Pontifícia Universidade Católica de Campinas Centro de Ciências Humanas E Sociais Aplicadas
Pontifícia Universidade Católica de Campinas Centro de Ciências Humanas E Sociais Aplicadas
Pontifícia Universidade Católica de Campinas Centro de Ciências Humanas E Sociais Aplicadas
Campinas
2020
EDILZA RODRIGUES CAMPELO DA SILVA
PUC-CAMPINAS
2020
Agradecimentos
Sou criatura e filho de Deus e ele é meu filho por sua vez:
Como pode acontecer, porém, que ambos sejamos as duas
coisas?
Ângelo Silésio
RESUMO
SILVA, Edilza Rodrigues Campelo da. O transcendente no imanente: o fenômeno religioso na
perspectiva da Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung. 2019. Dissertação (Mestrado em Ciências da
Religião) – Programa de Pós-Graduação Strictu Sensu em Ciências da Religião da Pontifícia
Universidade Católica de Campinas.
The aim of this paper is, from the thought of Carl Gustav Jung (1875-1961), founder of
Analytical Psychology, to understand the relationship between religious phenomenon
and psychic phenomenon. For this, we use the theoretical framework of the author,
listing the concepts of psychic energy, personal unconscious, collective unconscious,
archetypes, psychological types and process of individuation. Regarding the religious
phenomenon, we resort to Jung’s experiences in different times and places, such as:
Arabs in the Sahara Desert in North Africa, Mount Elgon in West Africa, Pueblos in
New Mexico, Hinduism and Buddhism in India and Christianity in Europe, showing how
this phenomenon is present in the most diverse cultural representations and how the
individual appropriates it. Jung’s Analytical Psychology and its emphasis on the
religious point out that this phenomenon is presented according to the psychic function
involved, therefore, emphasizes the importance of observing all forms of religion. The
introversion and extroversion types, and the functions, thought, feeling, perception,
and intuition, shape the archetypal dynamic in religious and psychic experience and
attitude. In his journey, Jung became interested in the psychology of the individual’s
religious experiences, which culminate in the process of individuation or psychic
wholeness. We appropriate the religious experience of the Apostle Paul in order to
represent this process from an individual experience. Thus, this research intends to
understand the religious phenomenon from the reports of experiences with the
transcendent. The transcendent in the Immanent is what establishes the possible
language between the human being and something beyond himself. This language
happens through the archetypal religious symbols of the collective unconscious, and
the function of the soul as a psychic function is to make these unconscious symbols
conscious.
INTRODUÇÃO
1
As Conferências Nacionais de Saúde Mental, e em especial a III Conferência realizada em 2001,
consolidaram a Reforma Psiquiátrica como política oficial do SUS e propuseram a conformação de uma
rede articulada e comunitária de cuidados para as pessoas com transtorno mentais. Sendo assim, a
mudança do modelo de assistência psiquiátrica tem se dado principalmente por via dos Centros de
Atenção Psicossocial (CAPS), unidades de atendimento em saúde que começou a surgir nas cidades
brasileiras na década de 80 e passou a receber uma linha específica de financiamento do Ministério da
Saúde a partir do ano de 2002, vem demonstrar a possibilidade de organização de uma rede
substitutiva ao Hospital Psiquiátrico no país. A proposta do Ministério da Saúde para esse serviço é
prestar, num dado território, atendimento diuturno às pessoas que sofrem com transtornos mentais
severos e persistentes. O CAPS oferece cuidados clínicos e de reabilitação psicossocial, com o objetivo
de substituir o modelo hospitalocêntrico, evitando as internações e favorecendo o exercício da
cidadania e da inclusão social aos usuários e suas famílias. Vale ressaltar, que a psiquiatra brasileira
Nise da Silveira (1905-1999), foi uma das pioneiras no movimento da reforma manicomial. Tendo por
base a teoria junguiana, abordagem pela qual ela mesma foi responsável por introduzir no Brasil,
apropriando-se da arte como proposta de tratamento terapêutico para pessoas com distúrbios mentais.
9
O médico suíço Carl Gustav Jung (1875-1961) muito cedo confrontou-se com
o fenômeno religioso. Nascido em uma família de tradição luterana, o ambiente
familiar e social em que cresceu como também suas experiências interiores, o
influenciaram de modo que as questões religiosas se tornaram o centro de sua
10
atenção e o alvo de seus estudos. Permaneceu membro da igreja luterana até a sua
morte, no entanto, comparecia à paróquia somente em ocasiões festivas, casamentos
ou funerais de amigos. Seu interesse pela religião foi direcionado para um caráter
privado, intelectual e científico (MACHÓN, 2016, p. 28-32).
Ainda muito jovem, começou a visitar a “biblioteca relativamente modesta” do
seu pai em busca de respostas às suas perguntas. Através das leituras, procurava
entender e relacionar o fenômeno religioso e suas experiências pessoais (JUNG,
1961/2006, p. 87)2. Posteriormente, enquanto acadêmico, procurava compreender a
mente humana profunda. Assim, Jung tornou-se o fundador da Psicologia Analítica
sendo que um dos principais aspectos de seu trabalho consistia em abordar temas
relacionados à concepção de mundo e tratar do confronto entre a psicologia e as
questões religiosas (JUNG, 1961/2006, p. 249).
Em Psicologia e Religião (1971), Jung afirma que a religião constitui uma
das expressões mais antigas e universais da alma, e que o fenômeno religioso é
inerente à psique humana. Desse modo, compreende que o sentido dos termos
religião e religiosidade não se vinculam a questões relacionadas às instituições
religiosas, mas aos fenômenos culturais e às experiências individuais. Esta questão
torna-se evidente em suas palavras: [...] “não tomo como ponto de partida qualquer
credo religioso, mas sim a psicologia do homo religiosus, do homem que considera e
observa cuidadosamente certos fatores que agem sobre ele e sobre seu estado geral”
(JUNG, 1971/2012a, p. 22).
A convicção de Jung (1971/1994, p. 1) consistia na ideia de que “as religiões
se acham tão próximas da alma humana, com tudo quanto elas são e exprimem que
a psicologia de maneira alguma pode ignorá-las”. Então, se propõe a desenvolver uma
psicologia da experiência religiosa, que para ele é um fenômeno psíquico.
2
Ao nos remetermos às obras completas de Jung, traremos o ano da primeira publicação e o ano da
edição utilizada.
11
[...] não vejo como seria possível criaturas em posições tão diferentes e com
tão diferentes poderes como são os indivíduos humanos, terem exatamente
as mesmas funções e as mesmas obrigações. Não haverá dois entre nós que
tenham dificuldades idênticas, nem se poderá [esperar] deles que elaborem
as mesmas soluções. Cada qual, do seu ângulo especial de observação, vê
certa esfera de fato e de problema, com os quais lidará de maneira singular
[...] O divino não pode significar uma qualidade única, tem de significar um
grupo de qualidades, e se diferentes homens forem paladinos delas
alternadamente, poderão todos encontrar missões dignas. Sendo cada
atitude uma sílaba na mensagem total da natureza humana, seremos
necessários todos nós para soletrar completamente o significado. Assim, ter-
se-á de consentir que “um deus de batalhas” seja um deus para uma espécie
de pessoa, um deus da paz, do céu e do lar para outra [...] Não há dúvida
alguma de que alguns homens têm a experiência mais completa e a vocação
mais elevada, tanto aqui como no mundo social; mas o melhor será
seguramente que cada homem fique na sua própria experiência, seja ela qual
for, e que os outros o tolerem ali. (JAMES, 1995, p. 301-302).
pois forneceu um material apologético que não estava em conflito com a ciência e o
método científico.
O desenvolvimento da psicologia da religião na Alemanha seguiu um caminho
totalmente diferente. De acordo com Hock (2010, p. 165), inicialmente foram teólogos
como George Wobbermin (1869-1943) que traduziram obras de psicólogos da religião
estadunidenses, proporcionando, assim, sua recepção na área da língua alemã.
Entretanto, este processo conferiu à psicologia da religião um significado
evidentemente teológico. Já o representante da psicologia experimental, o psicólogo
etnólogo Wilhelm Wundt (1832-1920), classificou amplamente as questões
psicológico-religiosas como perspectivas histórico-religiosas.
Na França, inicialmente foram os especialistas da área da psiquiatria que se
dedicaram às questões psico-religiosas. Entre eles estão, Pierre Janes (1859-1947) e
Théodule Amand Ribot (1839-1916), que direcionaram suas pesquisas principalmente
para a relação entre religião e fenômenos psicopatológicos e ao fundamento biológico
da religião (HOCK, 2010, p. 166).
Outros movimentos, em várias vertentes da psicologia, surgiram a partir de
diferentes teóricos. Entretanto, uma vez superado o momento inicial, a psicologia da
religião passou por um desenvolvimento diferenciado. Na área do idioma alemão,
Sigmund Freud (1856-1939) fundou, através da psicanálise, uma vertente de pesquisa
que trouxe novas inspirações (HOCK, 2010, p. 166).
No pensamento de Freud, a religião deveria ser considerada ilusão, mas seria
superada através do desenvolvimento científico. Assim, no ensaio O futuro de uma
ilusão (1927), além de abordar temas ligados à constituição da cultura e da sociedade,
Freud procura analisar a origem da necessidade do ser humano de ter uma crença
religiosa. Apesar de respeitar o fenômeno religioso como manifestação cultural e
manifestação de fé calcada nos sentidos, ele procura desconstruir esse fenômeno
enquanto forma de conhecimento do mundo, por considerá-lo como origem da
alienação e superstição, com base na imaginação. Ele escreve sobre religião neste
momento específico de sua obra, pois luta para estabelecer a psicanálise enquanto
campo de saber que formula uma concepção do aparelho psíquico e, este, por sua
vez, fornece a base de uma nova terapêutica para o sofrimento mental humano.
Através do desenvolvimento cultural, as pessoas passariam a tratar as
doutrinas religiosas com desdém, pois a veriam como ilusões. O reconhecimento
dessas ilusões, além de favorecer a observação e o pensamento no trabalho
14
[...] De todos os meus pacientes que tinham ultrapassado o meio da vida, isto
é, que contavam com mais de trinta e cinco anos, não houve um só cujo
problema mais profundo não fosse o da atitude religiosa. Aliás, todos estavam
doentes, em última análise, por terem perdido aquilo que as religiões vivas
ofereciam em todos os tempos, a seus adeptos, e nenhum se curou
realmente, sem ter adquirido uma atitude religiosa própria, o que,
evidentemente, nada tinha a ver com a questão da confissão [credo religioso]
ou com a pertença a uma determinada igreja. (JUNG, 1974/2003, p. 80).
conteúdo e método. Com o passar dos anos, estabeleceu estreitas relações com
cientistas da religião, teólogos psicólogos e cientistas naturais. Desta relação, surgiu
o chamado Círculo de Eranos. Existente desde 1933, ficou conhecido especialmente
pela publicação do Anuário Eranos – Jahrbuch (HOCK, 2010, p. 173).
Tendo como fundadora Olga Froebe-Kapteyn (1881-1962), o Círculo de
Eranos tinha como proposta reunir autores de diversas áreas do conhecimento
humano, configurando-se por importantes personagens internacionais. Os Estudos
perduram até os dias atuais e o principal interesse é pesquisar o simbólico e o
imaginário. O estudo sobre o imaginário e o simbólico originou-se no século XX,
quando alguns autores e precursores pretendiam proporcionar maior atendimento ao
humano que incluísse os níveis: antropológico, espiritual, social e político.
Provavelmente, o interesse em pesquisar o simbólico seria uma tentativa de
compreender a formação dos símbolos no ser humano e, ao mesmo tempo, sair da
concepção positivista dominante (FERREIRA; SILVEIRA, 2014, p. 259-261).
O nome Eranos foi sugerido por um dos integrantes, Rudolf Otto (1869-1937)
que, em grego, significa comida em comum, troca de alimentos, sem a presença de
um anfitrião (ORTIZ-OSÉS, apud FERREIRA; SILVEIRA, 2014, p. 260). Com a
escolha do nome e o simbólico em discussão nos encontros, o mito tornou-se um dos
temas cruciais para o estudo sobre o imaginário e a compreensão da psique humana.
Desse modo, Eranos tornou-se o lugar ideal para pensadores que tinham como
proposta discutir e conduzir suas pesquisas em direção ao simbólico. Este espaço
contribuiu para que Jung interagisse com outros pensadores como, Otto, Eliade e
Zimmer (FERREIRA; SILVEIRA, 2014, p. 262).
3
A relação de Jung com Freud iniciou-se em 1906, ocasião em que Jung enviara a Freud sua
publicação sobre a associação de palavras e, em 1907, seu livro A psicologia da dementia praecox, o
que resultou em um convite de Freud para que Jung viesse visitá-lo em Viena no mesmo ano. A primeira
conversa entre eles durou treze horas, sem interrupção. Em 1908, a instâncias de Freud, Jung tornou-
se diretor chefe da primeira revista de psicanálise em que Freud e Bleuler eram os diretores. Em 1909,
viajaram juntos para os Estados Unidos e em 1910, Jung tornou-se o primeiro presidente da Associação
Psicanalítica Internacional. Em 1911, Jung publicou a primeira parte de Símbolos da Transformação.
Nesta obra, evidencia-se que Jung não concordava com as concepções de Freud sobre a sexualidade
e o complexo de Édipo. Em setembro de 1912, Jung foi novamente aos Estados Unidos ocasião em
que criticou abertamente Freud e a psicanálise. A relação entre ambos tornou-se cada vez mais
complicada tanto no âmbito pessoal, quanto acadêmico, chegando ao fim em 1913 (PALMER, 2001, p.
18
(1973/1995, p. XVII), esta é uma época crítica, porque representa o início da segunda
metade da vida de um homem e, nesta fase, geralmente ocorre uma metanóia na vida
do indivíduo, ou seja, acontece uma retomada de posição na vida (KIRCHNER, 2018,
p. 115-116).
Na referida obra, Jung aponta para duas formas de pensamento – o pensar
dirigido e o pensar espontâneo. O pensamento dirigido ou lógico, além de se adaptar
à realidade e imitá-la, produz aquisições novas sobre ela. Este é o pensar para os
outros, e falar a outros, ou seja, é o pensar consciente, pois lida com a comunicação
através de elementos linguísticos. Assim, este pensar é trabalhoso e cansativo porque
se relaciona com o desenvolvimento cultural, com a mobilidade e capacidade de
deslocamento da energia psíquica. Já o pensamento espontâneo está relacionado ao
sonho e à fantasia. Ele se afasta da realidade e liberta tendências subjetivas, sendo
improdutivo em relação à adaptação. Por ser um trabalho espontâneo, não necessita
de esforço, pois os conteúdos são encontrados prontos e dirigidos por motivos
inconscientes. O pensamento espontâneo não se preocupa com a situação real das
coisas, nele se reúnem os fatos mais heterogêneos, e um mundo de impossibilidades
ocupa o lugar da realidade. O pensar no sonho, portanto, retrocede às matérias-
primas da memória, como por exemplo, às atitudes infantis e aos mitos (JUNG,
1973/1995, p. 9-21).
A distinção entre os dois tipos de pensamento, de acordo com a concepção
de Jung (1973/1995, p. 24-26), relaciona-se com a origem da tendência e da
capacidade do espírito humano de manifestar-se simbolicamente. Assim, enquanto o
pensamento dirigido e adaptado é um fenômeno inteiramente consciente, o
pensamento fantasia é movido por razões inconscientes. Ainda que parte dos
A fantasia consciente, seja de origem mítica ou outra, não pode ser tomada
ao pé da letra e sim compreendida quanto ao seu significado. Se nos
ativermos ao seu conteúdo literal, ela permanecerá incompreensível e
teremos de contestar a utilidade da função psíquica [...] As fantasias
conscientes, portanto, através de um tema mítico relatam outras tendências
da própria personalidade que ainda não foram reconhecidas. (JUNG,
1973/1995, p. 27).
4
A churinga é um objeto com significado espiritual utilizado pelos aborígenes australianos como forma
de registro. Considerado sagrado, faz conexão entre o passado e o futuro. Está relacionada com a
lembrança dos ancestrais, a herança dos mitos e a cultura dos indivíduos em um grupo.
5
Paládio está relacionado a qualquer objeto sagrado em que se confiava a segurança de uma cidade
ou estado.
6
“Por consciência entendo a referência dos conteúdos psíquicos ao eu, enquanto assim for entendida
pelo eu. Referências ao eu, enquanto não entendidas como tais pelo eu, são inconscientes. A
consciência é a função ou atividade que mantém a relação dos conteúdos psíquicos com o eu.
Consciência não é a mesma coisa que psique, pois a psique representa o conjunto de todos os
conteúdos psíquicos; estes não estão todos necessariamente vinculados ao eu, isto é, relacionados de
tal forma com o eu que lhes caiba a qualidade de conscientes. Existe uma boa quantidade de complexos
psíquicos que não estão necessariamente vinculados ao eu” (JUNG, 1971/1991a, p. 401-402).
21
utilizando de maneira coerente o termo libido, foi Freud7. O referido autor apresenta o
termo como definição sexual da energia sendo uma força instintiva específica. Ele se
apropria das expressões “instinto” e “energia psíquica”, limitando-se exclusivamente
à sexualidade (JUNG, 1971/1997, p. 28)8.
Ao fazer alusão à teoria da libido de Freud, Jung aponta que tal investigação
oferece excepcionais contribuições na relação da sexualidade para com a psique.
Entretanto, considera que não se deve considerá-la apenas de modo exclusivo e
unilateral, pois “a supervalorização levou Freud a reduzir inclusive as transformações
que correspondem a outras forças específicas e coordenadas da alma à sexualidade”
(JUNG, 1971/1997, p. 18). Para Jung, a dinâmica sexual representa meramente um
caso particular da totalidade da psique, assim não seria suficiente uma teoria
psicológica que recorresse apenas a uma energia sexual, ou a um instinto específico
como conceito explicativo. Com isto, não se lhe nega a existência, mas lhe atribui o
justo lugar (JUNG, 1971/1997, p. 28).
Jung atribui à libido o conceito psicológico de energia do curso da vida, com
leis definidas e um caminho determinado:
7
Freud apresenta elementos possíveis para se analisar os fundamentos da psique e a sexualidade na
obra Os Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade (1905). A Teoria da Libido encontra-se
especificamente no terceiro ensaio desta obra.
8
Toda linha de pensamento de Freud se baseia firmemente na teoria sexual. Com certeza não existe
pensador ou pesquisador que, sem preconceitos, não reconheça e admita imediatamente a
extraordinária importância das experiências e dos conflitos sexuais e amorosos. Mas nunca se poderá
provar que a sexualidade seja o instinto fundamental e a essência da psique humana (JUNG,
1974/1993, p. 16).
22
mais prudente por isso, ao falarmos de libido, entender com este termo um valor
energético que pode transmitir-se a qualquer área – ao poder, à fome, ao ódio, à
sexualidade, à religião” (JUNG, 1973/1995, p. 124).
Em tipos psicológicos (1971/1991), Jung enfatiza que a questão prática da
psicologia analítica é mais profunda do que a sexualidade e sua repressão (p. 214-
215). Tal enfoque seria insuficiente como princípio explicativo da alma humana em
sua totalidade, que não apenas se relaciona com o inconsciente, mas também
personifica os seus conteúdos (p. 239). Isto se torna evidente, pois as concepções
etnológicas e históricas da alma apontam que ela pertence tanto ao sujeito, quanto ao
mundo espiritual, ou seja, se constitui por conteúdos conscientes e inconscientes.
Assim, tem sempre algo de terreno e algo de espiritual – como se observa nos rituais
religiosos nos quais se evoca a força mágica, a força divina. Por isso, a alma deve ser
considerada função entre o sujeito consciente e as profundezas do inconsciente, que
seriam inacessíveis ao sujeito (p. 242) 9.
A compreensão de Jung sobre a função da alma é representada da seguinte
maneira:
A força determinante (Deus) que atua a partir dessas profundezas é refletida
pela alma, isto é, ela cria os símbolos, imagens, e ela mesma é pura imagem.
Por essas imagens ela transfere as forças do inconsciente para a
consciência. Dessa forma ela é vaso transmissor, um órgão de percepção
dos conteúdos inconscientes. O que ela percebe são símbolos. Mas símbolos
são energias configuradas, forças, isto é, ideias determinantes que tem
grande valor tanto espiritual quanto afetivo. [parêntese do autor] (JUNG,
1971/1991a, p. 242-243).
9
Jung não trata de um conceito filosófico e muito menos um conceito religioso da alma, e sim, do
reconhecimento psicológico da existência de um complexo psíquico semiconsciente, cuja função é
parcialmente autônoma (JUNG, 1971/1990, p. 66). No decorrer de suas investigações sobre a estrutura
do inconsciente, Jung fez uma distinção conceitual entre alma e psique. Por psique ele entende a
totalidade dos processos psíquicos, tanto conscientes quanto inconscientes. Por alma, ele entende um
complexo determinado e limitado de funções que podemos caracterizar melhor como “personalidade”
(JUNG, 1971/1991a, p. 388).
23
10
O símbolo central da arte cristã é a cruz ou crucifixo. Até a época carolíngia, a forma comum era a
cruz grega ou equilateral. Com o passar do tempo, o centro deslocou-se para o alto até que a cruz
tomou sua forma latina, com a estaca e o travessão, como se usa até hoje. Essa evolução corresponde
à evolução interior da cristandade até uma época adiantada da Idade Média. Em termos mais simples,
simboliza a tendência de deslocar da terra o centro do homem e sua fé e “elevá-lo” a uma esfera
espiritual. Essa tendência surgiu do desejo de traduzir em ação a s palavras de Cristo: “Meu reino não
é deste mundo”. A vida terrena, o mundo e o corpo eram, portanto forças a serem vencidas (JAFFÉ,
1964/2008, p. 328-329).
24
humana, julgando ser possível observá-la sob um ponto de vista aritmético externo.
Mas, ao criar os símbolos, ela representa a realidade subjetiva, cuja base é o arquétipo
inconsciente e a imagem aparente provém das ideias que o consciente adquiriu
(JUNG, 1973/1995, p. 220-221).
De acordo com Jung (1964/2008, p. 117), os símbolos distinguem em
símbolos naturais e símbolos culturais. Os símbolos naturais são provenientes de
conteúdos inconscientes da psique. Desse modo, representam grande variedade de
imagens em sua essência, assim, pode-se chegar, em alguns casos, às origens mais
arcaicas. São ideias e imagens encontradas nos mais antigos registros e nas
sociedades mais remotas. Os símbolos culturais, por sua vez, são aqueles utilizados
por muitas religiões e que expressam verdades eternas. Tais símbolos passaram por
inúmeras transformações11, trata-se de processos de elaboração conscientes que se
tornaram imagens coletivas aceitas pela sociedade contemporânea.
11
O símbolo da cruz, por exemplo, além do exemplo acima citado, em diferentes épocas e culturas
apresenta várias transformações. Partindo de uma compreensão mística, de acordo com Biasi (2012,
p. 79-83), as duas linhas perpendiculares da cruz representam duas forças contraditórias que se
equilibram sem se prejudicar. A linha horizontal corresponde à expansão, e a vertical à limitação,
resultando na atração universal que seria a condição da eclosão e do desenvolvimento da vida. Este
símbolo absolutamente universal que também representa justiça é encontrado em toda parte nos
monumentos da América pré-colombiana, nas mais antigas construções, como as monolíticas celtas
em forma de expirais, outros têm sobre seus braços os atributos dos quatro elementos que
correspondem aos quatro pontos cardeais. Em outras partes, a cruz desenhada, gravada, esculpida,
não se limita a expressar o equilíbrio; ela significa ainda que esse equilíbrio é a origem do movimento
que faz agir o céu e a terra, assim está contida em um círculo e forma uma roda. Essa forma de cruz
inscrita em um círculo é encontrada em um templo em Chalco, cidade considerada santa no Peru. O
equilíbrio da matéria em movimento é também o que significa a roda céltica, cujas representações
abundam em todos os países do Norte e Nordeste. Por toda parte, nas tradições dos remotos
antepassados da ordem rosa cruz, existe uma ordem arcaicamente estabelecida que é a perfeição. É
representada pela ilha santa, dividida em quatro partes iguais, por quatro fossos de rios e cujo centro
é o templo da luz. Algumas formas de compreensão demonstram que a cruz indica paz, a alegria, o
imortal, o devir. Longe de ter sido para os que nos precederam um emblema de dor ou perigo, ela era,
pelo contrário, o emblema da felicidade. Entre todas as formas de cruz; a cruz ansata do Egito é aquela
que melhor exprime o contato das energias masculinas e femininas. Colocada nas mãos dos deuses
egípcios é o sinal da vida que nos é proveniente do alto e que deve retornar ao alto quando o homem
souber devolver à origem sagrada a centelha que ele recebeu. As cruzes cristãs são provenientes
daquela que Constantino fez esculpir para substituir os símbolos pagãos sobre as insígnias romanas.
O que faz para muitos, com que represente ideia de tristeza e penitência, é que ela foi o instrumento
da morte do representante do cristianismo. Na antiguidade o suplício da cruz era destinado aos
escravos que fugiam, transgredindo a hierarquia social, daí provém sua característica infame. Esse
suplício foi infligido e, de acordo com as concepções teológicas da tradição cristã, convinha que Cristo,
ao tomar para si as faltas da coletividade humana em relação ao plano divino, se submetesse a esse
suplício, que correspondia à falta que ele não tinha cometido. Assim, a cruz para o cristão, mais do que
morte e sofrimento, representa redenção. De acordo com Jung (1971/2012b, p. 104-105), a cruz é um
dos símbolos mais arcaicos, e no âmbito dos fatos psíquicos, possui igualmente a função de um centro
gerador de ordem, ou seja, a cruz significa a ordem em oposição ao desordenado ou caótico. O centro
tem como definição a limitação do universo, também a totalidade de algo definitivo.
25
12
A teoria do inconsciente em Freud encontra-se no artigo O inconsciente (1915). Este artigo faz parte
do volume História do Pensamento Psicanalítico, Artigos Sobre a Metapsicologia (1914-1916). Neste
artigo, Freud defende a tese da existência de processos psíquicos inconscientes. Para Freud, a vida
psíquica é povoada de pensamentos eficientes, embora, inconscientes de onde se originam os
sintomas. “O inconsciente, é por assim dizer, a parte inferior da consciência: é o campo extensivo e
dinâmico da vida mental no qual estão ideias e lembranças censuradas na mente consciente por meio
de fortes mecanismos de recalque” (PALMER, 2001, p. 125). Na concepção de Freud, o aparelho
psíquico configura-se da seguinte forma: primeira tópica do aparelho psíquico: pré-consciente,
consciente e inconsciente; segunda tópica do aparelho psíquico: id, ego e superego.
26
[...] nossa experiência até aqui sobre a natureza dos conteúdos inconscientes
nos permite certa classificação geral dos mesmos. Podemos distinguir um
inconsciente pessoal que engloba todas as aquisições da existência pessoal:
o esquecido, o reprimido, o subliminarmente percebido, pensado, sentido. Ao
lado desses conteúdos inconscientes pessoais, há outros conteúdos que não
provêm das aquisições pessoais, mas da possibilidade hereditária do
funcionamento psíquico em geral, ou seja, da estrutura cerebral herdada. São
as conexões mitológicas, os motivos e imagens que podem nascer de novo,
a qualquer tempo e lugar, sem tradição ou migração histórica. Denomino
esses conteúdos de inconsciente coletivo. (JUNG, 1971/1991a, p. 426).
13
O termo “arquétipo” foi empregado por Cícero, Plínio e outros. Com referência à psicologia, encontra-
se nas obras de Adolf Bastian e em Nietzsche (JUNG, 1971/2012a, p. 69).
29
14
O conceito de arquétipo de Jung está na tradição das ideias platônicas, com sua definição “de que a
ideia é preexistente e supra-ordenada aos fenômenos em geral”, presentes também nas mentes dos
deuses, e que servem como modelos para todas as entidades do reino humano. As categorias iniciais
da percepção de Kant, e os protótipos de Schopenhauer também são conceitos precursores para Jung.
Na verdade, os nomes dados às estruturas psíquicas são todos retirados dessas bases (MEDNICOFF,
2008, p. 62).
15
A força universal mágica é o chamado Mana; entre os povos antigos Mulungu (precisamente conceito
primordial de energia). A imagem desenvolveu-se em variações sempre novas no decurso da história.
No antigo testamento a força mágica resplandece na sarça que arde em chamas diante de Moisés. No
Evangelho manifesta-se pela descida do Espírito Santo em forma de línguas de fogo vindas do céu.
Em Heráclito aparece como energia universal, como o fogo eternamente vivo. Entre os persas é a viva
luz do fogo do haoma, da graça divina; para os estoicos é o calor primordial, a força do destino. Na
legenda medieval aparece como a aura, a auréola dos santos, desprendendo-se em forma de chamas
do telhado da cabana onde o santo jaz em êxtase. Nas faces dos santos essa força é vista como sol e
plenitude da luz. Segundo uma interpretação antiga, a própria alma é essa energia; a ideia de sua
imortalidade é a de sua conservação; e na acepção budista da transmigração da alma, reside a sua
capacidade de transformação e perene conservação (JUNG, 2015, p. 43-44).
16
Rudolf Otto (1869–1937) teólogo protestante alemão que faz uma análise fenomenológica da
experiência do numinoso em sua obra O Sagrado (1917). Segundo Otto, O Numinoso vem da palavra
latina numen e não pode ser explicado em conceitos por ser uma experiência que ultrapassa o âmbito
30
racional. No entanto, essa experiência pode ser entendida como um sentimento confesso de
dependência ou sentimento de criatura. O autor descreve como sendo “momentos de estado psíquico
de solene devoção e arrebatamento” (OTTO, 1917/2017, p. 38-44).
31
Não entendo por “função” uma função básica, mas uma formação complexa,
composta de outras funções; e por “transcendente”, não uma qualidade
metafísica, mas o fato de que por esta função se cria a passagem de uma
atitude para outra. A matéria-prima elaborada pela tese e antítese e que une
os opostos é o símbolo vivo. Em sua matéria-prima, insolúvel por longo
tempo, está sua riqueza de pressentimento; e na forma que sua matéria-
17
Ego – palavra latina que significa “Eu”. É utilizada, em geral, para designar o sujeito substancial ou o
“eu” transcendental, ou seja, o “eu” que, para além do empirismo, condiciona a experiência e as
representações (cf. JAPIASSU; MARCONDES, 2006, p. 82).
32
prima recebe, pela ação dos opostos, está sua influência exercida sobre
todas as funções psíquicas. Indicações dos fundamentos do processo de
formação dos símbolos encontram-se nas escassas referências sobre os
conflitos experimentados pelos fundadores de religião em seus períodos de
iniciação, como por exemplo, Jesus e Satanás, Buda e Mara, Lutero e o
demônio, Zwínglio e sua vida mundana anterior, o rejuvenescimento de
Fausto após o contrato com o diabo, em Goethe. Ao final de Zaratustra
encontramos exemplo típico da opressão da antítese na figura do “homem
mais feio”. (JUNG, 1971/1991a, p. 459-450).
elemento contrário, nada fica excluído, assim assume o caráter de totalidade (JUNG,
1971/1991b, p. 90-91).
Partindo da análise dessa relação entre ego e inconsciente, temos outra
questão: “em que consistem os processos inconscientes? Como se formam?
Naturalmente na medida em que são inconscientes, nada se pode dizer a respeito”.
Ao propor este grande problema, Jung (1971/1990 p. 52) aponta que, apesar de
manifestarem-se parcialmente por meio de sintomas, ações, opiniões, afetos,
fantasias e sonhos, estes são apenas meios de observação que podem nos auxiliar
fornecendo conclusões indiretas referentes à constituição e o estado momentâneo do
processo inconsciente e seu desenvolvimento. É ilusório pensar que seja possível
descobrir a verdadeira natureza do processo inconsciente. Ficamos, então, apenas
com o hipotético, pois não conseguiremos ultrapassá-lo. “É muito árduo descobrir a
alma e difícil entendê-la, também é difícil chegar ao conhecimento do homem
completo” (JUNG, 1976/1998, p. 212).
Dentro daquilo que é possível alcançar com a experiência atual, pode-se dizer
que os processos inconscientes e a consciência se encontram numa relação
compensatória. A expressão “compensatória” e não a palavra “oposta” é utilizada
propositalmente por Jung (1971/1990, p. 53) ao entender que consciente e
inconsciente não se encontram necessariamente em oposição, ambos se completam
mutuamente para formar uma totalidade que ele denomina self (si-mesmo)18. Partindo
desta definição, compreende-se o self como uma instância que engloba tanto o eu
consciente como o inconsciente.
18
O Si-Mesmo – Self em inglês, Selbst em alemão.
34
Uma vez que o indivíduo não é um ser único, mas pressupõe também um
relacionamento coletivo para sua existência, também o processo de
individuação não leva ao isolamento, mas a um relacionamento coletivo mais
intenso e mais abrangente. O processo psicológico de individuação está
[sobretudo] intimamente vinculado à função transcendente, porque ele traça
as linhas de desenvolvimento individual que não poderiam ser adquiridas
pelos caminhos descritos pelas normas coletivas. (JUNG, 1971/1991a, p.
427).
19
Química arcaica que precedeu a química experimental e onde se mesclavam especulações gerais,
figuradas e intuitivas, parcialmente religiosas, a respeito da natureza e do homem. Na matéria
desconhecida eram projetados numerosos símbolos conhecidos hoje como conteúdos do inconsciente.
O alquimista procurava o “segredo de Deus” na matéria desconhecida e se empenhava em
preocupações e caminhos semelhantes ao da psicologia do inconsciente (JAFFÉ, 1961/2006, p. 482).
37
A pedra alquímica simboliza algo que nunca pode ser perdido ou dissolvido,
algo de eterno que alguns alquimistas compararam com a experiência mística
de Deus dentro de nossas almas. É necessário, em geral, um sofrimento
prolongado a fim de consumir todos os elementos psíquicos supérfluos que
ocultam a pedra. (VON FRANZ, 1964/2008, p. 280).
A persona produz algum tipo de efeito sobre os outros, porém, tenta ocultar a
verdadeira natureza do indivíduo. Por isso, é considerada como um complicado
38
Quando o papel desempenhado por uma pessoa passa a ser mais importante
do que seus verdadeiros sentimentos, ela se torna alienada de si mesma e sua
personalidade adquire um aspecto artificial, distanciando-se da própria natureza.
Impelido pelas exigências sociais, o indivíduo identifica-se com a persona e se torna
psicologicamente exigente e inflexível. Neste caso, o inconsciente tende a surgir à
consciência de maneira impetuosa e descontrolada, porque não consegue sentir e
perceber as ocorrências internas. A falta de resistência interior contra a sedução
exterior pode ser vista como a fraqueza em relação às influências do inconsciente
(JUNG, 1971/1990, p. 70).
Enquanto os conteúdos do inconsciente pessoal estão relacionados a
aquisições da existência pessoal, os conteúdos do inconsciente coletivo são
arquétipos existentes a priori. Em uma observação empírica, os arquétipos que se
caracterizam mais nitidamente, são aqueles que com maior frequência influenciam ou
inquietam o eu. Eles são representados pela sombra, pela anima e o animus (JUNG,
1976/1998, p. 6).
A sombra se constitui por aspectos da personalidade inconsciente que
geralmente reprimimos e projetamos por ser repugnante e inaceitável. Segundo Jung
apud Jaffé (1961/2006, p. 496), “é aquela personalidade oculta, recalcada,
39
20
Quando a anima é apresentada na forma negativa, o homem tende a se comportar de maneira
irritada, depressiva, incerta, insegura, suscetível, rancorosa ou venenosa, demonstrando falta de
espontaneidade e dificuldade na comunicação. Geralmente não valoriza as coisas e distorce a verdade.
Pode tornar-se efeminado ou submisso às mulheres, demonstrando incapacidade em lutar diante das
adversidades da vida. Estes aspectos negativos da anima, assim como na sombra, podem ser
projetados em outra pessoa, geralmente em uma determinada mulher, e parecer qualidades
pertencentes a ela. Porém, se o homem conseguir dominar essas investidas de caráter negativo, elas
poderão, ao contrario, servir para fortalecer-lhe a masculinidade. Por outro lado, em seu aspecto
positivo, a anima orienta o homem em questões importantes, como nos momentos em que o espírito
lógico não consegue discernir os fatos ocultos em seu inconsciente, ela ajuda-o a identificá-lo. Outra
questão relevante é sintonizar a mente masculina com seus valores internos positivos possibilitando
um conhecimento interior mais profundo. Essa sintonia pode estar relacionada com a escolha religiosa.
Por exemplo, quando um homem torna-se católico praticante, descobre sua anima sob a forma da
própria igreja, as imagens sacras são, para ele, símbolos do seu inconsciente. Também pode orientar
o homem na escolha da esposa certa (VON FRANZ, 1964/2008, p. 234-250).
21
Ao atuar de forma inconsciente, o animus pode provocar sentimentos e alterações negativas no
comportamento feminino. Ele surge trazendo opiniões espontâneas, não premeditadas, influências que
poderão dominar negativamente na vida emocional da mulher (MEDINICOFF 2008, p. 71). Geralmente
se manifesta como uma convicção secreta, ou seja, a masculinidade encoberta. No entanto, se torna
facilmente reconhecida quando a mulher expressa essa convicção com voz forte, masculina e
insistente, ou tenta impor a outras pessoas com violência. Em contrapartida, uma mulher
aparentemente muito feminina, que de repente, surpreende os outros com atitude obstinada, fria e
inacessível, está apresentando um animus com uma força igualmente firme e inflexível. Sendo assim,
em sua qualidade negativa, o animus apresenta brutalidade, indiferença, tendência à conversa vazia,
às ideias silenciosas, obstinadas e más. Em sua qualidade positiva, se apresenta de maneira muito
valiosa, pois através da sua ação criadora, pode lançar uma ponte para o self. Assim, irá personificar
um espírito de iniciativa, coragem e honestidade, favorecendo a mulher para que tome consciência dos
processos básicos de seu desenvolvimento cultural e pessoal, tendo atitudes positivas em relação à
vida e encontre o caminho para uma espiritualidade de nível elevado (VON FRANZ, 1964/2008, p. 251-
260).
42
22
William James (citado na introdução desta pesquisa) nasceu em New York em 1842 e faleceu em
sua casa de campo em New Hampshire em 1910. Psicólogo, filósofo e líder do movimento conhecido
como Pragmatismo foi um dos mais famosos e representativos pensadores da América. Neste trabalho
clássico, William James explora a psicologia da religião, aplicando o método científico a um campo que
já havia sido tratado anteriormente como filosofia teórica e abstrata. O autor acreditava que as
experiências religiosas individuais, diferentemente dos preceitos estabelecidos pelas religiões
organizadas, constituíam a espinha dorsal da vida religiosa. Seus comentários sobre conversão,
arrependimento, misticismo e santidade, e suas observações acerca de experiências religiosas
verdadeiras, pessoais, dão embasamento a essa tese.
43
23
Anexo em Tipos Psicológicos, p. 499-502.
24
Tertuliano e Orígenes foram contemporâneos no final do século II. Jung se utiliza da personalidade
destes dois padres como representação do tipo introvertido e do extrovertido.
25
Johann Christoph Friedrich Von Schiller (1759-1805) foi um poeta, filósofo, médico e historiador
alemão. De acordo com Jung, foi o primeiro a tentar uma distinção consciente e de grande envergadura
entre atitudes típicas, e fazer delas uma descrição completa e detalhada.
44
26
Johann Eckhart (1260-1328), designado pelo nome de Mestre Eckhart, figura de prestígio no
Ocidente Cristão do início do século XIV, conheceu em seu tempo o opróbrio de um processo de
heresia, pois “quis saber mais do que convinha”. Seu pensamento e sua vida foram alvo dos círculos
eclesiásticos de sua época, entretanto, graças a seus discípulos mais próximos, os dominicanos
Henrique Suso e Johannes Tauler, que entraram em sua defesa e exploraram suas intuições, sua
influência se manifestou em algumas das maiores obras de tradição especulativa mística, tais como:
Ruysbroeck, Nicolau de Cusa, Ângelo Silésio, Baader, Hegel, Jung, Heidegger e Bataille (JARCZYK;
LABARRIÈRE, 2004, p. VII).
45
Por relatividade de Deus entendo um ponto de vista segundo o qual Deus não
existe como “absoluto”, isto é, desvinculado do sujeito humano e além de toda
e qualquer condição humana, mas dependente, em certo sentido, do sujeito
humano, havendo uma relação recíproca e essencial entre o homem e Deus,
de modo que se possa conceber, por um lado, o homem como função de
Deus e, por outro, Deus como função do homem. Para nossa psicologia
analítica que, como ciência, deve restringir-se ao empírico, a imagem de
Deus é uma expressão simbólica de um estado psíquico ou de uma função
que se caracteriza por ultrapassar absolutamente o querer consciente do
sujeito e consegue, assim, impor ou tornar possíveis, ações e resultados
inacessíveis ao esforço consciente. Este impulso poderoso – uma vez que a
função de Deus se manifesta no agir – ou esta inspiração que transcende o
entendimento consciente, provém de um represamento da energia no
inconsciente. (JUNG, 1971/1991a, p. 235).
A ideia da relatividade de Deus tem por finalidade mostrar que uma parte dos
conteúdos inconscientes pode ser considerada, ainda que indiretamente, como
conteúdos psicológicos. No caso dos místicos, como por exemplo, Eckhart, tal
consideração tornou-se válida ao voltar atenção à alma mais do que normalmente
acontecia. Assim, distinguiram-se os conteúdos inconscientes e suas projeções nos
objetos, proporcionando-lhe certa consciência, fazendo-os parecer como
pertencentes ao sujeito. Apesar de apresentada pelos místicos, em princípio, a ideia
da relatividade de Deus está presente entre os antigos de forma natural.
Manifestando-se como natureza puramente dinâmica, aparece como uma força divina,
capturada por certos procedimentos, que proporciona aquilo que as pessoas
necessitam para obter vida e saúde. Jung entende que toda forma de religião, traz em
sua constituição ética e cultural alguma tendência arcaica. Assim, as misteriosas
forças instintivas que, através do processo religioso contribuem para o
desenvolvimento humano, provêm desta relação com o arcaico (JUNG, 1971/1991a,
p. 236).
De acordo com Hillman (1984, p. 39), a atitude simbólica da psicologia tem
como origem a experiência da alma que direciona para a presença oculta e numinosa
do divino. A experiência da alma, ou o encontro de Deus com o homem na alma, seria
a imagem de Deus na psique enquanto algo conhecido, experimentado, sentido,
intuído, pelo qual o indivíduo venha formular ou representar. Trata-se inicialmente de
uma experiência, seguida de um conceito. Sobretudo, tal experiência ou imagem não
é única e nem sempre a mesma. No transcurso da vida de qualquer indivíduo, ela
sofre transformações com diferenças significativas de uma pessoa para outra
(HILMAN, 1984, p. 67).
46
que lhe é valioso está no objeto, para o introvertido está no sujeito (JUNG, 1971/
1991a, p. 474-476).
O problema dos tipos e a relação com o fenômeno religioso apresenta-se no
decurso histórico desde o pensamento antigo e medieval. Assim, Jung se apropria da
experiência religiosa de Tertuliano e Orígenes27, atentando para as características da
personalidade e visão de mundo de ambos, a fim de exemplificar os tipos extrovertido
e introvertido.
Nascido em Cartago por volta de 160 d.C., Quintus Septimius Florens
Tertullianus era filho de gentios, e sua conduta em relação ao cristianismo consistia
inicialmente em zombar dos cristãos. Ele mesmo confessa que, até acontecer sua
conversão ao cristianismo, levava uma vida dissoluta em sua cidade natal (BOEHNER
apud SILVA, 2018, p. 64). Jung relata que a conversão de Tertuliano ocorreu aos trinta
e cinco anos de idade, desde então, tornou-se autor de vários escritos nos quais
aparece com clareza o zelo e a ardente paixão, bem como a profundidade de sua
concepção religiosa. Combatia enfaticamente a gnose28, que seria uma paixão do
pensamento e do conhecimento, como também da ciência e filosofia que para ele,
pouco se diferenciavam (JUNG, 1971/ 1991a, p. 28-29).
A Tertuliano foi atribuída a grandiosa confissão: Creio porque é absurdo.
Entretanto, ao que parece, não seria bem isso que consta como verdade histórica, e
sim que teria dito: “e morreu o Filho de Deus, isto é perfeitamente crível porque é
absurdo. E sepultado ressuscitou; isto é certo porque é impossível”29. De acordo com
Bohnener e Gilson apud Silva (2018, p. 67), provavelmente Tertuliano queria dizer que
“se a fé não nos propusesse nada de incompreensível ela deixaria de ser crença, para
se transformar em ciência e conhecimento”. Também é possível que estivesse
tentando apontar que, a não ser que reivindique a própria fonte da verdade que é
Deus, a razão inevitavelmente incidiria em erro, caso fosse abandonada em si mesma.
27
O objetivo aqui não consiste em uma discussão filosófica acerca desses dois pensadores, e sim, a
partir da concepção de Jung, apontar para os aspectos psicológicos envolvidos na experiência religiosa
de ambos.
28
“Gnose” (do grego gnosis: conhecimento). Na história das religiões o termo “gnose” é reservado ao
conjunto das doutrinas heréticas que, nos séculos II e III, ameaçaram a unidade do cristianismo. Em
substância, a gnose consiste em afirmar a possibilidade da salvação religiosa pelo conhecimento
intelectual, sem o dom direto da graça divina. Por extensão, o termo passou a designar o conhecimento
esotérico e perfeito das coisas divinas pelo qual se pretende explicar o sentido profundo de todas as
religiões. Em outras palavras, conhecimento das coisas religiosas superiores ao conhecimento comum
dos crentes ou ao ensinamento das Igrejas (JAPIASSÚ; MARCONDES, 2006, p. 122).
29
“Et morttus est dei filius, prorsus credibile est, quia ineptum est. Et supultus ressurrexit, certum est,
quia impossibile est”. TERTULIANO, De carne Christi, 5 apud Jung (1971/1991a, p. 29).
50
30
Suscitada pelo imperador romano Severo (146-211), uma perseguição contra as igrejas consumou-
se em toda parte desde o Egito até a Tebaida. Notáveis e numerosos martírios ocorreram
especialmente em Alexandria com diversos tormentos e gênero de morte que eram suportados com
firme paciência. Leônidas, o pai de Orígenes, foi decapitado, deixando seu filho ainda muito jovem, que
cresceu e viveu com predileção pela palavra divina (CESARÉIA, 1999, p. 193).
51
31
O concretismo é um conceito que se remete à peculiaridade do pensamento que representa o
contrário de abstração (JUNG 1971/1991a, p. 400).
53
32
Galeno teve o mérito de criar uma classificação psicológica dos indivíduos humanos que persistiu
por 1.800 anos, classificação que se baseia na diferença perceptível da emocionalidade ou afetividade
(JUNG, 1971/1991a, p. 470).
54
pacientes. Através da experiência clínica, parecia ter encontrado uma estrutura básica
da psique que transcende as funções conscientes, representada por uma
automanifestação arcaica do inconsciente (VON FRANZ, 2016, p. 13).
Essa estrutura seria organizada pelos tipos funcionais, sendo estes
responsáveis por diferenciar os indivíduos cuja particularidade depende da adaptação
ou orientação. As funções psicológicas básicas, por sua vez, nunca apresentam o
mesmo grau de desenvolvimento num determinado indivíduo. De acordo com Silveira
(1981, p. 55-56), todas as pessoas possuem as quatro funções, mas uma delas,
denominada função principal, sempre se destaca como mais desenvolvida e mais
consciente que as demais. Em cada indivíduo, a função principal é o mecanismo mais
eficaz no processo de orientação e adaptação no mundo exterior, tornando seu
habitus reacional. Ela é responsável pela identificação característica do tipo
psicológico. O indivíduo apropria-se preferencialmente da sua função principal, pois é
através dela que alcançará melhores resultados na luta pela existência. Com certo
grau de diferenciação, a segunda função serve de auxiliar à principal e a terceira fica
à margem do desenvolvimento rudimentar. A quarta função, geralmente permanece
em um estado arcaico ou inconsciente, sendo denominada função inferior.
As funções se dividem em racionais que são: o pensamento e o sentimento;
e irracionais: a percepção e a intuição. As funções racionais se caracterizam pelo
primado de funções com julgamento racional, baseando-se em dados objetivos. As
funções irracionais, por sua vez, o julgamento da razão não tem por base apenas
dados objetivos, mas também subjetivos. Cada uma das quatro funções pode ser do
tipo introvertido ou extrovertido, resultando em oito tipos psicológicos.
Quando a vida de um indivíduo é conduzida sob o comando da reflexão, na
qual o pensar atua em primazia, e as atitudes principais sejam intelectualmente
geradas e motivadas, ou que tenham essa tendência, trata-se então do tipo
pensamento. Geralmente o pensar pode ser alimentado de fontes subjetivas
proveniente de fontes inconscientes, como também de dados objetivos tendo como
fonte transmissora as percepções sensíveis. Assim, utiliza-se como critério básico
para avaliar se um pensar é introvertido ou extrovertido – observar a orientação do
julgamento, se este é proveniente de dados objetivos, ou se é de origem subjetiva
(JUNG, 1971/1991a, p. 330-327).
Iniciando pelas funções racionais, abordaremos o tipo pensamento
extrovertido. De acordo com a definição de Jung (1971/1991a, p. 330), esse tipo
55
psicológico é constituído por pessoas que se orientam por dados objetivos, sejam eles
fatos objetivos ou ideias válidas em geral. Tais indivíduos esforçam-se para que todas
as suas atividades sejam direcionadas a partir de conclusões intelectuais. Para
Silveira (1981, p. 57), quando a personalidade consciente é extrovertida, e a função
principal é o pensamento, a tendência é ter atitudes em que coloque ordem lógica e
clara entre as coisas concretas. Por isso, esses indivíduos tentam fazer com que seu
ponto de vista prevaleça geralmente de maneira autoritária, rígida e impessoal.
Baseiam sua conduta em regras rigorosas, procuram impor seus princípios também
aos outros, desconsiderando as nuances pessoais.
Von Franz (2016, p. 65-68) aponta que esse tipo estabelece a ordem tomando
uma posição definida. Apresentam as situações exteriores com clareza, tendo como
ênfase sempre o objeto, pois o elemento subjetivo se mantém no segundo plano de
sua personalidade. As ligações sentimentais com certos ideais ou pessoas quase não
aparecem em suas atividades diárias, porém possuem uma espécie de lealdade
imperceptível que pode durar eternamente. Aquele sentimento forte, profundo,
arrebatador, quase nunca aflora, pois se encontra escondido em sua função
inconsciente ou inferior – o sentimento introvertido.
De acordo com Jung (1971/1991a, p. 355), a sociedade geralmente apresenta
uma tendência em supervalorizar a capacidade objetiva de conhecer e reprimir o fator
subjetivo e sua importância, ou seja, a importância do sujeito. Por isso, ele chama
atenção para esse fator subjetivo que consiste na ação ou reação psicológica, que ao
ser influenciado pelo objeto, funde-se em um novo estado psíquico. “Entre a
percepção do objeto e o agir do introvertido se interpõe uma opinião subjetiva
impedindo que o agir assuma um caráter objetivo” (JUNG, 1971/1991a, p. 354). Desse
modo, o tipo pensamento introvertido orienta-se por fatos de percepção do
conhecimento que representam a disposição subjetiva, ou fator subjetivo, acolhendo
a excitação sensorial.
Segundo Silveira (1981, p. 62), o tipo pensamento introvertido considera o que
há de mais importante nas ideias gerais. Assim, seu interesse está em produzir ideias
novas e originais. Os dados empíricos têm valor somente para documentar suas
teorias, mas não lhe atribui interesse próprio.
conteúdo subjetivo. Os fatos externos não são causa ou meta desse pensar,
ainda que o introvertido gostasse de lhe dar essa aparência, mas este pensar
começa no sujeito e reconduz ao sujeito, mesmo que faça larga incursão no
campo da realidade concreta. [...] Os fatos são de importância secundária
para este pensar; o que vale é o desenvolvimento da ideia subjetiva, da
imagem simbólica inicial que paira mais ou menos obscura diante da sua
visão exterior. (JUNG, 1971/1991a, p. 360).
e coletivos33. Assim, não são apenas do indivíduo, pois são partilhados, como
acontece, por exemplo, nos sentimentos religiosos e de nacionalidade.
Hillman (2016, p. 123) considera que “a psicologia acadêmica e clínica, em
sua ânsia de “cientificidade” e “objetividade”, corre o risco de perder a conexão com o
sentimento humano, ao desdenhar suas raízes filosóficas e teológicas”. Ele parte do
pressuposto que, se a base da psicologia é a filosofia, então seria necessário recorrer
aos filósofos para obter o histórico da função sentimento enquanto conceito.
Pensadores como Platão, Aristóteles, os escolásticos, Descartes, Spinoza, Hume e
Kant, ocuparam-se da vida afetiva tornando-a parte importante da filosofia afetiva.
Portanto, partindo do humanismo dos filósofos, dos ensaístas da moral, dos
romancistas e dramaturgos, dos teólogos e dos místicos é possível obter um amplo
conhecimento sobre o sentimento.
Enquanto na moderna literatura psiquiátrica e psicanalítica o sentimento
enquadra-se na categoria geral de afetividade, Jung o classificou como função da
consciência, no mesmo nível do pensamento, da sensação e da intuição. Essa
diferenciação conceitual trouxe grande contribuição à história e ao próprio conceito de
sentimento (HILLMAN, 2016, p. 133). Acompanhemos a definição de Jung:
33
O pensamento grego e romano revelava preocupação com assuntos referentes ao sentimento, seja
na condução da vida e da cidade, em questões de relacionamento humano, ou na estética. Seu
diferenciado panteão de figuras divinas oferecia um fundamento arquetípico a muitas formas de
expressão do sentimento. Como eram muitos deuses, a relação desses povos com eles não podia ser
resumida num único ritual ou por meio de um credo único. O politeísmo fornecia à multiplicidade de
complexos existentes na psique uma base para a descoberta de valores e para a vinculação destes
com inúmeros aspectos da vida. Bastava apreciar o sentimento que cada Deus reivindicava para si, e
encontrar maneiras de se relacionar com esse fundamento arquetípico da existência. A doutrina católica
e a vida monástica encorajavam a autorreflexão profunda sobre a vida dos sentimentos. Na
Renascença, a expressão das paixões e emoções ocorria por meio de pinturas e esculturas, sendo a
análise do sentimento um tema dominante na literatura. No decorrer do século XVIII, romancistas e
poetas deram início à elaboração de sutis e exaustivas descrições de estados de sentimentos e, no
período romântico que cedo surgira, aparecem afirmações como “o sentimento é tudo” e “beleza e
verdade” (HILLMAN, 2016, p. 122-123).
58
fatores externos divaga em seu pensamento extrovertido. Como este é sua função
inferior, normalmente se expressa numa monomania, ou seja, o indivíduo se apropria
apenas de um ou dois pensamentos e a partir deles produz uma enorme quantidade
de material.
A sensação ou percepção sensitiva entra no escopo das funções irracionais.
Isso se dá porque as ações não têm como base julgamentos racionais, e sim, na força
absoluta da percepção que se direciona apenas ao que acontece. De nenhuma
maneira baseiam-se no princípio da razão e seus postulados, por isso os tipos
sensitivos são irracionais em sua essência (JUNG, 1971/1991a, p. 351-352).
Jung apresenta a sensação e a percepção como idênticas, porém, distintas
do sentimento.
sendo absorvida. A impressão que vem do objeto para o sujeito, é como uma pedra
lançada em águas profundas, que vai caindo, caindo e afunda.
Apesar de causar a impressão de ser uma pessoa muito lenta externamente,
a reação interna do sensitivo introvertido é bem rápida. São capazes de absorver os
menores matizes e os mais íntimos detalhes. Entretanto, geralmente é mal
interpretado e mal compreendido, pois as outras pessoas não conseguem
compreender o que acontece com este indivíduo. Assim, expressam suas impressões
fotográficas artisticamente, reproduzindo-as através da pintura ou da escrita (VON
FRANZ, 2016, p. 49-50).
De acordo com Silveira (1981, p. 65), enquanto na sensação extrovertida o
indivíduo sempre está em perfeita harmonia com a realidade naquilo que se refere ao
aqui e ao agora, na sensação introvertida, não há relação racionalmente proporcional
entre o objeto e a intensidade das sensações. Por isso, o sensitivo introvertido
surpreende com comportamentos imprevisíveis e fora das medidas comuns. Isto
corresponde à intensidade das experiências interiores suscitadas nele pelo objeto, e
não pelo valor ordinário que o mundo real atribuiu.
A função inferior do sensitivo introvertido, que é a intuição extrovertida,
apresenta características bem misteriosas, assustadoras e fantásticas, semelhante à
função inferior do sensitivo extrovertido. Contudo, está mais direcionada ao mundo
exterior impessoal e coletivo. E quando suas fantasias internas surgem, apresenta
muita dificuldade em assimilá-las, devido à precisão e à lentidão da sua função
consciente (VON FRANZ, 2016, p. 51).
Jung (1971/1991a, p. 375) identifica essa função inferior ou inconsciente da
sensação introvertida à repressão da intuição com caráter extrovertido e arcaico. “A
intuição inconsciente e arcaica tem a capacidade de farejar todos os aspectos dúbios,
sombrios, sujos e perigosos que estão por traz da realidade”. Ela prevê as
possibilidades dos níveis mais arcaicos e inconscientes, assim, a intenção real e
consciente do objeto não significa nada para essa intuição. Entretanto, enquanto
função principal, a intuição extrovertida possui uma característica sagaz, “um bom
nariz”, para todas as possibilidades da realidade objetiva.
A palavra intuição, proveniente do latim intueri, significa olhar para dentro,
contemplar. É uma função psicológica básica que transmite a percepção através do
inconsciente, em que tudo pode ser objeto dessa percepção – questões internas ou
externas e suas relações. A característica específica da intuição é não ser sensação
63
dos sentidos, nem sentimento, nem interpretação intelectual, ainda que venha se
apresentar nessas formas. “Na intuição, qualquer conteúdo apresenta como um todo
acabado sem que saibamos explicar ou descobrir como este conteúdo chegou a
existir” (JUNG,1971/1991a, p. 430). Trata-se de uma função perceptiva irracional,
assim como a sensação, mas como uma espécie de apreensão instintiva, não
importando o conteúdo.
A intuição pode se manifestar de maneira subjetiva ou objetiva. A forma
subjetiva relaciona-se à percepção de fatos psíquicos inconscientes, proveniente do
sujeito. A objetiva é evocada pela percepção de fatos, pensamentos e sentimentos
subliminais relacionados ao objeto. Também se distingue em formas concretas ou
abstratas de acordo com o grau de participação da sensação. Enquanto a forma
concreta transmite percepções relacionadas à realidade das coisas, pois se trata de
um processo reativo proveniente dos fatos dados; a abstrata está voltada a transmitir
percepções relacionadas às ideias, necessitando de um elemento diretivo, uma
vontade ou intenção (JUNG, 1971/1991a, p. 431).
De acordo com Von Franz (2016, p. 52-55), a intuição funciona quando se
observam as coisas de longe, de maneira vaga, semicerrando os olhos, assim, é
possível captar o pressentimento proveniente do inconsciente. Quando se olha os
fatos muito de perto, ou as coisas com muita precisão, o foco estará nos fatos e o
pressentimento não surgirá. Por este motivo, os intuitivos apresentam tendência a
serem vagos e imprecisos, sendo sempre aqueles que inventam, mas geralmente não
tiram proveito de suas invenções. Mas, se conseguir alcançar o equilíbrio, poderá vir
a ser uma pessoa com capacidade em agregar coisas novas em todos os cantos do
mundo, pois a intuição é a função pela qual o indivíduo capta possibilidades. “A
intuição é, portanto, a capacidade de intuir o que ainda não é visível, possibilidades
futuras ou potencialidades ainda não realizadas” (VON FRANZ, 2016, p. 53).
Para Jung (1971/1991a, p. 348-349), a intuição é uma função da percepção
inconsciente representada na consciência, através de certa atitude de expectativa,
contemplação, penetração. Como se trata de um processo inconsciente, é difícil
alcançar conscientemente sua natureza. Enquanto atitude extrovertida, ela se volta
totalmente para objetos exteriores, assim, a expectativa, a contemplação e a
penetração, tornam-se processo ativo e criador que instiga o objeto. Ainda que a
intuição não seja orientada pelas sensações, estas são o seu ponto de partida e, na
atitude extrovertida, procura atingir a realidade mais forte, na qual se apresenta a vida
64
34
Nesta frase Jung faz menção ao profeta Isaías, ao predizer a vinda do mensageiro João Batista que
teria a incumbência de anunciar a chegada de Jesus, preparando-lhe o caminho. “Voz do que clama
no deserto: Preparai o caminho do Senhor” (Isaías 40,3). De acordo com o evangelho de Mateus 3,1-
4, João Batista apareceu pregando no deserto da Judéia. Usava vestes de pelos de camelo, um cinto
de couro e alimentava-se de gafanhotos e mel silvestre (Bíblia de Estudo da Reforma, 2017, p. 1543-
1544).
66
Uma experiência autêntica leva o indivíduo à sua função inferior, e esta pode
proporcionar uma ligação profunda com o inconsciente. Diante disso, Silveira (1981,
p. 55) afirma que, além de ser a ponte de união entre consciente e inconsciente,
representa um meio para restaurar conexões de vital importância na realidade
psíquica. Para Von Franz, (2016, p. 35), quando a função principal, junto com as
outras funções auxiliares, entra em equilíbrio com a função inferior, produz um estágio
mais ou menos do mesmo nível entre as duas camadas, onde nada é pensamento,
sentimento, percepção ou intuição. Então surge algo novo, isto é, uma atitude
completamente diferente e inédita em relação à vida. Ao exteriorizar sua visão,
Boehme produziu um sistema de realidade em relação a Deus e ao mal do mundo.
Baseado nesses fatos construiu toda uma filosofia voltada para o exterior, embora
68
pessoalmente esse tímido sapateiro fosse muito introvertido (VON FRANZ, 2016, p.
62).
O posicionamento teórico de Jung no que se refere ao indivíduo e sua
estrutura psíquica perpassa o consciente, atingindo as camadas mais arcaicas do
inconsciente. Nesse ínterim, apresentamos este arcabouço de conceitos, sempre
apontando para a relação destes com o fenômeno religioso. Ao elucidar os tipos e as
funções psíquicas, intencionamos apontar para as infinitas diferenças existentes entre
os seres humanos. Por isso, a apropriação do fenômeno religioso, uma vez que está
intrinsecamente ligado às funções psíquicas, é encontrado em extraordinária
diversidade. Entretanto, ainda que o fenômeno religioso venha se manifestar por meio
das funções psíquicas, a experiência em si é algo que transcende e, por isso, pode
não se submeter a meros conceitos teóricos.
69
35
Parece que aqui Jung faz referência à teoria de Freud e a sistematização dos processos mentais.
Para Freud, estes processos se dividem em: id, ego e superego. No id encontram-se as pulsões
inconscientes e os instintos que motivam o indivíduo, sendo primárias a pulsão sexual (libido) e a
exigência de prazer. Esta classificação foi mais tarde revisada na forma de duas classificações gerais
de instintos: instinto de vida (Eros) e instinto de morte (Tânatos). O ego lida com a realidade, sendo
que, a primeira realidade é a consciência do eu corporal. A tarefa primordial do ego é a autopreservação
e a busca de controle, não apenas do mundo exterior, mas também do mundo interior do id. Assim,
enquanto a principal meta do id é o prazer, a do ego é a segurança. O superego atua como mediador
entre o id e o ego. Ele traz consigo os padrões ideais aprendido com os pais e com a sociedade em
geral. Assim como o id, o superego representa o passado, enquanto o id contém as influências
hereditárias, o superego personifica a influência de outras pessoas. O ego, por sua vez, é determinado
pelas experiências exclusivas do próprio indivíduo (PALMER, 1997, p. 29-30).
71
De acordo com Dorst (2015, p. 20), a intuição de Jung presente em suas pesquisas,
demonstrava que ele estava “à frente de seu tempo” e, desse modo, sua obra se
constitui de abrangentes estudos empíricos, psicológicos, antropológicos e,
etnológicos. Através da leitura da obra de Jung, é possível ter acesso não apenas aos
relatos de suas pesquisas, como também ao conhecimento transmitido através das
experiências cotidianas, seus sentimentos e pensamentos.
[...] Esta África é inaudita! [...] perde-se o sentimento do próprio eu, que
parece dissolver-se nessa diversidade difícil de ser apreciada e ainda mais
descrita [...] um vaivém de túnicas vermelhas, brancas, amarelas, azuis,
marrons; turbantes brancos; fez36 vermelho uniforme; faces que vão do
branco e do amarelo claro até o negro de ébano; calças amarelas e vermelhas
provocam um ruído farfalhante enquanto os pés negros e nus se esgueiram
silenciosamente. De manhã, ergue-se o grande deus enchendo os dois
horizontes de júbilo e de poder; tudo o que vive lhe presta obediência. À noite,
a lua surge tão prateada, tão divinamente clara e luminosa que não é possível
duvidar de Astartea37[...] Na verdade, eu não sei o que a África me diz, mas
ela me fala. (JUNG, 1961/2006, p. 431-433).
36
Fez: Gorro; chapéu quadrangular sem abas.
37
Astartea: provém de Astarte, deusa sírio-fenícia identificada com Vênus.
72
38
O marabu seria o administrador dos bens dos pobres. Figura representada por um homem idoso que
possuía numerosos campos no oásis. Nesta ocasião, vários clãs vieram trabalhar para ele por dois dias
na preparação dos campos e abertura de canais de irrigação. Estavam também se preparando para
uma festa (JUNG, 1961/2006, p. 286).
73
Para mim, foi uma lição: essas pessoas vivem por seus afetos; são
conduzidos por eles. De um lado, sua consciência os orienta no espaço,
comunicando-lhes as impressões vindas de fora e, de outro lado, são
agitadas por pulsões e afetos de ordem interior. Mas isso, sem reflexão, o eu
é desprovido de qualquer autonomia. (JUNG, 1961/2006, p. 287).
Diante desta declaração, é possível observar que Jung faz uma análise sobre
como estas pessoas lidavam com as pulsões internas e os estímulos externos. E
indica que vivem e são conduzidos por seus afetos. De acordo com sua definição, o
afeto pode ser compreendido tanto como um estado psíquico de sentimento, como
um estado fisiológico das inervações. Entretanto, ambos exercem efeito “cumulativo
e recíproco um sobre o outro. Isto é, um componente da sensação alia-se ao
sentimento intensificando de modo que o afeto fica mais próximo das sensações e
essencialmente diferenciado do estado sentimental” (JUNG, 1971/1991a, p. 388).
Von Franz (2017, p. 41) relaciona esta função psíquica a indivíduos “cujo dom
e função especializada é sentir e relacionar-se com objetos externos de forma
concreta e prática”. A partir do relato descrito acima sobre o comportamento das
pessoas no oásis de Nefta, é possível perceber que lidam de maneira prática e
concreta não apenas no trabalho, mas também na devoção ao seu líder e
principalmente quando são alertadas para as preces, evidenciando, assim, a maneira
pelo qual se relacionam com o fenômeno religioso que seria através da função
psíquica sensação extrovertida.
A religiosidade pode ser identificada como um traço básico da natureza
humana e a força motriz da evolução. Ela se manifesta nas diferentes formas culturais
no mundo. Além disso, as diversas formas de manifestação religiosa se relacionam
39
Muezim: pregoeiro encarregado de anunciar, do alto dos minaretes (torre alta e fina das mesquitas),
a hora das preces obrigatórias dos mulçumanos.
74
40
A palavra “espiritualidade” como é usada hoje em dia não era muito utilizada na época de Jung.
“Religião” e “religiosidade” eram as designações estabelecidas. Assim quem procura pela palavra-
chave “espiritualidade” em passagens das obras completas de C.G. Jung, não encontra muita coisa
(DORST, 2015, p. 16).
41
Mungu: termo do dialeto swahili, utilizado para explicar um ato ritual, originado de uma raiz polinésica
equivalente a mana ou mulungu. Essa e outras palavras semelhantes designam um “poder” de
extraordinária eficácia e penetração, que poderíamos chamar de divino. Assim, a palavra mungu
equivale a Deus ou Alá (JUNG 1964/2008, p. 101).
75
Através dos rituais, o homem arcaico sentia-se seguro em seu mundo. Assim,
qualquer exceção que viesse impedir a regularidade desses acontecimentos
ordinários, seria interpretada como um presságio de acontecimentos adversos e
perigosos (JUNG, 1974/1993, p. 64). De acordo com Silveira (1984, p. 150), é possível
observar que os rituais religiosos surgiram a partir da necessidade dessa proteção,
pois “funcionam como anteparos entre o divino e o humano, isto é, entre o arquétipo
da imagem de Deus presente no inconsciente coletivo e o ego”.
Seu avô ainda sonhara. Mas desde que os brancos haviam chegado na
África, ninguém mais sonhava. Não havia mais necessidade de sonhos, pois
agora os ingleses sabiam tudo [...] Sua resposta mostrou-me que o medicine-
man perdera sua razão de ser. A voz divina que aconselha o clã tornara-se
inútil, pois os ingleses “sabiam mais”. (JUNG, 1961/2006, p. 311).
42
Neurose – Estado de desunião consigo mesmo, causado pela oposição entre as necessidades
instintivas e as exigências da cultura, entre os caprichos infantis, e a vontade de adaptação, entre os
deveres individuais e coletivos. A neurose é um sinal de parada para o indivíduo que está num caminho
falso, e um sinal de alarme que o induz a procurar um processo de cura pessoal (JUNG, 1961/2006, p.
491).
78
Ao viajar pela África, Jung revelou que buscava “encontrar um lugar psíquico
exterior ao europeu”. Ele acreditava que o seu desejo inconsciente seria encontrar em
si mesmo parte de sua personalidade que estava oculta. No entanto, pelo fato de ser
europeu, não concedia espaço a esse desejo, assim, essa parte se encontrava em
oposição inconsciente43. Em sua concepção, o europeu, por ser em grande parte
determinado pela razão, desconhece muito do que é humano. Em consequência
disso, a parte arcaica da personalidade fica condenada a uma existência
particularmente subterrânea (JUNG, 1961/2006, p. 290).
Para uma compreensão mais ampla em relação ao racionalismo europeu em
contraposição à mitologia africana, apresentaremos a ilustração do mito africano da
criação:
43
Ao falar sobre oposição inconsciente, é provável que Jung esteja se referindo à função psíquica
inferior.
79
pessoais e sociais, seria necessário ir além da razão europeia, pois a sabedoria mítica
da África mantém acesa uma chama que talvez ajude a iluminar o caminho (FORD,
1999, p. 44-45).
O homem que está em contato com a natureza, não sonha em ser dono da
criação, por isso está longe do particularismo humano. Ele faz parte da natureza como
um todo, sendo assim, não pensa que pode dominá-la. Seu esforço consiste apenas
em proteger-se contra os perigos do acaso. O homem direcionado pela razão, por sua
vez, esforça-se em descobrir o que as causas naturais podem lhe proporcionar para
conseguir “a chave do laboratório secreto da natureza”. Enquanto um acredita no sol,
o outro acredita no olho humano e, “se não sofrer do mal dos poetas ou não se
entregar a grandes reflexões”, vai procurar des-espiritualizar a natureza para tentar
dominá-la (JUNG, 1974/1993, p. 71-72).
O fenômeno religioso, observado por Jung entre esses nativos, apresenta-se
de forma natural e espontânea, sendo apreendido pelas sensações. Os rituais têm
uma conexão intrínseca entre o homem e a natureza, que está naturalmente embutido
na cultura e vivência cotidiana desses indivíduos.
Jung considera a alma como um fator autônomo e os enunciados religiosos
como uma espécie de confissão da alma, com suas raízes em processos
inconscientes e, consequentemente, transcendentes. Assim, cita o que diz Tertuliano
em sua obra De testimonio animae: “Estes testemunhos da alma quanto mais
verdadeiros, tanto mais simples; quanto mais simples, tanto mais vulgares; quanto
mais vulgares, tanto mais comuns; quanto mais comuns, mais naturais; quanto mais
naturais, tanto mais divinos” (TERTULIANO apud JUNG, 1971/2012c, p. 12-13).
Hilmam aponta para a importância dos mitos arcaicos na constituição psíquica
e religiosa do indivíduo trazendo a seguinte consideração:
Na vida comum, este nativo apresentava um grande domínio sobre si. Porém,
ao falar de suas concepções religiosas e como se relacionava com tais mistérios, era
tomado por uma emoção surpreendente. Ao tocar no essencial, ficava em silêncio ou
dizia de maneira evasiva. Às vezes seus olhos enchiam-se de lágrimas. Com
admiração, Jung constatava que as concepções religiosas daquelas pessoas não
estavam vinculadas às meras teorias, e sim, a fatos que remetiam importância e
significado como as realidades exteriores correspondentes, pois que teorias
arrancariam lágrimas de um homem? (JUNG, 1961/2006, p. 295-296).
Jung considera o fenômeno religioso uma atitude do espírito humano
caracterizado pela consideração e observação cuidadosa de certos fatores dinâmicos
que podem ser compreendidos como poderes ou potências (JUNG, 1971/2012a, p.
20). Esses fatores que agem sobre o estado geral do ser humano não estão
vinculados a algum credo ou instituição em particular, mas se relacionam a uma
81
44
Agostinho (354-430) formulou a concepção cristã de que Deus, por sua própria essência trina, é
criador de todos os seres, a partir de nada além dele e como consequência apenas de seu amor infinito.
[...] “Interroguei o céu, o sol, a Lua, as estrelas e disseram-me: Nós também não somos o Deus que
procuras... Já que não sois o meu Deus, falai-me do meu Deus, dizei-me, ao menos alguma coisa d’ele.
E exclamaram com alarido: Foi ele quem nos criou” (AGOSTINHO, 2004, p. 264).
45
Os estudos alquímicos de Jung encontram-se registrados mais precisamente nos volumes XII, XIII e
XIV das obras completas.
46
Gerardus Dorneus, alquimista discípulo de Paracelso. Viveu na Alemanha no início do século XVII.
82
47
Concretismo: conceito que remete a certa peculiaridade do pensamento e sentimento que representa
o contrário de abstração (JUNG, 1971/1991a, p. 400).
83
indignado com o que eles pensavam, o índio indicou o coração, dizendo: “nós
pensamos aqui” (JUNG, 1961/2006, p. 293).
Quando afirmou que os brancos são loucos por pensarem com a cabeça, pois,
segundo a concepção dos pueblos, nenhum homem perfeito faz isso, demonstrou
estarem exatamente na idade homérica48. De acordo com Jung, neste período
considerava-se o diafragma (phren=espírito, mente) como o centro das atividades
psíquicas. Assim, enquanto o conceito do branco pressupõe que os pensamentos
emergem da cabeça, para os pueblos pensamentos abstratos não existem, pois a
consciência deriva da intensidade dos sentimentos. Então, para eles, seria impossível
assimilar a ideia agostiniana de que Deus não é Sol e sim o criador do sol. Por não
conseguirem ultrapassar as percepções de suas sensações e de seus sentimentos,
consideravam que o pensamento se localizava no coração (JUNG, 1981/1999, p. 6).
É possível observar que a função sentimento aparece em primazia nas ideias
religiosas dos pueblos. De acordo com Hillman (1971/2016, p. 144), o sentimento
estabelece relações entre o sujeito e o objeto – “somos filhos de nosso Pai Sol”. Entre
o sujeito e os conteúdos de sua psique, na forma de valores – “graças à nossa religião
ajudamos diariamente nosso Pai atravessar o céu”. E entre o sujeito e a sua própria
subjetividade, na forma de uma carga emocional e de um sentido de espírito gerais –
“agimos assim não só por nós mesmos, mas pelo mundo inteiro”. “A função sentimento
desenvolvida é a razão do coração, que a razão da mente não compreende muito
bem” (HILLMAN, 1971/2016, p. 145)49.
As pesquisas psicológicas de Jung (1975/1994, p. 26), provando a existência
dos tipos psíquicos e a relação destes com as representações religiosas, abrem uma
possibilidade de acesso a conteúdos suscetíveis de serem experimentados. Diante
disso, quando Jung (1961/2006, p. 295) observou que os pueblos são extremamente
fechados, absolutamente inacessível no que diz respeito à religião, é possível
pressupor que estes indivíduos relacionavam-se com o fenômeno religioso através da
função psíquica sentimento introvertido.
Ao conceituar tal tipo psicológico, o autor o relaciona a indivíduos que
demonstram ser sempre frios e reservados. De certo modo, quando se faz um
48
O período homérico refere-se ao período da história da Grécia antiga que começa com a invasão
dórica e o final da civilização Micênica, por volta de 1150 a.C., e que termina com a ascensão das
cidades-estados gregas, cerca de 800 a.C.
49
Nesta frase Hillman faz alusão à frase mais conhecida do filósofo Blaise Pascal (1623-1662): “o
coração tem razões que a razão desconhece” (CUNHA; FLORIDO/2005, p. 129).
84
50
De acordo com Aniela Jaffé (responsável pela organização e edição da obra Memórias, Sonhos e
Reflexões), Jung relata as impressões de sua viagem em dois estudos – The Dreamlike World of Índia
e What Índia Can Teach Us – Estes relatos foram publicados em inglês logo após seu regresso, na
revista Asia (Nova York, janeiro e fevereiro de 1939). Estes dois estudos são encontrados no volume
10 das obras completas – Psicologia em Transição (1974), p. 477-491.
86
pretende atingir a perfeição moral, e sim o estado de nirdvandva51. Este estado que é
obtido pela meditação, leva-o a sentir-se fora do bem e do mal, pois ele procura se
livrar da natureza e alcançar o estado do vazio, ou o estado sem imagens (JUNG,
1961/2006, p. 323).
Considerado como uma das religiões mais antigas, o hinduísmo não possui
um fundador oficial. Nasceu de uma tradição milenar, cresceu e se desenvolveu no
decorrer dos últimos quatro mil anos, mais especificamente na Índia, chegando a
atingir outros lugares do mundo. Tem como característica uma grande variedade de
deuses e seitas, entretanto, dentro desta diversidade existe uma unidade – todos os
deuses e toda criação são parte de um Ser Universal. Brahman, a força incognoscível,
origem de toda criação, realidade última para os hindus. Brahman não é visto como
um deus, mas como a alma do universo, a essência da vida e a eterna unidade
cósmica (CAMPOS NETO, 2009, p. 73).
Dentro das centenas de deuses e deusas que integram o hinduísmo, três
deles são os mais populares e dotados de grande significado. Eles representam a
trindade (trimurti) composta por: Brahma o criador; Shiva o destruidor; Vishnu o
protetor. Este último representa o mediador dos dois primeiros, pois cabe a ele a
função de preservar. Enquanto Brahma e Shiva representam forças opostas, Vishnu
representa o equilíbrio. Essas divindades são de grande importância cósmica, pois
existem numa escala de tempo diferenciada da nossa (CAMPOS NETO, 2009, p. 74).
O empenho dos adeptos do hinduísmo consiste em se libertar do samskara
(ciclo de morte e renascimento), e atingir o moksha (tornar-se semelhante a Brahman).
Para chegar a esse encontro com moksha, existem vários caminhos para serem
seguidos, sendo que cada um deles exige renúncia do eu, dos sentidos e demais
coisas terrenas (CAMPOS NETO, 2009, p. 79-80).
51
O termo nirdvandva vem do sânscrito e quer dizer ausência de conflito ou indiferença aos sentimentos
opostos.
88
52
Hatha-yoga é o sistema de yoga introduzido por Yogui Swatmarama no seu livro Hatha Yoga
Pradipika, aproximadamente no século XV na Índia. “Hatha” – origina-se do sânscrito e quer dizer: “há”
– sol e “tha” – lua. Este método de yoga tem o objetivo de unir os pares opostos, como sol
(representação do positivo) e a lua (representação do negativo).
53
Jung denomina aspectos como fome, sexualidade, ação reflexão e ação de fatores dinâmicos do
psiquismo, devido à capacidade destes de transitarem como fatores tanto psíquicos quanto biológicos.
Uma nova classificação é proposta por Jung “semi physiological modalities” (JUNG, apud HENRIQUES,
2015, p. 21). Nesta categoria (modalidades semifisiológicas) entrariam a idade, as disposições
hereditárias e o sexo, no sentido de gênero. Em seu exemplo para justificar tal classificação Jung diz
que a masculinidade anatômica e a masculinidade psíquica são grandezas diferentes, assim como a
idade fisiológica e a psicológica (HENRIQUES, 2015, p. 21).
54
Um pandit ou pandita seria um estudioso, um professor, em especial um profundo conhecedor de
sânscrito. O sânscrito faz parte do conjunto de 23 línguas oficiais da Índia, porque tem importante uso
litúrgico no hinduísmo, budismo e jaínismo.
89
No estudo publicado sob o título The Dreamlike World of Índia, em que Jung
relata suas impressões sobre a Índia, além de apresentar um panorama em relação à
cultura, incluindo os costumes, a arquitetura, os templos e os diversos seguimentos
religiosos, ele aponta para um expressivo símbolo entre os orientais:
Nas mesmas planícies do norte da Índia, em torno de dois mil anos antes do
tempo dos mongóis, o espírito da Índia deu à luz o seu fruto mais maduro, a
verdadeira essência de uma vida, o perfeito senhor Buda. Não muito longe
de Agra e Délhi está a colina de Sânchi com sua famosa stupa. Estivemos lá
em uma fresca manhã. A luz intensa e a extraordinária claridade do ar
deixavam ver todos os detalhes. No topo de uma colina rochosa, com vista
panorâmica sobre as planícies da Índia, vê-se um enorme globo de alvenaria,
55
“O enraizamento do eu no mundo da consciência e o fortalecimento da consciência por uma
adaptação o mais adequada possível, são de extrema importância. Neste sentido, determinadas
virtudes como a atenção, a concensiosidade, a paciência, sob o ponto de vista moral, e a exata
consideração dos sintomas do inconsciente e a autocrítica objetiva, do ponto de vista intelectual, são
também sumamente importantes” (JUNG, 1976/1998, p. 23). “Na esfera psíquica, a vontade influi na
função em virtude de que ela própria ser uma forma de energia que pode dominar ou pelo menos
influenciar outra forma. Nesta esfera, que eu defino como psíquica, a vontade é modificada, em última
análise pelos instintos – não, porém de modo absoluto, pois do contrário, nem seria vontade, que, por
definição, deve ter certa liberdade de escolha. A vontade implica certa quantidade de energia que fica
livremente à disposição da consciência. A pura instintividade não permite pensar em consciência, nem
precisa de consciência, mas, por causa de sua liberdade de escolha empírica, a vontade precisa de
uma instância superior, algo semelhante a uma consciência de si-mesmo para modificar a função”
(JUNG, 1971/1991b p. 189,190).
92
É provável que Siddharta Gautama tenha vivido entre 622 e 543 a.C. Filho do
monarca Shuddhodhana e Maha-Maya, cresceu protegido pelo pai dentro dos muros
de seu palácio, em uma vida luxuosa como príncipe herdeiro. Sem conhecer as
misérias do mundo externo, sentiu curiosidade em saber como era a vida fora dos
muros do palácio. Assim, aos vinte e nove anos, por ocasião de uma festa, consegue
sair em companhia do primo Channa. Entretanto, ficou atormentado ao avistar um
56
Maha-Parinibbana-Sutta: escritura pertencente ao budismo. Diz respeito ao fim da vida de Gautama.
57
Tathagata: é um título para um Buda, alguém que realizou a iluminação.
58
Estes monumentos foram fielmente restaurados pelos ingleses.
93
59
O encontro de Siddharta com a iluminação encontra-se registrados nos ensinamentos de Buda, p.
38.
60
Os ensinamentos de Buda espalharam-se por toda a Índia e, depois de a expedição de Alexandre O
Grande, facilitar aos gregos a entrada neste país, tais ensinamentos se tornaram razoavelmente
conhecidos nas regiões mais ocidentais do mundo helenístico. Chegou à China pela primeira vez no
ano de 65, através de Tsi-Yin por ordem do imperador Ming-Ti e no Japão foi introduzido no ano de
538, durante o reinado do imperador Knmei (REDYSON, 2014, p. 270-273).
94
61
Sâmadhi – última etapa do sistema, quando se atingem a suspensão e compreensão da existência
e a comunhão com o universo.
62
Os sermões de Buda foram reunidos em um cânone chamado de Tipitaka em páli ou Tripitaka em
sânscrito. Nele contém os ensinamentos originais de Buda e estão divididos em três grupos: Vinaya
Pitaka (Livros de Disciplina), Sutta Pitaka (Livros de Doutrina) e Abhidhama (Livros Psicológicos)
(REDYSON, 2014, p. 267).
63
Nirvana – suspensão definitiva do sofrimento humano alcançado por meio da supressão do desejo e
da consciência individual.
96
A postura do pai diante da religião foi interpretada pelo jovem Jung como
“pobreza”. E a sua própria situação diante desta questão simplesmente
autodenominou como “tragédia”, mas uma tragédia que o levou a reconhecer a
importância da religião. A falta de esclarecimento por parte de seu pai estimulou-o à
leitura e aos estudos, não apenas da Bíblia e do catecismo, mas de outras obras,
como a filosofia, pelas quais demonstrou grande interesse. As leituras objetivavam
entender e relacionar o fenômeno religioso com as suas próprias experiências
(MACHÓN, 2016, p. 28-32).
A questão relacionada à trindade tornou-se alvo de profunda reflexão nos
estudos de Jung, entretanto não abordaremos esta discussão nesta pesquisa.
Pretendemos neste tópico apenas apontar para o tipo psíquico do homem ocidental,
e sua forma de se apropriar do fenômeno religioso. Para tanto, nos apropriaremos do
cristianismo, uma das formas de religião no Ocidente.
Entre os ocidentais, algo só se torna convincente quando constatado através
de fatos externos. Acredita-se na observação e na pesquisa da natureza, que são
executadas da maneira mais exata possível. A verdade precisa estar de acordo com
fatos objetivos, caso contrário, será uma verdade meramente subjetiva (JUNG,
1971/2013, p. 24). Pelo que parece, a realidade exterior, com sua corporeidade e seu
peso, exerce domínio sobre o espírito ocidental com força e intensidade. Por isso, ele
procura elevar-se acima do mundo (JUNG, 1971/2013, p. 113).
Para Jung, “o ponto de vista religioso representa sempre a atitude psicológica
e seus preconceitos específicos” (JUNG, 1971/2013, p. 18). No caso do Ocidente,
considera-se que o estilo é a extroversão, e o homem ocidental também é extrovertido
em sua atitude religiosa. A grande potência é o totalmente outro, absolutamente
perfeito e exterior. Buscam alcançar seu favor mediante o temor, a penitência, as
promessas, a submissão, a auto-humilhação, as boas obras e os louvores (JUNG,
98
64
Na missa romana a consagração constitui o ponto culminante, o momento em que se dá a
transubstanciação ou transformação da substância do pão e do vinho no corpo e no sangue do Senhor.
As fórmulas da consagração são a consagração do pão e a consagração do vinho (JUNG, 1971/2012b,
p. 24).
100
vez que representa a tese, a antítese e a síntese em todos os aspectos (JUNG, 2015,
p. 133-134).
[...] Esta cruz [foi chamada de] Logos, Nous, Jesus, Cristo, Porta, Caminho,
Pão, Semente, Ressurreição, Filho, Pai, Pneuma, Vida, Verdade, Fé, Graça.
Isto em relação aos homens; mas, considerada em si mesma e segundo o
vosso modo de falar, ela é a fixação dos limites do universo e a consolidação
daquilo que é instável [...] a harmonia da sabedoria ou, mais precisamente,
da sabedoria na harmonia. Mas à direita e à esquerda há (lugares), forças,
violências, dominações, demônios, energias, ameaças, explosões de ira,
diabo, satanás e a raiz mais profunda de onde brotou a natureza de tudo o
65
O Evangelho de Atos de João, também conhecido como Evangelho Gnóstico de João é reprovado
pelas igrejas católicas e protestantes por não ser considerado canônico.
101
que existe. Foi a cruz, portanto, que uniu a si todo o universo, por meio da
palavra, e fixou os limites do reino criado e em seguida, como unidade que é,
fez brotar tudo o que existe (JUNG, 1971/2012b, p. 101-102).
66
O véu do Santuário ou Santo dos Santos. Cortina que era utilizada no templo de Jerusalém para
separar o local onde o sumo sacerdote entrava uma vez a cada ano, no dia da Expiação, para borrifar
o sangue do sacrifício. De acordo com o texto bíblico, quando Cristo expirou, essa cortina rasgou-se
de alto a baixo (Mc 15,37), simbolizando que a comunhão entre Deus e o homem foi restituída por meio
de Cristo (Bíblia de Estudo da Reforma, 2017, p. 1665).
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67
O apóstolo Paulo cresceu como Saulo de Tarso, na Cilícia (At 9.11). Seu pai era um judeu da diáspora
e um homem livre na sociedade romana (At 16.37-38;22.25-29). Aprendeu a arte de fabricar tendas (At
18,3), mas também estudou as Escrituras como fariseu, em Jerusalém, aos pés do rabino Gamaliel, o
Ancião (At 22.3). Gamaliel era neto do rabino Hillel, conhecido por ideias avançadas em relação aos
prosélitos e por fundar uma importante escola de pensamento judaico, Beth Hillel (cf. Bíblia de Estudo
da Reforma, 2017, p. 1878).
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Escritura sagrada dos judeus.
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Paulo relata sobre seu passado judeu em Filipenses 3.5: “Circuncidado ao oitavo dia, da raça de
Israel, da tribo de Benjamim, hebreu, filho de hebreus, quanto à (compreensão da) lei, fariseu, quanto
ao zelo, perseguidor da Igreja, quanto à justiça que há na lei, irrepreensível”. Como seus antepassados,
ele se sentia também na diáspora comprometido com as tradições de sua terra-mãe Palestina. Em
Gálatas 1.14, Paulo enfatiza seu zelo particular pela observância das tradições herdadas pelos pais:
“No judaísmo, eu sobressaía a muitos compatriotas da minha idade, por ser extremamente zeloso por
minhas tradições paternas” (SCHNELLE, 2010, p. 70-71).
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[...] Na verdade, a mim me parecia que muitas coisas devia eu praticar contra
o nome de Jesus, o Nazareno, e assim procedi em Jerusalém. Havendo eu
recebido autorização dos principais sacerdotes, encerrei muitos dos santos
nas prisões e contra estes dava o meu voto, quando os matavam. Muitas
vezes, os castiguei por todas as sinagogas, obrigando-os até a blasfemar. E
demasiadamente enfurecido contra eles, mesmo por cidades estranhas, os
perseguia.
70
Paulo era um cidadão do Império Romano, criou-se numa importante metrópole cultural do Império,
submeteu-se a uma intensiva formação farisaica (possivelmente em Jerusalém). Sendo um judeu da
diáspora e fariseu de formação profissional, ele viveu de acordo com a Torá. Ao mesmo tempo, sendo
um cidadão da polis de Tarso, que falava grego e possuía a cidadania romana, não estava isento da
educação e do espírito de seu tempo (SCHNELLE, 2010, p. 92).
71
Líder da religião judaica.
105
Os homens que com ele estavam ouviram a voz, mas não viram ninguém.
Então pararam e ficaram emudecidos em êxtase. Saulo, que havia caído, levantou-
se, mas não conseguia ver. Precisou, então, ser conduzido até Damasco, porque a
voz lhe disse que deveria entrar na cidade e lá encontraria alguém que lhe diria o
que fazer. Ficou três dias sem comer e beber e sem enxergar.
Para Otto, quando o indivíduo passa por uma experiência de caráter
numinoso, é tomado por um sentimento confesso de dependência, que ele
denomina de sentimento de criatura72 [...] “o sentimento da criatura que afunda e
desvanece em sua nulidade perante o que está acima de toda criatura” (OTTO,
1917/2017, p. 41). Gerardus van der Leeuw (1964, p. 651-652) aponta que a atitude
do homem diante dessa experiência é, em princípio, um estranhamento que Otto
propôs identificar como numinoso e, posteriormente, uma fé. Jung enfatiza que a fé
implica, potencialmente, no sacrifício do intelecto, mas nunca no sacrifício de
sentimentos (JUNG, 1971/2013, p. 13).
Após a experiência no caminho de Damasco, Saulo passou por momentos
difíceis. No entanto, recebeu a visita de um discípulo chamado Ananias, que através
de uma visão recebeu a incumbência de levar a Saulo ajuda espiritual. Este discípulo,
ainda que temeroso, pois conhecia a fama de Saulo como perseguidor dos cristãos,
foi ao lugar em que estava, impôs sobre ele as mãos e disse: “Saulo, irmão, o Senhor
me enviou, a saber, o próprio Jesus que te apareceu no caminho por onde vinhas,
para que recuperes a vista e fiques cheio do Espírito Santo” (At 9.17). Imediatamente,
caíram como que escamas de seus olhos, e recuperou a visão, depois se alimentou e
sentiu-se fortalecido (At 9.17-19).
Quando conteúdos inconscientes começam a se tornarem conscientes, as
escamas dos olhos começam a cair e a pessoa passa a reconhecer aspectos de sua
personalidade que, por várias razões, seria preferível não olhar muito de perto. Assim,
o indivíduo entra em um período de silêncio e afastamento, começando o processo
72
“O sentimento de criatura é de alguma maneira um sentimento de depreciação diante de uma
realidade majestosa. É o estado de alma que se sente finito, aniquilado diante do objeto numinoso que
é de tal natureza que cativa e emudece a alma humana” (BIRCK, 1993, p. 29).
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Os profetas do antigo testamento anunciavam a vinda de um de um messias que viria restaurar o
povo de Israel. O povo judeu aguarda até hoje por esse messias prometido.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
As diversas culturas, com distintos conteúdos religiosos pelos quais Jung teve
acesso, expressam atitudes espontâneas e autônomas representadas por crenças e
devoções cotidianas que constituem o homem religioso. A dinâmica funcional
parcialmente consciente da psique leva-nos à compreensão de que a religião e a
experiência religiosa fundamentam a experiência psíquica. Quando temos acesso aos
elementos autônomos naturais e primordiais, temos acesso ao conhecimento que é
determinado pelo transcendente. Ao apropriarmo-nos das experiências descritas por
Jung, encontramos, através de suas narrativas, a possibilidade de conhecer diferentes
modos de apreensão do fenômeno religioso.
O arcabouço teórico apresentado nesta pesquisa proporcionou a
compreensão desta relação entre fenômeno religioso e fenômeno psíquico. Assim, os
109
por sua vez, direciona o indivíduo em suas atitudes perante a vida. Sua proposta
consiste em seguir o caminho pelo qual o indivíduo alcançará a perfeição da
sabedoria, aproximando-se da iluminação. Em ambas as vertentes, a função intuição
entra em evidência, pois, neste caso, não se atenta para os fatos e, sim, para as
possibilidades.
Entre os ocidentais a realidade exterior atua com força e intensidade. Algo se
torna convincente somente quando constatado através de fatos externos, pois,
geralmente, são direcionados pela intelectualidade e fatos objetivos, ou seja, pelo
pensamento e extroversão. Podemos então considerar que o estilo do Ocidente é a
extroversão e sua principal característica é buscar a elevação. Apresentamos o
cristianismo enquanto uma de suas vertentes religiosas, apontando que, neste caso,
o homem ocidental também é extrovertido em sua atitude religiosa, pois a intensidade
do processo psíquico volta-se para fora, porém, é a função sentimento que ganha
primazia neste caso. Através desta função, apropriam-se dos símbolos, ritos e
dogmas encontrados nas instituições religiosas que correspondem aos arquétipos do
inconsciente coletivo. Assim, conseguem lidar e conferir expressão à psique e suas
exigências.
Observamos que em algumas das culturas aqui representadas, os hábitos
culturais são bem arcaicos e o fenômeno religioso se apresenta de maneira natural,
numa relação intrínseca entre o homem e a natureza. Entretanto, Jung constatou que
não existe nenhuma indicação de que o homem arcaico pense, sinta ou perceba de
maneira diferente do contemporâneo. O que existe são culturas diferentes com
pressupostos diferentes (JUNG, 1974/1993, p. 60-61). Em cada indivíduo existe uma
linguagem comum, baseada em experiências idênticas e arquetípicas. Por isso, o
campo da realidade psíquica imanente a cada um transcende as diferenças pessoais,
independente de pressupostos culturais, religiosos e étnico raciais (HILLMAN, 1984,
p. 69).
Vale ressaltar que, ainda que o fenômeno religioso venha se manifestar por
meio das funções psíquicas, a experiência religiosa em si é algo que transcende e,
por isso, pode não se submeter a meros conceitos teóricos. Uma experiência autêntica
leva o indivíduo à sua função psíquica inferior ou inconsciente. Nisso consiste a ponte
entre consciente e inconsciente e o meio para restaurar conexões de vital importância
na realidade psíquica (SILVEIRA, 1981, p.55). Quando a principal função psíquica do
indivíduo junto às funções auxiliares entra em equilíbrio com a função inferior, nada
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REFERÊNCIAS: