corporação.
Estas características em conjunto formariam a disciplina do militar. Portanto, a hierarquia fundada no
conceito de antigüidade faz com que ela seja experimentada permanentemente e que a disciplina seja
reforçada, uma vez que esta se torna a base da hierarquia. Sobre este assunto vide Piero de Camargo
Leirner, Meia volta volver, pp.84-87, 1997.
101
Cf. Dalmo de Abreu Dallari, O pequeno exército paulista, pp.43-46.
110
102
Durante o seu governo foram reduzidos os investimentos em educação, saúde e obras públicas, além
de ter sido diminuído o número de funcionários públicos. Apesar da crise ter como uma das principais
causas a inadimplência dos usineiros com o pagamento dos empréstimos tomados ao Estado, o setor
continuou a ser beneficiado pela política econômica do governo estadual. Cf. Stela Mary Alves de
Oliveira, op. cit., pp.192-199.
103
A Província, 12 e 20/08/1902.
111
Anos mais tarde, a oligarquia rosista tomaria novas providências para assegurar a
ordem dentro da polícia militar. Com a criação do Regimento Policial do Estado, em
1908, por exemplo, só poderiam ser promovidas as praças de pré que tivessem bom
comportamento e soubessem ler e escrever. Nenhuma delas poderiam ser destacadas
sem ter pelo menos dois meses de instrução no ensino de recrutas. As promoções de
sargento até capitão eram feitas 2/5 por merecimento, 2/5 por antigüidade e 1/5 a
104
A Província, 29/08/1902.
105
APEJE, Relatórios dos Chefes de Polícia, 1905, pp. 4-5.
112
106
APEJE, CLEPE, Lei nº 916, de 2 de junho de 1908, art.5º.
107
Os ofícios enviados pelos delegados até 1898 eram endereçados ao Questor Policial Antonio Pedro da
Silva Marques. Cf. Fundo SSP, 2ª Delegacia da Capital, v.1898-1899. Em 1898, por sua vez, foi aprovado
um Projeto de Lei pelo Congresso Legislativo de Pernambuco, que organizava a nova administração
policial ao mesmo tempo em que extinguia a Questura em seu art.31. ACD, Projeto nº 20, 1898, p.37.
108
APEJE, AS, p.124, 1892.
113
111
APEJE, AS, 1898, p.38.
112
APEJE, AS, 1898, pp.38-39 e Relatório da Secretária Geral, 1912, pp.22-23.
113
Idem, AS, 1898, p.38-39.
115
assiduidade sobre tudo o que possa interessar à prevenção dos delictos; prender em
flagrante delicto e auxiliar a prisão dos culpados; auxiliar a execução de ordens das
autoridade judiciárias; participar ao subdelegado os factos criminosos que se
commeterem em seu quarteirão a fim de serem tomadas as providências devidas;
observar e cumprir as instrucções e ordens do Delegado e Subdelegado. 114
114
APEJE, Relatórios dos Chefes de Polícia, 1905, pp.25-26.
115
Bóris Fausto, Crime e cotidiano, pp.129-132.
116
chefe de polícia concordava com Vucetich de que a antropometria... por si só não serve
nem servirá jamais para constatar a identidade individual de uma maneira precisa. 116
A reativação desses serviços seria possível com a criação do Gabinete de
Identificação e Estatística Criminal, em 1910. Este órgão teria autonomia, funcionando
anexo a Repartição Central de Polícia. Contaria com um diretor nomeado pelo
secretário Geral, que deveria possuir grande somma de conhecimentos scientificos na
especialidade, um fotógrafo e dois amanuenses. De acordo com o seu criador, o chefe
de polícia Ulisses Gerson Alves da Costa, a polícia ficaria munida de... meios aptos á
descoberta e prevenção de crimes e criminosos, á permuta de fichas dactiloscópicas
com as polícias de outros estados e do estrangeiro, permuta tão necessaria hoje,
quando os criminosos percorrem o mundo, freqüentando todos os paizes. 117
Ele viria atender, por outro lado, aos freqüentes apelos dos chefes de polícia em se
organizar a estatística criminal do Estado em uma seção à parte, que pudesse dar conta
dos inúmeros mapas enviados. A estatística era vista como a base da ciência criminal, o
que, dando chances de conhecer o número exato da criminalidade, poderia ao mesmo
tempo indicar quais crimes eram os mais cometidos em determinadas épocas, dando-
lhes um caráter mesológico, no que poderia se basear a instituição policial para
combater mais determinado crime. 118
Outros avanços foram realizados posteriormente com a Repartição Central de
Polícia, como a adoção de dois médicos legistas no quadro de seu pessoal – os quais
realizavam os exames cadavéricos no necrotério público –, e o fato dos delegados
passarem a ser escolhidos exclusivamente entre os bacharéis de Direito e a receberem
um salário anual de 4:800$000, o que denota um maior rigor na seleção das autoridades
policiais e uma preocupação em tornar os cargos mais atraentes. Havia consciência dos
chefes de polícia quanto à necessidade de se instituir uma polícia civil e de carreira, com
a criação de um grupo de aspirantes a oficial de polícia e o direito dos delegados do
interior serem aproveitados nas vagas que surgissem nas delegacias da capital. 119
116
APEJE, Relatórios dos Chefes de Polícia, 1905, pp.25-26. Segundo Bretas, embora os métodos
desenvolvidos por Lombroso e Bertillon tenham tomado vulto nas reformas policiais da época, elas
tiveram um impacto limitado no trabalho cotidiano da polícia, cf., op. cit., p.44.
117
APEJE, CLEPE, Lei nº 1009, de 6 de maio de 1910; Relatório do Chefe de Polícia, 1910.
118
Idem, Relatórios dos Chefes de Polícia, 1905 e 1910.
119
Idem, ibidem, 1910 e 1923.
117
120
Em 1913 foi promulgada uma lei que criava uma “Guarda Civil” para auxiliar a polícia militar no
policiamento do Recife. Ela teria 400 homens comandados por um inspetor de polícia e para a sua
organização foi aberto um crédito de 400 contos. Entretanto, no orçamento do Estado para o ano
financeiro de 1913-1914 e subseqüente, não consta nenhuma verba destinada a Guarda Civil. Por outro
lado, não encontramos nenhuma referência a ela nos jornais pesquisados. Cf. APEJE, CLEPE, Lei nº
1172, de 29 de abril e Lei nº 1204, de 14 de junho de 1913. A criação de uma guarda civil só aconteceria
de fato com o Ato nº 103, de 7 de fevereiro de 1920.
121
Carlos Bezerra Cavalcanti, Polícia Militar de Pernambuco, p.115.
122
APEJE, CLEPE, Lei nº 248, de 30 de junho de 1897, Lei nº 603, de 12 de maio de 1903, Lei nº 822, de
14 de maio de 1907 e Lei nº 916, de 2 de junho de 1908.
123
A Segurança Noturna, que deveria proteger na cidade a propriedade e o bem estar daqueles que
tivessem condições de pagar sua contribuição, pode ter se inspirado em uma outra experiência de polícia
particular, na área rural de Pernambuco. Os Sindicatos Agrícolas e os Conselhos Municipais receberam
em 1904 autorização do governo para formar um Corpo de Vigias particular para o policiamento e
segurança de seus campos, lavouras e fábricas, que também seria subordinada ao chefe de polícia.
Tinham o direito de prender desordeiros e malfeitores que se encontrassem em sua jurisdição, os quais
deveriam ser remetidos para a delegacia mais próxima. Cf. APEJE, CLEPE, Lei nº 690, de 10 de junho de
1904. Mas o pagamento da polícia através de contribuições dos moradores locais não era novidade. No
Império, as antigas guardas policiais eram organizadas pelas câmaras municipais as quais estabelecia o
118
Segurança Noturna, idealizado pelo 1º Tenente Hemetério Maciel, com sede na rua
Madre de Deus. Embora fosse financiada através de contribuições fixas dos moradores a
quem prestaria o
serviço, ela funcionava subordinada ao chefe de polícia, o qual nomeava o seu delegado.
Possuía um regulamento que lhe dava características semelhantes às guardas urbanas
oficiais. Além do delegado, havia ainda um guarda-mor, que substituiria o delegado,
auxiliando na disciplina dos guardas e cuidando do alistamento destes; um ajudante, que
substituiria o guarda- mor em seus impedimentos e auxiliaria no serviço interno da
Segurança; um comissário, a quem ficaria encarregado o fardamento, armamento e os
equipamentos; agentes, que tinham a obrigação de realizar rondas nas seções a que
fossem destinados, comunicar qualquer ocorrência ao guarda-mor, e conseguir mais
contribuintes para a Segurança Noturna. Os guardas tinham autorização para prender
qualquer suspeito e levá- los ao quartel da polícia local. Para isso usavam sabre e
revólver, além do apito que lhes serviam para pedir auxílio. Eram alistados entre
brasileiros de 18 a 40 anos que soubessem ler e escrever. 124
A Segurança Noturna fazia o policiamento do Recife das 10 horas da noite às 5 ou
6 horas da manhã, conforme a estação do ano, e além disso, estava no seu regimento a
preocupação em auxiliar a população em casos de emergência médica, ainda que os
gastos com isso ficassem por conta do usuário. A sua equipe contava com médico,
parteira e farmácia, sendo que aqueles que não fossem contribuintes teriam adicionado
as suas contas cinco mil réis, a título de serviço extraordinário da Segurança. 125
Apesar do esforço em se manter esse serviço de vigilância com um quadro de
guardas mais moralizados, em pouco tempo a Segurança Noturna já era alvo de criticas
dos jornais, algumas até insinuando a conivência de seus guardas com ladrões. Em uma
charge, as iniciais “S.N.” do distintivo dos guardas eram interpretadas por um popular
como Segurança Nenhuma.126
seu soldo e arrecadavam a contribuição entre os moradores dos distritos, cf. Tavares Bastos, op. cit.,
p.176.
124
APEJE, Regulamento da Segurança Nocturna, 1909; Raimundo Alencar Arrais, Recife: culturas,
confrontos, identidades, p.53, 1995.
125
APEJE, Regulamento da Segurança Nocturna, 1909.
126
Raimundo Alencar Arrais, op. cit., p.53.
119
Tabela 1
Corpo Militar ou
500
Corpo de Polícia
1865-1866 Não especificado
Corpo Provisório
300
Corpo Provisório
1866-1867 500
Idem
Idem
1867-1868 800
Idem
Corpo de Polícia
1870-1871 800
Idem
Corpo de Policia
1871-1872 800
Idem
Corpo de Policia
1872-1873 800
Idem
Corpo de Policia
1873-1874 800
Idem
Corpo Militar
500
Guarda Local
1876-1877 500 Idem
Guarda Urbana
120
850
Corpo Policial Volante
1880-1881 Idem
Guarda Cívica
150
(continuação)
__ Não encontrado __ __
Brigada Policial:127
618 30
1892 -6 Cias. de Infantaria e
50 4
-1 Cia. de Cavalaria
Brigada Policial:
597 30
1892-1893 -1Batalhão de Infantaria
51 4
-1Esquadrão de Cavalaria
127
A força pública para este ano foi decretada pela Junta Governativa de Pernambuco.
121
(continuação)
128
A Ala Direita é responsável pelo policiamento da capital e seus subúrbios, auxiliada pelo Esquadrão de
Cavalaria.
129
O 1º Corpo fica responsável pela guarnição das repartições públicas, dos quartéis, do interior do
Estado e subúrbios da capital. O 2º Corpo mais o Esquadrão de Cavalaria é destinado ao policiamento da
capital.
130
O 1ºBatalhão de Infantaria e os dois Esquadrões de Cavalaria permanecem na capital.
131
Um Batalhão de Infantaria (com 500 praças) e o Corpo de Cavalaria permanecem na capital.
122
132
APEJE, CLEPE, Lei nº 1204, de 14 de junho de 1913.
133
Novo Código Penal brasileiro, arts. 367, 368, 369, 371, 372 e 374.
134
APEJE, CLEPE, Lei nº 1200, de 12 de junho de 1913, arts.1 e 2, e Lei nº 1275, de 8 de junho de 1915,
art.4.
135
Idem, Lei nº 1049, de 27 de junho de 1910; Lei nº 1095, de 30 de junho de 1911 e Lei nº 1236, de 6 de
junho de 1914.
CAPÍTULO 3
1
APEJE, AAP, 1875, p.65, e DP, 05/09/1870.
2
APEJE, AAP, 1875, p.65.
124
importante como o Recife, que até o final da década de 1880 tinha que manter os
escravos sob vigilância, e que recebia constantemente fluxo de pessoas de todas as
partes do Brasil e do exterior, tornava o serviço das autoridades policiais bastante
comp licado.
Escravos e capoeiras
3
Existem vários trabalhos que tratam da experiência de vida dos escravos no Recife, cf.: Marcus J. M. de
Carvalho, Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo, Recife, 1822-1850; Clarissa Nunes Maia,
Sambas, batuques, vozerias e farsas públicas: o controle social sobre os escravos de Pernambuco, 1850-
1888 (diss. de Mestrado); Cláudia Viana Torres, Um reinado de negros em um Estado de brancos:
organização de escravos urbanos em Recife no final do século XVIII e início do século XIX, 1774-1815
(diss. de Mestrado); Wellington Barbosa da Silva, “A cidade que escraviza, é a mesma que liberta...”:
estratégias de resistência escrava no Recife do século XIX (diss. de Mestrado); Flávia de Castro M. S.
Fonseca, Estratégias de resistência escrava: Recife, 1850-1870, (diss. de Mestrado).
125
4
DP, 12/09/1873 e 27/07/1881.
5
Idem, 29/09/1873.
126
nome Camarão, a serviço do tenente-coronel Gaspar, quando passava pela ponte da Boa
Vista. Camarão teria lhe oferecido dinheiro em troca do serviço e lhe fornecido o
veneno para ser administrado em doses pequenas e diárias. Depois Eduardo voltou atrás
de suas declarações, afirmando que havia sido forçado, sob sevícias, pela família de
seus donos, a assumir a culpa e incriminar o tenente-coronel Gaspar. Realmente, o
estado do escravo era lamentável em decorrência de ter permanecido por alguns dias
acorrentado ao tronco com a mão direita presa aos pés. 6
É difícil avaliar quem estava com a verdade, pois o suposto mandante do crime
era inimigo político das vítimas e gozava do prestígio da situação, conquanto os Sá e
Albuquerque também fizessem parte da elite. Por outro lado, ainda que os médicos
pernambucanos que lhe atenderam não tivessem notado os sintomas de envenenamento,
os médicos da Bahia, aonde eram realizados esse tipos de autópsias, encontraram
vestígios de arsênico em grande quantidade nas vísceras de um dos irmãos que teve seu
corpo enviado para lá. Fica evidente, entretanto, a possibilidade de um escravo
doméstico na cidade, mais que em qualquer outro lugar, poder ser cooptado com
promessas ilusórias a perpetrar crimes contra seus senhores, e a maior facilidade em
conseguir os meios de executá-los. 7
Mas em relação a manter a ordem entre os escravos urbanos, com certeza um dos
mais difíceis para a polícia foi combater os capoeiras, o que revela as constantes
tentativas de repressão aos capoeiristas. 8 Trazida pelos negros de Angola que utilizavam
a luta em um ritual de iniciação, a capoeira passou por adaptações no Brasil. Foi um
elemento importante na resistência escrava, de onde se teria originado o termo em
alusão às matas onde os escravos se escondiam. Nas cidades, no nosso caso em Recife,
a capoeira se disseminaria entre os negros ferreiros, serralheiros, carregadores e negros
de ganho em geral, os quais se reuniam em espécies de confrarias, prestando juramento
e fidelidade ao seu grupo. Se um fosse preso, os outros estavam obrigados a tentar soltá-
lo. Era, por isso, uma maneira a mais de se identificarem e manterem uma coesão dentro
6
DP., 01, 02, 04, 05 e 06/10/1870.
7
Idem, ibidem.
8
A respeito da repressão exercida sobre os capoeiras no Rio de Janeiro do século XIX, ver Thomas
Holloway, “O saudável terror: repressão policial aos capoeiras e resistência dos escravos no Rio de
Janeiro no século XIX”, in Estudos Afro-Asiáticos, nº16, 1989.
127
9
Valdemar de Oliveira, Frevo, capoeira e passo, pp.66-69;G. Freyre, Sobrados e mocambos, p.509-510 e
559-561.
10
Valdemar de Oliveira, op. cit., pp.75, 84-86; G. Freyre, op.cit., pp.560, nota 63; Edson Carneiro,
Folguedos tradicionais, p.142; Rita de Cássia B. Araújo, Festas: máscaras do tempo, pp.339 e 365.
11
APEJE, Fundo SSP, 1ª Delegacia da Capital, Ofício do delegado Luiz Albuquerque Martins, para o
chefe de polícia José Pereira da Silva Moraes, 26 de setembro de 1864, pp.185-188.
12
Rita de Cássia Araújo afirma que as rivalidades entre as bandas de música da polícia e do Exército que
acompanhavam os clubes, refletiam, na República Velha, ...a luta das oligarquias pela autonomia
estadual contra o poder central, embora seus seguidores não tivessem consciência disso; cf., op. cit.,
p.366.
128
13
DP, 28/01/1875.
14
G. Freyre, Sobrados e mocambos, p.519; cf. tb. Valdemar de Oliveira, op. cit., p.78.
15
Oscar Mello, O Recife sangrento, pp.103-104 e 119.
129
16
DP, 02/08/1883.
17
Idem, 07/07/1877, 09/04/1885 e 02/09/1886; A Província, 11/09/1901, 04/10 1901 e 06/10/1901.
18
Jornal do Recife, 29/03/1881.
19
Cf. Edson Carneiro, op. cit., p.142 e APEJE, Fundo SSP, 1ª Delegacia da Capital, ofício de 08 de abril
de1915.
130
Além dos escravos e dos capoeiras, outros motivos de preocupação existiam para
a polícia tentar assegurar o nível de ordem desejado pelas elites locais. A população da
cidade crescia em decorrência das migrações dos Estados vizinhos: de 13 a 14% no
início do século XIX, alcançando a cifra de 39% entre 1890 e 1910. Algumas das
principais causas dessas imigrações foram as secas e as transformações ocorridas na
produção de açúcar com as usinas, que ao concentrar mais intensamente terras para o
plantio da cana, expulsaram os camponeses que viviam como posseiros nessas terras –
uma grande parte deles, ex-escravos. 21
A seca de 1877-79, por exemplo, levou cerca de 20 mil retirantes para o Recife na
esperança de conseguirem auxílio do governo, o que deve ter causado um desconforto
geral na população da cidade, até porque as péssimas condições de higiene em que
foram alojados favoreceram a aparição e propagação de doenças pela cidade. Como
medida de prevenção a possíveis desordens e saques que pudesse haver, as autoridades
os distribuíram pelos alojamentos do Arsenal da Marinha, localizados em Santo Amaro
e nos Coelhos. Essas apreensões tinham como fundamento o número de crimes que
havia aumentado em toda a Província de 283, no ano de 1876, para 486 entre os meses
20
Thomas Holloway, op. cit., p.130.
21
Cf. Robert M. Levine, A velha usina, pp.44-45, 95.
131
22
APEJE, Relatório com que o Exmº. Sr. Dr. Manoel Clementino Carneiro da Cunha passou a
administração dessa província ao Exmº. Sr. Desembargador Francisco de Assis Oliveira Maciel em 15
de novembro de 1877.
23
APEJE, Relatório com que o Exmº Sr. Dr. Adelino Antonio de Luna Freire, 1º vice-presidente, passou
ao Exmº Sr. Dr. Adolpho de Barros Cavalcante de Lacerda, presidente effectivo, a administração desta
província a 20 de maio de 1878. Os números de crimes aparecem diferentes desses na Falla do presidente
da província de 1886. Nele, o ano de 1876 aparece com 496 crimes, o de 1877 com 583 e o de 1878 com
522, cf. Falla com que o presidente da província Conselheiro José Fernandes da Costa Pereira, dirigio á
Assembléia Legislativa de Pernambuco no dia de sua instalação, a 6 de março de 1886.
24
Idem.
25
DP, 04/10/1879.
26
Emília V. R. G. de Hounie, De retirante a trabalhador, pp.67-69, 76-77 e 101.
132
O Recife era uma cidade acostumada aos forasteiros: calcula-se que em 1874
possuía 7.877 estrangeiros para uma população de 102.658 nacionais. 29 Em sua maior
parte eram portugueses que viviam do comércio, mas também havia ingleses, franceses,
espanhóis, italianos, árabes, alemães 30 – e até um holandês que esmolava pelas ruas. 31
Neste mesmo ano foram expedidos na Repartição Central de Polícia, 594 registros de
entrada e saída de estrangeiros para toda a Província. 32
O costume com o adventício, no entanto, não retirava das autoridades policiais a
desconfiança dos hábitos novos que traziam consigo, enxergando nos estrangeiros um
outro tipo de vetor do crime e da desordem social, especialmente quando se tratava
27
APEJE, Fundo SSP, 1ª Delegacia da Capital, Ofícios de 26 de dezembro de 1887, 21 de outubro de
1914 e 07 de abril de 1915.
28
Idem, ofícios de 17 de abril de 1915 e 17 de fevereiro de 1915.
29
Mapa Estatístico da População da Província de Pernambuco com Declaração dos Respectivos
Municípios e Freguesias Existentes, apud Hounie, op.cit., p.85.
30
Existem várias referências nos jornais a estrangeiros presos ou envolvidos com a polícia por desordens
ou como vítima de algum delito, como no caso do corpo de um mascate italiano que foi encontrado
boiando no rio Capibaribe, amarrado dentro de um saco, cf. DP, 04/10/1879. Outros casos, cf.
DP,10/12/1870, 04/10/1879, 04/02/1882, 25/04/1882, 09/04/1882, 14/06/1882, 23/01/1884, 06, 09 e
11/06/1905; Jornal do Recife, 18 ou 19/01/1896. No Fundo SSP, 1ª Delegacia da Capital, encontramos
referencia a um roubo praticado a árabes que vendiam miudezas na Ponte da Boa Vista, cf. Ofício de 26
de junho de 1888; e a um espancamento de um inglês por um praça de polícia, cf. Ofício de 16 de
fevereiro de 1892.
31
Cf. DP, 14/06/1871.
32
APEJE, FALLA com que o Exmº Sr. Desembargador Henrique Pereira de Lucena abriu a Assembléia
Legislativa Provincial de Pernambuco em 1º de março de 1875.
133
33
O medo causado pelos estrangeiros foi uma constante entre as autoridades da época, especialmente das
regiões de forte imigração como São Paulo e Rio de Janeiro, que viam neles um dos grandes culpados
pelo aumento e divulgação de novas formas de criminalidade , cf. Marcos Bretas, Ordem na cidade,
pp.69-70.
34
APEJE, Relatórios dos Chefes de Polícia, Relatório apresentado ao Exmº Sr. Dr. José Osório de
Cerqueira, M. D. Secretario Geral do Estado, pelo Dr. Ulysses Gerson Alves da Costa, Chefe de Polícia,
em 20 de fevereiro de 1910.
35
Encontramos várias referencias nos jornais a italianos que residiam no Recife. A maioria trabalhava
como mascate e havia uma comunidade deles vivendo na freguesia da Boa Vista, no período imperial:
Rua dos Coelhos – Desta rua se nos queixam alguns moradores contra diversos italianos que alli
residem, os quaes, toucando-se (sic) todas as noites, fazem um barulho infernal, e vociferam com termos
indecorosos, ofendendo a moral publica e perturbando o repouso dos vizinhos. (DP, 04/02/1882). Talvez
134
Nas cidades desaparece o roubo á mão armada, que perdura nos campos,
onde não são conhecidos os processos de astucia, os trucs que florescem ao
lado da civilização dos povos modernos. 37
Era gente como os vigaristas Cayro e José Gama, famosos como batedores de
carteira, os quais foram presos ao passarem pelo Recife em direção ao sul do País, que a
polícia de fins do século XIX e principalmente do início do século XX, procurava
manter-se atenta. 38 Os jornais alertavam para o surgimento ...nesta Capital, vindos de
outros Estados, [d]estes audaciosos individuos... 39 , que ...usam vinte nomes, da mesma
forma que outras tantas vezes conseguem mudar de physionomia.40 Esse novo tipo de
criminoso associado ao modo de vida urbano, denominado de gatuno, tem um
crescimento rápido a partir dos primeiros anos do século XX (tabela 2). Raramente
ainda na época de Ulysses Costa houvesse muitos pela cidade, o que levasse ao chefe de polícia a manter
suas precauções contra ... esses adeptos da destruição social. No final dos anos de 1890, entraram em
Pernambuco 117 imigrantes, em sua maior parte italianos, franceses, belgas e alguns espanhóis, a maioria
constituída por artesãos, artífices e comerciantes. Muitos não se adaptaram as condições de trabalho na
lavoura e retornaram para a Europa ou foram para o Rio de Janeiro. Pode ser que alguns desses tenham
também se estabelecido no Recife. Peter Eisenberg, op. cit., p.216; cf. tb. DP, 04/10/1879, 06/06, 09/6, e
11/06/1905; e Jornal do Recife, 18 ou 19/01/1896
36
Apud Peter Eisenberg, op. cit., p.224.
37
APEJE, Relatórios dos Chefes de Polícia, Relatório apresentado ao Exmº Sr. Dr. José Osório de
Cerqueira, M. D. Secretário Geral do Estado, pelo Dr. Ulysses Gerson Alves da Costa, Chefe de Polícia,
em 20 de fevereiro de 1910.
38
DP, 20/02/1910.
39
DP, 06/06/1905.
40
DP, 06/01/1901.
135
136
usava de violência para conseguir os seus intentos, mas antes se aproveitava da própria
fraqueza de suas vítimas, que seduzidas por promessas fáceis de dinheiro ou pela
aparência de muitos que se passavam por homens da classe média, deixava-se ser
enganadas facilmente. Como os dois vigaristas, não ficavam por muito tempo em uma
mesma cidade, mas vagavam de um lugar a outro aplicando seus golpes. Vittorio Rossi,
por exemplo, era um gatuno de nacionalidade italiana, de 28 anos, que junto com seus
comparsas estavam hospedados no Hotel Louvre, na freguesia do Recife. Vittorio e seus
companheiros haviam chegado recentemente na cidade no vapor “Desterro”. Um outro
gatuno, Arthur de Paiva Martins, já conhecido no Rio, foi preso por aplicar um golpe
em um paraibano, ...que ignorante caiu em uma dessas ciladas ultimamente postas em
práticas pelos gatunos estrangeiros aqui [ilegível] existentes e já expulsos do Rio de
Janeiro. 41
Para combatê- los a polícia via-se na necessidade de também se modernizar,
mantendo-se em comunicação com as polícias de outros Estados, utilizando-se de
recursos novos que facilitassem a identificação dos indivíduos, como a fotografia e a
datiloscopia. Era, portanto, um departamento da administração pública que não podia
prescindir de recursos – o que invariavelmente ocorria –, pois dela dependia ...a
segurança da vida e da propriedade de todos os individuos e a estabilidade da ordem,
condição indispensavel ao desenvolvimento econômico dos povos.42 (grifos meus).
As armas proibidas
41
DP, 06/06/1905 e APEJE, Fundo SSP, 1ª Delegacia da Capital, Ofício de 30 de junho de 1887.
42
APEJE, Relatórios dos Chefes de Polícia, Relatório apresentado..., por Ulysses Gerson Alves da Costa,
em 20 de fevereiro de 1910.
137
43
APEJE, Relatórios dos Chefes de Polícia, Relatório apresentado ao Exmº Sr. desembargador
Sigismundo Antonio Gonçalves, Governador do Estado de Pernambuco, pelo chefe de polícia Dr. Manoel
dos Santos Moreira, 1905.
44
DP, 15/06/1882.
138
139
arma. Ocorre, no entanto, que Victor, em meio a uma briga com um outro indivíduo,
atirou neste, sendo o fato presenciado por várias pessoas, inclusive o agente de polícia
Manoel Damião que se achava presente no local. Victor foi preso em flagrante pelos
marinheiros do Tymbira que o conduziram ao subdelegado da freguesia de Santo
Antônio. Não podendo provar na ocasião que era oficial da Guarda Nacional, Victor foi
preso na Casa de Detenção, e só depois enviado ao Estado Maior de um dos regimentos
da Força Pública. Nesse meio tempo, o subdelegado constatou que a arma objeto do
crime não havia sido apreendida, e providenciou para que um auxiliar seu acompanhado
de dois praças fosse ao bilhar buscar o revólver. Chegando lá, entretanto, o agente de
polícia Manoel Damião impediu a entrada do representante do subdelegado, alegando
ser ele também autoridade policial, e facilitou, desta forma, o desaparecimento da arma
através de um parente do criminoso. 45 A atitude de Manoel Damião, inclusive o fato
dele não ter movido uma palha na prisão de Victor Polycarpo, revela como os interesses
particulares dos policiais, mesmo de agentes de menor peso na hierarquia, podiam
atrapalhar bastante o bom andamento do serviço policial. Ele já era conhecido pelo
subdelegado de Santo Antônio como um policial irregular, mas apenas a partir desse
confrontamento com a sua autoridade é que o subdelegado exigiu providências ao
delegado do 1º distrito a seu respeito.
Uma outra tarefa difícil de ser levada adiante era a de manter a disciplina entre as
próprias forças públicas. Certamente os partidarismos que envolviam as bandas de
música marciais alimentavam, ajudando a aumentar, a natural disputa entre elas, mas as
desavenças entre as praças das diversas corporações – Exército, Marinha e Polícia –
eram um problema, sobretudo, que tinha procedência na própria origem e formação
desses militares que apresentavam um grau de coesão e disciplina bastante precário.
Com exceção da polícia, os componentes das outras forças eram em grande parte
recrutados compulsoriamente entre os homens válidos entre 18 a 35 anos, presos por
45
APEJE, Fundo SSP, 1ª Delegacia da Capital, Ofício de 29 de março de 1915.
140
46
APEJE, FALLA com que o Exmº Sr. Desembargador Henrique Pereira de Lucena abrio a Assembléia
Legislativa Provincial de Pernambuco em 1º de março de 1875.
47
José Murilo de Carvalho, As Forças Armadas na Primeira República, p.195.
48
Idem, Fundo SSP, 1ª Delegacia da Capital, Ofícios de 27 de março e 6 de outubro de 1890.
49
Cf. DP, 20/06/1876, 12/10/1877, 27/08/1881, 07/12/1881, 12/02/1901; Jornal do Recife, 29/05/1877,
30/09/1886, 09/10/1886, 11/01/1896, 04/09/1887; Fundo SSP, Minutas de 03 de dezembro de 1884 e 31
de maio de 1887.
50
APEJE, FALLA com que o Exmº Dr. Manoel Clementino Carneiro da Cunha abrio a sessão da
Assembleia Legislativa Provincial de Pernambuco em 2 de março de 1877.
141
51
APEJE, Fundo SSP, 1ª Delegacia da Capital, Ofício de 25 de abril de 1914 e 3ª Delegacia da Capital,
Ofício de 17 de janeiro de 1912.
52
Um exemplo dos excessos cometidos por soldados de linha contra civis, denunciados no Jornal do
Recife de 30/12/1880:
Caso grave – (...) Tendo ido assistir ao espetáculo do circo Pavilhão, voltava para sua casa no Recife, ás
11 horas e meia da noite, quando ao chegar ao meio da ponte Sete de Setembro sahio ao seu encontro
um soldado de tropa de linha, que estava sentado escondido no gradeamento elevado, (...) e lhe pedio um
cigarro.
Respondeu que não fumava cigarros mas cachimbo, que lhe daria fumo se quizesse.
Nisto approxima-se-lhe um outro soldado que lhe pergunta de onde vinha.
Respondeu que do circo.
Então disse o primeiro, que deviam correl-o [revistá-lo] para ver se trazia armas prohibidas, e assim o
foram fazendo, tendo o segundo, por ficar com as mãos livres, atravessado na boca uma faca de ponta
que trazia empunhada, talvez para a hypotese de encontrar resistencia.
O resultado da revista foi tirarem tudo o que tinha de valor o transeunte, feito o que o mandaram seguir:
Mal tinha dado alguns passos quando ouve gritos de socorro.
Era dado por uma pobre mulher a quem os mesmos soldados acabavam de agarrar e procuravam forçal-
a.
Com receio de que apparecesse alguem, a foram arrastando para o lado do Recife, vindo ajudal-os
nesta tarefa um outro soldado, que estava perto do Arco da Conceição.
Sempre gritando e se debatendo, teve a pobre mulher a felicidade de ser ouvida no corpo da guarda da
Alfandega, de onde veio um inferior a toda a pressa e á sua chegada os dous primeiros soldados fugiram
para o bairro de Santo Antonio e o terceiro voltou para aquella guarda.
Já tinham, porém, neste ínterim, acudido algumas pessoas, que apitavam debalde sem apparecer um só
policial.
142
...era urgente uma providencia para prevenir nova lucta entre as praças do
mar e terra, cuja fraternisaçao (sic) devia ligal-as na mais estreita amisade
(sic), no momento actual quando o exercito e armada unidos ao povo forão a
praça publica e com o urgente brado de “viva a republica” fizerão
desapparecer do sollo brasileiro a velha instituição, neste momento não é
conveniente que exista entre uma e outra força o menor ódio, [prevenção], ou
revalisação (sic) que venha [empanar] o brilho do glorioso feito de 15 de
novembro...55
53
Cf. Raimundo P. A. Arrais, op. cit., pp.141, 142-143.
54
José Murilo de Carvalho, op. cit., pp.224-226.
55
APEJE, Fundo SSP,1ª Delegacia da Capital, Ofício de 06 de outubro de 1890.
143
56
Idem, ibidem.
57
DP, 10/09/1873.
58
Sobre a campanha salvacionista de 1911 e a participação do Exército e da polícia vide Costa Porto, Os
tempos da República Velha, pp.143-299, e Raimundo P. A. Arrais, op. cit., principalmente no que se
refere a maior vinculação cultural das classes populares com o Exército, pp.111-114.
59
Cf. Costa Porto, op. cit., p.296.
144
militar, pois suas costas exibiam diversas cicatrizes dos castigos corporais infligidos
pela Marinha. Tudo indica que o grumete tenha entrado em atrito com alguns guardas
cívicos depois de ter aprontado alguma, e esses tenham dado uma surra no marinheiro
ao tentar prendê- lo. O fato gerou censuras da parte do comissário da Escola de
Aprendizes de Marinheiro, que em documento oficial fez considerações pouco elogiosas
à atuação da polícia.
O chefe de polícia, por sua vez, não gostou nada da atitude do comissário,
considerando-a como uma afronta direta ao governo provincial. Em ofício ao Capitão
Comandante da Escola de Aprendizes de Marinheiro, devolvia a parte oficial contendo a
exposição do comissário, o qual deveria constar do processo contra os guardas cívicos,
alegando que
Seria necessário ainda muito tempo para que os conflitos que chegavam às vias de
fato entre os praças das diversas corporações fossem extintas completamente. Isto só
aconteceria com as modificações que posteriormente haveria no ensino militar e no
recrutamento, e com as reformas nos regulamentos militares, 61 que proporcionariam,
entre outras coisas, o fim dos castigos físicos, promovendo uma maior socialização e
disciplina entre os soldados.
60
APEJE, Fundo SSP, Minutas, ofício de19 de novembro de 1885, p.231.
61
Edgar Carone, A Primeira República, pp.249-255 e José Murilo de Carvalho, op. cit., pp.189-195.
145
62
APEJE, Almanak administrativo, mercantil, industrial e agrícola da Província de Pernambuco de
1882.
63
Idem, Almanak... de 1873 e 1879.
146
Quadro 3
Nº de praças da Guarda Cívica distribuídas
pelas 4 freguesias principais da Capital (1877)
_____________________________________
Freguesias Praças
Recife 22
Santo Antonio 25
Boa Vista 25
São José 28
______________________________________
Fonte: APEJE, FALLA com que o Exmº Dr. Clementino
Carneiro da Cunha Abriu a sessão da Assembléia
Legislativa de Pernambuco, em 2 de março de 1877.
64
DP, 07/11/1881.
147
apaziguar os ânimos, prometeu entregar o talhador a uma autoridade mais graduada com
o devido reforço policial. Só que ao chegar ao local, o subdelegado não encontrou mais
vestígio nem do administrador e muito menos do pris ioneiro, que disseram, tinha fugido
pela janela. Bastante irritado, o subdelegado expunha a situação do Mercado ao
delegado do Recife, reclamando que
65
APEJE, Fundo SSP, 1ª Delegacia da Capital, Ofício de 21 de outubro de 1887.
66
Conquanto no relatório do presidente da Província de 1877, a divisão policial apresentada não
mencionar esta divisão, colocando Santo Amaro separada da Boa Vista, e o presidente enfatizar o fato de
São José ter mais praças por possuir dois distritos, dando a entender que as outras não tinham, pelos
Almanaques de 1873 e 1876 o bairro da Boa Vista já aparecia dividida em dois distritos policiais, sendo
Santo Amaro o seu 2º distrito. Como sabemos que efetivamente Boa Vista veio a ter dois distritos
policiais ainda no século XIX, sendo um deles Santo Amaro, preferimos considerar as informações
contidas nos Almanaques.
67
Apud G. Barroso Filho, op. cit., p.38 e Sebastião de Vasconcellos Galvão, Dicionário chorographico,
histórico e estatístico de Pernambuco, p.73.
68
Sebastião de Vasconcellos Galvão, Dicionário chorographico, histórico e estatístico de Pernambuco,
pp.30 e 289, v.1 e p.169, v.4; Oscar Mello, O Recife sangrento, p.5.
148
Obviamente isto não quer dizer que as freguesias de Recife e de Santo Antonio
fossem descuidadas. Duas áreas de grande importância comercial, sempre tiveram
atenção especial de acordo com as disponibilidades de pessoal dos corpos de polícia que
no momento se encontravam em ação. Em 1890, com a reorganização da Guarda Local,
o delegado solicitava ao chefe de polícia mais praças para o policiamento de Santo
Antônio, lembrando ser esta uma freguesia muito movimentada nas ruas da Roda,
Florentina e adjacências, aonde existiam hotéis, fábricas de cerveja e prostíbulos,
principal causa dos contínuos conflitos ali existente. De fato, a tabela 4 comprova as
preocupações do delegado, pois das quatro principais freguesias, Santo Antônio era a
que tinha maior índice de criminalidade. Em 1914, seriam os próprios comerciantes de
Santo Antônio que pediriam providências para que seus estabelecimentos não fossem
vítimas de uma malta de gatunos que infesta esta cidade. Para atender a medida, o
delegado prontamente requisitou ao chefe de polícia que dobrasse o pessoal disponível,
de 15 para 30 homens. 69
É interessante observar o decréscimo das ocorrências policiais no bairro do
Recife. Uma primeira explicação para o fenômeno pode estar ligada ao fato de ser um
bairro com um número bem menor de casas de bebidas, o que gerava menos problemas
de desordens, item que mais concorria para aumentar o número de prisões. Por outro
lado, devido as grandes casas de importação/exportação e os armazéns de açúcar
estarem instalados ali, fazia com que recebesse uma atenção especial das autoridades,
tendo um policiamento proporcionalmente mais ostensivo do que as outras freguesias.
Algumas fontes, por sua vez, sugerem que sua população sofreu um decréscimo 70 , o que
também explicaria a diminuição em sua criminalidade.
Na verdade, se o policiamento das áreas centrais da capital era alvo de críticas,
mais ainda se queixavam os moradores dos arrabaldes. À medida em a urbanização vai
se expandido, a polícia começa a registrar ocorrências nas áreas mais afastadas do
núcleo central da capital. Isto começa a acontecer primeiramente nas freguesias servidas
pelos trens que circulavam pela cidade (tabela 4).
69
APEJE, Fundo SSP, 1ª Delegacia da Capital, Ofícios de 25 de novembro de 1890 e de 5 de dezembro
de 1914.
70
Os dados demográficos para esse período são muito imprecisos e por isso devem ser levados em
consideração com as devidas reservas. Cf Sebastião Vasconcellos Galvão, op.cit., p.30, v.4.
149
150
Lugares mais rurais que urbanos, formados sobretudo por sítios e chácaras, onde
muitas famílias da cidade alugavam casas para passar as festas de fim de ano, não fosse
pelas comunicações rápidas oferecidas pelas maxambombas, pouco teriam a ver com o
Recife. Para fazer o policiamento dessa região ficavam poucos praças à disposição de
cada subdelegacia. Apenas a freguesia da Graça seria contemplada com uma estação da
Guarda Cívica, quando esta aumentou de cem para 150 homens. 71 Quando a Guarda
Local foi reativada, também houve alguma melhora em subúrbios como o das Graças e
da Várzea, que passaram de 8 a 10 praças a contar com 25. 72
Agravava ainda a situação desses subúrbios o fato de que quando se necessitava
de reforço para o policiamento dos bairros mais abastados, eram deles que se retiravam
os policiais. 73
De um modo geral, no entanto, com freqüência eram encontrados nos jornais
críticas mordazes ao descaso da polícia quanto à segurança tanto da cidade quanto de
seus arrabaldes, muitas delas da própria população, como esta que a comparava a um
camelo:
71
Mário Sette, Maxambombas e maracatus, passim; Almanak... de 1882.
72
APEJE, Fundo SSP, 1ª Delegacia da Capital, Ofício de 25 de novembro de 1890.
73
Idem, ibidem; e APEJE, Ofícios do Comando do Corpo de Polícia, Ofício do chefe de polícia, Manoel
dos Santos Moreira, para o Tenente-Coronel Comandante do Corpo de Polícia, 17 de abril de 1905, p.64.
74
DP, 13/08/1881.
151
jornalista, irônico, dizia que finalmente o subdelegado não duvidaria mais da existência
de larápios na sua jurisdição. 75 Os ladrões pareciam realmente não se importar com
quem estavam lidando: em 1901, foi a vez do próprio governador de Pernambuco ter a
sua algibeira roubada em mais de duzentos mil réis, em plena Igreja do Espírito Santo. 76
Outros locais que causavam assombros à população eram as estradas de
Fernandes Vieira, Olho do Boi, Beco do Suassuna e João de Barros, pelos matagais
fechados que apresentavam. João de Barros, principalmente, era apontada como uma
nova Floresta Negra, pelo número de salteadores que se aproveitavam de suas árvores
encorpadas para emboscarem à noite. Tinha-se medo de que se constituísse um novo
Catucá, atraindo a formação de quilombos bem às portas da cidade. 77
O abandono policial em que se encontrava a cidade era atribuído primeiro ao
descaso e depois ao deplorável cerceamento que a legislação penal havia provocado nas
atribuições policiais. Não era bem assim. Além do próprio aumento da criminalidade
que acompanha va o crescimento urbano e as desigualdades sociais, uma boa parte da
responsabilidade estava na própria organização da força policial. Um grande número de
praças era requisitado para fazer a condução de presos às cadeias e aos tribunais, além
do serviço de guarda na Casa de Detenção, terminando por desfalcar o serviço policial.
De 65 soldados que existiam no quartel do 1º distrito de São José em 1890, por
exemplo, apenas 25 estavam fazendo o policiamento. O subdelegado de Areias, por sua
vez, reclamava de que das cinco praças que tinha para fazer a ronda, duas haviam sido
retiradas para fazer a guarda da Casa de Detenção e não tinham sido devolvidas. Esse
era um tipo de problema que as autoridades policiais tiveram que enfrentar em todo o
período e que causava grande transtorno ao serviço policial. Outro problema que afetava
o contingente em serviço eram as retiradas arbitrárias de praças sob o comando de civis,
por autoridades militares. Do efetivo de 21 praças do destacamento de Santo Antônio,
sobraram apenas 9 para fazer o serviço policial do distrito, seis tinham sido retiradas
sem o conhecimento do delegado pelo Comandante do Regimento, e o restante tinha de
ficar de sentinela no quartel. Estas retiradas à revelia das autoridades locais, ocorriam
para satisfazer exigências de reforço em outras áreas da cidade e até mesmo do interior,
75
DP, 05/11/1870. 09/11/1870, 24/07/1877, 10/08/1877, 04/10/1879, 14/12/1881; A Província,
15/08/1902, 31/01/1904; Jornal do Recife, 18/12/1890, 08/01/1909.
76
A Província, 11/12/1901.
77
DP, 06 e 29/08/1873 e 29/09/1873.
152
uma vez que, fora a Guarda Cívica, as outras forças policiais que existiram no Recife,
no período, analisado poderiam ser deslocadas para qualquer ponto da
78
Província/Estado.
Havia ainda um outro motivo para que não existissem policiais suficientes para o
serviço da cidade. Este estava relacionado ao fato dos praças serem colocados em
serviços burocráticos, como o de escrivão, e por serem utilizados pelos delegados e
subdelegados em serviços pessoais, até mesmo caseiro. Embora não fosse incomum o
uso de ordenanças nos assuntos privados das autoridades policiais desde o Império, o
governo de Gonçalves Ferreira era acusado pelo jornal oposicionista, A Província, de
muito mais. Denunciava o jornal que vários repórteres e auxiliares do Diário de
Pernambuco – órgão pertencente ao conselheiro Rosa e Silva –, eram na verdade
sargentos e cabos de palitot e gravata; que muitos eram colocados como ordenanças de
qualquer indivíduo que granjeasse algum tipo de cargo ou prestígio político, e de que
outros tantos faziam parte da folha de pagamento sem que prestassem o menor
serviço. 79 Seriam estas as razões para que o contingente policial parecesse insuficiente
diante do aumento da criminalidade no Recife, apesar do número de soldados da polícia
ter acompanhado este crescimento, principalmente na primeira década do século XX
(vide tabela 1).
Em regra o policiamento da capital até o início do século XX era feito por rondas
de mais ou menos três policiais, ficando cada destacamento responsável por
determinadas ruas. Dependendo do local e da ocasião, como nos dias de festa, este
número poderia subir. Os praças percorriam as ruas a pé e se precisassem de reforço
utilizavam um apito para chamarem outros guardas que porventura estivessem por
perto. O apito também era usado pelos inspetores de quarteirão e pela própria população
quando necessitavam de auxílio, mas muitas eram as queixas de que mesmo havendo
policiais disponíveis, esses se faziam de desentendidos. 80
Raramente as rondas eram feitas por soldados montados a cavalos, o que ocorria
mais quando os capoeiras eram perseguidos pelo Exército. O uso de cavalos veio a se
78
APEJE, Fundo SSP, 1ª Delegacia da Capital, Ofícios de 6 de outubro de 1887, 25 de novembro de 1890
e de 19 de março de 1914; Ofícios do Comando do Corpo de Polícia, Ofício do chefe de polícia, Manoel
dos Santos Moreira, para o Tenente-Coronel Comandante do Corpo de Polícia, 17 de abril de 1905,
p.64.
79
DP, 10/10/1881; A Província, 12/12/1901.
80
Cf. DP, 22/07/1881 e Jornal do Recife, 30/12/1880.
153
tornar mais comum durante a República, quando a própria polícia passaria a dispor de
uma divisão de cavalaria. 81
A falta de policiais na rua fazia com que muitas vezes a própria população
ajudasse a polícia a prender os ladrões ou simplesmente tomasse a si a tarefa de prende-
los e entregá-los em algum dos postos policiais espalhados pela cidade na época, como
as estações da Guarda Cívica ou, posteriormente, os quartéis. 82
Muitas vezes as rondas eram acompanhados pelos delegados e subdelegados mais
atentos aos seus distritos, alguns chegavam a fazer rondas até de madrugada. O
delegado Barros Rego, era um dos que freqüentemente podia ser visto montado em seu
cavalo policiando sua jurisdição, principalmente aos sábados, dia de maior movimento
no bairro do Recife, fazendo-se sempre acompanhado de dois cabos de esquadrão. 83
O que de imediato trans formava um indivíduo em suspeito para a polícia era o
fato de estar nas ruas altas horas da noite, sua cor e a forma de trajar. Em uma ronda que
fazia das 3 às 4 horas da madrugada, o delegado da capital, acompanhado de alguns
inspetores de quarteirão, encontrou na esquina da rua das Trincheiras com a da Estreita
do Rosário, alguns indivíduos – dois pardos e um negro – , os quais foram perseguidos e
presos no pátio da matriz de Santo Antonio. Apesar de dois deles terem profissão – um
dos pardos era ferreiro e o negro, sapateiro – e não terem sido pegos em flagrante, foram
presos por suspeita de estarem planejando algum roubo. A prisão se deu devido aos
instrumentos que carregavam, como serrotes, limas, sacos, cordas e pregos –
ferramentas que eram proibidas aos oficiais mecânicos carregarem após as 6h da tarde
pelas posturas municipais (vide quadro 1). Depois de detidos o delegado viria a saber
que um deles havia cumprido pena por roubo em Fernando de Noronha há pouco
tempo. 84
De outra feita, a suspeita de um guarda cívico recaiu sobre dois sujeitos
desconhecidos e descalços, um pardo, o outro branco, que andavam na rua Barão de
Vitória às 3 horas da manhã. Ao tentar abordá-los, o guarda cívico recebeu como
resposta uma facada. Os dois eram soldados do 2º Batalhão de linha. Não era
necessário, no entanto, ser tarde da noite para se tornar suspeito. Em se tratando de uma
81
Cf. Jornal do Recife, 13/02/1909.
82
Cf. DP, 27/10/1879, 22/07/1890.
83
Oscar Mello, op.cit., pp.101-102.
84
DP, 05/10/1874.
154
sociedade escravista, o fato de ser negro e desconhecido já era suficiente. Foi o que, por
azar, aconteceu com quatro indivíduos parados por uma ronda, às 9 horas da manhã.
Todos eram escravos fugidos do termo de Nazaré. Talvez o fato de quatro pessoas
negras e desconhecidas estarem andando em grupo e sem trabalhar tivesse chamado a
atenção dos guardas, o que mostra que para um escravo se manter escondido na cidade
era necessário saber utilizar os seus códigos de identificação. 85
A violência policial
85
APEJE, Fundo SSP, 1ª Delegacia da Capital, ofícios de 21 de janeiro de 1888 e de 27 de março de
1887.
86
A Província, 01/02/1905.
87
APEJE, Relatório dos Chefes de Polícia, 1905, pp.14-16; Oscar Mello, op.cit., p.112.
155
88
Cf. Oscar Mello, op. cit., pp.101, 103-106 e 110.
89
Rabo-de-galo é um termo popular nordestino para facão, e cipó-de-boi se refere a um chicote fino de
couro cru.
90
A Província, 19/02/1904.
91
APEJE, CDR, Ofício do administrador Leopoldo Borges Galvão Uchôa, para o chefe de polícia
Antonio Pedro da Silva Marques, de 5 de agosto de 1897, p.113.
156
92
A Província, 25/05/1902.
158
(...) Cidadão
93
Idem, 27/05/1902.
94
DP, 22/10/11879, 05/12/1879, 26/11/1881; A Província, 03/09/1901, 01/10/1901 e 06/06/1906.
159
Era mais comum, no entanto, que a população se sentisse mais segura em recorrer
ao chefe de polícia. Não de uma forma legal, utilizando-se dos recursos da lei – o que
denotava uma descrença generalizada nos dispositivos da justiça, principalmente por
parte das classes populares, que não tinham conhecimento da lei, recursos e prestígio
social para ativar a justiça com sucesso. Como nos dias de hoje, os agredidos confiavam
a sua situação a intermediação da imprensa, que ao formar uma opinião pública de
repúdio aos abusos da polícia, forçava uma ação das autoridades competentes. Um
mestre de obras, com 37 anos de ofício, preso ilegalmente por suspeita de roubo,
resumia bem a desconfiança daqueles que se encontravam na mesma categoria social
que a dele ao contar sua história num jornal, dizendo ...que podia responsabiliza-lo [o
subdelegado de Santo Antonio], mas temendo encontrar outros que pensem como elle,
prefiro esquecer a offensa desprezando o ofensor e recommendando aos cidadãos
honestos cautela e mais cautela. 96
E o uso da imprensa até certo ponto mostrava dar bons resultados, pois eram
freqüentes os ofícios enviados pelo chefe de polícia aos delegados e subdelegados,
cobrando explicações sobre os artigos que acusavam a polícia:97
(...)
95
APEJE, Fundo SSP, 1ª Delegacia de Capital, Ofício do delegado Luis d’Andrade, ao chefe de polícia
Antonio de Olinda Almeida Cavalcante, em 10 de outubro de 1890.
96
Jornal do Recife, 20/08/1877.
97
Cf. APEJE, Fundo SSP, Ofícios de 03/12/1884, 06/09/1887, 18/02/1888, 23/10/1890, 02/03/1898,
22/10/1906 e 26/03/1913.
160
Mas a realidade mostrava que tais abusos eram cometidos por membros de
quaisquer partidos, e que até jornais da situação às vezes se viam obrigados a noticiar os
desmandos de alguma autoridade policial. Isto acontecia porque a violência policial bem
como as arbitrariedades de um modo geral se inseriam num contexto de controle
empreendido pelas elites que as tornavam mais um instrumento de sua dominação do
que uma distorção de sua função. Havia uma rede de clientelismo que não permitia
ações mais enérgicas no sentido de combatê- las. Muitos delegados e subdelegados, por
98
APEJE, Fundo SSP, Minutas do chefe de polícia ao delegado do 2º Distrito da Capital, 29 de fevereiro
de 1888.
99
A reclamação do subdelegado saiu no Jornal do Recife, 07/05/1879.
100
A Província, 13/09/1901.
161
exemplo, serviam de cabo eleitoral em seus distritos para o governo, e por sua vez os
praças eram peças importantes nas pressões exercidas sobre as mesas eleitorais. Além
disso, a forma como os praças agiam refletia muitas vezes a própria conduta de seus
superiores, e por isso, eram acobertadas. Cargos policiais eram oferecidos como
recompensa política, tanto na esfera civil como militar, e de um modo vicioso, os que
recebiam este tipo de recompensa comprometiam-se a retribuir com outros favores
especiais. Por isso, as tentativas de moralizar a polícia foram sempre paliativas e de
modo bastante pontual, atingindo apenas aqueles que podiam ser descartados. O
problema real, que se fundava no sistema de clientelismo e na baixa participação
popular nas decisões políticas, este era deixado de lado. 101
101
Idem, ibidem, e de 12/02/05; Ruben George Oliven, Violência e cultura no Brasil, p.14; Oscar Mello,
op. cit., pp.101-103, 108 e 119.
162
de andarem com escadas altas horas da noite, para com elas saltarem os muros e
roubarem as aves que ali encontravam. Indignados, protestavam através do mesmo
jornal que publicou a acusação, o que qualificaram como uma injustiça, assinando cada
um o seu nome para que melhor fosse apurada a verdade pela polícia. 102
Podiam ser perigosos, porque podiam ser unidos, o que ficou patente em um
motim que reuniu mais de 50 catraieiros no Cais da Lingüeta, fazendo com que o
comércio fechasse antes da hora de costume. O motivo da revolta foi a prisão de um
companheiro que havia sido detido em razão de uma queixa formulada por um
espanhol, dono de um restaurante naquela mesma localidade. Inconformados com a
prisão do colega, reuniram-se em frente ao restaurante para apedrejá- lo. A notícia do
que estava acontecendo chegou rapidamente ao quartel situado próximo ao Cais,
apressando-se o destacamento ali existente em correr ao local. Aproveitando que o
quartel ficara desguarnecido, os presos lá recolhidos – inclusive o indivíduo pivô da
revolta – fugiram e usaram de escaleres para se refugiarem no mar, o que obrigou parte
do contingente enviado a ter que retornar. Isso deu ocasião a que os trabalhadores
dessem uma grande vaia no destacamento, acreditando que fugiam com medo. 103
Tomando conhecimento da situação, o chefe de polícia telefonou dando ordens
para ser enviado um piquete de 15 praças de cavalaria, mais dois de infantaria, cada um
com dez soldados, que seriam acompanhados também pelo delegado do 1º Distrito,
Glycério Gouveia, e dos subdelegados da Boa Vista, de Santo Amaro e de Santo
Antônio. Ao chegar a força policial, no entanto, os trabalhadores já haviam se
dispersado e os presos fugitivos foram recapturados no mar por um tenente da Escola de
Aprendizes de Marinheiros. 104
Não seria, porém, esse tipo de solidariedade que poderia haver entre trabalhadores
de uma mesma categoria profissional, que realmente assustava as elites. O medo que
tinham, na verdade, era de que tais manifestações pudessem evoluir em torno de
reivindicações trabalhistas, como ocorria na Europa. Não era um temor infundado, o
movimento operário no Recife se iniciaria já em fins do século XIX. Em 1890, seria
criada a Liga Operária Pernambucana, que se dirigindo através dos jornais aos
operários das fabricas e officinas existentes nesta capital e outros lugares, convidava
102
DP, 13 e 15/06/1871.
103
A Província, 01/02/1905 e DP, seção “Repartição Central de Polícia”, 02/02/1905.
104
Idem.
163
para que fossem enviados nomes de seus representantes para constituírem o corpo
consultivo do partido operário. Oito meses depois acontecia a primeira greve do Estado,
com os trabalhadores das refinarias de açúcar do Recife exigindo 50% de aumento
salarial. Após esta, várias outras se seguiriam, de categorias como os operários das
fábricas de cigarros Lafayette, Caxias e Moreninha, em 1903, dos trabalhadores dos
armazéns e refinarias de açúcar, dos estivadores e dos ferroviários, respectivamente em
1906, 1908 e 1909. Destas, a dos ferroviários da Great Western foi a de maior
repercussão política, paralisando, inclusive, os seus serviços no Rio Grande do Norte,
Paraíba e Alagoas. 105
Todas essas greves foram acompanhadas de perto pela polícia, tendo a dos
operários das fábricas de cigarros, inclusive, o chefe de polícia como conciliador entre
empregados e patrões. Mas a verdadeira missão da polícia não era conciliadora, e sim de
esvaziar as paralisações pelo efeito de intimidação ou simplesmente acabá- las com o
uso da força, como ocorreu no caso da paralisação de 1906. 106
Duas tentativas de greve fracassadas ilustram como a polícia se portava nessas
situações. Em 1901, como estratégia para evitar uma greve de cocheiros de bondes, a
guarda da Brigada Policial foi dobrada, fazendo o serviço com armas embaladas. Os
delegados e inspetores permaneceram de prontidão nas respectivas delegacias e
estações. O chefe de polícia e o chefe do Estado Maior da Armada, almirante
Wandenkolk, entraram em confabulações. O resultado foi o esperado, a greve não
aconteceu. 107 O mesmo ocorreria com uma paralisação de motorneiros da Pernambuco
Transways Company, em 1914. À uma hora da madrugada o delegado do 1º Distrito foi
procurado pelo gerente da companhia para solicitar que os carros da empresa fossem
guarnecidos pela força pública, uma vez que... três insubordinados motorneiros
pretendiam impedir que os seus companheiros trabalhassem. Doze praças foram
deslocadas para o local e a greve impedida. 108
A transição para o trabalho livre, desta forma, seria acompanhada de adaptações
de controle sobre os trabalhadores, que ainda teria na violência um de seus principais
105
Cf. P. Eisenberg, op.cit., pp.205 e 227; DP, 26/07/1890; Almanack de Pernambuco de 1903 e 1906; A
Província, 17/11/1906; Relatórios dos Chefes de Polícia, 1910, p.9; Antonio Paulo Rezende, A classe
operária em Pernambuco, pp.18-19.
106
P.Eisenberg, op.cit., p.205.
107
A Província, 01/09/1901.
108
APEJE, Fundo SSP, 1ª Delegacia da Capital, Ofício de 20 de junho de 1914.
164
109
R. Boudon e F. Bourricaud, op. cit., pp.114-115.
110
M. Foucault, op.cit., pp.240-242.
165
111
Idem, p.250.
166
Com o Código Penal de 1890, 112 a pena nos casos de vadiagem passa a ser de um
ano e meio com trabalhos forçados. Esse aumento significativo na pena de reclusão dois
anos após a Abolição ser decretada, e a tentativa de criação das duas colônias
penitenciárias em Fernando de Noronha para presos por vadiagem e mendicância em
1897, juntamente com a criação efetiva das escolas correcionais para menores que
ocorreriam em 1909 e 1917, sugerem um contexto de preocupação por parte das elites
em tentar reprimir os hábitos não condizentes com a vida disciplinada de um
trabalhador e, ao mesmo tempo, afastar os demais dos caminhos que não seguissem a
regra do trabalho. 113 Embora a amostragem contida na tabela 2 indique uma
participação pequena da vadiagem nas prisões efetuadas, ela está compatível com outros
estudos feitos para a mesma época, que mostram um aumento em sua repressão até a
primeira década do século XX e depois um declínio. 114
Tratava-se de fazer uma “expropriação cultural”, isto é,... proceder a um conjunto
de transformações de cunho mais marcadamente cultural, para que os indivíduos
despossuídos dos meios materiais de vida não só precisassem como também estivessem
dispostos a trabalhar para outros. 115
Para mudar a concepção e o comportamento do homem livre em relação ao
trabalho – alterar- lhe o desamor pelo trabalho, fruto do escravismo e da possibilidade
de subsistir com o mínimo necessário – e a sua escolha pelo ócio e pelo lazer, um dos
meios encontrados foi a criminalização e a repressão às formas de subsistência
contrárias ao trabalho.
Desta forma, ao lado do vadio, outros comportamentos que destoavam do
esperado de um cidadão pobre, mas honesto e trabalhador, foram por uns bons tempos
combatidos pela polícia recifense. Na verdade, o próprio conceito de “vadio” tinha uma
112
Para saber como o Código Penal institui uma ordenação social através da valorização do trabalho ver
Berenice Brandão, Ilmar R. de Mattos e M. A. de Carvalho, A polícia e a força policial no Rio de
Janeiro, pp.216-231.
113
No Rio de Janeiro as prisões por vadiagem elevaram-se violentamente depois de 1907, cf. Marcos
Bretas, op.cit., p.70.
114
Em nossa amostragem (tabela nº2), a vadiagem aparece com 0,76% das prisões em 1885, 2,98%
em1905 e 1,99 em 1915. Marcos Bretas, por sua vez, encontrou no Rio em 1909 a porcentagem de 8,40
para as prisões por vadiagem; em 1917, a cifra de 1,38% e em 1925, 0,05%. Ele atribui a esse declínio –
que se inicia por volta de 1915 – o fato dos distritos centrais da cidade deixarem de registrar esses casos e
a vadiagem revestir-se de uma nova importância nas áreas suburbanas, cf. op. cit., pp.102-103 e 114.
Este não foi o caso do Recife, uma vez que os números conseguidos foram repassados pelos subdelegados
à Repartição Central de Polícia. Fica difícil, no entanto, formar uma opinião a respeito da queda do
número de prisões por vadiagem apenas com os dados obtidos.
115
Lúcio Kowarick, Trabalho e vadiagem, p.10.
167
abrangência na prática bem maior do que a dada legalmente. Ele abarcava uma série de
comportamentos indesejáveis não apenas para as elites como para a classe média. 116
Essa criminalização de certas condutas das classes populares ganhavam consenso
através da divulgação das queixas de moradores da cidade nos jornais. A imagem dos
vadios estava intimamente ligada à idéia não apenas de ociosidade mas igualmente de
imoralidade, uma vez que a partir do ócio todos os vícios morais germinariam e seriam
ressaltados. Portanto, os vadios poderiam ser descobertos na linguagem obscena que
usavam, nos modos que tinham, nos folguedos populares que freqüentavam. 117
Em grande parte a vadiagem era associada aos jovens e crianças livres de origem
pobre que habitavam as ruas, 118 fosse por opção, fosse em virtude de serem órfãos ou
mendigos. Uma parte dos órfãos era mantida pela Santa Casa de Misericórdia (quadro
4), mas muitos outros moravam ao abrigo de prédios públicos, como as calçadas do
Ginásio Pernambucano, da Assembléia Legislativa ou os adros das igrejas. Não apenas
dos adolescentes mas também das crianças esperava-se que trabalhassem para auxiliar
no sustento de suas famílias. Era uma ajuda que seus pais não podiam prescindir.
Comumente eram encontrados nas ruas meninos trabalhando de engraxates, gazeteiros,
moleques de recados. As outras crianças e jovens que por qualquer outro motivo que
não o trabalho estavam nas ruas eram mal vistas e tidas como vadias, com toda a carga
negativa que a palavra carregava na época. As próprias brincadeiras consideradas
infantis, como empinar papagaio, eram denunciadas nos jornais como fonte de
ajuntamento de vadios:
116
A imposição do crime de “vadiagem” era um recurso muito utilizado pela polícia de São Paulo até a
década de ’30 para controlar indivíduos das classes inferiores que em sua visão não estavam de acordo
com os padrões esperados para a classe trabalhadora, por exemplo, uma aparência descuidada, a
embriaguez ou a prostituição, que não eram criminalizados legalmente, passavam a ser enquadrados como
crime de vadiagem e desta forma recebiam uma punição. Cf. Silvia Helena Zanirato Martins,
“Representação da pobreza nos registros de repressão: metodologia do trabalho com fontes criminais”, in
Revista de História Regional, Curitiba, 3 (1): Verão 1998.
117
Cf. DP, 24/02/1878, 12/11/1881, 09/12/1881.
118
Sobre a condição de vida e as imagens construídas em relação às crianças e adolescente deste período
vide Esmeralda B. Bolsonaro de Moura, “Meninos e meninas na rua: impasse e dissonância na construção
da identidade da criança e do adolescente na República Velha”, in Revista Brasileira de História, v.19, nº
37, São Paulo, set/1999.
168
Realmente, muitos desses jovens e crianças não encontravam outro caminho a não
ser a delinqüência, uma vez que para sobreviverem cometiam pequenos roubos (ver
tabela 2). O convívio nas ruas com todos os tipos de pessoas, inclusive os famosos
gatunos da época, transformavam- nas em seus auxiliares. Existia até uma gíria entre os
marginais para designar a criança que ficava de alerta para avisar o ladrão quando vinha
a polícia – jeremias. 120 Eram igualmente comuns as depredações cometidas contra os
serviços urbanos, como as linhas de ferro e as companhias de gás e de abastecimento de
água. A Recife Drainage Company chegou a oferecer uma gratificação de 50$000 réis a
quem desse o paradeiro dos vadios que haviam quebrados os canos vidrados da
empresa. 121
Como todos os presos por vadiagem, eram enviados para a Casa de Detenção,
onde ficavam até poderem ser enviados para instituições nas quais se ensinava algum
ofício, e onde se esperava que com uma disciplina rígida se reabilitassem. Isto se
houvesse vaga. No caso da Escola de Aprendizes Marinheiros ainda havia uma seleção
pelo exame de saúde. Em 1885, de 81 menores órfãos que foram enviados para lá, 27
não foram aceitos devido ao estado de saúde. Os que não foram aceitos, no entanto, não
devem ter ficado decepcionados. A disciplina severa desta escola fazia com que fosse
temida pelos jovens como uma ameaça. 122 Quem já tivesse idade suficiente poderia ser
enviado para servir no Exército ou na Armada. Em 1908, o próprio administrador da
119
A Província, 13/05/1902. Cf. outras reclamações sobre vadios empinadores de papagaio: Idem,
17/01/1904 e DP, 16/04/1882.
120
Oscar Mello, op.cit., pp.91.
121
DP, 15/10/1870.
122
Em suas memórias, Gregório Bezerra se refere à ameaça de lhe enviarem para a Escola de Aprendizes
de Marinheiro, caso não trabalhasse convenientemente para um jornalista que lhe explorava como
gazeteiro. Cf., Memórias, p.122.
169
Casa de Detenção resolveu instalar em suas dependências uma Escola Correcional para
os menores delinqüentes (ver capítulo 4).
Como já vimos anteriormente, a política mantida pelo governo era de combinar
disciplina, trabalho e instrução primária para ressocializar esses jovens ao mercado de
trabalho, produzindo, entretanto, desde cedo, uma divisão social clara, uma vez que a
esses meninos não seria dada a chance de escolherem um outro caminho a não ser o de
trabalhador manual, reforçando desta forma, as desigualdades sociais existentes. 123
Quadro 4
123
Alessandra F. Martinez de Schueler, “Crianças e escolas na passagem do Império para a República”, in
Revista Brasileira de História, pp.9-10.
170
esmolar. 124 A policia cabia recolhê- los para o Asilo de Mendic idade ou para a Casa de
Detenção.
Vale ressaltar que se a mendicância era mal vista pela sociedade como um todo –
como visto no primeiro capítulo –, era, entretanto, uma prática freqüente e louvável
quando revestida em causas cristãs pelos membros das irmandades. Esmolar pelas ruas
do Recife em nome das irmandades era uma cena comum, tanto que esses tiradores de
esmolas eram conhecidos como “os homens das opas”. 125 Mas também sobre estes
pairavam dúvidas. Diziam que muitos haviam prosperado associando-se aos santos a
que serviam.126 Outros, mesmo sem fazerem parte de irmandades, se aproveitavam das
festas religiosas e saiam a pedir nos arrabaldes para não chamar a atenção da polícia, em
nome de alguma irmandade, como ocorreu em relação à festa de N. S. do Livramento. 127
Era comum também os escravos de ganho pedirem esmolas aos comerciantes nos
tempos de festas para formarem um pecúlio com o objetivo de comprarem sua
liberdade. Quando, no entanto, este meio foi empregado com fins de assistencialismo às
vítimas da seca de 1877-79, gerou controvérsias. Enquanto alguns elogiavam atos como
o dos jovens empregados do comércio saírem fantasiados no carnaval, recolhendo
dinheiro para a Secretaria de Polícia distribuir entre os flagelados, outros viam nas
esmolas destinadas aos retirantes como... um novo meio de espoliação do público, e o
governo acusado de desta forma... proteger a ociosidade, a vadiagem, e facilitar a
repercussão de crimes. O único remédio para os retirantes era o trabalho, ainda que
oferecido em condições de subsistência. 128
Por outro lado, a mendicância, tanto quanto nos dias de hoje, tinha seu lado
realmente de caráter policial. A condição de miséria de muitos indivíduos fazia com que
fossem alvos da exploração inescrupulosa de aliciadores. Um caso relatado no Jornal do
Recife revela como alguns indivíduos utilizava-se da pobreza alheia para ganharem
dinheiro fácil: um sujeito abrigava em sua casa dois pretos velhos, dando- lhes dormida
e comida, e em troca era-lhes estipulado um valor diário que conseguiriam através da
mendicidade, para ser- lhe entregue à noite, quando se recolheriam a casa. Caso o valor
124
Novo Código Penal brasileiro, arts. 391 a 395.
125
“Opas” são espécies de capas sem mangas usadas por membros de confrarias e irmandades religiosas.
126
Mário Sette, Maxambombas e maracatus, pp.81-82.
127
DP, 15/08/1880.
128
DP, 01/03/1878 e 17/09/1877.
171
estipulado não fosse alcançado, o saldo devedor ficava a ser resgatado nos dias
posteriores – sistema parecido com o emprego de escravos de ganho. 129
Conta- nos ainda o jornal, que um desses mendigos tinha catarata, e tomando
conhecimento de que o seu mal podia ter cura, procurou um especialista, o Dr. David
Ottoni, o qual examinando-o concluiu ser curável. Marcaram, então, o dia da cirurgia a
ser realizada na casa do próprio paciente; mas ao chegar lá o médico foi recebido com
impropérios pelo dono da casa, e a operação não foi realizada. Obviamente, nos cálculos
do “empresário” do preto velho, um mendigo cego era bem mais valioso que um sadio
dos olhos. 130
Ao contrário das acusações freqüentes dos jornais que criticavam a morosidade
policial a respeito do assunto, acusando das ruas estarem atopetadas de mendigos que
importunavam os transeuntes e da polícia fechar os olhos para isso, o que ocorria na
realidade era a incapacidade dela em fazer recolher um número cada vez mais crescente
de miseráveis que povoavam o Recife. Às vezes a polícia organizava batidas pelas
pontes e ruas mais movimentadas da cidade e recolhia 20, 30 mendigos de uma só vez.
O Asilo invariavelmente andava cheio, e por isso o excedente era enviado para a
prisão. 131
Logo que as autoridades policiais tomavam conhecimento de novos pedintes em
seu distrito, que por suas condições físicas demonstravam estar usando a mendicância
como forma de sobrevivência alternativa ao trabalho, estes eram ameaçados de prisão e
obrigados a assinar um “termo de bem viver” – isto é, assumir o compromisso de
arrumar um emprego. Foi isto que fez o subdelegado da freguesia do Recife, ao saber
que em sua jurisdição esmolavam quatro mulheres ainda jovens e sadias, acompanhadas
de crianças. As mulheres prometeram que – pelo menos por ali – não mendigariam
mais. 132
***
A vadiagem também estava intimamente ligada a um outro tipo de contravenção –
o jogo. Este seria mais um dos vícios e meio dos pobres fugirem ao trabalho honesto,
adquirido em conseqüência do ócio. Os jogos considerados proibidos – os chamados
129
Jornal do Recife, 24/09/1886.
130
Idem, ibidem.
131
APEJE, Fundo SSP, 1º Distrito da Capital, Ofício de 25 de junho de 1909.
132
Jornal do Recife, 11/09/1886.
172
jogos de parada, onde se apostava uma quantia em dinheiro em cada lance – sempre
foram alvo de repressão das autoridades desde o Império, havendo no Recife posturas
que tratavam diretamente do assunto. Mas a maior repressão, com o incremento do
delito após a chegada do jogo do bicho, se daria no início da República, principalmente
na gestão do chefe de polícia Santos Moreira, no governo de Sigismundo Gonçalves, o
qual havia sido eleito sob uma grande expectativa de que daria atenção especial ao
problema de segurança pública. 133 O chefe de polícia de Sigismundo Gonçalves logo
que assumiu o cargo, tratou de enviar circulares às autoridades policiais da capital e do
interior do Estado ordenando buscas constantes nas casas de tavolagem. O trabalho de
repressão ao jogo foi exaustivo em sua gestão – como indica a tabela 2 – e com altos e
baixos, pois como o próprio Santos Moreira afirmava em seu relatório, o jogo estava
disseminado entre toda a população, lado a lado às loterias emitidas pelo governo:
Realmente, o jogo era uma contravenção praticada por todas as camadas sociais,
ainda que mais cometida pelas classes populares. Os jovens pobres continuavam a ser
aqueles que mais eram encontrados praticando o delito em locais públicos, como as
calçadas e os pátios das estações de trem. 135 Fazia-se, no entanto, uma diferenciação
moral entre eles, que jogavam como efeito de sua “degeneração moral”, e os filhos-
famílias que eram atraídos pelas casas de jogo – isto é, pelos verdadeiros vadios, que
lhes iniciavam no vício. Um jornal alertava para o fato de que o mal se propagava entre
as pessoas de bem da sociedade: chefes de famílias respeitáveis, dentre os quais,
133
Maria da Glória D. Medeiros, op. cit., p.116.
134
APEJE, Relatório apresentado ao Exmº Sr. desembargador Sigismundo Antonio Gonçalves,
governador do Estado, pelo chefe de polícia Dr. Manoel dos Santos Moreira, 1905, p.15.
135
DP, 08/03/1873, A Província, 14/08/1902; Jornal do Recife, 12/11/1904.
173
136
A Província, 07/02/1904.
137
APEJE, Relatório apresentado ao Exmº Sr. desembargador Sigismundo Antonio Gonçalves,
governador do Estado, pelo chefe de polícia Dr. Manoel dos Santos Moreira, 1905, p.15.
138
A Província, 14/08/1902.
174
“gente de ínfima espécie” em jogos de parada. Quanto ao jogo da bola, o máximo que o
delegado conseguiu foi a proposta, a ser enviada à Câmara Municipal, de se proibir o
jogo depois das dez horas da noite. O delegado, por sua vez, fez ver a necessidade de
pelo menos a proibição baixar o horário para as nove da noite, e só permitir a entrada de
pessoas de bem. Estas seriam identificadas pelo modo de se vestir, evitando assim a
entrada de maltrapilhos, criados, menores e filhos-famílias. 139 Mais uma vez, o modo da
polícia identificar possíveis delinqüentes estava associado à condição social –
representada pelos trajes do indivíduo – e a idade.
Curiosamente, o medo que a polícia tinha desses ajuntamentos provocados pelos
jogos, tidos como prejudiciais à ordem pública e de servirem de escolas de crimes –
como se apresentavam para a população –, algumas fábricas de cervejas pareciam não
ter, ou pelo menos viam aí uma fonte de lucro bem mais rentável que os prejuízos que
porventura pudessem vir a ter com a disciplina de seus operários. Nas fábricas Phenix e
Nova Hamburgo – localizadas na rua da Florentina, no bairro de Santo Antônio –, eram
oferecidos jogos de parada chamados “estrada de ferro” e “prado”, que haviam sido
licenciadas indevidamente pela própria Intendência, tendo em vista as posturas
municipais promulgadas pela Lei nº 1129 de 26 de junho de 1873, que, em seu artigo
74, proibia todos os jogos de parada e continuava em vigor. A licença foi conseguida
sob o pretexto de darem como prêmios gêneros ao invés de dinheiro, mas os ganhadores
geralmente recebiam vales que trocavam por dinheiro, e quando levavam gêneros, eram
em cigarros, charutos ou cervejas. Muitos meninos freqüentavam os jogos das fábricas e
os habituais suspeitos da polícia – aquelas pessoas descalças que pertubam o socego
público. 140
O delegado Francisco do Rêgo Barros, resumia bem em seu ofício ao chefe de
polícia, a preocupação das autoridades em manter disciplinada as classes populares em
função do trabalho, ao reprimir o uso do jogo:
139
APEJE, Fundo SSP, 1ª Delegacia da Capital, Ofícios de 02 de novembro e de 31 de dezembro de
1887.
140
Idem, Ofícios de 05 de março e de 13 de março de 1890.
175
boa educação dos filhos famílias, pois em lugar de seguirem para suas escolas
e officinas vão as dictas casas obtém (sic) o pernicioso vicio do jogo.141
Mas se havia uma preocupação real das autoridades em coibir o jogo, cabe
perguntar a razão de não terem conseguido. Embora Santos Moreira afirmasse em seu
relatório que havia conseguido eliminar as casas de tavolagem e que diminuíra bastante
o jogo do bicho, a verdade é que os jornais não cansavam de denunciar pontos onde o
jogo ocorria. Uma das principais ruas do Recife – a rua da Imperatriz – era um dos
focos de jogatina da cidade. Em suas confeitarias e pastelarias elegantes se escondiam
bancas de rodas fichet e do jogo do bicho. Um dono de confeitaria dessa rua se defendia
da acusação de também manter jogos em seu estabelecimento, afirmando que realmente
recebera propostas para colocar roletas, mas que preferira conservar o seu negócio
lícito, embora pouco rendoso. 142
Como medida acauteladora contra essas casas comerciais, o subdelegado da Boa
Vista proibira o funcionamento delas depois das dez horas da noite, coisa que pouco
adiantava, pois mesmo aparentemente fechadas, as bancas de jogos continuavam a
funcionar clandestinamente. Os empresários do jogo tinham todo um esquema montado
para se prevenir da chegada da polícia. Espiões ficavam de sobreaviso nas esquinas das
casas, e um outro que se postava na entrada delas procurava atrasar a polícia, dando
chance dos contraventores fugirem. A polícia, por sua vez, também utilizava espiões,
infiltrando policiais disfarçados nas casas suspeitas, mas quem se aventurava a colocar
um negócio desse tipo vivia alerta para o perigo, e alguns desses policiais à paisana se
tornavam visados. 143
E aqui encontramos uma primeira razão para o insucesso da polícia. Os lucros
auferidos com o jogo eram suficientes para manter um aparato de segurança contra as
investidas da polícia e – mais importante do que isso – muita gente pertencente às
camadas média e alta da sociedade havia aderido ao ganho fácil do jogo, não apenas
como jogador mas também como sócio, às vezes, banqueiro. Um bicheiro de nome
Antunes, por exemplo, recebia com freqüência visitas do vice-governador de
141
Idem, Ofício do delegado Manoel Francisco do Rego Barros, ao Ilmº Sr. Dr. Antonio Antunes Ribas,
D. Chefe de Polícia de Pernambuco, 13 de março de 1890.
142
A Província, 09 e 24/ 02/1904.
143
A Província, 17 e 18/10/1901.
176
Pernambuco, além de manter boas relações com juízes e autoridades policiais. Um clube
elegante, de nome Democratas do Recife, situado à rua Barão de Vitória, havia sido
fechada por ordem do delegado do 1º Distrito da Capital por realizar jogos proibidos.
Entre a sua diretoria encontravam-se nomes importantes da sociedade recifense, como o
do seu presidente, José Manoel do Rego Barros, e de oficiais militares. 144
Por outro lado, se as autoridades policiais mais graduadas tinham interesse
verdadeiro em reprimir a jogatina, alguns subdelegados e inspetores de quarteirão
fechavam os olhos à contravenção em troca de favores – isto quando eles próprios não
tinham negócios diretos com o jogo. Devemos lembrar que os subdelegados vinham em
regra das famílias menos aquinhoadas pertencentes à classe dominante, e por isso
tentavam extrair do cargo que possuíam o máximo de proveito pessoal que podiam. O
nosso já conhecido genro do subdelegado das Graças que se passava por delegado, por
exemplo, era banqueiro de bicho, e um subdelegado de São José, era acusado de fechar
os olhos a uma casa de tavolagem em seu distrito. 145
No caso do jogo do bicho, especificamente, havia um outro motivo importante
para o fracasso da repressão. Ele era o mais acessível dos jogos, uma vez que qualquer
homem do povo poderia gastar alguns vinténs com ele, além do que as apostas corriam
à base de superstições, bem ao gosto popular, sem a necessidade de conhecer as
artimanhas de um jogo de baralho, por exemplo. Um sonho, um acontecimento fortuito
que lembrasse algum animal – eis um palpite formado. Os jogos praticados em casas de
tavolagem eram geralmente limitados aos homens e às prostitutas, enquanto o jogo do
bicho poderia ser feito por qualquer mulher do povo, sem restrições morais.
Tinha um ar inocente desde a sua criação. Foi inventado em 1892 pela empresa
que administrava o Jardim Zoológico do Rio de Janeiro, como uma das muitas
brincadeiras que serviria para atrair o público. Cada pessoa que visitasse o jardim
receberia pelo valor de 1$ réis, um bilhete com a figura e o nome de um dos 25 animais
existentes no zoológico. O nome do bicho sorteado do dia seria colocado às 7 horas da
manhã em um poste de cinco metros de altura, numa caixa fechada, a qual seria aberta
às 5 horas da tarde. O primeiro sorteio ocorreu em 2 de julho e saiu para a avestruz, que
levou o prêmio de 20$ réis. O total pago pelo Jardim Zoológico com o sorteio foi de
144
Idem, 23/03/1904 e Fundo SSP, 1ª Delegacia da Capital, Ofício de 22 de dezembro de 1915.
145
Idem, 01/10/1901 e 05/02/1905.
177
460$000 réis em prêmios. Depois disso, todos os dias o sorteio era anunciado pela
imprensa e a cada dia os valores eram mais altos, chegando a pagarem prêmios no valor
de 40:000$. A partir daí a inocência do jogo seria contestada pelo chefe de polícia do
Rio de Janeiro, que já em 23 de julho qualificou a diversão como ...um verdadeiro jogo
de azar, porque a perda e o ganho dependem exclusivamente do acaso e da sorte,
mandando proibir a sua continuação sob pena de ser processado o diretor do zoológico,
de acordo com os arts. 369 e 370 do Código Pena l. 146
Mas a inocência diante dos apostadores parecia ser corroborada pelas próprias
loterias de responsabilidade do governo, por onde o número do bicho sorteado era
conhecido, maneira pela qual os bicheiros encontraram para fugir à proibição, criando
quatro dezenas para cada animal. 147 Contradição flagrante: as loterias eram jogos que
dependiam exclusivamente da sorte, como o bicho, incorporado informalmente a ele.
Várias pessoas postavam-se ansiosas nas casas lotéricas esperando o resultado. 148 O fato
é que o jogo se espalhou por outras cidades do Brasil tão depressa quanto a proibição, e
ganhou a preferência popular. Os bicheiros, por essa época, procuravam facilitar a vida
de seus clientes, passando de porta em porta para recolher as apostas. O sucesso do jogo
era certo, cada um dos populares que habitualmente apostava tinha uma história bem
sucedida para contar, o que fazia esquecer as muitas decepções. 149
Um interessante diálogo entre algumas lavadeiras presenciado por um jornalista
numa estação de trem de subúrbio, nos dá o alcance do jogo do bicho na vida das
classes populares:
146
“O Jogo do Bicho” in www.uol.com.br/O Rio de Janeiro através dos jornais. O artigo 369 dispunha
sobre as casas de tavolagem, que seriam consideradas todas as aquelas onde pessoas se reuniam
habitualmente para jogar, e o artigo 370 considerava como jogo de azar todo àquele que dependesse
exclusivamente da sorte. Cf. Novo Código Penal... .
147
Simone S. F. Soares, O jogo do bicho, p.195.
148
A Lei nº 2321, de 1910, proibia a qualquer loteria ou rifa não autorizada a correr anexa à outra loteria
autorizada. Idem, p.199.
149
DP, 01/02/1905.
178
150
DP, 01/02/1905.
179
***
Se ganhar dinheiro sem trabalhar ou em trabalhos considerados ilícitos figurava
como um perigo que poderia gerar sérios danos à ordem pública, ganhar dinheiro em
uma atividade que oferecia como mercadoria o prazer físico era desprezado como um
atentado ao próprio núcleo constitutivo da sociedade – a família – e, portanto, a tudo
que a ela estava associada, como a propriedade e a herança:
151
APEJE, Fundo SSP, 1ª Delegacia da Capital, Relatório do delegado Enéas Pereira de Lucena ao Exmº
Dr. Chefe de Polícia de Pernambuco, 06 de janeiro de 1914.
152
Cf. João Batista Mazzieiro, “Sexualidade criminalizada: prostituição, lenocínio e outros delitos – São
Paulo, 1870/1920”, in Revista Brasileira de História, v.18, nº 35, São Paulo, 1998.
180
153
Cf. Raimundo Pereira A. Arrais, op. cit., p.86.
154
Jornal do Recife, 19/01/1914.
155
DP, 26/07/1881.
181
estratégia, solicitando ao juiz de Órfãos que tirasse da mãe meretriz a sua filha menor, ...
para evitar que mais tarde seja augmentado o número das infelizes com mais essa. 156
Controlar a prostituição do baixo meretrício, por sua vez, era controlar também os
homens das camadas populares, evitando que se acostumassem a uma vida desregrada,
onde mulheres, bebidas e desordens estavam freqüentemente associadas. Era a antítese
da disciplina doméstica, que em perfeita sintonia com o mundo do trabalho, instituía
horários para acordar, comer, fazer sexo e dormir. Por isso, a polícia procurava
restringir sempre que possível os horários de funcionamento dos hotéis populares que as
prostitutas freqüentavam, o que por lei deveria ser até às nove horas da noite. Foi o que
o subdelegado de Santo Antonio mandou que todos os hotéis de sua jurisdição
cumprissem, depois da reclamação reproduzida acima. 157
Da mesma forma, os horários em que faziam ponto nas ruas para atrair clientes
eram controlados, uma vez que elas eram tidas como as principais causadoras dos
conflitos que ocorriam entre populares e, inclusive, entre marinheiros e polícia. Depois
de uma dessas confusões aprontadas por marinheiros, o subdelegado de Santo Antônio
justificou o deslize destes alegando ao delegado Enéas de Lucena
156
DP, 17 e 30/10/1870.
157
DP, 27/07/1881.
158
APEJE Fundo SSP, 1ª Delegacia da Capital, Ofício do subdelegado de Santo Antonio para o Ilmº Sr.
Dr. Delegado do 1º Distrito, Enéas de Lucena, de 17 de abril de 1915.
159
Cf.APEJE, Fundo SSP, Ofícios de 18 de agosto de 1888, 28 de outubro de 1990 e 08 de março de
1913; A Província, 03/09/1901.
182
183
184
160
Idem, Ofício do delegado Enéas de Lucena, para o Ilmº Sr. Dr. Chefe de Polícia, 17 de abril de 1915.
161
As mulheres que exerciam alguma profissão eram só até certo ponto consideradas honestas. Como
eram geralmente viúvas ou solteiras desamparadas, eram vistas com desconfiança pela sociedade. Um
médico do Rio de Janeiro da década de 1920, por exemplo, chegou a fazer uma classificação dos
diferentes tipos de prostitutas, incluindo as floristas, modistas, costureiras, vendedoras de charutos etc., no
primeiro gênero das prostitutas “trabalhadoras”, da primeira classe das difíceis, da prostituição pública.
Cf. Margareth Rago, op.cit., p.88.
162
APEJE, Fundo SSP, 1ª Delegacia da Capital, Relatório do delegado Enéas Pereira de Lucena ao Exmº
Dr. Chefe de Polícia de Pernambuco, 06 de janeiro de 1914.
163
Novo Código Penal ...
185
assombrosa, por parte dessas vagabundas, que (...) exploram o trafico das
brancas, procurando iludir á lei e readquirir a existencia perdida com a
infância da profissão.
(...) Para suas glórias e facilidades nas transações com os ignóbeis
representantes do proxenitismo, verdadeiros rufiões – é duro de dizer mais é
a expressão sincera da verdade – sobe aqui a um número avultadíssimo (...). 164
(grifos no original)
Por outro lado, as prostitutas de luxo podiam circular com maior facilidade pelas
ruas elegantes do Recife, pois, ao contrário das meretrizes pobres, tinham condições de
enganar a moral burguesa com o dinheiro conseguido com os próprios “homens de
bem”. Isto era sentido pelo delegado Enéas como uma ameaça a que outras jovens
pudessem ser aliciadas para a profissão:
164
APEJE, Fundo SSP, 1ª Delegacia da Capital, Relatório do delegado Enéas Pereira de Lucena ao Exmº
Dr. Chefe de Polícia de Pernambuco, 06 de janeiro de 1914.
165
Idem.
166
APEJE, Fundo SSP, 1ª Delegacia da Capital, Relatório do delegado Enéas Pereira de Lucena ao Exmº
Dr. Chefe de Polícia de Pernambuco, 06 de janeiro de 1914.
186
167
Idem; Jornal do Recife, 24/01/1914.
168
Magali Engel, Meretrizes e doutores, pp.26-27.
187
como Helena Michel, por exemplo, não nos passa uma idéia de fragilidade, mas de uma
mulher que sabia manipular muito bem os homens. E esta não era uma condição restrita
às mulheres que trabalhavam em prostíbulos de luxo. As prostitutas pobres também
sabiam lidar com seus homens, e a liberdade sexual que tinham, demonstrada
publicamente pelas roupas que vestia m, a sensualidade que exibiam e o total
descompromisso com as convenções sociais, deveria ser o que mais incomodava aos
seus vizinhos, presos a uma moralidade rígida.
Havia, entretanto, o outro lado da moeda, representado pela exploração de que
podiam ser vítimas através dos rufiões e das cafetinas, e dos maltratos a que estavam
sujeitas. Note-se que em nenhum momento o delegado Enéas – e como ele, as outras
autoridades policiais – enxerga nos clientes dos bordéis cúmplices do crime de que as
meretrizes eram responsabilizadas. Na verdade, eram antes vistos como vítimas, que por
esse meio podiam ser contagiados por doenças venéreas e levarem o mal para o seio das
famílias, além de transformarem trabalhadores sadios e produtivos em homens doentes
e sem disposição para o trabalho – motivos pelos quais a prostituição seria assunto
tratado exaustivamente pelos médicos higienistas. Estes tratariam de caracterizá- las
como preguiçosas, avessas ao trabalho, mentirosas, burras e de apetite sexual anormal,
estabelecendo a partir de critérios pseudocientíficos, o que deveria ser considerado o
comportamento sadio e o comportamento doentio de uma mulher. 169
***
Todas as ilegalidades populares aqui analisadas tinham algo em comum – a
criminalização dava-se mais apoiado em conceitos morais e, portanto, subjetivos, de
como deveria se comportar os indivíduos para que se tornassem cidadãos laboriosos e
proveitosos a sociedade toda. Esses conceitos, criados pelas elites como uma forma de
disciplinar as camadas sociais de onde provinham os trabalhadores, penalizava as
classes populares associando a elas hábitos e atitudes que seriam próprios à condição de
pobreza em que viviam, como se o crime fosse coisa quase exclusiva de uma certa
classe social. 170
Neste sentido, as palavras de um chefe de polícia ao reclamar das constantes
críticas recebidas da imprensa, torna-se exemplar:
169
Margareth Rago, op.cit., pp.86-89.
170
Michel Foucault, op. cit., p.242.
188
A imprensa (...) sem indagar das causas sociais que contribuem, ou antes
que fazem a crise criminal de um momento, numa ingenuidade risível para
quem conhece o pendor ao crime de nossas classes populares, sem instrucção,
sem um nível moral mediocremente elevado, com a embriaguez, com a
miséria, com a prostituição, a imprensa contenta-se em passar diplomas a
crimes contra a vida e a propriedade dos cidadãos ! 171 (grifos meus).
A ação da polícia nas ruas, entretanto, não seria suficiente para atenuar o
incômodo e o medo gerado pelas classes populares entre as elites. De fato, a estrutura
carcerária será um dos dispositivos largamente utilizado para isolar e tentar redisciplinar
os indivíduos que não se enquadravam dentro dos parâmetros de controle perseguidos,
fosse em razão do crime, como em razão da miséria ou simplesmente da doença, como
veremos no capítulo seguinte.
171
APEJE, Relatório do Ilmº Sr. Dr. Ulysses Gerson Alves da Costa, ao Exmº Sr. Dr. José Osório de
Cerqueira, M.D. Secretario Geral do Estado de Pernambuco, 1910.
CAPÍTULO 4
1
Robert Storch, “O policiamento do cotidiano na cidade vitoriana”, in Revista Brasileira de História, v.5,
nº 8/9, pp.7-33; M. Foucault, Vigiar e punir, p.207.
190
Presídio ou penitenciária ?
Nos corredores e pátios da prisão deveria haver luz suficiente dia e noite... para
que não escape a vigilância dos guardas qualquer movimento dos presos. Esse sistema,
no entanto, sofreu limitações. Além da grade de ferro, havia uma outra porta de madeira
que se fechava por fora. Os presos de bom comportamento tinham permissão para
deixar esta última porta aberta das seis horas da manhã às seis da tarde, contrariando
2
José Mamede Alves Ferreira foi um dos maiores engenheiros de Pernambuco do século XIX, tendo
construído entre outras obras o Hospital Pedro II, o Cemitério Público de Santo Amaro, e o Ginásio
Pernambucano. Para maiores detalhes sobre a sua obra, vide Cleonir X. de A. Costa e Vera Lúcia C.
Acioli, José Mamede Alves Ferreira: sua vida, sua obra (1820-1865), Recife, Revista do Arquivo Público
do Estado Jordão Emerenciano, Secretaria de Turismo, Cultura e Esportes, 1985.
3
Idem, p.33.
4
A. Pereira Simões e Herculano Ramos, Uma visita á Casa de Detenção por um architecto e um
engenheiro civil, pp.7-8.
191
5
APEJE, Regulamento da Casa de Detenção da Cidade do Recife de 1885, arts. 21 e 22.
6
DP, 12/03/1868.
7
As tabelas 7 e 11 apresentam os motivos das prisões exatamente como apresentadas nos documentos
originais. Preferimos não agrupá-las em categorias mais precisas para que o leitor possa ter idéia dos
vários motivos de entrada de presos na Casa de Detenção.
8
APEJE, CDR, Ofícios de 3 de janeiro de 1876, v.13, p.423; de 5 de dezembro de 1876, v.13, p.484; de 4
de janeiro de 1883, v.27, p.9; de 1º de março de 1886, v.33, p.189; de 22 de julho de 1886, v.34, p.276 e
de 26 de julho de 1887, v.36, p.287.
192
nesta categoria estavam quase igualadas aos homens. Mas na contagem de um ano todo,
a sua presença era bem maior – 22,88% do total das entradas de prisioneiros
correcionais (tabela 7).
O número de estrangeiros tanto entre os detidos correcionalmente como entre os
sentenciados (tabela 8 e 9), era pequeno – 1,62% e 1,10%, respectivamente – mas ainda
assim revela o caráter de cidade portuária do Recife, recebendo sempre fluxos de
pessoas de outros países.
Entre os presos correcionais (tabela 7), 37,12% tinham cometido algum tipo de
desordem que não estava associado ao uso de álcool, embora a embriaguez tivesse lugar
entre os motivos mais freqüentes para a prisão. Muitos, como se pode perceber, eram
presos por praticarem distúrbio. A diferença entre eles e os desordeiros era que estes
últimos já eram conhecidos da polícia como tal e já tinham passagem na Casa de
Detenção. Logo em seguida aos desordeiros, vinham os “gatunos”. A maioria absoluta
dos sentenciados era de analfabetos (tabela 10), cerca de 73%, o que não deveria ser
diferente entre os correcionais. A lista era encabeçada por crimes violentos, como os
homicídios e os ferimentos (tabela 11).
Tabela 6
H M H M H M H M H M H M H M H M H M H M H M H M 317
149 3 2 0 8 0 50 0 0 0 1 0 77 1 3 0 3 1 4 3 0 0 8 4
Fonte: APEJE, Fundo Chefes de Polícia, Relatório apresentado ao presidente da Província de
Pernambuco pelo chefe de polícia Antonio Domingos Pinto, 1886. Obs: Nac=nacionais,
Est=estrangeiros, Esc=escravos, H=homem, M=mulher.
9
APEJE, Regulamento... de 1885, arts. 14, 24, 27, 28 e 29, e Regulamento... de 1855, art.14.
10
Idem, Regulamento... de 1885, arts. 37 e 38.
194
Uma outra marca que os diferenciava, desta vez economicamente, era o fato de
que apenas os presos pobres recebiam comida e vestimenta do Estado. Os escravos
presos para receberem açoites ou por “andar fugido”, receberiam roupa e comida da
mesma forma, mas seus senhores teriam que pagar essas despesas antes de retirá- los. 12
Caso fosse levado a efeito, essas marcações promoveriam uma classificação
precisa de quem era quem dentro do presídio e o lugar que cada um deveria ocupar no
seu funcionamento.
Marcados os lugares, a Casa deveria seguir uma rotina que desse condições ao
indivíduo de receber preceitos morais através da higiene, da religião, e do trabalho (que
analisaremos em separado, devido a sua importância). Todos os recursos de
adestramento social que não haviam dado certo no lado de fora de seus muros deveriam
ser empreendidos sistematicamente dentro deles: ao acordarem, os que não estivessem
doentes deveriam fazer a oração da manhã, lavar o rosto e as mãos, para que às 6 horas
estivessem preparados para a visita médica. O almoço era servido das 7 às 8 horas da
manhã. Depois disso, estaria incluída alguma atividade física, como os passeios ou
trabalhos nas oficinas ou nas próprias celas. De 1 às 2 horas da tarde, o jantar seria
servido, após o qual haveria mais trabalho para quem tivesse uma profissão; e das 5 às 6
horas da tarde, a ceia, que encerraria mais um dia dentro da penitenciária. 13
O médico, ao lado do confessor e talvez até mais do que ele, tinha uma grande
influência sobre os presos. Era ele quem aliviava as suas dores físicas, quem poderia
prescrever um passeio medicinal ou recomendar a soltura de algum deles que estivesse
na solitária. Uma palavra sua, e o seu saber científico destacaria pessoas anormais das
normais. Era, por isso, um aliado na transmissão e reforço da cadeia disciplinar. Na
primeira década da República aparecem os relatórios médicos que, tanto quanto os dos
administradores, serviriam como um indicador das condições morais em que se
11
Idem, CDR, referência 2.7/62, Ofício do chefe de polícia, Joaquim José de Oliveira Andrade, ao
administrador da Casa de Detenção, 4 de agosto de 1888, s/p.
12
Idem, Regulamentos... de 1855, arts. 56, 57, 58, 61, e de 1885, Cap.IV.
13
APEJE, Regulamento... de 1855, art.60 e de 1885, art. 39.
195
Tabela 7
Tabela 8
Categoria dos presos correcionais da Casa de
Detenção do Recife (1909)
(nacionalidade e sexo)
CATEGORIA TOTAL
HOMENS NACIONAIS 1960
MULHERES NACIONAIS 589
HOMENS ESTRANGEIROS 38
MULHERES ESTRANGEIRAS 4
TOTAL 2591
Fonte : Idem.
Tabela 9
Tabela 10
Tabela 11
Nº de presos sentenciados existentes na Casa de
Detenção no ano de 1909, de acordo com o crime
Além das orações matinais, a Ordem Terceira de São Francisco celebrava missas
para os presos ouvirem todos os domingos e dias santificados. Um altar móvel era
erguido na varanda do observatório central, de onde todos os presos poderiam ouvi- la
198
14
APEJE, Regulamento... de 1885, Cap.V; CDR, Ofício do administrador Leopoldo Borges Galvão
Uchôa, para o chefe de polícia, Antônio Pedro da Silva Marques, 1º de abril de 1899, v.75, p.9.
15
Idem, ibidem., arts. 17, 26, 34.
199
eram escolhidos em número de dois entre os guardas de 1ª classe de onde saíam mais
dois ajudantes para os mesmos. 16
Se algum preso violasse o preceito do silêncio ou outra disposição do
regulamento, deveria ser imediatamente advertido pelo guarda rondante ou seu ajudante.
Caso a advertência não surtisse efeito, depois de esgotado os meios brandos e
suasorios, havia uma série de penas disciplinares para manter os presos dentro das
normas: 1) solitária, com a porta de madeira aberta, por 3 a 8 dias; 2) restrição aos
passeios, ao direito de receber e escrever cartas e às visitas; 3) solitária com a porta de
madeira fechada, por 3 a 6 dias; 4) solitária em cela escura, por 6 a 12 dias,
acompanhada da suspensão de uma das refeições; 5) aplicação de ferros; e 6) restrição
de alimentação até 15 dias ou um mês, sem que recaíssem em dias contínuos. 17
A pena de restrição alimentar não poderia ser aplicada com menos da metade da
ração diária que recebiam, e as duas últimas penas só poderiam ser levadas a efeito por
ordem do chefe de polícia. Os castigos visavam principalmente conter atritos entre os
próprios detentos e manter a subordinação deles aos empregados da Casa. Se um preso
tentasse fugir levando outro consigo – ato tão odioso quanto o que lhe trouxe para
dentro da penitenciária, pois justamente estaria escapando às regras pela segunda vez –
teria como castigo o máximo da 4ª pena e sucessivamente a 3ª, a 2ª e a 1ª pena. Se
cometesse, para tanto, violência ou arrombamento, o chefe de polícia poderia aplicar as
duas últimas penalidades.
Todo esse aparato disciplinar contido nos regulamentos, que deveria fazer
funcionar devidamente a máquina benthaniana, classificando, repartindo, distribuindo e
reclassificando, para transformar criminosos em homens “dóceis e úteis”, no entanto,
caía por terra ao se deparar com as condições materiais do presídio e a indisciplina e
corrupção dos guardas do estabelecimento. Não é o fato de negar que a prisão é um
fracasso e que seu maior objetivo era de transformar infratores em delinqüentes, os
quais, soltos, ajudariam as elites a despolitizarem as “ilegalidades populares” 18 – fato
inegável, que nos discursos sobre os vadios e mendigos, e nas greves de operários das
primeiras décadas da República, podemos verificar. O caso aqui é reconhecer a
16
Idem, CDR, referência 2.7/62, Ofícios de 18 de maio de 1888, p.284, 24 de maio de 1888, p.295 e 4 de
setembro de 1895, p.6.
17
APEJE, Regulamento... de 1885, Cap. III.
18
Sobre este assunto cf. M. Foucault, op. cit., pp.178, 208 223-225, 234-251.
200
incapacidade dos agentes empregados nesta tarefa, de levarem-na a cabo com o mínimo
de prejuízo para o Estado e a sociedade. Os próprios administradores ressaltavam o
caráter pernicioso da instituição, colocando em questão se seria ela, afinal, um presídio
– com a função única de manter por algum tempo presos em processo –, ou uma
penitenciária correcional – que deveria pôr em prática todo um aparato disciplinar
adicional à pena imposta pela justiça. 19
Os dois regulamentos que funcionaram durante o período analisado, deixavam
claro a sua inclinação:
19
Diante da dificuldade dos contemporâneos em definir a Casa de Detenção como um presídio ou
penitenciária, optamos por utilizar os dois termos em relação a ela, como uma forma de reconhecer sua
ambigüidade.
20
APEJE, Regulamento... de 1885.
21
DP 20/10/1874.
201
22
DP, 20/10/1874.
23
DP, 12/03/1868 e 20/10/1874.
202
a atenção pelo número de criminosos que entraram na Detenção sem a nota de culpa,
coisa que revela a continuidade de uma prática que vinha desde a criação da Secretaria
de Polícia dos tempos do Império. Por outro lado, existiam administradores que não
cumpriam o regulamento de separar os indivíduos por classes, colocando numa mesma
cela sentenciados às galés perpétuas com detentos em processo ou presos correcionais.
Em duas celas com capacidade para cinco pessoas, havia vinte e oito mulheres, entre
processadas, sentenciadas, correcionais e enfermas, uma vez que não havia enfermaria
para mulheres. 24
A higiene, por sua vez, era precária, produzindo uma série de doenças entre a
população do presídio. Trancados em celas escuras, sem iluminação interna, quando as
portas de madeiras eram fechadas durante determinadas horas do dia, o calor tornava-se
insuportável, a ponto do médico recomendar deixá-las abertas, ainda que prejudicasse a
vigilância. À noite, quando se tinha que fechar as janelas, o incômodo vinha do mau
cheiro exalado pelas latrinas que havia em todas as celas. O esgoto era despejado no rio
através de um encaname nto que na maré-baixa ficava descoberto ao nível do corredor
de entrada do presídio, espalhando o mau cheiro por todo o edifício. A água era
insuficiente para as necessidades dos presos e só se tornava abundante no tempo das
chuvas, quando as águas inundavam o edifício. Os presos só tomavam banho uma vez
por semana, em tanques de cimento difíceis de fazer a limpeza, devido a sua superfície
rugosa, o que acarretava facilidade no contágio de doenças de pele. 25
Esta situação de insalubridade era agravada pela superlotação do presídio. A
estrutura do prédio era composta de três raios com um corredor no centro, e as celas –
todas numeradas – ficavam de um lado e do outro. Existiam 110 celas com capacidade
para alojar 370 detentos. De início, elas haviam sido projetadas para receber 1, 3 e 5
detentos, mas em 1869 elas foram descritas como havendo 60 celas para 2 prisioneiros e
50 para cinco. 26 Em pouco tempo esse número seria superado e elas teriam que suportar
mais presos do que o número para o qual haviam sido projetadas, chegando a ter
algumas delas até 12 pessoas, isso porque, além dos criminosos de Pernambuco, recebia
24
APEJE, CDR, Relatório do administrador Leopoldo Borges Galvão Uchôa, para o chefe de polícia
José Izidoro Martins Júnior, de 10 de janeiro de 1890, v.42, pp.27-32.
25
DP, 11/11/1874.
26
APEJE, CDR, Ofício do administrador da Casa de Detenção, Rufino Augusto de Almeida, para o chefe
de polícia, Francisco de Assis Oliveira Maciel, 27 de outubro de 1869, v.7, p.225.
203
27
Idem, ibidem, Ofícios do administrador ... Agostinho Bezerra da Silva Cavalcanti, para o chefe de
polícia Francisco Domingues Ribeiro Vianna, de 11 de março de 1889, pp.117-118 e de 21 de março de
1889, v.40, p.131. As despesas com os presos pobres vindos de Fernando de Noronha eram pagas pelo
governo imperial, que desde outubro de 1887 repassava aos cofres provinciais a quantia de 9:600$000, cf.
idem, ibidem, ofício de 8 de janeiro de 1889, v.40, pp.10-11.
28
DP, 13 e 17/06/1871.
29
APEJE, CDR, Ofício do administrador... Agostinho da Silva Cavalcanti, para o chefe de polícia
Francisco Domingues Ribeiro Viana, 2 de outubro de 1888, p.160.
204
causavam o maior número de baixas entre os presos e alertava que, embora a beribéri
não figurasse entre elas, aparecia de vez em quando em forma de epidemia, colocando
em risco a vida dos detentos. Sem o conhecimento de que o mal era causado por
carência de vitamina, era relacionada principalmente às aglomerações, com pouca luz
solar e ar puro, por isso o passeio diário com pelo menos meia hora era indicado como
um meio de evitar a doença, como também a ginástica sueca, para um melhoramento
geral na saúde dos prisioneiros. 30
Uma das providências que foi tomada contra a propagação de doenças entre a
população carcerária foi a vacinação, que se tornou uma prática freqüente durante os
primeiros anos do século XX. Em 1909, foi instalado um pequeno posto de desinfecção
para os presos correcionais, considerados como um dos grandes transmissores de
doenças contagiosas, devido a sua grande rotatividade de entrada e saída na Casa de
Detenção. Além disso, havia uma estufa para a roupa da enfermaria, que contaria ainda
com uma máquina de desinfetar a formol, caso a solicitação do administrador ao
inspetor de Higiene Pública fosse satisfeita. Em 1913, todos os presos que entravam no
presídio eram vacinados, e de três em três meses os presos sentenciados, nos quais as
vacinas não tinham produzido efeito, eram revacinados. Com esta medida, se chegou a
vacinar 3 mil detentos, sendo 1.241 de revacinados. Para se ter uma idéia do avanço que
se teve com este novo esquema, basta saber que em 1905 o número total de vacinações
ficou em 234. 31
No que dizia respeito à moralização dos detentos por meio da religião, Rufino de
Almeida revelava-se bem mais luterano que católico. Acreditava que do modo que era
dada a instrução religiosa pelos padres não se conseguia uma aproximação real com os
presos, que em sua maioria analfabetos, pouco ou nada entendiam de latim ou das
passagens obscuras contidas na Bíblia com que os sacerdotes católicos gostavam de
fazer suas pregações:
30
Idem, CDR, Relatório do movimento médico da Casa de Detenção pelo Dr. João Moraes Vieira da
Cunha, para o chefe de polícia, desembargador Antonio da Silva Guimarães, 25 de outubro de 1916,
pp.120-128, v.65
31
Idem, ibidem, Ofícios de 8 de janeiro de 1905, v.96, p.16-18; de 10 de maio de 1909, v.112, p.23; e de
14 de fevereiro de 1914, v.123, p.92.
205
O ensino religioso pelo methodo seguido pelos nossos sacerdotes não traz
beneficios. Consiste este apenas em praticas sobre os deveres do christão,
porém ditas no estylo dos sermões quaresmaes, e servindo-me da phrase de
um eminente escriptor portuguez, escutam-se como se escutam os repiques dos
sinos. 32
Era necessária uma instrução que tivesse como fim... corrigir, e instruir, e não
confundir e ostentar erudição. Ao lado da instrução religiosa, o combate ao
analfabetismo era visto por ele como uma das formas de se conseguir a regeneração do
preso, pois da instrução viria a educação, e com ela a transformação moral do
criminoso, trazendo benefício para toda a sociedade. 33
32
DP, 12/03/1868.
33
DP, 12/03/1868.
34
DP, 14 e 20/10/1874.
206
35
APEJE, CDR, Ofício do administrador da Casa de Detenção, Antonio Antunes de Souza, para o chefe
de polícia, 02 de janeiro de 1865, s.p.
36
Idem, Ofício do administrador..., Florêncio José Monteiro, para o chefe de polícia, Tristão de Alencar
Araripe, 09 de junho de 1861, p.166.
37
Idem, Ofício de 02 de agosto de 1864, v.4, p.284.
38
Idem, Ofício de João da Silva ao chefe de polícia [ilegível], 05 de julho de 1881, v.23, p.198.
207
Dois outros escravos recolhidos à Casa de Detenção como fugidos, foram postos à
disposição do Juiz Municipal de 2ª Vara, a fim de ser ventilada a questão de direito que
atribuem os ditos escravos, que diziam ser libertos. 39
A Casa de Detenção recebia também em custódia escravos que eram severamente
castigados pelos seus senhores e que lá permaneciam até as autoridades competentes
resolverem o seu destino. 40 Houve um caso de um escravo que tentou suicídio dentro do
presídio por não querer servir a pessoa a quem seu senhor lhe queria vender, com medo
de ser rigorosamente castigado, e que insistia em tentar novamente suicídio, caso fosse
vendido. O administrador da Casa de Detenção, diante disso, resolveu consultar o chefe
de polícia se deveria ou não entregá- lo ao seu dono para ser vendido 41 , o que sugere
uma preocupação com o bem-estar do escravo ou pelo menos da propriedade escrava,
que não serviria de nada, caso morresse.
Essa preocupação talvez se explique em razão de que a elite política estava
percebendo o problema da escravidão com outros olhos depois da abolição do tráfico
internacional de escravos. Estava havendo um maior cuidado em proteger a propriedade
escrava que estava se extinguindo, até mesmo dos próprios proprietários, que podiam
individualmente não ter uma visão mais ampla da questão, cuidando que os escravos
fossem mais bem cuidados e correcionados dentro do que se fosse considerado “justo”
em um sistema escravista, até mesmo aos olhos do escravo, de modo a não criar revoltas
desnecessárias, acarretando despesas maiores para o Estado e para os senhores com
escravos fugidos.
Os loucos
39
Idem, Ofício de 28 de maio de 1864, v.4, p.169.
40
Fundo SSP, Delegacia de Polícia do 1ºDistrito do Recife, 03 de agosto de 1871, s.p.
41
APEJE, CDR, Ofício do administrador da Casa de Detenção, Leopoldo Borges Galvão, para o chefe
de polícia, Joaquim da Costa Ribeiro, 19 de dezembro de 1881, v. 24, p.327.
208
de que não tinham como alimentar e vestir tantas pessoas, saindo prejudicados os presos
pobres que se viam com menos provisões. Muitas vezes, alguns indivíduos eram
recolhidos à Casa de Detenção como suspeitos de loucura e lá permaneciam em
observação até serem removidos para o Hospital de Alienados ou serem libertos pelo
atestado médico. De 3 de julho de 1889 a 18 de novembro de 1890, havia sido
remetidos para o hospício 245 loucos. 42 A tabela 7 revela que uma taxa razoável dos
presos correcio nais era formada de doentes mentais, cerca de 15,43% do total, mais do
que o dobro dos detidos por vagabundagem. Destes, a maioria era composta de
mulheres. Mas de acordo com a amostragem da tabela 5, o número de homens detidos
por alienação era superior ao das mulheres, o que poderia ocorrer até pela exposição
maior daquele grupo no espaço público.
Ainda nas primeiras décadas da República era costume prender pessoas por
“suspeita de loucura”. Todos eles tinham uma característica em comum – vinham das
classes pobres, como no caso do criado Francisco Manoel dos Santos, pardo, analfabeto,
com 15 anos de idade. Preso sob ordem do subdelegado de Santo Antônio, foi
considerado apto a ficar em liberdade pelo médico da Casa de Detenção que o
considerou gozar de integridade mental.43
Os responsáveis pelo bom andamento da instituição consideravam que ali não era
o local adequado para isolar aquelas pessoas, principalmente os loucos que, ao não se
enquadrarem dentro de um sistema de punição legal, quebravam a rotina do
estabelecimento e o seu bom funcionamento. Os gritos eram insuportáveis para os que
tinham que conviver com eles, e de vez em quando um ou outro tentava o suicídio. Um
indivíduo de nome Adelino José Vaz Salgado, vulgo Simão, por exemplo, tentou se
matar ... depois de apresentar sinais de loucura, servindo-se de um pedaço de vidro
tirado da janela. Uma mulher da mesma forma tentou o suicídio, ateando fogo às suas
roupas. O administrador dizia serem furiosos e quase ser impossível mantê- los numa
mesma cela. 44 Tinha-se, portanto, que resguardar o regime carcerário, baseado na
disciplina, da desordem causada pela insanidade mental:
42
APEJE, CDR, Ofício de 18 de novembro de 1890.
43
Idem, ibidem, Ofício do médico da Casa de Detenção, Dr. Vieira da Cunha, 2 de janeiro de 1911,
v.117, p.6.
44
APEJE, CDR, Ofícios de 30 de janeiro de 1888, v.38, p.57; de 20 de setembro de 1888, referência
2.7/62; e de 23 de setembro de 1898, v.72, p.268.
209
Por isso, era recomendada uma reclassificação dos detentos, um local que pudesse
separar os que ainda poderiam voltar ao convívio social, daqueles que seriam
definitivamente dados como irrecuperáveis pela ciência, desobrigando a sociedade de
uma possível convivência com esse tipo de desvio:
...o governo de mãos dadas com a Santa Casa, deviam agir, no sentido de
ser creado um pavilhão de observação e manutenção de loucos criminosos e
criminosas loucas. Assim sendo ao menor sintoma de alienação mental
apresentados pelos detentos, podia-se imediatamente requisitar sua remoção
para um lugar convenientemente, ficando assim esta penitenciária
45
Idem, ibidem, Relatório médico... .
46
Michel Foucault, Microfísica do poder, pp.117-118 e História da loucura, p.78.
47
APEJE, CDR, Relatório médico... .
210
52
DP, 20/10/1874.
53
APEJE, CDR, Relatório do administrador Antonio Américo Carneiro Pereira, para o chefe de polícia,
desembargador Antonio da Silva Guimarães, 25 de outubro de 1916, v.65.
54
Sobre as discussões no início da República a respeito do problema do menor vide Fernando Torres
Londoño, “A origem do conceito menor”, in Mary Del Priory (org), História da criança no Brasil,
pp.129-146.
55
Em sua dissertação de Mestrado sobre colônias correcionais para menores em Recife, Mozart Menezes
diz não ter encontrado evidências sobre a existência dessa escola, nem de ter funcionado oficinas nela. Os
documentos que pesquisamos, porém, não deixam dúvidas quanto a sua existência. Já em relação às
oficinas, só temos informações delas através do Relatório do Chefe de Polícia de 1910; não encontramos
nenhuma menção delas nos ofícios dos administradores. Entretanto, não seria improvável existirem se
levarmos em conta que desde o Império houve tentativas de implantação dessas oficinas de trabalho como
um meio de recuperação do prisioneiro e de diminuir os gastos públicos com eles, como veremos adiante.
Cf Mozart Vergetti Menezes, Prevenir, diciplinar e corrigir, p.89.
212
56
APEJE, Relatórios dos Secretários Gerais do Estado de Pernambuco, 1908, p.35; Relatórios dos
Chefes Polícia, de 20 de fevereiro de 1910; CDR, Ofícios de 26 de março de 1910, v.114, p.187 e de 27
de abril de 1911, v.117, p.254.
57
Estes dados foram retirados de um relatório do secretário Geral de 1912, onde constava o número para
1909, e do chefe de polícia. O primeiro colocava 82 menores na Escola Correcional no ano de 1909, e o
segundo trazia o número de 86 alunos. Não sabemos se houve aumento de presos menores no período ou
se houve erro gráfico. Cf. APEJE, Relatórios dos Secretários Gerais..., 1912, pp.19, 24 e 32; e Relatórios
dos Chefes de Polícia, de 20 de fevereiro de 1910.
58
Idem, CDR, Ofícios de 11 de março de 1911, v.117, p.143.
59
Idem, 1ª Delegacia de Polícia, Ofício de 6 de outubro de 1890, s/p.
60
APEJE, Relatório do Chefe de Polícia, 1910 e CDR, Ofício de 18 de março de 1911, v.117, p.165.
213
projeto. Na verdade, isso era fruto da indecisão do que deveria ser a Casa de Detenção,
se apenas mais um depósito de criminosos 61 ou uma casa correcional. Uma tentativa
anterior à Escola Correcional para menores havia sido posta em prática no Império,
beneficiando todos os detentos – com exceção óbvia dos escravos. Desde 1870, pelo
menos, existia um professor que ensinava a instrução primária aos presidiários, mas as
aulas não eram obrigatórias e poucos presos se sentiam motivados a assisti- las, uma vez
que os ofícios que poderiam porventura se ocupar quando saíssem dali não exigiam a
capacidade de saber ler e escrever, e “fazer contas”, muitos analfabetos até hoje
aprendem com o dia-a-dia. Em 1886, havia matriculados na aula apenas 20 detentos.
Por outro lado, os que tinham interesse em assistir sofriam com a falta de material
escolar e com as constantes idas para responder ao júri no interior da Província. O
resultado era o baixo rendimento escolar. Um projeto da Câmara dos Deputados
pretendia regularizar a escola primária para os detentos, o que provavelmente tornaria
obrigatória a sua freqüência, mas terminou não passando, por acharem suficiente o que
já existia. 62
Não sabemos quanto tempo durou a experiência da Escola Correcional, mas em
1917 seria criada uma outra que ga nharia existência formal com a sua inclusão no novo
Regulamento da Casa de Detenção, mudando o nome para Instituto Disciplinar, 63
indicando uma preocupação maior das autoridades com a prevenção da criminalidade
entre os jovens. O Instituto funcionava em um prédio construído ao lado da
penitenciária, administrado pelo farmacêutico Francisco de Assis Perdigão Nogueira.
Era provido de biblioteca, dormitório, refeitório, e possuía luz elétrica, saneamento e
água encanada. Recebia órfãos, crianças abandonadas e de pais sem condições de
mantê- las. Nela os alunos recebiam instrução primária, e aulas de desenho, esgrima,
ginástica sueca e música, além de ofícios como marcenaria, sapataria, alfaiataria,
encadernação e colchoaria. Estas oficinas localizavam-se no lado leste da Casa de
61
Essa expressão foi usada por um senador para descrever a situação do presídio de Fernando de
Noronha, que não promovia práticas correcionais entre os presos, podendo, por extensão ser utilizada para
a Casa de Detenção, a quem sempre estava entre uma coisa e outra. Cf., AS, 46ª Sessão Ordinária em 29
de maio de 1899, p.65.
62
APEJE, AAP, Sessão Ordinária em 17 de março de 1870, 1ª Discussão do Projeto nº 99 de 1868,
estabelecendo diversas providencias em relação á casa de detenção desta cidade, p.55; Relatórios dos
Chefes de Polícia, 1886, p.19; DP, 20/10/1874.
63
Para maiores detalhes sobre o funcionamento do Instituo Disciplinar, vide Mozart Menezes, op. cit.,
pp.93-106.
214
Detenção, servindo tanto para os detentos quanto para os menores, muitos dos quais
aprendiam o ofício com eles. Desta forma, o contato entre os dois grupos que sempre foi
tido como prejudicial à recuperação dessas crianças e adolescentes continuava a
existir. 64
Os alunos do Instituto Disciplinar deveriam depois ser aproveitados por
agricultores e industriais em acordo com o chefe de polícia, recebendo uma
remuneração que era depositada na Caixa Econômica como um pecúlio para o futuro. O
mesmo ocorria com o dinheiro ganho nas oficinas, que na época contava 1:435$750
réis. As salas de aulas do Instituto tinham capacidade para cem alunos, mas estavam
matriculados 200 menores, e vinte e dois estavam esperando na fila. 65
64
Idem e APEJE, Relatórios dos Secretários Gerais, 1919, p.22.
65
APEJE, Relatórios dos Secretários Gerais, 1919, p.22.
66
DP, 11/11/1874, grifos meus. Segundo Maude Perruci, na época a que nos referimos ...não havia
propriamente o sentido de recuperar o preso para a sociedade, quando muito se cuidava da sua
regeneração sob o aspecto moral da penitência e arrependimento. Essa regeneração, que se limitava ao
indivíduo, isoladamente considerado, não tinha nenhuma preocupação com o aspecto da reintegração do
indivíduo à sociedade, que constitui uma das etapas mais evoluídas da pena privativa. O artigo publicado
pelo Diário de Pernambuco que reproduzimos aqui, retirado do Jornal do Comercio do Rio de Janeiro,
em referencia ao trabalho escrito por Rufino de Almeida, mostra claramente que já circulava entre as
elites ilustradas da época a necessidade de transformar a pena em um meio de resgatar o indivíduo
criminoso para o convívio em sociedade, e que esta mesma sociedade tinha o dever de evitar que ele não
215
Se é verdade que o homem é perfectível a pena deve ter por fim, não só
punil-o, mas principalmente corrigil-o. Prendem-se intimamente a este duplo
resultado a garantia e a segurança de toda a sociedade. 67
retornasse ao mundo do crime. Cf. M. Perruci, apud Mozart Menezes, op. cit. , pp. 92-93, grifos da
autora.
67
DP, 20/10/1874.
68
Idem, AS, 46ª Sessão Ordinária em 29 de maio de 1899, p.64.
69
APEJE, CDR, Ofício do administrador..., Rufino Augusto de Almeida, para o chefe de polícia, Abílio
José Tavares da Silva, de 20 de janeiro de 1864, v.4, p.40.
216
70
Idem, Regulamento para a Casa de Detenção da Cidade do Recife de 1855, arts. 13 e 16; CDR, Ofício
do administrador... Rufino A. d’Almeida, para o chefe de polícia, Luiz d’Albuquerque Martins Pereira, 2
de junho de 1886,v.6, p.160; CDR, Ofício do administrador... Leopoldo Borges Galvão Uchôa, para o
chefe de polícia, Antonio Domingos Pinto, 21 de agosto de 1886, v.34, p.421.
71
Sobre este assunto vide Clarissa Nunes Maia, “Quando a liberdade não é um bem que pertence a todos:
as condições de vida dos escravos na Casa de Detenção da Cidade do Recife”, Recife, Clio-Revista de
Pesquisa Histórica , Série História do Nordeste, v.1, nº17, pp.19-27, UFPE, 1998. Este artigo foi
publicado baseado em pesquisas preliminares sobre a Casa de Detenção, feitas ainda para o meu
mestrado; portanto, embora sirva como uma boa indicação sobre a vida dos escravos no presídio, em
alguns pontos, como na questão de salubridade, a pesquisa mais avançada demonstrou o contrário do que
acreditávamos anteriormente.
72
APEJE, CDR, Ofício do administrador..., Rufino Augusto de Almeida, para o chefe de polícia Eduardo
Pindahíba de Mattos, de 10 de agosto de 1865, v.5, p.389.
217
preso fazia pedras para as obras de um cais contratadas pelo Barão do Livramento, o
qual pagava o mestre por esse serviço. Em contrapartida, o mestre deveria ensinar a
outros presos o ofício de canteiro de obras. As outras oficinas, que ficavam em telheiros
nos raios sul e leste, serviam inicialmente apenas aos reparos do presídio, mas Rufino
de Almeida pretendia torná-las lucrativas oferecendo os serviços dos prisioneiros à
Repartição de Obras Públicas, o que parece ter conseguido ao sugerir, pouco tempo
depois, que estes presos também estavam ganhando salário. 73 Além dessas, ele havia
encomendado dois pequenos teares para os presos tecerem suas próprias roupas, do
mesmo tipo que se usava nas prisões da Bélgica, considerando a importância dessa
atividade numa província algodoeiro. 74
Mas a primeira oficina a ser aberta e a mais concorrida pelos presos era a de
sapateiro, por ser a de mais fácil aprendizado, a que maior remuneração dava e a que
mais se adaptava inicialmente ao espaço dentro das celas. Como atividade
complementar a essa oficina, foi logo aberta uma outra de serramento de sola e couros,
e um pequeno curtume de peles que utilizava produtos inodoros. Estas oficinas
fabricavam sapatos de boa qualidade e a preços bastante reduzidos, os quais eram
vendidos às lojas e a atravessadores que as revendiam ao Exército. No caso do Exército,
o administrador sentindo que poderia fazer um melhor negócio fornecendo diretamente
os sapatos, resolveu concorrer nas arrematações e conseguiu assegurar metade dos
pedidos para o Exército estacionado em Pernambuco. Alguns meses depois disso, ele
conseguiu que o presidente da Província desse preferência aos calçados fabricados pelos
presos para o fornecimento de 1.720 pares de coturnos destinados ao Arsenal de Guerra,
ao preço de 2$600 réis cada um, o que foi feito em 40 dias. Com isso, o governo
economizou $900 réis por cada par de coturnos, chegando a uma economia de 5:700$. 75
A produção de calçados em seis meses (de junho a dezembro de 1863) foi da
ordem de 6 mil pares, sendo que 4 mil foram destinados ao Exército e o restante para os
menores do Arsenal de Guerra e para as lojas, além de borzeguins para homens e
acabamentos feitos para crianças e senhoras. 76
73
Idem, ibidem, e Ofício do administrador..., para o chefe de polícia, Abílio José Tavares, 20 de janeiro
de 1864, v.4, p.40.
74
Idem, ibidem.
75
APEJE, CDR, Ofício do administrador..., para o chefe de polícia, Abílio José Tavares da Silva, 20 de
janeiro de 1864, v.4, p.40.
76
Idem, ibidem.
218
77
Idem, ibidem, Ofício para o chefe de polícia, Eduardo Pindahíba de Mattos, 10 de agosto de 1865, v.5,
p.389.
78
Idem, ibidem, Ofício do administrador..., para o chefe de polícia, Francisco de Farias Lemos, 7 de
maio de 1869, p. 67, v.7; Cf. Michel Foucault, op. cit., pp.215-216.
219
79
APEJE, CDR, Ofício do administrador..., para o chefe de polícia, Francisco de Farias Lemos, 7 de
maio de 1869, v.7, p.67; DP, 12/03/1868.
80
Idem, ibidem, Ofício do administrador... Rufino Augusto d’Almeida, para o chefe de polícia, Francisco
d’Assis Oliveira Maciel, v.07, p.104.
81
Idem, ibidem, Ofício do administrador... Leopoldo Borges Galvão Uchôa, para o chefe de polícia,
Joaquim da Costa Ribeiro, 30 de janeiro de 1883, v.27, pp.88-93.
220
... nesta casa os presos vegetam na quasi absoluta ociosidade com prejuizo
do corpo e do espirito, e em desproveito da sociedade. O único resultado que
se obtem é o embrutecimento, o desenvolvimento das más paixões, o
enfraquecimento do espirito, a morte do corpo.82
82
DP, 20/10/1874.
83
APEJE, AAP, Sessão Ordinária em 17 de março de 1870, 1ª Discussão do projeto nº 99 de 1868,
estabelecendo differentes providencias em relação á casa de detenção desta cidade, p.55.
84
Idem, CDR, Relatório do administrador...Leopoldo Borges Galvão Uchôa, para o chefe de polícia,
José Izidoro Martins Júnior, 10 de janeiro de 1890, v.42, pp.27-32.
221
sido recolhidas a título de imposto. Isso levou a que muitos detentos desistissem dessa
oficina. 85
Com a mudança de administrador, eles se organizaram e fizeram uma
representação contra os abusos praticados contra os seus trabalhos nas oficinas, sendo
suspensos todos os impostos então cobrados até aquele momento. O resultado foi a
volta dos presos ao trabalho com ... tanto afã, que no período de trez meses foram
fabricados nas oficinas 67 duzias de cadeiras, vinte marquezões, muitas mesas e
tamboretes, subindo a sessenta mil o número de vassouras que saíram para o mercado.
Havia ainda a suspeita de que certos serviços eram deixados de fazer dentro do presídio
por um custo reduzido para serem superfaturados, como no caso das roupas destinadas
aos detentos, que por 68 calças e blusas mandadas fazer fora foi cobrado 1:500 réis,
quando se fossem feitas pelos alfaiates detentos, sairia pelo preço de 320 réis. 86
O limite entre a prática correcional através do trabalho dos operários detentos e a
exploração deste trabalho foi desde o início do funcionamento das oficinas algo difícil
de ser separado, como revela o caso das oficinas montadas por Rufino de Almeida. Com
tanto dinheiro envolvido nessas oficinas e tanto empenho do administrador da Casa de
Detenção, a ponto de colocar do seu próprio dinheiro nelas, acabou levando a suspeitas
de que Rufino de Almeida estivesse tendo lucros pessoais com o trabalho dos detentos.
Já um senhor de escravo recolhido ao presídio para ser açoitado, havia reclamado de ter
encontrado o seu escravo vendendo vassouras na rua para o administrador, o que este
negou alegando que era costume antigo os escravos venderem objetos feitos por eles na
prisão quando saiam para buscar alimentos para o estabelecimento. 87 Mas na verdade as
acusações iam mais longe: ele era suspeito de estar obrigando os presos ao trabalho.
Esta acusação foi feita pelo deputado Maximiano Duarte na Assembléia Provincial,
alegando que as oficinas não tinham vida legal e que, portanto, estariam predispostas a
abusos, inclusive o do administrador negociar com os presos 88 , o que no caso atenuaria
as desconfianças dele estar forçando os detentos ao trabalho. Seria mais provável que
estivesse explorando mão-de-obra barata em proveito próprio, embora fosse verdade
que tinham de prestar serviços gratuitos dentro do próprio presídio. Aos presos que não
85
Idem, ibidem.
86
Idem, ibidem.
87
Idem, ibidem, Ofício do administrador... ao chefe de polícia, Luiz d’Albuquerque Martins Pereira, 02
de junho de 1866, v.6, p.160.
88
Idem, AAP, Pronunciamento do Sr. Maximiano Duarte, 1868.
222
fossem condenados às galés, isso parecia ser uma condição imposta caso desejassem
trabalhar nas oficinas. O próprio Rufino era um que insistia muito na regulamentação
dessas oficinas com a reforma do Regulamento da Casa de Detenção que já estava
prevista por lei provincial desde 1861, o que não havia ocorrido ainda até 1869; e na
conclusão do 3º raio, onde ficariam os salões destinados às oficinas de trabalho.
Rufino de Almeida, ao que parece, não era tido como uma pessoa politicamente
confiável, levando um outro deputado a afirmar que o administrador não merecia a
confiança do governo: ...é liberal, é conservador, é republicano e se houver um outro
partido elle é também.89 Seja como for, nada foi provado contra Rufino Augusto de
Almeida, que permaneceu como administrador da Casa de Detenção de 1862 até pelo
menos 1874, último ano que encontramos referência dele dirigir o presídio.
Sem uma regulamentação que definisse se os presos seriam ou não obrigados ao
trabalho, se este trabalho faria parte de sua pena ou não, como ele seria organizado, se
teriam direito a uma remuneração e qual o critério que se utilizaria para este fim, ficava
bem mais fácil a que houvesse os abusos. Não nos parece, entretanto, que o trabalho dos
detentos não fosse devidamente remunerado apenas por ser visto como um elemento a
mais no cumprimento de sua pena. 90 Realmente, este era um fator que pesava. Mas ao
lado desse, temos toda uma experiência por parte das elites de exploração de trabalho
forçado e de manter o trabalhador livre a salários de subsistência. Não seria justamente
com os presidiários, juridicamente expropriados de seus direitos, que esta exploração
seria mais branda.
Por todo o período estudado, ficou patente a utilização da mão-de-obra presidiária
na confecção de utensílios para o Estado e nas obras públicas: móveis para as estações
da Guarda Cívicas, estantes para a Biblioteca Pública, carteiras escolares para o Ginásio
Pernambucano, a Escola Normal e demais escolas públicas do Estado; aterros, reparos
no próprio presídio, botinas para o Exército e para a polícia militar, carroças para o
Esquadrão de Cavalaria, padiolas para os postos policiais etc. O dinheiro envolvido
nessas oficinas era muitas vezes avultado, tanto no que se refere à compra da matéria
89
APEJE, AAP, Discussão dos Projetos de nº 85 e 99, 1870, pp.194-195.
90
Cf. Mozart Menezes, op. cit., p.93.
223
prima, quanto na economia aos cofres públicos, restando aos presos um salário
pequeno.91
Para algumas autoridades, a diminuição dos gastos públicos parecia ser o único
objetivo real que se poderia extrair do trabalho dos prisioneiros, pois ... semelhante
medida sem concorrer para a repressão do erro nessa classe de delinquentes [presos
correcionais] trouxe entretanto a vantagem de auxiliar a administração na alimentação
dos correcionais. 92
Todo o discurso em relação ao trabalho dos presos na Casa de Detenção do Recife
era baseado nos métodos disciplinares europeus e isto se torna contraditório ao ser
aplicado numa sociedade escravista. Ao mesmo tempo, o trabalho era visto como
castigo – aos vadios, mendigos e criminosos perigosos, como os condenados às galés –,
e como prêmio, àqueles presos de bom comportamento e que antes de cometerem um
delito já possuíam uma profissão, não se enquadrando nos dois primeiros casos. Servia
como disciplinador, ao manter os presos ocupados e livres de pensamentos criminosos;
e correcionador, ao habilitá- los a voltarem ao convívio da sociedade, como homens
produtivos. Muitas vezes, o administrador se referia em seus ofícios aos presos como
operários ou trabalhadores, numa atitude que revelava um certo respeito. Mas na
prática esse respeito não existia na sociedade escravista brasileira, que desprezava o
trabalho manual e não permitia o desenvolvimento desse tipo de trabalhador. Ao afirmar
em um de seus relatórios que o trabalho forçado (dos presos) não poderia ser comparado
ao trabalho livre, 93 Rufino de Almeida estava sem querer condenando um sistema social
que relegava o homem pobre livre a um segundo plano no mercado de trabalho,
retirando do trabalho a sua promessa de reabilitação, uma vez que ao voltar à sociedade,
retornaria a condições de desemprego, miséria e humilhações que impunha o regime
escravista, continuando os seus efeitos a serem sentidos por muito tempo ainda.
91
Idem, CDR, Ofícios de 10 de agosto de 1910, p.227, v.115; de 9 de junho de 1897, v.67, p.219; de 25
de janeiro de 1911, p.56, v. 117; de 10 de fevereiro de 1911, v.117, p.76; de 10 de março de 1911, v.117,
p.143; e de 30 de agosto de 1911, v. 188, p.220.
92
Idem, Relatório do administrador Antonio Américo Carneiro Pereira, para o chefe de polícia,
desembargador Antonio da Silva Guimarães, em 26 de outubro de 1916, pp.102-107.
93
Idem, CDR, Ofício do administrador...Rufino Augusto de Almeida, para o chefe de polícia, Abílio José
Tavares da Silva, 20 de janeiro de 1864, v.4, p.40.
224
Diante dos problemas que traziam a baixo todo o aparato técnico que deveria ser
aplicado ao detento na execução de sua pena e em proveito de sua recuperação, o mais
sério era o que dizia respeito à disciplina dos próprios funcionários da Casa de
Detenção. Ao mesmo tempo em que eram freqüentes os elogios dos administradores ao
comportamento geral dos detentos95 – como o descrito logo acima por Rufino de
Almeida –, as reclamações quanto ao decoro em serviço dos guardas do estabelecimento
e dos soldados que faziam a vigilância externa eram constantes. Em se tratando desses
últimos, os problemas que os administradores enfrentavam eram as mesmas das
autoridades policiais civis. Embora devessem obediência e respeito ao administrador,
havia uma clara rejeição a receberem ordens diretamente dele. Pelo regulamento da
formação da guarda, deveria haver um oficial comandando-a, o que normalmente não
acontecia, acarretando numa maior dificuldade de comunicação entre as duas partes. A
guarda ficava sob o comando de um inferior, que por sua proximidade social com os
soldados, nem sempre conseguia ou se preocupava em coibir os abusos praticados pelos
seus comandados, que em pleno serviço aproveitavam para jogar e beber. 96 Um dos
muitos casos relatados pelos administradores da Casa de Detenção retrata bem o
comportamento dessas praças:
94
DP, 12/03/1868.
95
Cf. APEJE, Relatórios dos Chefes de Polícia, 1886, p.17 e 1910; CDR, Relatório do administrador
Antonio Américo Carneiro Pereira, para o chefe de polícia, desembargador Antonio da Silva Guimarães,
25 de outubro de 1916, v.65.
96
APEJE, CDR, Ofício de 18 de maio de 1888, p.284, e de 25 de maio de 1888, p.297, v.38.
225
Comunico a V.Sª que ontem pouco depois de seis horas da tarde uma criada
de minha casa dizendo a um guarda desse estabelecimento que trancasse uma
torneira d’água, um soldado, que se achava de sentinela julgando que faltava
consigo, dirigiu obscenidades, havendo eu próprio observado isto pelo que
entendi-me com o Comandante da Guarda, fazendo-lhe sentir tão reprovado
procedimento daquele praça. Comandava a guarda o furriel do 14 Batalhão
Luiz de França Batista, inferior este que ha muito poucos dias era simples
praça não ligou a menor importancia ao que lhe comuniquei, servindo ao
contrario de galhofa para os soldados que parecia se divertir com o
procedimento que tivera o seu companheiro.
Seguio-se então uma scena infernal, as praças levarão toda a noite em
pagodeira, e, devo dizer que passei uma noite muito apreensivo sobre a
vigilancia e segurança de perto de 500 criminosos aqui existentes. Fatos desta
ordem serão repetidos enquanto não se compenetrarem de que um
Estabelecimento dessa natureza não pode deixar de sua guarda ser
comandada por um official porque a presença deste é suficiente para imprimir
o respeito, manter a ordem e subordinação. Valerá dizer que tenho esse furriel
por mais de uma vez com as praças sob seu comando a conversar em
intimidade como se fossem elas da graduação dele, e nestas condições como
espera-se moralidade, ordem e disciplina em um Comandante que não se faz
respeitar ? 97
97
APEJE, CDR, Ofício do administrador... Agostinho Bezerra da Silva Cavalcanti, para o chefe de
polícia Dario Cavalcante Rego Albuquerque, 4 de maio de 1889, v.40 p.204.
98
Idem, ibidem, Ofício de 18 de maio de 1888, p.284, e de 24 de maio de 1888, v.38, p.295.
226
99
Idem, ibidem, Ofício de 29 de janeiro de 1888, v.38, pp.55-56.
100
Idem, ibidem, Ofício do administrador... José Francisco Paes Barreto, para o chefe de polícia, José
da Cunha Liberato de Mattos, 5 de janeiro de 1895, v.59, p.8.
227
101
APEJE, CDR, Ofício do administrador... Leopoldo Borges Galvão Uchôa, para o questor de polícia,
Benjamim Aristides Ferreira Bandeira, 27 de junho de 1892, p.207 e Ofício do guarda de 2ª classe da
Casa de Detenção, Manoel Paulo de Almeida ao Ilustre Cidadão Dr. Questor de Polícia do Estado de
Pernambuco, 27 de junho de 1892, v.51, p.208.
102
Idem, Ofício de 3 de maio de 1909, v.112, p.5; grifos meus.
228
103
Idem, ibidem, Ofício do administrador... Joaquim do Rego Cavalcanti, para o chefe de polícia Ulysses
Gerson Alves da Costa, 24 de novembro de 1909, v.113, pp.142-143.
104
APEJE, CDR, Portaria expedida pelo administrador José Francisco Paes Barreto, 25 de fevereiro de
1893, v.55, p.198.
105
Idem, ibidem, Ofício de 1º de maio de 1890, v.43, pp.136.
106
Idem, ibidem, Ofício de 2 de janeiro de 1893, v.53, pp.3 e 4.
229
estes se valiam de sua posição para perseguir os detentos. Nesta hora havia uma
inversão dos papéis, com os presos reclamando da falta de cumprimento das normas
internas. Em um ofício subscrito pelos Infelizes da Casa de Detenção, os detentos
faziam uma representação diretamente ao questor sobre o mau comportamento de um
guarda de 2ª classe, que vivia embriagado e cometendo toda sorte de perseguição contra
os presos. Este guarda era retratado como relapso, traficante de bebidas alcoólicas e
chantagista. O preso que não lhe pagasse de dez a vinte mil réis era tratado de ser
encaminhado por ele para a seção do júri onde servia como jurado, e conseguia sua
condenação à pena máxima. Ironicamente, os presos que o denunciavam não pediam
sua demissão, ao contrário, indicavam um meio onde a disciplina também era vista
como uma forma de corrigir:
Nós não pedimos a sua demissão, mas podeis substituí-lo por um outro de
melhor comportamento como os outros quatro últimos nomeados por V.Ex. e
passar este para a policia ou Corpo Regional como soldado aconselhado por
V.Ex. para não embriagar-se pode ser que porte-se bem e seja um bom
soldado, lugar este único digno de si. 107
107
APEJE, CDR, Ofício de 21 de janeiro de 1893, p.68, v.53. Cf. tb. o ofício de 1º de maio de 1890, v.43,
p.136.
108
Idem, ibidem, Ofício de 30 de setembro de 1915, v.126, p.253.
230
109
Idem, ibidem, Relatório do administrador...Leopoldo Borges Galvão Uchôa, para o chefe de polícia,
José Izidoro Martins Jr., 10 de janeiro de 1890, v.42, pp.27-32.
110
Idem, ibidem, Ofício de 23 de novembro de 1907, v.107, pp.83-84.
111
Os detentos que tinham um ofício solicitavam freqüentemente para saírem do presídio escoltados por
um guarda, a fim de comprarem matéria prima para suas oficinas. Essas permissões estavam sendo
negadas porque muitos aproveitavam para ir às tavernas embriagar-se. Cf. APEJE, CDR, Ofício de 29 de
agosto de 1888, v.39, p.104.
112
Michel Foucault, op. cit., pp.224-225.
113
DP, 20/10/1874.
231
114
Michel Foucault, op. cit., pp.244-246.
CONCLUSÃO:
1
Jornal do Recife , 20/12/1890.
2
Cf. Sidney Chalhoub, op. cit., pp.19-20.
233
3
Cf. Oscar Mello, op. cit., Introdução.
235
um crescente desinteresse por esses cargos, que já não ofereceriam tanto poder local
como outrora, passando a ser exercidos por aquelas pessoas menos aquinhoadas dos
círculos das famílias ricas da Província.
Aos conflitos intra-elites somavam-se aqueles gerados pela sobreposição de
deveres, como no caso da Força de 1ª Linha e da Guarda Nacional – esta até 1874 –
que tinham a obrigação de auxiliar no policiamento dos municípios, na condução de
presos e na guarnição de cadeias e prédios públicos; bem como aqueles gerados entre
dois tipos diferentes de agentes promotores da ordem pública – a autoridade civil e a
militar. Este, ainda que se encontrasse preso à rede de favores, tinha consciência de
pertencer a uma organização mais capacitada – uma vez que muitos de seus oficiais
vinham do Exército – e, apesar dos pesares, melhor disciplinada, devido ao regime
dentro do quartel. Depois da Guerra do Paraguai, essa experiência tornou-se mais
forte com a incorporação do Corpo de Polícia aos batalhões do Exército, o que lhe
daria uma série de privilégios e honras militares. Apesar disso, era subordinado às
autoridades policiais civis, que, na falta de uma força própria, dispunham da polícia
militar para todas as suas diligências.
Por outro lado, os praças de polícia não estavam tão bem preparados como se
esperaria de uma organização militar. A remuneração inadequada e a falta de
garantias para si e sua família no que dizia respeito à invalidez ou morte em serviço,
tornaram- nos em indivíduos menos atento as suas obrigações do que o esperado.
Eram encontrados em muitas ocasiões embriagados no horário de serviço ou jogando
com aqueles que deveriam ser os policiados. Isto se tornou um problema sério no
policiamento do Recife, que na época Imperial convivia com escravos de ganho em
suas ruas, além dos freqüentes distúrbios entre os praças de polícia com os soldados
de 1ª Linha, da Marinha e da Guarda Nacional. Era, portanto, um outro foco de
insegurança para as elites, que não haviam se esquecido dos levantes de tropas
militares dos primeiros tempos de Império.
A tentativa de constituir uma guarda civil ainda na época imperial, que
atendesse as condições locais de cada município, dando-lhes maior autonomia sobre
este assunto e maior capacidade de prevenção e repressão, mostrou-se insatisfatório.
Isto ocorreu por várias razões: falta de apoio do governo imperial, falta de pessoal
236
com o mínimo de instrução e treinamento para fazer parte de uma polícia que se
desejava fosse em primeiro lugar dedicada a prevenção dos crimes, e por último, falta
de visão das autoridades da Província, que preferiram economizar mais uma vez nos
salários, a proporcionar uma polícia capaz de resguardar a propriedade e a ordem
pública, respeitando ao mesmo tempo os direitos individuais.
Embora o modelo de policial a ser seguido fosse o bobby londrino, não houve
nem interesse real, nem condições sociais de formar aqui um tipo de “policial
cidadão” que promovesse a cidadania entre a população. Ao contrário, em todo o
período analisado a relação entre a polícia e as classes populares foram calcadas sobre
a violência e as arbitrariedades. Na verdade, se a instituição agia desta forma era
porque o exercício do poder empreendido pelas classes dominantes era alicerçado
sobre este modelo. Neste sentido, a própria forma como desejavam implementar o
projeto de ordenação da cidade, excluindo dele a participação popular ao impor
restrições às suas manifestações culturais, demonstrava bem isto.
Com a República, a estrutura policial vai absorvendo elementos mais técnicos e
científicos, oriundos do pensamento positivista, no intuito de atender melhor a nova
realidade que se apresentava com o desenvolvimento urbano e o crescimento
populacional. Uma das primeiras providências foi reforçar a organização militar da
força policial, conferindo-lhe regulamentos cada vez mais semelhantes ao do
Exército. A Guarda Local, por exemplo, de civil no Império passaria a ser militar na
República. Ela também serviria para constatar o despreparo em que se encontravam
os municípios do interior para gerenciar os seus próprios negócios sem a ajuda do
governo do Estado, e o perigo que poderia acarretar uma milícia oficial nas mãos dos
“coronéis”. Desta forma, foi restaurado o comando da polícia para o Estado, que
poderia manter, assim, o controle sobre seus adversários políticos.
A polícia civil passaria, igualmente, por transformações importantes. Ao
mesmo tempo em que a Repartição de Polícia retoma antigos cargos policiais do
tempo do Império, por outro lado, é principalmente dela o mérito de ter criado os
serviços de identificação e estatística criminal com o objetivo de combater a
criminalidade. Com ela seria inaugurada uma nova fase de controle policial sobre a
população, apoiada em um discurso técnico-científico, aliado ao pensamento
237
higienista, e por isso mesmo mais difícil de ser contestado. Nota-se nos relatórios das
autoridades policiais uma preocupação quase “médica” a respeito da população
pobre. Ela possuía naturalmente um caráter propenso ao crime e, por isso, as
autoridades tinham de estar alertas para que não entrasse em contato com elementos
perniciosos a sua “saúde” moral, em benefício da segurança e do desenvolvimento da
sociedade toda. As ilegalidades populares eram por isso perseguidas sem se buscar
primeiro as suas origens sócio-econômicas, não se conseguindo, por este motivo, um
nível satisfatório de controle sobre elas. O maior trunfo sobre elas foi terem
conseguido a sua marginalização social.
Ao lado da polícia, a Casa de Detenção seria um outro instrumento na cadeia
disciplinar que deveria ser imposta às classes populares do Recife. Caso a prevenção
ou a repressão inicial da polícia falhasse, restaria a pena de reclusão, que significava
o afastamento temporário ou definitivo do infrator que tentara sair do domínio direto
da lei. A Casa de Detenção seria o seu destino.
Embora o seu modelo de construção presumisse o funcionamento de uma
penitenciária exemplar, obedecendo ao estilo panóptico o qual impunha um alto grau
de controle sobre os prisioneiros, foi se afastando desde o princípio de seu principal
objetivo: o de reconduzir o “fora da lei”, isto é, o indivíduo que havia saído do âmbito
do poder institucionalizado, aos parâmetros legais da ordem. Isto deveria ocorrer
através de uma série de técnicas penitenciárias e suplementares que transformaria o
infrator ou criminoso em um indivíduo capaz de ser reaproveitado pela sociedade. Já
a forma como foi concluída a sua construção prenunciava o afastamento dessas
técnicas. Não havia, por exemplo, local específico para a montagem de oficinas de
trabalho, foram colocadas portas de madeiras nas celas que tiravam a visibilidade
sobre os presos e estas haviam sido construídas para abrigar mais de um indivíduo.
Restrita a sua função a reter prisioneiros até serem enviados para cumprir pena
em Fernando de Noronha, seus regulamentos prescindiam de atividades correcionais.
Como, no entanto, os prisioneiros temporários permanecessem mais tempo que o
devido e aumentasse o número de presos correcionais e sentenciados, foi sentida a
necessidade de se instaurar métodos de reabilitação para os detentos já bastante
divulgados na Europa e Estados Unidos, como as escolas de primeiras letras e as
238
4
Em 1874 o administrador Rufino de Almeida calculou em um terço dos detentos, cf. DP, 20/10/1874.
239
5
Michel Foucault, op. cit., pp.223-225.
240
Esta foi uma solução suficiente e prática para os seus problemas de controle social de
então.
Em 1919, contudo, o governo do Estado tomaria a primeira iniciativa oficial de
tentar mudar a finalidade da Casa de Detenção do Recife. Isso ocorreria com a
mudança de seu regulamento, que trocaria o seu nome para Penitenciária e Detenção
do Recife passando a sua função a ser ...a execução da pena com trabalho e a
reclusão dos indigitados suspeitos ou pronunciados. 6 Havia, no entanto, muito que
ser mudado ainda na instituição carcerária brasileira como um todo, e nas condições
sociais destinadas às camadas mais pobres da população, para que ela pudesse vir a
cumprir com o seu objetivo – o que não ocorreu. A sociedade pagaria um alto preço
no futuro por não ter conseguido levar essas reformas adiante.
6
Em 20 de setembro de 1916, foram criadas diversas oficinas para os presos, divididas em seis
secções. A 1ª destinava-se aos ofícios de marceneiro, carpinteiro e empalhador; a 2ª, aos de ferreiro e
serralheiro; a 3ª aos trabalhos de sapateiro e correeiro; a 4ª aos serviços de encadernação e cartonagem;
a 5ª de alfaiataria, e a 6ª de lavanderia. Cada oficina, com exceção da lavanderia, tinha um mestre
encarregado de sua administração, cargo esse exercido por um funcionário da Repartição Central de
Polícia. Os presos operários ganhavam uma diária de acordo com o que produziam, formando dois
pecúlios: um para as despesas extraordinárias e o sustento da família, e o outro que seria depositado na
Caixa Econômica para lhes ser entregue quando fosse libertado. Havia depositado na Caixa Econômica
a quantia de 12:628$861 e na penitenciária, 3:376$000. Os detentos aprendizes não percebiam nada.
Cf. APEJE, Relatórios dos Secretários Gerais, 1919, p.22.
7
Michel de Certeau, A invenção do cotidiano, p.174.
241
NOVEMBRO
FEVEREIRO
DEZEMBRO
SETEMBRO
DISCRIMINAÇÃO
OUTUBRO
JANEIRO
AGOSTO
MARÇO
TOTAL
JULHO
JUNHO
ABRIL
MAIO
Carabinas - - - 1 - - - - - -1 - - 2
Compassos - - - - 2 1 - 1 2 2 - - 8
Chuços - - - - - - - - 1 - - - 1
Bengalas de ferro - - - - - - - - 2 - - - 2
Bacamartes - - - - - - - - 2 - - - 2
Espingardas - 3 - - - - - - - - - - 3
Espetos - -1 - - 4 1 - - 2 - - - 8
Facas de ponta 12 101 5 7 115 23 128 18 108 65 102 29 713
Facões - 1 - - - - - - - - - - 1
Navalhas 2 1 - - - - 1 - -2 - - - 6
Pistolas 1 8 1 2 3 2 2 6 8 4 3 40
Punhais 2 12 3 - 21 1 80 1 14 35 84 3 256
Rifles 1 2 - 2 - - - - - - - - 5
Revólveres - 3 - - - - - - - 1 - - 4
Roqueiras - - - - - 1 - - - - - - 1
Sabres 1 - - - - - - - - - - - 1
Trinchetes - - - - - - 1 1 - - - - 2
TOTAL 19 132 9 12 145 28 212 23 139 112 190 35 1055
Fonte: Repartição Central de Polícia do Estado de Pernambuco, 31 de janeiro de 1910.
Tabela 5*
H M H M H M H M H M H M H M H M H M H M H M H M
* Esta tabela não corresponde ao universo total da amostragem. Excluímos os delitos restritos aos homens como estupro, deserção etc., e a categoria
“outros”.
Obs: 1e= 1 escrava.
(continuação)
H M H M H M H M H M H M H M H M H M H M H M H M
Escravo p/ se - - - - - - 3 1 - - - - - - - - - - - - - - - -
achar ausente da
casa do senhor
Escravo a pedido - - - 1 - - 4 1 - - - - - - - - - - - - - - - -
do senhor ou
inventariante
Furto - - 3 1 4 - 7 1 - - 3 - 2 - 1 - 4 2 5 - 7 1 12 -
Roubo 1 - - - 2 - 5 - 1 - - - 1 - 2 - 1 - 2 - - 1 - -
Gatunagem - - - - - - - - 61 6 43 2 21 2 23 - 86 1 97 - 105 - 141 1
Alienação 3 2 4 2 6 7 6 3 9 7 11 3 7 1 16 6 15 3 5 2 17 3 9 4
TOTAL 93 41 126 37 85 18 183 26 234 45 210 31 146 25 195 27 210 12 223 8 229 11 240 35
Fonte: Idem tabela 1.
FONTES
Manuscritas
Impressas
- Anais da Assembléia Provincial de Pernambuco, 1864, 1865, 1870, 1874, 1875, 1881.
- Anais da Câmara dos Deputados de Pernambuco, 1892, 1898, 1900, 1906 e 1914.
- Anais do Senado do Estado de Pernambuco, 1892, 1893, 1895, 1898.
- Almanak administrativo, mercantil industrial e agrícola da Província de Pernambuco
de 1873, 1879 e 1882.
- Coleção de Leis Provinciais/Estaduais de Pernambuco, 1865-1915.
- Regulamento da Guarda Local de 9 de outubro de 1890 (anexo ao Relatório do Barão
de Lucena, de 23 de outubro de 1890).
- Regulamento Geral da Força Pública Estadual de Pernambuco de 1894.
- Regulamento do Corpo de Polícia do Estado de Pernambuco de 25 de agosto de 1896
(Fundo Prefeitura Municipal do Recife, Regulamentos e Regimentos).
- Regulamento da Segurança Noturna, 1909.
- Regulamentos da Casa de Detenção da Cidade do Recife, de 1855 e 1885.
- Relatórios e Falas dos Presidentes da P rovíncia de Pernambuco, 1875-1890.
- Relatórios dos Chefes de Polícia, 1886, 1905, 1910.
- Relatórios dos Secretários Gerais, 1907-1912 e 1919.
Jornais
- A Província, 1901-1905
243
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