Uma Falsa Epidemia

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Psicologia: Ciência e Profissão 2020 v. 40, e180896, 1-12.

https://doi.org/10.1590/1982-3703003180896 Artigo

A Popularização Diagnóstica do Autismo: uma Falsa Epidemia?

Maíra Lopes Almeida1 Anamaria Silva Neves1


Universidade Federal de Uberlândia, MG, Brasil.
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Universidade Federal de Uberlândia, MG, Brasil.
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Resumo: Atualmente, aponta-se que a prevalência de crianças diagnosticadas com Transtorno do


Espectro Autista é de uma criança para cada sessenta e oito. Diante disso, aventa-se a possibilidade
de uma epidemia. Este trabalho tem como objetivo tecer considerações a respeito do aumento
de crianças diagnosticadas com Transtorno do Espectro Autista contemporaneamente. A partir
de uma investigação teórica, procurou-se conjecturar hipóteses para esse fenômeno e suas
devidas implicações para a prática clínica do psicólogo. Foram realizadas pesquisas em bases
de dados como PubMed, Medline e Biblioteca Virtual em Saúde – Psicologia Brasil. Os dados
epidemiológicos encontrados apontaram para um aumento significativo do diagnóstico nos
últimos anos, o que provocou uma questão sobre essa possível epidemia. Esses achados nos
fizeram supor que tal aumento se edifique pela articulação entre as perspectivas psiquiátrica e
social. A discussão dessa hipótese sustenta, então, que a prática do psicólogo diante da demanda
referente ao sofrimento na infância deve ser pautada por um posicionamento ético e por uma
clínica atenta ao cuidado.
Palavras-chave: Autismo, Diagnóstico, Epidemia, Psicologia.

The Diagnostic Popularization of Autism: a False Epidemic?

Abstract: Currently, estimates point to the prevalence of children diagnosed with Autism
Spectrum Disorder (ASD) of one child every sixty-eight. The possibility of an epidemic is
considered. This study makes some considerations about the increase in children diagnosed
with ASD in the last decades. As a theoretical investigation, we thought of hypotheses for this
phenomenon and its implications for the psychology clinical practice and searched databases
such as Pubmed, Medline and BVS-PSI. The epidemiological data found indicated a significant
increase in diagnosis in recent years, which raised a question about this possible epidemic.
These findings have led us to suppose that such an increase is built by the articulation between
the psychiatric and social perspectives. Our hypothesis holds that the psychologist’s practice for
suffering in childhood should be guided by an ethical stance and a clinic attentive to care.
Keywords: Autism, Diagnosis, Epidemic, Psychology.

Disponível em www.scielo.br/pcp
Psicologia: Ciência e Profissão 2020 v. 40, e180896, 1-12.

La Popularización Diagnóstica del Autismo: ¿una Falsa Epidemia?

Resumen: Actualmente, se señala que la prevalencia de niños diagnosticados con Trastorno


del Espectro Autista (TEA) es de un niño por cada sesenta y ocho. Esto sugiere la posibilidad
de una epidemia. Este trabajo tiene como objetivo tejer consideraciones acerca del aumento
del diagnóstico de niños con TEA contemporáneamente. A partir de una investigación teórica,
se buscó conjeturar hipótesis para ese fenómeno y sus debidas implicaciones para la práctica
clínica del psicólogo. Se realizaron búsquedas en bases de datos PubMed, Medline y Biblioteca
Virtual en Salud – Psicología Brasil –. Los datos epidemiológicos encontrados apuntaron a un
aumento significativo del diagnóstico en los últimos años, lo que provocó una cuestión sobre
esa posible epidemia. Estos resultados suponen que el mencionado aumento se edifique por la
articulación entre las perspectivas psiquiátrica y social. La discusión de esa hipótesis sostiene
que la práctica del psicólogo ante la demanda con relación al sufrimiento en la infancia debe
ser pautada por un posicionamiento ético y por una clínica atenta al cuidado.
Palabras clave: Autismo, Diagnóstico, Epidemia, Psicología.

A popularização diagnóstica do autismo: na atualidade. A confirmação do aumento de crianças


uma falsa epidemia? diagnosticadas a partir das pesquisas epidemiológicas
De acordo com as últimas estatísticas, o autismo incita a conjecturar posicionamentos, questões e argu-
atinge atualmente uma em cada 68 crianças (Center mentos a respeito desta inflação.
for Disease Control and Prevention, 2014). Chama a
atenção um diagnóstico de transtorno psiquiátrico Espectro do transtorno autista: dados
da infância que cresceu vertiginosamente em um epidemiológicos e contemporaneidade
curto período de tempo (Rios, Ortega, Zorzanelli, Aparentemente, há um espectro que ronda a
& Nascimento, 2015). Conhecido atualmente como infância – o espectro do Transtorno Autista1. Eleito em
transtorno do espectro autista (TEA), sua etiologia janeiro de 2012, na França, como a grande causa nacio-
ainda é desconhecida e, embora se admita a multicau- nal, o autismo se disseminou e hoje configura uma
salidade, há diversas conjecturas sobre o que favorece suposta epidemia. Passaram-se 73 anos desde seu iso-
seu surgimento. Com o aumento crescente de diag- lamento por Kanner (1943/1997). Como mencionado,
nósticos, as suspeitas se ampliaram e deram origem a o distúrbio atinge atualmente cerca de uma em cada
diversas hipóteses não comprovadas. 68 crianças, segundo estatísticas norte-americanas
Geralmente, este é um transtorno identificado (Center for Disease Control and Prevention, 2014).
ainda na primeira infância e implica possíveis impac- Kanner foi o primeiro a estabelecer o autismo
tos para os irmãos, alterações na dinâmica fami- como um distúrbio único, e não mais como apenas um
liar, eventos estressantes e sobrecarga de cuidadores sintoma da esquizofrenia. Ao observar onze crianças,
(Araújo, Souza-Silva, & D’Antino, 2012; Fávero & Santos, o autor pôde descrever o que chamou de distúrbios
2005; Gomes, Lima, Bueno, Araújo, & Souza, 2015). Por autísticos inatos do contato afetivo, sendo que esta,
meio de uma investigação teórica em bases de dados “até agora não descrita e bastante rara, parece, . . . seria
como PubMed, Medline e Biblioteca Virtual em Saúde – mais frequente do que a raridade dos casos indica”
Psicologia Brasil BVS-PSI, este trabalho tem como obje- (Kanner, 1943/1997, p. 167). O autor caracteriza a sín-
tivo tecer considerações sobre o diagnóstico de TEA drome como uma incapacidade inata e descreve como

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Menção à frase inaugural do Manifesto Comunista escrita por Marx em 1848 em que ele faz alusão ao espectro do comunis-
mo que rondava a Europa. Fazemos uso da polissemia da palavra espectro, que como descrito nos manuais diagnósticos refere-se
à representação de intensidade, enquanto na frase de Marx refere-se a um fantasma que se apresentava e assustava os europeus –
o que nos remete à situação dos pais diante do aumento de diagnósticos de autismo.

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Almeida, M. L., & Neves, A. S. (2020). Popularização Diagnóstica do Autismo.

sintomas os traços obsessivos, a estereotipia e a ecola- pesquisa, em 2002, o número se manteve. No entanto,
lia. A pioneira caracterização do autismo por Kanner a partir de 2004, os números se tornaram considera-
serve, ainda hoje, como referência para as definições velmente maiores, de forma que a última estimativa
encontradas nos atuais manuais diagnósticos. apontou um autista para cada 68 crianças, perfazendo
A definição de autismo se ampliou no decorrer a prevalência igual a 1,47%.
da história, sobretudo com a admissão do espectro, De acordo com os dados divulgados pelo CDC
que o tornou, na 5ª edição do Manual Diagnóstico e (2010), o valor de prevalência de TEA em 2010 foi duas
Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-V) (American vezes maior que nos dois primeiros anos da pesquisa,
Psychiatric Association, 2014), “Transtorno do Espectro 2000 e 2002. Segundo Fombonne (2003, 2009), pesqui-
Autista” (TEA). A partir dessa nova nomenclatura, o sas futuras deverão registrar um aumento ainda maior.
autismo englobou o Transtorno Desintegrativo da Existem algumas projeções que demonstram que até
Infância, Transtorno de Asperger e Transtorno Invasivo 2050 haverá um aumento de 42,7% em menores de
do Desenvolvimento Sem Outra Especificação. cinco anos com TEA nos Estados Unidos, o que signi-
O diagnóstico de TEA é realizado clinicamente com fica 76.000 crianças. A partir de suas revisões, o autor
base nos critérios do referido manual, observações do compreende que o autismo é muito mais comum do
comportamento e entrevistas com os pais e/ou cuida- que pensávamos anteriormente.
dores. É possível também realizar exames que excluam
Diversos estudos que registram o aumento da
outras doenças associadas, como surdez (Ribeiro, 2007).
prevalência desses casos apresentam também limi-
Com relação à tendência da ampliação de casos
tações. Os assustadores números, devido a essas limi-
de TEA, pesquisas feitas sobretudo na Europa e nos
tações, transportam em seu cerne a incerteza sobre a
Estados Unidos registraram um consistente aumento
realidade dessas estimativas.
de crianças diagnosticadas como autistas nos últimos
Em função das dificuldades operacionais face aos
anos (Bertrand, Mars, Bove, & Yeargin-Allsopp, 2001;
delineamentos epidemiológicos necessários para a afe-
Charman, 2002; Fombonne, 1999; Rice et al., 2012;
rição de incidência de autismo, a maioria dos estudos
Rutter, 2004).
epidemiológicos realizados refere-se, então, à medição
O primeiro estudo epidemiológico sobre autismo
da prevalência. Como aponta Klin (2006), o aumento
consta de 1966, na Inglaterra, por Vitor Lotter (Ribeiro,
nas taxas de prevalência não significa um aumento da
2007). Naquela época, ele encontrou uma prevalên-
incidência. No entanto, para o autor, a crença sobre o
cia de 4,5 crianças autistas para cada dez mil. Outros
aumento da incidência é a responsável pelo surgimento
estudos também conduzidos entre o fim da década de
da ideia errônea sobre a “epidemia de autismo”, noção
1960 e início da década de 1970 na Europa apontam
para estimativas de um autista para cada 2.500 crianças que sequer se sustenta empiricamente, uma vez que os
(Center for Disease Control and Prevention, 2014). poucos estudos sobre incidência não foram adequados
Desde então, a prevalência global de autismo para testar a hipótese da epidemia (Fombonne, 2009).
aumentou, aproximadamente, trinta vezes. As estatís- É possível também questionar o aumento de
ticas da doença tornaram-se mais acessíveis, pois, no prevalência, na medida em que muitos estudos entre
ano 2000, o Center of Diseases Control and Prevention as décadas de 1960 e 1970 associaram autismo e retardo
(CDC) criou o Autism and Developmental Disabilities mental. Assim, as pesquisas realizadas com indivíduos
Monitoring (ADDM), uma rede que se ocupa das esti- sem comorbidade começaram somente após algum
mativas e prevalência de TEA nos Estados Unidos. A tempo. Além disso, os diferentes métodos emprega-
partir de sua criação, foram realizadas pesquisas peri- dos nos estudos epidemiológicos alteram consistente-
ódicas, de dois em dois anos, que monitoram os dados mente os dados sobre a prevalência. Dessa forma,
epidemiológicos de autismo.
Por meio de estudos, o ADDM permite acompa- estudos que dependem de fontes administrati-
nhar a evolução dos diagnósticos da doença a cada vas únicas para identificar casos produziram bai-
biênio. Na primeira investigação, realizada no ano xas estimativas enquanto investigação, utilizando
2000, havia um autista para cada 150 crianças exami- métodos proativos para o encontro de casos, ou
nadas (uma prevalência igual a 0,66%). Na segunda seja, múltiplas fontes de apuração e procedimentos

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diagnósticos diretos produziram taxas muito mais definição do autismo. Em 65 anos, o autismo trans-
altas (Fombonne, 2009, p. 88, tradução nossa)2. formou-se de sintoma das psicoses infantis em TEA,
pelo DSM-V (American Psychiatric Association, 2014).
Outra questão que surge a respeito das inves- Compõe a estrutura de sintomas os prejuízos nas
tigações epidemiológicas sobre o autismo refere-se áreas de comunicação social e padrões de comporta-
às publicações em todo o mundo. Segundo Paula, mentos repetitivos e restritivos.
Fombonne, Gadia, Tuchman, & Rosanoff (2011), A história do autismo nos manuais psiquiátricos
grande parte dos estudos sobre prevalência são reali- se inicia no DSM-I (American Psychiatric Association,
zados na Europa e Estados Unidos, sendo que muitos 1952), como uma manifestação sintomática per-
países não dispõem desses dados tão bem documen- tencente ao quadro da esquizofrenia em crianças.
tados, incluindo o Brasil. Na segunda versão deste mesmo manual, novamente
A dificuldade no estabelecimento da incidência, o ele é classificado como um sintoma da esquizofrenia de
obstáculo na comparação desses indicadores ao longo tipo infantil (American Psychiatric Association, 1968).
do tempo e a lacuna sobre pesquisas epidemiológicas Na década de 1980, com a publicação do DSM-III
específicas para a realidade de alguns países tornam (American Psychiatric Association, 1980) e sua revi-
a “epidemia de autismo” questionável. No entanto, são, o autismo infantil aparece como uma subcatego-
desacreditar a epidemia não significa desconsiderar o ria da classe diagnóstica de Transtornos Invasivos do
aumento, mas poder, livres de seus atavios, problemati- Desenvolvimento (TID). Com a chegada do DSM-IV
zá-la de tal forma a compreender seu fundamento. (American Psychiatric Association, 1994), integram-se
Esse fundamento encontra um de seus amparos na aos TID, juntamente ao autismo infantil, as subcate-
dificuldade mais recorrentemente citada nas pesquisas gorias de Síndrome de Rett, Transtorno Desintegrativo
epidemiológicas para o autismo: as mudanças de defini- da Infância, Transtorno de Asperger e Transtorno
ção e classificação ao longo do tempo. Assim, “a menos Invasivo do Desenvolvimento sem outra especifica-
que as comparações também controlem rigorosamente ção. Na atualidade, todos esses transtornos, exceto a
as mudanças nas definições do caso, as interpretações síndrome de Rett, foram fundidos em um único deno-
das diferenças nas taxas de prevalência ao longo do minado TEA (American Psychiatric Association, 2013).
tempo e através de pesquisas serão virtualmente impos- Bursztejn (2016) afirma que o autismo apare-
síveis” (Fombonne, 2009, p. 88, tradução nossa)3. ceu pela primeira vez em uma classificação oficial na
A definição de Kanner, considerada restrita, 9ª edição da classificação internacional da OMS, figu-
sofreu diversas alterações ao longo do tempo. As rando em um capítulo referente às “psicoses específi-
mudanças paradigmáticas nos manuais diagnósticos cas da infância”. Na década de 1980, com a publicação
psiquiátricos afetaram a classificação e a nomeação da terceira versão do DSM, o autismo passa a integrar
do autismo. Essas modificações têm sérias consequ- os Transtornos Invasivos do Desenvolvimento. Assim,
ências para os dados epidemiológicos. A partir da base em menos de quinze anos, “a noção de ‘Transtorno
psiquiátrica se funda a definição do transtorno que Invasivo do Desenvolvimento’ substituiu a noção de
subsidiará as pesquisas de incidência e prevalência. psicose infantil, com um foco crescente no autismo”
Para tanto, a noção de epidemia no caso do autismo (p. 16). O autor argumenta que as classificações atuais
está fortemente associada às mudanças paradigmáti- se amparam em duas abordagens: categorial e dimen-
cas ocorridas na psiquiatria no século passado. sional. Enquanto na categorial é interessante que a
população identificada com cada diagnóstico seja
A perspectiva psiquiátrica: de sintoma a distinta, a experiência clínica constata sobreposições
transtorno do espectro autista (TEA) importantes nos TID. Isso provocou uma alteração,
Nos manuais psiquiátricos que embasam a rea- de forma que a abordagem dimensional mostrou-se
lização do diagnóstico houve mudanças históricas na estar mais em consonância com a realidade destes

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No original: “studies relying on single administrative sources for identifying cases yielded low estimates, whereas investigations using
proactive methods for case finding, that is, multiple sources of ascertainment and direct diagnostic procedures, yielded much higher rates”.
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No original: “unless comparisons also control rigorously for changing case definitions, interpretation of differences in prevalence rates over
time and across surveys will be virtually impossible”.

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Almeida, M. L., & Neves, A. S. (2020). Popularização Diagnóstica do Autismo.

transtornos por compreender uma mesma patolo- autores, é a adesão a práticas mecânicas de medicali-
gia, porém, com variantes mais ou menos severas. zação das massas. Isso acentua a importância de con-
Nessa concepção, os TID são como um continuum, siderações a respeito de fenômenos como a suposta
agora transformado em um espectro. epidemia de autismo, posto que há uma implicação
A mudança para uma concepção de espectro, clínica que surge, sobretudo, frente a essas mudanças
oficializada com a publicação do DSM-5, amplia conceituais nos manuais diagnósticos.
a imprecisão dos critérios de inclusão. Na opinião Assim, esta publicação suscitou a exclusão dos
de Touati, Mercier e Tuil (2016), essa ampliação debates teóricos, alçando-os para fora do campo psi-
“parece, sob muitos aspectos, um depósito para qua- copatológico. A justificativa é referida à “confusão de
dros bastante heterogêneos no plano clínico, psicopa- línguas” que existia em torno da psicopatologia, que
tológico e etiopatogênico” (p. 58). Segundo os autores, impossibilitava a comunicação entre os diversos pes-
mais crianças serão incluídas a partir da ampliação quisadores e clínicos. Para neutralizar essa confusão e
para a condição de espectro, o que traz a necessi- tornar o manual operacional, procederam com a des-
dade de problematizar esse aumento de diagnósticos, crição minuciosa dos quadros. Contudo, apesar dessa
inclusive para a própria prática clínica do psicólogo soi-disant operacionalidade e neutralidade, a abor-
que se deparará com uma demanda que abrange dagem da terceira versão deste manual psiquiátrico
diversas possibilidades sintomáticas. nega que a escuta e o olhar são sempre condicionados
Nesse sentido, essas alterações de definição pela dimensão subjetiva daquele que olha e escuta
devem-se às consequentes revisões do DSM ao longo um sujeito (Pereira, 1996).
do tempo, além do rompimento com a psicanálise, O transtorno, termo adotado pelo DSM, é tam-
sobretudo no ano de 1980, que representou o marco bém representante desta nova classificação. Traduzido
zero da nova relação entre psiquiatria e psicopatolo- para o português, corresponde ao original inglês
gia. Naquele ano, houve a publicação da terceira ver- disorder, isto é, algo fora da ordem. Nessa nomencla-
são deste manual psiquiátrico que surgiu com novas tura, segundo Pereira (1998), o transtorno efetuou um
proposições, ou seja, constituía-se agora de forma a afastamento da linguagem nosográfica e foi declarado
ser a teórico e operacional (Dunker, 2014). a teórico, de forma a escamotear “as questões políti-
Segundo Russo e Venâncio (2006), com esta publi- cas, sociais, culturais e subjetivas que afligem a vida
cação houve rupturas em três níveis: 1) estrutura con- humana” (Cirino, 2015, p. 32).
ceitual, ao propor uma única lógica classificatória; 2) A pesquisa de López e Sarti (2013) realizada a res-
abordagem psicanalítica, até então dominante nas peito da assistência às crianças diagnosticadas com
edições anteriores; 3) representações sociais associa- autismo expõe a fragilidade desse sistema que visa
das ao indivíduo moderno, ao lidar com o normal e recolocar algo para dentro da ordem. Esta investiga-
patológico e os grupos identitários. Todos esses níveis ção etnográfica ocorreu em duas instituições públicas
articulam-se entre si. que recebiam autistas para tratamento: uma baseada
Essas rupturas, ocorridas na década de 1980, na abordagem comportamental e outra amparada
devem-se à pretensão psiquiátrica de ter a verdade pela psicanálise. As autoras relatam que em um treina-
do conhecimento sobre determinado objeto. Assim, mento para o recebimento de novos estagiários na pri-
teria que promover um sistema de classificação ideal meira instituição, a expositora apontava os ganhos que
que “deveria fornecer critérios explícitos, operacio- as crianças teriam ao participar de algumas atividades
nalmente observáveis e que reduzissem ao mínimo como montagens de blocos e mosaicos, e afirma ipsis
o uso de interferências teóricas não diretamente litteris: “é importante saber que eles vão continuar cha-
observáveis para a definição de cada quadro mental” tos, esquisitos. . . mas a esquisitice passa mais desper-
(Dunker & Kyrillos Neto, 2015, p. 198). cebida, vão ficando mais próximos do normal” (López
Como afirmam Dunker e Kyrillos Neto (2011), & Sarti, 2013, p. 84).
entre a terceira e a quarta versão deste manual rom- A partir dessa fala e das outras observações, López
peu-se com a tradição presente desde Pinel. Nesta e Sarti (2013) discutem sobre a tênue linha que separa
tradição, a caracterização do sofrimento e patolo- o normal do patológico. Recorrem à Canguilhem e
gia mental era acompanhada da crítica filosófica. Foucault, a fim de elucidar a dinâmica pela qual a
O perigo desse rompimento, como advertem os definição da patologia parte de uma complexa norma

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Psicologia: Ciência e Profissão 2020 v. 40, e180896, 1-12.

social que detém o poder para fazer essa delimitação. criança em uma posição estática, fixada a traços pato-
O que foge ao padrão na comparação das crianças lógicos, sem conceder espaço para a intervenção que
diagnosticadas com autismo em relação às crianças analisa as possibilidades da construção subjetiva.
ditas normais caracteriza o grau de comprometi- Essas são nuances de diagnósticos norteados por
mento dentro do espectro. manuais psiquiátricos que ousam abordar os fenôme-
A base que sustenta a fala da expositora de uma das nos humanos sem implicar a complexidade própria
instituições, relatada pelas autoras López e Sarti (2013), que essa condição nos impõe. A instabilidade, fruto
é a busca por aproximar a criança da normalidade. desse sistema pragmático, foi exposta por meio da
Ou seja, uma lógica oposta à que regula as intervenções questão homossexual, de acordo com Pereira (2000).
psicanalíticas. Nessas intervenções, como se privilegia Em 1970, diversos militantes gays invadiram a
o singular, é impraticável participar de uma “lógica de reunião da Associação Psiquiátrica Americana (APA)
normatização do sujeito” (Crespin, 2015, p. 395). para lutar contra a patologização da homossexuali-
Esse artigo objetiva, justamente, tecer considera- dade. O combate político continuou, até que, em 1974,
ções a fim de situar em que campo ocorre esse aumento o termo “homossexualismo” é retirado do manual
de crianças diagnosticadas com autismo. Assim, põe- e passa a não ser mais considerado como categoria
-se em relevo o que se passa nos campos psiquiátrico diagnóstica. A partir desse acontecimento, “as classifi-
e social que fornecem esteio para que esse aumento cações supostamente científicas mostram sua grande
ocorra. Observar o fenômeno sem as devidas conside- vulnerabilidade face questões de poder, de interesses
rações críticas gera o risco de se cair no previamente econômicos, de formação de grupos de pressão e de
comentado, isto é, práticas baseadas em uma normati- influência da mídia” (Pereira, 2000, p. 9).
zação que podem incorrer na medicalização e exclusão Sobre esta fenda aberta na APA pela influência
do sujeito de seu próprio sofrimento. política dos militantes gays, Ortega (2008) aponta que
Em conformidade com o observado nesta inves- no decorrer das últimas décadas, o estatuto nosológico
tigação, Alfredo Jerusalinsky (2015) afirma que é neste de várias doenças psiquiátricas está sendo discutido
ponto que se faz necessário pensar na subjetividade. em público. Segundo o autor, “embora não exista con-
Afinal, sem considerar o sujeito, estamos inclinados “a senso sobre numerosas doenças psiquiátricas, o fato de
tomar os seres humanos como meros instrumentos de serem nomeadas como doenças constitui uma forma
um projeto de produção do ideal” (p. 270). de poder e utilidade social” (Ortega, 2008, p. 481).
Essa é uma posição semelhante também à de A questão homossexual, que do estatuto de
Julieta Jerusalinsky (2015). Segundo a autora, ao pro- doença tornou-se um elo político-identitário, como
mover uma “patologização precoce”, corre-se o risco apontam Russo e Venâncio (2006), se assemelha, em
de olhar a criança somente pela perspectiva do adoeci- diversos aspectos, ao que tem começado a tomar
mento. A partir de então, a referência do que se espera forma com o autismo nos últimos anos. Com o
dela será apenas o prognóstico da doença. “Desse advento da internet e as publicações dos autistas de
modo, o diagnóstico assume o valor preditivo do des- alto funcionamento4, o movimento da neurodiver-
tino de um sujeito que amalgama o quadro nosográfico sidade ganhou força. Com cada vez mais adeptos,
à dimensão ôntica do ser” (Jerusalinsky, 2015, p. 113). estes passaram a problematizar a definição patoló-
Como transtorno característico da primeira gica do autismo. Para esse movimento, a pessoa não
infância, o autismo é circunscrito em um momento é autista, mas tem autismo, o que configura uma
análogo de maturação cerebral, do organismo e de questão identitária.
constituição psíquica. Não se trata aqui de expur- Ortega (2008) estabelece que para o movimento
gar o diagnóstico, mas admitir seus caminhos e des- da neurodiversidade o autismo é apenas uma cone-
caminhos. Por um lado, o diagnóstico feito a tempo xão atípica do cérebro e não um transtorno mental
pode beneficiar a intervenção precoce. Por outro, há que deva ser curado. Embora esse movimento posi-
o risco de, se feito de modo fechado, beneficiar a cola- cione-se contra a psicanálise, Laurent (2014) expõe as
gem à patologia. Isso pode induzir que se estabeleça a aproximações que existem entre ambos, pois deveria

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Júnior, W. C. (2012, 2 de abril). Autistas de alto funcionamento apresentam nível cognitivo normal e não possuem atraso de fala. Que
grau de autismo meu filho tem? Revista Autismo. http://www.revistaautismo.com.br/edicao-2/que-grau-de-autismo-meu-filho-tem

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Almeida, M. L., & Neves, A. S. (2020). Popularização Diagnóstica do Autismo.

interessá-los “a objeção psicanalítica a um tratamento entende-se que é possível restituir habilidades àque-
comum, padronizado, dos sujeitos reunidos sob a les que foram, de alguma forma, desabilitados. Como
mesma etiqueta” (p. 167). afirma Aranha (1995), os estudos sobre reabilitação,
acelerados na Segunda Guerra Mundial, se susten-
A perspectiva social: o diálogo entre tariam na possibilidade, então, de um reestabeleci-
patologia, associações de pais e identidade mento de prejuízos ou déficits ocasionados por uma
Em outro ponto de vista adjacente ao primeiro, lesão. Neste ponto de vista, há uma lesão no defi-
o diagnóstico se funda e se sustenta socialmente, inclu- ciente. Mas qual seria a lesão do autista?
sive constituindo-se como importante lugar identi- Cabe pensar que a lesão que marca o autista
tário. Isso é passível de ser observado, por exemplo, ocorre na linguagem e na interação social. Sua reabi-
no protagonismo das associações de pais. Essas asso- litação, então, deverá o restituir desse possível déficit.
ciações discorrem sobre a compreensão psiquiátrica No entanto, não é essa a lógica que rege alguns pro-
do transtorno. Devido à mudança paradigmática gramas de reabilitação a autistas, como constatam os
operada com a publicação do DSM-III, foi possível a estudos de Laurent (2014), López e Sarti (2013) e dos
emergência dessas associações. De acordo com Ortega autistas de alto funcionamento Dawson (2004) e Bond
(2008), a separação do autismo do grupo das psico- (2012). Esses preferem o caminho do treinamento, da
ses infantis e a inclusão nos Transtornos Invasivos do repetição e da adequação, em vista de uma possível
Desenvolvimento permitiram apagar a hipótese de funcionalidade do corpo e de uma melhor adapta-
uma psicogênese e, consequentemente, desimplicar ção social. Entretanto, esse caminho despreza o que
pais e mães da causa do transtorno do filho. é marcadamente do campo do humano: as especifici-
O deslocamento do modelo psicanalítico, pre- dades da constituição psíquica.
ponderante nas explicações etiológicas até então, Este entrave entre a deficiência e o transtorno
foi em direção às explicações orgânicas, especial- mental se desenvolve no campo das políticas públicas.
mente cerebrais. Afinal, “o cérebro responde cada vez
Segundo Batista (2013), a deficiência e a loucura esti-
mais por tudo aquilo que outrora nos acostumamos
veram por longos anos entrelaçadas, com as teorias
a atribuir à pessoa, ao indivíduo, ao sujeito” (Ortega,
de Pinel e Itard. Somente com Esquirol rompe-se essa
2008, p. 490). Segundo o autor, esse afastamento da
tradição, ao separar idiotia e loucura. Essa diferencia-
psicanálise e consequente aproximação de um para-
ção ocorreu de modo que a primeira seria incurável,
digma cerebralista foi um dos fatores que permitiu
ao passo que para a segunda existia a possibilidade da
ao autismo ser considerado como pertencente ao
cura. Além disso, a autora afirma que o uso da inteli-
campo das deficiências.
gência e a forma social de encarar o louco e o deficiente
A partir desse paradigma cerebral e cognitivo,
os diferem significativamente. O louco era visto de
estabelece-se outro posicionamento na compreen-
forma valorosa, como um predestinado, enquanto o
são do autismo. O rompimento com as concepções
psicanalíticas direcionou as discussões para o seu deficiente reunia os aspectos monstruosos do humano.
estatuto orgânico, o que possibilitou que ele pudesse Esse assombro com a deficiência ainda persiste
fincar seu locus na deficiência5. Diante da ausência de devido ao estigma da organicidade e da incurabilidade.
implicação dos pais na gênese do autismo dos filhos, Entretanto, um amplo número de pais prefere compre-
abriram-se as portas para que esses se reunissem em ender os filhos autistas como deficientes do que asso-
associações que buscam lutar pelos direitos desses ciá-los às psicoses infantis (Batista, 2013). Em outras
indivíduos. No Brasil, essa luta ocorre no campo da palavras, travam um prélio epistemológico entre a
deficiência, lugar de assistência que o autismo ocu- compreensão do autismo como pertencente ao campo
pou historicamente no país (Oliveira, 2015). da deficiência ou do transtorno mental. Os efeitos de
Na perspectiva da deficiência, um caminho pos- tais posicionamentos são severos em termos de políti-
sível para o tratamento seria a reabilitação. Isto é, cas públicas, como nos mostra o caso do Brasil.

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Importante demarcar que é reconhecida, nesse trabalho, a heterogeneidade própria do campo da deficiência e suas relações com o
autismo. No entanto, a opção por não trazer relatos mais pormenorizados justifica-se na medida em que a discussão privilegia outros
aspectos sobre as associações de pais e a constituição de um campo narrativo e identitário dos autistas.

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No ano de 2013, o Ministério da Saúde/Brasil que apresente alguma deficiência que o impossibilite
publicou duas cartilhas de assistência ao autismo, uma de participar de forma plena e efetiva na sociedade.
denominada “Diretrizes de Atenção à Reabilitação da Para adquirir o benefício, é preciso que a renda por
Pessoa com Transtorno do Espectro Autista (TEA)” membro do grupo familiar seja inferior a um quarto
(Brasil, 2013a) e outra chamada “Linha de Cuidado do salário mínimo vigente.
para a Atenção às Pessoas com Transtornos do Esse benefício pode ser um elemento externo
Espectro do Autismo e suas Famílias na Rede de que caracteriza para a família um lugar seguro e
Atenção Psicossocial do Sistema Único de Saúde” estável diante da instabilidade na convivência com
(Brasil, 2013b). Esses dois documentos, lançados pelo um filho, muitas vezes, qualificado como estranho.
mesmo órgão e no mesmo ano, mas de orientações Nessa medida, esses pais que se encontram sós diante
distintas, parecem evidenciar que há um desacordo daquilo que causa angústia no filho podem, às vezes,
no que se denomina como atenção à pessoa autista. experimentar um sentimento de abandono, “que os
O primeiro, intitulado de Diretrizes, está inserido leva a fazer do filho ‘a causa’ de sua vida e a militar
na Rede de Cuidados da Pessoa com Deficiência, a favor de seus direitos. O terceiro torna-se, então,
para o qual o tratamento adequado é a reabilitação. puramente externo, reduzindo-se a ser aquele junto a
O segundo, intitulado como a Linha de Cuidado, situa quem cabe reivindicar mais direitos e mais cuidados”
o autismo na atenção psicossocial no campo dos (Laurent, 2014, p. 32).
transtornos mentais e sugere que o atendimento aos
autistas seja realizado na Rede de Atenção Psicossocial
(RAPS) do SUS (Oliveira, 2015). Articulações entre a psiquiatria
Oliveira (2015), em uma análise documental crí-
e o social: o problema da epidemia
Os aspectos políticos apresentados anterior-
tica desses dois documentos lançados pelo mesmo
órgão competente, constatou que, embora o embate mente apontam para a união de pais em torno de asso-
epistemológico seja decisivo nesse dissenso, não é ciações para lutar pelos direitos de seus filhos diag-
o fator principal do conflito. O que se sobressai são nosticados com TEA. Atualmente, essas associações
controvérsias de diferentes grupos que disputam o têm protagonizado papéis centrais na determinação
protagonismo do poder de deliberação na formula- de políticas de assistência e de atenção à criança com
ção de políticas públicas para o autismo no Brasil. diagnóstico de autismo.
O que antecede às construções desses documen- Como fortes dispositivos grupais, tais associa-
tos é que em termos de atenção ao autismo esse sem- ções possibilitam a identificação entre pares e a pro-
pre se inseriu nos cuidados à deficiência mental. Lima, cura por garantia de assistência e saúde a essa popu-
Couto, Delgado e Oliveira (2014) apontam que até o lação que, como evidenciou Lima et al. (2014), esteve
final do século passado essa população estava exclu- desassistida por bastante tempo. O reconhecimento
ída da saúde pública brasileira e seu cuidado, quando do grupo como um dispositivo potente de cuidado
ocorria, era prestado pelo campo filantrópico da edu- tem fortalecido o movimento de grupos terapêuticos
cação ou assistência social. Coube às associações de de pais em instituições. No campo psicanalítico, essas
pais montarem os primeiros serviços de assistência. intervenções se guiam, sobretudo, pela escuta, que
Novamente, o autismo configura-se em um pode convocá-los a afastar-se da culpa, isolamento e
campo dual de batalhas: deficiência ou transtorno. exclusão que muitos vivenciam (Cavalcanti, 2000).
Nessa conjuntura, é importante problematizar a inclu- Essas associações também promovem um
são do autismo como deficiência, pois a criança que importante espaço grupal que permite aos pais iden-
recebe esse diagnóstico tem direito ao benefício assis- tificações diversas. De acordo com Fortes (2009), na
tencial da Lei Orgânica de Assistência Social (Loas)6. pós-modernidade há a vitória do gozo que exacerba
Com base na lei, garante-se um salário mínimo men- o individualismo e enfraquece os vínculos afetivos,
sal à pessoa que tenha idade acima de 65 anos ou de maneira que

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Ministério do Trabalho e da Previdência Social. Benefício Assistencial ao Idoso e Pessoa com Deficiência. http://www.mtps.gov.br/ser-
vicos-do-ministerio/servicos-da-previdencia/beneficios-assistenciais-e-de-legislacao-especifica/beneficio-assistencial-ao-idoso-e-a-
-pessoa-com-deficiencia-bpc-loas

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Almeida, M. L., & Neves, A. S. (2020). Popularização Diagnóstica do Autismo.

vivemos em uma era de incertezas que mudou a Rios et al., 2015). Se reconhecemos o individualismo
relação do sujeito com as garantias quanto ao seu como um importante aspecto pós-moderno, é possí-
futuro. Isso conduz à sensação de vazio e de des- vel conjecturar que há um aumento de traços autísti-
proteção, à descrença na política, à fragilidade cos posto no próprio laço social contemporâneo.
dos laços sociais e ao enfraquecimento da figura Para tanto, parece que a epidemia de autismo se
da alteridade nas nossas vidas (p. 1126). vincula a isso que se passa entre os campos psiquiá-
trico e social atualmente. Essa epidemia, edificada na
De acordo com Bauman (2001), esta individua- era pós-moderna, aponta para um interessante para-
lização constitui-se como uma marca pós-moderna. doxo. O individualismo exacerbado nesta era encon-
Nery e Vasconcellos (2014) argumentam que essa tra oposição pela via da patologia. Unidos por uma
marca “representa o indivíduo que por si mesmo é nomenclatura diagnóstica, é possível formar vínculos
capaz de construir sua própria trajetória e alcançar e pertencer a um grupo.
seus objetivos” (p. 124).
As associações de pais, reconhecidas em sua diver-
Considerações finais
sidade, parecem constituir-se para o indivíduo que
A questão colocada sobre uma possível epidemia
participa como uma resistência ao que foi deflagrado
de autismo parece ser facilmente respondida pelos
no individualismo pós-moderno e está posto nos dias
dados epidemiológicos. Há que se reconhecer o cres-
de hoje. Forma-se, assim, uma comunidade que possui
cimento diagnóstico vertiginoso dos últimos anos:
e luta pelos mesmos objetivos. Interessante notar que
de sintoma da esquizofrenia infantil, o autismo galgou
isso aconteça contemporaneamente sobretudo pela
patamares até atingir nomenclatura própria, englo-
via da patologia. Isto é, há comunidades que se desen-
volvem a partir de uma nomenclatura diagnóstica. bando diversas outras manifestações sintomáticas
A partir disso, além de pensar no espaço gru- da infância descrita nos manuais psiquiátricos ante-
pal ofertado pelas associações de pais, seria possível riores, como a Síndrome de Asperger e o Transtorno
também sinalizar que há algo no diagnóstico que Desintegrativo da Infância.
escapa à medicina e à psiquiatria. Este não se refere Contudo, apenas a vertente psiquiátrica parece
mais a apenas seu objetivo técnico de identificar e insuficiente para explicar a popularização do trans-
tratar uma doença. O diagnóstico oferta um lugar torno nos últimos anos. O campo social desempenhou
social, promotor de identificações, que cumpre uma papel importante nessa popularização e consequente
função psíquica. crença sobre a epidemia. Nesse sentido, é no que se
Evidencia-se, assim, o caráter social e subjetivo refere ao campo social que interessa pensar os efeitos
que permeia a psiquiatria e que esta tenta a todo custo desse aumento expressivo de crianças diagnosticadas
evitar. Restrita aos manuais a teóricos, este ramo da com TEA. Isso implica que haja escuta e investimento
psiquiatria contemporânea, biologicista, tenta atribuir para famílias que sofrem e se angustiam com o sin-
uma neutralidade impossível de existir em termos de toma de suas crianças, assim como para professores e
psicopatologia. Não é possível abordar uma articulação outros profissionais que serão convocados a pensar o
entre a perspectiva psiquiátrica e social dos transtornos desafio referido à inclusão.
mentais, na medida em que a primeira se instaura sob Em termos clínicos, os diagnósticos psiquiátri-
a égide da segunda. Dessa forma, o que se produz no cos na infância expõem demandas que sugerem um
campo psiquiátrico atualmente é fruto do que se passa posicionamento ético do psicólogo, isto é, aquele que
socialmente na contemporaneidade. escuta o sofrimento do sujeito. Há que se propor a
O debate torna-se ainda mais interessante ao operar, sobretudo, uma clínica que seja mediada pelo
problematizarmos a questão da suposta epidemia do cuidado e pela leitura atenta de fenômenos complexos
TEA, que de transtorno bastante raro e quase desco- e sutis que envolvem os aspectos de saúde mental e
nhecido tem se popularizado enormemente – como que perpassam um momento tão específico da vida
denotam as pesquisas recentes (Ortega et al., 2013; do sujeito como a infância.

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Psicologia: Ciência e Profissão 2020 v. 40, e180896, 1-12.

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Maíra Lopes Almeida


Mestre em Psicologia na linha de “Psicanálise e Cultura” pela Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia –
MG. Brasil
E-mail: [email protected]
https://orcid.org/0000-0002-6956-9858

Anamaria Silva Neves


Doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-doutorado pelo Child and Woman Abuse Studies
Unit (CWASU) da London Metropolitan University. Docente do curso de Psicologia da Universidade Federal de
Uberlândia, Uberlândia – MG. Brasil
E-mail: [email protected]
https://orcid.org/0000-0002-7722-8690

Endereço para envio de correspondência:


Universidade Federal de Uberlândia, Instituto de Psicologia, Campus Umuarama. Av. Pará, 1.720, Bloco 2C. CEP:
38450-320. Uberlândia – MG. Brasil.

Recebido 01/06/2016
Aceito 03/07/2018

Received 01/06/2016
Approved 03/07/2018

Recibido 01/06/2016
Aceptado 03/07/2018

Como citar: Almeida, M. L., & Neves, A. S. (2020). A Popularização Diagnóstica do Autismo: uma Falsa Epidemia?
Psicologia: Ciência e Profissão, 40, 1-12. https://doi.org/10.1590/1982-3703003180896

How to cite: Almeida, M. L., & Neves, A. S. (2020). The Diagnostic Popularization of Autism: a False Epidemic?
Psicologia: Ciência e Profissão, 40, 1-12. https://doi.org/10.1590/1982-3703003180896

Cómo citar: Almeida, M. L., & Neves, A. S. (2020). La popularización diagnóstica del autismo: una falsa epidemia?
Psicologia: Ciência e Profissão, 40, 1-12. https://doi.org/10.1590/1982-3703003180896

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