Universidade Federal Do Pará - Ufpa Instituto de Ciências Da Educação - Iced Programa de Pós-Graduação em Educação - Ppged
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Universidade Federal Do Pará - Ufpa Instituto de Ciências Da Educação - Iced Programa de Pós-Graduação em Educação - Ppged
Belém - PA
2022
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Belém - PA
2022
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Banca Examinadora
__________________________________________________
Profº. Drº. Damião Bezerra Oliveira, Universidade Federal do Pará (UFPA).
Orientador
__________________________________________________
Profª. Drª. Ivanilde Apoluceno de Oliveira, Universidade do Estado do Pará (UEPA)
Avaliador Externo
__________________________________________________
Profº. Drº. Reinaldo Matias Fleuri, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
Avaliador Externo
__________________________________________________
Profº. Drº. Waldir Ferreira de Abreu, Universidade Federal do Pará (UFPA)
Avaliador Interno
__________________________________________________
Profª. Drª. Sônia Maria da Silva Araújo, Universidade Federal do Pará (UFPA)
Avaliador Interno
__________________________________________________
Profº. Drº. João Colares da Mota Neto, Universidade do Estado do Pará (UEPA)
Suplente externo
__________________________________________________
Profº. Drº. Carlos Jorge Paixão, Universidade Federal do Pará (UFPA)
Suplente interno
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"Uns dizem que, agora, somos todos mundo. Mas ninguém pode ser
do mundo se não tiver a sua pequena aldeia". Mia Couto.
RESUMO (PROVISÓRIO)
LISTA DE GRÁFICOS
LISTA DE QUADROS
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1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS................................................................................................12
3 A CRÍTICA DECOLONIAL À
UNIVERSIDADE: .................................................................................................................
............................xx
2.3 CORE..................................................................................................................................xx
REFERÊNCIAS ........................................................................................................................152
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Gostaria de iniciar esta tese de doutoramento com uma pequena história, de origem
hassídica, transmitida por Larrosa (1995), o qual conta que, certa vez, uma “pessoa do povo”
passou em frente a uma destas “Casas de Estudos” famosa e ficou com medo de entrar,
confessando:
Não, eu não posso entrar aqui... tudo está cheio aqui dentro. De parede a
parede e do solo ao teto, tudo está cheio das palavras sábias e das orações
piedosas que aqui se hão pronunciado. Onde poderia encontrar um lugar pra
mim? Vendo que todos os que o acompanhavam o miravam sem
compreender, disse: “De todas essas palavras feitas desde a borda dos lábios
pelos que rezaram e pelos que ensinaram, nem uma só subiu aos céus. Nem
uma só palavra foi levada daqui por um alento do coração, por isso tudo o
que foi dito permaneceu na Casa do Estudo. E a Casa do Estudo terminou
por ficar cheia de parede a parede e desde o solo ao teto”. (LAROSSA, 1995,
p. 88).
Esta história é uma provocação a todos aqueles que se dedicam a pesquisar, a escrever
e a ensinar sobre a universidade, senão a principal, uma das mais importantes “Casas de
Estudos” que se constituíram ao longo da história. Será que a universidade não está “cheia de
parede a parede e desde o solo ao teto” de todas as nossas “palavras sábias”, “feitas desde a
borda dos lábios” ao ponto de preencher a todos os espaços com o seu vozerio ininterrupto?
Deve-se entender a importância do silêncio como imprescindível no processo
pedagógico. É no silêncio meditativo que se encontra a oportunidade para a reflexão, para a
emergência daquilo que mobiliza as nossas faculdades, os nossos interesses e curiosidades.
(LAROSSA, 1995).
Diz-se que Tomás de Aquino, com cinco anos de idade, ao iniciar os seus estudos na
célebre abadia beneditina de Monte Cassino, permaneceu, durante muitos dias, em silêncio na
sala de aula. Quando decidiu falar, a primeira coisa que pronunciou foi uma pergunta ao
professor: “O que é Deus?” (CHESTERTON, 2000, p. 12). Ninguém, nem mesmo Aquino,
recordava a resposta dada pelo professor, mas a pergunta constituiu o próprio destino e
obsessão de um dos maiores filósofos da cristandade.
Rousseau (1990, p. 22) dizia que o “homem civil nasce, vive e morre na escravidão: ao
nascer, é metido em roupas que o apertam; quando morre pregam-no num caixão; enquanto
15
1
Este autor teve a oportunidade de co-escrever um artigo dentro de um processo de autoria e diálogo coletivo
(COLECTIVO PEDAGOGÍAS DECOLONIZANTES, 2021), tendo como interlocutores a Prof.ª Zulma
Palermo, e pesquisadores da Rede de Pesquisa sobre Pedagogias Decoloniais na Amazônia (RPPDA). Tal
experiência foi sentida como uma subversão do modo de expressão tradicional da produção acadêmica de
conhecimento, ainda pautada por questões de autoria, propriedade do conhecimento e individualismo
meritocrático.
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Embora não seja uma digressão, antes, seja o início mesmo de qualquer pretensão
investigativa, e, em um primeiro olhar, pareça um truísmo cômico, refletimos em torno da
curiosidade afirmando que, embora não tenhamos as mesmas pretensões megalômanas de
Otlet ou dos faraós alexandrinos, partiremos de nossa própria curiosidade e de nossas próprias
perguntas (digo nossas porque muitos que vieram antes de nós e que virão depois, também, se
perguntarão as mesmas questões) a fim de ordenar o nosso caos interior, sem pretensões de
definitividade e esgotamento.
Como sugerido desde o início, voltamos a nossa curiosidade para a “Casa de Estudos”,
mais precisamente, para a “universidade”. Muitas gerações passaram por essa instituição.
Quantas vidas foram consumidas sob suas arcadas, desde que a primeira instituição
universitária surgiu? Quantas dessas vidas escreveram e deixaram registros, testemunhos,
análises, histórias de suas vivências? Quantos se debateram diante da pergunta: o que é, afinal
de contas, a universidade?
Penso que, mesmo com uma obsessão como a de Paul Otlet (LEVIE, 2006), não seria
possível arrolar todos os livros, comentários, excertos, tratados, etc., que abordam, de maneira
direta ou indireta, esta instituição secular. Desta maneira, todo e qualquer corpus documental
que acessemos para esta pesquisa não deixa de ter, mais ou menos, uma limitação humana
natural, balizada seja pela intencionalidade de nossas escolhas, seja pelas nossas próprias
barreiras espaciotemporais.
Não é difícil imaginar que qualquer outro que realizasse esta tese, o faria de maneira
diferente, pois partiria de outros caminhos, construiria outras trajetórias e pontos de chegada.
E estas diversas perspectivas têm uma razão de ser em particular: as diversas experiências que
nos constituem. Faz-se razoável supor, portanto, que as mais honestas “considerações
iniciais” exigem uma exploração de si mesmo, antes de qualquer exploração do mundo, certo
de que cada investigação possui um tempo, um espaço e um corpo que pergunta.
Tentemos estabelecer um início, portanto.
Os meus primeiros interesses pela universidade não surgiram propriamente quando
ingressei em uma instituição universitária, em 2007. No final do século XX e início do século
XXI, a universidade, para as classes trabalhadoras, era sinônimo de ascensão social,
profissionalização e inserção no mercado de trabalho. A partir deste “senso comum”, toda o
meu percurso escolar, como projeto de família, passou a ser direcionado para que conseguisse
acessar o espaço universitário, encarado como um ambiente apartado (muitas vezes “acima”)
do restante da sociedade.
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Inserido neste contexto, não pensava na universidade enquanto uma instituição social,
como expressão historicamente determinada de uma sociedade. Já havia ouvido falar de
neoliberalismo; terceirização e privatização dos serviços universitários; de greves de
docentes; de movimentos estudantis. Eram (e são) temas muito em voga (CHAUÍ, 2001) que
sempre atravessaram a nossa realidade, principalmente por meio da cobertura, nem sempre
responsável, de nossos canais midiáticos.
Entretanto, não tinha ainda noção da dimensão das atividades universitárias (ensino,
pesquisa e extensão), nem de que era uma instituição em permanente disputa. Para mim, a
universidade era, semelhantemente a escola, um local de ensino anódino, no caso específico,
uma espécie de ensino profissionalizante, voltado para a preparação para o mundo do trabalho
(muitos, aliás, ainda hoje, a projetam assim).
Com essa visão empobrecida, entrei no curso de Bacharelado em Direito da
Universidade Federal do Pará (UFPA). A experiência inicial em uma universidade
relativamente nova — fundada em 1957 —, localizada no Brasil, na América Latina, no século
XXI, por si só, já traz muitas camadas históricas sedimentadas, difíceis de serem
compreendidas.
Afinal, o que persiste, ainda, das antigas universidades europeias que surgiram no
século XII (Universidade de Bolonha, de Paris, etc.) na universidade pública em que vivi?
Quais características desta universidade amazônica foram adquiridas a partir do influxo da
Modernidade2? Quais elementos os movimentos políticos em outras universidades latino-
americanas, no final do século XIX, trouxeram para UFPA? Quais traços da multiversity
norte-americana, da racionalidade neoliberal também se discernem no seio da instituição?
Instituições antigas como as universidades, enredadas no tempo histórico, se tornam
muitas coisas ao mesmo tempo e, por isso, não devem ser analisadas como se pudéssemos
alcançar o “verdadeiro” conceito delas, uma espécie de essencialidade a-histórica de sua
existência (CHARLE, VERGER, 2012).
Não obstante Rüegg (2003) diga que a universidade é a única instituição europeia que
preservou um padrão e suas funções sociais básicas ao longo do milênio, entendemos que
tudo o que podemos fazer são cercos, aproximações, intelecções descritivas e compreensivas
2
Aqui, usa-se o termo “Modernidade” na acepção propugnada pelos teóricos latino-americanos da
decolonialidade, isto é, como um longo processo histórico, iniciado em 1492, em que a passagem do feudalismo
para o capitalismo, o Renascentismo, a Reforma Protestante, a emergência do circuito comercial do Atlântico, a
Ilustração, a Revolução Industrial e as Revoluções Burguesas se articularam inextricavelmente com as políticas
colonialistas adotadas por nações europeias em relação a populações não europeias. (DUSSEL, 1993;
MIGNOLO, 2005).
20
dessa busca incessante pelas mais variadas “ideias de universidade”, que possuem um caráter
mais valorativo do que fatual.
Oliveira (2013, p. 155), por exemplo, ao tentar apreender os valores formativos da
UFPA, relata que a instituição se aproxima mais do modelo napoleônico do que do
humboldtiano, “uma vez que não é a pesquisa desinteressada da verdade o núcleo essencial da
instituição, mas antes a preparação de profissionais em Faculdades e Escolas vocacionadas ao
desenvolvimento de atividades pragmáticas”.
Foi com este espírito pragmático, fruto do meu tempo histórico, que iniciei os estudos
universitários. O fato de ter sido uma universidade pública trouxe, ainda, especificidades que
não existiriam, caso se tratasse de uma instituição privada. Cedo na vivência acadêmica tive
contato com as dimensões que, a partir do século XX, passaram a constituir as atividades fins
da universidade, constituindo grupos de pesquisa e participando de projetos de extensão
durante o percurso curricular da graduação
Foi neste período, por exemplo, que iniciei as minhas primeiras experiências na
extensão universitária, inicialmente de forma irrefletida é bem verdade, convencido de que
um dos compromissos da universidade seria o de estender à sociedade os benefícios oriundos
da produção do conhecimento acadêmico.
Durante a graduação vivenciei o Núcleo de Prática Jurídica (NPJ), bem como os
projetos "Trabalho análogo ao de escravo: conscientização para o combate a essa chaga" e
“Saúde infantil e necessidades especiais em Belém: acessibilidade física no Pará”, os quais
contribuíram para que eu percebesse a importância da práxis extensionista para a minha
formação e problematizasse a própria formação jurídica propugnada pelo Projeto Político
Pedagógico do curso de Direito da UFPA.
Ademais, junto às atividades de ensino (monitoria) e pesquisa, pude perceber e
problematizar que a indissociabilidade entre o ensino, a pesquisa e a extensão, preconizados,
inclusive, pela Constituição Federal de 1988, padecia com dificuldades de implementação,
principalmente no caso da formação jurídica. A partir de 2015, já trabalhando como
advogado, passei a trazer tal preocupação para a minha caminhada formativa enquanto
pesquisador.
Vindo da área jurídica e, mobilizado por uma “Especialização em Filosofia da
Educação”, realizada em 2015, no Instituto de Ciências da Educação da UFPA, pude acessar
os primeiros textos que refletiam sobre educação e formação. Neste período, investiguei o
fenômeno do bacharelismo no Brasil na formação do Bacharel em Direito, tentando
21
compreender os mais variados modos de existir deste Bacharel, a partir do Brasil Colônia.
(SARMENTO, GOMES, 2015).
Em 2016, ingressei no quadro de servidores técnico-administrativos da UFPA,
iniciando o exercício profissional na Pró-Reitoria de Extensão. Neste espaço institucional
pude entreter relações com as outras Pró-Reitorias — de Ensino (PROEG) e de Pesquisa
(PROPESP) —, bem como com os extensionistas da universidade, em suas mais variadas
áreas do conhecimento.
A inserção institucional proporcionou um maior contato com a universidade em uma
outra perspectiva: a da gestão. A gestão universitária — respeitadas as especificidades de uma
universidade pública — evidencia que a universidade é uma instituição com uma estrutura
burocrática complexa, submetida à um corpo normativo detalhado e às injunções estatais e
políticas, com relativa (e cada vez mais ameaçada) autonomia orçamentária, financeira e
administrativa.
O que se destaca na gestão universitária é a clareza dos conflitos políticos, econômicos
e ideológicos que atravessam a universidade, influindo inexoravelmente na formação dos
discentes e nas escolhas políticas que nortearão a sua relação com a sociedade.
Com o olhar da gestão acadêmica, notadamente a partir da Extensão Universitária,
iniciei o Mestrado em Educação, em 2016, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em
Educação (PPGED), incorporado na Linha de Pesquisa “Educação, Cultura e Sociedade”.
Neste período, dando continuidade aos estudos iniciados na especialização, busquei
compreender qual a função da extensão universitária na formação do Bacharel em Direito,
tendo como estudo de caso o “Núcleo de Assessoria Jurídica Universitária Popular ‘Aldeia
Kayapó’”, no período de 2004 a 2014, vinculado à Universidade Federal do Pará.
Continuamos, portanto, os nossos estudos, sobre a formação dos graduandos em
Direito da UFPA, a partir dos seus envolvimentos em um tradicional Programa de Extensão,
vinculado ao Instituto de Ciências Jurídicas (GOMES, OLIVEIRA, 2018).
Para além deste percurso formativo mais formal, ao longo desses mais de dez anos em
que atravessei, pela primeira vez, os umbrais da UFPA, é importante ressaltar que a
universidade adquiriu outros sentidos para mim, para além das vivências como estudante e
como profissional: aqui obtive amigos, amores, tristezas, alegrias, triunfos e fracassos.
Diz Manguel (2016) que a experiência do mundo compete por nosso amor e nossa
inteligência e que o experimentamos fazendo perguntas, pondo a nossa curiosidade em
palavras. Talvez por isto queremos saber onde estamos: porque queremos saber quem somos.
22
Cá estou, portanto, de alguma forma, querendo saber quem sou, quem somos na universidade
e quem é a universidade em nós.
Não deve ter sido pelo acaso, portanto, que o meu percurso acadêmico, profissional e
pessoal se construiu por meio de e através da problematização constante dos sentidos da
universidade, suas ressignificações, suas histórias, suas potencialidades para a formação
humana, dentro do que o Ocidente passou a denominar de “formação superior”.
De fato, foi por meio do contato com a grande área dos Estudos sobre a Universidade
e, dentro desta área, a partir de minha experiência — geo-corpo-politicamente situada na
América Latina, na Pan-Amazônia — que tentei e tento dar sentido (entre tantos) a esta
instituição multifacetada.
Na presente pesquisa, pensamos, portanto, a universidade a partir de nossas
experiências. Sob uma concepção cientificista isso seria considerado falta de rigor acadêmico,
mero exercício literário autobiográfico. Dentro dos marcos da ciência moderna, a ciência não
se faz a partir destas vivências individuais, não depende de perspectivas, nem deve ser
atrelada ao volúvel espaço-tempo de nossas individualidades. Ao contrário, as suas análises
podem ser replicadas e as suas conclusões generalizadas, universalizadas, mantendo-se as
condições dos testes e dos experimentos iniciais (HESSEN, 1999).
Consideramos, no entanto, analisar a universidade sob uma perspectiva teórica que
ressalta a historicidade, a situacionalidade, a geopolítica e a corpo-política de todo sujeito do
conhecimento. Por isso, optamos por pensar a universidade a partir das práxis decoloniais,
que colocam a instituição universitária em confronto com os seus principais marcos
filosóficos e políticos, vinculados aos processos de sua constituição na Europa.
Neste momento, em que a perspectiva decolonial ganha expressão na universidade
brasileira, parece se tornar relevante saber o que ela tem a nos oferecer em termos de crítica à
própria instituição que lhe dá visibilidade.
Importante ressaltar que iremos explicitar os fundamentos teóricos do pensamento
decolonial, posteriormente. Entretanto, desde já, salientamos que, para além de uma teoria
academicista — com seus rigores, cânones e panteão de intelectuais —, encaramos a teoria
decolonial como uma postura existencial, encarnada em práxis que problematizam categorias
e conceitos estabelecidos e naturalizados, e que busca trazer à lume aquilo que foi
invisibilizado a partir das relações de poder fundadas entre colonizadores e colonizados.
Assim como, a partir do encontro (ou encobrimento) do “totalmente outro” (DUSSEL,
1993) ocorrido quando da chegada dos europeus na América, teve-se genocídio, etnocídio e
epistemicídio, entendemos que a universidade, situada nos territórios que sofreram com o
23
processo de colonização, pode, tal qual um espelho, reencontrar-se com a sua matriz europeia,
agora em uma perspectiva invertida de confronto, de tensionamento, de problematização e
questionamento.
A decolonialidade3 tem se tornado uma perspectiva teórica cada vez mais utilizada,
principalmente nas pesquisas acadêmicas. Em uma consulta sobre a tendência de buscas do
termo “decolonial”, e as suas variantes, tanto no Google Trends quanto no Books Ngram
Viewer4, observamos, a partir dos anos 2000, um incremento nas pesquisas sobre o tema,
principalmente na América Latina e na América do Norte.
Por um lado, torna-se interessante ver o alargamento de um referencial teórico e a sua
capacidade de operar conceitos nos mais variados âmbitos de análise. E isto se constata
através do levantamento da produção intelectual que já existe, consolidando uma fortuna
crítica do pensamento decolonial e de sua crítica à instituição universitária, como veremos,
posteriormente, quando abordarmos a construção do estado de conhecimento sobre o tema.
Por outro lado, quando um instrumental teórico fica “na moda”, corre dois riscos: ser utilizado
sem rigor e ser apropriado acriticamente.
Na presente tese, acreditamos que a teoria decolonial tem grande poder heurístico, de
mobilização política, contestatória e de reflexão ética, congregando indivíduos e coletividades
que sentem o peso da exclusão e da invisibilidade em meio aos processos globalizatórios,
grupos estes reunidos sob o conceito de “Sul Global” (SANTOS, 2010). Daí, talvez, se
origine a crescente popularidade da perspectiva decolonial.
Como a decolonialidade se trata de uma análise crítica diversificada da sociedade,
tendo como local de enunciação privilegiado a América Latina e a práxis de movimentos
sociais, grupos étnicos e intelectuais, em sua maioria latino-americanos, que passaram a
desenvolver um programa de investigação em torno das implicações econômicas, políticas,
éticas, epistemológicas e ontológicas de uma sociedade que fora colonizada por europeus
(ESCOBAR, 2003); entendemos que a amplitude analítica do pensamento decolonial tem algo
a nos dizer sobre a universidade.
3
Nesta tese utilizaremos os termos “pensamento decolonial”, “decolonialidade”, teoria decolonial”, “perspectiva
decolonial”, “práxis decolonial”, “movimento decolonial” e “giro decolonial” como se fossem sinônimos de um
mesmo âmbito teórico-prático de investigação e intervenção sobre a realidade, que será detalhado ao longo da
tese, principalmente na última seção.
4
O Google Inc. é uma ferramenta que possibilita, a partir de determinadas palavras chave, verificar a evolução
do número de buscas, os assuntos e pesquisas relacionadas a um tema. Neste caso específico, consultar:
https://trends.google.com.br/trends/explore?date=2006-01-01%202020-04-26&q=decolonial. O Ngram Viewer
possibilita visualizar a história, a ascensão, desenvolvimento e desuso de palavras, expressões, conceitos etc.
(Ex: https://books.google.com/ngrams/graph?
content=decolonial&year_start=1800&year_end=2019&corpus=26&smoothing=5&direct_url=t1%3B
%2Cdecolonial%3B%2Cc0).
24
caracterizados pelos cortes dos recursos de pesquisa promovidos pelo governo Bolsonaro,
bem como pela não obtenção de uma bolsa para realização de doutorado sanduíche; e os de
ordem metodológica, que desenvolveremos a seguir.
Isso não quer dizer que abandonamos a experiência da Unitierra. Ainda acreditamos se
tratar de um caso particular útil para a obtenção de uma compreensão geral das contradições e
tensões que se manifestam a partir das diferentes compreensões e projetos de universidade,
colocadas em movimento nos processos de decolonização desta instituição (STAKE, 1995).
Embora distante geograficamente, a Unitierra é um marco histórico para o debate
proposto nesta tese, uma vez que tem a sua fundação vinculada à resistência de povos
indígenas (choles, tzeltales, tzotziles, tojolabales) em diálogo com teorias marxistas,
anarquistas e pós-coloniais (um verdadeiro exercício epistemológico de fronteira), ante o
genocídio e epistemicídio do Estado mexicano, evidenciando a persistência da colonialidade
até os nossos dias e as estratégias para se “in-surgir, re-existir e re-viver” desses
agrupamentos sociais (WALSH, 2009).
A partir da violência estatal, estes povos têm buscado investir em movimentos
formativos e reprodutivos de suas existências inseridas na colonialidade, reinscrevendo suas
identidades, inventando novas formas de re-existir, forjando estratégias de sobrevivência e
inquietude que tencionam e objetivam subverter a geopolítica do conhecimento (MIGNOLO,
2003).
Ademais, a Unitierra tem presença recorrente em obras individuais e coletivas do
pensamento decolonial, como uma experiência que demarca uma investida de peso em prol de
uma universidade fronteiriça, motivo pelo qual ganha relevância enquanto caso a ser
aprofundado nesta tese (GROSFOGUEL, HERNÁNDEZ, VELÁSQUEZ, 2016; MIGNOLO,
2015; WALSH, 2015).
Neste sentido tornou-se um caso paradigmático, perpassando estudos nacionais e
internacionais, essencial para se compreender os movimentos de decolonização da
universidade. No entanto, não ousaríamos chamar nossa análise de um estudo de caso, diante
das investigações que já foram realizadas em torno da mesma experiência (BENZAQUEN,
2012; RESTREPO, 2019; ZALDÍVIA, 2021)8.
Acreditamos sim que o estudo de caso é relevante para examinar um fenômeno
complexo, multidimensional, como o é a questão sobre a decolonização da universidade.
8
Em Luna (2002, p. 38), uma sentença nos chamou atenção: “Pesquisas que não tem passado dificilmente terão
futuro...”. É essencial considerar as importantes teses que se debruçaram sobre a Unitierra, ressaltando a
qualidade de suas análises. Há um passado teórico que aqui levamos em consideração e que nos motiva.
29
9
O sítio eletrônico de Unitierra (https://unitierraoax.org/) se constitui como um importante manancial
(iconográfico, filmográfico, textual) para compreender os princípios, os projetos, os discursos construídos pela
comunidade em torno de seu próprio projeto.
10
Ressaltamos que se trata de uma inspiração específica, vinculada à uma característica desta abordagem
metodológica: deixar os dados coligidos gerarem novas categorias teóricas ao longo da investigação.
31
escola era apenas a instituição que reproduzia em seu interior, mecanicamente, os conflitos
externos, inerentes a uma sociedade de classes. (FRIGOTTO, 2010).
Partimos do pressuposto que encara a universidade, assim como a escola, como uma
instituição que se faz através de variadas mediações históricas e conflitos, não sendo uma
entidade passiva e inerte frente ao devir histórico, mas ativa e transformadora desde dentro de
sua própria estrutura, por meio dos sujeitos que a constituem, os quais, organizados, podem
exercer mediações transformadoras a partir da instituição e não apesar dela. (FREIRE, SHOR,
1986; FRIGOTTO, 2010; GIROUX, 1997).
Assim, seja a partir de projetos curriculares, metodologias pedagógicas, políticas
universitárias de gestão e projetos de pesquisa, ensino e extensão, a universidade eurocêntrica,
como a conhecemos, tem sido problematizada, desde práticas decolonizadoras, nos mais
diferentes espaços geopolíticos do mundo, o que apresentaremos com maiores detalhes
quando do levantamento do estado da arte.
Nesta primeira seção, feita à guisa de introdução, apresentamos tão somente as
justificativas para a realização da pesquisa, isto é, as motivações pessoais, acadêmicas e
profissionais que nos levaram a dedicar uma pesquisa de doutoramento ao objeto de análise.
Outrossim, explicitamos a problemática, isto é, o conjunto de fatores (históricos, sociais,
culturais, epistemológicos, etc.) que trouxeram à luz o problema de pesquisa, bem como a
questão que nos mobiliza, bem como o objetivo geral e específico que norteará nossos
caminhos.
Na esteira da problematização, apresentamos, ainda, referencial teórico que orienta a
análise das categoriais conceituais que forem emergindo durante a pesquisa, oriundas, seja do
pensamento decolonial, seja de outros movimentos teóricos essenciais para a experiência que
traremos à luz: a da Unitierra.
Para concluir esta seção, finalizaremos com uma subseção intitulada “Notas
Metodológicas” a fim de se explicitar os caminhos teóricos-metodológicos que irão nortear a
pesquisa. Esta delimitação será necessária porque a perspectiva teórica decolonial também
invade e critica as posturas metodológicas eurocentradas. Nesse sentido, iremos verificar
como uma tese teórica como a nossa pode ser realizada, metodologicamente, à luz da
decolonialidade.
Diferentemente da ciência moderna, positivista, que apregoa um conhecimento
universalizante, destituído de impressões e subjetividades (JAPISASSÚ, 1994), me situo
enquanto um sujeito de vivências na universidade, instruído dentro de uma cultura acadêmica,
36
11
Desde 2009 publico contos, crônicas e poesias por meio de concursos literários. Porém, a partir de 2020,
comecei a escrever ficção especulativa (horror, ficção científica e fantasia) a partir de um olhar decolonial e
fazer parte de um coletivo de escritores comprometidos com esse projeto: o Escamba Clube, pertencente à
Editora Escambau.
37
validade porque está expressa em forma de uma tese de doutoramento, rigorosamente regida
pelas marcas do pensamento cientificista moderno, logocêntrica, no qual temos que delimitar
objeto de pesquisa, hipóteses, objetivos, referenciais teóricos, descrever uma metodologia de
abordagem, entre outros elementos.
Pensar assim seria crer que apenas alguns poucos sujeitos poderiam ter legitimidade e
autoridade — ética, política e epistemológica — para não recaírem em “contradição
performativa”. Quem seriam estes sujeitos exclusivos, porventura? Povos indígenas isolados?
Quilombolas? Algum grupo social que não teve contato com elementos estruturantes da
modernidade?
Ao contrário do que está implicado na crítica de Browitt (2014), a práxis decolonial se
alimenta das experiências dos sujeitos fronteiriços, isto é, daqueles que habitam a casa da
ferida colonial (MIGNOLO, 2003), dos que são capazes de olhar para a realidade a partir de
uma Epistemologia de Fronteiras.
Ademais, quando Mignolo (2008, p. 250) refere-se ao pensamento decolonial como
um pensamento que se desprende e se abre
Ele não está, com isso, propugnando um pensamento que se constitua pelo abandono
do idioma português (ou castelhano), em favor de um idioma quéchua, aymara ou qualquer
outro que supostamente tenha uma “aura” de autenticidade, legitimidade e pureza para ser
considerada decolonial. Em realidade, a língua do opressor pode ser imposta e,
paradoxalmente, ser reapropriada e reclamada como espaço de resistência (hooks, 2013).
Da mesma forma, quando Walsh (2017) refere-se a aprender, desaprender e reaprender
como um processo imprescindível para se tecer pedagogias e práticas decoloniais, em se
tratando das práticas que emergem da dinâmica das lutas sociais, não quer com isso
prescrever que devamos abandonar, como a serpente abandona a sua pele pelo caminho, os
conceitos, as categorias, os pensamentos surgidos nas Metrópoles Coloniais, mas que estes
sejam absorvidos e ressignificados pelos povos colonizados, como estratégias de luta e de
apropriação da realidade.
12
As citações escritas, originalmente, nas “línguas imperiais” (inglês, espanhol, italiano, francês) serão
traduzidas, livremente, pelo autor.
38
Pensar ao contrário disso, seria conceber que a teoria decolonial busca uma espécie de
genealogia de “saberes antimodernos”, uma cruzada em torno da restauração de saberes
essencialistas (conhecimentos “autenticamente” indígenas, ribeirinhos, quilombolas, etc.) em
contraposição a saberes eurocentrados, deslegitimados, desde o início, justamente por seu
lugar de enunciação.
Fazer isso, segundo Grosfoguel (2008, p. 117), seria adotar “uma crítica anti-europeia
fundamentalista e essencialista” e uma posição de tal natureza iria na contramão do próprio
potencial crítico do pensamento decolonial, pois partiria da premissa de que há apenas uma
“tradição epistêmica a partir do qual pode alcançar-se a Verdade e a Universalidade”: a
tradição epistêmica de quem habita a ferida colonial.
Partimos, portanto, de uma atitude — a atitude decolonial — como forma de
abordagem da realidade, incluindo-se aqui a interpretação das categorias, conceitos e ideias
apresentadas; e com uma intencionalidade: esquadrinhar perspectivas outras, pedagogias
outras, outras possibilidades — encobertas pela racionalidade moderna — voltadas para a
decolonização da universidade.
Indo mais além, pensamos que, da mesma forma que Mignolo (2008, 2013, 2015)
sugere a fronteira13 como metáfora de um lugar epistemológico, no qual a potência
decolonizadora exsurge, as compreensões de universidades que emergem das práxis
decoloniais nos conduzem a uma noção de “Universidade Fronteiriça”.
A Universidade Fronteiriça não recebe esse qualificativo por ser aquela que habita a
fronteira física e geográfica de um determinado espaço físico, (como a UNILA). Trata-se de
uma universidade que, em suas dimensões (espaciais, estéticas, éticas, políticas) e práxis
formativa (curriculares, metodológicas, de ensino, pesquisa, etc) estabelecem uma abertura e
recepção a epistemologias e ontologias outras que habitam e constroem outros mundos
possíveis, isto é, conforme frase lapidar do “sonho zapatista”, transmutam-sem em “um
mundo onde cabem muitos mundos” (LE BOT 1996).
Desta maneira, habita o quefazer da Universidade Fronteiriça toda história de
resistência, lutas e oposição de sujeitos, coletivos étnicos e movimentos sociais que
confrontam a colonialidade que impregna as universidades desde sua origem que a leva
confrontar, por meio de um processo de crítica decolonial, suas bases políticas, econômicas e
epistêmicas.
13
Exploramos mais a noção de “Epistemologia de Fronteira” em Mignolo, em Oliveira e Gomes (2021).
Ressaltamos que outros teóricos, mais alinhados com epistemologias afrocentradas, consideram a “fronteira”
uma noção que não dá conta dos movimentos de resistência decolonial, preferindo adotar a simbologia da
“encruzilhada” (RUFINO, 2019).
39
conhecido como “Europa Ocidental” ou se, pelo menos, influíram na constituição das
primeiras universidades europeias. (DUSSEL, 2016).
Posteriormente adentraremos, especificamente, na discussão histórico-social em torno
da universidade, seu surgimento, transformações e modelos, iniciando pelas primeiras
instituições na Idade Média, perpassando pela constituição da Universidade Moderna e suas
transformações a partir dos séculos XIX e XX, chegando até o processo de constituição do
modelo neoliberal de universidade, ressaltando as transformações do padrão de poder
estabelecido pela colonialidade.
De fato, esta seção só ganha sentido se compreendermos que não podemos falar dos
processos de decolonização da universidade sem entender quais modelos de universidade
foram propugnados pela Modernidade/Colonialidade. É a partir desses modelos que
poderemos extrair categorias fundamentais para a universidade que são problematizadas pela
crítica decolonial.
Para este fim, discutiremos, em subseções, as especificidades históricas que
transformaram a universidade, influindo em suas concepções. Não abordaremos instituições
específicas, mas modelos que inspiraram e tem inspirado a constituição da universidade em
todo o mundo.
Na terceira seção, destacaremos o ineditismo da abordagem, pelo menos quanto à
natureza da pesquisa, por meio de um levantamento da arte sobre o tema, isto é, a crítica da
universidade, a partir da perspectiva teórica da decolonialidade.
Este levantamento será feito por meio do levantamento de teses, dissertações e artigos
científicos encontrados em bancos de dados nacionais e internacionais como: Biblioteca
Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD); Catálogo de Teses e Dissertações da
CAPES; CORE; Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED).
Tal levantamento será acompanhado de sínteses sobre o material encontrado e sobre o que
pensamos ser a constituição de um subcampo de conhecimento dentro do âmbito dos estudos
sobre universidades.
Importa ressaltar, ainda, que organizaremos esses trabalhos serão organizados por
eixos temáticos (Universidade e currículo; Projeto de Universidades Outras; Universidade e
Movimentos Sociais; Universidade e Relações Étnico-Raciais; Universidade e questões
epistemológicas/metodológicas; Universidade e gestão), uma vez que são ações de
decolonização que problematizam desde aspectos pontuais, focalizados, até questões
fundantes para a universidade.
41
Uma vez concretizado o levantamento do estado da arte, estaremos aptos para verificar
o que o pensamento/práxis decolonial tem a oferecer enquanto crítica aos modelos
eurocentrados de universidade.
Na quarta seção, iremos analisar, de maneira mais focalizada como a teoria decolonial
pensa a universidade. É, portanto, a seção culminante da tese, pois tentará chegar ao alcance
de nosso objetivo. Nesta altura, mobilizaremos o referencial teórico coligido a fim de
descrevermos as convergências, as divergências e considerações que o pensamento decolonial
propõem sobre o que denominamos de “Universidade Fronteiriça”.
Ressaltamos que os teóricos da decolonialidade possuem variadas origens e
formações, o que cria um cambiante panorama teórico, uma multiplicidade de olhares e
posicionamentos. Mesmo diante dessa variabilidade, no entanto, podemos encontrar pontos
em comum que associam tais pensadores a uma atitude decolonial e a um compartilhamento
de categorias teóricas.
Aqui, longe de tentarmos esgotar a lista de remissão a “intelectuais decoloniais” 14, o
que, em certa medida, poderia ser arbitrário; intentaremos estabelecer um diálogo temático e
conceitual entre todos aqueles que, em algum momento, refletiram sobre a universidade a
partir do referencial teórico decolonial, o qual, academicamente, começou a ganhar terreno, a
partir da década de 90 do século passado, principalmente a partir das análises fundacionais de
Immanuel Wallerstein (1996, 2005), Enrique Dussel (1973, 1974, 1993, 2017) e Aníbal
Quijano (2014).
Desta forma, ainda que tenhamos consistentes argumentos que insiram intelectuais do
passado em uma espécie de “genealogia decolonial” — como Mariátegui, Paulo Freire,
Orlando Fals-Borda, Frantz Fanon, etc. —, não iremos destacar as suas eventuais
contribuições críticas para pensar a universidade, o que ampliaria demasiadamente o nosso
escopo, bem como, não seriam representativos do corpus textual que será construído ao longo
do processo de investigação.
Outrossim, reconhecemos que existem muitas pesquisas já realizadas que podem ser
decoloniais de fundo, não obstante não mobilizem, necessariamente, as categorias utilizadas
pelo pensamento decolonial. Passaremos, também, ao largo destas análises, uma vez que nos
propomos abordar o referencial teórico decolonial que se constituiu a partir da década de 90,
associado a intelectuais como Aníbal Quijano, Walter Mignolo, Rita Segato, Zulma Palermo,
14
Ballestrin (2013) até tenta elaborar um quadro esquemático individualizando os membros da Rede M/C/D.
Dada a expansão do pensamento decolonial, no entanto, principalmente na América Latina, optamos por dar
ênfase menos aos indivíduos, e mais ao coletivo, ressaltando aquilo que há de comum entre eles, isto é, o
compartilhamento de questões, problemas e categorias.
42
globalización en debate
CASTRO-GÓMEZ, Pensar (en) los intersticios.
Santiago; RIVERA, Oscar Teoría y práctica de la 1999
Guardiola; BENAVIDES, crítica poscolonial
Carmen Millán de
CASTRO-GÓMEZ, La reestructuración de las
Santiago ciencias sociales en América 2000
Latina
La colonialidad de saber:
LANDER, Edgardo eurocentrismo y ciencias 2000
sociales
GROSFOGUEL, Ramón; The
CERVANTES- Modern/Colonial/Capitalist 2001
RODRÍGUEZ, Ana World-System in the
Margarita Twentieth Century
WALSH, Catherine; Indisciplinar las ciencias
SCHIWY, Freya; CASTRO- sociales. Geopolíticas del 2002
GÓMEZ, Santiago conocimiento y colonialidad
del poder
GROSFOGUEL, Ramón; Unsettling Postcoloniality:
SALDÍVAR, José David; Coloniality, Transmodernity 2003
MALDONADO-TORRES, and Border Thinking
Nelson
DUBE Saurabh; DUBE Modernidades coloniales:
Ishita Banerjee; otros pasados, historias 2004
MIGNOLO, Walter D. presentes
GROSFOGUEL, Ramón; Latin@s in the World-
MALDONADO-TORRES, System: Decolonization 2005
Nelson; SALDÍVAR, José Struggles in the 21st Century
David US Empire
MIGNOLO, Walter D.; Globalization and 2005
ESCOBAR, Arturo Decolonial Thinking
GROSFOGUEL, Ramón From Postcolonial Studies to 2006
Decolonial Studies
GROSFOGUEL, Ramón; El giro descolonial:
CASTRO-GÓMEZ, reflexiones para una 2007
Santiago diversidad epistémica más
allá del capitalismo global
¿Uno solo o varios mundos?
PARDO, Mónica Zuleta, Diferencia, subjetividad y 2007
CUBIDES, Humberto; conocimientos en las
ESCOBAR, Manuel Roberto ciencias sociales
contemporáneas
Fonte: Autoria própria, a partir de Boidin (2009), Castro-Gomez, Grosfoguel (2007) e Ortega
Reyna (2017)
45
Decolonizing
GROSFOGUEL, Ramón; the Westernized University:
HERNÁNDEZ, Roberto; Interventions in Philosophy 2016
VELÁSQUEZ, ROSEN, of Education
Ernesto from Within and Without
Gurminder K. Bhambra,
Dalia Gebrial and Kerem Decolonising the University 2018
Nişancıoğlu
SANTOS, Boaventura de O fim do imperio cognitivo 2019
Sousa
Universidades, seres, saberes
WALSH,Catherine y (geo)poder(es) en Ecuador 2020
y América del Sur
Fonte: Autoria própria.
Ademais, existem outras obras que, embora não abordem diretamente o tema
“universidade”, contribuem para o entendimento do pensamento decolonial em torno deste
objeto, pois tangenciam o assunto de alguma forma (WALSH, 2003, 2005; 2009, 2017;
CASTRO-GÓMEZ, 2005; MIGNOLO, 2005, 2011, 2015; BIAGINI, ROIG, 2007;
RESTREPO, ROJAS, 2010; ISASI-DIAZ, 2011; TLOSTANOVA, MIGNOLO, 2012;
LOZANO et. al., 2012; FLEURI, 2013; MACAS, 2014; DUCASSE, 2015; ESCOBAR, 2016;
OCAÑA, LÓPEZ, CONEDO, 2018; ROMERO-LOSACCO, 2018; WALSH, MIGNOLO,
2018).
Como explicitado antes, para a abordagem de tais textos adotaremos a leitura
analítico-temática (SEVERINO, 2009), que objetiva apreender as ideias motrizes dos autores,
a integralidade de seus raciocínios, a mensagem que pretendem comunicar, aos quais deve se
somar o ato interpretativo, em que dialogamos com as ideias expressas e refletimos sobre o
conteúdo de seus textos a partir de referências externas ao texto.
Nesta etapa, faz-se necessário contextualizar a produção textual, bem como demarcar
suas ideias gerais para, depois, especificar os argumentos e críticas em torno da universidade.
Conforme caminho descrito por Severino (2009), iniciaremos com uma “leitura
panorâmica” em que identificamos conteúdo, método, contexto e pontos que porventura
necessitem de maiores esclarecimentos de maneira que nos propicie a esquematização das
ideias colocadas em jogo. A seguir, iniciamos uma releitura, desta vez temática, na qual
buscamos “ouvir” propriamente o que nos diz os/as autores/as consultados em termos de
tema, ideias (primária e secundárias), problema, demonstração e conclusões. Por fim,
adentraremos a etapa da interpretação e problematização 19 em que interpelamos os/as
19
Embora Severimo (2009) aborde de forma sequencial, compreendemos que esses “momentos” de leitura de
textos acadêmicos, normalmente, são justapostos e, desde o início, já incindimos com uma intencionalidade e
47
com um viés interpretativo. O seu método ganha relevância ao tornar a leitura menos intuitiva e mais consciente
de seus processos.
48
Dentro do que nos propomos, por exemplo, vale questionar como esta discussão
metodológica pode contribuir para a construção de uma tese teórica, isto é, se é possível
operacionalizar uma metodologia de leitura analítico-temática (SEVERINO, 2009) que
aborde os conceitos a partir de uma “leitura decolonial”.
Mais uma vez, devemos partir das categorias nucleares do pensamento decolonial.
Dentro do que compreendemos até o momento, a crítica decolonial é orientada pela
categoria chave da colonialidade, a qual, segundo Quijano e Ennis (2000), é operada,
conceitualmente, em três níveis interdependentes: a colonialidade do poder, do ser e do saber.
A colonialidade diz respeito a um processo de classificação social, a uma hierarquia
social — construída socialmente — em torno da ideia de raça, enquanto categoria mental e
fenotípica — abalizada pelo discurso científico, em alguns momentos —, cuja origem foi a
dominação perpetrada durante o colonialismo moderno, iniciada no século XV, mas que
ultrapassou o próprio fenômeno político-econômico da colonização (QUIJANO, 2014).
A produção de identidades raciais veio articulado, durante o processo colonial, com a
divisão social do trabalho e com a produção de conhecimento sobre o mundo. De certa
maneira, portanto, à cada identidade racial forjada (o negro, o índio, o criollo, etc.) fora
atribuído uma relação de trabalho (escrava, artesanal, dentro da estrutura da administração
colonial, etc.), uma capacidade (ou incapacidade) para conhecer o mundo e uma forma de
vivenciar o próprio corpo, tendo como eixo paradigmático a construção da ideia de Europa
Ocidental e de América pela Modernidade Eurocêntrica.
Uma modernidade eurocêntrica porque forjada tendo a Europa como eixo irradiador e
criador de um “Novo Mundo” como um lugar em que os modos de vida dos povos
colonizados se contrapunham aos valores civilizatórios europeus, estabelecendo novas
dicotomias (razão versus barbárie; progresso versus atraso; etc.) e criando novas identidades.
Nesse sentido, a própria criação da América foi um ato constitutivo do moderno sistema
mundial capitalista (QUIJANO, WALLERSTEIN, 1992).
Nessa rede de múltiplos regimes de poder, hierarquização e opressão (CASTRO-
GÓMEZ, GROSFOGUEL, 2007), a colonialidade perpassa a cultura, a economia, a política,
além do simbólico, do epistêmico e do ontológico e, ao mesmo tempo, gera o seu oposto: a
decolonialidade, isto é, um projeto que busca subverter os padrões de poder herdados da
modernidade.
A colonialidade do poder seria aquela que atravessa as instituições, os processos
políticos e econômicos; a colonialidade do saber constitui a dimensão epistêmica, filosófica e
científica, relacionada à produção do conhecimento, à legitimidade e à hierarquia entre os
52
baseada nas diversas concepções de universidade propostas por movimentos sociais, não
poucas vezes à revelia da chancela e da regulamentação estatal. Estes novos sentidos são
estrategicamente assumidos na presente tese, reconhecendo-se a necessidade (e a presente
impossibilidade de isto ser realizado aqui) de uma nova gramática, de novos conceitos, para
nomear estas experiências que se pretendem decoloniais.
Nesta chave de leitura, intentaremos abordar cada conceito ou categoria que venha a
emergir ao longo da pesquisa (conhecimento, formação, universalidade, etc). Assim, não
estaremos trazendo as preocupações pontuais e fatuais de cada texto, mas o que eles podem
nos trazer de contribuição para o estudo, seja da universidade, seja de sua crítica decolonial,
perseguindo os seus contextos, as suas historicidades e valores preconizados.
O próprio Severino (SEVERINO, TAVARES, 2020, p. 112) reconhece que a
universidade “precisa assumir a responsabilidade e executar uma tarefa compromissada com a
decolonização, o que implica a inclusão da diversidade cultural e epistemológica na educação
superior, cumprindo, assim, o seu papel de consciência crítica da sociedade”. A leitura
analítico-temática pode acompanhar este movimento.
Da mesma forma, o marcador “universidade” também é atravessado pelos regimes de
colonialidade do poder, ser e saber, os quais poderão nos auxilidar a fazer perguntas aos
textos, a compreender a crítica decolonial da universidade, bem como a práxis da Unitierra.
No caso em foco, passa a ser fundamental as concepções de educação, universidade,
conhecimento, entre outras categorias, para os sujeitos que constroem esta experiência a partir
do movimento zapatista.
Tais concepções serão identificados ao longo da análise documental (CONSTRUIR
A ANÁLISE DOCUMENTAL, CRITÉRIOS DE SELEÇÃO DE MATERIAL, ETC).
Agora, no entanto, abordaremos os modelos de universidade que se constituíram em
perspectiva eurocêntrica. E diante de tais modelos que o pensamento decolonial se insurgirá,
motivo pelo qual torna-se essencial conhece-los.
vínculo entre verdade e poder, bem como o seu olhar histórico, impactaram a teoria da
história no século XX ao ponto de a História começar a ser encarada em uma nova dimensão:
a narrativa, a da invenção (JÚNIOR, 2007).
Desta maneira, alguns historiadores se afastaram de categorias trans-históricas, de
abordagens estruturais e metafísicas, da busca por essencialismos, continuidade, permanência,
progresso, desenvolvimento, entre outras, e deram ênfase à história como discurso
(interessado, parcial, inserido em regimes de poder) que produz sentidos, fabricando sujeitos e
coletividades que registram, arquivam, produzem documentos históricos e narram a história a
partir de um ponto observacional.
Exemplo fundamental desta perspectiva é a obra “Orientalismo”, de Said (1990), para
muitos, a obra fundante dos estudos pós-coloniais, em que o autor analisa o “Oriente” não
enquanto um espaço físico, um artefato ou acontecimento histórico dado na realidade, mas
como um objeto construído, discursivamente, por parte de um “Ocidente” constituído por
contraposição e que “inventa” o seu “Outro”, o “Oriente”.
Quem tem o poder de narrar, de realizar recortes, estabelecer a trama, interpretar
documentos, forjar arquivos e, até mesmo, produzir esquecimentos, funda passados, presentes
e futuros. Isto ocorre porque a articulação histórica do passado é imbrincada com a posição
ético-política e hermenêutica daquele que escreve a história “a partir de” e para o seu
presente.
Trouillot (2017) reflete sobre esse papel do poder na escritura da história, na sua
capacidade de produzir “não-acontecimentos”, no intermédio entre fato e narração,
perpetuando silêncios no relato do passado. Temos que nos considerar partes do processo
histórico — atores e narradores — de maneira que possamos revolver a poeira do tempo,
trazendo as vozes silenciadas sob as ruínas dos acontecimentos. Um provérbio africano
resume esta perspectiva em uma frase: “Até que os leões tenham os seus próprios
historiadores, as histórias de caçada continuarão glorificando o caçador”.
Podemos dizer que a decolonialidade se apropria da mesma possibilidade de escritura
de “história outras”. De fato, a crítica decolonial tem tido implicações na teoria historiográfica
como uma perspectiva que critica tanto a universalização de espaços provinciais, quanto de
temporalidades localizadas. Assim, uma das principais contribuições da decolonialidade para
a crítica histórica reside, a meu ver, fundamentalmente, na crítica à “história única”
(ADICHIE, 2019).
Adichie (2019, p. 10) diz que “é assim que se cria uma história única: mostre um povo
como uma coisa, uma coisa só, sem parar, e é isso que esse povo se torna”. De fato, a história
56
recebe uma marca: a do poder de quem narra a história, determina as condições em que ela
será narrada, quando será narrada, em que quantidade, frequência e forma, estabelecendo
presenças e ausências com ares de definitividade.
A decolonialidade lança-se neste terreno de disputas — das memórias, das fontes
historiográficas, das construções narrativas — a fim de trazer à lume aquilo que foi silenciado,
borrado e esquecido pela história considerada “oficial” ou “universal”. Essa perspectiva pode
ser vista nos trabalhos de teóricos que, hoje, se situam na Rede M/C/D
Dussel (1977, 2013) realiza suas pesquisas históricas sob este olhar, desde, pelo
menos, a década de 70, propugnando uma narração histórica da política e da filosofia, a partir
de uma crítica ao eurocentrismo, ao ocidentalismo, ao helenocentrismo, ao colonialismo, à
periodização organizada segundo critérios eurocêntricos (História Antiga, Medieval e
Moderna) e à exclusão da “América Latina” do processo histórico de consolidação da
Modernidade.
Outrossim, Mignolo (2003), a partir do conceito de “histórias locais”, preconiza a
leitura das experiências de cada coletividade sob a premissa de que não é possível criar um
relato uniforme e universal, uma vez que as histórias locais são múltiplas e diversas e devem
ser pensadas a partir de suas próprias localidades (pluritopia). Reafirma assim a
impossibilidade de se estabelecer uma história única, cuja ordem e periodização pertencem
todos os povos, seja como protagonistas, seja como coadjuvantes.
Uma experiência que evidencia esta abordagem decolonizadora da história é a do
“Taller de Historia Oral Andina” (THOA), fundado em 1983 e coordenado pela teórica
aimara-boliviana, Silvia Rivera Cusicanqui — que tece críticas a muitos autores do
pensamento decolonial —, cujo objetivo é compartilhar as histórias indígenas a partir do
próprio olhar indígena, suas memórias e saberes ancestrais, em contraposição à narrativa
histórica tida por oficial no país.
A crítica decolonial, portanto, contrapõem-se ao que Mendieta (1998, 2013)
denominou de temporalidade e espacialidade universal, propugnadas pela
Modernidade/Colonialidade europeia. Tais dispositivos estabelecem quem controla o tempo —
quem o mede e controla, quem temporaliza e é temporalizado, quem cria os critérios de
periodização — e o espaço, criando uma história teleológica, eurocêntrica, linear, evolutiva,
cujo progresso civilizatório culmina na sociedade europeia.
Nessa esteira, nesta seção iremos verificar até que ponto a crítica decolonial pode
iluminar camadas encobertas da historiografia em torno da universidade, seu surgimento,
transformações e modelos.
57
21
Excentuando-se, talvez, o modelo reformista, que se articula na América Latina e é menos conhecido nos
manuais de historia da universidade escritos na Europa. Mesmo assim, foi um modelo inspirado por movimentos
de origem europeia (liberalismo, socialismo, etc.)
22
Borrero Cabal (1993) apresenta um resumo destes “modelos” ou “tipos” de universidade que, recorrentemente,
são evocados para as discussões em torno de suas dinâmicas institucionais complexas. Nos inspiramos nessas
tipologias, bem como nas classificações consagradas de Burton Clark (1993) e Drèze e Debelle (1983) para
ordenar o nosso debate, conscientes, porém, que, conforme afirma Castanho (2002, p. 29): “[...] o estudo no
nível de modelos ganha em riqueza de determinação o que perde em riqueza de fatos ou manifestações”. Nesse
sentido, uma vez que o “modelo institucional” é uma operação conceitual que supõe uma generalização prévia,
entendemos que a abordagem aqui apresentada não ignora a importância de análises não modelares, pautadas em
estudos históricos das instituições universitárias, consideradas em suas especificidades.
58
Como já afirmado, há uma larga tradição teórica no campo dos estudos sobre a
universidade que, unanimemente, preconizam a sua origem europeia (CHARLES, VERGER,
2012; GILLI, VERGER, LE BLÉVEC, 2007; MAKDISI, 1981; MOORE, 2018; NURIA,
BERGAN, 2006; RUBIÃO, 2013; RÜEGG, 2003; VERGER, WEIJERS, 2013, entre outros).
Borrero Cabal (1993) reforça que a história da universidade é narrada em chave
eurocêntrica, remontando o início de sua historiografia a Middendorp (1567), na Holanda,
com a obra Academiarum Celebrium Universi Terrarum Orbis (Todas as universidades,
celebrações acadêmicas mundiais); passando por Jean Launoy (1672), na França, com a
Histoire de plus Célèbre Écoles (História das mais célebres escolas); e Paulsen (1885) na
Alemanha, que publicaria Geschichte weise Lehre an deutschen Hochschulen (História do
ensino em universidades alemãs). Segundo o autor, estas obras inauguram os estudos
sistemáticos sobre a história das universidades, enquanto campo de estudos.
De fato, é sintomático do final do início do século XVI — início do colonialismo
europeu — uma espécie de “tomada de consciência” de Europa como uma unidade histórico-
cultural, com um passado, valores, e projetos em comum e as universidades tiveram um papel
relevante neste processo.
Desta maneira, na Europa, desde o século XVI, consolida-se uma tradição de estudos
sobre a universidade, em chave filosófica, pedagógica e histórica, que atravessa os séculos,
com variadas ênfases históricas e conceituais. Poderíamos lembrar aqui, à guisa de exemplos,
de Kant (1993), Newman (2015), Rashdall (1895), Heidegger (2007), Ortega y Gasset (1957),
Jaspers (1961), Derrida (1999) entre outros intelectuais que se debruçaram sobre o tema.
Não obstante esta longa tradição historiográfica e filosófica, identificamos uma
produção acadêmica minoritária que intenta relativizar (ou mesmo questionar) a perspectiva
eurocêntrica quanto ao surgimento da instituição universitária.
Enquanto alguns preconizam que a universidade deve a sua existência às instituições
surgidas em países árabes, outros não negam propriamente a origem europeia da universidade,
mas tentam estabelecer importantes liames, continuidades e influências de experiências
formativas em outros continentes em relação à sua constituição (ALATAS, 2006; ASSIÉ-
LUMUMBA, 2006; BEDMAR, 2012; CHERRADI, 2016, 2020; DRAY, WAAST, 2008;
DMITRISHIN, 2013; GHUNAIMA apud MAKDISI, 1981; GODDARD, 2000; LULAT,
2003; POURCELOT, 2015).
59
23
Falamos de influência árabe e não islâmica, considerando que são identidades diversas e que haviam árabes
cristãos e cristãos “arabizados” na Idade Média.
60
24
O autor refere-se a um “diploma” de Medicina emitido pela Universidade AL Quaraouiyine, fundada em 859
a.C, em Fez, Marrocos, a qual, para muitos (ASSIÉ-LUMUMBA, 2006; BEDMAR, 2012; CHERRADI, 2021,
2020; DUSSEL, 2017), inclusive para UNESCO, é considerada a universidade mais antiga do mundo, ainda em
funcionamento. Para Makdisi (1970), porém, a informação sobre qual é a primeira universidade da história é
impossível de ser provada.
61
Renascimento italiano e se constituiu como narrativa histórica padrão que construiu os mitos
do surgimento da Europa, a partir do Romantismo alemão.
De acordo com este modelo, a Europa é fruto de um acúmulo cultural, histórico, linear
e progressivo que segue a seguinte equação: a “Europa Ocidental” como uma convergência
sequencial da cultura helenística, romana e judaico-cristã. Dentro desse modelo, a transição
entre o mundo grego, romano (pagão e cristão), cristão medieval, até o seu ponto culminante
— a Europa Moderna —, constitui-se em um padrão de “história universal”, ante o qual
subsome-se a história de todos os povos.
O “modelo ariano”, porém, é uma narrativa a favor de um projeto eurocêntrico, que
solapa as nuances da história, mitifica processos, invisibiliza sujeitos e povos e lança as bases
para a construção de uma ideia de Europa que se opõem a tudo o que seja “não europeu”.
Grosfoguel (2016, p. 141-142) vai além ao alertar para o “extrativismo epistêmico”
dos europeus em relação aos árabes, como um processo que decorre deste
encontro/encobrimento:
GOROCHOV, 2009). Verger (1991) diz que essa mobilidade já era uma realidade bem
documentada nas escolas pré-universitárias do século XII e que, na verdade, foi um dos
fatores fundamentais para a transformação das antigas escolas (como a escola monacal de
Paris) em instituição universitária.
Tal fenômeno migratório (peregrinatio acadêmica) era tão intenso que começou a
criar problemas sociais e jurídicos para as cidades que sediaram as primeiras universidades
(Bolonha, Paris, Oxford, Montpellier, logo seguidas por Pádua, Cambridge, Salamanca, entre
outras). O afluxo de estudantes trouxe desafios de ordem pública em torno dos direitos à
moradia, alimentação e segurança.
Não poucas vezes, estudantes e professores foram hostilizados pelos habitantes das
cidades e expostos, sem defesa, a cobranças ilegais e arbitrariedades por parte dos detentores
do poder local. Destemberg (2008) chega a recordar episódios violentos de morte de
professores e estudantes. Tal situação foi o que primeiro deu pretexto às autoridades
superiores (laicas e eclesiásticas) para intervir nas organizações universitárias (VERGER,
1991).
Buscando proteção e se inspirando na experiência dos grupos urbanos que exerciam o
mesmo ofício e que já se reuniam em guildas ou corporações (universitas), professores e
estudantes passaram a se reunir em associações, a partir de suas origens (as nationes), de
modo a lutarem por seus interesses perante as autoridades constituídas, estratégias que como
veremos foi exitosa (GRANT, 1996).
Um texto fundamental que inaugura os regulamentos protetivos de estudantes e
professores, é a Autentica Habita, constituição promulgada pelo Imperador Frederico
Barbaroxa, aplicada de forma imediata aos alunos da Universidade de Bolonha.
Segundo a Autentica Habita, aos professores e estudantes era concedido o direito de ir
e vir e de residência em qualquer “sede universitária”; os alunos e professores ficavam sob a
proteção imperial direta, determinando-se que nenhum estudante poderia ser molestado ou
privado de seus bens em retaliação à cidade de origem, sob pena de restituição do quádruplo
do valor cobrado e de destituição do magistrado de seu ofício. Ademais, a jurisdição sobre os
alunos poderia ser exercida, à sua escolha, por seus próprios professores ou pela jurisdição
eclesiástica (BUSSI, 2002).
É um documento que revela, portanto, uma nova noção da importância dos “homens
de saber” na Idade Média, no ambiente citadino, inseguro, povoado de pilhagens, pedágios e
violência por parte das jurisdições senhoriais, isto é, que demonstra como a instrução
enriquece o conhecimento e proporciona estabilidade à ordem social (RÜEGG, 2003).
65
(2003), principalmente em Paris e Oxford, era um caminho comum para chegar à formação
teológica, o aluno passar pelos ensinos das artes liberais. Em Paris, a Faculdade de Artes, na
qual se destacava a Lógica, era composta pela maior quantidade de alunos, entre laicos e
clérigos, os maiores responsáveis pelas greves e reinvindicações perante as autoridades
(COBBAN, 1975).
Em termos gerais, os conteúdos e métodos eram os mesmos, também. Em todas as
universidades se praticavam a lectio (a leitura) e a disputatio (a discussão), sendo constante as
presenças de Donato e Prisciano, em Gramática; Cícero, em retórica; Aristóteles, Porfírio e
Boécio em Lógica e Dialética; Euclides, em Geometria; Ptolomeu em Aritmética; o Corpus
jurídico (Digesto) em Direito; Galeno e Constantino em seus comentadores árabes em
Medicina e as Sentences de Pedro Lombardo e Gregório, o Grande junto à leitura da Bíblia
em Teologia (BORRERO CABAL, 2008a; CAMPOS, 2021; CHARLE, VERGER, 2012;
VERGER, 1991).
A Escolástica, assim, se desenvolvia nos ambientes universitários por meio de aulas
dialogadas, conferências orais encarnadas nas lectio, nas collationes, e as quaestiones que
constituirão a própria forma de pensar e organizar as ideias até os nossos dias. Aos alunos
cabia o papel de memorizar, consultar as autoridades sobre os assuntos e compreender as
formas de abordagem do texto que ia desde o aspecto gramatical, a etimologia, passando
pelos modelos e circunstâncias históricas da obra (BORRERO, 2008a).
Com o declínio da Idade Média e a constituição daquilo que foi denominado por
Modernidade (DUSSEL, 1993) a universidade passou por transformações substanciais,
acompanhando as mudanças sociais que atravessaram o continente europeu, advindas pela
constituição do humanismo, do Renascimento, da Reforma Protestante, da constituição do
Sistema-Mundo capitalista (WALLERSTEIN, 2005) entre outros fenômenos que constituíram
a expansão europeia a partir do século XV.
É importante ressaltar, neste contexto, que as primeiras universidades que viriam a
surgir nas colônias latino-americanas foram inspirados no modelo medieval, na qual se
desenrolou o debate clássico entre a natureza humana dos chamados “índios”, isto é, a disputa
pela compreensão se eles tinham alma ou eram como os animais, se eram passíveis de
conversão ou apenas de aniquilamento físico. A universidade, portanto, adquirirá um papel
fundamental na constituição da colonialidade, uma vez que é atrelada à construção de uma
identidade europeia.
Foi no espaço acadêmico espanhol, por exemplo, que se desenrolou o debate que se
tornou clássico entre Sepúlveda e Bartolomeu de las Casas, um debate que ainda ecoa —
69
mesmo que em outros termos — sobre alteridade, a humanidade do outro, mais precisamente,
dos povos encontrados nas Grandes Invasões iniciadadas com o colonialismo europeu.
As primeiras universidades no “Novo Mundo” fazem parte de todo um sistema
construído em torno do proselitismo cristão católico, isto é, em torno do projeto de conquistar
os “gentios” (os ameríndios e, posteriormente, os negros escravizados) e “civiliza-los” em
uma perspectiva político-religiosa. Por isso, inserimos como sua principal característica não o
universalismo — característico, aliás, de todos os modelos eurocêntrico — mas o proselitismo
religioso. A universidade medieval visava formar o “homem cristão”, o modelo de homem
considerado superior até então.
O declínio da Escolástica, o surgimento de um novo paradigma epistemológicos — a
Ciência Moderna —, a crítica dos humanistas á universidade, mesmo os problemas
financeiros e demográficos que assolaram a Europa (e as instituições universitárias) são
fatores que contribuíram para que esta instituição se transformasse, adaptando-se a novos
rumos. Poderíamos dizer que tais mudanças culminaram em um novo modelo de
universidade: a universidade humboldtiana.
o europeu “civilizado”).
76
27
Sobre o tema da “liberdade acadêmica”, sugerimos a leitura de Rüegg (2004) que demonstra as tensões entre
intelectuais, estudantes e o Estado prussiano em torno deste princípio e como a ideia de liberdade de pesquisa,
ensino e estudo proporcionou certa primazia do modelo humboldtiano em relação ao napoleônico quanto à sua
influência em outras partes do mundo (sua influência é vista, inclusive, na França).
78
colônias. Neste processo a educação, — de maneira mais ampla, a formação humana — foi
uma questão central que impactou radicalmente a história da universidade.
Em 1789, havia na França 27 universidades. A Assembleia Constituinte, por meio de
leis promulgadas entre 1789 e 1790, colocaram os bens das corporações e congregações nas
mãos do Estado, para serem administrados pelos departamentos (BORRERO CABAL,
2008b).
As universidades se tornaram suspeitas por serem instituições oriundas do Antigo
Regime. Precisavam, assim, serem refundadas ao lado de outros arranjos institucionais, ao
ponto de se tornarem coadjuvantes no arcabouço educacional francês.
Assim que, em lei de 1793, foram criadas as Escolas Centrais (distribuídas em todo o
território) com objetivos formativos ambiciosos, equivalente a instituições de educação
superior: funcionar com um sistema de classes e cátedras, correspondentes a três blocos de
cursos: história natural, desenho e línguas; matemática e ciências físicas e químicas; letras,
historia, política, agricultura e comércio. Porém, foram extintas em 1803. No mesmo ano,
criaram o Museu de História Natural, renomeando o antigo Jardim do Rei e a Escola Central
de Trabalhos Públicos, que depois seria renomeado como Escola Politécnica, responsável pela
formação para a indústria, o exército e a engenharia (CHARLE, VERGER, 2012; BORRERO
CABAL, 2008b).
Em 1794, a Convenção criou a École Normal — que depois se tornaria a Escola
Normal Superior — e, em 1795, um arranjo institucional que ia desde as escolas primárias, e
centrais, passando pelas escolas especiais até a culminância: o Instituto Nacional das Ciências
e das Artes, o qual substituiria as antigas universidades. Também foi fundada a Escola
Nacional de Música, a Biblioteca Nacional (com seus cursos de línguas orientais e serviços
consulares).
Surgiram outras instituições ainda, voltadas para a medicina, para as minas, para a
carreira militar, etc. Impressiona a diversificação e especialização de cada uma delas,
acompanhando o movimento progressivo de especialização das ciências. Fato principal é que
o próprio termo universidade foi extinto, abolido, algo que nunca ocorrera em outro país. Para
Charle e Verger (2012), o que ocorreu na França foi único em relação aos outros modelos,
pela busca da ruptura radical com o passado medieval, o Antigo Regime.
Como dito, as universidades foram extintas sob a alegação de estarem ligadas à velha
aristocracia (CHARLE, VERGER, 2012; CUNHA, 2007; RUBIÃO, 2013). Com o golpe de
Estado de 1799, se instaurou o Consulado, cujo primeiro Cônsul foi Napoleão Bonaparte.
80
Sobre a época, Borrero Cabal (2008b) diz que a situação educativa era confusa e caótica,
tendo em vista o fracasso das Escolas Centrais e a existência frágil da Escola Normal.
O esforço em se criar instituições educativas que dessem conta da formação do
indivíduo — do cidadão —, ao mesmo tempo em que se diferenciassem da velha estrutura
universitária, gerou todo tipo de proposta que se debatiam entre uma educação igualitária,
orgânica e hierarquizada (muito próxima da tradição histórica universitária) ou uma educação
fragmentada em instituições profissionalizantes e pragmáticas.
Como se sabe, ganhou primazia a segunda opção. De fato, sob o governo de Napoleão
Bonaparte, a educação passou a ser pensada e gerida a serviço do Estado (as escolas centrais,
os liceos e a universidade). O Ensino Superior, mais precisamente a Universidade Imperial
(1806), foi reconstruída com três preocupações, sintetizando aqui as ideias de Charle e Verger
(2012) e Cunha (2007): oferecer ao Estado pós-revolucionário quadros burocráticos,
demolindo a universidade antiga como formadora de intelectuais de uma classe em declínio;
controlar a formação de acordo a nova ordem social instituída e obstaculizar o surgimento de
novas corporações profissionais.
Agora, a universidade (o Estado) deteria o monopólio da formação, da diplomação, da
do concurso e da classificação daqueles que seriam autorizados para o exercício de uma
profissão, tendo como ponto centralizador, Paris. Mais ainda, a Universidade Imperial
encabeçaria o ensino e a educação pública em toda a França (BORRERO CABAL, 2008b).
Dessa forma, o termo “universidade” toma um sentido novo, relacionado ao monopólio da
instrução pública, por meio de uma corporação de professores criada e mantida pelo Estado.
Neste sentido, consideramos como uma das principais características da universidade
napoleônica o “estatismo”, isto é, a relação necessária entre universidade e a chancela e
regulamentação estatal. Esta vinculação tornou-se lugar comum e espraiou-se pelo mundo até
os dias atuais28.
Como vimos, as universidades constituídas em processos decoloniais muitas vezes são
criadas e desenvolvem as suas atividades à revelia (às vezes em oposição) ao Estado. Em
certo sentido, muitas se constituem dentro de processos anti-estatais (como a Unitierra e a
Univerisdad Amawtay Wasi, no Equador).
A crítica decolonial permeia esse anti-estatismo ao sublinhar a importância das formas
comunitárias de organização da vida, as quais, não poucas vezes, transcendem as
regulamentações do Estado. Nesse sentido, é possível existir escolas, museus, universidades,
28
Mesmo com a constituição e expansão do mercado de Ensino Superio pelo mundo, as universidades
particulares que surgiram (e surgem), precisam obedecer à regulamentação do Estado e se submeter às suas
determinações.
81
entre outros arranjos institucionais (inclusive não concebidos na lógica Ocidental), desde que
assim sejam considerados pela comunidade que os constitui.
Outrossim, é possível existir uma universidade — a universidade fronteiriça — sem a
obsessão do modelo napoleônico pelo curricularismo, pela segmentação disciplinar, pela
hierarquização dos papéis entre professor e alunos, e pela atribuição de títulos acadêmicos.
Rüegg (2004) considera uma das mais importantes consequências desse processo a
“profissionalização” da carreira universitária. Com a unificação dos Estados, a intensa
burocratização, o professor torna-se uma espécie de servidor público vinculado à burocracia
estatal. Isso pode ser constatado através do papel da Escola Normal Superior francesa,
responsável por formar os professores de ensino superior, de forma a que servissem à
educação pública dentro de uma estrutura hierárquica pré-definida.
Borrero Cabal (2008b) chega a afirmar que não se trata da Universitas magistrorum
et scholarium, cujo prestígio era o saber, mas de um Corps quase militar, imóvel e obediente
aos ditames imperiais, sem missão científica, o que é corroborado por Charle e Verger (2012),
os quais afirmam que o essencial de pesquisa ou inovação se concentra em alguns cursos da
Sorbonne ou do Colégio de França, ou no seio das sociedades eruditas, sendo mesmo a
ciência instrumentalizada a serviço do Estado.
Na universidade de modelo napoleônico, o professor não está envolvido com
investigação científica, mas com a atribuição de títulos e graus de bacharelado e licenciatura.
Rüegg (2004) chega a afirmar que se trata de um modelo submetido a uma estrita disciplina
militar, organizado e controlado por um despotismo esclarecido que governa até o último
detalhe do currículo, a atribuição de graus, a conformação das visões com as doutrinas oficiais
e mesmo os hábitos de seus partícipes.
Darcy Ribeiro (1969, p. 41) apresenta um olhar mais positivo em relação à
universidade napoleônica. Para o antropólogo, “nos quarenta anos seguintes à reforma
napoleônica, a França conheceu o maior período de florescimento intelectual e científico de
sua história”, não ignorando, porém, a tensão entre a racionalização burocrática, o excesso de
formalismo e centralização e a criatividade cultural e inovação.
A autoridade máxima da universidade era o Grand Maître, com poderes ilimitados de
nomear professores, administradores, conselhos acadêmicos, conceder bolsas de estudo,
licenças, redigir Estatutos, etc. Os professores compunham um corpo laico, porém com ethos
que poderia ser remetido ao religioso, ao ponto de o imperador ordenar o celibato do corpo
docente, de forma a que se dedicassem exclusivamente às suas funções acadêmicas (MINOT,
1991; RUBIÃO, 2013).
82
No início do século XIX, o Reino Unido contaria com uma universidade na Irlanda
(Trinity College), quatro na Escócia (Aberdeen, Edinburgh, Glasgow, St. Andrews), duas na
Inglaterra (Oxford e Cambridge) e nenhuma no País de Gales. Entretanto, poderíamos apenas
falar de “modelo inglês” em um sentido genérico, se ignorarmos que havia uma variedade de
instituições com poucas conexões internas, pelo menos até o final do século XIX. (RÜEGG,
2004).
As principais universidades britânicas — Cambridge e Oxford — ainda mantinham a
estrutura medieval das corporações autônomas. Rüegg (2004) afirma, porém, que essas
instituições logo sentiriam os influxos das reformas universitárias alemães, mesmo com todos
os movimentos de oposição.
De certa, forma, a dupla “Oxbridge” implementaria os valores da universidade
moderna de maneira mais eficiente que na Europa continental, tendo em vista a manutenção
de suas autonomias corporativas e colegiadas em relação às injunções estatais e seriam as
propulsoras da construção do sistema universitário britânico. Porém, isso não se deu de forma
linear, mas em meio a muitas resistências e debates.
Castanho (2002) e Ribeiro (1969), por exemplo, consideram o modelo inglês elitista e
aristocrático, tendo por parâmetro as reflexões do Cardeal Newman (2015) para o qual a
83
29
C. P. Snow (2015), já no século XX, irá retomar esse debate ao abordar as “duas culturas”: ciências x
humanidades.
84
31
Bergel (2008) destrincha as redes transnacionais da Reforma Universitária e explicita como esse caráter anti-
imperialista e de autoconsciência latino-americana foi impulsionado por agregações políticas e culturais,
propiciada, em parte, por escritores modernistas que reforçaram a construção de intercâmbios em escala
intercontinental.
88
Mariátegui) , na busca pela sua identidade latino-americana, pouco deram atenção as formas
de organização, saber e prática dos assujeitados pela comunidade, notadamente os povos
indígenas e negros escravizados.
De fato, esses sujeitos não participam do movimento reformista, tampouco a eles é
dado o direito de participarem dos debates em torno da universidade. Desta forma, o
americanismo faz parte da retórica de homens brancos, intelectuais de vivência eurocêntrica,
que a partir dos influxos de teorias e movimentos políticos-sociais ocorridos na Europa,
iniciam uma empreitada de modernização das instituições latino-americanas.
De certa maneira, podemos afirmar que o Movimento de Córdoba que se espalhou
pelo continente, foi o grito da elite “criolla” que emergia dos processos de industrialização
incipente da região as quais, entre seus protestos, não combatia radicalmente os processos de
colonização interna e colonialidade inerentes aos seus privilégios.
Nesse sentido, pensamos que a crítica decolonial da universida transcende as
demandas de Córdoba, uma vez que não se prende à busca de uma identidade latino-
americana. Ao contrário, a própria ideia de América foi forjada pelo colonizador, sendo uma
expressão de poder (MIGNOLO, 2007). A decolonialidade investe na práxis de sujeitos e
grupos sociais que, muitas vezes, não se arrogam uma identidade nacional ou continental, mas
uma identidade local, de origem comunitária ou base étnica. Desta forma, não se trata de
defender um americanismo, mas de defender práticas de existências pluriversas, que não
lidam com fronteiras políticas.
Para além do debate anti-imperialista e americanista, a partir do “efeito Córdoba”,
reflexões as mais variadas foram feitas em relação à universidade, algumas de teor já
conhecidas, como o debate em torno da autonomia universitária; outras, inovadoras, como a
questão da educação popular e da importância da extensão universitária para inserção social
da instituição, da popularização da universidade e de sua responsabilidade social. De fato,
como ensina Roca (1978): o grande achado da Reforma de Córdoba foi descobrir que reforma
universitária é o mesmo que reforma social.
Nesse sentido, ainda, Rubião (2013, n.p):
mais diversas, sendo praticamente impossível alcançar suas minúcias, caso se queira
descrever de maneira mais genérica essa história, risco que aqui assumimos.
As primeiras instituições de Ensino Superior estadunidenses foram fundadas no
século XVII. Charle e Verger (2012) afirmam que, no início, eram uma imitação das
universidades inglesas, o que é corroborado por Rubião (2013) e Rüegg (2004). Baseadas no
modelo dos Colleges residenciais, eram instituições de forte traço religioso, fundadas pelas
comunidades de origem, presididas por Conselhos constituídos por autoridades locais, com
função de formação de ministros religiosos e oficias das colônias. Assim, comunidades
religiosas de presbiterianos, congregacionais, batistas, anglicanos e reformadores holandeses
criaram faculdades afinadas com as suas respectivas demandas.
Se no início, tais Colleges aderiram ao currículo de latim, grego e matemática das
universidades antigas, logo foram influenciados por princípios iluministas. Preceitos
aristotélicos deram lugar à ciência experimental newtoniana e o empirismo, principalmente de
John Locke, o qual tornou-se leitura obrigatória nestas faculdades em meados do século
XVIII (HOELEVER, 2002).
Após a Guerra de Secessão, o rompimento com a Inglaterra exigiu que as instituições
existentes fossem colocadas a serviço da nova nação, isto é, com a missão de inculcar o
ideário republicano nas elites a serem formadas, de maneira a preservar a institucionalidade
do que compreendiam por democracia (basicamente a extensão da capacidade de se organizar,
eleger e votar dos homens brancos e proprietários). Outrossim, as instituições deveriam
investir em formações mais práticas, voltadas para a agricultura e para a mecânica (GEIGER,
2000).
É desta época, conforme Rubião (2013), o evento mais importante para a história das
universidades estadunidenses, até então: o caso Dartmouth College. A controvérsia girava em
torno do conflito judicial — que chegou à Suprema Corte — entre o Estado de New
Hampshire e o Council of Trustees, isto é, o Conselho que tinha por responsabilidade
administrar o College.
A grande questão a ser resolvida era se a instituição era pública, com estatuto
submisso ao Estado ou se era privada, isto é, desvinculada dos interesses das legislaturas. A
decisão, que considerou a instituição de natureza beneficente privada, consolidou um modelo
a ser adotado por quase todas as universidades estadunidenses nas próximas décadas, isto é,
um modelo pautado na cultura filantrópica, alimentado por doações, com certa autonomia
política e econômica em relação aos governos (RUBIÃO, 2013).
91
32
Shils e Roberts (2004) especificam os elementos do modelo humboldtiano que foram reapropriados pelas
universidades estadunidenses, explicitando ainda aquilo que foi deixado de lado.
92
educação universitária como aquela que pode assegurar uma liberdade com significado para o
sujeito ir se constituindo existencialmente a partir de sua participação na vida intelectual.
Hutchins (1953), por sua vez, trata da industrialização, da especialização e de seus
efeitos destrutivos para a formação de uma comunidade de pessoas liberalmente formadas,
escrevendo em defesa da discussão informada como método de chegar à verdade nas
humanidades e da liberdade investigativa, bem como criticando o empobrecimento da
universidade que se limita a formar para ocupações profissionais. Assim, a universidade seria
um agente de transformação dos espíritos em um mundo materialista e corrupto, sem senso de
proposta e imerso no relativismo ético.
Harris (1970) denomina não somente Hutchins, mas Irvin Babbitt, Albert Jay Nock,
o já citado Flexner e Alexander Meiklejohn como os “cinco contra-revolucionários” do
Ensino Superior estadunidense. O que os uniria, não obstante pertencerem a diferentes
gerações, seria a crítica comum ao caráter utilitário e operacional do conhecimento cultivado
nas universidades, isto é, voltado para a educação profissional ou para a pesquisa submetida
ao cálculo dos interesses econômicos, industriais e tecnológicos.
Contribuição para o debate, que se distingui das anteriores, consideradas por seus
críticos como manifestações retrógrada de uma educação elitista que não teria mais lugar em
um mundo produtivista, é a perspectiva da Multiversity (Multiversidade), idealidaza por Clark
Keer.
Em 1963, Kerr — que, como muitos intelectuais que escreviam sobre o tema,
participava ativamente da gestão de uma universidade, como reitor — encarava as
transformações da universidade de pesquisa (do modelo humboldtiano) como algo novo.
Novos campi se espalhavam pelas paisagens estadunidenses, o Ensino Superior se
expandia exponencialmente (KEER, 1991). Com isso, as universidades desenvolveram uma
complexa teia de propósitos, que criou tensões crescentes entre os objetivos de utilidade
social e a busca por uma espécie de “pureza” acadêmica. Porém, para Keer (2001) a
universidade de seu país não era Oxford (modelo newmanianno), nem Berlim (modelo
humboldtiano), mas era uma instituição de tipo inédito, uma instituição multidiversa.
Constatava tal multidiversidade nas complexas relações estabelecidas pela
universidade e em suas múltiplas atividades que transcendiam o espaço físico do próprio
campus. A universidade, por meio de seus centros agrícolas, laboratórios, grupos de
investigação, centros de extensão, equipamentos culturais (museus, bibliotecas, etc.) prestava
serviços e, articulando-se com a sociedade civil e com os diferentes níveis de governo,
promovia profissionalização, educação liberal e pesquisa (KEER, 2001).
94
Por fim, Barrow (1990) consegue nos mostrar como durante as três primeiras décadas
do século XX — portanto, antes da grande expansão do Ensino Superio nos EUA e no mundo
— a ideologia da classe dominante na América, daqueles que controlavam a recém-criada
estrutura econômica do capitalismo industrial emergente, exerceu uma poderosa influência
sobre Educação.
Essa ideologia, que o autor chama de "ideal corporativo" (BARROW, 1990, p. 30),
insistia que as questões educacionais foram reformuladas como problemas de organização
empresarial e de investimento de capital. Dessa forma, os problemas educacionais passaram a
ser prerrogativas dos empresários, e seus respectivos intelectuais e grupos técnicos-
administrativos.
Uma dimensão deste ideal pode-se constatar na liderança das universidades e
faculdades. Na virada do século, Barrow descobriu que o Ensino Superior estava sendo cada
vez mais governado por um bloco político de banqueiros, industriais e advogados
corporativos. Entre os resultados dessa mudança de poder e controle estava a imposição de
noções de eficiência e produtividade educacional modeladas no modelo corporativo de
organização empresarial.
Se tal movimento já se fazia sentir, de maneira embrionária, no início do século XX,
após a II Guerra Mundial, quando os EUA se consolidaram como potência econômica
geopolítica, tal “ideal corporativo” difundiu-se para todas as regiões do globo sob uma nova
racionalidade: a racionalidade neoliberal. Por isso, consideramos um valor essencial para a
constituição desse modelo o “corporativismo”34.
Há decadas, principalmente a partir dos anos 80, quando se tornou agenda de política
pública em vários países, muito se tem dito e escrito sobre neoliberalismo. De fato, sua
amplitude e complexidade cria dificuldades para um consenso em torno de sua definição. Não
à toa, Laval afirma no prefácio ao livro de Casara (2021, p. 4), que “o significante
‘neoliberalismo’ é usado de tantas maneiras que acaba por se tornar uma espécie de conceito
‘guarda-chuva’, um nome vago e impreciso”. Alguns autores até sugerem que seja um
conceito abandonado por sua imprecisão (DUNN, 2016; LAIDLAW, 2015; VENUGOPAL,
2015). Por isso, antes de avançarmos, é importante delimitarmos do que estamos falando,
quando utilizamos o termo “neoliberalismo”.
34
Corporativismo aqui compreendido como o estabelecimento da racionalidade neoliberal em todas as
dimensões da universidade (ensino, pesquisa, extensão, gestão, etc.). Não confundir com o conceito de
corporate university, surgido nos EUA durante a década de 90, para designar as “universidades” criadas por
empresas para incrementar a formação de seus funcionários
97
35
Para compreensão histórica do pensamento neoliberal, suas múltiplas vertentes e dinâmicas, consultar
Mirowski e Plehwe (2009).
98
Dentro desse imperativo, no qual tudo passa a ser regido pela lógica concorrencial, o
Estado e os próprios sujeitos tornam-se, eles mesmos, ativos mercadológicos. O Estado deixa
de ser um ente exógeno ao mercado global, e passa a ser concebido como uma empresa.
Jargões como “modernização” e “governança” tornam-se constantes, sequestrando a própria
noção de “direito” (previdenciário, à saúde, à educação, etc.) e “serviço público”, para os
transformar em bens de consumo (DARDOT, LAVAL, 2016).
Quanto aos sujeitos, são transformados em “empreendedores de si mesmos”, o que os
torna incapazes de sociabilidades que se constituem para além da lógica das vantagens
pessoais e da geração de lucro (CASARA, 2021). Assim, entregues à concorrência infinita, se
veem desconectados de qualquer outra estrura coletiva de pertencimento (principalmente a de
classe), sendo levados a assumir uma responsabilização individual pelas consequências de
suas escolhas, assumindo os riscos dos próprios fracassos ou progressos.
Brown (2016, 2019) traz contribuições relevantes para um debate mais atualizado,
cujo enfoque é a relação entre neoliberalismo e governos autoritários (iliberais) de extrema
direita que chegaram ao governo de inúmeros países nos últimos anos. Segundo Brown
(2019), há um núcleo conservador nos pensamentos de Hayek e Friedmann (e dos ordoliberais
de matriz alemã) que abriram as portas para forças antidemocráticas, de manutenção do status
quo e de ampliação do mercado, em detrimento dos aspectos sociais, que passaram a ser
demonizados.
Como a racionalidade liberal e o corporativismo se espraiam em todos os âmbitos, os
seus efeitos podem ser constatados na educação, notadamente, nas universidades, sendo o
modelo neoliberal de universidade o último grande modelo universitário que se constituiu e
tem se propagado por todo o globo, a partir do Ocidente (SHIN, 2018).
Como vimos, as universidades estadunidenses, desde suas origens, mesmo antes do
pensamento neoliberal sequer se constituir organicamente, estavam associadas a uma ética de
mercado. Na segunda metade do século XX, com a expansão do Ensino Superior e aumento
do número de matrículas em todos os continentes (CHARLE, VERGER, 2012), a crise
progressiva do Estado de Bem-Estar Social, e a maior integração entre entes internacionais,
99
mediante a globalização, o discurso neoliberal foi cada vez mais instrumentalizado como
técnica de gestão pública.
Com a globalização, mercados se ampliaram, redes transnacionais foram estabelecidas
em todos os âmbitos, impactanto a constituição de um mercado global em torno do Ensino
Superior36. O surgimento de tal “espaço transnacional de ensino superior” (MARTINS, 2021)
perpassa pela ideia de desterritorialização das universidades, principalmente das mais
valorizadas, que não mais se limitam aos sistemas nacionais de Ensino Superior, criando
filiais em outros territórios; o aumento da mobilidade estudantil; a criação de rankings globais
de avaliação, tudo dentro de uma lógica concorrencial, isto é, sob a égide de uma
racionalidade neoliberal.
Órgãos supranacionais como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento
Econômico, Banco Mundial, UNESCO, Organização Mundial do Comércio, junto com policy
makers, intelectuais (experts), think tanks e outros agentes, passaram a influenciar as políticas
educacionais nacionais de Ensino Superior, orientando-as segundo a mesma agenda.
Nesse contexto que Giroux (2014) critica o foco do Ensino Superior focado em testes
padronizados e em instrução baseada em habilidades acríticas. Para o educador, o modelo
educacional de hoje está centrado em valores corporativos e na dinâmica do poder, em
detrimento da formação dos alunos em cidadãos engajados e ativos.
Martins (2021) afirma que com a constituição de um espaço transnacional do ensino
superior, um novo vocabulário surgiu para se referir às universidades, o que indica “um novo
espírito” que as guia, em comparação às características institucionais históricas que marcaram
a sua existência. Termos como “sociedade do conhecimento”, “economia do conhecimento”,
“universidade empreendedora”, “universidade de classe mundial” passam a ser difundidas
globalmente por meio de artigos, relatórios institucionais, livros e artigos acadêmicos,
propagando um conjunto de valores e práticas que redefinem o papel das universidades em
âmbito global, uma espécie de colonização neoliberal dos modelos universitários.
Já na década de 60, este “novo espírito” se divisiva, fosse sob os auspícios da Teoria
do Capital Humano (SHULTZ, 1971; CARNOY, 2006), fosse sob o influxo de teorias que
ressaltavam o caráter utilitário e instrumental dos conhecimentos gerados na universidade.
Nesse último sentido, investigadores como Peter Drucker (1969, 1959), Bell (1973), Touraine
(1969, 1972), Castels (1994), cada um a seu modo, sinalizam para a emergência de uma
36
Não somente universidades, mas instituições de outras naturezas se expandiram nos mais diversos arranjos
institucionais, muitas das quais voltadas para a formação profissionalizante (Ex: Community Colleges, nos
Estados Unidos da América; Fachhochschule, na Alemanha; Institut Universitaires de Recherche, na França;
Polytechnics, na Inglaterra) (MARTINS, 2021).
100
37
Para Gibbons (2010), um dos principais consultores do Banco Mundial, no que diz respeito a assuntos
relativos ao Ensino Superior, e um dos mais recorrentes nos índices de citação (RUBIÃO, 2013), o Modo 2,
representativo de um novo modo de produzir conhecimento, possui como características: a porosidade das
fronteiras entre “pesquisa pura” e “pesquisa aplicada”; a transdisciplinaridade voltada para a resolução de
problemas; a diversidade organizacional, com a perda da hegemonia das universidades na produção do
conhecimento; reflexividade, social accountability, que transcende o mero “julgamento pelos pares”, cedendo
espaço a novos atores (políticos, econômicos, ambientais, etc) no equacionamento dos interesses de pesquisa.
101
39
Evidentemente, tendo em vista a limitação temporal e o farto corpus documental, as análises das pesquisas
coligidas serão realizadas de forma breve, sem maiores aprofundamentos, servindo apenas de orientação e
sustentação da relevância da presente pesquisa.
103
Se falarmos em estudos sobre o Ensino Superior, por exemplo, “saber o que se quer
buscar” representa dificuldades ainda maiores, pois em seu bojo teríamos que inserir uma
variabilidade de instituições, com naturezas, vocações institucionais e tipos de organização
político-jurídicas as mais diversas.
Longe de ignorarmos a diversificação atrelada ao crescimento do Ensino Superior,
também no Brasil (SAMPAIO, 2000), contemplada, aliás, no atual ordenamento jurídico
nacional, na presente pesquisa desejamos delimitar a nossa análise às instituições que são
consideradas universidades em seus respectivos países, a partir de seus próprios critérios
formais.
No caso brasileiro, por exemplo, qualquer instituição, para ser considerada uma
universidade deve ser uma autarquia e possuir como características fundamentais: a
autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial; se pautar
pela indissociabilidade entre o ensino, a pesquisa e a extensão, conforme leitura articulada do
art. 207 da Constituição Federal do Brasil com os arts. 51 a 57 da Lei nº. 9.394/96.
Porém, isto não é o bastante na presente investigação, uma vez que a própria
perspectiva decolonial, como vimos, amplia esta abordagem. Consoante esta perspectiva,
entendemos que devem ser trazidos para o levantamento do estado da arte as análises que
evocam experiências formativas de universidades que não são, necessariamente, reconhecidas
como tais pelo Estado, mas que são reconhecidas por suas comunidades e, por isso, podem ser
abordadas enquanto instituições universitárias.
Entre estas universidades “não oficiais”, com maior ou menor (ou nenhuma)
aproximação e reconhecimento estatal, podemos citar, por exemplo, não somente a Unitierra,
mas a Universidad Intercultural de los Pueblos del Sur40, no México; a Universidade
40
Projeto alternativo de educação não formal, localizado no México, voltado para a população indígena.
104
Amawtai Wasi41, no Equador; a Universidade Popular dos Movimentos Sociais 42, no Brasil; a
Universidade Ixil43, na Guatemala, entre outras.
Por isso, na construção deste estado da arte — assim como no de qualquer outro —
temos que tomar decisões e explicitá-las, seja com relação ao recorte temporal, às fontes
escolhidas, os descritores utilizados, as bases de dados consultadas, os eixos temáticos
delimitados. Somente assim poderemos lançar um “olhar para trás”, analisar caminhos
percorridos, passíveis de serem revisitados em outras pesquisas, de maneira a sistematizar e
organizar o acesso às produções científicas (ROMANOWSKI; ENS, 2006).
Primeiramente temos que circunscrever os descritores que orientarão a nossa busca,
tendo por diretriz a objetivo que nos propomos, isto é, analisar e compreender as contradições
e tensões que emergem das diferentes compreensões e projetos de universidade, a partir dos
movimentos de decolonização desta instituição, encarnados em práxis de sujeitos,
movimentos sociais e grupos étnicos.
Pensamos que os descritores “Universidade” e “Decolonialidade” 44, desde que
articulados, nos proporcionarão os resultados almejados. Desta forma, ao pesquisarmos
artigos, teses e dissertações, à luz dessas categorias correlacionadas, poderemos verificar, até
que ponto, já existe uma produção acadêmica consolidada em torno da crítica decolonial da
instituição universitária, isto é, a constituição de um subcampo de conhecimento (OLIVEIRA,
RIBEIRO, 2022).
De fato, o pensamento decolonial tem contribuído efetivamente para os estudos sobre
a universidade ao longo das últimas décadas, pavimentando uma estrada sinuosa, conectada e
interdependente, expressa em forma de problemáticas novas, de abordagens teóricas
diferenciadas e de olhares e perspectivas inéditas sobre a universidade.
Ademais, a presente tese, em matéria de estudos sobre a universidade se configura,
como uma tentavia de sistematizar, teoricamente, como a decolonialidade pode problematizar
as variadas concepções de universidade e, a partir de sua própria perspectiva, pode projetar
utopias, subjetividades, pedagogias, mundos outros, a partir de um outro ethos universitário
(PALERMO, 2015).
41
A Pluriversidad Intercultural Amawtay Wasi, foi fundada em 2004, na cidade de Quito, no Equador. Constitui-
se como uma proposta de educação superior conquistada pelo movimento indígena do Equador.
42
Nascida no Fórum Social Mundial, em 2003, é um coletivo voltado para articular conhecimentos e o
intercâmbio de experiências entre movimentos sociais.
43
A Universidad Ixil, localizada na Guatemala, busca resgatar e reforçar os saberes ancestrales da comunidade
Maya.
44
Para refinar a construção do estado da arte, utilizaremos, também, o termo “descolonialidade”, empregado por
alguns investigadores (as). Sobre as diferenças estabelecidas entre “decolonialidade” e “descolonialidade”,
consultar a segunda nota de rodapé de Walsh (2013).
105
45
Pensamos que ainda está por ser feito um estudo que mapeie as origens africanas da crítica decolonial da
universidade e em qual ponto ela dialoga com a crítica latino-americana. A partir da construção deste estado da
arte, nos parece (ainda como hipótese) que o fenômeno do apartheid foi fundante para esta crítica, bem como o
pensamento de autores pós-coloniais como Frantz Fanon e Aime Cesáire, tendo o maior influxo de pensadores
da Rede, notadamente daqueles com maior inserção acadêmica nos EUA (Mignolo, Grosfoguel, Quijano, por
exemplo), somente na última década.
106
com limitações, tendo em vista que os trabalhados que não foram inseridos nesses repositórios
não serão acessados.
46
Acesso em: http://bdtd.ibict.br/vufind/
107
da Universidade de
Brasília
Movimentos sociais,
universidade e
Universidade
produção de
REGHIM, Mariane Silva 2017 do Estado do
conhecimento: uma
Rio de Janeiro
perspectiva feminista
e decolonial.
Indígenas estudantes
nas graduações da Universidade
DOEBBER, Michele
UFRGS: 2017 Federal do Rio
Barcelos
movimentos de re- Grande do Sul
existência.
Colonialidade do
saber e a dinâmica
Universidade
universitária latino-
Federal da
americana: reflexões GÓES, Virginia Santiago
2018 Integração
desde e com o eixo dos Santos
Latino-
de Fundamentos de
Americana
América Latina da
UNILA
Des/obediência na
de/colonialidade da Universidade
MOURA, Eduardo Junio
formação docente em 2018 Federal de
Santos
arte na América Minas Gerais
Latina.
O pensamento de
Boaventura de Sousa
Universidade
Santos e suas HOMMA, Luana Hanaê
2018 Federal do
contribuições para a Gabriel
ABC
universidade
brasileira.
Descolonização
Universidade
epistêmica na SILVA, Nádia Maria
2018 Federal da
perspectiva negro- Cardoso
Bahia
brasileira
A construção de uma
razão decolonial nos
cursos de direito a
partir do pensamento
Faculdade de
complexo e do
COSTA, Lucas Kaiser 2019 Direito de
pluralismo jurídico e
Vitória
a busca pela
efetivação dos
direitos humanos
fundamentais
Impasses e CRUZ, Denise Gonçalves 2019 Universidade
possibilidades do da Federal de São
pensamento Carlos
decolonial no
108
Ensino Superior: o
caso de uma
universidade
colombiana
A participação da
Extensão
Universitária no
processo de Universidade
NOGUEIRA, Maria das
descolonização do 2019 Federal de
Dores Pimentel
pensamento e Minas Gerais
valorização dos
saberes na América
Latina
Tensões e conflitos
emergentes nas
práticas de
letramentos
acadêmicos em
Universidade
contexto SOUZA, Naiara Cristina
2019 Federal de
intercultural: Santos de
Goiás
construindo
caminhos de
resistência para
ocupar o território do
campo acadêmico.
Tensões subjetivas e
culturais na
experiência
identitária de ser Universidade
TEIXEIRA, Adrielle de
um/a estudante 2020 Federal da
Matos Borges
universitário/a Bahia
negro/a: a
emergência de um
Self Decolonial
Interculturalidade: Universidade
experiências e Federal
BOACIK, Daniela 2021
desafios da/na Tecnológica do
universidade Paraná
Escrita acadêmica
Universidade
insurgente: uma
SOUZA, Gilmara Machado 2021 Estadual de
análise do gênero
Goiás
“carta-artigo”
Fonte: BDTB.
É interessante identificar que as produções stricto sensu, mesmo diante de um recorte
temporal relativamente amplo, que vai do ano 2000 até 2023, tem o seu primeiro registro
109
nesta base de dados apenas em 2015, isto é, cerca de dez anos depois das primeiras incursões
do pensamento decolonial no Brasil47.
Trata-se da dissertação intitulada “A inclusão da diversidade no ensino superior: um
estudo da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila) na perspectiva das
epistemologias contra-hegemônicas”, de autoria de Suelen de Pontes Alexandre, apresentada
no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Nove de Julho.
As produções críticas sobre a universidade em perspectiva decolonial se multiplicaram
na segunda década do século XXI, seguindo a tendência de conjunto de uma maior
disseminação do pensamento decolinial (DIAS, 2021).
Quanto às regiões de origem, temos que, do total de achados (16), Sudeste (43,75%) e
Sul (25%) concentram mais da metade das produções identificadas. A região Nordeste
(12,5%) e Centro-Oeste (18,75%) são menos producentes, sobrepujando apenas a região
Norte que não apresenta nenhum achado. Esse é um dado que reflete a assimetria histórica na
origem e consolidação dos Programas de Pós-Graduação, predominantes nas regiões Sul e
Sudeste, em detrimento das outras, retrato de uma geopolítica do conhecimento interna do
país (DIAS, 2021).
Quanto à natureza institucional (pública e privada), temos uma predominância dos
registros oriundos de universidades públicas (87,5%), em comparação aos oriundos de
instituições privadas (12,5%), o que evidencia e reforça a pujança da pesquisa stricto sensu
nas instituições públicas e a sua maior porosidade, proporcionalmente, às teorizações e práxis
decoloniais.
Quanto ao recorte por sexo, temos uma predominância da autoria feminina (81,25%)
em comparação à masculina (18,75%). Dias (2021) sugere que a proposta transgressora do
pensamento decolinial, a sua inclinação ético-política para o soerguimento de alteridades
obnubiladas pelas Modernidade — incluindo-se a questão racial e de gênero — pode ser um
indicativo para a maior agência e autoria de mulheres.
Analisaremos, posteriormente, o que consideramos serem os eixos temáticos que
norteiam não somente os achados do IBTD, mas das demais bases de dados consultadas.
47
Segundo Dias (2021), as primeiras incursões do pensamento decolonial no Brasil remontam à aula inaugural
realizada por Nelson Maldonado-Torres, no Programa de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Estudos
Africanos da Universidade Federal da Bahia, em 2005 e ao curso “Pedagogia Decolonial”, ministrado por
Catherine Walsh, em 2007, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
110
48
Acesso em: https://catalogodeteses.capes.gov.br/catalogo-teses/#!/
111
Colonialidade do
Saber no ensino de
Universidade
Filosofia: um estudo SOUZA, Sulivan Ferreira
2017 do Estado do
em duas de
Pará
Universidades
Públicas de Belém
A Lei 10.639/03 na
formação inicial de Universidade
professores do curso GOMES, Ana Cristina da Federal do
2018
de letras – literatura Costa Estado do Rio
negra brasileira e de Janeiro
africana
A formação docente
a partir de currículos
decoloniais: análise
Universidade
de experiências FUCHS, Henri Luiz 2019
La Salle
instituintes em cursos
de pedagogia na
Abya Yala
Bases
epistemológicas dos
discursos dominantes Universidade
de LEAL, Fernanda 2020 do Estado de
‘internacionalização Santa Catarina
da educação
superior’ no Brasil
Fonte: Catálogo de Teses e Dissertações da CAPES
Realizando a mesma análise quanto aos registros identificados na base de dados do
IBTD, não constatamos grandes mudanças. Aqui também temos o primeiro registro datado do
ano de 2014, seguindo a tendência geral de maior produção stricto sensu em perspectiva
decolonial na segunda década do século XXI.
Quanto à origem geográfica, persiste a predominância da região Sul (42,85%) e
Sudeste (28,57%) em relação às demais. A diferença, no entanto, está na ausência de registros
oriundos da região Centro-Oeste. Desta vez, encontramos um achado da Região Norte
(14,28%), Estado do Pará, e outro da Região Nordeste, na Bahia (14,28%). Embora tais
regiões apresentem resultados menores, sinalizam que possuem produção científicia dentro do
que consideramos um sub-campo de conhecimento sobre as universidades e que resistem
mesmo diante das assimetrias regionais do país49.
Outrossim, do ponto de vista institucional, persiste o predomínio da produção stricto
sensu de universidades públicas (85,71%) em relação às instituições privadas (14,28%), até
49
Mesmo não identificando um volume considerável de produção strictu sensu, encontramos textos de outra
natureza (artigos e resumos expandidos) provenientes destas regiões. Na região Norte, por exemplo, Dias (2021)
apresenta o estado do conhecimento do pensamento decolonial do Norte, com destaque para a Universidade
Federal do Pará. Nos limitamos aqui, porém, às teses e dissertações vinculados a nossa temática.
112
3.3 CORE
em espacios uni-
versitarios. La
experiencia de la
Escuela de
Educación y Cultura
Andina, 1992-2005
The problematic of
method: decolonial
strategies in HUANTE-TZINTZUN, University of
2016
education and Nancy. Utah
chicana/latina
testimonio/plática
Temáticas indígenas
na Educação Física
colombiana: uma
Universidade
análise do discurso BUITRAGO, Edwin
2017 Federal do Rio
do programa de Alexander Canon
Grande do Sul
Licenciatura da
Universidade
Pedagógica Nacional
Monotopos: teoría
tradicional y
eurocentrismo en la
formación
professional del
guitarrista
académico. Aportes PAPPADOPOULOS, Jorge Universidad
para una posible Daniel 2017 Nacional de la
descolonización Plata
cultural y epistémica.
Un estudio de caso
en el primer
conservatorio de la
provincia de Buenos
Aires.
Narrativas femininas
Universidade
Guajajara e SANTANA, Tatiana de
2017 Federal de
Akrãtikatêjê no Oliveira
Santa Catarina
Ensino Superior
Currículo colonizado
y su incidência em la
formación
profesional de los Universidad
SANTILLÁN, Washington
estudiantes de 2017 Nacional Mayor
Rolando Villavicencio
comunicación social de San Marcos
de las universidades
de Guayaquil –
Ecuador
Horizontes para la BAYÓN, María Estefania 2018 Universidad
reformulación de la Molina Autónoma de
114
cooperación
universitaria al
desarrollo desde una
Madrid
perspectiva de
género entre España
y América Latina
Educação
intercultural e o
projeto encontro de JARDIM, Raoni Machado Universidade de
2018
saberes: do giro Moraes Brasília
decolonial ao efetivo
giro epistêmico
La experiencia de
escritura académica
en diálogo con la
tradición oral y la
identidade: un Pontifícia
LÓPEZ, Mónica Elvira
rescate de saberes a 2018 Universidad
Rodríguez
través de estudiantes Javeriana
universitarios
pertenecientes a las
etnias nasa e inga em
Colombia
Bena Ani Axeti
Xobo Meskokeska
Join Yoyoikaibaona: Universidade
Interculturalidad y Federal da
GAMBOA, Jacqueline
Educación Superior 2018 Integração
Mendez
Caso Universidad Latino-
Nacional Americana
Intercultural de la
Amazonia Peruana
Da aldeia à
Universidade: os
estudantes indígenas SANTOS, Maria Santana Universidade de
2018
no diálogo de saberes Ferreira dos Brasília
tradicional e
científico na UFT
An interpretive study
of quality assurance
in Zambian higher Stellenbosch
SIMUKUNGWE, Mudenda 2018
education: University
implications for
teaching and learning
Ideias decoloniais
sobre minha práxis:
Universidade de
autoetnografia de TONIN, Josiane Prescendo 2018
Brasília
uma professora de
inglês
The rise of fallism: AHMED, Abdul Kayum 2019 Columbia
115
#RhodesMustFall
and the Movement to
University
Decolonize the
University
Una mirada crítica a
la implementación de
la Cátedra de
ALZANDRE, Jennys
Estudios
Cecilia Pastrana; Universidad de
Afrocolombianos en 2019
BENITEZ, Soleyd Córdoba
el Programa de
Giovanna Villamil
Ciencias Sociales de
la Universidad de
Córdoba
Indigenous Higher
Education as a Tool
for Decolonization in
the Hemisphere: DROUIN-GAGNÉ, Marie- Concordia
2019
Comparative Eve University
perspective between
decolonial projects in
Ecuador and USA
Olhares do Sul: Universidade
políticas de Federal
FARIAS, Nilson de 2019
internacionalização Tecnológica do
da educação superior Paraná
Un nuevo ideal
pedagógico:
Universitat
elementos para un MACOSSAY, Miguel
2019 Autónoma de
modelo educativo Ángel Rendón
Barcelona
solidário em
educación superior
Cultivating socially
just responsible
citizens in relation to Stellenbosch
TERBLANCHE. Judith 2019
University University
accounting education
in South Africa
Cultivating Justice in
High Education:
simplicity as a California
TRÓCHEZ, Anthony Steve 2019
decolonial University
philosophy na pratice
of liberation
La opción AVILA, Darwin Javier 2019 Universidad
epistemológica de la Saravia Andina Simón
pluriversidad Bolívar
Amawtay Wasi en el
marco de la política
de la educación
superior del Plan
116
Nacional del
Buen Vivir 2013-
2017
Fonte: CORE
Reproduzindo a análise a partir dos critérios supracitados, temos que o primeiro
registro data do ano de 2012, seguindo a tendência geral de maior produção stricto sensu em
perspectiva decolonial na segunda década do século XXI.
Quanto à origem geográfica, dada a perspectiva global do levantamento, sentimos a
necessidade de realizar uma análise por continente, estabelecendo, no caso específico do
continente americano a distinção entre América do Norte e América do Sul, tendo em vista a
pujança científica do primeira e sua posição privilegiada dentro do que o pensamento
decolonial denomina de “Norte Global” (América do Norte e Europa), em contraposição ao
“Sul Global” (América Latina, África, Ásia e Oceania).
Achamos muito sugestiva a predominância de trabalhos originários da América do Sul
(56,52%), seguido da América do Norte (21,73%), Europa (13,04%) e África (8,69%). À
primeira vista, nos revela o quanto o continente sulamericano tem lançado mão do referencial
teórico da decolonialidade, suas propostas, práxis e valores ético-políticos. Talvez uma das
chaves de compreensão deste fenômeno seja o entendimento de que os precursores da
decolonialidade, não obstante a sua atuação fundamental em universidades estadunidenses,
possuem uma ancoragem latino-americana e começaram a se voltar para a análise a partir de
sua região de origem.
Mesmo assim, América do Norte e Europa se destacam em relação ao continente
africano. Em uma pesquisa mais ampla, que levou em conta artigos científicos, identificamos
uma ampla produção acadêmica de origem africana, voltada para a crítica decolonial das
universidades51. Não encontramos, porém, tais artigos como frutos de teses e dissertações
consolidadas em programas de pós-graduação de universidades africanas.
As teses e dissertações oriundas dos EUA e de países europeus revela um outro fato, já
destacado por Grosfoguel (2008): a distinção entre “lugar epistêmico” e “lugar social”.
Partindo dessa distinção, é perfeitamente possível ao sujeito que se situa, socialmente,
em uma posição de subalternidade nas relações de poder, não pensar epistemicamente a partir
51
Pensamos que ainda está por ser feito um estudo que mapeie as origens africanas da crítica decolonial da
universidade e em quem ponto ela dialoga com a crítica latino-americana. A partir de nosso processo de
investigação, nos parece (ainda como hipótese) que o fenômeno do apartheid foi fundante para esta crítica, bem
como protestos que se tornaram marcos históricos no continente como #RhodesMustFall e #FeesMustFall.
Ademais, conjecturamos que pensamento de autores pós-coloniais como Frantz Fanon e Aime Cesáire possuem
maior presença teórica em relação a autores latino-americanos. Quanto aos autores da Rede, destacamos a
presença daqueles com maior inserção acadêmica nos EUA (Mignolo, Grosfoguel, Quijano), principalmente a
partir da última década.
117
52
No presente levantamento, nosso recorte limita-se às reuniões nacionais da ANPED, para onde, pensamos,
convergem e ganham amplitude as principais temáticas da pesquisa em educação brasileira.
118
Grupo de
Título Autor Local/Ano
Trabalho
Impasses e
possibilidades do
pensamento GT21 –
CRUZ; Denise Gonçalves Educação e
decolonial no Rio de
da; CRUZ, Ana Cristina Relações Étnico-
Ensino Superior: a Janeiro/2019
Juvenal da Raciais
experiência de uma
universidade
colombiana
Reflexões entre as
novas sínteses
teórias e o diálogo SANTOS, Rita Floramar GT21 –
intercientífico na Fernandes dos Pará/2021 Educação e
formação PAES, Luciane Rocha Relações Étnico-
univiversitária dos Raciais
povos Indígenas
Perspectivas negras
na descolonização de GT21 –
GAUDIO, Eduardo Souza; Educação e
currículos em cursos Pará/2021
PASSOS, Joana Célia dos Relações Étnico-
de Pedagogia do Sul
do Brasil Raciais
Muito além do
“punto cero”:
provocação para OLIVEIRA, Luciana GT21 –
uma escrita Ribeiro de Educação e
Pará/2021 Relações Étnico-
acadêmica negra GOMES, Ana Cristina da
sem gambiarras ou Costa Raciais
distanciamentos
epistemológicos
A lei 10.639/03 e a REIS, Diego dos Santos Pará/2021
formação de
professores/as para
educação básica: GT21 –
outras vozes na Educação e
filosofia da Relações Étnico-
educação. Trabalho Raciais
apresentado no GT
21: Educação e
Relações Étnico-
119
Raciais
Mulheres negras e
suas trajetórias no GT21 –
RIBEIRO, Ana Cristina Educação e
Ensino Superior: Pará/2021
Leal Relações Étnico-
breves notas do que
dizem os estudos. Raciais
Fonte: ANPED
A partir de 2009, constatamos o surgimento dos primeiros trabalhos ancorados no
referencial teórico da decolonialidade, isto é, que utilizam as suas categorias, conceitos,
autores, bem como a semântica e o léxico vinculados a esta coletividade de argumentação.
Isto não quer dizer que, antes de 2009, não tivéssemos pesquisas críticas com caráter
decolonizador. Pelo contrário, principalmente nos GT’s de Educação Popular, Educação
Étnico-Racial e de Movimentos Sociais, muitos trabalhos já reproduziam uma espécie de
crítica decolonial, mesmo sem citar propriamente as suas categorias e os seus referenciais
teóricos, partindo da interculturalidade, do pensamento freiriano, e de análises atreladas a
perspectivas pós-coloniais.
Entre estes trabalhos, destacamos as análises de Fleuri (2004) que já abordava os
desafios da universidade em construir os seus conhecimentos junto às classes populares e aos
movimentos sociais.
A partir de 2009, tem-se, porém, a inserção de análises referenciadas pela Rede
M/C/D, mesmo que de uma forma incipiente, em trabalhos vinculados ao grupo GT 03:
“Movimentos Sociais, sujeitos e processos educativos”; GT 06: “Educação Popular” e GT 21:
“Educação e Relações Étnico-Raciais”.
A partir de 2014, trabalhos pontuais em outros GT’s como “Currículo”, “Educação
Ambiental”, “Gênero, Sexualidade e Educação”, “Educação Matemática”, “Educação de
crianças de 0 a 6 anos” e “Educação Ambiental” começaram a surgir tendo o pensamento
decolonial por eixo norteador, bem como, a partir de 2016, alguns trabalhos foram publicados
nas reuniões regionais da ANPED.
Destacamos, ainda, que no âmbito do GT 2, ocorreu um mini-curso intitulado “A
educação com aportes epistemológicos da de(s)colonialidade”, ministrado por Julvan Moreira
de Oliveira, cujo objetivo era “compreender a de(s)colonialidade, assim como o seu
desenvolvimento e características, contribuindo para se pensar outras epistemologias,
ontologias, metodologias, sentimentos e vidas, não eurocêntricos [...]”.
Porém, como demonstra o Quadro 6, identificamos apenas no GT 21: “Educação e
Relações Étnico-Raciais” os artigos que articulam crítica decolonial e universidade.
120
Por fim, para concluir esta estapa, reunimos, a partir das bases de dados consultadas,
alguns textos que se debruçam sobre a experiência Unitierra, aqui limitados aos estudos que
abordaram a experiência Unitierra no México, isto é, em Oaxaca e em Chiapas, pois
acreditamos que as outras instituições que surgiram posteriormente, inclusive em outros
países, se inspiraram no quefazer de suas coirmãs mexicanas.
Aqui, no entanto, não faremos uma análise detida, a partir dos critérios supracitados,
uma vez que, como vimos, o foco desta tese não é a Unitierra enquanto estudo de caso, mas
121
Para finalizar esse levantamento do estado da arte, achamos ainda relevante distribuir
os achados por eixos temáticos. Tais eixos emergem dos atravessamentos que perpassam cada
trabalho. Desta forma, cremos conseguir construir uma espécie de caleidoscópio temático em
torno da critica decolonial da universidade a partir desses trabalhos.
53
Ademais, já realizamos, de maneira mais detida, uma análise do estado da arte de artigos científicos, teses e
dissertações que se debruçaram sobre a experiência Unitierra de Chipas e Oaxaca em outro artigo, no qual
utilizamos outras bases de dados. Para maiores informações, consultar Gomes e Oliveira, 2023 ?.
122
Universidade e Currículo
7%
8%
27% Universidade e Relações Étnico-
Raciais
Universidade e Movimentos
Sociais
Fonte: Autoria própria, a partir de dados do IBTD, CAPES, CORE e ANPED. Mar./2022.
mercado. Preconiza, assim, a aplicação e inclusão dos saberes ancestrais de nossos povos, a
fim de se incorporar elementos próprios e contextualizados ao currículo.
Gomes (2018), em sua dissertação, intenta investigar qual o impacto da Lei n.
10.639/03 sobre o curso de Letras da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro,
indagando se este curso tem realizada a tarefa de construção antirracista no âmbito da
formação.
O autor conclui que, embora o currículo do curso seja potencialmente indicado para
uma reflexão decolonial, havendo professores sensibilizados para o trabalho com a Lei
10.639/03, não há formação específica para tal, evidenciando o fato de que, mesmo se
tratando de um curso novo, cujo currículo foi reformulado depois do Plano Nacional de
Implementação da Lei 10.639, que aconteceu em 2009, não houve um posicionamento do
Ministério de Educação, enquanto autorizador do curso e avaliador de seu currículo, para que
houvesse a efetiva adequação (GOMES, 2018).
Góes (2018) analisa a conformação do conhecimento moderno na universidade como
marcado pela colonialidade do saber e pela geopolítica do conhecimento, elegendo, como
estudo de caso, o eixo de Fundamentos de América Latina do Ciclo Comum de Estudos da
Unila, concluindo que a estrutura moderna que caracteriza o ensino superior na América
Latina dificulta, em questões administrativas/institucionais, a implementação de propostas
pedagógicas diferenciadas, obstaculizando sua potencialização epistêmica.
Moura (2018) questiona o pensar pelo prisma moderno/colonial refletindo sobre as
possibilidades e impossibilidades de decolonialidade do pensamento artístico/educacional
latino-americano nos cursos/programas de formação, nos currículos e nos processos
formativos para docência em Arte. Preconiza uma desobediência epistêmica que legitima
saberes desde as artes e culturas latino-americanas.
Cruz (2019), sob a ótica da teoria decolonial, constata os impasses e as possibilidades
nos cursos de formação de professores em biologia e relações sociais, com enfoque na
experiência formativa da Universidade Distrital Francisco José de Caldas, na Colômbia.
Analisa, assim, até que ponto a universidade inclui, em seu quadro curricular de formação em
licenciatura em biologia, conteúdos referentes à diversidade étnico-racial e se, em
consequência, tais inclusões modificam e decolonizam a formação dos professores.
Nogueira (2019) se propõe a contribuir para a compreensão de como a extensão pode
resistir e desconstruir a lógica da colonização, colaborando com a decolonização do
pensamento latino-americano e a valorização dos saberes locais e regionais. Problematiza,
assim, a universidade a partir da dimensão extensionista, proponde que a extensão possa abrir
126
Gaivizzo (2014) objetiva investigar como garantir aos povos indígenas a educação
superior nos países que integram a América Latina, levando em consideração que a
institucionalização do marco jurídico internacional ampliou o entendimento sobre o tema e
especificou as formas de materializá-lo na sociedade.
Para isto, a pesquisadora historiciza as variadas formas de concepção da relação entre
povos indígenas e Educação Superior (o racismo epistêmico; o multiculturalismo, em todas as
suas vertentes; os vários interculturalismos) e conclui que houve avanço com a
institucionalização de um marco jurídico internacional para a Educação Superior dos povos
129
indígenas, mesmo com a relação conflituosa para a sua implementação e regulação nos
Estados Nacionais.
Bolaños (2015), em sua dissertação, a partir do debate modernidade/decolonialidade,
aborda a experiência da Escuela de Educación y Cultura Andina (EECA), criado no seio da
Universidade Estatal de Bolívar, no ano de 1992, com o objetivo de ser uma proposta
“insurgente” de educação superior para, com e desde os povos indígenas do Equador. Conclui
que a EECA foi assumida como um pacha (tempo-espaço) de onde se evidencia as tensões
que surgem da construção de um projeto de universidade não convencional, inserida dentro de
um conflito entre a universalidade e a interculturalidade.
Doebber (2017) problematiza a universidade, partindo da presença indígena nos cursos
de graduação da UFRGS, com o objetivo de compreender o estar indígena universitário e
como a instituição universitária lida com essa presença. Conclui que a presença indígena
oferece possibilidades de tensionamento e autorreflexão por parte da universidade, sobre as
suas práticas pedagógicas eurocentradas e o seu papel social colonizador.
Santana (2017) faz uma pesquisa constituída por narrativas de memória de três
discentes Guajajara e da cacica Gavião/ Akrãtikatêjê, sobre as suas experiências enquanto
discentes de cursos de graduação da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará
(UNIFESSPA) a fim de compreender o que o mosaico das narrativas femininas indígenas traz
de elementos para discussão sobre os desafios, a permanência e o protagonismo feminino
indígena na
universidade. Com isto, a autora problematiza a relação do ser, saber, de gênero, trazendo a
discussão da interculturalidade como possibilidade real de diálogo entre saberes e fazeres.
Santana (2017), desta maneira, valoriza as memórias de experiências destas mulheres
na universidade, desvelando os estranhamentos e questionando a suposta realidade harmônica
neste espaço. Outrossim, evoca o protagonismo feminino indígena, no desvelamento dos
inúmeros desafios de diálogos propositivos ainda a serem conquistados nos espaços da
academia.
Silva (2018) busca identificar e analisar perspectivas e práticas de
decolonização/decolonialidade do conhecimento construídas pelos movimentos negros e de
mulheres negras. Para tanto, procura, por um lado, entender as singularidades das
universidades brasileiras e a naturalização da interdição dos corpos e dos pensamentos críticos
das negras e negros na sua história de institucionalização. E por outro lado, busca evidenciar a
agência negra lutando por acesso à universidade contra os poderes da colonialidade brasileira.
Reverte as estruturas de subalternização que calam, desqualificam ou não valorizam as/os
130
vivências universitárias nesta compreensão; como eles se relacionam com as múltiplas vozes
que participam do seu processo acadêmico-universitário e busca identificar os recursos
simbólicos e sociais utilizados por estudantes negros para enfrentar dificuldades encontradas
nas suas trajetórias universitárias. Elabora um conceito que considera as especificidades de
desenvolvimento da pessoa negra, a saber: o Self Decolonial, isto é, um Self que, sendo
dialógico, emerge quando a pessoa negra, imersa em uma semiosfera marcadamente racista,
acessa, interage e dialoga com discursos e experiências contra-hegemônicos (seja através de
estudos teóricos, seja através do contato com pessoas e contextos), desencadeando novas
configurações subjetivas que levarão à uma nova experiência identitária racial.
Também Santos e Paes (2021) questionam a possibilidade de consolidação das
políticas afirmativas para os povos indígenas alicerçadas em concepções e práxis da
decolonialidade, interculturalidade e do diálogo intercientífico nas universidades públicas, no
afã de se ter uma maior abertura a novas sínteses teóricas e abordagens pedagógicas, assim
como a conhecimentos outros.
Gaudio e Passos (2021) apresentam resultados de sua análise dos processos de
institucionalização da educação das relações étnico-raciais (ERER) nos currículos dos cursos
de Pedagogia de três universidades federais do Sul do Brasil. Para isso, baseiam-se nas
produções do campo das relações raciais e epistemologias negras, bem como nas políticas de
educação para as relações étnico-raciais no Brasil. Constataram a existência de perspectivas
negras decoloniais atuando nos cursos de Pedagogia, protagonizada por uma intelectualidade
negra, sobretudo a atuação de mulheres negras, que formularam propostas práticas e teóricas
voltadas ao campo de formação de professores/as.
Oliveira e Gomes (2021) por meio de suas vivências enquanto estudantes negras de
pós-graduação e identificando que estudantes que optam por trabalhar em suas pesquisas as
questões negras, e propor caminhos epistemológicos outros, que levem em conta referenciais
teóricos e metodológicos enunciadores daquelas produções intelectuais, se deparam com
dificuldades na validação dessas propostas. Relatam, assim, experiências de colonialidade, de
epistemicídio e de sofrimento emocional. Destacam, com base no levantamento das
referências apresentadas em dissertações e teses e na observavação do currículo de seu
programa quantos orientadores/as apresentam bibliografias que contemplem essas temáticas.
Observam que estudantes que buscam as epistemologias negras trabalham produzindo
“gambiarras teóricas” para superar o distanciamento epistemológico dos currículos da pós-
graduação de suas realidades.
132
Ribeiro (2021) apresenta o estado da arte de uma pesquisa que objetiva analisar as
permanências simbólicas e material de mulheres negras cotistas em cursos da área das
ciências exatas na Universidade Federal da Bahia. Por meio das análises dos trabalhos
encontrados, observa a escassez de pesquisa que abordem as trajetórias de mulheres negras na
universidade.
conclui que há um potencial nas políticas e ações investigadas que carregam concepções em
que o Outro é percebido como distinto, com estratégias integracionistas, horizontais e
solidárias.
Leal (2020) sob o pensamento decolonial, traz relevante contribuição para a área de
estudos críticos em internacionalização da educação superior, problematizando a natureza
pretensamente técnica, apolítica e a-histórica das abordagens convencionais. Para isso,
preconiza que a ideia de internacionalização enfatizada pelos discursos político e acadêmico
dominantes encontra-se imersa na matriz cultural do poder colonial e avança sob o alicerce de
um imaginário global que reforça geografias desiguais de poder, de saber e de ser.
CATÁLOGO CAPES
Nesta base de dados, prevalecem também as análises em torno da teoria curricular.
Discute-se até que ponto os currículos específicos de faculdades e instituições encarnam
136
CORE
O CORE, como se pode ver, nos possibilita ter uma visão mais global da relação entre
pensamento decolonial e universidade, evidenciando que o tema atravessa fronteiras
geopolíticas e disciplinares, tocando em questões curriculares, metodológicas, abordando
experiências institucionais e movimentos sociais, entre outros problemas de pesquisa. Isso,
por si só, já revelaria que a presente tese se insere em uma discussão já consolidada em
âmbito transfronteiriço, em múltiplas frentes, podendo contribuir para a construção dessa sub-
área dos estudos sobre a universidade, desde a Pan-Amazônia.
Do nosso levantamento, podemos depreender que as pesquisas teóricas, mesmo em
menor quantidade, são relevantes, pois proporcionam a reflexão sobre categorias como
colonialidade, geopolítica do conhecimento, racismo epistêmico, com abrangência e valor
heurístico. Nessa perspectiva, mais teórica, ressaltamos a parca existência de pesquisas
voltadas para a “história das ideias” de teóricos decoloniais ou de tradições intelectuais que
possam dialogar com o pensamento decolonial. Neste quesito, ressaltamos a investigação de
Ribeiro (2014) sobre o pensamento de Darcy Ribeiro e sua relação com a pesperctiva
decolonial. Tal destaque se dá porque pensamos a presente tese, também, como uma
contribuição para a “história das ideias” decoloniais acerca da universidade.
Por outro lado, a maioria dos trabalhos arrolados estão ancorados em uma práxis
específica. Nesse âmbito, podemos ressaltar as pesquisas e propostas sobre metodologias de
ensino, pesquisa e extensão, esta última em menor medida (FLEURI, 2009; NOGUEIRA,
2019). Destacamos, ainda, as investigações sobre outros sujeitos – indígenas, negros
137
(ARROYO, 2017) – que começaram a fazer parte da paisagem acadêmica nas últimas
décadas, seja no Brasil, seja nos EUA. Para tal, identificamos uma abordagem metodológica
centrada na etnografia ou na auto-etnografia, interessada nas biografias, histórias, seus corpos
e nos efeitos psicológicos da colonialidade sobre tais sujeitos. Metodologicamente, tais
abordagens são operacionalizadas, também, por meio da pesquisa-participante e da análise de
conteúdo de entrevistas.
Entre as práxis elencadas, porém, as que mais absorvem a atenção dos estudos
decoloniais sobre universidade giram em torno da gestão universitária e das políticas públicas
de Ensino Superior, bem como sobre a questão curricular. Isto revela que o pensamento
decolonial não abre mão de, por dentro das instituições universitárias tradicionais, romper
com a matriz colonial enraizada no espaço acadêmico.
Quanto às políticas públicas e à gestão universitária, destacam-se os estudos sobre
universidades recém-criadas (nos moldes considerados tradicionais), cujas propostas são
decoloniais, interculturais e visam promover o encontro de saberes, para além do cultivo do
paradigma científico moderno. Acrescentamos, ainda, a análise de gestão universitária,
voltadas para os padrões de qualificação, de rankeamento, de inserção geopolítica, de relação
com o Estado e com as políticas públicas de promoção de equidade racial.
Sobre o aspecto curricular, discutem-se mudanças ou subversões disciplinares, em
disciplinas específicas (Geografia, Relações Internacionais, Teologia, Artes, entre outras); o
tensionamento de saberes outros e suas inserções em currículos já estabelecidos sob o influxo
da colonialidade; as experiências decoloniais de Programas de Pós-Graduação e de Cursos de
Graduação; bem como a crítica de áreas (como a Filosofia e a História) que ainda parecem
ignorar os saberes não eurocentrados.
Por fim, destacamos os estudos ancorados em movimentos sociais, suas práticas,
conhecimentos e (des) encontros com as universidades “tradicionais”. Neste âmbito, no qual
nos situamos, destacamos as investigações que se debruçam sobre Unitierra, a Universidade
Amawtai Wasi, no Equador; a Universidade Popular dos Movimentos Sociais e os estudos
africanos decorrentes dos protestos estudantis (#RhodesMustFall e #FeeMustFall) que
eclodiram na última década, cujos impactos nos movimentos de decolonização de
universidades africanas e europeias ainda repercutem.
138
Ainda existem muitos outros trabalhos que poderiam ser citados como aportes
relevantes dentro do tema e nunca foi o objetivo deste estado da arte levantar a totalidade das
pesquisas sobre esta abordagem, tampouco fazer uma crítica acurada de cada pesquisa citada.
Pelo contrário, as citamos de forma panorâmica, resumidamente, buscando não interferir nos
conceitos e categorias utilizadas pelos autores, mesmo quando não concordamos com algum
ponto delineado.
Diante deste apanhado de produções teóricas que tem constituído a nossa temática,
podemos afirmar que, nacionalmente e internacionalmente, existe uma farta produção
acadêmica no âmbito da crítica decolonial da universidade que constitui o surgimento de um
subcampo do conhecimento, em se tratando dos estudos sobre universidade, que aqui
denominamos de “práxis decoloniais da universidade”.
Trata-se de um subcampo que abarca múltiplos domínios geográficos (principalmente
localizados na África, na América Latina e na América do Norte) e disciplinares, isto é, é um
debate transnacional que perpassa a antropologia, a sociologia, a teologia, a educação, a
geografia, a administração, entre outras áreas, suplantando limites disciplinares.
Há, portanto, um esforço consolidado para que o giro decolonial transforme as
universidades em suas mais variadas dimensões, desde a mais radical, na qual a própria
natureza da instituição se origina e funciona sob um regime confessadoramente crítico ao
padrão moderno-colonial, até a mais reformista, em que se pensa em mudanças pontuais em
sua estrutura (na gestão, da arquitetura, no currículo, etc.). Maldonado-Torres (2009, p. 683),
sobre esses “giros decoloniais”, diz que o termo:
Nesta seção, ainda incompleta, iremos analisar, de maneira mais focalizada como a
teoria decolonial pensa a universidade. É, portanto, a seção culminante da tese, em que
nossos esforços estarão voltados para chegar ao alcance de nosso objetivo: compreender
quais as concepções em torno da universidade que emergem da crítica decolonial, e, de
maneira específica, a práxis universitária da Unitierra.
Nesta altura, mobilizaremos o referencial teórico coligido a fim de descrevermos as
convergências, as divergências e considerações que o pensamento decolonial propõem sobre
140
sociales en América Latina” (2000), ambos editados pelo Instituto de Estudios Sociales y
Culturales Pensar (CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGUEL, 2007).
Nos anos 2000, há uma intensificação de encontros e eventos oficiais da Rede (sete no
total), aos quais acorrem novos intelectuais como Catherine Walsh e Nelson Maldonado-
Torres (BALLESTRIN, 2013). Ao mesmo tempo, a revista Neplanta Views From South54, da
Universidade de Duke, publica um número considerável de artigos assinados pelos autores
supramencionados, como Enrique Dussel, Aníbal Quijano, Edgardo Lander, Walter Mignolo,
Santiago Castro-Gomez, artigos estes que já mencionavam categorias recorrentes no
pensamento decolonial (eurocentrismo, colonialidade do poder, Sistema-Mundo, etc.). Neste
mesmo ano é lançada uma das publicações coletivas mais importantes do coletivo, um marco
inaugural para compartilhamentos teóricos futuros: “A colonialidade do saber: eurocentrismo
e ciencias sociales” (LANDER, 2005).
Ainda no ano 2000, fruto de um encontro organizado por Grosfoguel, em Boston,
correspondente à vigésima quarta edicão do Political Economy of the World-System, no qual
participaram os filósofos colombianos Santiago Castro-Gómez y Oscar Guardiola Rivera, do
Instituto Pensar da Universidad Javeriana, foi publicado o livro “The
Modern/Colonial/Capitalist World-System in the Twentieth Century”, editado por Ramón
Grosfoguel e Ana Margarita Cervantes-Rodríguez (CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGUEL,
2007).
Em 200155, Walter Mignolo organiza, na Universidade de Duke, o encontro intitulado
“Knowledge and the Known”, do qual é fruto um dossiê organizado pela revista Neplanta
Views From South. Neste encontro se fazem presentes o teórico cultural boliviano Javier
Sanjinés e a lingüista norteamericana Catherine Walsh, a qual ainda coordenará um evento em
2002, integrando membros da rede e intelectuais indígenas e afroamericanos do Equador.
Fruto deste encontro foi o livro “Indisciplinar las ciencias sociales. Geopolíticas del
conocimiento y colonialidad del poder”.
Em 2002, em uma palestra intitulada “Worlds and knowledges otherwise”, em
Amsterdam, Escobar (2003) talvez seja o primeiro a tentar dar corpo ao movimento de
constituição da Rede M/C/D, enquanto uma “perspectiva emergente”, um “programa de
investigação” coletivo, ao qual denominará “Programa de Investigação de
Modernidade/Colonialidade”, alimentado por um número crescente de pesquisas, reuniões,
54
Acesso em: https://muse.jhu.edu/issue/1402.
55
A partir daqui, seguimos o roteiro organizado por Castro-Gómez; Grosfoguel, (2007).
142
Grosfoguel, Catherine Walsh, Óscar Rivera, Zulma Palermo, Freya Schiwy, Juliana Flores,
Mónica Espinosa.
A Rede M/C/D, porém, hoje se expandiu sobremaneira, de forma endogâmica
(principalmente por meio do reconhecimento mútuo de seus pares, os quais se citam,
continuamente), muito em virtude, em seu início, da visibilidade proporcionada pelo cenário
acadêmico estadunidense, do qual muitos membros fazem parte, o que se constata pelos
congressos, colóquios, revistas, programas de pós-graduação, criação de instituições
representativas (como universidades), englobando estudiosos de múltiplos lugares e
disciplinas (aqui consideradas formalmente), que subscrevem a perspectiva decolonial e o
estabelecimento de redes institucionais em que circulam seus expoentes, além dos esforços
editoriais que contribuíram para essa consolidação (SILVA, 2018).
Mapear, portanto, esse espraiamento internacional é muito difícil, sem que se incorra
na invisibilização dos coletivos que se multiplicaram. Até porque a história dessa coletividade
ainda está se desenrolando, não sendo possível, pela proximidade dos eventos, precisar o seu
impacto no âmbito intelectual e política, se serão duradouros ou não (RESTREPO, 2010).
Em virtude disso, nossa preocupação é menos com os sujeitos que compõem a rede e
mais com a “coletividade de argumentação”, os conceitos compartilhados e reproduzidos por
ela, os quais são dotados de genealogias próprias e foram se articulando ao longo do tempo,
originando outros conceitos, unificando um modo de tratar o fenômeno da Modernidade. O
fato é que existe uma reivindicacão da denominação “decolonial”, pois muitos investigadores
e autodenominam como tal, bem como as publicações especializadas, não importando a
variedade de temas que abordem (ecologia, feminismo, pedagogia, etc.).
Como ponto de partida, porém, se faz necessário considerar: como reflexão teórica
acadêmica, o pensamento decolonial é recente56, já “nascendo” interinstitucional e
transdisciplinar, sendo muitas as linhas de pensamento evocadas como seus principais
antecedentes, com certas variações de autor para autor.
Reyes (2016), por exemplo, considera como principais antecedentes do pensamento
decolonial a Filosofia da Liberação de Dussel, as análises do Sistema-Mundo propostas por
Wallerstein, os estudos chicanos, pós-coloniais, além do marxismo e feminismo negro e as
das chamadas “epistemologias do Sul”.
56
Para os fins desta tese, conforme ressaltamos na primeira seção, não levaremos em conta a genealogia da
decolonialidade como ela vem sendo constituída por autores da própria Rede. Para Mignolo (2003, 2008) e
Maldonado-Torres (2009), por exemplo, a decolonialidade e o pensamento filosófico decolonial surge há mais
500 (quinhentos) anos, já como contraparte dos processos colonizadores, encarnada nos movimentos de
resistência de indígenas e escravizados, nos movimentos anticoloniais da Ásia e da África, e em uma longa
linhagem de teorias e teóricos críticos (Frantz Fanon, Paulo Freire, Aime Cesáire, etc.).
144
somente por sua origem geográfica57. Teorias críticas como o marxismo, a influência
foucaultiana, direta ou indiretamente, por via dos estudos pós-coloniais 58, a própria influência
de teóricos como Levinas no pensamento de Dussel, revelam que o pensamento decolonial
utiliza conhecimentos eurocêntricos, propondo não o desprezo, mas uma ressignificação deles
em chave decolonial, embora isto também seja motivo de conflitos no interior da Rede.
Por isso, a representação de outras correntes teóricas tem se dado de maneira múltipla
entre os decoloniais, no sentido de crítica e debate em torno de suas próprias perspectivas 59, as
quais estão em permanente construção. E essas críticas mútuas, que transcendem questões
conceituais, abarcando posições ético-políticas, para além de configurarem-se como
fragilidade na Rede, tem se tornado uma oportunidade de oxigenação de suas reflexões e
reposicionamentos (SOTO, 2008).
Nesse mesmo teor, afirma Grosfoguel (2013, p. 42):
Entre tais discordâncias, podemos citar as críticas de Grosfoguel (2013, 2016, 2018) a
práticas ético-políticas da Rede, mais especificamente a Quijano e Mignolo, os quais são
acusados, por ele, de racismo e extrativismo epistêmico. O intelectual porto-riquenho,
evocando argumentos já utilizados por Cusicanqui (2010), diz que ambos os autores se
utilizam de ideias e reflexões propugnadas por pensadores negros, indígenas, sem atribuir-lhes
a devida autoria, o que iria de encontro aos seus próprios discursos.
Outro ponto de conflito surgiu em 2017, quando das eleições regionais venezuelanas.
Um documento, estilo “Manifesto”, promovido por alguns intelectuais de esquerda, entre os
57
Não obstante seja necessário ressalvar a crítica realizada por Grosfoguel (2013, 2018) em relação a Mignolo,
exatamente nesses termos, o que chama de “populismo epistêmico”.
58
Acreditamos, porém, que entre os principais membros da Rede, ocorreu, ao longo do tempo, diferentes formas
de lidar, seja com o pensamento marxista, seja com a influência de Michel Foucault, na formação do pensamento
decolonial. Nesse sentido, ver Urrego (2018, p. 196), que critica a pretensão dos decoloniais em reclamarem-se
como herdeiros legítimos de uma suposta herança do que há de “mais avançado no pensamento latino-
americano”, uma espécie de metonímia da tradição crítica latino-americana, ponto em que não concordamos: em
nossas leituras não encontramos nada que avalize a ideia de que o giro decolonial pretenda subsumir, avançar,
substituir ou superar propostas críticas latino-americanas anteriores. Na verdade, trata-se, a nosso ver, mais de
entretecer projetos comuns e variados que se unem como crítica à Modernidade, ao capitalismo e aos efeitos da
colonização.
59
Confessamos, porém, que em certos momentos, tais críticas, como veremos, parecem descambar para
acusações pessoais, de caráter ad hominem, o que parece tornar-se o risco de qualquer perspectiva que exige
coerência entre o teorizar e o agir, no caso, uma coerência fundada na práxis decolonial.
146
quais membros da Rede M/C/D, como Boaventura de Souza Santos, Zulma Palermo, Mignolo
e Quijano, foi rechaçado por outros membros, como Grosfoguel e Dussel, gerando um debate
em torno de questões estratégicas de soberania do Estado, Democracia e dos Direitos
Humanos diante da ameaça de nações do Norte Global (EUA) à soberania de outros países60.
Não obstante as diferenças, a “coletividade de argumentação” se impõe,
principalmente em seu caráter conceitual.
De fato, há conceitos recorrentes nas análises decoloniais, alguns dos quais já foram
enunciados na primeira seção, mas que precisam ser analisados com mais detalhe, até para
que possamos compreender a crítica decolonial da universidade.
Antes de tudo, é importante destacar que o pensamento decolonial representa uma
leitura da Modernidade, enquanto fenômeno Ocidental, partindo de um postulado central: a
colonialidade é constitutiva da Modernidade, não derivada. Para os decoloniais, e nisto
herdam concepções já presentes em teóricos pós-coloniais61 como Said (1990), a própria ideia
de Europa e de Modernidade, foi constituída por meio de sua contraface: o colonizado não
europeu.
Tal perspectiva, portanto, se insurge contra uma leitura eurocêntrica, na qual apenas
fenômenos intra-europeus seriam responsáveis pelos processos sociais que culminaram na
Modernidade e dali é apenas exportada, com maior ou menor êxito, para outras geografias do
mundo. Assim, partem da premissa de que tanto a transição do modo de produção feudal para
o capitalismo, o Renascimento, a Reforma Protestante, a emergência do circuito comercial do
Atlântico, dos Estados-Nação, da Ciência Moderna, a Ilustração, a Revolução Industrial e as
Revoluções burguesas se articularam inextricavelmente com as políticas colonialistas
adotadas, a partir do final do século XV (ESCOBAR, 2003; OLIVEIRA; GOMES, 2021).
Isso já está subsumido na ideia de Sistema-Mundo de Wallerstein (1988, 2005a,
2005b), e suas posteriores críticas sobre o universalismo e o papel da “raça” na estruturação
da divisão social do trabalho, cujos estudos foram essenciais para que Quijano desenvolvesse,
posteriormente, o conceito de colonialidade62.
60
É bem verdade que a questão “Venezuela” tem dividido a esquerda de uma forma geral, em seus mais variados
matizes, não sendo uma prerrogativa dos decolonias esse debate acalorado.
61
Uma análise mais detida das convergências e divergências entre o pensamento pós-colonial, subalterno e dos
Estudos Culturais em relação aos decoloniais, que foge ao escopo dessa investigação, é realizada por Restrepo
(2010), além de Castro-Gómez e Grosfoguel (2007).
62
Concordamos com Restrepo (2010) quando diz que a influência de Wallerstein para o desenvolvimento do
pensamento decolonial ainda merece um estudo mais detido, uma vez que alguns posicionamentos atribuídos a
Quijano já estavam nos trabalhos do sociólogo estadunidense. Para Soto (2008), “Sistema-Mundo” é o conceito
de onde partem e se sustentam todos os demais.
147
63
Importante informação, considerando-se que, não poucas vezes, lemos trabalhos que consideram Quijano
como o primeiro teórico que identificou nexos entre a constituição do Sistema-Mundo e a questão racial. Ex:
Orellana (2016)
148
Fica claro, portanto, que a noção de “raça” se torna determinante para a classificação
da população mundial a partir de um espaço provincial que se universaliza: a Europa. Assim,
por meio da classificação racial, o controle global do trabalho, dos seus recursos e produtos
envolve não somente a divisão racial do trabalho, mas criação de novas hierarquias, baseadas
em subjetividades racializadas, ou seja, cria-se uma “diferença colonial” (MIGNOLO, 2003).
Uma crítica muito comum de alguns decoloniais à Wallerstein era a de que
privilegiava as relações econômicas e políticas, às custas de determinações culturais e
ideológicas, que estariam em uma esfera mais superestrutural de análise, além de limitar a sua
“Modernidade” aos tempos da Ilustração65 (DUSSEL, 2001; MIGNOLO, 2003). Nessa
medida, para os decoloniais, o grande avanço da articulação entre Sistema-Mundo e
colonialidade estaria em borrar estas fronteiras, tornando as estratégias simbólicas e
ideológicas, bem como a cosmovisão eurocêntrica, constitutivas da economia política do
Sistema-Mundo capitalista, desde a conquista da América (CASTRO-GÓMEZ;
GROSFOGUEL, 2007).
64
Restrepo (2010) faz um interessante desenvolvimento do conceito de “colonialidade”, como ele foi se
desenvolvendo em artigos seminais do autor sobre o tema.
65
Crítica semelhante é feita à teóricos como Said (1990), que parecem ignorar em suas temporalidades, o papel
da América na constituição do “Ocidente”.
149
“outro”, por meio de seus dispositivos de saber/poder. Aliás, mobiliza categorias de Bourdier
e Foucault junto a Quijano para desdobrar a colonialidade em um campo epistemológico,
discursivo — o que chama de “colonialidade do saber” — forjando outro conceito
fundamental para o pensamento decolonial: a hibrys do ponto zero.
Começar tudo de novo significa ter o poder de nomear pela primeira vez o
mundo; de traçar fronteiras para estabelecer quais conhecimentos são
legítimos e quais são ilegítimos, definindo por exemplo, quais
comportamentos são normais e quais são patológicos. Portanto, o ponto zero
é o começo epistemológico absoluto, mas também o é do controle
econômico e social sobre o mundo. Localizar-se no ponto zero equivale a ter
o poder de instituir, representar e construir uma visão sobre o mundo social e
natural reconhecida como legítimo e endossada pelo Estado. É uma
66
Há uma acusação em relação a critica que pensadores decoloniais, principalmente Dussel, fazem à filosofia de
Descartes, de que suas premissas seriam apenas um “espantalho” das ideias cartesianas (CHAMBERS, 2019).
Em nosso caso, ressaltamos que Francis Bacon foi tão importante quanto Descartes no soerguimento das bases
do pensamento moderno, e que se prolongaram, juntamente com Galileu e Newton, nas construções teóricas da
Era Iluminista. Pensamos, porém, que Bacon ainda não recebeu a devidade atenção dos teóricos decoloniais. A
sua importância, aliás, é defendida com grande erudição e farta documentação bibliográfica, por Ernest Cassirer
(1997).
151
A hibrys do ponto zero assim, segundo Castro-Gómez (2005), seria este “não-lugar”
epistemológico, em que pensadores europeus se propunham o distanciamento de pré-juizos ou
pontos de referência concretos a fim de construírem um pensamento objetivo a partir de um
ponto neutro de reflexão. O conhecimento científico, portanto, seria o “ponto zero” do
conhecimento, isto é, um conhecimento não situado, ahistórico, capaz de distanciar-se do
mundo a fim de explica-lo a partir de um ponto de vista universal, que se pretende neutro e
absoluto. O giro decolonial se insurge contra essa pretensão de universalidade, notadamente
das Ciências Sociais, por meio da crítica da geopolítica do conhecimento (MIGNOLO, 2003,
2004). Aliás, por meio do conceito de hibrys, emerge uma das principais críticas do
pensamento decolonial às universidades, propondo-se a reestruturação ou mesmo a
refundação destas.
Historicamente, por meio da colonialidade e do eurocentrismo, a vinculação entre
conhecimento e poder ancora-se em determinadas operações cognitivas, que se tornaram
universalizáveis em virtude da expansão do cientificismo europeu: separar o “real” de
maneira dualística (consciência/realidade; razão/emoção; fato/valor; teoria/prática;
parte/conjunto; natureza/cultura; etc.); dividir o mundo em unidades isoladas; converter
diferenças em hierarquias, naturalizando essas representações. Dentro de uma perspectiva da
geopolítica do conhecimento, a avaliação dos saberes, principalmente da produção científica,
passa a ser avaliada segundo essas operações, sob critérios meritocráticos quantificáveis e de
hierarquização dos circuitos de distribuição do conhecimento, criando espaços monolíticos de
enunciação privilegiados, como as instituições universitárias, com base em uma suposta
superioridade epistêmica, cuja base é o racismo epistêmico (GESCO, 2012).
Pensamos já ter ficado claro que colonialidade perpassa a cultura, a economia, a
política, também o simbólico, o epistêmico e o ontológico, ou seja, forma uma
articulação heterárquica, uma rede de múltiplos regimes de poder, hierarquizações e
opressões67 (CASTRO-GÓMEZ, GROSFOGUEL, 2007), a qual exige grande amplitude
analítica que, como vimos, costuma ser reproduzida em três dimensões 68 não estanques,
mas inter-relacionadas: a colonialidade do poder, do saber e do ser.
Essa multidimensionalidade do pensamento decolonial, bem como a fertilidade de
sua expansão conceitual (interculturalidade crítica, diferença colonial, pensamento fronteiriço,
67
Pensamos que, aqui, o giro decolonial encontra-se com as reflexões sobre interseccionalidade (CRENSHAW,
2002, 2006).
68
Em Quijano, porém, o termo colonialidade já abarcava todas essas dimensões (RESTREPO, 2010).
152
69
Dussel faz parte da “coletividade de argumentação” da decolonialidade por dois motivos: serve de
fundamentação teórica para muitos membros da Rede, e, ele mesmo, a partir do início do século XXI, começou a
utilizar conceitos oriundos do giro decolonial, como decolonialidade (DUSSEL, 2000, 2016).
154
A utopia a ser delineada não é algo mais radical e inovador do que uma
modernidade de outro tipo? Não surgirá uma nova civilização transmoderna?
E, portanto, não mais moderna ou capitalista, e tampouco colonialista, nem
eurocêntricos, nem dilapidadora da vida no planeta Terra, fruto não de um
desenvolvimento da modernidade, mas como efeito de uma elaboração que
parte das culturas periféricas dominadas, e desde o início desprezada e
negada pela modernidade; e que, em relação a ela, mantinham certa
exterioridade no horizonte da estrutura do sistema-mundo que a
modernidade dominava e explorava. Essas culturas coloniais da
modernidade tornam-se autoconscientes de seu valor, recuperam, para a sua
libertação, memórias da história de seu passado esquecido, e a partir desse
mesmo passado (em diálogo não fundamentalista com a modernidade),
crescem em direção a um futuro pluriverso planetário, onde não se pode falar
de uma cultura universal e nem mesmo de identidade, senão em um processo
analógico mútuo de afirmação da semelhança e progresso na diferença e
tradução como um esforço para construir a novidade sem dominação. Não
será uma cultura, nem mesmo uma totalidade concreta, mas um mundo
cultural plural com conexões transversais de mútuo enriquecimento. Cada
cultura não perderá sua riqueza, mas a acrescentará à partilha mútua de sua
originalidade com outras culturas. A identidade substantiva dará lugar à
pluralidade analógica na distinção e na pluriversidade transmoderna por
convergência
[CONTINUA...]
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