Untitled
Untitled
Untitled
2 — Exílio
©2004 Wizards of the Coast, LLC. Todos os direitos reservados.
Dungeons & Dragons, D&D, Forgotten Realms, Wizards of the
Coast, The Legend
of Drizzt e seus respectivos logos são marcas registradas de
Wizards of the Coast, LLC.
CRÉDITOS
Título Original: The Legend of Drizzt, Book 2: Exile
Tradução: Carine Ribeiro
Revisão: Elisa Guimarães e Rogerio Saladino
Diagramação: Guilherme Dei Svaldi e Samir Machado de Machado
Ilustrações da Capa: Todd Lockwood
Ilustrações do Miolo: Dora Lauer e Walter Pax
Conversão para e-book: Vinicius Mendes
Editor-Chefe: Guilherme Dei Svaldi
Rua Coronel Genuíno, 209 • Porto Alegre, RS • CEP 90010-350 •
Tel (51) 3391-0289 • [email protected] •
www.jamboeditora.com.br
Todos os direitos desta edição reservados à Jambô Editora. É
proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer meios
existentes ou que venham a ser criados, sem autorização prévia,
por escrito, da editora.
1ª edição: dezembro de 2017
Para Diane,
com todo meu amor
Dramatis personae
Alton Hun’ett
Um mago da Casa Hun’ett.
Belwar Dissengulp
Um svirfneblin que teve as mãos arrancadas por Dinin em uma
batalha anterior contra os drow.
Lajota
Um supervisor de escavações svirfneblin.
Brister Fendlestick
Um mago humano que passou a viver no Subterrâneo.
Bruck
Um chefe goblin.
Conselheiro Firble
O chefe da segurança secreta em Gruta das Pedras Preciosas.
Dinin Do’Urden
Primogênito da Casa Do’Urden, irmão mais velho de Drizzt.
Drizzt Do’Urden
Filho de Matriarca Malícia, um guerreiro drow de habilidade
excepcional.
El-Viddinvelp
Devorador de mentes companheiro dos Baenre.
Guenhwyvar
Uma pantera negra evocada por Drizzt a partir de uma estatueta
de ônix.
Jarlaxle
Líder da Bregan D’aerthe, uma guilda mercenária drow.
Rei Schnicktick
O rei svirfneblin de Gruta das Pedras Preciosas.
Krieger
Um mestre de escavações svirfneblin.
Lolth
A Rainha do Fosso das Teias Demoníacas, principal divindade
dos elfos negros.
Matriarca Baenre
Matriarca da Casa Baenre e figura mais poderosa de toda
Menzoberranzan.
Rizzen
Patrono da Casa Do’Urden.
Seldig
Um jovem svirfneblin com planos de ser um mineiro de
expedição.
Vierna Do’Urden
Segunda filha de Matriarca Malícia.
Prelúdio
O MONSTRO SE ARRASTAVA pelos corredores silenciosos do
Subterrâneo, suas oito patas escamosas ocasionalmente raspando
contra a pedra. A criatura não se repreendia pelos próprios sons que
ecoavam, temendo que seu ruído fosse revelador. Tampouco corria
em busca de cobertura, esperando o ataque de outro predador. A
razão disso era que, mesmo nos perigos do Subterrâneo, tal
monstro conhecia apenas a segurança, confiante em sua
capacidade de derrotar qualquer inimigo. Seu hálito exalava um
veneno mortal, as pontas duras de suas garras escavavam sulcos
profundos em pedra sólida e as fileiras de seus dentes afiados como
lança, que se alinhavam em sua boca perversa, podiam rasgar as
couraças mais espessas. Mas o pior de tudo era o olhar do monstro;
o olhar de um basilisco poderia transformar qualquer coisa viva no
qual pousasse em pedra sólida.
Tal criatura terrível e enorme estava entre as mais incríveis do
seu tipo. Era por isso que não conhecia o medo.
O caçador viu o basilisco passar, como já havia observado
naquele mesmo dia. O monstro de oito patas era o intruso ali,
entrando no domínio do caçador. Ele havia visto o basilisco matar
vários de seus rothé — as criaturas semelhantes a gado da qual se
alimentava — com seu hálito venenoso, e o resto do rebanho havia
fugido cegamente pelos túneis sem fim, para talvez nunca mais
voltar.
O caçador estava com raiva.
Ele agora observava enquanto o monstro atravessava a
passagem estreita, exatamente a rota que o caçador havia
suspeitado que tomaria. Então, deslizou suas armas de suas
bainhas, sentindo sua confiança crescer, como sempre, no momento
em que sentiu seu equilíbrio perfeito pesando em suas mãos. O
caçador as possuíra desde a sua infância, e mesmo depois de
quase três décadas de uso constante, elas apresentavam sinais
mínimos de desgaste. Agora seriam testadas novamente.
O caçador guardou novamente suas armas e esperou pelo som
que o chamaria à ação.
Um grunhido gutural parou o basilisco no meio de seu caminho.
O monstro espiou com curiosidade, embora seus olhos mal
pudessem enxergar além de uns poucos metros. Mais uma vez
ouviu-se grunhido, e o basilisco se abaixou, esperando que o
desafiante, sua próxima vítima, surgisse para morrer.
Logo atrás, o caçador saiu de seu esconderijo, correndo pela
lateral da parede, apoiando-se nas pequenas rachaduras do
corredor. Em sua piwafwi, seu manto mágico, ele ficou invisível
contra a pedra, e, com seus movimentos ágeis e treinados, não
emitiu nenhum som.
Ele vinha impossivelmente rápido, impossivelmente silencioso.
O rugido resoou novamente vindo de algum lugar à frente do
basilisco, mas não se aproximou mais. O monstro, impaciente,
avançou, ansioso para matar. Quando o basilisco cruzou uma
arcada baixa, um globo de escuridão absoluta envolveu sua cabeça
e a criatura repentinamente parou e deu um passo para trás, como o
caçador sabia que faria.
O caçador estava sobre a criatura em uma fração de segundo.
Ele saltou da parede da passagem, executando três ações
separadas antes de chegar onde pretendia. Primeiro lançou um
feitiço simples, que demarcava a cabeça do basilisco em chamas
brilhantes, azuis e roxas. Em seguida, puxou o capuz sobre seu
rosto, uma vez que não precisaria de seus olhos na batalha, e sabia
que, contra um basilisco, um olhar mal direcionado só poderia
condená-lo. Então, sacando suas cimitarras mortais, pousou nas
costas do monstro e escalou suas escamas até chegar sobre sua
cabeça.
O basilisco reagiu assim que as chamas dançantes cercaram
sua cabeça. Elas não queimavam, mas o contorno tornava o
monstro um alvo fácil. O basilisco girou para trás, mas antes que
sua cabeça tivesse completado metade dessa volta, a primeira
cimitarra mergulhou em um de seus olhos. A criatura recuou e
debateu-se, exalando seu hálito nocivo e sacudindo sua cabeça
como um chicote.
O caçador foi mais rápido. Ele ficou atrás da garganta, fora do
caminho da morte. Sua segunda cimitarra encontrou o outro olho do
basilisco, e só então o caçador liberou sua fúria.
O basilisco era o intruso; matara seu rothé. Uma saraivada de
golpes selvagens atingiu a cabeça encouraçada do monstro,
arrancou suas escamas e mergulhou até encontrar a carne que
estava abaixo delas.
O basilisco entendeu o perigo que corria, mas ainda acreditava
que poderia vencer. Ele sempre vencia. Se pudesse ao menos
soprar seu hálito venenoso sobre o caçador furioso.
O segundo inimigo, o inimigo felino que grunhia, saltou então
sobre o basilisco, em direção à garganta delineada pelas chamas,
sem medo. A grande gata travou e sequer notou os vapores
venenosos, afinal, era uma fera mágica e, como tal, imune a tais
ataques. As garras da pantera cavaram linhas profundas nas
gengivas do basilisco, fazendo o monstro beber de seu próprio
sangue.
Por detrás da enorme cabeça, o caçador atacava de novo e de
novo, por diversas vezes, e continuava a atacar, incessante.
Selvagemente, cruelmente, as cimitarras se chocavam contra
armadura escamosa, através da carne e através do crânio, enviando
o basilisco na direção da escuridão da morte.
Muito tempo depois que o monstro ficou finalmente imóvel, o
golpe das cimitarras ensanguentadas diminuiu.
O caçador afastou seu capuz e inspecionou a pilha quebrada de
sanguinolência a seus pés e as manchas quentes de sangue em
suas lâminas. Ele levantou suas cimitarras gotejantes e proclamou
sua vitória com um grito de exultação primitiva.
Ele era o caçador e aquela era sua casa!
Quando acabou de descarregar toda a sua raiva naquele grito,
no entanto, o caçador olhou para sua companheira e ficou
envergonhado. Os olhos redondos da pantera o julgavam, mesmo
que a pantera não o fizesse. A gata era a única ligação do caçador
com seu passado, com a civilização que um dia ele conhecera.
— Venha, Guenhwyvar — ele sussurrou enquanto deslizava as
cimitarras de volta às bainhas. Ele se alegrou com o som das
palavras enquanto as falava. Era a única voz que havia ouvido
durante uma década. Mas toda vez que falava agora, as palavras
pareciam mais estranhas e chegavam a ele com dificuldade.
Será que ele também perderia essa habilidade, da mesma forma
que havia perdido os outros aspectos de sua existência anterior?
Isso era o que o caçador mais temia, uma vez que, sem sua voz,
não poderia invocar a pantera.
Então realmente estaria sozinho.
Descendo os corredores silenciosos do Subterrâneo, seguiam o
caçador e sua gata, sem emitir um ruído, sem perturbar nenhum
escombro. Juntos, conheceram os perigos daquele mundo
silencioso. Juntos, aprenderam a sobreviver. Apesar da vitória,
porém, o caçador não ostentava nenhum sorriso hoje. Ele não temia
nenhum inimigo, mas já não estava certo se sua coragem provinha
de sua confiança ou da apatia quanto a viver.
Talvez sobreviver não fosse o suficiente.
PARTE 1
O Caçador
LEMBRO-ME VIVIDAMENTE do dia em que me afastei da
cidade em que nasci, a cidade do meu povo. Todo o Subterrâneo
estava diante de mim, uma vida de aventura e empolgação,
possibilidades que faziam meu coração flutuar. Mais do que isso,
porém, deixei Menzoberranzan com a crença de que poderia
finalmente viver minha vida de acordo com meus princípios. Eu tinha
Guenhwyvar ao meu lado e minhas cimitarras presas ao cinto que
levava nos meus quadris. Meu futuro pertencia apenas a mim.
Mas aquele drow, o jovem Drizzt Do’Urden que saiu de
Menzoberranzan naquele dia infeliz, mal chegando a quarta década
de vida, não conseguia entender a verdade do tempo, de como sua
passagem parecia se arrastar quando os momentos não eram
compartilhados com os outros. Na minha exuberância jovial,
aguardava ansiosamente os vários séculos de vida que tinha a
minha frente.
Mas como medir séculos quando uma única hora parece um dia
e um único dia parece um ano?
Além das cidades do Subterrâneo, há comida para aqueles que
sabem como encontrá-la e segurança para aqueles que sabem se
esconder. Mais do que qualquer outra coisa, porém, além das
cidades do Subterrâneo, há solidão.
Quando me tornei uma criatura dos túneis vazios, a
sobrevivência tornou-se mais fácil e mais difícil ao mesmo tempo.
Ganhei as habilidades físicas e a experiência necessárias para
viver. Poderia derrotar quase qualquer coisa que vagasse em meus
domínios, e poderia fugir ou me esconder dos poucos monstros que
não pudesse derrotar. No entanto, não demorou muito para eu
descobrir um inimigo que não conseguia derrotar, do qual não
conseguia fugir. Ele me seguia onde quer que eu fosse — na
verdade, quanto mais eu corresse, mais ele fechava seu cerco ao
meu redor. Meu inimigo era a solidão, o interminável silêncio dos
corredores abafados.
Voltando meu olhar para essa época, nesses muitos anos que se
passaram, eu me vejo espantado e consternado com as mudanças
que sofri sob essa existência. A própria identidade de cada
raciocínio é definida pela linguagem, a comunicação, entre um ser e
os outros a seu redor. Sem essa ligação, eu estava perdido. Quando
eu deixei Menzoberranzan, determinei que minha vida seria
baseada em princípios, minha força aderindo às crenças inflexíveis.
No entanto, depois de apenas alguns meses sozinho no
Subterrâneo, o único propósito de minha existência era a
sobrevivência. Eu havia me tornado uma criatura de instinto, cálculo
e astúcia, mas sem pensar, sem usar minha mente para nada além
de planejar a próxima morte.
Guenhwyvar me salvou, creio eu. A mesma companheira que me
salvou por tantas vezes da morte nas garras de monstros
incontáveis me resgatou de uma morte pelo vazio — menos
dramática, talvez, mas não menos fatal. Eu me encontrei vivendo
por aqueles momentos em que a gata podia caminhar ao meu lado,
quando eu tinha outra criatura viva para ouvir minhas palavras, por
mais enferrujadas que estivessem. Além de todos os outros valores,
Guenhwyvar tornou-se meu relógio, pois sabia que a gata poderia
surgir do plano astral por metade de um dia todos os dias.
Só depois de minha provação ter terminado percebi o quão
crítico aquele período de tempo realmente era. Sem Guenhwyvar,
não teria encontrado a determinação para continuar. Eu nunca teria
mantido as forças para continuar sobrevivendo.
Mesmo quando Guenhwyvar estava ao meu lado, me via cada
vez mais e mais ambivalente em relação à luta. Eu estava
secretamente esperando que algum morador do Subterrâneo se
mostrasse mais forte do que eu. A dor das presas ou das garras
poderia ser maior do que a dor do vazio e do silêncio?
Eu acho que não.
— Drizzt Do’Urden
CAPÍTULO 1
Presente de Aniversário
MATRIARCA MALÍCIA DO’URDEN se mexia inquieta no trono
de pedra na pequena e escura antessala da grande capela da Casa
Do’Urden.
Para os elfos negros, que mediam a passagem do tempo em
décadas, aquele era um dia a ser marcado nos anais da casa de
Malícia, o décimo aniversário do conflito secreto em curso entre a
família Do’Urden e a Casa Hun’ett. Matriarca Malícia, que jamais
perderia uma comemoração, tinha um presente especial preparado
para seus inimigos.
Briza Do’Urden, a filha mais velha de Malícia, uma grande e
poderosa drow, andava ansiosa pela antessala, uma visão que não
era incomum.
— Já deveria ter acabado — resmungou a primogênita enquanto
chutava um pequeno banquinho de três pernas. Ele derrapou e caiu,
esmagando um pedaço do assento de haste de cogumelo.
— Paciência, minha filha — Malícia respondeu em um tom
levemente recriminatório, embora compartilhasse dos sentimentos
de Briza. — Jarlaxle é cuidadoso.
Briza deu as costas à menção do mercenário e se dirigiu para as
portas ornamentadas da sala. Malícia não ignorou o significado das
ações da filha.
— Você não aprova Jarlaxle e seu bando — declarou a Matriarca
Mãe sem rodeios.
— Eles são vagabundos sem casa — Briza cuspiu em resposta,
ainda se recusando a se virar para encarar sua mãe. — Não há
lugar em Menzoberranzan para essa ralé. Eles perturbam a ordem
natural de nossa sociedade. E são machos!
— Eles nos servem bem — lembrou Malícia. Briza queria
argumentar sobre o custo extremo de contratar o bando mercenário,
mas sabiamente segurou a língua. Ela e Malícia estavam em
desacordo quase continuamente desde o início da guerra Do’Urden-
Hun’ett.
— Sem Bregan D’aerthe, não poderíamos agir contra nossos
inimigos — continuou Malícia. — Usando os mercenários, os
vagabundos sem casa, como você os chamou, podemos travar
nossa guerra sem implicar nossa casa como a perpetradora.
— Então por que não acabar logo com isso? — exigiu Briza,
tornando a se virar na direção do trono. — Nós matamos alguns dos
soldados Hun’ett, eles matam alguns dos nossos. E o tempo todo,
ambas as casas continuam a recrutar seus substitutos! Isso nunca
vai acabar! Os únicos vencedores nesse conflito são os mercenários
de Bregan D’aerthe — e qualquer bando que Matriarca SiNafay
Hun’ett tenha contratado —, que continuam se alimentando dos
cofres de ambas as casas!
— Cuidado com o tom, minha filha — gritou Malícia em um
lembrete irritado. — Você está se dirigindo a uma Matriarca Mãe.
Briza virou-se novamente.
— Nós deveríamos ter atacado a Casa Hun’ett imediatamente,
na noite em que Zaknafein foi sacrificado — ela ousou resmungar.
— Você se esqueceu das ações de seu irmão mais novo naquela
noite? — respondeu Malícia inexpressivamente.
Mas a Matriarca Mãe estava errada. Mesmo que vivesse mais
mil anos, Briza jamais se esqueceria das ações de Drizzt na noite
em que havia abandonado sua família. Treinado por Zaknafein, o
amante favorito de Malícia, que ostentava a reputação de ser o
melhor mestre de armas de Menzoberranzan, Drizzt conseguiu
alcançar um nível de habilidade de luta muito além da média drow.
Mas Zak também havia dado a Drizzt as atitudes incômodas e
blasfemas que Lolth, a Rainha Aranha, divindade dos elfos negros,
não tolerava. Finalmente, os modos sacrílegos de Drizzt invocaram
a ira de Lolth, e a deusa exigira sua morte.
Matriarca Malícia, impressionada com o potencial de Drizzt como
guerreiro, agiu corajosamente em nome de Drizzt e deu o coração
de Zaknafein a Lolth para compensar os pecados de Drizzt. Ela
perdoou Drizzt com a esperança de que, sem as influências de
Zaknafein, ele mudasse seus caminhos e substituísse o mestre de
armas deposto.
Em troca, aquele ingrato do Drizzt havia traído a todos e fugido
para o Subterrâneo — um ato que não só arrancou da Casa
Do’Urden seu único mestre de armas em potencial remanescente,
mas também colocou Matriarca Malícia e o resto da família
Do’Urden fora do favor de Lolth. No final desastroso de todos os
seus esforços, a Casa Do’Urden perdeu o seu principal mestre de
armas, o favor de Lolth e o seu futuro mestre de armas. Não foi um
bom dia.
Felizmente, a Casa Hun’ett sofreu problemas semelhantes
naquele mesmo dia, perdendo os dois magos em uma tentativa mal
sucedida de assassinar Drizzt. Com as duas casas enfraquecidas e
sob o desfavor de Lolth, a esperada guerra se transformou em uma
série calculada de ataques secretos.
Briza nunca se esqueceria.
Uma batida na porta da antessala arrancou Briza e sua mãe de
suas lembranças pessoais daquela época fatídica. A porta se abriu
e Dinin, o primogênito da casa, entrou.
— Saudações, Matriarca Mãe — ele disse de maneira
apropriada enquanto mergulhava em uma reverência baixa. Dinin
queria que suas notícias fossem uma surpresa, mas o sorriso que
se infiltrava em seu rosto revelou tudo.
— Jarlaxle voltou! — Malícia rosnou de alegria. Dinin virou-se
para a porta aberta e o mercenário, esperando pacientemente no
corredor, entrou. Briza, sempre espantada com os maneirismos
incomuns do mercenário, sacudiu a cabeça quando Jarlaxle passou
por ela. Quase todos os elfos negros em Menzoberranzan vestiam-
se de forma silenciosa e prática, com túnicas adornadas com os
símbolos da Rainha Aranha ou uma armadura flexível de cota de
malha oculta sob as dobras invisíveis de uma capa piwafwi mágica.
Jarlaxle, arrogante e impetuoso, seguia poucos dos costumes
dos habitantes de Menzoberranzan. Ele certamente não era a
norma da sociedade drow, e fazia questão de exibir essas
diferenças abertamente. Ele não vestia um manto ou uma túnica,
mas sim uma capa brilhante que mostrava todas as cores, tanto no
brilho da luz quanto no espectro infravermelho dos olhos sensíveis
ao calor. A magia da capa só podia ser imaginada, mas aqueles
mais próximos do líder mercenário indicavam que ela era realmente
muito valiosa.
O colete de Jarlaxle era sem mangas e tinha um corte tão alto
que seu estômago esbelto e bem musculoso estava exposto para
todos verem. Ele sempre usava um tapa-olho, embora observadores
cuidadosos o percebessem como ornamental, uma vez que Jarlaxle
geralmente o deslocava de um olho para o outro.
— Minha querida Briza. — disse Jarlaxle sobre o ombro,
percebendo o interesse desdenhoso da alta sacerdotisa em sua
aparência. Ele girou e se curvou bem baixo, tirando o chapéu de
abas largas — outra estranheza, talvez ainda maior, uma vez que o
chapéu era repleto das monstruosas penas de um diatryma, um
gigantesco pássaro subterrâneo — enquanto se curvava.
Briza resmungou e virou-se novamente ao se deparar com a
visão da cabeça brilhante de Jarlaxle. Os drow usavam seus
cabelos brancos e espessos como um manto de seu status, cada
corte projetado para revelar sua posição e casa. Jarlaxle, aquele
canalha, não tinha cabelo nenhum, e do ângulo de Briza, sua
cabeça raspada parecia uma bola de ônix polida.
Jarlaxle ria silenciosamente da contínua desaprovação da
primogênita dos Do’Urden e voltou-se para Matriarca Malícia, sua
ampla coleção de joias e suas botas brilhantes se chocando a cada
passo. Briza também prestou atenção a isso, pois sabia que aquelas
botas e aquelas joias pareciam fazer barulho só quando Jarlaxle
desejava que fizessem.
— Está feito? — Matriarca Malícia perguntou antes que o
mercenário pudesse começar a oferecer uma saudação adequada.
— Minha querida Matriarca Malícia — respondeu Jarlaxle com
um suspiro dolorido, sabendo que ele poderia sair impune de suas
informalidades graças às notícias grandiosas que trazia —, você
duvidou de mim? Certamente, isso faz meu coração sangrar.
Malícia saltou de seu trono, seu punho cerrado em vitória.
— Dipree Hun’ett está morto! — proclamou — A primeira vítima
nobre da guerra!
— Você se esqueceu de Masoj Hun’ett — observou Briza —,
morto por Drizzt há dez anos. E Zaknafein Do’Urden — Briza teve
que acrescentar, contra seu julgamento —, morto por sua própria
mão.
— Zaknafein não era nobre por nascimento. — Malícia zombou
de sua filha impertinente. Mesmo assim, as palavras de Briza
feriram Malícia. Malícia havia decidido sacrificar Zaknafein no lugar
de Drizzt contra as recomendações de Briza.
Jarlaxle limpou a garganta para desviar a tensão crescente. O
mercenário sabia que teria que terminar sua negociação e sair da
Casa Do’Urden o mais rápido possível. A hora marcada se
aproximava.
— Há a questão do meu pagamento — lembrou a Malícia.
— Dinin vai cuidar disso — respondeu Malícia com um acenar de
sua mão, sem afastar os olhos do olhar pernicioso de sua filha.
— Então me despeço — disse Jarlaxle, balançando a cabeça
para o primogênito.
Antes que o mercenário tivesse dado o primeiro passo na
direção da porta, Vierna, a segunda filha de Malícia, entrou correndo
no cômodo, seu rosto brilhando no espectro infravermelho, aquecido
com excitação.
— Droga — sussurrou Jarlaxle em voz baixa.
— O que é? — exigiu Matriarca Malícia.
— Casa Hun’ett! — gritou Vierna. — Soldados no complexo!
Estamos sob ataque!
◆
O súbito movimento evasivo da patrulha pegou Drizzt de
surpresa. O grupo não poderia tê-lo visto atrás das pedras onde se
encontrava, e acreditava no silêncio de seus passos e nos de
Guenhwyvar. Contudo, Drizzt tinha certeza de que era dele que a
patrulha estava se escondendo. Alguma coisa parecia fora de lugar
em toda aquela situação. Era raro encontrar elfos negros tão longe
de Menzoberranzan. Talvez não fosse nada além da paranoia
necessária para sobreviver nas imediações do Subterrâneo, Drizzt
tentava dizer a si mesmo. Ainda assim, ele suspeitava de que mais
do que o acaso trouxera aquele grupo até seus domínios.
— Vá, Guenhwyvar — ele sussurrou para a gata. — Veja os
nossos convidados e volte para mim. A pantera correu sob as
sombras que contornavam a grande caverna. Drizzt afundou-se nos
escombros, ouviu e esperou.
Guenhwyvar voltou a ele apenas um minuto depois, embora
parecesse uma eternidade para Drizzt.
— Você os reconhece? — Drizzt perguntou. A gata arranhou a
pedra com uma de suas patas.
— Da nossa antiga patrulha? — Drizzt se perguntou em voz alta
— Os guerreiros ao lado de quem você e eu caminhamos?
Guenhwyvar parecia incerta e não fez nenhum movimento
definitivo.
— Um Hun’ett então. — disse Drizzt, pensando haver resolvido o
enigma. A casa Hun’ett finalmente havia procurado por ele para
fazê-lo pagar pelas mortes de Alton e Masoj, os dois magos Hun’ett
que morreram tentando matar Drizzt. Ou talvez os Hun’ett
estivessem procurando por Guenhwyvar, o item mágico de Masoj.
Quando Drizzt pausou sua reflexão por um momento para
estudar a reação de Guenhwyvar, ele percebeu que suas hipóteses
estavam erradas. A pantera tinha se afastado um passo e parecia
agitada por sua corrente de suposições.
— Então quem? — Drizzt perguntou. Guenhwyvar ergueu-se
sobre as patas traseiras e empurrou os ombros de Drizzt, para que
uma de suas grandes patas batesse na bolsa de pescoço de Drizzt.
Não entendendo, Drizzt tirou o objeto do pescoço e esvaziou seu
conteúdo em uma palma, revelando algumas moedas de ouro, uma
pequena pedra preciosa e o emblema de sua casa, um símbolo
prateado gravado com as iniciais de Daermon N’a’shezbaernon,
Casa Do’Urden. Drizzt então percebeu de vez o que Guenhwyvar
estava insinuando.
— Minha família — ele sussurrou com dureza. Guenhwyvar
afastou-se dele e novamente arranhou, dessa vez empolgada, a
pedra com uma de suas patas.
Mil memórias inundaram Drizzt naquele momento, mas todas,
boas e más, levavam-no inescapavelmente a uma possibilidade:
Matriarca Malícia não havia perdoado, nem esquecido de suas
ações naquele dia. Drizzt abandonara a ela e aos caminhos da
Rainha Aranha, e conhecia os dogmas de Lolth bem o bastante para
saber que suas ações não deixaram sua mãe em uma boa posição.
Drizzt voltou a olhar para a escuridão da ampla caverna.
— Venha — ele disse para Guenhwyvar antes de começar a
correr pelos túneis. Sua decisão de deixar Menzoberranzan havia
sido dolorosa e incerta, e agora Drizzt não tinha vontade alguma de
encontrar seus familiares e reavivar todas as suas dúvidas e medos.
Ele e Guenhwyvar correram por mais de uma hora, atravessando
passagens secretas e cruzando as seções mais confusas dos túneis
da área. Drizzt conhecia a região intimamente e sentia-se certo de
que poderia deixar o grupo de patrulha para trás com pouquíssimo
esforço.
Mas quando, finalmente, fez uma pausa para recuperar o fôlego,
Drizzt percebeu — e ele só precisou olhar para Guenhwyvar para
confirmar suas suspeitas — que a patrulha ainda estava em sua
trilha, talvez até mais perto do que antes.
Drizzt soube então que ele estava sendo rastreado
magicamente; não poderia haver nenhuma outra explicação.
— Mas como? — perguntou à pantera — Eu mal sou aquele
drow que eles conheciam como irmão, tanto na aparência quanto
em pensamento. O que eles poderiam estar sentindo que seria
familiar o suficiente para que seus feitiços se fixassem? — Drizzt
examinou-se rapidamente, seus olhos primeiro caindo sobre suas
armas.
As cimitarras eram realmente maravilhosas, mas a maioria das
armas drow em Menzoberranzan também eram. E aquelas lâminas
em particular sequer foram criadas na Casa Do’Urden e não eram
de nenhum formato favorecido pela família de Drizzt. Sua capa
então? Ele se perguntou. A piwafwi era uma sinalização de uma
casa, levando os padrões de pontos e desenhos de uma única
família.
Mas a piwafwi de Drizzt tinha sido esfarrapada e rasgada além
do reconhecimento, e ele mal podia acreditar que um feitiço de
localização o reconheceria como pertencente à Casa Do’Urden.
— Pertencente à Casa Do’Urden. — Drizzt sussurrou em voz
alta. Ele olhou para Guenhwyvar e assentiu de repente — ele tinha
sua resposta. Ele removeu a bolsa do pescoço e tirou o emblema de
Daermon N’a’shezbaernon. Criado por mágica, o emblema possuía
sua própria magia, um encantamento distinto daquela casa.
Somente um nobre da Casa Do’Urden teria um.
Drizzt pensou por um momento, depois recolocou o emblema e
deslizou a bolsa do pescoço pela cabeça de Guenhwyvar.
— Hora da caça se tornar o caçador — ele ronronou para a gata.
◆
— Honorável Mestre de Escavações — veio um chamado alguns
dias depois, enquanto Belwar e Drizzt estavam em sua refeição
matinal. Belwar fez uma pausa e ficou perfeitamente imóvel, e Drizzt
não deixou passar a nuvem inesperada de dor que se espalhou pelo
rosto de seu anfitrião. Drizzt havia passado a conhecer bem o
svirfneblin, e quando o longo nariz comprido e curvado de Belwar se
dobrava de uma maneira específica, era sinal da angústia do mestre
de escavações.
— O rei reabriu os túneis do leste — continuou a voz. — Há
rumores de um veio farto de minério a apenas um dia de marcha.
Seria uma honra para a minha expedição se Belwar Dissengulp
pudesse nos acompanhar.
Um sorriso esperançoso alargou-se no rosto de Drizzt, não por
qualquer pensamento de se aventurar, mas porque ele notou que
Belwar parecia um pouco recluso na comunidade svirfneblin, que
parecia muito aberta a todos.
— Supervisor de Escavações Lajota — Belwar explicou
sombriamente a Drizzt, no mínimo não compartilhando do
entusiasmo crescente do drow. — Um daqueles que vêm à minha
porta antes de toda expedição, me pedindo para participar da
jornada.
— E você nunca vai — concluiu Drizzt.
Belwar deu de ombros.
— Um chamado por cortesia, nada mais — disse, seu nariz se
contorcendo e seus dentes largos se apertando.
— Você não é digno de marchar ao lado deles — acrescentou
Drizzt, seu tom de voz respingando sarcasmo. Finalmente, ele
acreditava, havia encontrado a fonte da frustração de seu amigo.
Novamente Belwar deu de ombros.
Drizzt franziu o cenho para ele.
— Eu já o vi trabalhar com suas mãos de mithral — disse ele. —
Você não seria atraso para grupo nenhum! Na verdade, você é uma
vantagem incrível! Você tem coragem de se considerar aleijado,
quando aqueles ao seu redor não?
Belwar bateu a mão do martelo sobre a mesa, criando uma
fenda de tamanho considerável que atravessava a pedra.
— Eu posso cortar a pedra mais rápido do que a maioria deles
juntos! — o mestre de escavações rugiu ferozmente. — E se
monstros decidirem nos atacar... — ele acenou com a mão da
picareta de uma forma ameaçadora, e Drizzt não duvidava que o
atarracado gnomo das profundezas pudesse usar bem aquele
instrumento.
— Tenha um bom dia, Honorável Mestre de Escavações — veio
um grito final do lado de fora da porta. — Como sempre, devemos
respeitar a sua decisão, mas, como sempre, também lamentaremos
a sua ausência.
Drizzt olhou com curiosidade para Belwar.
— Por quê, então? — ele perguntou por fim. — Se você é tão
competente, conforme todos, incluindo você mesmo, concordam,
por que você continua ficando para trás? Eu sei do amor que os
svirfneblin têm por essas expedições, mas você não está
interessado. Assim como você nunca falou de suas aventuras fora
de Gruta das Pedras Preciosas. É a minha presença que o mantém
em casa? Você está sob a função de me vigiar?
— Não! — respondeu Belwar, sua voz estrondosa ecoando nos
ouvidos sensíveis de Drizzt. — Você teve o direito da devolução das
suas armas, elfo negro. Não duvide da nossa confiança.
— Mas... — Drizzt começou, mas parou, percebendo de repente
o verdadeiro motivo da relutância do gnomo das profundezas. —
Aquele dia... — ele disse suavemente, quase se desculpando. —
Aquele dia pérfido há mais de uma década.
O nariz de Belwar quase enrolou-se sobre si mesmo, e ele
rapidamente se afastou.
— Você se culpa pela perda dos seus! — Drizzt continuou,
ganhando volume enquanto ganhava confiança em seu raciocínio.
Ainda assim, o drow mal conseguia acreditar em suas palavras
enquanto as falava.
Mas quando Belwar voltou-se para ele, os olhos do mestre de
escavações estavam úmidos e Drizzt sabia que as palavras tinham
atingido a verdade.
Drizzt passou a mão por sua grossa crina branca, sem saber
como exatamente responder ao dilema de Belwar. Drizzt havia
liderado pessoalmente os drow contra o grupo de mineração
svirfneblin, e ele sabia que os gnomos das profundezas não
deveriam receber parcela nenhuma na culpa por aquele massacre.
No entanto, como poderia Drizzt possivelmente explicar isso a
Belwar?
— Eu me lembro daquele dia infeliz — Drizzt começou
hesitantemente — vividamente, eu me lembro, como se aquele
momento maligno estivesse congelado em minha cabeça, para
nunca mais desaparecer.
— Não mais do que na minha — sussurrou o mestre de
escavações. Drizzt assentiu com a cabeça.
— Igualmente, no entanto — completou. — Porque me vejo
preso na mesma rede de culpa que te aprisiona.
Belwar olhou para ele com curiosidade, sem entender bem.
— Fui eu quem liderou a patrulha drow — explicou Drizzt. — Eu
encontrei sua equipe, acreditando erroneamente que vocês eram
invasores com a intenção de atacar Menzoberranzan.
— Se não fosse você, seria outro — respondeu Belwar.
— Mas ninguém poderia guiá-los tão bem quanto eu — disse
Drizzt. — Lá fora — ele olhou para a porta —, no Subterrâneo
selvagem, eu estava em casa. Aquele era o meu domínio — Belwar
estava ouvindo a todas as suas palavras com atenção, tal como
Drizzt esperava. — E fui eu quem derrotou o elemental da terra —
continuou Drizzt, falando com naturalidade, não com arrogância. —
Se não fosse por minha presença, a batalha teria se mostrado igual.
Muitos svirfneblin teriam sobrevivido para retornar a Gruta das
Pedras Preciosas.
Belwar não conseguiu esconder seu sorriso. Havia uma certa
verdade nas palavras de Drizzt, uma vez que ele havia sido um fator
importante no sucesso do ataque drow. Mas Belwar achou a
tentativa de Drizzt de dissipar sua culpa um pequeno exagero da
verdade.
— Não entendo como você pode se culpar — disse Drizzt, agora
sorrindo e esperando que sua culpa pudesse algum conforto ao seu
amigo. — Com Drizzt Do’Urden liderando a patrulha drow, vocês
nunca tiveram chance.
— Magga cammara. É um assunto doloroso demais para se
fazer piadas — respondeu Belwar, embora risse de si mesmo
enquanto falava essas palavras.
— Concordo — disse Drizzt, em um tom de voz repentinamente
sério. — Mas diminuir a tragédia com uma brincadeira não é mais
ridículo do que viver afogado em uma culpa por um incidente sem
culpados. Não. Não sem culpados — Drizzt rapidamente se corrigiu.
— A culpa está nos ombros de Menzoberranzan e seus habitantes.
É o caminho dos drow que causou a tragédia. É a existência
perversa que vivem, todos os dias, que condenou os mineiros
pacíficos de sua expedição.
— Um supervisor de escavações é o responsável pela
segurança de seu grupo — retrucou Belwar. — Somente um
supervisor de escavações pode convocar uma expedição. Ele deve,
então, aceitar a responsabilidade de sua decisão.
— Você escolheu liderar os gnomos das profundezas para um
local tão próximo de Menzoberranzan? — Drizzt perguntou.
— Sim.
— Por vontade própria? — pressionou Drizzt. Ele acreditava que
havia compreendido os caminhos dos gnomos das profundezas o
suficiente para saber que a maioria de suas decisões importantes,
se não todas, eram democraticamente resolvidas. — Sem a palavra
de Belwar Dissengulp, o grupo de mineração nunca teria entrado
naquela região?
— Nós sabíamos do achado — explicou Belwar. — Um veio rico
de minério. Foi decidido no conselho que deveríamos arriscar a
proximidade de Menzoberranzan. Eu liderei o grupo designado.
— Se não fosse você, seria outro — disse Drizzt sem rodeios,
repetindo as palavras anteriores de Belwar.
— Um mestre de escavações deve aceitar a responsa... —
começou Belwar, desviando seu olhar de Drizzt.
— Eles não o culpam — disse Drizzt, seguindo o olhar vazio de
Belwar para a porta de pedra. — Eles te honram e cuidam de você.
— Eles têm pena de mim! — Belwar rosnou.
— Você precisa de sua piedade? — Drizzt gritou de volta. —
Você é menos do que eles? Um aleijado indefeso?
— Nunca fui!
— Então vá com eles! — Drizzt gritou para ele. — Veja se eles
realmente têm pena de você! Eu não acredito nisso, mas se suas
suspeitas se mostrarem verdadeiras, se o seu povo tem piedade de
seu “Honorável Mestre de Escavações”, então mostre-lhes o
verdadeiro Belwar Dissengulp! Se seus companheiros não têm pena
de você nem o culpam, então não coloque nenhuma carga sobre
seus próprios ombros!
Belwar olhou para o amigo por muito tempo, mas não
respondeu.
— Todos os mineiros que o acompanharam conheciam o risco
de se aventurar tão perto de Menzoberranzan — lembrou Drizzt. Um
sorriso alargou-se no rosto do drow. — Nenhum deles, incluindo
você, sabia que Drizzt Do’Urden lideraria seus oponentes drow
contra você. Se você soubesse, certamente teria ficado em casa.
— Magga cammara — murmurou Belwar. Ele sacudiu a cabeça
em descrença, tanto pelo tom de brincadeira de Drizzt quanto pelo
fato de que, pela primeira vez em mais de uma década, sentia-se
melhor com essas trágicas lembranças. Ele se levantou da mesa de
pedra, sorriu por um instante para Drizzt e dirigiu-se para até o
cômodo interno de sua casa.
— Para onde você vai? — Drizzt perguntou.
— Descansar — respondeu o mestre de escavações. — Os
eventos deste dia já me cansaram.
— A expedição de mineração partirá sem você.
Belwar virou-se e lançou um olhar incrédulo para Drizzt. O drow
realmente esperava que Belwar fosse facilmente refutar anos de
culpa e simplesmente sair com os mineiros?
— Eu achei que Belwar Dissengulp tivesse mais coragem —
disse Drizzt. O cenho franzido que atravessava o rosto do mestre de
escavações era genuíno, e Drizzt sabia que ele havia encontrado
uma fraqueza na armadura de autocompaixão de Belwar.
— Você fala com coragem — Belwar grunhiu com uma careta.
— Com coragem para os padrões de um covarde — respondeu
Drizzt. A mão de mitral do svirfneblin avançou, sua respiração
saindo em grandes baforadas vindas de seu torso densamente
musculoso.
— Se você não gosta do título, então o renegue — Drizzt rosnou
na cara dele. — Vá com os mineiros. Mostre-lhes o verdadeiro
Belwar Dissengulp, e descubra por si mesmo!
Belwar bateu suas mãos de mithral.
— Corra então e pegue suas armas! — ordenou. Drizzt hesitou.
Ele acabara de ser desafiado? Será que ele fora longe demais em
sua tentativa de sacudir o mestre de escavações de seus laços de
culpa?
— Pegue suas armas, Drizzt Do’Urden — Belwar rosnou
novamente — Porque se eu for com os mineiros, então você vai
junto!
Eufórico, Drizzt apertou a cabeça do gnomo das profundezas
entre suas longas e esbeltas mãos e bateu sua testa suavemente
em Belwar, os dois trocando olhares de profunda admiração e
carinho. Em um instante, Drizzt correu para longe, caminhando para
a Casa Central para recuperar sua cota de malha fina, a sua piwafwi
e suas cimitarras.
Belwar acabara de bater uma mão contra sua cabeça em
descrença, quase se derrubando, e observou Drizzt disparando fora
pela porta da frente.
Seria uma viagem interessante.
Bruck gemeu em voz alta quando outro elfo negro solitário vagou
em seu acampamento no dia seguinte. Nenhuma lança foi içada e
nenhum goblin sequer tentou se esgueirar por trás daquele drow.
— Qual é? Caimo fora como cê disse! — queixou-se Bruck, indo
para a frente do grupo antes mesmo de ser chamado. O chefe dos
goblins sabia agora que seus subordinados o apontariam de
qualquer maneira.
Se a aparição espectral chegou a compreender as palavras do
goblin, não demonstrou isso de forma alguma. Zaknafein continuou
andando direto para o chefe dos goblins, com suas espadas em
mãos.
— Mas... — Bruck começou, mas o resto de suas palavras
saíram como gorgolejos de sangue. Zaknafein arrancou sua espada
da garganta do goblin e correu para o resto do grupo.
Os goblins se espalharam por todas as direções. Alguns, presos
entre o drow enlouquecido e a parede de pedra, levantaram suas
lanças rudimentares em defesa. A aparição espectral passou direto
por eles, cortando lanças e membros a cada movimento de espada.
Um goblin conseguiu passar sua lança através das espadas
giratórias, enterrando sua ponta profundamente no quadril de
Zaknafein.
O monstro desmorto sequer estremeceu. Zak virou-se para o
goblin e o atingiu com uma série de golpes perfeitamente
direcionados, que separou a cabeça e os braços de seu corpo.
No final, quinze goblins mortos estavam caídos pelo chão da
câmara, e a tribo foi espalhada e ainda corria por todas as
passagens da região. A aparição espectral, coberta pelo sangue de
seus inimigos, saiu da câmara através da passagem oposta daquela
em que entrou, continuando sua busca frustrada pelo esquivo Drizzt
Do’Urden.
◆
— Nossa casa! — Belwar proclamou alguns dias depois. Os dois
amigos olharam para baixo de uma borda estreita para uma grande
e alta caverna que abrigava um lago subterrâneo. Atrás deles havia
uma caverna de três câmaras com uma pequena entrada,
facilmente defensável.
Drizzt subiu os pouco mais de dez metros para ficar ao lado de
seu amigo na borda superior.
— Possivelmente — ele concordou hesitantemente. — Embora
aquele mago esteja a poucos dias de caminhada daqui.
— Esquece o humano — gritou Belwar, olhando para a marca de
queimadura em sua preciosa armadura.
— E eu não gosto muito da ideia de ter um lago tão grande a tão
poucos metros de nossa porta — continuou Drizzt.
— Está cheio de peixes! — argumentou o mestre de
escavações. — E com musgos e plantas que manterão nossas
barrigas cheias, e água que parece suficientemente limpa!
— Mas esse oásis atrairá visitantes — argumentou Drizzt. —
Não teríamos muito descanso, temo eu.
Belwar olhou da parede vazia para o chão da grande caverna.
— Não é um problema — ele disse com uma risada. — Os
maiores não conseguem chegar até aqui, e os menores... Bem, eu
vi o corte de suas lâminas, e você viu a força das minhas mãos.
Com os menores, eu não me preocupo!
Drizzt gostou da confiança do svirfneblin, e teve que concordar
que eles não encontraram nenhum outro lugar adequado para uso
como habitação. A água, difícil de encontrar e, na maioria das
vezes, imprópria para se beber, era uma mercadoria preciosa
naquele Subterrâneo seco. Com o lago e a vegetação ao seu redor,
Drizzt e Belwar nunca teriam que viajar longe para encontrar uma
refeição.
Drizzt estava prestes a concordar, mas então um movimento
pela água chamou a atenção dele e de Belwar.
— E caranguejos! — cuspiu o svirfneblin, obviamente não tendo
a mesma reação à visão que o drow. — Magga cammara, elfo
negro! Caranguejos! Uma refeição das melhores que você poderá
encontrar!
De fato, era um caranguejo que tinha saído do lago, um monstro
gigantesco de três metros e meio com pinças que poderiam partir
um humano — ou um elfo ou um gnomo — ao meio sem maiores
dificuldades. Drizzt olhou para Belwar, incrédulo.
— Uma refeição? — perguntou.
O sorriso de Belwar cresceu ao redor de seu nariz enrugado
enquanto ele batia suas mãos de martelo e picareta.
Eles comeram carne de caranguejo naquela noite, e no dia
seguinte, e no dia seguinte, e no outro, e Drizzt logo estava bastante
disposto a concordar que a caverna de três câmaras ao lado do lago
subterrâneo era uma boa casa.
◆
Belwar e seu mestre observaram o sacolejar espasmódico do
corpo de um dos illithid, um sinal revelador de que o espírito que o
habitava estava retornando de sua viagem astral. Belwar não
entendeu as implicações dos movimentos convulsivos, mas sentia
que seu mestre estava feliz e, aquilo por sua vez, agradou-o.
Mas o mestre de Belwar também estava um pouco preocupado
com o fato de que apenas um de seus companheiros estava
voltando, porque a convocação do cérebro central era a prioridade
principal e não podia ser ignorada. O devorador de mentes observou
enquanto os espasmos de seu companheiro se estabeleceram em
um padrão, e então estava ainda mais confuso, porque uma névoa
negra apareceu ao redor do corpo.
No mesmo instante em que o illithid voltou ao Plano Material, o
mestre de Belwar compartilhou telepaticamente sua dor e terror.
Antes que o mestre de Belwar pudesse começar a reagir, porém,
Guenhwyvar materializou-se sobre o illithid sentado, rasgando e
cortando o corpo.
Belwar congelou quando um lampejo de reconhecimento
percorreu-o.
— Bivrip? — Ele sussurrou em voz baixa e então completou —
Drizzt? — e a imagem do drow ajoelhado veio claramente em sua
mente.
— Mate-a, meu valente campeão! Mate-a! — o mestre de Belwar
implorou, mas já era tarde demais para o infeliz companheiro do
illithid. O devorador de mentes ali sentado se debatia
freneticamente; seus tentáculos se moviam e se agarravam à gata
em uma tentativa de chegar ao cérebro de Guenhwyvar, que atacou
com uma garra poderosa, um único golpe que arrancou a cabeça de
polvo do illithid.
Belwar, suas mãos ainda encantadas de seu trabalho na
prateleira, avançou lentamente em direção à pantera, seus passos
presos não pelo medo, mas pela confusão. O mestre de escavações
voltou-se para o seu mestre e perguntou:
— Guenhwyvar? — o devorador de mentes sabia que tinha dado
muito de volta ao svirfneblin. A lembrança do encanto mágico
inspirou outras memórias, algumas perigosas, naquele escravo. Já
não se poderia confiar em Belwar. Guenhwyvar sentiu a intenção do
illithid e saltou do devorador de mentes morto apenas um instante
antes que a criatura restante atacasse Belwar.
Guenhwyvar chocou-se contra o mestre de escavações
diretamente, enviando-o para o chão. Os músculos felinos
flexionaram-se e se alongaram quando a gata pousou, deixando
Guenhwyvar de frente para a saída da sala.
Fwoop! O ataque do devorador de mentes atingiu Belwar
enquanto ele caía, mas a confusão do gnomo das profundezas e
sua crescente fúria o fizeram resistir ao ataque mental. Naquele
momento, Belwar estava livre, e ele se levantou, vendo o illithid
como a criatura miserável e maligna que era.
— Vá, Guenhwyvar! — o mestre de escavações gritou, e a gata
não precisava de incentivo. Como um ser astral, Guenhwyvar
entendia muito sobre a sociedade illithid e conhecia a chave para
qualquer batalha contra um ninho de tais criaturas. A pantera voou
contra a porta com todo o seu peso, invadindo a varanda acima da
câmara que abrigava o cérebro central.
O mestre de Belwar, temendo por sua coisa divina, tentou segui-
la, mas a força do gnomo das profundezas retornou dez vezes mais
intensa com sua raiva, e seu braço ferido não sentiu nenhuma dor
ao bater sua mão encantada de martelo na carne macia da cabeça
do illithid. As faíscas voaram e arrasaram o rosto do illithid, e a
criatura bateu de volta na parede, seus olhos leitosos e sem pupilas
olhando para Belwar, em descrença.
Então, ele deslizou, lentamente, para o chão, para a escuridão
da morte.
Doze metros abaixo da sala, o drow ajoelhado sentiu o medo e a
indignação de seu reverenciado mestre e olhou para cima assim
que a pantera negra surgiu no ar. Totalmente fascinado pelo cérebro
central, Drizzt não reconheceu Guenhwyvar como sua antiga
companheira e amiga mais querida; ele viu naquele momento
apenas uma ameaça ao ser que ele mais amava. Mas Drizzt e os
outros escravos de massagens só podiam assistir impotentes
enquanto a poderosa pantera, de presas à mostra e garras saltadas,
caía no meio da massa bulbosa de carne repleta de veias que
governava a comunidade illithid.
CAPÍTULO 19
Dores de Cabeça
CERCA DE CENTO E VINTE illithid residiam dentro e ao redor
do castelo de pedra na longa e estreita caverna, e cada um deles
sentiu a mesma dor de cabeça excruciante quando Guenhwyvar
mergulhou no cérebro central da comunidade.
Guenhwyvar cavou pela massa de carne indefesa, as grandes
garras da gata rasgando e cortando um caminho através da carne e
do sangue. O cérebro central transmitiu emoções de terror absoluto,
tentando inspirar seus servos. Percebendo que a ajuda não
chegaria em breve, a coisa tentou implorar à pantera para que
parasse.
Porém, a ferocidade primal de Guenhwyvar não permitia
instruções mentais. A pantera escavou e se enterrou no muco que
brotava.
Drizzt gritou com indignação e correu por toda a passarela,
tentando encontrar alguma maneira alcançar a pantera intrusa.
Drizzt sentia a angústia de seu amado mestre intensamente e
implorava para que alguém — qualquer um — fizesse alguma coisa.
Outros escravos saltavam e choravam e os devoradores de mentes
corriam em frenesi, mas Guenhwyvar estava no centro da enorme
massa, além do alcance de qualquer arma que os devoradores de
mentes pudessem usar.
Alguns minutos depois, Drizzt parou de pular e gritar. Ele se
perguntou: onde estava? Quem ele era? E o que, nos Nove
Infernos, aquele grande pedaço nojento de carne diante dele
deveria ser? Olhou ao redor da passarela e pegou expressões
confusas semelhantes nos rostos de vários anões duergar, outro
elfo negro, dois goblins e um bugbear alto e coberto de cicatrizes.
Os devoradores de mentes ainda se precipitavam, procurando um
ângulo de ataque sobre a pantera, a ameaça primária, e não
prestaram atenção aos escravos confusos. Guenhwyvar fez uma
aparição súbita por detrás das dobras do cérebro. A gata apareceu
sobre um monte carnudo por apenas um momento, e depois
desapareceu de volta à massa de carne. Vários devoradores de
mentes dispararam suas explosões mentais no alvo fugaz, mas
Guenhwyvar estava fora de vista rápido demais para que seus
cones de energia a atingissem — embora não rápido demais para
que Drizzt a vislumbrasse.
— Guenhwyvar? — o drow gritou enquanto uma multidão de
pensamentos se precipitava em sua mente. A última coisa que se
lembrava era de estar flutuando entre as estalactites em um
corredor quebrado, onde outras formas sinistras espreitavam.
Um illithid moveu-se ao lado do drow, atento demais à ação
dentro do cérebro para perceber que Drizzt não era mais um
escravo. Drizzt não tinha armas além do seu próprio corpo, mas ele
não se importava com isso naquele momento de pura ira. Ele saltou
para trás do monstro distraído e desferiu um chute na parte de trás
da cabeça de polvo. O illithid se desequilibrou sobre o cérebro
central e quicou entre as dobras flexíveis por várias vezes antes que
pudesse encontrar algum apoio para se segurar.
Por toda a passarela, os escravos percebiam sua liberdade. Os
anões cinzentos se juntaram e derrubaram dois illithid em uma fúria
selvagem, agredindo as criaturas e pisoteando-as com suas botas
pesadas.
Fwoop! Uma explosão veio do lado, e Drizzt virou-se para ver o
outro elfo negro cambaleando em função do golpe incapacitante.
Um devorador de mentes correu até o drow e agarrou-o em um forte
abraço. Quatro tentáculos se prenderam no rosto do elfo negro
condenado, apertando e, então, cavando em direção ao seu
cérebro.
Drizzt tentou socorrer o drow, mas um segundo illithid se moveu
entre eles e mirou. Drizzt mergulhou para o lado enquanto outro
ataque ressoava. Fwoop! Ele saiu correndo, tentando
desesperadamente ficar o mais longe possível do illithid. O grito do
outro drow manteve a atenção de Drizzt por um momento, que
apenas olhou pra ele por cima do ombro.
Linhas grotescas e inchadas cruzavam o rosto do drow, um rosto
contorcido pela maior angústia que Drizzt já havia testemunhado.
Drizzt viu a cabeça do illithid estremecer e os tentáculos, enterrados
sob a pele do drow, sugando seu cérebro, pulsavam e inchavam. O
drow condenado gritou novamente, uma última vez, então caiu
inerte nos braços do illithid e a criatura terminou seu banquete
horrível.
O bugbear coberto de cicatrizes involuntariamente salvou Drizzt
de um destino semelhante. Em sua fuga, a criatura de dois metros
de altura cruzou entre Drizzt e o devorador de mentes que o
perseguia, assim que o illithid disparou novamente. O golpe
atordoou o bugbear tempo o bastante para que o illithid se
aproximasse. Quando o devorador de mentes alcançou sua vítima
supostamente indefesa, o bugbear balançou um braço enorme e
derrubou seu perseguidor contra a pedra.
Mais devoradores de mentes se precipitavam para as varandas
com vista para a câmara circular. Drizzt não tinha ideia de onde
seus amigos poderiam estar, ou de como poderia escapar, mas a
porta que viu ao lado da passarela parecia sua única chance. Ele
correu diretamente até ela, mas ela se abriu logo antes de chegar.
Drizzt foi parar diretamente nos braços de mais um illithid à
espera.
◆
Satisfeito pelo fato de as cimitarras aterrissarem perto de seu
amigo, Belwar disparou por uma escada de pedra até o illithid mais
próximo. O monstro virou-se e soltou sua explosão. Belwar
respondeu com um grito de pura raiva, um grito que parcialmente
bloqueou o efeito incapacitante, e ele se atirou no ar, batendo de
frente com as ondas de energia.
Embora um pouco tonto pelo ataque mental, o gnomo das
profundezas se chocou contra o illithid e eles caíram em um
segundo monstro que estava correndo para ajudar. Belwar mal
conseguia perceber seus arredores, mas claramente entendia que a
confusão de braços e pernas sobre ele não eram os membros de
amigos. As mãos de mithral do mestre de escavações perfuravam e
golpeavam, e ele se arrastou ao longo da segunda varanda em
busca de outra escada. No momento em que os dois illithid feridos
se recuperaram o suficiente para devolver os ataques, o svirfneblin
selvagem já havia desaparecido.
Belwar pegou outro illithid de surpresa, esmagando sua cabeça
carnuda contra a parede enquanto descia para o próximo nível.
Porém, uma dezena de outros devoradores de mentes corria por
outra varanda, a maioria deles guardando as duas escadas que
levavam à câmara inferior da torre. Belwar tomou um rápido desvio
saltando até o topo da grade de metal, depois saltando 4 metros e
meio até atingir o chão.
— Drizzt Do’Urden
CAPÍTULO 22
Sem Direção
A ESPADA CORTOU RÁPIDO demais para que o escravo goblin
tivesse tempo de gritar. Ele caiu para frente, morto antes de chegar
ao chão. Zaknafein pisou nas costas da coisa morta e seguiu em
frente — o caminho para a saída da caverna estreita estava diante
da aparição espectral, a apenas dez metros de distância.
Assim que o guerreiro morto-vivo passou por sua última vítima,
um grupo de illithid entrou na caverna à frente dele. Zaknafein
rosnou e não se desviou nem diminuiu a velocidade. Sua lógica e
seus passos eram diretos; Drizzt havia passado por aquela saída, e
ele o seguiria.
Qualquer coisa que ficasse em seu caminho tombaria por sua
lâmina.
Deixe que esse aí siga em frente! veio um grito telepático de
vários pontos na caverna, de outros devoradores de mente que
testemunharam Zaknafein em ação.
Você não vai conseguir vencê-lo! Deixe o drow sair!
Os devoradores de mentes tinham visto o suficiente das lâminas
mortais da aparição espectral; dezenas de seus companheiros já
haviam morrido pelas mãos de Zaknafein.
Este novo grupo que estava no caminho de Zaknafein não
ignorou a urgência dos apelos telepáticos. Eles se separaram para
ambos os lados com toda a velocidade — exceto um.
A raça illithid baseava sua existência em pragmatismo fundada
no vasto volume de conhecimento comunal. Os devoradores de
mentes consideravam emoções básicas como orgulho falhas fatais.
Um conceito que se mostrou verdadeiro naquela ocasião.
Fwoop! Um único illithid atacou a aparição espectral,
determinado a não permitir que ninguém escapasse.
Um instante depois, tempo o bastante para um único movimento
preciso de espada, Zaknafein pisou no peito do illithid caído e
continuou seu caminho para fora da cidade, em direção ao
Subterrâneo selvagem.
Nenhum outro illithid fez qualquer movimento para detê-lo.
Zaknafein agachou-se e, cuidadosamente, escolheu seu
caminho. Drizzt havia passado por aquele túnel; o aroma estava
fresco e claro. Mesmo assim, em sua perseguição cuidadosa,
quando muitas vezes precisava parar e verificar a trilha, Zaknafein
não podia se mover tão rápido quanto sua presa.
Mas, ao contrário de Drizzt, não precisava descansar.
◆
Assim que entrou na pequena câmara além do arco, Belwar
soube que Estalo estava morto, ou logo estaria. O corpo do
ganchador estava largado no chão, sangrando por uma única ferida,
mas perversamente precisa, no pescoço. Belwar começou a se
afastar, depois percebeu que devia pelo menos algum conforto ao
seu amigo caído. Ele caiu de joelhos e se forçou a assistir quando
Estalo entrou em uma série de convulsões violentas.
A morte terminou o feitiço polimorfo, e Estalo gradualmente
reverteu para o seu eu anterior. Os enormes braços de garras
tremeram e se chacoalharam, torceram-se e transformaram nos
longos e delgados braços de pele amarela de um pech. O cabelo
brotou através da armadura rachada da cabeça de Estalo e o
grande bico se separou e se dissipou. O peito enorme também caiu,
e todo o corpo se compactou com um som de atrito que enviou
arrepios ao longo da dura coluna do mestre de escavações.
O ganchador não existia mais, e na morte, Estalo era como
outrora havia sido. Ele era um pouco mais alto do que Belwar,
embora não tão forte, e seus traços eram largos e estranhos, com
olhos sem pupilas e um nariz achatado.
— Qual era seu nome, meu amigo? — o mestre de escavações
sussurrou, embora soubesse que Estalo nunca responderia. Ele se
abaixou e ergueu a cabeça do pech em seus braços, tomando um
pouco de conforto na paz que finalmente chegou ao rosto da
criatura atormentada.
◆
— Drizzt — disse Zaknafein, e a palavra soou extremamente
agradável para o ser animado. As espadas de Zak entraram em
suas bainhas, embora suas mãos precisassem lutar contra as
exigências de Matriarca Malícia a cada centímetro do caminho.
Drizzt começou a dirigir-se a ele, sem querer nada além de
abraçar seu pai e amigo mais querido, mas Zaknafein estendeu a
mão para mantê-lo longe.
— Não — explicou a aparição. — Eu não sei por quanto tempo
eu posso resistir. O corpo pertence a ela, temo eu — respondeu
Zaknafein.
Drizzt não entendeu no início.
— Então você está...?
— Morto — declarou Zaknafein sem rodeios. — Em paz, tenha
certeza. Malícia animou meu corpo para seus próprios propósitos
vis.
— Mas você a derrotou — disse Drizzt, ousando ter esperanças.
— Estamos juntos novamente.
— Um estado temporário, nada além disso — como que para
provar seu ponto, a mão de Zaknafein disparou involuntariamente
para o punho de sua espada. Ele fez uma careta e grunhiu, e lutou
obstinadamente, afrouxando gradualmente seu punho na arma. —
Ela está voltando, meu filho. Ela está sempre voltando.
— Não posso suportar perder você novamente — disse Drizzt.
— Quando eu vi você na caverna illithid—
— Não fui eu que você viu — Zaknafein tentou explicar. — Foi o
zumbi da vontade maligna de Malícia. Eu estou morto, meu filho.
Estou morto há muitos anos.
— Você está aqui — argumentou Drizzt.
— Por vontade de Malícia, não pela... minha. — Zaknafein
rosnou, e seu rosto se contorceu quando ele lutou para afastar
Malícia por só mais um momento. De volta ao controle, Zaknafein
estudou o guerreiro que seu filho se tornou. — Você luta bem —
observou. — Melhor do que eu jamais havia imaginado. Isso é bom,
e é bom que tenha tido a coragem de fugir... — o rosto de Zaknafein
se contorceu de repente, roubando as palavras. Desta vez, ambas
as mãos foram às suas espadas, e desta vez, ambas as armas
foram sacadas.
— Não! — Drizzt implorou enquanto uma névoa brotava em seus
olhos lavanda. — Lute contra ela.
— Eu... não consigo — respondeu a aparição. — Fuja deste
lugar, Drizzt. Fuja até o ponto... mais extremo do mundo! Malícia
nunca vai perdoar. Ela... nunca vai parar.
A aparição avançou, e Drizzt não teve escolha a não ser sacar
suas armas. Mas Zaknafein estremeceu antes de chegar ao alcance
de Drizzt.
— Por nós! — Zak gritou com uma clareza surpreendente, um
chamado que ressoou como uma trombeta de vitória na câmara
verde-brilhante e ecoou por quilômetros até o coração de Matriarca
Malícia, como o toque final de um tambor que sinalizava o início da
ruína. Zaknafein tinha assumido o controle novamente, por apenas
um instante fugaz... Que permitiu que a aparição se jogasse da
passarela.
CAPÍTULO 25
Consequências
MATRIARCA MALÍCIA SEQUER conseguiu gritar sua frustração.
Mil explosões retumbaram em seu cérebro quando Zaknafein entrou
no lago ácido, mil percepções de ruína iminente e inevitável. Ela
saltou de seu trono de pedra, suas mãos esbeltas se retorcendo e
apertando o ar como se estivesse tentando encontrar algo tangível
para pegar, algo que não estava lá.
Sua respiração rasgava em suspiros laboriosos, e grunhidos sem
palavras saíam de sua boca retorcida. Depois de um momento em
que ela não conseguia acalmar-se, Malícia ouviu um som mais claro
do que o barulho de suas próprias contorções. Por detrás dela veio
o pequeno silvo das pequenas cabeças de cobras perversas do
chicote de uma alta sacerdotisa.
Malícia girou, e lá estava Briza, seu rosto severo e decidido e
suas seis cabeças de cobras vivas agitando-se no ar.
— Eu esperava que meu tempo de ascensão fosse daqui a
muitos anos — disse a filha mais velha calmamente. — Mas você é
fraca, Malícia, fraca demais para manter a Casa Do’Urden unida nas
provações que seguirão o nosso — o seu — fracasso.
Malícia queria rir diante da loucura da filha; chicotes de cabeça
de cobra eram presentes pessoais da Rainha Aranha e não podiam
ser usado contra Matriarcas Mães. Por algum motivo, porém,
Malícia não conseguiu encontrar a coragem ou a convicção para
refutar sua filha naquele momento. Ela observou, hipnotizada,
enquanto o braço de Briza lentamente se elevou e depois se lançou
para a frente.
As seis cabeças de cobras desenrolaram-se em direção a
Malícia. Era impossível! Isso ia contra todos os princípios da
doutrina de Lolth! As cabeças vieram ansiosamente com suas
presas e mergulharam na carne de Malícia com toda a fúria da
Rainha Aranha por detrás delas. A agonia grave percorreu o corpo
de Malícia, sacudindo-a e chacoalhando-a e deixando um
entorpecimento gelado no seu auge.
Malícia cerrou os dentes à beira da inconsciência, tentando se
segurar firmemente contra a filha, tentando mostrar a Briza a
inutilidade e estupidez de continuar o ataque.
O chicote de cobras voltou a disparar e o chão correu para
engolir Malícia. Briza murmurou alguma coisa, Malícia pôde ouvir,
alguma maldição ou alguma canção para a Rainha Aranha.
Então veio um terceiro golpe, e Malícia não soube de mais nada.
Ela estava morta antes do quinto golpe, mas Briza bateu por muitos
minutos, descarregando sua fúria para que a Rainha Aranha fosse
assegurada de que a Casa Do’Urden realmente abandonara sua
Matriarca Mãe falha.
Quando Dinin, inesperadamente e sem aviso prévio, entrou no
cômodo, Briza estava confortavelmente sentada no trono de pedra.
O primogênito olhou para o corpo espancado de sua mãe, depois de
volta para Briza, com sua cabeça se sacudindo em incredulidade e
um sorriso largo de compreensão em seu rosto.
— O que você fez, ir... Matriarca Briza? — perguntou Dinin,
segurando sua língua antes que Briza pudesse reagir a ela.
— Zin-carla falhou — Briza rosnou enquanto olhava para ele. —
Lolth não aceitaria mais Malícia.
A gargalhada de Dinin, que parecia fundada em sarcasmo,
cortou até a medula dos ossos de Briza. Seus olhos se estreitaram
ainda mais e ela deixou que Dinin visse sua mão claramente
enquanto se movia para o punho de seu chicote.
— Você escolheu o momento perfeito para a ascensão — o
primogênito explicou calmamente, aparentemente nem um pouco
preocupado com a punição de Briza. — Estamos sob ataque!
— Fey-Branche? — gritou Briza, saltando empolgadamente de
seu assento. Cinco minutos no trono como uma Matriarca Mãe, e
Briza já estava enfrentando seu primeiro teste. Ela provaria a si
mesma à Rainha Aranha e redimiria a Casa Do’Urden de grande
parte do dano que as falhas de Malícia haviam causado.
— Não, irmã — disse Dinin rapidamente, sem fingimento. — Não
é a Casa Fey-Branche.
A resposta fria de seu irmão colocou Briza de volta ao trono e
torceu seu sorriso de empolgação em uma careta de puro pavor.
— Baenre — Dinin também não estava mais sorrindo.
◆