Universidade Federal Do Pará - Ufpa Instituto de Ciências Da Educação - Iced Programa de Pós-Graduação em Educação - Ppged

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ - UFPA


INSTITUTO DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO - ICED
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO -
PPGED

RAPHAEL CARMESIN GOMES

A UNIVERSIDADE A PARTIR DO PENSAMENTO


DECOLONIAL: REFLEXÕES EM TORNO DA
UNIVERSIDADE FRONTEIRIÇA

Belém - PA
2022
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RAPHAEL CARMESIN GOMES

A UNIVERSIDADE A PARTIR DO PENSAMENTO


DECOLONIAL: REFLEXÕES EM TORNO DA
UNIVERSIDADE FRONTEIRIÇA

Texto apresentado na Linha de pesquisa “Educação, Cultura e


Sociedade”, do Programa de Pós-Graduação em Educação do
Instituto de Ciências da Educação da Universidade Federal do
Pará, sob orientação do Profº. Dr.º Damião Bezerra Oliveira,
como requisito para conclusão do Doutoramento em Educação.

Belém - PA
2022
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RAPHAEL CARMESIN GOMES

A UNIVERSIDADE A PARTIR DO PENSAMENTO


DECOLONIAL: REFLEXÕES EM TORNO DA
UNIVERSIDADE FRONTEIRIÇA

Texto apresentado na Linha de pesquisa “Educação,


Cultura e Sociedade”, do Programa de Pós-Graduação em
Educação do Instituto de Ciências da Educação da
Universidade Federal do Pará, sob orientação do Profº.
Dr.º Damião Bezerra Oliveira, como requisito para
qualificação de Tese de Doutorado.

Aprovada em: ____/____/____

Banca Examinadora

__________________________________________________
Profº. Drº. Damião Bezerra Oliveira, Universidade Federal do Pará (UFPA).
Orientador

__________________________________________________
Profª. Drª. Ivanilde Apoluceno de Oliveira, Universidade do Estado do Pará (UEPA)
Avaliador Externo

__________________________________________________
Profº. Drº. Reinaldo Matias Fleuri, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
Avaliador Externo

__________________________________________________
Profº. Drº. Waldir Ferreira de Abreu, Universidade Federal do Pará (UFPA)
Avaliador Interno

__________________________________________________
Profª. Drª. Sônia Maria da Silva Araújo, Universidade Federal do Pará (UFPA)
Avaliador Interno

__________________________________________________
Profº. Drº. João Colares da Mota Neto, Universidade do Estado do Pará (UEPA)
Suplente externo

__________________________________________________
Profº. Drº. Carlos Jorge Paixão, Universidade Federal do Pará (UFPA)
Suplente interno
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Dedico este trabalho à minha família: minha vó Maria e


mãe Ana, mulheres fortes que me iniciaram nas histórias e
na leitura do mundo; meu pai, Laércio, que me ensinou a
valorizar o trabalho e o esforço pessoal; meu irmão,
Thiago; minha cunhada, Lígia, aos meus sobrinhos:
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Estevão e Rebeca e à Anthonia, minha companheira


amada.
AGRADECIMENTOS

Este estudo está sendo fruto de um processo de aprendizado, angústias e separações.


Aliada à pesquisa acadêmica, surgiram problemas de toda sorte (lutos, crises financeirasetc.).
Desta maneira, tem sido um período de amadurecimento e sobrevivências (individual e
coletivamente) em meio a uma recessão econômica, pandemia, crises institucionais que
atingiram as universidades brasileiras e um governo iliberal.
Por isso, agradeço por estar vivo. Louvo a Emanuel, “Deus conosco”, pois nada do
que tenho ou sou vem de mim mesmo, mas da Fonte de toda a vida que é o Cristo encarnado
em todas as religiosidades de respeito ao Outro, de apreço à vida e de justiça aos oprimidos
deste mundo.
Agradeço à minha família, pelo apoio e compreensão incondicionais durante a
jornada em busca da realização desse projeto, especialmente a minha mãe e avó (in
memoriam), as pessoas mais presentes em minha existência.
À minha namorada que, com suas palavras de incentivo, me ajudou a trilhar o bom
caminho.
Aos colegas da turma do doutorado (2019/2022) do Programa de Pós-Graduação em
Educação, companheiros na jornada da vida intelectual e nos gracejos, e que tornam a vida
mais leve.
Ao professor Damião Oliveira, meu orientador, por seu acolhimento desde o
momento em que me aceitou como seu orientando e durante todo o percurso deste trabalho,
por suas observações e provocações intelectuais argutas.
Aos professores do Programa de Doutorado (PPGED/ICED/UFPA), principalmente
àqueles que estão sendo os interlocutores de minhas reflexões.
Ao corpo administrativo do Instituto de Educação (ICED), pelo eficaz atendimento,
sempre que necessário.
À Banca de qualificação pelas suas sugestões, desde já.
À Universidade Federal do Pará, especialmente à PROEX, através de seus gestores,
pela compreensão e disposição em me apoiar desde o início desse desafio.
Ao Sci-Hub, Libgen, Z-Library e Nexus e outras plataformas de compartilhamento
livre do conhecimento. Sem elas, esta tese estaria mais empobrecida.
A todos que, cotidianamente, constroem as múltiplas histórias das universidades.
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"Uns dizem que, agora, somos todos mundo. Mas ninguém pode ser
do mundo se não tiver a sua pequena aldeia". Mia Couto.
RESUMO (PROVISÓRIO)

Esta pesquisa objetiva entender quais compreensões de universidade emergem da crítica


teórica do pensamento decolonial, tendo como estudo de caso a experiência da “Universidad
de la Tierra” (Unitierra). Para este fim, descreve a trajetória das várias concepções de
instituição universitária que se destacaram historicamente, ressaltando, a partir da
decolonialidade, outras perspectivas para a origem da universidade. A pesquisa, segundo a sua
abordagem e o procedimento de coleta de dados, se caracteriza por ser qualitativa, descritiva e
exploratória, baseada em pesquisa bibliográfica-documental, principalmente de artigos, livros,
teses e dissertações acadêmicas, que serão analisados à luz do referencial teórico citado.
Verifica que a práxis da Universidad de la Tierra fornece elementos que proporcionam a
construção de uma ideia de “universidade fronteiriça”, cujas principais características são: a
verticalidade e hierarquia negociada com as autoridades constituídas; a oralidade; a fluidez
entre os espaços institucionais e outros espaços sociais; a busca de autonomia frente às
determinações estatais; o currículo voltado para conhecimentos localizados, ancorados nas
necessidades sociais particulares. Por outro lado, a universidade que se propõe decolonizada
tem que conviver com tensionamento constantes, a partir da colonialidade do poder que
perpassam pela própria ideia de universalidade do conhecimento.

PALAVRAS-CHAVE: Universidade. Decolonialidade. Universidad de la Tierra.


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ABSTRACT (PROVISÓRIO – VERTER PARA O INGLÊS)


Esta pesquisa objetiva entender quais compreensões de universidade emergem da crítica
teórica do pensamento decolonial, tendo como estudo de caso a experiência da “Universidad
de la Tierra” (Unitierra). Para este fim, descreve a trajetória das várias concepções de
instituição universitária que se destacaram historicamente, ressaltando, a partir da
decolonialidade, outras perspectivas para a origem da universidade. A pesquisa, segundo a sua
abordagem e o procedimento de coleta de dados, se caracteriza por ser qualitativa, descritiva e
exploratória, baseada em pesquisa bibliográfica-documental, principalmente de artigos, livros,
teses e dissertações acadêmicas, que serão analisados à luz do referencial teórico citado.
Verifica que a práxis da Universidad de la Tierra fornece elementos que proporcionam a
construção de uma ideia de “universidade fronteiriça”, cujas principais características são: a
verticalidade e hierarquia negociada com as autoridades constituídas; a oralidade; a fluidez
entre os espaços institucionais e outros espaços sociais; a busca de autonomia frente às
determinações estatais; o currículo voltado para conhecimentos localizados, ancorados nas
necessidades sociais particulares. Por outro lado, a universidade que se propõe decolonizada
tem que conviver com tensionamento constantes, a partir da colonialidade do poder que
perpassam pela própria ideia de universalidade do conhecimento.

PALAVRAS-CHAVE: Universidade. Decolonialidade. Universidad de la Tierra.


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LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1 – Eixos Temáticos............................................................................................ xxx


11

LISTA DE QUADROS
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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ANPED Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação

BDTD Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações

CAPES Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

CIDECI/UNITIERRA Centro Indígena de Capacitación Integral/Universidad de la Tierra

EECA Escuela de Educación y Cultura Andina

ERIC Educational Resources Information Center

FMI Fundo Monetário Internacional

MESPT Mestrado Profissional em Sustentabilidade junto a Povos e Terras


Tradicionais

PROEG Pró-Reitoria de Ensino de Graduação

PROPESP Pró-Reitoria de Pesquisa

PROEX Pró-Reitoria de Extensão

RMF Rhodes Must Fall

RPPDA Rede de Pesquisa sobre Pedagogias Decoloniais na Amazônia

THOA Taller de Historia Oral Andina

UFABC Universidade Federal do ABC

UFPA Universidade Federal do Pará

UFRGS Universidade Federal do Rio Grande do Sul

UFRJ Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

UNB Universidade de Brasília

UNIA Universidade Nacional Intercultural da Amazônia Peruana

UNIFESSPA Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará

UNILA Universidade de Integração Latino-Americana

UNILAB Universidade Internacional da Integração da Lusofonia Afro-Brasileira


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CEDI Centro de Encontros e Diálogos Interculturais


SUMÁRIO

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS................................................................................................12

1.1 Notas Teórico-Metodológicas ..............................................................................................xx

2 MODELOS UNIVERSITÁRIOS EM PERPESCTIVA EUROCÊNTRICA ......................xx

2.1 As origens medievais da universidade .................................................................................xx

2.2 A universidade humboldtiana...............................................................................................xx

2.3 A universidade napoleônica .................................................................................................xx

2.4 A universidade liberal: o modelo inglês .............................................................................xx

2.5 A universidade reformista ....................................................................................................xx

2.6 EUA: caminhos para a universidade neoliberal ..................................................................xx

3 A CRÍTICA DECOLONIAL À
UNIVERSIDADE: .................................................................................................................
............................xx

2.1 Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações


(BDTD) ...........................................xx

2.2 Catálogo de Teses e Dissertações da CAPES.....................................................................xx

2.3 CORE..................................................................................................................................xx

2.4 Educational Resources Information Center (ERIC) ...........................................................xx

2.5 Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED) ...................xx

2.6. Um subcampo do conhecimento: a Práxis Decolonial da


Universidade ................................................................................................................................
...................xx

4 EM BUSCA DA UNIVERSIDADE FRONTEIRIÇA: a Rede


Modernidade/Decolinialidade/Colonialidade (INCOMPLETO, COMENTADO) ...................xx

4.1. O pensamento decolonial em torno da universidade (COMENTADO)..............................xx

4.2. A Universidad de la Tierra (COMENTADO) .....................................................................xx

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS (EM CONSTRUÇÃO)...........................................................152


14

REFERÊNCIAS ........................................................................................................................152

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Gostaria de iniciar esta tese de doutoramento com uma pequena história, de origem
hassídica, transmitida por Larrosa (1995), o qual conta que, certa vez, uma “pessoa do povo”
passou em frente a uma destas “Casas de Estudos” famosa e ficou com medo de entrar,
confessando:

Não, eu não posso entrar aqui... tudo está cheio aqui dentro. De parede a
parede e do solo ao teto, tudo está cheio das palavras sábias e das orações
piedosas que aqui se hão pronunciado. Onde poderia encontrar um lugar pra
mim? Vendo que todos os que o acompanhavam o miravam sem
compreender, disse: “De todas essas palavras feitas desde a borda dos lábios
pelos que rezaram e pelos que ensinaram, nem uma só subiu aos céus. Nem
uma só palavra foi levada daqui por um alento do coração, por isso tudo o
que foi dito permaneceu na Casa do Estudo. E a Casa do Estudo terminou
por ficar cheia de parede a parede e desde o solo ao teto”. (LAROSSA, 1995,
p. 88).

Esta história é uma provocação a todos aqueles que se dedicam a pesquisar, a escrever
e a ensinar sobre a universidade, senão a principal, uma das mais importantes “Casas de
Estudos” que se constituíram ao longo da história. Será que a universidade não está “cheia de
parede a parede e desde o solo ao teto” de todas as nossas “palavras sábias”, “feitas desde a
borda dos lábios” ao ponto de preencher a todos os espaços com o seu vozerio ininterrupto?
Deve-se entender a importância do silêncio como imprescindível no processo
pedagógico. É no silêncio meditativo que se encontra a oportunidade para a reflexão, para a
emergência daquilo que mobiliza as nossas faculdades, os nossos interesses e curiosidades.
(LAROSSA, 1995).
Diz-se que Tomás de Aquino, com cinco anos de idade, ao iniciar os seus estudos na
célebre abadia beneditina de Monte Cassino, permaneceu, durante muitos dias, em silêncio na
sala de aula. Quando decidiu falar, a primeira coisa que pronunciou foi uma pergunta ao
professor: “O que é Deus?” (CHESTERTON, 2000, p. 12). Ninguém, nem mesmo Aquino,
recordava a resposta dada pelo professor, mas a pergunta constituiu o próprio destino e
obsessão de um dos maiores filósofos da cristandade.
Rousseau (1990, p. 22) dizia que o “homem civil nasce, vive e morre na escravidão: ao
nascer, é metido em roupas que o apertam; quando morre pregam-no num caixão; enquanto
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mantém o aspecto humano, é acorrentado pelas nossas instituições”. A “Casa de Estudos” (a


universidade), não deveria ser um enclave, uma espécie de anteparo, onde as correntes
pudessem ser rompidas, pelo menos no que diz respeito à imaginação do estudante?
Rompendo-se os grilhões, irrompe-se a curiosidade.
O silêncio aqui reivindicado não é um chamado ao solipsismo abstrato, aliás,
inexistente e impossível, mas um chamado ao retiro, que é o laboratório do espírito
(SERTILLANGES, 2016). Mesmo silenciando as vozes exteriores, estamos em constante
diálogo com o nosso interior, com uma espécie de biblioteca que nos constitui, a partir da
linguagem que descortina o mundo e nos dá sentidos. Normalmente, portanto, contrapõe-se ao
silêncio exterior um ruído interno, muito bem traduzido pela frase que se atribui ao físico
Stephen Hawking: “as pessoas silenciosas têm as mentes mais barulhentas”.
Os estudiosos do Talmude têm muito a nos ensinar a respeito deste “silêncio
barulhento”. Quando dizem que por mais páginas que leia o estudioso, ele não deve esquecer
jamais que nem sequer chegou à primeira página, resta muito claro que, não importa o quanto
coloquemos a nossa confiança em nossas certezas, nossa linguagem, nossas tradições: as
nossas perguntas mais candentes (e suas respostas) não poderão ser pronunciadas pela
linguagem humana.
É a linguagem, no entanto, tudo o que temos e nos constitui.
É sempre importante lembrar que boa parte desta tese foi construída na solidão do
silêncio meditativo imposto pelo isolamento social, muito em voga entre aqueles que tiveram
o “privilégio” classista de se isolar em tempos pandêmicos. A vida, às vezes, nos leva a outras
correntes. Entre mortos e lutos, tive, portanto, que relembrar das perguntas que me levaram,
ainda em 2019, ao desafio do doutoramento.
Na Universidade nos vemos obrigados a dissertar sobre estas perguntas enquanto
“problemas científicos”, a partir dos quais se originam as nossas pesquisas e investigações.
Pouco, no entanto, se fala sobre um movimento que está por trás da emergência da pergunta-
problema, como esteio, e que expressa a formação da atenção para aquilo que nos rodeia: a
curiosidade. Manguel (2016) em seu “Uma história natural da curiosidade” traz interessantes
insights sobre a constituição de nossas perguntas. O primeiro deles é a afirmação de que “a
curiosidade é um meio de declarar a nossa aliança com a comunidade humana”. (MANGUEL,
2016, p. 07).
De fato, herdamos e nos engajamos com os outros habitantes desse mundo em
perguntas feitas e refeitas de geração em geração e que se renovam de acordo com as
necessidades que as sociedades produzem. Por isto, não começo a tese com um problema
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formulado ou criado tão somente por mim (mesmo a individualidade é problemática, no


sentido de autenticidade e originalidade das perguntas).
Petrarca — que, dizem, foi encontrado morto com a cabeça recostada em um livro de
Virgílio — relatava ter lido tantas vezes as obras literárias do condutor de Dante, além de
Boécio e Horácio, que tais poetas tinham lançado raízes profundas em seu coração, ao ponto
de esquecer, às vezes, quem escrevera os livros e achar-se leitor e autor ao mesmo tempo
daqueles versos. (PETRARCA, 2013).
Concordamos com Manguel (2016, p. 311) ao dizer que “não há livros escritos
individualmente: há apenas um texto, infinito e fragmentado, que folheamos sem preocupação
com a continuidade ou com o anacronismo ou com reivindicações burocráticas de
propriedade”. Nesse sentido, pensamos não poucas vezes por citações, e reproduzimos
perguntas seculares sem, muitas vezes, nos darmos conta disso.
Em respeito aos “direitos sagrados de propriedade intelectual”, tomaremos o devido
cuidado para atribuir a cada indivíduo a sua lavra, com a ressalva crítica de que, atualmente,
intelectuais aferrados a uma proposta decolonial de produção acadêmica, têm começado a
assinar os textos a partir de autorias coletivas 1 e não individuais, reconhecendo a multidão por
trás de suas ideias. (COLECTIVO ANDINO AESTÉTICAS DECOLONIALES, 2020;
COLECTIVO PEDAGOGÍAS DECOLONIZANTES, 2021)
Manguel (2016) continua as suas reflexões ao relatar, a partir de uma genealogia do
sentido de palavra “curiosidade”, que sua compreensão sempre foi dupla e valorada como
positiva ou negativa. A curiosidade é positiva ao ser tratada enquanto humilde busca pela
alma sedenta de saber, motor-contínuo da inquirição natural do ser humano e da busca do
conhecimento; torna-se negativa ao confundir-se com o orgulho e a vaidade dos seres
humanos que desejam descobrir aquilo que lhes é vedado, atraindo, sobre si, a cólera e a
punição divina (como na Torre de Babel; na obsessão de Ulisses em querer ver o que existia
para além do pórtico de Hércules ou na curiosidade de Pandora).
Aqui não precisaremos definir se a curiosidade que nos arrasta tem caráter santo ou
profano. Até onde sabemos, seremos julgados pela nossa coerência, não pela nossa virtude.
Então até que ponto esta distinção nos é útil? Pensamos que é útil, na medida em que revela
valores fundamentais para a postura do pesquisador: a humildade e a honestidade intelectual.

1
Este autor teve a oportunidade de co-escrever um artigo dentro de um processo de autoria e diálogo coletivo
(COLECTIVO PEDAGOGÍAS DECOLONIZANTES, 2021), tendo como interlocutores a Prof.ª Zulma
Palermo, e pesquisadores da Rede de Pesquisa sobre Pedagogias Decoloniais na Amazônia (RPPDA). Tal
experiência foi sentida como uma subversão do modo de expressão tradicional da produção acadêmica de
conhecimento, ainda pautada por questões de autoria, propriedade do conhecimento e individualismo
meritocrático.
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A curiosidade nasce da vivaz certeza de nossa ignorância e morre (para renascer de


novo) com a certeza vivaz de que, embora tenha alcançado um ponto, um destino e tenha
servido a um propósito, ela não termina nem esgota a infinita realidade. Ao contrário, a
curiosidade pode se distrair pelo caminho, resvalar em obstáculos e sucumbir ao erro, o que é
muito comum na busca pelo conhecimento, em que os fracassos possuem tanta importância
quanto os acertos.
Mas, se a curiosidade é o que nos insere na comunidade humana, possuindo uma
dimensão ontológica e antropológica; se é o que nos coloca em tensão constante com a
realidade, adquirindo dimensões éticas, gnosiológicas e, até teológicas, ela se constitui,
também, como uma atividade, e uma das mais árduas: a atividade de fazer perguntas.
Perguntamos porque somos seres sedentos de sentido. Em nossa viagem pela
existência (para usar-se a metáfora da Odisseia), desconfiamos do caos, o rechaçamos,
tentamos dominá-lo como se fosse um Leviatã pronto a emergir de sombras profundas e
caóticas. Camus (2010) demonstra esse desassossego ao explicitar a absurdidade que exsurge
da relação do ser humano com o mundo e a nossa busca, incessante, por tentar capturar as
razões, o sentido da vida a fim de não capitularmos e saltarmos para fora da existência por
meio do suicídio.
Anzaldúa (2000, p. 232) ecoa a busca desse sentido através da sua própria escrita no
mundo, que busca não somente o sentido deste mundo, mas o sentido da própria existência, o
testemunho da própria humanidade: “Porque o mundo que crio na escrita compensa o que o
mundo real não me dá. No escrever coloco ordem no mundo, coloco nele uma alça para poder
segurá-lo”.
E mesmo com todo a honestidade intelectual, o investigador curioso (nem todo curioso
investiga, mas todo investigador tem que ser, antes de tudo, um curioso) não pode fugir desse
dilema: estabelecer sentidos para ordenar o caos e, de certa forma, violentar a revoltosa
realidade através da linguagem e dos conceitos, como forma de erigir uma “casa habitável”,
onde possa se sentir seguro.
Como esquecer da Biblioteca de Alexandria e o anseio dos antigos reis ptolomaicos
em colecionar, arquivar e ordenar a representação do conhecimento de todo o mundo
conhecido? (CANFORA, 1989). Como não lembrar de Paul Otlet que, como um faraó
moderno, idealizou o Instituto Internacional de Bibliografia, ambicionando criar uma cidade
— o Mundaneum —, que seria um depósito universal, no qual se catalogaria, organizaria e
documentaria todo o conhecimento humano sob um único lema: “classificação de tudo, por
todos e para todos”? (LEVIE, 2006).
18

Embora não seja uma digressão, antes, seja o início mesmo de qualquer pretensão
investigativa, e, em um primeiro olhar, pareça um truísmo cômico, refletimos em torno da
curiosidade afirmando que, embora não tenhamos as mesmas pretensões megalômanas de
Otlet ou dos faraós alexandrinos, partiremos de nossa própria curiosidade e de nossas próprias
perguntas (digo nossas porque muitos que vieram antes de nós e que virão depois, também, se
perguntarão as mesmas questões) a fim de ordenar o nosso caos interior, sem pretensões de
definitividade e esgotamento.
Como sugerido desde o início, voltamos a nossa curiosidade para a “Casa de Estudos”,
mais precisamente, para a “universidade”. Muitas gerações passaram por essa instituição.
Quantas vidas foram consumidas sob suas arcadas, desde que a primeira instituição
universitária surgiu? Quantas dessas vidas escreveram e deixaram registros, testemunhos,
análises, histórias de suas vivências? Quantos se debateram diante da pergunta: o que é, afinal
de contas, a universidade?
Penso que, mesmo com uma obsessão como a de Paul Otlet (LEVIE, 2006), não seria
possível arrolar todos os livros, comentários, excertos, tratados, etc., que abordam, de maneira
direta ou indireta, esta instituição secular. Desta maneira, todo e qualquer corpus documental
que acessemos para esta pesquisa não deixa de ter, mais ou menos, uma limitação humana
natural, balizada seja pela intencionalidade de nossas escolhas, seja pelas nossas próprias
barreiras espaciotemporais.
Não é difícil imaginar que qualquer outro que realizasse esta tese, o faria de maneira
diferente, pois partiria de outros caminhos, construiria outras trajetórias e pontos de chegada.
E estas diversas perspectivas têm uma razão de ser em particular: as diversas experiências que
nos constituem. Faz-se razoável supor, portanto, que as mais honestas “considerações
iniciais” exigem uma exploração de si mesmo, antes de qualquer exploração do mundo, certo
de que cada investigação possui um tempo, um espaço e um corpo que pergunta.
Tentemos estabelecer um início, portanto.
Os meus primeiros interesses pela universidade não surgiram propriamente quando
ingressei em uma instituição universitária, em 2007. No final do século XX e início do século
XXI, a universidade, para as classes trabalhadoras, era sinônimo de ascensão social,
profissionalização e inserção no mercado de trabalho. A partir deste “senso comum”, toda o
meu percurso escolar, como projeto de família, passou a ser direcionado para que conseguisse
acessar o espaço universitário, encarado como um ambiente apartado (muitas vezes “acima”)
do restante da sociedade.
19

Inserido neste contexto, não pensava na universidade enquanto uma instituição social,
como expressão historicamente determinada de uma sociedade. Já havia ouvido falar de
neoliberalismo; terceirização e privatização dos serviços universitários; de greves de
docentes; de movimentos estudantis. Eram (e são) temas muito em voga (CHAUÍ, 2001) que
sempre atravessaram a nossa realidade, principalmente por meio da cobertura, nem sempre
responsável, de nossos canais midiáticos.
Entretanto, não tinha ainda noção da dimensão das atividades universitárias (ensino,
pesquisa e extensão), nem de que era uma instituição em permanente disputa. Para mim, a
universidade era, semelhantemente a escola, um local de ensino anódino, no caso específico,
uma espécie de ensino profissionalizante, voltado para a preparação para o mundo do trabalho
(muitos, aliás, ainda hoje, a projetam assim).
Com essa visão empobrecida, entrei no curso de Bacharelado em Direito da
Universidade Federal do Pará (UFPA). A experiência inicial em uma universidade
relativamente nova — fundada em 1957 —, localizada no Brasil, na América Latina, no século
XXI, por si só, já traz muitas camadas históricas sedimentadas, difíceis de serem
compreendidas.
Afinal, o que persiste, ainda, das antigas universidades europeias que surgiram no
século XII (Universidade de Bolonha, de Paris, etc.) na universidade pública em que vivi?
Quais características desta universidade amazônica foram adquiridas a partir do influxo da
Modernidade2? Quais elementos os movimentos políticos em outras universidades latino-
americanas, no final do século XIX, trouxeram para UFPA? Quais traços da multiversity
norte-americana, da racionalidade neoliberal também se discernem no seio da instituição?
Instituições antigas como as universidades, enredadas no tempo histórico, se tornam
muitas coisas ao mesmo tempo e, por isso, não devem ser analisadas como se pudéssemos
alcançar o “verdadeiro” conceito delas, uma espécie de essencialidade a-histórica de sua
existência (CHARLE, VERGER, 2012).
Não obstante Rüegg (2003) diga que a universidade é a única instituição europeia que
preservou um padrão e suas funções sociais básicas ao longo do milênio, entendemos que
tudo o que podemos fazer são cercos, aproximações, intelecções descritivas e compreensivas

2
Aqui, usa-se o termo “Modernidade” na acepção propugnada pelos teóricos latino-americanos da
decolonialidade, isto é, como um longo processo histórico, iniciado em 1492, em que a passagem do feudalismo
para o capitalismo, o Renascentismo, a Reforma Protestante, a emergência do circuito comercial do Atlântico, a
Ilustração, a Revolução Industrial e as Revoluções Burguesas se articularam inextricavelmente com as políticas
colonialistas adotadas por nações europeias em relação a populações não europeias. (DUSSEL, 1993;
MIGNOLO, 2005).
20

dessa busca incessante pelas mais variadas “ideias de universidade”, que possuem um caráter
mais valorativo do que fatual.
Oliveira (2013, p. 155), por exemplo, ao tentar apreender os valores formativos da
UFPA, relata que a instituição se aproxima mais do modelo napoleônico do que do
humboldtiano, “uma vez que não é a pesquisa desinteressada da verdade o núcleo essencial da
instituição, mas antes a preparação de profissionais em Faculdades e Escolas vocacionadas ao
desenvolvimento de atividades pragmáticas”.
Foi com este espírito pragmático, fruto do meu tempo histórico, que iniciei os estudos
universitários. O fato de ter sido uma universidade pública trouxe, ainda, especificidades que
não existiriam, caso se tratasse de uma instituição privada. Cedo na vivência acadêmica tive
contato com as dimensões que, a partir do século XX, passaram a constituir as atividades fins
da universidade, constituindo grupos de pesquisa e participando de projetos de extensão
durante o percurso curricular da graduação
Foi neste período, por exemplo, que iniciei as minhas primeiras experiências na
extensão universitária, inicialmente de forma irrefletida é bem verdade, convencido de que
um dos compromissos da universidade seria o de estender à sociedade os benefícios oriundos
da produção do conhecimento acadêmico.
Durante a graduação vivenciei o Núcleo de Prática Jurídica (NPJ), bem como os
projetos "Trabalho análogo ao de escravo: conscientização para o combate a essa chaga" e
“Saúde infantil e necessidades especiais em Belém: acessibilidade física no Pará”, os quais
contribuíram para que eu percebesse a importância da práxis extensionista para a minha
formação e problematizasse a própria formação jurídica propugnada pelo Projeto Político
Pedagógico do curso de Direito da UFPA.
Ademais, junto às atividades de ensino (monitoria) e pesquisa, pude perceber e
problematizar que a indissociabilidade entre o ensino, a pesquisa e a extensão, preconizados,
inclusive, pela Constituição Federal de 1988, padecia com dificuldades de implementação,
principalmente no caso da formação jurídica. A partir de 2015, já trabalhando como
advogado, passei a trazer tal preocupação para a minha caminhada formativa enquanto
pesquisador.
Vindo da área jurídica e, mobilizado por uma “Especialização em Filosofia da
Educação”, realizada em 2015, no Instituto de Ciências da Educação da UFPA, pude acessar
os primeiros textos que refletiam sobre educação e formação. Neste período, investiguei o
fenômeno do bacharelismo no Brasil na formação do Bacharel em Direito, tentando
21

compreender os mais variados modos de existir deste Bacharel, a partir do Brasil Colônia.
(SARMENTO, GOMES, 2015).
Em 2016, ingressei no quadro de servidores técnico-administrativos da UFPA,
iniciando o exercício profissional na Pró-Reitoria de Extensão. Neste espaço institucional
pude entreter relações com as outras Pró-Reitorias — de Ensino (PROEG) e de Pesquisa
(PROPESP) —, bem como com os extensionistas da universidade, em suas mais variadas
áreas do conhecimento.
A inserção institucional proporcionou um maior contato com a universidade em uma
outra perspectiva: a da gestão. A gestão universitária — respeitadas as especificidades de uma
universidade pública — evidencia que a universidade é uma instituição com uma estrutura
burocrática complexa, submetida à um corpo normativo detalhado e às injunções estatais e
políticas, com relativa (e cada vez mais ameaçada) autonomia orçamentária, financeira e
administrativa.
O que se destaca na gestão universitária é a clareza dos conflitos políticos, econômicos
e ideológicos que atravessam a universidade, influindo inexoravelmente na formação dos
discentes e nas escolhas políticas que nortearão a sua relação com a sociedade.
Com o olhar da gestão acadêmica, notadamente a partir da Extensão Universitária,
iniciei o Mestrado em Educação, em 2016, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em
Educação (PPGED), incorporado na Linha de Pesquisa “Educação, Cultura e Sociedade”.
Neste período, dando continuidade aos estudos iniciados na especialização, busquei
compreender qual a função da extensão universitária na formação do Bacharel em Direito,
tendo como estudo de caso o “Núcleo de Assessoria Jurídica Universitária Popular ‘Aldeia
Kayapó’”, no período de 2004 a 2014, vinculado à Universidade Federal do Pará.
Continuamos, portanto, os nossos estudos, sobre a formação dos graduandos em
Direito da UFPA, a partir dos seus envolvimentos em um tradicional Programa de Extensão,
vinculado ao Instituto de Ciências Jurídicas (GOMES, OLIVEIRA, 2018).
Para além deste percurso formativo mais formal, ao longo desses mais de dez anos em
que atravessei, pela primeira vez, os umbrais da UFPA, é importante ressaltar que a
universidade adquiriu outros sentidos para mim, para além das vivências como estudante e
como profissional: aqui obtive amigos, amores, tristezas, alegrias, triunfos e fracassos.
Diz Manguel (2016) que a experiência do mundo compete por nosso amor e nossa
inteligência e que o experimentamos fazendo perguntas, pondo a nossa curiosidade em
palavras. Talvez por isto queremos saber onde estamos: porque queremos saber quem somos.
22

Cá estou, portanto, de alguma forma, querendo saber quem sou, quem somos na universidade
e quem é a universidade em nós.
Não deve ter sido pelo acaso, portanto, que o meu percurso acadêmico, profissional e
pessoal se construiu por meio de e através da problematização constante dos sentidos da
universidade, suas ressignificações, suas histórias, suas potencialidades para a formação
humana, dentro do que o Ocidente passou a denominar de “formação superior”.
De fato, foi por meio do contato com a grande área dos Estudos sobre a Universidade
e, dentro desta área, a partir de minha experiência — geo-corpo-politicamente situada na
América Latina, na Pan-Amazônia — que tentei e tento dar sentido (entre tantos) a esta
instituição multifacetada.
Na presente pesquisa, pensamos, portanto, a universidade a partir de nossas
experiências. Sob uma concepção cientificista isso seria considerado falta de rigor acadêmico,
mero exercício literário autobiográfico. Dentro dos marcos da ciência moderna, a ciência não
se faz a partir destas vivências individuais, não depende de perspectivas, nem deve ser
atrelada ao volúvel espaço-tempo de nossas individualidades. Ao contrário, as suas análises
podem ser replicadas e as suas conclusões generalizadas, universalizadas, mantendo-se as
condições dos testes e dos experimentos iniciais (HESSEN, 1999).
Consideramos, no entanto, analisar a universidade sob uma perspectiva teórica que
ressalta a historicidade, a situacionalidade, a geopolítica e a corpo-política de todo sujeito do
conhecimento. Por isso, optamos por pensar a universidade a partir das práxis decoloniais,
que colocam a instituição universitária em confronto com os seus principais marcos
filosóficos e políticos, vinculados aos processos de sua constituição na Europa.
Neste momento, em que a perspectiva decolonial ganha expressão na universidade
brasileira, parece se tornar relevante saber o que ela tem a nos oferecer em termos de crítica à
própria instituição que lhe dá visibilidade.
Importante ressaltar que iremos explicitar os fundamentos teóricos do pensamento
decolonial, posteriormente. Entretanto, desde já, salientamos que, para além de uma teoria
academicista — com seus rigores, cânones e panteão de intelectuais —, encaramos a teoria
decolonial como uma postura existencial, encarnada em práxis que problematizam categorias
e conceitos estabelecidos e naturalizados, e que busca trazer à lume aquilo que foi
invisibilizado a partir das relações de poder fundadas entre colonizadores e colonizados.
Assim como, a partir do encontro (ou encobrimento) do “totalmente outro” (DUSSEL,
1993) ocorrido quando da chegada dos europeus na América, teve-se genocídio, etnocídio e
epistemicídio, entendemos que a universidade, situada nos territórios que sofreram com o
23

processo de colonização, pode, tal qual um espelho, reencontrar-se com a sua matriz europeia,
agora em uma perspectiva invertida de confronto, de tensionamento, de problematização e
questionamento.
A decolonialidade3 tem se tornado uma perspectiva teórica cada vez mais utilizada,
principalmente nas pesquisas acadêmicas. Em uma consulta sobre a tendência de buscas do
termo “decolonial”, e as suas variantes, tanto no Google Trends quanto no Books Ngram
Viewer4, observamos, a partir dos anos 2000, um incremento nas pesquisas sobre o tema,
principalmente na América Latina e na América do Norte.
Por um lado, torna-se interessante ver o alargamento de um referencial teórico e a sua
capacidade de operar conceitos nos mais variados âmbitos de análise. E isto se constata
através do levantamento da produção intelectual que já existe, consolidando uma fortuna
crítica do pensamento decolonial e de sua crítica à instituição universitária, como veremos,
posteriormente, quando abordarmos a construção do estado de conhecimento sobre o tema.
Por outro lado, quando um instrumental teórico fica “na moda”, corre dois riscos: ser utilizado
sem rigor e ser apropriado acriticamente.
Na presente tese, acreditamos que a teoria decolonial tem grande poder heurístico, de
mobilização política, contestatória e de reflexão ética, congregando indivíduos e coletividades
que sentem o peso da exclusão e da invisibilidade em meio aos processos globalizatórios,
grupos estes reunidos sob o conceito de “Sul Global” (SANTOS, 2010). Daí, talvez, se
origine a crescente popularidade da perspectiva decolonial.
Como a decolonialidade se trata de uma análise crítica diversificada da sociedade,
tendo como local de enunciação privilegiado a América Latina e a práxis de movimentos
sociais, grupos étnicos e intelectuais, em sua maioria latino-americanos, que passaram a
desenvolver um programa de investigação em torno das implicações econômicas, políticas,
éticas, epistemológicas e ontológicas de uma sociedade que fora colonizada por europeus
(ESCOBAR, 2003); entendemos que a amplitude analítica do pensamento decolonial tem algo
a nos dizer sobre a universidade.

3
Nesta tese utilizaremos os termos “pensamento decolonial”, “decolonialidade”, teoria decolonial”, “perspectiva
decolonial”, “práxis decolonial”, “movimento decolonial” e “giro decolonial” como se fossem sinônimos de um
mesmo âmbito teórico-prático de investigação e intervenção sobre a realidade, que será detalhado ao longo da
tese, principalmente na última seção.
4
O Google Inc. é uma ferramenta que possibilita, a partir de determinadas palavras chave, verificar a evolução
do número de buscas, os assuntos e pesquisas relacionadas a um tema. Neste caso específico, consultar:
https://trends.google.com.br/trends/explore?date=2006-01-01%202020-04-26&q=decolonial. O Ngram Viewer
possibilita visualizar a história, a ascensão, desenvolvimento e desuso de palavras, expressões, conceitos etc.
(Ex: https://books.google.com/ngrams/graph?
content=decolonial&year_start=1800&year_end=2019&corpus=26&smoothing=5&direct_url=t1%3B
%2Cdecolonial%3B%2Cc0).
24

Em suma, partimos da premissa de que a teoria decolonial demarca certas


compreensões em torno desta instituição que precisam ser explicitadas.
Se consultarmos as obras de historiadores da universidade — em âmbito internacional
e nacional — constataremos que a sua origem é um fenômeno atrelado a constituição da
Europa, com todas as implicações advindas disso. Charles e Verger (2012); Gilli, Verger e Le
Blévec (2007); Makdisi (1981); Moore (2018); Nuria e Bergan (2006); Rubião (2013), Rüegg
(2003), Verger e Weijers (2013), entre outros autores, asseveram as raízes europeias da
universidade.
Gian Paolo Brizzi, eminente pesquisador da história da universidade, principalmente
da Universitá di Bologna, um dos fundadores do Centro per la Storia delle Università
Italiane (CSUI), da revista Annali di storia delle università italiane, e um dos autores, junto a
Jacques Verger, dos seis volumes de “Le Universitá dell’ Europe”, por meio de contato
pessoal, via e-mail, afirmou, categoricamente, que está errado concluir que a universidade
surgiu de experiências na África ou na Ásia, sob o risco de confundi-la com as antigas Escolas
de Atenas e de Alexandria ou outras experiências de “formação superior” que surgiram em
territórios não europeus. Para Gian Paolo Brizzi, portanto, a universidade é uma experiência
histórica especificamente europeia.
Não obstante esta longa tradição historiográfica, identificamos uma produção
acadêmica minoritária que procura relativizar a perspectiva eurocêntrica quanto ao
surgimento da instituição universitária. Enquanto alguns preconizam que a universidade deve
a sua existência às instituições surgidas em países árabes, outros não negam propriamente a
origem europeia da universidade, mas tentam estabelecer importantes liames, continuidades e
influências de experiências formativas em outros continentes em relação a sua constituição
(ALATAS, 2006; ASSIÉ-LUMUMBA, 2006; BEDMAR, 2012; CHERRADI, 2016, 2020;
DRAY, WAAST, 2008; DMITRISHIN, 2013; GHUNAIMA apud MAKDISI, 1981; LULAT,
2003; POURCELOT, 2015)
A teoria decolonial nos provoca a revisitarmos a história, não como um negacionismo
intransigente, fruto de um uso circunstancial e ideológico da narrativa histórica, mas como um
convite a experimentar um olhar outro, seguir as contradições e rupturas históricas, muitas
vezes esquecidas na poeira do tempo.
Compreendemos que o pensamento decolonial se nutre daquilo que não foi contado,
da palavra que foi derrotada nas seculares relações de poder entre sociedades que colidem
para dizer a sua palavra, fazendo-se presentes no mundo (FIORI, 1987). É esse “não dito” que
nos interpela e nos provoca com a seguinte questão-problema:
25

Quais as contradições e tensões que emergem das diferentes compreensões e


projetos de universidade, a partir dos movimentos de decolonização desta instituição,
encarnados em práxis de sujeitos, movimentos sociais e grupos étnicos?
Insistimos, sob todos os riscos, com a expressão “compreensões de universidade” em
claro contraponto à noção de “ideia de universidade”, que se tornou familiar a partir da obra
homônima do cardeal Newman (2015), no século XIX, pois, diferentemente do idealismo
newmaniano, pensamos que a teoria decolonial não propugna uma ideia ou modelo de
universidade, mas sim entendimentos, percepções críticas que são construídas a partir das
mais variadas práxis decoloniais universitárias em tensão e contraponto constantes aos
modelos de universidade desenvolvidos em perspectiva eurocêntrica.
Enquanto Newman (2015) concebe a universidade dedutivamente, partindo de sua
experiência individual, em Dublin, para o exterior, tendo por fundamento as suas intelecções e
raciocínios teóricos; a teoria decolonial desenvolve compreensões de universidade, partindo
das experiências que emergem das práticas adotadas por coletividades e indivíduos,
possuindo, assim, uma ancoragem teórico-prática (DUSSEL, 1974). Em outras palavras, as
compreensões de universidade propugnadas pela teoria decolonial são fundadas na práxis
decolonial (WALSH, 2009; WALSH, MIGNOLO, 2018).
Esta distinção é relevante para que não recaiamos no idealismo de Newman (2015), no
qual a ideia de universidade está concluída, pronta na mente imaginativa, estabelecida como
uma régua instrumentalizada para julgar se a universidade concreta — no caso, a sua
Universidade Católica de Dublin — está conforme o modelo preconcebido.
Na verdade, as compreensões em torno da universidade que emergem da crítica
decolonial, ao contrário, nunca estão acabadas. Como dito no início desta tese, não nos
propomos encher-nos de palavras sábias, feitas desde a borda dos lábios, ao ponto de
preencher a todos os espaços com a fotografia de uma ideia conclusa.
O inacabamento dos projetos de universidade está ancorado na própria dinâmica da
práxis decolonial que constrói concepções de universidade na cotidianidade dos coletivos, dos
movimentos sociais, das vivências dos povos, reescrevendo-se, continuamente, pelo e através
do confronto com a colonialidade.
Desta forma, temos como objetivo geral: analisar e compreender as contradições e
tensões que emergem das diferentes compreensões e projetos de universidade, a partir dos
movimentos de decolonização desta instituição, encarnados em práxis de sujeitos,
movimentos sociais e grupos étnicos.
26

Para a consecução deste objetivo geral, estipulamos como objetivos específicos:


descrever os “modelos” de universidade que se constituiram historicamente, sob uma
perspectiva eurocêntrica, mas de forma sempre a tensionar este percurso a partir da crítica
decolonial; fazer um apanhado (através do estado da arte) de trabalhos acadêmicos que
apresentem um panorama global de práxis universitárias com propostas decolonizadoras da
universidade; explicitar a crítica decolonial da universidade eurocêntrica tomando em
consideração o que consideramos uma experiência extrema de decolonização universitária,
qual seja, a práxis decolonial da Universidad de la Tierra5.
De fato, existem tantos projetos de universidade quanto existem comunidades e
movimentos de base étnico-territorial construindo “suas” universidades (sem falar nas
intervenções decoloniais “por dentro” das universidades tradicionais, legitimadas pelos
Estados)6. Por isso, a Universidad de la Tierra, com sede em Oaxaca, não nos permite
idealismos, nem modelos paradigmáticos. Ao contrário, como diz Palermo.

É de fundamental importância o lugar sócio histórico em que se encontram


radicadas as universidades desde onde refletimos, pois todo o conhecimento
supõe não somente um espaço físico, senão — e sobretudo — uma
experiência comum que define a forma de habitar um território, pois não se
trata somente de uma delimitação global e administrativa, senão de uma
reconstrução simbólica realizada por seus próprios membros e
conceitualizada por seus intelectuais. (2015, p. 19).

É fundamental, portanto, a relevância do lugar e do conhecimento local para a


explicitação das práxis decoloniais (ESCOBAR, 2005). O nosso objetivo é apreender e
sistematizar o que consideramos serem alguns princípios norteadores dessas práxis esparsas,
obtendo uma visão panorâmica da crítica decolonial à instituição universitária, sem qualquer
pretensão universalista que, não poucas vezes, torna-se a tentação dos acadêmicos.
A fim de evocarmos a crítica decolonial da universidade, enquanto práxis decolonial, e
considerando que não podemos fazer uma abordagem generalista e que se pretenda universal
sobre o tema, iremos trazer à discussão uma das principais experiências de “universidade
decolonial” que vem sendo construída desde o início do século XXI, no México: a Unitierra.
De fato, entre as experiências universitárias com vocação para subverter o padrão de poder da
colonialidade, tem se destacado as universidades interculturais indígenas que começaram a
surgir na década de 907.
5
De agora em diante denominada “Unitierra”.
6
Benzaquen (2012) denomina estas experiências de “Universidades dos Movimentos Sociais” e mapeia algumas
de suas propostas, analisando, inclusive, a práxis da Unitierra.
7
Erdösová (2015) relata que a primeira destas instituições surgiu na Nicarágua, em 1996, seguida de outras
iniciativas semelhantes, sendo uma das mais antigas a Universidad Comunitaria Intercultural de las
27

É que o pensamento decolonial alimenta-se da práxis social de comunidades


invisibilizadas que procuram resistir ao epistemicídio, ao genocídio, ao racismo e a todas as
formas de opressão construídas ao longo do processo colonizador. Atualmente, essa
resistência se traduz por meio da rejeição de sociabilidades, pedagogias e formações
vinculadas a sociedades moderno-capitalistas e pela elaboração de um novo ethos
universitário.
Nesse sentido, concordamos com Jardim (2018, p. 16), pensamos que “quanto mais
próximas das dinâmicas particulares as teorizações forem feitas, mais legitimidade e potencial
de mudança efetiva sobre as chamadas ‘colonialidades’ o Pensamento Decolonial terá”.
No caso desta tese, elegemos a Unitierra e sua práxis específica como uma experiência
relevante para a crítica decolonial da universidade, até por sua antiguidade (com seu início
desde o início do século XXI), em relação a outras.
Não intentaremos, no entanto, realizar um estudo de caso histórico-organizacional da
Unitierra (TRIVIÑOS, 1987).
Segundo Gil (2002, p.55),

[...] os propósitos do estudo de caso não são os de proporcionar o


conhecimento preciso das características de uma população, mas sim o de
proporcionar uma visão global do problema ou de identificar possíveis
fatores que o influenciam ou são por ele influenciados”.

No percurso desta investigação, até tentamos, inicialmente, denominar a presente


investigação como um estudo de caso instrumental, “[...] com o propósito de auxiliar no
conhecimento ou redefinição de determinado problema” (GIL, 2002, p. 139). Lembramos,
porém, de uma pergunta importante a ser feita por qualquer pesquisar: “Quem sou eu para
realizar esta pesquisa?” (LUNA, 2002, p. 46). De fato, o processo de pesquisa é dinâmico e
exige, não poucas vezes, sensibilidade por parte do pesquisador em relação aos
condicionanentes da realidade.
Esbarramos, por exemplo, em obstáculos intransponíveis que nos fizeram refletir sobre
se, de fato, se tratava de um estudo de caso ou mesmo se uma pesquisa desta natureza seria
exequível. Pensamos que não.
Entre tais obstáculos podemos citar, primeiro, os de ordem familiar, com a pandemia
do COVID-19, problemas de saúde pessoal e de parentes próximos, fora o enlutamento e a
responsabilidade pelo cuidado de membros da família; segundo, os de ordem financeira,

Nacionalidades y Pueblos Indígenas Amawtay Wasi, no Equador, e a Universidad Autónoma Indígena


Intercultural, na Colômbia.
28

caracterizados pelos cortes dos recursos de pesquisa promovidos pelo governo Bolsonaro,
bem como pela não obtenção de uma bolsa para realização de doutorado sanduíche; e os de
ordem metodológica, que desenvolveremos a seguir.
Isso não quer dizer que abandonamos a experiência da Unitierra. Ainda acreditamos se
tratar de um caso particular útil para a obtenção de uma compreensão geral das contradições e
tensões que se manifestam a partir das diferentes compreensões e projetos de universidade,
colocadas em movimento nos processos de decolonização desta instituição (STAKE, 1995).
Embora distante geograficamente, a Unitierra é um marco histórico para o debate
proposto nesta tese, uma vez que tem a sua fundação vinculada à resistência de povos
indígenas (choles, tzeltales, tzotziles, tojolabales) em diálogo com teorias marxistas,
anarquistas e pós-coloniais (um verdadeiro exercício epistemológico de fronteira), ante o
genocídio e epistemicídio do Estado mexicano, evidenciando a persistência da colonialidade
até os nossos dias e as estratégias para se “in-surgir, re-existir e re-viver” desses
agrupamentos sociais (WALSH, 2009).
A partir da violência estatal, estes povos têm buscado investir em movimentos
formativos e reprodutivos de suas existências inseridas na colonialidade, reinscrevendo suas
identidades, inventando novas formas de re-existir, forjando estratégias de sobrevivência e
inquietude que tencionam e objetivam subverter a geopolítica do conhecimento (MIGNOLO,
2003).
Ademais, a Unitierra tem presença recorrente em obras individuais e coletivas do
pensamento decolonial, como uma experiência que demarca uma investida de peso em prol de
uma universidade fronteiriça, motivo pelo qual ganha relevância enquanto caso a ser
aprofundado nesta tese (GROSFOGUEL, HERNÁNDEZ, VELÁSQUEZ, 2016; MIGNOLO,
2015; WALSH, 2015).
Neste sentido tornou-se um caso paradigmático, perpassando estudos nacionais e
internacionais, essencial para se compreender os movimentos de decolonização da
universidade. No entanto, não ousaríamos chamar nossa análise de um estudo de caso, diante
das investigações que já foram realizadas em torno da mesma experiência (BENZAQUEN,
2012; RESTREPO, 2019; ZALDÍVIA, 2021)8.
Acreditamos sim que o estudo de caso é relevante para examinar um fenômeno
complexo, multidimensional, como o é a questão sobre a decolonização da universidade.

8
Em Luna (2002, p. 38), uma sentença nos chamou atenção: “Pesquisas que não tem passado dificilmente terão
futuro...”. É essencial considerar as importantes teses que se debruçaram sobre a Unitierra, ressaltando a
qualidade de suas análises. Há um passado teórico que aqui levamos em consideração e que nos motiva.
29

Por outro lado, é um método de pesquisa que exige, principalmente a partir do


referencial teórico-metodológico aqui adotado, a análise das práticas reais da Unitierra de
maneira detalhada, imersiva, bem como do contexto em que se situa, a fim de que seja
compreendida em profundidade. Outrossim, o estudo mesmo que aprofundado desta
instituição não seria o suficiente para realizarmos induções analíticas e generalizantes em
torno do objeto de pesquisa.
Em suma, as exigências supracitadas não seriam satisfeitas em nosso percurso. Por
exemplo, em termos de coleta de dados, nos utilizaremos, majoritariamente, de “dados de
papel” (GIL, 2002, p. 141), isto é, de documentos, fontes primárias (sítio eletrônico,
manifestos zapatistas, etc.) e secundárias (outras investigações já realizadas) que se debrucem
sobre a Unitierra, de forma a obter melhor refino na análise. Acresça-se, ainda, que teremos
acesso a relatos verbais indireitos, frutos de entrevistas realizadas por nossos interlocutores
que realizaram pesquisas in loco na instituição.
Acessaremos essa “realidade”, portanto, de maneira indireta, isto é, por meio da
mediação de outros sujeitos que escreveram e narraram a sua experiência dentro dos muros da
Unitierra. Não teremos, portanto, a empiria inerente ao estudo de caso (YIN, 2001), o que nos
impossibilitiaria de capturar os movimentos in loco (STAKE, 1995).
Preferimos, assim, evocar a Unitierra, não como estudo de caso, mas como uma práxis
pedagógica exemplificativa (WALSH, 2009; WALSH, MIGNOLO, 2018), — uma das mais
importantes da América Latina — essencial para o que está em jogo quando falamos em
decolonização da universidade e que, por isso, merece ser conhecida.
Quando falamos de universidade (e das compreensões em torno de si mesma), falamos
de uma concepção de realidade (ontologia) de humanidade (antropologia), de conhecimento
(epistemologia), de ética, estética e política num todo integrado. Por meio dela, podemos
traçar um retrato da própria Modernidade/Colonialidade.
Nesse sentido, consideramos a práxis Unitierra não, como já alinhavado, uma
experiência universalizável, mas como uma experiência inspiradora de outras práxis
universitárias decoloniais que se espraiam por todo o mundo. E de fato, como veremos,
quando do levantamento do estado da arte, há uma rede de práxis decolonizadoras sendo
tecida, muitas das quais estabelecendo trocas dialógicas entre si.
Transitamos, portanto, tentando estabelecer uma síntese teórica dessas práxis, sem
descuidar de sua variabilidade, sem desrespeitar as suas especificidades, sem desacreditar, no
entanto, nas suas capacidades de serem multiplicadas e até replicadas, levando-se sempre em
conta os contextos específicos em que se desenrolam.
30

De maneira nenhuma, pensamos obter um trabalho “menor” em virtude da ausência de


empiria, de observação, do contato “direto” com a realidade da Unitierra. Ao contrário,
reafirmamos que se trata de uma análise teórica com lastro em uma práxis concreta que tem
registrado periodicamente o seu quefazer. Neste sentido, será possível realizar uma análise
documental da experiência Unitierra, por meio da consulta dos materias disponibilizados em
seu sítio eletrônico9, o que será essencial para a compreensão de como a própria instituição se
aborda a si própria (CELLAR, 2008).
É bem verdade que a pesquisa documental possibilita um maior controle das variáveis
envolvidas na investigação (escopo, contexto, conteúdo), permitindo uma análise mais
precisa, tendo em vista a menor suscetibilidade às idiossincrasias da pesquisa de campo. Isto
nos possibilita uma maior flexibilidade em termos de adaptação de nossa abordagem.
Pensamos, assim, inspirados pela chamada teorização enraizada 10 (LAPERRIÈRE,
2008) que, a partir da análise documental, poderemos nos abrir ao que a Unitierra tem a dizer
sobre si mesmo, levando em consideração categorias teóricas que emergirão de sua própra
práxis e do discurso que constrói sobre sua própria existência.
É sempre importante lembrar que todo universo documental possui um “lugar de
produção” (BARROS, 2020) eivado de intencionalidades: servem para projetar uma imagem
social, para atender interesses específicos, para delimitar uma direção aos olhares que se
estenderão sobre o seu conteúdo. Nesse sentido, os documentos gerados por Unitierra, a
linguagem empregada, seus modos de expressão e estratégias discursivas são seus
“monumentos”, isto é, “resulta do esforço de sociedades históricas para impor ao futuro —
voluntária ou involuntariamente — determinada imagem de si próprias” (LE GOFF, 1990, p.
549).
Tal constatação — acolhida, aliás, nesta tese — assume a alteridade crítica que
considera o “Outro” (no caso, a comunidade Unitierra) como sujeito capaz de proporcionar
conhecimento para compreender e atuar no mundo, nos proporcionando categorias de análises
e enriquecendo a nossa própria investigação. Unitierra ao produzir seus documentos, torna-se
emissora coletiva, considerando-se que os documentos gerados, difundidos, disponibilizados
somente o são à medida em que representam o posicionamento coletivo.

9
O sítio eletrônico de Unitierra (https://unitierraoax.org/) se constitui como um importante manancial
(iconográfico, filmográfico, textual) para compreender os princípios, os projetos, os discursos construídos pela
comunidade em torno de seu próprio projeto.
10
Ressaltamos que se trata de uma inspiração específica, vinculada à uma característica desta abordagem
metodológica: deixar os dados coligidos gerarem novas categorias teóricas ao longo da investigação.
31

Desta forma, de maneira nenhuma nos restringiremos às categorias da decolonialidade


como lente teórica para analisar Unitierra, embora já saibamos que é uma perspectiva
importante para as próprias reflexões da comunidade. Compreendemos, porém, que outras
categorias, outras teorias, bem como outros autores são fundamentais para a sua existência.
Abordar essas categorias, a partir da análise documental, é respeitar a própria
comunidade em sua capacidade de produzir pensamento e conhecimento acerca da realidade e
não tratá-la como mero objeto de pesquisa, como aliás já foi criticado por Raymundo Sánchez
Barraza, Coordenador Geral de Unitierra, ao ser interpelado pela etnografia de Restrepo
(2019).
A partir do léxico de Eco (2007), temos, portanto, uma tese de compilação, uma vez
que busca coligir estudos em torno da experiência histórica universitária de maneira a
apreender as proposições de contestação, enfrentamento e reformulação da universidade,
como hoje concebida, por meio da inserção de pedagogias, filosofias e práxis indígenas, de
movimentos sociais e comunidades outras.
Outrossim, revisitamos a produção acadêmica que analisa a universidade à luz da
teoria decolonial, não para que a repliquemos, mas para que analisemos como os intelectuais
que vivenciam a universidade eurocentrada tentam se desprender de seus marcadores,
criticando a instituição de onde saíram e onde foram formados.
Assim, iremos nos defrontar com abordagens que enfrentam a questão da
colonialidade no âmbito universitário, o que exige que tentemos imergir no que foi pensado,
até o momento, sobre a decolonização da universidade. Neste sentido, nossa pesquisa terá
uma abordagem qualitativa, de tipo exploratória e descritiva, tendo como fontes principais de
investigação as textuais, sejam bibliográficas, sejam documentais.
É qualitativa por estar preocupada com os significados atribuídos à universidade, com
a compreensão de sua organização, isto é, “as causas de sua existência, suas relações, num
quadro amplo do sujeito como ser social e histórico”. (GERHARDT, SILVEIRA, 2009;
TRIVIÑOS, 1987, p. 130) e exploratória por proporcionar uma maior familiaridade com o
objeto, tornando-o mais explícito e descritivo por exigir o estudo das variadas características
que compõem o quadro de concepções sobre a universidade (GIL, 2002; OLIVEIRA, 2007).
Já sinalizamos que compreendemos os limites da pesquisa. Do ponto de vista da
crítica decolonial existem ainda outros. Temos consciência do quão dependente somos do
logocentrismo, do “livrocentrismo”, das injunções (metodológicas, epistemológicas) próprias
de nossa universidade e do fato de não termos acesso ao quefazer dos sujeitos que estão,
32

efetivamente, construindo experiências formativas universitárias decoloniais, como as da


Unitierra.
De fato, investigações como as de Benzaquen (2012) e Restrepo (2019), que se
utilizaram da observação participante, de um exercício etnográfico dialógico, demonstram a
importância de qualquer investigação decolonial encontrar-se com o outro na espacialidade
em que este último se constitui.
Isto me recorda o conselho dado por Ibn Khaldun (1978), erudito do século XIV,
àquele que deseja o conhecimento. O sábio resume o seu conselho em um verbo: viajar. A
errância como uma necessidade absoluta para o aprendizado e para formação da atenção, para
o contato com o mundo, para o diálogo com as pessoas que o constroem.
Diante desses limites, podemos afirmar que uma tese que aborda o pensamento
decolonial não é, necessariamente, decolonial, ainda mais se prescinde do contato com o
outro, isto é, se não é fruto do chão da práxis decolonial. Mesmo assim, reconhecendo as
limitações conjunturais da pesquisa já apresentadas (geográficas, orçamentárias, pessoais,
etc.), entendemos que, não obstante a distância, podemos ter contato indireto com as
experiências sociais universitárias pautadas em perspectivas decoloniais, por meio das fontes
documentais e da bibliografia consultada.
Diante da realidade que se impõe, nos resignamos aos limites sem, no entanto,
conformismos. Mais do que nunca, precisamos fazer o melhor que pudermos com a
conjuntura em que nos situamos, principalmente diante das investidas que as universidades
brasileiras têm sofrido, historicamente, por parte de governos autoritários de extrema-direita
que abominam espaços de crítica, de reflexão e de cultura.
O fato é que estamos implicados, inexoravelmente, em nossa crítica. Ao olharmos para
a universidade, para a formação universitária, olhamos para nós mesmos e, como a Alice
através do espelho, ao responder o enigma da Lagarta — “Quem é você?” —, respondemos:
“Não estou bem certa, senhora... Quero dizer, neste exato momento não sei quem sou...
Quando acordei hoje de manhã, eu sabia quem eu era, mas acho que já mudei muitas vezes
desde então...” (CARROL, 2014, p. 47).
Estamos expostos em nossa crítica. Assim, ao expressarmos a nossa curiosidade,
materializada em um problema de pesquisa; o nosso envolvimento pessoal, biográfico com o
tema; a relevância da questão para o conhecimento sobre a universidade, tendo por eixo
teórico a teoria decolonial, pensamos restar justificada a nossa investigação.
É importante ressaltar que o conhecimento mobiliza o corpo, o fazer, o sentir junto à
espacialidade e à temporalidade de nossas vivências coletivas (COLECTIVO ANDINO
33

AESTÉTICAS DECOLONIALES, 2017). Esta vinculação coletiva deriva da própria teoria


decolonial, cuja pedagogia é, reafirme-se, uma práxis política, ética e epistemológica, uma
forma de se posicionar em confronto com a realidade posta pela colonialidade do poder que
atravessa todos os sujeitos que habitam a ferida colonial.
Por isso, mais do que o mero significado do termo “decolonialidade”, interessa-nos na
presente pesquisa a concepção ético-política e epistemológica subjacente ao pensamento
decolonial, que incide sobre a universidade, isto é, como o pensamento decolonial
problematiza as múltiplas concepções de universidade que surgiram historicamente e como
esta universidade pode ser ressignificada a partir de uma perspectiva decolonial, tendo como
estudo de caso a Unitierra.
Acreditamos, assim, que é uma pesquisa recepcionável dentro da linha de pesquisa
“Educação, Cultura e Sociedade”, uma vez que interroga a formação dos sujeitos inseridos em
uma instituição educacional — a universidade — que, por sua vez, não está alijada das
condições históricas das sociedades de que faz parte.
A historicidade da universidade revela que não estamos falando de um espaço anódino
para a reprodução das estruturas de poder que existem na sociedade, sendo, ao contrário, uma
instituição perpassada por relações conflituosas de poder (político, econômico, simbólico,
racial, etc.).
A universidade revela relações contraditórias, tensionadas com a sociedade que lhe
atravessa, principalmente quando estabelece fronteiras, hierarquias e divisórias em relação a
outros processos educacionais, forjados por movimentos sociais, por meio de ações no campo
da mobilização política, com base em representações e ações coletivas de outros sujeitos.
Um exemplo que poderíamos invocar de que a universidade não é uma instituição
monolítica e imutável é a própria universidade latino-americana que, no início do século XX
passou a ser problematizada com relação a sua inserção social, o seu papel no
desenvolvimento dos países e na busca de uma identidade latino-americana; movimento este
normalmente identificado com as reivindicações de reformas universitárias, cujo marco foi o
Manifesto de Córdoba de 1918 (BELLOT, 2018; PORTANTIERO, 1978).
Outro exemplo foi o projeto político do Governo Bolsonaro — materializado no
“Projeto Future-se” — que intentava inserir a universidade dentro de uma lógica neoliberal
agressiva, ao mesmo tempo em que solapava a sua autonomia didática, financeira e
administrativa.
34

Explicitar essas transformações institucionais é uma tarefa complexa. Certamente, em


algum momento, teremos que ceder às generalizações e padrões conceituais que suplantarão
os detalhes e os matizes das histórias universitárias nacionais, regionais e locais.
Neste sentido, a realização desta tese de doutorado exigirá um maior aprofundamento
sobre as conceitos e categorias evocados pelo pensamento decolonial e que são utilizados com
potencialidade crítica diante das concepções eurocêntricas de universidade.
Desde já, de maneira introdutória, é importante ressaltar que o pensar-fazer decolonial
se debruça sobre a configuração do Sistema-Mundo Colonial Moderno, no qual o Norte
Global (Europa e EUA) detêm o controle da produção de conhecimento tidos por legítimos,
passíveis de maior circulação internacional, rankeamento e credibilidade. Configura-se,
assim, uma verdadeira geopolítica do conhecimento, na qual a América Latina, África e Ásia
se inserem dentro de uma posição de subalternidade epistêmica. (SEGATO, 2012).
Em se tratando, mais especificamente, do legado colonial deixado como herança
histórica dos países latino-americanos, temos que a universidade latino-americana, e, por
inclusão, a brasileira, foi constituída de frente para a Europa e de costas para as experiências,
conhecimentos e cosmovisões dos povos colonizados.
Desta forma, a universidade possui modelos eurocentrados, alicerçados nos valores e
padrões europeus que tem se alterado desde o século XII e influenciaram indelevelmente na
constituição das universidades que surgiram nos territórios colonizados.
O escolasticismo e o cientificismo moderno — que estabeleceram uma convivência
conflituosa, entre as universidades do Norte da Europa e as da região Ibérica —, tinham, em
comum, uma contraface: o racismo epistêmico, através do qual povos e comunidades
colonizadas, não eram encaradas como sujeitos produtores de conhecimentos, mas, quando
muito, como meros objetos de estudo e intervenção.
Imersos dentro dessa configuração geopolítica, o pensamento decolonial tem instigado
uma fecunda práxis, voltada para a decolonização da universidade, a partir do posicionamento
de intelectuais, de movimentos sociais e coletivos que estão para além dos muros da
universidade; mas, também, a partir de perspectivas de dentro da instituição, dos grupos de
docentes, discentes e gestores que habitam, internamente, os espaços universitários,
atravessados por suas estruturas de poder (GROSFOGUEL; HERNÁNDEZ; VELÁZQUEZ,
2012).
Isto porque a universidade não se configura como espaço meramente reprodutor das
ideologias dominantes, à semelhança do que as chamadas teorias reprodutivistas defendiam
quanto ao papel da escola inserida no modo de produção capitalista. Para os reprodutivistas a
35

escola era apenas a instituição que reproduzia em seu interior, mecanicamente, os conflitos
externos, inerentes a uma sociedade de classes. (FRIGOTTO, 2010).
Partimos do pressuposto que encara a universidade, assim como a escola, como uma
instituição que se faz através de variadas mediações históricas e conflitos, não sendo uma
entidade passiva e inerte frente ao devir histórico, mas ativa e transformadora desde dentro de
sua própria estrutura, por meio dos sujeitos que a constituem, os quais, organizados, podem
exercer mediações transformadoras a partir da instituição e não apesar dela. (FREIRE, SHOR,
1986; FRIGOTTO, 2010; GIROUX, 1997).
Assim, seja a partir de projetos curriculares, metodologias pedagógicas, políticas
universitárias de gestão e projetos de pesquisa, ensino e extensão, a universidade eurocêntrica,
como a conhecemos, tem sido problematizada, desde práticas decolonizadoras, nos mais
diferentes espaços geopolíticos do mundo, o que apresentaremos com maiores detalhes
quando do levantamento do estado da arte.
Nesta primeira seção, feita à guisa de introdução, apresentamos tão somente as
justificativas para a realização da pesquisa, isto é, as motivações pessoais, acadêmicas e
profissionais que nos levaram a dedicar uma pesquisa de doutoramento ao objeto de análise.
Outrossim, explicitamos a problemática, isto é, o conjunto de fatores (históricos, sociais,
culturais, epistemológicos, etc.) que trouxeram à luz o problema de pesquisa, bem como a
questão que nos mobiliza, bem como o objetivo geral e específico que norteará nossos
caminhos.
Na esteira da problematização, apresentamos, ainda, referencial teórico que orienta a
análise das categoriais conceituais que forem emergindo durante a pesquisa, oriundas, seja do
pensamento decolonial, seja de outros movimentos teóricos essenciais para a experiência que
traremos à luz: a da Unitierra.
Para concluir esta seção, finalizaremos com uma subseção intitulada “Notas
Metodológicas” a fim de se explicitar os caminhos teóricos-metodológicos que irão nortear a
pesquisa. Esta delimitação será necessária porque a perspectiva teórica decolonial também
invade e critica as posturas metodológicas eurocentradas. Nesse sentido, iremos verificar
como uma tese teórica como a nossa pode ser realizada, metodologicamente, à luz da
decolonialidade.
Diferentemente da ciência moderna, positivista, que apregoa um conhecimento
universalizante, destituído de impressões e subjetividades (JAPISASSÚ, 1994), me situo
enquanto um sujeito de vivências na universidade, instruído dentro de uma cultura acadêmica,
36

com todas os valores, prescrições, preconceitos, padrões e juízos — moderno-coloniais —


inerentes a quem é formado nesta instituição.
Desta forma, não adotaria — até mesmo pela impossibilidade ontológica e
epistemológica — uma postura de total desprendimento deste repertório comum de hábitos,
muitas vezes inconscientes, que adquirimos na vida acadêmica.
Por outro lado, não é menos verdade que me situo como sujeito de vivências fora da
universidade, em outros espaços — também formativos — que tensionam constantemente as
ideias, os lugares comuns (até mesmo as referências teóricas) que temos quando pensamos em
educação, formação, ensino e produção do conhecimento, como os movimentos sociais e
coletivos literários independentes11.
Assim, eu mesmo, sujeito fronteiriço, cujo corpo e espaço em que habito é atravessado
por vivências ambivalentes, me vejo desafiado em dissertar sobre as fronteiras que nos
cercam, atravessados que somos por experiências formativas universitárias e não
universitárias. Por isso, inclusive, faço questão de me colocar neste texto, tendo em vista que
qualquer expectativa de impessoalidade, sucumbiria frente a uma crítica que seria,
inevitavelmente, uma autocrítica.
Browitt (2014) acusa os teóricos decoloniais de incorrerem em uma “contradição
performativa”, pois utilizariam as ferramentas da teoria crítica europeia para desconstruir o
discurso da modernidade eurocêntrica, colocando em uma espécie de “quarentena” as suas
próprias construções discursivas e ideológicas, protegendo-as da mesma revisão.
No entanto, a impossibilidade ontológica e epistemológica de nos desprendermos
completamente da realidade colonial que nos constitui, mesmo teoricamente, conceitualmente
ou linguisticamente, não pode ser subterfúgio para não buscarmos uma atitude decolonial,
criticamente transformadora dessa realidade.
A atitude decolonial pode ser traduzida como uma postura dos sujeitos perante o
mundo, cujo ponto de partida é o horror e o espanto diante da morte e do aniquilamento do
outro; é um estado ético-político-afetivo que se opõe a todas as consequências concretas da
colonialidade como o genocídio, o epistemicídio, o racismo e o sexismo, adotando um
compromisso com práticas decoloniais. (MALDONADO-TORRES, 2008).
A minha atitude decolonial não recai, no entanto, em uma “contradição performativa”
porque estou escrevendo em uma língua imperial, como o português, por exemplo; não perde

11
Desde 2009 publico contos, crônicas e poesias por meio de concursos literários. Porém, a partir de 2020,
comecei a escrever ficção especulativa (horror, ficção científica e fantasia) a partir de um olhar decolonial e
fazer parte de um coletivo de escritores comprometidos com esse projeto: o Escamba Clube, pertencente à
Editora Escambau.
37

validade porque está expressa em forma de uma tese de doutoramento, rigorosamente regida
pelas marcas do pensamento cientificista moderno, logocêntrica, no qual temos que delimitar
objeto de pesquisa, hipóteses, objetivos, referenciais teóricos, descrever uma metodologia de
abordagem, entre outros elementos.
Pensar assim seria crer que apenas alguns poucos sujeitos poderiam ter legitimidade e
autoridade — ética, política e epistemológica — para não recaírem em “contradição
performativa”. Quem seriam estes sujeitos exclusivos, porventura? Povos indígenas isolados?
Quilombolas? Algum grupo social que não teve contato com elementos estruturantes da
modernidade?
Ao contrário do que está implicado na crítica de Browitt (2014), a práxis decolonial se
alimenta das experiências dos sujeitos fronteiriços, isto é, daqueles que habitam a casa da
ferida colonial (MIGNOLO, 2003), dos que são capazes de olhar para a realidade a partir de
uma Epistemologia de Fronteiras.
Ademais, quando Mignolo (2008, p. 250) refere-se ao pensamento decolonial como
um pensamento que se desprende e se abre

A possibilidades encobertas (colonizadas e desprestigiadas como


tradicionais, bárbaras, primitivas, místicas, etc.) pela racionalidade moderna
montada e encerrada nas categorias do grego e do latim e das seis línguas
imperiais europeias modernas (italiano, castelhano, português, inglês,
francês e alemão). (tradução minha)12

Ele não está, com isso, propugnando um pensamento que se constitua pelo abandono
do idioma português (ou castelhano), em favor de um idioma quéchua, aymara ou qualquer
outro que supostamente tenha uma “aura” de autenticidade, legitimidade e pureza para ser
considerada decolonial. Em realidade, a língua do opressor pode ser imposta e,
paradoxalmente, ser reapropriada e reclamada como espaço de resistência (hooks, 2013).
Da mesma forma, quando Walsh (2017) refere-se a aprender, desaprender e reaprender
como um processo imprescindível para se tecer pedagogias e práticas decoloniais, em se
tratando das práticas que emergem da dinâmica das lutas sociais, não quer com isso
prescrever que devamos abandonar, como a serpente abandona a sua pele pelo caminho, os
conceitos, as categorias, os pensamentos surgidos nas Metrópoles Coloniais, mas que estes
sejam absorvidos e ressignificados pelos povos colonizados, como estratégias de luta e de
apropriação da realidade.

12
As citações escritas, originalmente, nas “línguas imperiais” (inglês, espanhol, italiano, francês) serão
traduzidas, livremente, pelo autor.
38

Pensar ao contrário disso, seria conceber que a teoria decolonial busca uma espécie de
genealogia de “saberes antimodernos”, uma cruzada em torno da restauração de saberes
essencialistas (conhecimentos “autenticamente” indígenas, ribeirinhos, quilombolas, etc.) em
contraposição a saberes eurocentrados, deslegitimados, desde o início, justamente por seu
lugar de enunciação.
Fazer isso, segundo Grosfoguel (2008, p. 117), seria adotar “uma crítica anti-europeia
fundamentalista e essencialista” e uma posição de tal natureza iria na contramão do próprio
potencial crítico do pensamento decolonial, pois partiria da premissa de que há apenas uma
“tradição epistêmica a partir do qual pode alcançar-se a Verdade e a Universalidade”: a
tradição epistêmica de quem habita a ferida colonial.
Partimos, portanto, de uma atitude — a atitude decolonial — como forma de
abordagem da realidade, incluindo-se aqui a interpretação das categorias, conceitos e ideias
apresentadas; e com uma intencionalidade: esquadrinhar perspectivas outras, pedagogias
outras, outras possibilidades — encobertas pela racionalidade moderna — voltadas para a
decolonização da universidade.
Indo mais além, pensamos que, da mesma forma que Mignolo (2008, 2013, 2015)
sugere a fronteira13 como metáfora de um lugar epistemológico, no qual a potência
decolonizadora exsurge, as compreensões de universidades que emergem das práxis
decoloniais nos conduzem a uma noção de “Universidade Fronteiriça”.
A Universidade Fronteiriça não recebe esse qualificativo por ser aquela que habita a
fronteira física e geográfica de um determinado espaço físico, (como a UNILA). Trata-se de
uma universidade que, em suas dimensões (espaciais, estéticas, éticas, políticas) e práxis
formativa (curriculares, metodológicas, de ensino, pesquisa, etc) estabelecem uma abertura e
recepção a epistemologias e ontologias outras que habitam e constroem outros mundos
possíveis, isto é, conforme frase lapidar do “sonho zapatista”, transmutam-sem em “um
mundo onde cabem muitos mundos” (LE BOT 1996).
Desta maneira, habita o quefazer da Universidade Fronteiriça toda história de
resistência, lutas e oposição de sujeitos, coletivos étnicos e movimentos sociais que
confrontam a colonialidade que impregna as universidades desde sua origem que a leva
confrontar, por meio de um processo de crítica decolonial, suas bases políticas, econômicas e
epistêmicas.

13
Exploramos mais a noção de “Epistemologia de Fronteira” em Mignolo, em Oliveira e Gomes (2021).
Ressaltamos que outros teóricos, mais alinhados com epistemologias afrocentradas, consideram a “fronteira”
uma noção que não dá conta dos movimentos de resistência decolonial, preferindo adotar a simbologia da
“encruzilhada” (RUFINO, 2019).
39

Na segunda seção, realizaremos uma análise panorâmica da historia das universidades,


interpelando os seus variados modelos, forjados na colonialidade, a partir crítica decolonial.
Essa crítica perpassa, tanto pelo questionamento da universalização de espaços provinciais —
como o era o espaço europeu —, quanto pelo exame crítico da concepção eurocêntrica, linear
e evolutiva da história humana, que preconiza que o progresso civilizatório tem, como ponto
culminante, a sociedade europeia, seus valores e instituições.
Por meio desta elaboração, será possível destacar os valores (proselitismo,
cientificismo, estatismo, elitismo, americanismo e corporativismo) que ressaem de cada
modelo apresentado e que compõem o ideário em torno da universidade eurocêntrica,
proporcionando um debate epistemológico, principalmente em torno da constituição da
Ciência Moderna e sua relação com o colonialismo e a colonialidade. Tal seção é fundamental
para contrapormos tais modelos à crítica decolonial das universidades.
Intentaremos demonstrar que uma das principais contribuições da decolonialidade para
os estudos históricos reside, fundamentalmente, na crítica à “história única” (ADICHIE,
2019). Segundo a Adichie (2019, p. 10) “é assim que se cria uma história única: mostre um
povo como uma coisa, uma coisa só, sem parar, e é isso que esse povo se torna”. Embora esta
abordagem não se inicie com o pensamento decolonial, tendo raízes nos estudos pós-
coloniais, ali é aprofundada e largamente utilizada.
De fato, a história recebe uma marca: a do poder de quem narra a história, determina
as condições em que ela será narrada, quando serão narradas, em que quantidade, frequência e
forma, estabelecendo presenças e ausências com ares de naturalidade e definitividade.
A teoria decolonial lança-se em um terreno de disputas — das memórias, das fontes
historiográficas, das construções narrativas — a fim de trazer à lume aquilo que foi silenciada,
borrado e esquecido pela histórica considerada oficial e universal, semelhantemente ao que já
foi confrontado por intelectuais pós-coloniais (CHAKRABARTY, 2000; SAID, 1990).
Mais especificamente, é nessa seção que iremos verificar até que ponto a crítica
decolonial pode tensionar história da universidade, seu surgimento, transformações e
modelos. Para este fim, tentaremos ir além da narrativa única, que conta a história do
surgimento das universidades na Europa por meio e tão somente de fenômenos intra-europeus
(escolasticismo, o surgimento das corporações de ofício, a urbanização, o Renascimento, etc.).
A partir desta reflexão, verificaremos se movimentos culturais inseridos ainda na
Primeira Modernidade, no mundo árabe, quando a Europa latino-germânica era tão somente
uma periferia do mundo, possibilitaram o surgimento de universidades fora do que ficou
40

conhecido como “Europa Ocidental” ou se, pelo menos, influíram na constituição das
primeiras universidades europeias. (DUSSEL, 2016).
Posteriormente adentraremos, especificamente, na discussão histórico-social em torno
da universidade, seu surgimento, transformações e modelos, iniciando pelas primeiras
instituições na Idade Média, perpassando pela constituição da Universidade Moderna e suas
transformações a partir dos séculos XIX e XX, chegando até o processo de constituição do
modelo neoliberal de universidade, ressaltando as transformações do padrão de poder
estabelecido pela colonialidade.
De fato, esta seção só ganha sentido se compreendermos que não podemos falar dos
processos de decolonização da universidade sem entender quais modelos de universidade
foram propugnados pela Modernidade/Colonialidade. É a partir desses modelos que
poderemos extrair categorias fundamentais para a universidade que são problematizadas pela
crítica decolonial.
Para este fim, discutiremos, em subseções, as especificidades históricas que
transformaram a universidade, influindo em suas concepções. Não abordaremos instituições
específicas, mas modelos que inspiraram e tem inspirado a constituição da universidade em
todo o mundo.
Na terceira seção, destacaremos o ineditismo da abordagem, pelo menos quanto à
natureza da pesquisa, por meio de um levantamento da arte sobre o tema, isto é, a crítica da
universidade, a partir da perspectiva teórica da decolonialidade.
Este levantamento será feito por meio do levantamento de teses, dissertações e artigos
científicos encontrados em bancos de dados nacionais e internacionais como: Biblioteca
Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD); Catálogo de Teses e Dissertações da
CAPES; CORE; Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED).
Tal levantamento será acompanhado de sínteses sobre o material encontrado e sobre o que
pensamos ser a constituição de um subcampo de conhecimento dentro do âmbito dos estudos
sobre universidades.
Importa ressaltar, ainda, que organizaremos esses trabalhos serão organizados por
eixos temáticos (Universidade e currículo; Projeto de Universidades Outras; Universidade e
Movimentos Sociais; Universidade e Relações Étnico-Raciais; Universidade e questões
epistemológicas/metodológicas; Universidade e gestão), uma vez que são ações de
decolonização que problematizam desde aspectos pontuais, focalizados, até questões
fundantes para a universidade.
41

Uma vez concretizado o levantamento do estado da arte, estaremos aptos para verificar
o que o pensamento/práxis decolonial tem a oferecer enquanto crítica aos modelos
eurocentrados de universidade.
Na quarta seção, iremos analisar, de maneira mais focalizada como a teoria decolonial
pensa a universidade. É, portanto, a seção culminante da tese, pois tentará chegar ao alcance
de nosso objetivo. Nesta altura, mobilizaremos o referencial teórico coligido a fim de
descrevermos as convergências, as divergências e considerações que o pensamento decolonial
propõem sobre o que denominamos de “Universidade Fronteiriça”.
Ressaltamos que os teóricos da decolonialidade possuem variadas origens e
formações, o que cria um cambiante panorama teórico, uma multiplicidade de olhares e
posicionamentos. Mesmo diante dessa variabilidade, no entanto, podemos encontrar pontos
em comum que associam tais pensadores a uma atitude decolonial e a um compartilhamento
de categorias teóricas.
Aqui, longe de tentarmos esgotar a lista de remissão a “intelectuais decoloniais” 14, o
que, em certa medida, poderia ser arbitrário; intentaremos estabelecer um diálogo temático e
conceitual entre todos aqueles que, em algum momento, refletiram sobre a universidade a
partir do referencial teórico decolonial, o qual, academicamente, começou a ganhar terreno, a
partir da década de 90 do século passado, principalmente a partir das análises fundacionais de
Immanuel Wallerstein (1996, 2005), Enrique Dussel (1973, 1974, 1993, 2017) e Aníbal
Quijano (2014).
Desta forma, ainda que tenhamos consistentes argumentos que insiram intelectuais do
passado em uma espécie de “genealogia decolonial” — como Mariátegui, Paulo Freire,
Orlando Fals-Borda, Frantz Fanon, etc. —, não iremos destacar as suas eventuais
contribuições críticas para pensar a universidade, o que ampliaria demasiadamente o nosso
escopo, bem como, não seriam representativos do corpus textual que será construído ao longo
do processo de investigação.
Outrossim, reconhecemos que existem muitas pesquisas já realizadas que podem ser
decoloniais de fundo, não obstante não mobilizem, necessariamente, as categorias utilizadas
pelo pensamento decolonial. Passaremos, também, ao largo destas análises, uma vez que nos
propomos abordar o referencial teórico decolonial que se constituiu a partir da década de 90,
associado a intelectuais como Aníbal Quijano, Walter Mignolo, Rita Segato, Zulma Palermo,

14
Ballestrin (2013) até tenta elaborar um quadro esquemático individualizando os membros da Rede M/C/D.
Dada a expansão do pensamento decolonial, no entanto, principalmente na América Latina, optamos por dar
ênfase menos aos indivíduos, e mais ao coletivo, ressaltando aquilo que há de comum entre eles, isto é, o
compartilhamento de questões, problemas e categorias.
42

Henrique Dussel, Arturo Escobar, Ramón Grosfoguel, Santiago Castro-Gomez, Boaventura


de Sousa Santos, Catherine Walsh, entre outros, os quais compartilham referencial e
categorias teóricas comuns, constituindo uma “coletividade de argumentação” 15,
compartilhando conceitos em comum, construindo um vocabulario compartido, definindo
uma série de questões e agendas de investigação.
Dentro desta lógica, o corpus textual que nos acercamos ignora fronteiras geográficas
e disciplinares, uma vez que as categorias analíticas exploradas pela decolonialidade hoje são
utilizadas nos mais variados continentes16.
Antes, porém, de adentrarmos nestas questões, será necessário iniciar-se a
apresentação de algumas notas teórico-metodológicas a fim de se explicitar quais caminhos
teóricos-metodológicos irão nortear esta investigação e quais serão construídos ao longo da
tese. Esta delimitação é necessária porque, como vimos, a perspectiva teórica decolonial
também invade e critica as posturas metodológicas eurocentradas, tidas por tradicionais.
Nesse sentido, iremos verificar como uma tese teórica como a nossa pode ser realizada,
metodologicamente, à luz da decolonialidade.

1.1 Notas Teórico-Metodológicas (APRESENTAR LEITURA ANALÍTICA,


TRATAMENTO DOS DADOS (UNIDADES OU CATEGORIAS DE ANÁLISE DOS
DOCUMENTOS)

Conforme inicialmente alinhavado, trata-se de uma pesquisa qualitativa, situada no


âmbito filosófico, histórico-conceitual. É, portanto, uma tese teórica. Não usamos o termo
“teórica”, no entanto, no sentido de ser uma ideia desassociada da materialidade. Na verdade,
é teórica por ser orientada por um problema abstrato sempre ancorado na realidade das práxis
universitárias e da crítica decolonial em torno desta instituição.
A abstração é um movimento necessário do pensamento humano. De certa forma,
uma vez que não temos a memória enciclopédica do personagem Funes, o Memorioso, que
não sabia articular as informações que havia memorizado detalhadamente, estamos
condenados a pensar e “pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair”. (BORGES,
2010, p. 590).
É uma tese teórica com lastro em uma experiência concreta: a práxis (neo) zapatista
em torno da Unitierra. Por isso, é um trabalho que exige um cuidado por parte do pesquisador,
15
Preferimos, como Restrepo (2010), utilizar o termo “coletividade de argumentação” à “comunidade de
argumentação” (ESCOBAR, 2003; SOUTO, 2008), a fim de nos desprendermos de qualquer noção
homogeneizante ou romantizada em torno da palavra “comunidade”.
16
Conforme constatamos quando do levantamento do estado da arte, a crítica decolonial perpassa múltiplos
domínios teóricos, geográficos e temáticos sendo praticamente impossível delimitar o seu alcance no âmbito
acadêmico.
43

o de abordar o objeto de pesquisa com o rigor inerente ao pensamento teórico-filosófico,


respeitando a práxis realizada pelos sujeitos imbricados. Sem rigor teórico na leitura e
abordagem dos autores, a tese poder torna-se um conjunto de ilações deduzidas de premissas
errôneas, pode torna-se uma armadilha, um risco ou pior: um engano.
Para enfrentar esse risco — na tentativa de minimizá-lo —, faz-se necessário assentar-
se os pressupostos ontológicos e gnosiológicos da pesquisa que orientarão a compreensão da
realidade objeto de análise e a forma de abordá-la e conhecê-la. Em outras palavras, é
importante fixar-se como se conduzirá o tratamento do acervo bibliográfico e documental
consultado. Somente depois de estabelecidos esses pressupostos, poderemos abordar as
características da pesquisa, os instrumentos de análise que serão utilizados e o próprio
percurso metodológico da tese.
Uma tese teórica se constitui de pesquisa bibliográfica, isto é, a leitura e análise de
textos, os quais não poderão ser lidos da mesma forma que se lê, por exemplo, textos
jornalísticos, literários ou coloquiais. Por isso, faz-se necessário realizar uma leitura analítico-
temática e interpretativa dos textos selecionados, aqui delimitados em unidades de leitura
específicas, através de dois critérios fundamentais articulados:
O primeiro são textos (livros, artigos, ensaios, etc.) escritos por autores vinculados à
Rede Modernidade/Colonialidade/Decolonialidade17, isto é, pertencentes à “coletividade de
argumentação supracitada”; e o segundo critério são textos que tenham, na integralidade ou
em algum capítulo ou seção, uma análise crítica da universidade, sob a perspectiva decolonial.
É importante reconhecer que a partir da constituição da Rede, no final da década de
1990, algumas obras fundacionais do pensamento decolonial já traziam considerações sobre a
universidade, principalmente em seus escritos coletivos.
Desse corpus textual, destacamos os seguintes títulos:

Quadro 1 – Primeiros textos coletivos da Rede M/C/D em ordem cronológica

Autores/Organizadores Título Ano de Publicação


CASTRO-GÓMEZ, Teorías sin disciplina:
Santiago e MENDIETA, latinoamericanismo, 1998
Eduardo poscolonialidad y
17
De agora em diante denominada de Rede M/C/D ou apenas Rede. Encaramos este termo como o mais
adequado para atribuir um sentido mais flexível, móvil e dinâmico a esta coletividade. “Grupo” nos remete a um
conjunto coeso, estático de pessoas e ideias, quando, na verdade, o projeto de investigação em torno da
decolonialidade é um conjunto heterogêneo de contribuições e esforços teóricos ainda em construção, não
insento de contradições e conflitos internos. O termo “Rede” também é referendado por Grosfoguel (2018), um
dos membros fundadores e organizadores, desde o início, de muitos colóquios e conferências realizados em torno
deste coletivo. Exploraremos essas contradições internas na última seção da tese..
44

globalización en debate
CASTRO-GÓMEZ, Pensar (en) los intersticios.
Santiago; RIVERA, Oscar Teoría y práctica de la 1999
Guardiola; BENAVIDES, crítica poscolonial
Carmen Millán de
CASTRO-GÓMEZ, La reestructuración de las
Santiago ciencias sociales en América 2000
Latina
La colonialidad de saber:
LANDER, Edgardo eurocentrismo y ciencias 2000
sociales
GROSFOGUEL, Ramón; The
CERVANTES- Modern/Colonial/Capitalist 2001
RODRÍGUEZ, Ana World-System in the
Margarita Twentieth Century
WALSH, Catherine; Indisciplinar las ciencias
SCHIWY, Freya; CASTRO- sociales. Geopolíticas del 2002
GÓMEZ, Santiago conocimiento y colonialidad
del poder
GROSFOGUEL, Ramón; Unsettling Postcoloniality:
SALDÍVAR, José David; Coloniality, Transmodernity 2003
MALDONADO-TORRES, and Border Thinking
Nelson
DUBE Saurabh; DUBE Modernidades coloniales:
Ishita Banerjee; otros pasados, historias 2004
MIGNOLO, Walter D. presentes
GROSFOGUEL, Ramón; Latin@s in the World-
MALDONADO-TORRES, System: Decolonization 2005
Nelson; SALDÍVAR, José Struggles in the 21st Century
David US Empire
MIGNOLO, Walter D.; Globalization and 2005
ESCOBAR, Arturo Decolonial Thinking
GROSFOGUEL, Ramón From Postcolonial Studies to 2006
Decolonial Studies
GROSFOGUEL, Ramón; El giro descolonial:
CASTRO-GÓMEZ, reflexiones para una 2007
Santiago diversidad epistémica más
allá del capitalismo global
¿Uno solo o varios mundos?
PARDO, Mónica Zuleta, Diferencia, subjetividad y 2007
CUBIDES, Humberto; conocimientos en las
ESCOBAR, Manuel Roberto ciencias sociales
contemporáneas
Fonte: Autoria própria, a partir de Boidin (2009), Castro-Gomez, Grosfoguel (2007) e Ortega
Reyna (2017)
45

Depois, com a Rede já consolidada academicamente, outros estudos surgiram,


constituindo um verdadeiro subcampo do conhecimento que poderíamos denominar de
“práxis decolonial da universidade”18.
Tais escritos (coletivos e individuais) foram sendo publicados, abarcando também
autores que já não faziam parte da “primeira geração” de teóricos decoloniais, mas que se
debruçaram de maneira mais direta sobre a questão universitária. Entre tais escritos citamos
os seguintes:

Quadro 2 – Textos que articulam universidade e decolonialidade em ordem cronológica

Autores/Organizadores Título Ano de Publicação


Políticas académicas
PALERMO, Zulma y conflictos del saber: 2001
desafíos en la periferia
La Universidad
PALERMO, Zulma Latinoamericana en la 2010
encrucijada Decolonial
Brechas descoloniales para
SEGATO, Rita Laura una universidad 2011/2012
nuestroamericana
Introduction: From
BOIDIN, Capucine; University to Pluriversity: A 2012
COHEN, James; Decolonial Approach to the
GROSFOGUEL, Ramón Present Crisis of
Western Universities
ALEGRE, Laura; De las "categorías
CORNAVACA, Trinidad; explicativas" a las prácticas 2013
FIGUEIRA, Patricia; académicas. Reflexiones
NEME, Eleonora; críticas
PAGEAU, Christian;
PALERMO, Zulma
The structure of knowledge 2013
in Westernized Univiersities:
GROSFOGUEL, Ramón epistemic racismo/sexism
and the four
genocides/epistemicides of
the long 16th century
PALERMO, Zulma Des/decolonizar la 2015
universidad
Decolonizing the
MBEMBE, Achille Joseph university: New 2016
directions
18
Ressaltamos que, quando da construção do “estado da arte”, pudemos constatar que este subcampo se
constituiu em tornos de eixos temáticos transdisciplinares, nos fornecendo material suficiente para
compreendermos as contradições e proposições alinhavadas pela crítica decolonial da universidade. Os trabalhos
encontrados poderão, eventualmente, serem evocados para nossas análises.
46

Decolonizing
GROSFOGUEL, Ramón; the Westernized University:
HERNÁNDEZ, Roberto; Interventions in Philosophy 2016
VELÁSQUEZ, ROSEN, of Education
Ernesto from Within and Without
Gurminder K. Bhambra,
Dalia Gebrial and Kerem Decolonising the University 2018
Nişancıoğlu
SANTOS, Boaventura de O fim do imperio cognitivo 2019
Sousa
Universidades, seres, saberes
WALSH,Catherine y (geo)poder(es) en Ecuador 2020
y América del Sur
Fonte: Autoria própria.

Ademais, existem outras obras que, embora não abordem diretamente o tema
“universidade”, contribuem para o entendimento do pensamento decolonial em torno deste
objeto, pois tangenciam o assunto de alguma forma (WALSH, 2003, 2005; 2009, 2017;
CASTRO-GÓMEZ, 2005; MIGNOLO, 2005, 2011, 2015; BIAGINI, ROIG, 2007;
RESTREPO, ROJAS, 2010; ISASI-DIAZ, 2011; TLOSTANOVA, MIGNOLO, 2012;
LOZANO et. al., 2012; FLEURI, 2013; MACAS, 2014; DUCASSE, 2015; ESCOBAR, 2016;
OCAÑA, LÓPEZ, CONEDO, 2018; ROMERO-LOSACCO, 2018; WALSH, MIGNOLO,
2018).
Como explicitado antes, para a abordagem de tais textos adotaremos a leitura
analítico-temática (SEVERINO, 2009), que objetiva apreender as ideias motrizes dos autores,
a integralidade de seus raciocínios, a mensagem que pretendem comunicar, aos quais deve se
somar o ato interpretativo, em que dialogamos com as ideias expressas e refletimos sobre o
conteúdo de seus textos a partir de referências externas ao texto.
Nesta etapa, faz-se necessário contextualizar a produção textual, bem como demarcar
suas ideias gerais para, depois, especificar os argumentos e críticas em torno da universidade.
Conforme caminho descrito por Severino (2009), iniciaremos com uma “leitura
panorâmica” em que identificamos conteúdo, método, contexto e pontos que porventura
necessitem de maiores esclarecimentos de maneira que nos propicie a esquematização das
ideias colocadas em jogo. A seguir, iniciamos uma releitura, desta vez temática, na qual
buscamos “ouvir” propriamente o que nos diz os/as autores/as consultados em termos de
tema, ideias (primária e secundárias), problema, demonstração e conclusões. Por fim,
adentraremos a etapa da interpretação e problematização 19 em que interpelamos os/as
19
Embora Severimo (2009) aborde de forma sequencial, compreendemos que esses “momentos” de leitura de
textos acadêmicos, normalmente, são justapostos e, desde o início, já incindimos com uma intencionalidade e
47

autores/as a partir de referencias externas ao texto, estabelecendo um diálogo crítico com as


ideias apresentadas, sempre norteador pelo problema posto e pelos objetivos da pesquisa.
A partir da leitura analítico-temática se segue a síntese, mas não a síntese que
simplifica a complexidade das ideias explicitadas, mas a que sistematiza as características
gerais identificadas, buscando-se uma visão global do discurso elaborado. Seguindo Lakatos e
Marconi (2008), esta etapa poderia ser denominada de “síntese racional”, na qual
abordaríamos as ideias, conceitos e categorias utilizadas pelos teóricos do pensamento
decolonial ao analisarem a universidade.
Esclarecemos estes pontos porque a leitura filosófica, diferentemente da ciência
moderna de premissas cartesianas, se preocupa com sistematicidade, com a generalidade
conceitual e com a coerência lógica e não com a objetividade, a exigência de observação,
replicação e verificabilidade de suas conclusões.
Porém, como já citado, a nossa leitura filosófica será conduzida em consideração à
perspectiva decolonial e isso traz implicações ontológicas, epistemológicas e metodológicas
em nossa maneira de ler o corpus textual que merecem ser ressaltadas.
A perspectiva decolonial, por exemplo, critica a ontologia moderna eurocêntrica,
fundamentada no ego cogito cartesiano, no solipsismo fundado na filosofia da consciência
(HESSEN, 1999). Quando Descartes (1996, p. 7) escreveu o “Discurso do Método”,
objetivava buscar, segundo as suas próprias palavras, não “ensinar aqui o método que cada
um deve seguir para bem conduzir a sua razão, mas somente mostrar de que modo procurei
conduzir a minha”.
Embora tenha apresentado uma intenção modesta, a sua obra tornou-se um marco
apologético do racionalismo moderno e, intencionalmente ou não, o autor trouxe à luz a
imprescindibilidade da metodologia de investigação, isto é, das regras que regulam o percurso
do pensamento na busca do conhecimento, na inquirição da verdade, contribuindo para a
constituição da Ciência Moderna.
Uma das principais críticas preconizadas pela epistemologia decolonial se volta,
justamente, contra o método cartesiano. Dussel (2008), por exemplo, em suas “meditações
anti-cartesianas” afirma que Descartes não inaugura, filosoficamente, a Modernidade, mas
que sua filosofia pertence a um segundo momento desta época, quando o paradigma solipsista
do ego cogito cartesiano se desenvolve como a contraface do ego conquiro do sujeito

com um viés interpretativo. O seu método ganha relevância ao tornar a leitura menos intuitiva e mais consciente
de seus processos.
48

colonizador, dando-lhe substrato, legitimidade e racionalidade filosófica para exercer um


olhar desumanizador ao Outro.
Epistemologicamente, Castro-Gómez (2005) critica a pretensão cartesiana de — como
sujeito cognoscente que busca abstrair todas as qualidades da matéria (res extensa), incluindo-
se o corpo, colocando sob suspeição todos os seus pensamentos e ordinárias concepções —
situar-se além de qualquer perspectiva particular, sem pressupostos ou opiniões (o que
denomina de hybris del punto cero), ou seja, enquanto um sujeito que parte de um lugar
neutro de observação, incontaminado pelas contingências relativas do tempo e do espaço.
Em confronto com esta concepção, o pensamento decolonial opera, como já citado,
com o conceito de Epistemologia de Fronteiras (MIGNOLO, 2003), assumindo as
implicações epistemológicas e metodológicas que disso repercute.
Diferentemente da epistemologia moderna, cartesiana, que estabelece múltiplas
separações e rupturas ontológicas e epistemológicas — como entre sujeito solipsista e objeto,
a consciência e a realidade, a teoria e a prática, a razão e empiria (HESSEN, 1999; LANDER,
2005) —, a Epistemologia de Fronteiras pensa o sujeito a partir de uma perspectiva
totalizante, na qual coexistem o conhecer, o sentir e o fazer dentro de uma situacionalidade
histórica conflituosa, ambígua, de resistência. O sujeito fronteiriço compreende, assim, um
sujeito que, através de suas experiências, pode desenvolver novas perspectivas da realidade
em virtude da diferença colonial que lhe constitui.
O sujeito “fronteiriço” é aquele cuja subjetividade foi forjada dentro dessa
ambiguidade separação/contato, própria da Modernidade/Colonialidade, com uma “dupla
consciência”, conceito criado por Du Bois e retomado por Mignolo (2003) para exprimir que
a consciência deste sujeito se forma e se define por meio da subalternidade colonial, na qual
olha para si com os olhos do “outro” — os olhos da metrópole colonial — mesmo fazendo
parte da “exterioridade” da fronteira.
A fronteira, portanto, é o locus da assimetria de poder, da subalternidade e da
diferença colonial, no qual emerge o atrito, o hibridismo, a reinscrição de identidades e a
invenção, pois é onde se forjam estratégias de sobrevivência, os conflitos e as mestiçagens
que tensionam e evidenciam a geopolítica do conhecimento como um processo inconcluso e
permanente. Neste processo, a fronteira é sempre um lugar de passagem, não de permanência.
A Epistemologia de Fronteiras é, assim, uma opção decolonial (MIGNOLO 2008;
MALDONADO-TORRES, 2008) por parte de quem vivencia a fratura da colonialidade.
Reafirmamos que não se trata da busca uma espécie de genealogia de saberes
antimodernos, uma cruzada em torno da restauração de saberes essencialistas (conhecimentos
49

autenticamente indígenas, ribeirinhos, quilombolas, etc.) em contraposição a saberes


eurocentrados20. A própria prática que evocamos na presente pesquisa — a experiência da
Unitierra — deriva de uma diversidade de concepções, do pensamento de Ivan Illich (um
intelectual austríaco), ao marxismo, passando por epistemologias indígenas.
Assim, das limitações da perspectiva do colonizador de um lado, não se depreende o
encontro com uma suposta via genuína, um discurso “essencialista”, “puro”, “igualitário”, por
parte do colonizado. Em suma, a Epistemologia de Fronteira não rejeita a Modernidade e suas
heranças. Por outro lado, não se limita a aceitá-la acriticamente como um espólio intocável,
que não possa ser ressignificado e contestado em práticas contextuais, como ocorre na
experiência da Unitierra. Assim que “a fronteira não é um espaço criado para absurdos
dilemas excludentes entre ‘isto’ ou ‘aquilo’, senão, mais bem, é um afastamento de modelos
de pensamento binário e propende-se a malhas, redes, rearticulações, heterarquías”.
(BORSANI, 2012, p. 37).
Esta epistemologia, que emerge no espaço intersticial entre a tradição e a
modernidade, busca outros saberes, outros pensamentos, ancorados contextualmente em
histórias locais, em corpos concretos de sujeitos de fronteira (Ex: Guaman Poma de Ayala,
Frantz Fanon, Ottobah Cugoano, Glória Anzaldúa, etc.), em cosmovisões e coletivos
subalternizados (Movimento dos Sem-Terra, Quilombolas, Ribeirinhos, Zapatismo, etc.),
consubstancializados em corpo-políticas geopoliticamente situadas.
Este debate tem gerado um fecundo debate em torno da operacionalização
metodológica — notadamente no âmbito das ciências humanas e sociais — do pensamento
decolonial, isto é, de práticas de pesquisa cuja abordagem da realidade tenha por fundamento
os seus pressupostos teóricos (CASTILLO, 2017; HLABANGANE, 2018; MARTINS,
BENZAQUEN, 2017; OCAÑA, LÓPEZ, 2019a, 2019b).
O Grupo de Estudios sobre Colonialidad por exemplo, situa a discussão:

Reconhecendo que esta [a falta de estratégias metodológicas dentro dos


estudos decoloniais] é uma dimensão fundamental, tem surgido internamente
a pergunta pela possibilidade dos estudos decoloniais sem uma
transformação radical da metodologia das ciências sociais. Dado que as
ciências humanísticas modernas têm sido configuradas sob a colonialidade
do saber e o método científico tem significado um distanciamento do “objeto
de estudo”, cabe perguntar-se como é possível desprender-se da “hybris do
ponto zero” para criar umas ciências sociais outras? Uma potencial resposta
seria una produção em diálogo com os sujeitos de cambio social e com os
subalternizados. Ficam algumas perguntas abertas: São possíveis umas
20
É comum, aliás, críticos europeus e estadunidenses atribuírem aos teóricos decoloniais a pecha de
“essencialistas”. Encontramos a primeira crítica nesse sentido em Amselle (2008), em sua obra “ L'Occident
décroché”.
50

metodologias pluritópicas? Como seriam em sua práxis?. (GESCO, 2014, p


15).

Borsani (2012, 2014), ao se deparar com a Epistemologia de Fronteiras — que também


denomina de “Sul Epistêmico” — e os seus desafios, questiona se é possível decolonizar a
metodologia, bem como se uma investigação, cuja linha epistêmico-política seja a perspectiva
decolonial, pode ser compatível com metodologias “canônicas” de investigação.
A autora inicia, provocativamente, com um comentário sobre a própria necessidade de
se explicitar uma metodologia — a partir de critérios pré-definidos — para as nossas
investigações, como forma de dar legitimidade e satisfazer exigências protocolares das
instituições universitárias.
Apresenta, assim, a sua inquietação frente ao que denomina de “dimensão colonial da
metodologia” (BORSANI, 2014, p. 152), como uma ficção que nos exige um “cinismo
epistêmico” e que sustenta a obsessão da epistemologia moderna pela objetividade e pela
neutralidade como valores inevitáveis para uma produção legítima de conhecimento.
Primeiramente, pensamos que é importante pontuar que não há uma metodologia
consolidada dentro da perspectiva decolonial. Ao contrário, como vimos, o próprio quefazer
metodológico tem sido problematizado a luz dessa perspectiva, sob a seguinte questão: a
metodologia não deve ser problematizada pela razão decolonial? (MOTA NETO, LIMA,
2020).
Alguns teóricos, refletindo sobre as suas práticas de pesquisa, tem preconizado que a
perspectiva decolonial não comporta um único viés metodológico, monolítico, protocolar,
rígido e estanque, sendo a sua principal característica, o estar em fazer-se permanentemente,
em contínua construção e autocrítica, ao lado dos sujeitos que pensam e existem no mundo de
outras formas.
Enquanto, na perspectiva cartesiana, a metodologia deve ser explicitada antes do
percurso da pesquisa, nos estudos decoloniais é somente após a investigação ter sido
concluída, que as metodologias decoloniais podem ser capazes de evidenciar as
inconsistências, as contradições, as rupturas e continuidades que emergem a partir do próprio
percurso investigativo. (BORSANI, 2014, GARBE, 2012, HABER, 2011).
Aliás, há muito reconhece-se o poder relativo da metodologia, isto é, já não a
apresentamos como o caminho da razão em busca da verdade, mas como a estratégia para
potencializar o poder explicativo das teorias. Assim, como pesquisadores, nos tornamos
intépretes da realidade pesquisa, segundo os instrumentos conferidos por nossas próprias
escolhas teórico-metodológicas (LUNA, 2002).
51

Dentro do que nos propomos, por exemplo, vale questionar como esta discussão
metodológica pode contribuir para a construção de uma tese teórica, isto é, se é possível
operacionalizar uma metodologia de leitura analítico-temática (SEVERINO, 2009) que
aborde os conceitos a partir de uma “leitura decolonial”.
Mais uma vez, devemos partir das categorias nucleares do pensamento decolonial.
Dentro do que compreendemos até o momento, a crítica decolonial é orientada pela
categoria chave da colonialidade, a qual, segundo Quijano e Ennis (2000), é operada,
conceitualmente, em três níveis interdependentes: a colonialidade do poder, do ser e do saber.
A colonialidade diz respeito a um processo de classificação social, a uma hierarquia
social — construída socialmente — em torno da ideia de raça, enquanto categoria mental e
fenotípica — abalizada pelo discurso científico, em alguns momentos —, cuja origem foi a
dominação perpetrada durante o colonialismo moderno, iniciada no século XV, mas que
ultrapassou o próprio fenômeno político-econômico da colonização (QUIJANO, 2014).
A produção de identidades raciais veio articulado, durante o processo colonial, com a
divisão social do trabalho e com a produção de conhecimento sobre o mundo. De certa
maneira, portanto, à cada identidade racial forjada (o negro, o índio, o criollo, etc.) fora
atribuído uma relação de trabalho (escrava, artesanal, dentro da estrutura da administração
colonial, etc.), uma capacidade (ou incapacidade) para conhecer o mundo e uma forma de
vivenciar o próprio corpo, tendo como eixo paradigmático a construção da ideia de Europa
Ocidental e de América pela Modernidade Eurocêntrica.
Uma modernidade eurocêntrica porque forjada tendo a Europa como eixo irradiador e
criador de um “Novo Mundo” como um lugar em que os modos de vida dos povos
colonizados se contrapunham aos valores civilizatórios europeus, estabelecendo novas
dicotomias (razão versus barbárie; progresso versus atraso; etc.) e criando novas identidades.
Nesse sentido, a própria criação da América foi um ato constitutivo do moderno sistema
mundial capitalista (QUIJANO, WALLERSTEIN, 1992).
Nessa rede de múltiplos regimes de poder, hierarquização e opressão (CASTRO-
GÓMEZ, GROSFOGUEL, 2007), a colonialidade perpassa a cultura, a economia, a política,
além do simbólico, do epistêmico e do ontológico e, ao mesmo tempo, gera o seu oposto: a
decolonialidade, isto é, um projeto que busca subverter os padrões de poder herdados da
modernidade.
A colonialidade do poder seria aquela que atravessa as instituições, os processos
políticos e econômicos; a colonialidade do saber constitui a dimensão epistêmica, filosófica e
científica, relacionada à produção do conhecimento, à legitimidade e à hierarquia entre os
52

saberes; e a colonialidade do ser refere-se à constituição de subjetividades (sexualidade,


gênero, raças, etc.) e como elas se articulam com as relações de poder instituídas nas
sociedades que sofreram o trauma da colonização.
Tais níveis são encadeados e podem conduzir a nossa leitura da crítica decolonial da
universidade subdividindo-os em graus de análise, uma vez que para cada dimensão,
exsurgem marcadores metodológicos que podem orientar o pesquisador.

Na abordagem eurocêntrica da crítica social os marcadores são definidos


como categorias mais ou menos fixas e objetivadas como as de classe, de
desigualdade social, de racionalidade cognitiva, de divisão disciplinar, de
poder superior, de renda, de estratificação social entre outros. Na abordagem
descolonial tais categorias continuam válidas, mas devem ser mediadas pelos
contextos de organização da tensão entre colonialidade e descolonialidade e
pelas subjetivações sociais e culturais. Assim categorias como as de raça, de
patriarcalismo, de meio ambiente, de sexualidade, de consumo são
ressignificadas permanentemente de acordo com as exigências da crítica
teórica, por um lado, e das particularidades dos casos estudados, por outro.
[...] Na crítica descolonial os marcadores não são categorias essenciais
hierarquizadas. Logo, é possível entender que elas referem processos
cognitivos, estéticos, morais, políticos e econômicos diversos que merecem
ser analisados de forma interativa de acordo com as exigências do objeto da
pesquisa. Enfim, há uma infinidade de possibilidade de indicadores ou
marcadores ou categorias que podem ser acionados dependendo do contexto
da pesquisa. (MARTINS, BENZAQUEN, 2017, p. 25).

Os marcadores metodológicos representam leituras reversas de categorias já


consolidadas dentro de uma visão eurocentrada. Assim que, por exemplo, a categoria
“Saber”, dentro de uma posição de colonialidade, pode nos remeter a categorias eurocêntricas
como “objetividade”, “neutralidade do saber”, “conhecimento científico” e, dentro de uma
posição de decolonialidade, pode nos remeter a categorias opostas como “pluriversalismo”,
“saberes contextualizados”, “eurocentrismo”, “desobediência epistêmica” (MARTINS,
BENZAQUEN, 2017).
Na presente análise, por exemplo, reposicionamos um marcador metodológico
fundamental em nossas leituras: a categoria “universidade”. A partir de uma visão forjada na
colonialidade, tal marcador nos remeteria a processos histórico-sociais tidos por
“convencionais”, ancorado nos espaços geopolíticos de conhecimento encarados como
legítimos no Norte Global (Europa e Estados Unidos), com uma história (origem europeia
auto-centrada da universidade) e transformações (modelos de universidade) forjados a partir
do olhar eurocêntrico.
A perspectiva metodológica decolonial, no entanto, intenta subverter essa
abordagem, ressignificando o termo “universidade” por meio de outra chave de leitura,
53

baseada nas diversas concepções de universidade propostas por movimentos sociais, não
poucas vezes à revelia da chancela e da regulamentação estatal. Estes novos sentidos são
estrategicamente assumidos na presente tese, reconhecendo-se a necessidade (e a presente
impossibilidade de isto ser realizado aqui) de uma nova gramática, de novos conceitos, para
nomear estas experiências que se pretendem decoloniais.
Nesta chave de leitura, intentaremos abordar cada conceito ou categoria que venha a
emergir ao longo da pesquisa (conhecimento, formação, universalidade, etc). Assim, não
estaremos trazendo as preocupações pontuais e fatuais de cada texto, mas o que eles podem
nos trazer de contribuição para o estudo, seja da universidade, seja de sua crítica decolonial,
perseguindo os seus contextos, as suas historicidades e valores preconizados.
O próprio Severino (SEVERINO, TAVARES, 2020, p. 112) reconhece que a
universidade “precisa assumir a responsabilidade e executar uma tarefa compromissada com a
decolonização, o que implica a inclusão da diversidade cultural e epistemológica na educação
superior, cumprindo, assim, o seu papel de consciência crítica da sociedade”. A leitura
analítico-temática pode acompanhar este movimento.
Da mesma forma, o marcador “universidade” também é atravessado pelos regimes de
colonialidade do poder, ser e saber, os quais poderão nos auxilidar a fazer perguntas aos
textos, a compreender a crítica decolonial da universidade, bem como a práxis da Unitierra.
No caso em foco, passa a ser fundamental as concepções de educação, universidade,
conhecimento, entre outras categorias, para os sujeitos que constroem esta experiência a partir
do movimento zapatista.
Tais concepções serão identificados ao longo da análise documental (CONSTRUIR
A ANÁLISE DOCUMENTAL, CRITÉRIOS DE SELEÇÃO DE MATERIAL, ETC).
Agora, no entanto, abordaremos os modelos de universidade que se constituíram em
perspectiva eurocêntrica. E diante de tais modelos que o pensamento decolonial se insurgirá,
motivo pelo qual torna-se essencial conhece-los.

A história enquanto “invenção” narrativa não surgiu com o pensamento decolonial ou


pós-colonial. Na verdade, diz respeito às mudanças de paradigmas no saber histórico, surgidas
durante o século passado, que passaram a questionar as concepções de trabalho do historiador,
isto é, a sua forma de relacionamento com o passado, com as fontes, com a memória e com a
própria noção de verdade e cientificidade histórica (Ex. o debate entre o que é fato e ficção).
54

Nesse sentido, é importante ressaltar que a teoria da História apresenta um acúmulo de


rupturas que alimentam a crítica historiográfica decolonial.
Se no século XIX, era comum ao historiador explicar totalidades, a partir de uma
História do Estado, da Nação, da Civilização ou mesmo de uma “História Universal” ou da
“Humanidade”, o século XX trouxe novas formas de se conceber a História
(BENTIVOGLIO; LOPES, 2013).
A Escola dos Annales, por exemplo, alargou o horizonte historiográfico predominante
para além da história política tradicional, incorporando não somente análises econômicas, mas
socioculturais, geográficas, sobre as “mentalidades” ou as “ideias”, questionando
temporalidades estanques e redefinindo as noções de memória e de documento histórico
(BURKE, 1991).
É na esteira dessa expansão do universo dos historiadores, proporcionada pelo
movimento dos Annales (na qual toda a atividade humana tem uma história), que emerge a
chamada “história vista de baixo”, isto é, uma história sob um viés perspectivista. Burke
(1992, p. 15) ressalta a perda de uma “Voz da História” em favor da “heteroglossia”, na qual
vozes diversas e até opostas são apresentadas no palco, antes reduzido, da história.
Poderíamos evocar, ainda, a própria crítica ao historicismo de Benjamin (1987) e a sua
valorização do detalhe, dos restos e resquícios históricos oriundos de uma história “a
contrapelo”, isto é, não a dos vencedores, — que deixa sob ruínas qualquer apelo à alteridade
e à resistência, — mas dos que foram sufocados, silenciados ao longo do tempo.
Esta “história vista de baixo” se apresenta por meio da valorização das visões de
mundo, opiniões, ideias e concepções de “pessoas comuns” a respeito de seu próprio passado
(trabalhadores, mulheres, escravizados, movimentos sociais, ribeirinhos, etc), conforme
constatamos na prática de autores vinculados à perspectiva dos Estudos Culturais britânicos
(THOMPSON, 2004).
De todas as rupturas e críticas teóricas à produção de conhecimento histórico, no
entanto, acreditamos que a mais importante para os estudos pós-coloniais, com impacto direto
no pensamento decolonial, é a crítica de matiz foucaultiana, mais precisamente porque
Foucault foi um filósofo que pensou filosoficamente praticando investigações históricas.
E apesar de suas escolhas recaírem nos sujeitos “de baixo” — a loucura e o louco; a
clínica e o doente; a prisão e o delinquente, etc. —, a sua preocupação era menos a apreensão
do passado histórico e mais a compreensão do presente em sua historicidade, através da
articulação entre a dimensão discursiva e a constituição histórica de regimes de verdade e de
saber-poder. A preocupação foucaultiana com relação aos saberes considerados verdadeiros, o
55

vínculo entre verdade e poder, bem como o seu olhar histórico, impactaram a teoria da
história no século XX ao ponto de a História começar a ser encarada em uma nova dimensão:
a narrativa, a da invenção (JÚNIOR, 2007).
Desta maneira, alguns historiadores se afastaram de categorias trans-históricas, de
abordagens estruturais e metafísicas, da busca por essencialismos, continuidade, permanência,
progresso, desenvolvimento, entre outras, e deram ênfase à história como discurso
(interessado, parcial, inserido em regimes de poder) que produz sentidos, fabricando sujeitos e
coletividades que registram, arquivam, produzem documentos históricos e narram a história a
partir de um ponto observacional.
Exemplo fundamental desta perspectiva é a obra “Orientalismo”, de Said (1990), para
muitos, a obra fundante dos estudos pós-coloniais, em que o autor analisa o “Oriente” não
enquanto um espaço físico, um artefato ou acontecimento histórico dado na realidade, mas
como um objeto construído, discursivamente, por parte de um “Ocidente” constituído por
contraposição e que “inventa” o seu “Outro”, o “Oriente”.
Quem tem o poder de narrar, de realizar recortes, estabelecer a trama, interpretar
documentos, forjar arquivos e, até mesmo, produzir esquecimentos, funda passados, presentes
e futuros. Isto ocorre porque a articulação histórica do passado é imbrincada com a posição
ético-política e hermenêutica daquele que escreve a história “a partir de” e para o seu
presente.
Trouillot (2017) reflete sobre esse papel do poder na escritura da história, na sua
capacidade de produzir “não-acontecimentos”, no intermédio entre fato e narração,
perpetuando silêncios no relato do passado. Temos que nos considerar partes do processo
histórico — atores e narradores — de maneira que possamos revolver a poeira do tempo,
trazendo as vozes silenciadas sob as ruínas dos acontecimentos. Um provérbio africano
resume esta perspectiva em uma frase: “Até que os leões tenham os seus próprios
historiadores, as histórias de caçada continuarão glorificando o caçador”.
Podemos dizer que a decolonialidade se apropria da mesma possibilidade de escritura
de “história outras”. De fato, a crítica decolonial tem tido implicações na teoria historiográfica
como uma perspectiva que critica tanto a universalização de espaços provinciais, quanto de
temporalidades localizadas. Assim, uma das principais contribuições da decolonialidade para
a crítica histórica reside, a meu ver, fundamentalmente, na crítica à “história única”
(ADICHIE, 2019).
Adichie (2019, p. 10) diz que “é assim que se cria uma história única: mostre um povo
como uma coisa, uma coisa só, sem parar, e é isso que esse povo se torna”. De fato, a história
56

recebe uma marca: a do poder de quem narra a história, determina as condições em que ela
será narrada, quando será narrada, em que quantidade, frequência e forma, estabelecendo
presenças e ausências com ares de definitividade.
A decolonialidade lança-se neste terreno de disputas — das memórias, das fontes
historiográficas, das construções narrativas — a fim de trazer à lume aquilo que foi silenciado,
borrado e esquecido pela história considerada “oficial” ou “universal”. Essa perspectiva pode
ser vista nos trabalhos de teóricos que, hoje, se situam na Rede M/C/D
Dussel (1977, 2013) realiza suas pesquisas históricas sob este olhar, desde, pelo
menos, a década de 70, propugnando uma narração histórica da política e da filosofia, a partir
de uma crítica ao eurocentrismo, ao ocidentalismo, ao helenocentrismo, ao colonialismo, à
periodização organizada segundo critérios eurocêntricos (História Antiga, Medieval e
Moderna) e à exclusão da “América Latina” do processo histórico de consolidação da
Modernidade.
Outrossim, Mignolo (2003), a partir do conceito de “histórias locais”, preconiza a
leitura das experiências de cada coletividade sob a premissa de que não é possível criar um
relato uniforme e universal, uma vez que as histórias locais são múltiplas e diversas e devem
ser pensadas a partir de suas próprias localidades (pluritopia). Reafirma assim a
impossibilidade de se estabelecer uma história única, cuja ordem e periodização pertencem
todos os povos, seja como protagonistas, seja como coadjuvantes.
Uma experiência que evidencia esta abordagem decolonizadora da história é a do
“Taller de Historia Oral Andina” (THOA), fundado em 1983 e coordenado pela teórica
aimara-boliviana, Silvia Rivera Cusicanqui — que tece críticas a muitos autores do
pensamento decolonial —, cujo objetivo é compartilhar as histórias indígenas a partir do
próprio olhar indígena, suas memórias e saberes ancestrais, em contraposição à narrativa
histórica tida por oficial no país.
A crítica decolonial, portanto, contrapõem-se ao que Mendieta (1998, 2013)
denominou de temporalidade e espacialidade universal, propugnadas pela
Modernidade/Colonialidade europeia. Tais dispositivos estabelecem quem controla o tempo —
quem o mede e controla, quem temporaliza e é temporalizado, quem cria os critérios de
periodização — e o espaço, criando uma história teleológica, eurocêntrica, linear, evolutiva,
cujo progresso civilizatório culmina na sociedade europeia.
Nessa esteira, nesta seção iremos verificar até que ponto a crítica decolonial pode
iluminar camadas encobertas da historiografia em torno da universidade, seu surgimento,
transformações e modelos.
57

Ressaltamos, porém, que não propomos uma “recriação” da história da universidade,


até por nossa contraposição às histórias únicas e universais. Tampouco temos as condições
para investir nas múltiplas histórias locais de instituições universitárias, mesmo sob um olhar
decolonial. Acreditamos que isso requereria um projeto de pesquisa de grande envergadura,
realizado coletivamente, para além de uma pesquisa bibliográfica, cujas limitações são
evidentes e já foram demonstradas.
Buscamos, portanto, apenas revolver a “história única” da universidade, de modo a
apontar dissensos onde parecem predominar consensos, principalmente na literatura europeia
acerca da historiografia universitária, a qual atrela a narrativa de seu surgimento na Europa, a
fenômenos intra-europeus muitas vezes isolados de outros contextos sociais e históricos.
Pensamos que, por exemplo, os movimentos culturais inseridos ainda na Primeira
Modernidade, no mundo árabe, quando a Europa latino-germânica ainda era uma periferia,
também contribuíram para o surgimento de universidades fora do que ficou conhecido como
“Europa Ocidental” ou, pelo menos, influenciaram na constituição das primeiras
universidades europeias. (DUSSEL, 2016).
Posteriormente, iremos focar nos processos históricos que forjaram “modelos” de
universidade ao longo dos séculos (medieval, humboldtiana, napoleônica, reformista, etc.),
ressaltando, desde já, que se tratam de modelos consagrados na historiografia eurocêntrica 21, e
que são confrontados pela perspectiva decolonial. Aliás, é essa contraposição a razão de ser
dessa sessão: não temos como falar sobre os movimentos de decolonização da universidade,
suas contradições e tensões, sem antes apresentar os modelos em perspectiva eurocêntrica.
Para isso, iremos seguir uma narrativa convencional, tendo por base as inúmeras
tipologias de universidade que já foram alinhavadas 22 a fim de explicitarmos, posteriormente,
como o pensamento decolonial se contrapõem a estes modelos já constituídos. Por isso, antes
de abordarmos, propriamente a “universidade decolonial”, iremos discorrer sobre estas
concepções de universidade, de maneira geral.

21
Excentuando-se, talvez, o modelo reformista, que se articula na América Latina e é menos conhecido nos
manuais de historia da universidade escritos na Europa. Mesmo assim, foi um modelo inspirado por movimentos
de origem europeia (liberalismo, socialismo, etc.)
22
Borrero Cabal (1993) apresenta um resumo destes “modelos” ou “tipos” de universidade que, recorrentemente,
são evocados para as discussões em torno de suas dinâmicas institucionais complexas. Nos inspiramos nessas
tipologias, bem como nas classificações consagradas de Burton Clark (1993) e Drèze e Debelle (1983) para
ordenar o nosso debate, conscientes, porém, que, conforme afirma Castanho (2002, p. 29): “[...] o estudo no
nível de modelos ganha em riqueza de determinação o que perde em riqueza de fatos ou manifestações”. Nesse
sentido, uma vez que o “modelo institucional” é uma operação conceitual que supõe uma generalização prévia,
entendemos que a abordagem aqui apresentada não ignora a importância de análises não modelares, pautadas em
estudos históricos das instituições universitárias, consideradas em suas especificidades.
58

2.1 As origens medievais da universidade.

Como já afirmado, há uma larga tradição teórica no campo dos estudos sobre a
universidade que, unanimemente, preconizam a sua origem europeia (CHARLES, VERGER,
2012; GILLI, VERGER, LE BLÉVEC, 2007; MAKDISI, 1981; MOORE, 2018; NURIA,
BERGAN, 2006; RUBIÃO, 2013; RÜEGG, 2003; VERGER, WEIJERS, 2013, entre outros).
Borrero Cabal (1993) reforça que a história da universidade é narrada em chave
eurocêntrica, remontando o início de sua historiografia a Middendorp (1567), na Holanda,
com a obra Academiarum Celebrium Universi Terrarum Orbis (Todas as universidades,
celebrações acadêmicas mundiais); passando por Jean Launoy (1672), na França, com a
Histoire de plus Célèbre Écoles (História das mais célebres escolas); e Paulsen (1885) na
Alemanha, que publicaria Geschichte weise Lehre an deutschen Hochschulen (História do
ensino em universidades alemãs). Segundo o autor, estas obras inauguram os estudos
sistemáticos sobre a história das universidades, enquanto campo de estudos.
De fato, é sintomático do final do início do século XVI — início do colonialismo
europeu — uma espécie de “tomada de consciência” de Europa como uma unidade histórico-
cultural, com um passado, valores, e projetos em comum e as universidades tiveram um papel
relevante neste processo.
Desta maneira, na Europa, desde o século XVI, consolida-se uma tradição de estudos
sobre a universidade, em chave filosófica, pedagógica e histórica, que atravessa os séculos,
com variadas ênfases históricas e conceituais. Poderíamos lembrar aqui, à guisa de exemplos,
de Kant (1993), Newman (2015), Rashdall (1895), Heidegger (2007), Ortega y Gasset (1957),
Jaspers (1961), Derrida (1999) entre outros intelectuais que se debruçaram sobre o tema.
Não obstante esta longa tradição historiográfica e filosófica, identificamos uma
produção acadêmica minoritária que intenta relativizar (ou mesmo questionar) a perspectiva
eurocêntrica quanto ao surgimento da instituição universitária.
Enquanto alguns preconizam que a universidade deve a sua existência às instituições
surgidas em países árabes, outros não negam propriamente a origem europeia da universidade,
mas tentam estabelecer importantes liames, continuidades e influências de experiências
formativas em outros continentes em relação à sua constituição (ALATAS, 2006; ASSIÉ-
LUMUMBA, 2006; BEDMAR, 2012; CHERRADI, 2016, 2020; DRAY, WAAST, 2008;
DMITRISHIN, 2013; GHUNAIMA apud MAKDISI, 1981; GODDARD, 2000; LULAT,
2003; POURCELOT, 2015).
59

Para estes autores, entender o surgimento das universidades passa, necessariamente,


por compreender a influência árabe23 na constituição desta nova “Casa de Estudos” e das
outras instituições educacionais da Idade Média (como as escolas catedrais e monacais), tanto
no que se refere aos conhecimentos propagados e aos métodos de ensino, quanto às formas
institucionais que se constituíram.
Santos (2021, p. 242) é um dos que defendem que a “recolonização da história” é
primordial para qualquer processo de decolonização do conhecimento e da instituição que
promove e reproduz esse conhecimento a tantos séculos: a universidade. Cita, assim, Makdisi
(1981) para assegurar a sua tese, porém, acreditamos, de forma equivocada, talvez traído pela
tradução do texto do especialista em Estudos Orientais.
Makdisi (1981) enfatiza justamente o contrário do preconizado pelo sociólogo
português, ao dizer que a universidade é uma organização social ocidental-cristã específica do
século XII, que nada deve ao Império Árabe, enquanto corporação dotada de personalidade
jurídica, de direitos, responsabilidades, privilégios e proteção recebida, fosse pelo Papa, fosse
pelo Rei. Ele afirma, porém, que os colégios (Colleges) que surgiram atrelados às Catedrais e
às ordens religiosas (alguns dos quais, depois, ganharam status de universidade), devem suas
origens às madrassas ou às jãmi àhs islâmicas.
A grande contribuição deste teórico está em evidenciar que há autores que sustentam a
herança árabe das universidades, como Ghunaima, na obra “History of the Great Islamic
Universities” e Ribera em sua “Disertaciones y opúsculos” e que algumas das universidades
mais antigas do Sul da Europa, como a Universidade de Palencia, na Espanha, e Napóles, na
Itália, foram inspiradas pela experiência das escolas jurídicas Maliki, predominantes no Islã
ocidental, notadamente na região Ibérica.
Alatas (2006) vai além de Makdisi (1981) e afirma que a própria universidade tem
origem no mundo árabe. Para o autor, as práticas constitutivas da ciência moderna
(observação, experimentação) já estavam no Oriente Médio, por meio das práticas de
protocientistas como Ibn Haytham, Ibn Sina, Umar Khayyam, entre outros.
Ademais, preconiza que uma das origens possíveis do termo universitas é a palavra
jãmi àh, cujo significado é “universal”, “um completo curso de estudos”, usada para se referir

23
Falamos de influência árabe e não islâmica, considerando que são identidades diversas e que haviam árabes
cristãos e cristãos “arabizados” na Idade Média.
60

a Al-Azhar, no Cairo, uma instituição do século X, voltada para o ensino de jurisprudência,


gramática, filosofia, lógica e astronomia. Alatas (2006) também se refere à prática de conferir
graus e certificados aos estudantes, como uma prática herdada de instituições arábicas, como
o ijãzah, que seria o antecedente direto da licentia docendi, considerando-se as diferenças e as
especificidades de cada um desses institutos, prática, aliás, referida por Cherradi (2020) ao
mostrar o que seria o primeiro certificado outorgado por uma universidade na história24.
Outrossim, o autor cita a conjectura de Guillaume em torno do termo baccalaureus
(bacharelado), como uma palavra originada do árabe bi haqq al-riwãya (o direito de ensinar
com autoridade a alguém) e do termo facultas (faculdade) como uma tradução do árabe
quwwah, que se refere a um poder inerente a um órgão, uma parte ou pedaço de um
conhecimento universal (ALATAS, 2006).
Acrescentamos, por fim, a influência de práticas pedagógicas de origem árabe na
constituição do principal método de ensino das universidades medievais: a Escolástica.
Segundo Makdisi (1981) e Santos (2021), para além de ser considerado uma especificidade da
Europa Medieval, o método escolástico — mais precisamente, a disputatio —, inspirado na
filosofia grega, deve a sua existência à ao estilo de argumentação ijma ‘- khilaf (consenso-
desacordo) que estava em moda no Islã Oriental, desde o século XI, como método de
ensinamento em Bagdá.
Toda essa discussão trazida por Alatas (2006) está a serviço de uma tese que,
pensamos, é pouco aprofundada na literatura sobre a história da universidade, a qual considera
esta instituição um “produto multicultural”, fruto dos encontros entre árabes e cristãos, dos
quais se originou, também, uma Europa multicultural e intercivilizacional, forjada nos
conflitos e arranjos sócio institucionais advindos desse contato (Ex: as Cruzadas, a
colonização arábica da Sicília, da Península Ibérica, etc.).
Neste ponto, podemos ver a importância da perspectiva histórica decolonial sobre tal
período — de constituição de uma ideia primária de Europa, como mundo ocidental-cristão —,
mais precisamente de Dussel (1977, 2016), em articulação ao que se convencionou chamar
por “Renascimento do Século XII” (HASKINS, 1955).
Dussel (2000) é um historiador crítico ao que denomina de “modelo ariano” de
interpretação da história. Segundo ele, este modelo deu os seus primeiros passos no

24
O autor refere-se a um “diploma” de Medicina emitido pela Universidade AL Quaraouiyine, fundada em 859
a.C, em Fez, Marrocos, a qual, para muitos (ASSIÉ-LUMUMBA, 2006; BEDMAR, 2012; CHERRADI, 2021,
2020; DUSSEL, 2017), inclusive para UNESCO, é considerada a universidade mais antiga do mundo, ainda em
funcionamento. Para Makdisi (1970), porém, a informação sobre qual é a primeira universidade da história é
impossível de ser provada.
61

Renascimento italiano e se constituiu como narrativa histórica padrão que construiu os mitos
do surgimento da Europa, a partir do Romantismo alemão.
De acordo com este modelo, a Europa é fruto de um acúmulo cultural, histórico, linear
e progressivo que segue a seguinte equação: a “Europa Ocidental” como uma convergência
sequencial da cultura helenística, romana e judaico-cristã. Dentro desse modelo, a transição
entre o mundo grego, romano (pagão e cristão), cristão medieval, até o seu ponto culminante
— a Europa Moderna —, constitui-se em um padrão de “história universal”, ante o qual
subsome-se a história de todos os povos.
O “modelo ariano”, porém, é uma narrativa a favor de um projeto eurocêntrico, que
solapa as nuances da história, mitifica processos, invisibiliza sujeitos e povos e lança as bases
para a construção de uma ideia de Europa que se opõem a tudo o que seja “não europeu”.
Grosfoguel (2016, p. 141-142) vai além ao alertar para o “extrativismo epistêmico”
dos europeus em relação aos árabes, como um processo que decorre deste
encontro/encobrimento:

A mais importante fonte de influência científica por sua proximidade foi a


civilização islâmica. A ciência moderna tem suas origens em um ato maciço
de "extrativismo epistemológico". Uma boa parte das origens das ciências e
filosofias europeias modernas é tirada de cientistas e filósofos muçulmanos.
Mas com a colonização e a consequente destruição de outras civilizações e
suas infraestruturas de produção de conhecimento, a ciência foi
monopolizada nas mãos dos homens europeus, deixando outros povos em
decadência epistêmica. Como consequência da construção racial moderna
que faz do homem europeu um ser racialmente superior aos demais, foram
construídas narrativas sobre a história da ciência em que foram apagadas as
contribuições das civilizações não-ocidentais, das quais o Ocidente bebeu
para produzir ciência e cultura, gerando, assim, o mito racial moderno de que
a ciência tem suas origens nos homens ocidentais. Por isso, celebramos
Copérnico e esquecemos Ibn al-Shatir, o cientista de Damasco que, trezentos
anos antes, desenvolveu os teoremas matemáticos precisos que o próprio
Copérnico usou ou Al-Biruni, o astrônomo persa muçulmano que 600 anos
antes havia concebido a ideia de que a Terra gira em torno do sol e gira em
torno de seu eixo. A mesma coisa aconteceu com a imprensa, que é atribuída
a Gutenberg, quando já existia 900 anos antes, ao ser inventada pelos
chineses. A mesma coisa acontece com a filosofia grega que chega à Europa
através dos filósofos al-andaluzes Averróis e Maimónedes. Essa apropriação
do conhecimento e apagamento da memória histórica sobre as origens da
filosofia e da ciência modernas foi constitutiva do projeto moderno/colonial
de "extrativismo epistêmico" desde seus primórdios no final do século XV
até os dias atuais.

Não somente Dussel e Grosfoguel, mas outros historiadores, de diferentes perspectivas


teóricas, e que não pertencem à Rede M/C/D, não deixaram escapar a complexidade das
relações “Oriente/Ocidente” que emergiram a partir da derrocada do Império Romano.
62

Saliba (2008) investiga as origens da ciência no Islã e as traduções do corpus


científico e filosófico grego existente para o árabe: um ato de apropriação que não tinha
precedente real e permaneceu sem paralelo até os nossos tempos. Foca ainda as relações entre
o legado das descobertas de astrônomos árabes, já críticos do modelo ptelomaico, e sua
influência nos estudos de Copérnico.
Temos também os estudos de Bernal (1993), o qual defende a tese de que não há um
liame direto entre o mundo grego e a história europeia. De modo contrário, o autor procura
explorar o que seriam as raízes afro-asiáticas e semíticas do Ocidente, apenas invisibilizadas
por uma “ideologia prussiana” construída por Schlegel e o Romantismo Alemão e depois
incorporada e difundida para toda Europa.
Amin (1989), Gilson (1969), Grant (1996), Libera (1999), Lyon (2009), Makdisi
(1981) também são autores que, à sua maneira e a partir de olhares específicos, exploram as
mediações feitas pelos árabes, responsáveis diretos por meio de traduções e escritos próprios,
por levar a chamada “cultura clássica” até a Europa.
Sobre esta época, Dussel (1977, 1993, 2016) afirma que o Ocidente cristão era apenas
a periferia do mundo até então conhecido. Somente em 1492, período que o filósofo argentino
situa como o nascimento da Modernidade, quando a Europa se lança aos “descobrimentos”
(ou encobrimentos) de outros povos, é que a narrativa eurocêntrica se consolida, erigindo-se o
papel da Europa como centro da história mundial, em torno do qual gravitam todo os povos.
Antes de 1492, o centro econômico e cultural do mundo, segundo Dussel, era
disputado entre árabes e asiáticos, dominadores do Mediterrâneo Oriental, e isto tem um
impacto direto na origem das universidades europeias, afinal, como diz Libera (1999, p. 72):
“Que o Ocidente nasceu do Oriente, eis o que o medievalista deve recordar e dizer a todos os
participantes do diálogo impossível em que se afrontam os fantasmas e as fantasias das três
grandes religiões monoteístas”25.
Debater, desta forma, a origem das universidades medievais no século XII, comporta
múltiplas dimensões, às quais serão dadas maior ou menor importância de acordo com a
perspectiva teórica a que se dedica o historiador. Há um consenso, porém, entre os
historiadores: o século XII foi um período de intensas mudanças culturais, ao ponto de
Haskins (1955) atribuir o termo “Renascimento” ao período.
Neste período, como já ressaltado, novos conhecimentos chegaram à Europa através
de eruditos árabes oriundos da Sicília, da Espanha e do Magreb. Foi assim que novas
25
Importa ressaltar que Gouguenheim (2009) estabelece um contraponto a esta tese, ao explorar as raízes gregas
da Europa cristã e questionar o papel dos árabes como intermediários na constituição de uma “identidade
europeia”.
63

filosofias e conhecimentos emergiram, alterando a dinâmica social da Europa Medieval. O


reencontro com a filosofia aristotélica; a matemática euclidiana, ptolomaica e os algarismos
arábicos; o direito romano (o Corpus Iuris Civilis); a arte gótica e romanesca, a poesia épica e
lírica (vernacular e em Latim); o florescimento das escolas catedrais e monacais; a
intensificação do surgimento de cidades, o incremento do comércio, o aumento populacional e
o surgimento de novos burgos e das universidades europeias fazem parte deste movimento
(HASKINS, 1955).
Não obstante as nuances supracitadas que, acreditamos, permeiam o processo histórico
de surgimento das primeiras universidades europeias e merecer ser ressaltados, nos juntamos
àqueles teóricos que creem na especificidade da instituição universitária, pelo menos, em três
níveis: legal (organizacional), curricular e filosófico. (CHARLES, VERGER, 2012;
MAKDISI, 1981; MOORE, 2018; RUBIÃO, 2013; RÜEGG, 2003).
Do ponto de vista do estatuto legal, a universidade medieval, diferente das instituições
árabes, era uma corporação dotada de autonomia (mesmo que relativa) e personalidade
jurídica própria, que a tornava detentora de direitos e deveres. O surgimento do arcabouço
jurídico em torno desta instituição faz parte do próprio processo de constituição da tradição
jurídica ocidental (BERMAN, 2002).
É sempre importante lembrar que o Direito estudado nesta época era aquele contido
em um antigo manuscrito desenterrado em uma biblioteca italiana do século XI, o Digesto,
uma enorme coleção de textos que foram compilados durante o reinado do Imperador
Justiniano, por volta de 534 d.C.
Segundo Berman (2002), a descoberta dos escritos do Digesto; o método de análise
desses textos (escolástico) e o contexto em que foram cultivados — a universidade — estão
nas raízes da tradição jurídica do Ocidente, principalmente pelo fato de que o espaço
universitário propiciou a comunhão de juristas, professores e alunos, vindos de todos os países
europeus (e, como vimos, alguns não europeus), colocando-os em contato uns com os outros,
e com alunos e professores de teologia, medicina, das artes liberais (ars liberal), fazendo de
suas atividades uma vocação, uma profissão.
Este processo foi a marca de uma das primeiras universidades medievais que existiram
— a Universidade de Bolonha —, na qual alunos se agruparam para remunerar professores que
comentassem os textos jurídicos, reunindo-se, juridicamente, sob a forma de uma associação
(societas).
De fato, a “errância acadêmica”, a andarilhagem por parte de estudantes e professores
é um fato sempre repisado pelos historiadores das universidades (COBBAN, 1975;
64

GOROCHOV, 2009). Verger (1991) diz que essa mobilidade já era uma realidade bem
documentada nas escolas pré-universitárias do século XII e que, na verdade, foi um dos
fatores fundamentais para a transformação das antigas escolas (como a escola monacal de
Paris) em instituição universitária.
Tal fenômeno migratório (peregrinatio acadêmica) era tão intenso que começou a
criar problemas sociais e jurídicos para as cidades que sediaram as primeiras universidades
(Bolonha, Paris, Oxford, Montpellier, logo seguidas por Pádua, Cambridge, Salamanca, entre
outras). O afluxo de estudantes trouxe desafios de ordem pública em torno dos direitos à
moradia, alimentação e segurança.
Não poucas vezes, estudantes e professores foram hostilizados pelos habitantes das
cidades e expostos, sem defesa, a cobranças ilegais e arbitrariedades por parte dos detentores
do poder local. Destemberg (2008) chega a recordar episódios violentos de morte de
professores e estudantes. Tal situação foi o que primeiro deu pretexto às autoridades
superiores (laicas e eclesiásticas) para intervir nas organizações universitárias (VERGER,
1991).
Buscando proteção e se inspirando na experiência dos grupos urbanos que exerciam o
mesmo ofício e que já se reuniam em guildas ou corporações (universitas), professores e
estudantes passaram a se reunir em associações, a partir de suas origens (as nationes), de
modo a lutarem por seus interesses perante as autoridades constituídas, estratégias que como
veremos foi exitosa (GRANT, 1996).
Um texto fundamental que inaugura os regulamentos protetivos de estudantes e
professores, é a Autentica Habita, constituição promulgada pelo Imperador Frederico
Barbaroxa, aplicada de forma imediata aos alunos da Universidade de Bolonha.
Segundo a Autentica Habita, aos professores e estudantes era concedido o direito de ir
e vir e de residência em qualquer “sede universitária”; os alunos e professores ficavam sob a
proteção imperial direta, determinando-se que nenhum estudante poderia ser molestado ou
privado de seus bens em retaliação à cidade de origem, sob pena de restituição do quádruplo
do valor cobrado e de destituição do magistrado de seu ofício. Ademais, a jurisdição sobre os
alunos poderia ser exercida, à sua escolha, por seus próprios professores ou pela jurisdição
eclesiástica (BUSSI, 2002).
É um documento que revela, portanto, uma nova noção da importância dos “homens
de saber” na Idade Média, no ambiente citadino, inseguro, povoado de pilhagens, pedágios e
violência por parte das jurisdições senhoriais, isto é, que demonstra como a instrução
enriquece o conhecimento e proporciona estabilidade à ordem social (RÜEGG, 2003).
65

Em 1200, o rei Philippe Auguste concedia a alunos de escolas parisienses, um


privilégio semelhante aos bolonheses, colocando-os sob a proteção especial do rei e
reconhecendo-lhes o benefício do fórum eclesiástico. A autoridade papal, outra capaz de
legislar a nível universal, também se preocupou com o problema da moradia e sustento dos
estudantes e mestres universitários, emitindo diversas bulas regulamentadoras do tema, sendo
a mais famosa a Parens scientiarum, promulgada pelo papa Gregório IX, em abril de 1231.
Tais disposições estão na origem do estabelecimento dos “privilégios universitários”,
isto é, quando as primeiras universidades obtiveram o reconhecimento das autoridades civis e
eclesiásticas, o reconhecimento de suas autonomias (mesmo que relativas), passou a constar
em seus estatutos as primeiras medidas tomadas em favor de estudantes e mestres estrangeiros
(VERGER, 1991).
Essa luta por proteção e autonomia está intrinsicamente ligado às formas de
surgimento das universidades medievais, as quais, ainda segundo Verger (2012), surgiram de
forma espontânea (Bolonha, Paris e Oxford), por migração-secessão (Cambridge, Pádua) ou
por meio da criação de uma autoridade, fosse o Papa ou o Rei (Nápoles, Montpellier). Todas
estas formas exigiram por parte de estudantes e mestres uma negociação constante com as
autoridades locais (civis e eclesiásticas) e a criação de estratégias constantes, como as greves
e os pedidos de reparação civil (DESTEMBERG, 2008).
Embora de origens diversas, foram nas universidades medievais que as concepções
filosóficas mais importantes dos primeiros séculos do Medievo vicejaram, bem como as
principais experiências educacionais e curriculares tiveram o seu espaço.
É importante ressaltar que o latim era o idioma da educação e da cultura acadêmica, e
os estatutos proibiam o uso da língua vernacular, senão na vida cotidiana, pelo menos nos atos
da vida universitária. Desta forma, desenvolveu-se a busca pela constituição de uma
comunidade universal de indivíduos (Universitas Magistrorum et scholarium) em torno de um
objetivo: o estudo de todas as ciências (Studium Generale). Porém, isso não se dava de uma
forma harmônica.
Neste ponto, a Universidade de Paris é paradigmática, uma vez que, para muitos
historiadores, foi a instituição que encerrou os principais dilemas sociais, conflitos
institucionais, e os mais importantes debates filosóficos dos séculos XII e XII e que serviu de
modelo para a maioria das universidades que surgiriam nos séculos seguintes (RUBIÃO,
2013; MINOT, 1991).
Se considerarmos que, durante a Idade Média, a educação esteve praticamente nas
mãos Igreja, Paris certamente pode ser encarada como a metrópole acadêmica de toda a
66

cristandade. De fato, antes da existência da universidade, a cidade já estava tomada pelas


escolas das catedrais, localizadas junto às igrejas. Eram nessas escolas, conduzidas por bispos,
que o clero secular era educado. Homens de saber de todos os lugares acorriam à Paris
(Abelardo, um dos seus mais famosos), com o objetivo de exercer o ofício remunerado de
pensar e ensinar. Segundo Le Goff (2006), foi aí que se deu o nascimento do intelectual.
O ambiente, porém, estava tensionado. De um lado, a Igreja tentava manter a sua
influência sobre todos os processos educativos, através do monopólio do ensino, concretizado
nas concessões das licencia docendi (títulos que autorizavam mestres a exercerem o seu
ofício); do outro, as escolas e a recente universidade se laicizavam cada vez mais, buscando
uma maior autonomia em relação à tutela eclesiástica, além de maior proteção a mestres e
estudantes, tendo em vista uma liberdade de ensino em relação aos assuntos que a Igreja
desaprovava (RUBIÃO, 2013).
Isto ocorria em virtude do maior interesse pela chamada literatura pagã,
principalmente aristotélica, que vinha sendo introduzida na Europa Ocidental, como vimos,
através das traduções da Escola de Toledo e comentários de filósofos árabes como Avicena e
Averróis.
De forma a pacificar este conflito, a Igreja tornou mestres e alunos parte da jurisdição
eclesiástica, isentando-os da jurisdição do rei, o que foi acatado, sendo garantidos benefícios
materiais e jurídicos por parte da Igreja. Ao mesmo tempo, com essa estratégia, o clero
garantia o monopólio da licentia docendi, concedida pelo chanceler, sob o nome do bispo
local, vinculado à Catedral de Notre-Dame, a qual, depois, passou a ser concedida pelo
próprio papado em Roma.
No entanto, os atritos continuaram, uma vez que o conservadorismo da catedral de
Notre-Dame começou a conflitar com as incursões de mestres e estudantes nos estudos de
Aristóteles. Filosoficamente, portanto, a universidade medieval se confrontava com a teologia
cristã sendo atravessada por duas grandes tradições filosóficas: o platonismo e o aristotelismo,
com impacto no currículo e na própria metodologia de ensino das universidades.
Com a redescoberta de Aristóteles uma nova forma de pensar e ensinar passou a ser
cultivada, principalmente dentro dos muros das universidades: a escolástica. Mesmo
personagens pertencentes à Igreja, oriundas das Ordens Religiosas que surgiam (Franciscanos,
Dominicanos, etc.), lançavam mão desta nova postura intelectual em relação ao mundo e se
inseriam no ambiente universitário de forma a aliar os seus estudos, principalmente de
teologia, ao que vinha sendo estudado pelos mestres acadêmicos.
67

Notadamente, isto advinha de pretensões político-religiosas. Segundo Verger (1996),


onde já existiam cursos de Teologia (Paris, Oxford), os membros das ordens mendicantes
viam a oportunidade de recrutar novos prosélitos, bem como criar cursos (os studia) a partir
de suas doutrinas, de forma a que os novos recrutados pudessem continuar seus estudos sem
sair do ambiente universitário. Já onde não havia cursos de Teologia (como em Bolonha), as
ordens intentavam criar escolas próprias, próximas às universidades, de modo a inserir
professores e estudantes em seu círculo de influência.
Não à toa vários professores franciscanos ou dominicanos foram alunos universitários
no passado, bem como muitos mestres universitários, foram clérigos pertencentes a alguma
dessas ordens mendicantes. Esse fluxo, como se sabe, gerará novos conflitos, uma vez que
muitas ordens se conduziam por suas regras internas, ignorando as normas dos estatutos
universitários. Ao mesmo tempos, os mendicantes se beneficiavam de todos os privilégios
universitários, tão somente se submetessem à disciplina do corpo docente universitário.
Outro conflito que se instaurava dizia respeito às correntes filosóficas que se
contrapunham, atravessando seculares e religiosos. O nominalismo, inspirado na filosofia
natural aristotélica, encarava o mundo como um sistema coerente passível de ser
compreendido pela razão (em conciliação com a fé), do qual são grandes representantes
Alberto Magno, Pedro Abelardo e São Tomás de Aquino. Contrapunha-se ao nominalismo, o
realismo, de inspiração platônica e matiz agostiniana, que cria nas ideias universais, na fé
como a fonte superior e legítima de toda a ciência, bem representado pelo pensamento de São
Boaventura (RUBIÃO, 2013). O debate se acirrou de tal forma que, durante os anos de 1210
a 1277, a Igreja se viu ora condenando (condenação das teses averroístas), ora relativizando a
posição daqueles que queriam conciliar a filosofia natural aristotélica com a teologia cristã
(RUBIÃO, 2013).
Com o tempo, porém, ficou impossível proibir o fluxo de ideias aristotélicas no seio
das universidades, acarretando a ascensão do pensamento escolástico. De certa forma, as
instituições iam compartilhando ideias (por meio da circulação de mestres e alunos),
conteúdos e métodos de ensino fundamentados na lógica formal do filósofo Estagirita. Neste
processo a universidade se dividiu em faculdades (facultas), isto é, em um conjunto de
professores dedicados às mesmas disciplinas, organizadas de tal maneira a formar o sujeito
moral e intelectualmente (MOULIN, 1994).
A universidade na Idade Média dividia-se, em geral, nas seguintes faculdades: Artes
Liberais, mais precisamente, o trivium (gramática, retórica, lógica) e o quadrivium
(aritmética, geometria, astronomia e música); Direito, Medicina e Teologia. Segundo Rüegg
68

(2003), principalmente em Paris e Oxford, era um caminho comum para chegar à formação
teológica, o aluno passar pelos ensinos das artes liberais. Em Paris, a Faculdade de Artes, na
qual se destacava a Lógica, era composta pela maior quantidade de alunos, entre laicos e
clérigos, os maiores responsáveis pelas greves e reinvindicações perante as autoridades
(COBBAN, 1975).
Em termos gerais, os conteúdos e métodos eram os mesmos, também. Em todas as
universidades se praticavam a lectio (a leitura) e a disputatio (a discussão), sendo constante as
presenças de Donato e Prisciano, em Gramática; Cícero, em retórica; Aristóteles, Porfírio e
Boécio em Lógica e Dialética; Euclides, em Geometria; Ptolomeu em Aritmética; o Corpus
jurídico (Digesto) em Direito; Galeno e Constantino em seus comentadores árabes em
Medicina e as Sentences de Pedro Lombardo e Gregório, o Grande junto à leitura da Bíblia
em Teologia (BORRERO CABAL, 2008a; CAMPOS, 2021; CHARLE, VERGER, 2012;
VERGER, 1991).
A Escolástica, assim, se desenvolvia nos ambientes universitários por meio de aulas
dialogadas, conferências orais encarnadas nas lectio, nas collationes, e as quaestiones que
constituirão a própria forma de pensar e organizar as ideias até os nossos dias. Aos alunos
cabia o papel de memorizar, consultar as autoridades sobre os assuntos e compreender as
formas de abordagem do texto que ia desde o aspecto gramatical, a etimologia, passando
pelos modelos e circunstâncias históricas da obra (BORRERO, 2008a).
Com o declínio da Idade Média e a constituição daquilo que foi denominado por
Modernidade (DUSSEL, 1993) a universidade passou por transformações substanciais,
acompanhando as mudanças sociais que atravessaram o continente europeu, advindas pela
constituição do humanismo, do Renascimento, da Reforma Protestante, da constituição do
Sistema-Mundo capitalista (WALLERSTEIN, 2005) entre outros fenômenos que constituíram
a expansão europeia a partir do século XV.
É importante ressaltar, neste contexto, que as primeiras universidades que viriam a
surgir nas colônias latino-americanas foram inspirados no modelo medieval, na qual se
desenrolou o debate clássico entre a natureza humana dos chamados “índios”, isto é, a disputa
pela compreensão se eles tinham alma ou eram como os animais, se eram passíveis de
conversão ou apenas de aniquilamento físico. A universidade, portanto, adquirirá um papel
fundamental na constituição da colonialidade, uma vez que é atrelada à construção de uma
identidade europeia.
Foi no espaço acadêmico espanhol, por exemplo, que se desenrolou o debate que se
tornou clássico entre Sepúlveda e Bartolomeu de las Casas, um debate que ainda ecoa —
69

mesmo que em outros termos — sobre alteridade, a humanidade do outro, mais precisamente,
dos povos encontrados nas Grandes Invasões iniciadadas com o colonialismo europeu.
As primeiras universidades no “Novo Mundo” fazem parte de todo um sistema
construído em torno do proselitismo cristão católico, isto é, em torno do projeto de conquistar
os “gentios” (os ameríndios e, posteriormente, os negros escravizados) e “civiliza-los” em
uma perspectiva político-religiosa. Por isso, inserimos como sua principal característica não o
universalismo — característico, aliás, de todos os modelos eurocêntrico — mas o proselitismo
religioso. A universidade medieval visava formar o “homem cristão”, o modelo de homem
considerado superior até então.
O declínio da Escolástica, o surgimento de um novo paradigma epistemológicos — a
Ciência Moderna —, a crítica dos humanistas á universidade, mesmo os problemas
financeiros e demográficos que assolaram a Europa (e as instituições universitárias) são
fatores que contribuíram para que esta instituição se transformasse, adaptando-se a novos
rumos. Poderíamos dizer que tais mudanças culminaram em um novo modelo de
universidade: a universidade humboldtiana.

2.2. A universidade humboldtiana

Conforme Charle e Verger (2012), as universidades medievais tiveram um momento


de crescimento exponencial por todo o continente. Dos séculos XIII ao XIV, novas
universidades foram surgindo, embora não mais de forma espontânea, como em sua origem,
mas por atos fundacionais, fosse do papado (ou comunidades religiosas) ou dos soberanos
(reis e príncipes territoriais).
Por isso, concordamos com Cobban (1975) e não julgamos o período qualitativamente,
em termos de ascensão e declínio da universidade, embora, em muitos casos, as universidades
tenham incorrido em crises as mais diversas (financeiras, curriculares e demográficas).
Preferimos encarar as diferenças fundamentais que a instituição sofreu, de um modo geral,
como sinais de uma Modernidade/Colonialidade que se constituía em seu início,
principalmente em torno do debate epistemológico (a colonialidade do saber) criado em torno
do cientificismo.
Ao olharmos para a história, começamos a encarar as universidades como instituições
resistentes e resilientes, capazes de sobreviver a forças hostis, a períodos de crise e
dificuldades, e emergir como centros revitalizados de aprendizados. Neste momento, por
exemplo, caso pudéssemos definir esse período de transição da universidade em uma só
palavra seria: centralização.
70

De fato, os Estados Nacionais começaram a se constituir em um processo de


centralização progressiva do poder político. Ao mesmo tempo e em virtude disso, a
universidade perdia, cada vez mais, o seu caráter de comunidade de estrangeiros, unidos pela
língua (o latim) e por interesses profissionais e formativos (curriculares). A escalada de
centralização instrumentalizava a instituição universitária a serviço dos poderes políticos
emergentes, em favor do desenvolvimento e dos interesses particulares das nações que
ganhavam forma (como a formação de uma burocracia especializada, exigida para o
funcionamento dos Estados).
Com a Grande Cisma (1378-1417), a aceleração do surgimento de Estados e de novas
confissões religiosas, mais que dobrou o quantitativo de universidades nos séculos seguintes,
notadamente na França, na Espanha e na Prússia (atual Alemanha), que se tornou o país com a
rede universitária mais capilarizada. Acresça-se os Estados mais atingidos pela Reforma
Protestante, que se viram na necessidade de fundar as próprias universidades confessionais
(ao mesmo tempo que os Católicos reagiam, multiplicando as suas próprias instituições).
A partir do declínio da Idade Média, portanto, há uma erosão progressiva da
autonomia universitária, muito em virtude do interesse crescente dos governantes sobre a
instituição. Agora, a universidade passaria a ser financiada pelos incipientes Estados
Modernos ou por suas instituições religiosas (luteranas, calvinistas, católicas, etc.), enquanto
contribuíam para o desenvolvimento da ideologia nacional, monárquica e colonial, se
levarmos em conta que as primeiras universidades fora da Europa começaram a surgir em
colônias como São Domingos, Lima e México (CHARLE, VERGER, 2012).
De fato, em universidades alemãs, por exemplo, muitos dos mestres se aproximavam
da categoria do que hoje denominamos “servidores públicos”, fundindo o ethos intelectual e
profissional (burocrático), assim como a muitos egressos destas instituições era reservado um
ofício na administração ou no clero (conselheiros, juízes, embaixadores, etc.). O caráter
nômade de mestres e estudantes também declinou, tornando-se mais centralizado e estável a
concentração destas classes em um determinado território. (CHARLE, VERGER, 2012;
COBBAN, 1975).
Aliás, temos, nesse período, a primeira associação entre universidade e território, em
termos de controle estatal e organização burocrática, como prenúncio do que viria se tornar a
universidade em territórios ocupados por uma habitação colonial. Assim, a fundação de novas
instituições universitárias — como a de Ingolstadt (1472), Tübingen (1477) e Wittenberg
(1502) — era a expressão da busca de emancipação por parte de príncipes e reformistas, em
71

relação ao papado (OBERMAN, 1984), e de um novo horizonte cultural que se divisava,


vinda dos influxos do Humanismo.
Por isso, não é uma coincidência que o modelo humboldtiano de universidade tenha
sua origem em território germânico. O epicentro da Reforma Protestante que abalou o
continente europeu, já influenciado pelo humanismo do Norte que criticava a universidade
medieval, com relação aos seus métodos de ensino e autoridades intelectuais, forjava os
primeiros elementos do que viria se tornar a revolução científica, responsável por ressignificar
a instituição universitária.
Com as guerras religiosas e o triunfo dos Estados Absolutistas, os príncipes,
preocupados com a propagação de heresias, passaram a limitar a peregrinatio academica, isto
é, a mobilidade de estudantes e mestres, impedindo que seus nacionais fossem estudar no
estrangeiro. Paradoxalmente, no entanto, o humanismo que se propagou para o norte europeu,
junto à Reforma Protestante aceleraram as tensões e transformações da universidade
medieval, principalmente da alemã, durante a transição entre Idade Média e Moderna
(CHARLE VERGER, 2012; OBERMAN, 1984; SKINNER, 1996).
Em primeiro lugar, a Reforma luterana é um movimento iniciado em uma
universidade, a universidade de Wittenberg, que serviu de modelo para a constituição das
demais universidades protestantes que surgiram posteriormente. Lutero e Melâncton
preconizaram mais do que a reforma dos ensinos teológicos e de artes nas universidades, mas
a inserção de novas áreas de conhecimento, como história, o abandono do latim como o
“idioma acadêmico” exclusivo para a docência, estimulando o uso do vernáculo, e a
alfabetização maciça da população, de forma a tornar acessível a leitura da Bíblia (SPITZ,
1984).
Sob esta influência, as universidades, principalmente as oriundas da reforma luterana,
abriram-se às influências do humanismo e, por conseguinte, às ideias que gestariam a
Revolução Científica. Do século XVI ao XVIII, portanto, várias reformas universitárias
vieram à luz a fim de dar conta das inovações disciplinares, da regularidade de cursos, e da
regulamentação dos poderes internos das instituições (CHARLE, VERGER, 2012).
De fato, as universidades protestantes foram mais receptíveis às conclusões de
Copérnico, por exemplo, que as de origem católica. Um exemplo disto é o de Georg Joachim
Rheticus, um professor de matemática da Universidade de Wittenberg, discípulo de
Copérnico, a quem este concedeu a permissão de publicar sua teoria heliocêntrica pela
primeira vez (1540), e que tentou conciliar a visão bíblica com a descoberta astronômica
recente (WESTMAN, 1994).
72

Melâncton atuou diretamente na reformulação curricular das principais universidades


protestantes (Wittenberg, Tübigen, Leipzig, Frankfurt, Greifswald, Rostock, Heidelberg), cuja
poderosa influência sobre o conteúdo pedagógico alcançaria instituições criadas
posteriormente (Marburgo, Königsberg, Jena, Helmstedt), também recepcionou, junto a um
círculo de intelectuais de Wittenberg, a teoria copernicana, mesmo que com ressalvas (SPITZ,
1984; WESTMAN, 1975, 1994).
Há farta bibliografia que associa o humanismo do Norte e a Reforma Protestante com
uma maior abertura das universidades germânicas e inglesas (e de outras instituições que
surgiam) ao conhecimento científico, como se o ethos protestante, mesmo a sua hermenêutica
e concepção teológica, favorecessem um olhar sobre o mundo a partir da racionalidade, da
experiência e da observação, elementos essenciais na constituição da ciência moderna
(BUTTERFIELD, 1982; FUNKENSTEIN, 2018; HARRISSON, 1998, 2007, 2010;
MERTON, 1938, 2013; RUBIÃO, 2013).
Isso pode ser constatado não somente nas universidades protestantes. Na passagem da
Idade Média para a Moderna, outros lugares foram erigidos como centros de pesquisa e
inovação, muitos dos quais largamente frequentados por indivíduos de origem ou formação
protestante, como as academias, sociedades eruditas como a Royal Society, os salões, os
gabinetes de curiosidades e as bibliotecas (BURKE, 2020; CHARLE, VERGER, 2012;
MERTON, 2013; RUBIÃO, 2013).
Com isso não queremos dizer que o catolicismo e suas instituições ficaram alheias ou
mesmo estanques, diante das mudanças que ocorriam. Ao contrário, vários estudiosos
católicos se destacaram nos séculos XVI e XVII, por suas descobertas e contribuições no
processo de consolidação da Ciência Moderna (Descartes, Pascal, Galileu, Torricelli, etc.).
No entanto, é importante ressaltar que a Contrarreforma da Igreja Católica, a perseguição às
heresias e a retaliação aos movimentos protestantes — cujo Concílio de Trento, a
Congregação do Índex e o Santo Ofício foram os marcos — geraram maiores entraves à
liberdade de investigação e à autonomia dos indivíduos, o que impactou na estrutura das
universidades de tradição católica (ASHWORTH JR., 1994; THORNDIKE, 1941).
As universidades dos países mais impactados pela Contrarreforma, como Portugal e
Espanha (e as suas colônias), por exemplo, ainda eram medievais, imersas na escolástica, no
aristotelismo, na centralidade da teologia, quando da chamada primeira modernidade
(DUSSEL 2000; ROBERTS, RODRÍGUEZ, HERBST, 1996), servindo de instrumentos para
uma Europa que se constituía como “centro” da história mundial. Demoraram, assim, a
incorporar a filosofia mecanicista cartesiana, as descobertas em torno de uma nova
73

cosmologia, a crescente confiança no experimento, na mensuração e na observação, com o


objetivo de desvendar as leis naturais. Em países católicos, diz Charle e Verger (2012), a ideia
de reforma universitária só irá prosperar no século XVIII.
O fato é que as mudanças nas concepções de conhecimento advindas do Humanismo
e, posteriormente, do Esclarecimento, as alterações no papel do Estado, os impactos da
Revolução Francesa e os influxos da ética protestante contribuíram sobremaneira para a
fundação da universidade humboldtiana, como um novo modelo universitário: a universidade
moderna de pesquisa, historicamente representada pela Universidade de Berlim (1810), não
obstante suas precursoras, como a Universidade de Göttingen.
De fato, os primeiros esforços de renovação já podem ser vistos no século XVII, em
virtude da criação da Universidade de Göttingen e de Halle, com a difusão dos seminários de
aula, uma maior independência em relação à Igreja e a diminuição do peso das autoridades
medievais.
Após um período de relativa decadência, em termos de quantidade de estudantes e
mestres, de aristocratização do ensino universitário, do surgimento de outras instituições de
produção de conhecimento, e mesmo das escolas profissionais (Academias de ciências e
escolas especiais como o Collegium Medico-Chirurgicum, a Bergakademie, Akademie der
Kunst, ou a Bauakademie), a partir da Revolução Francesa, há um vigoroso crescimento dos
contingentes estudantis, de professores, de disciplinas e novas formas de ensinar são
desenvolvidas (CHARLE, VERGER, 2012; ).
Com o incremento da cultura impressa, a sobrecarga de informação invade o mundo
da erudição, o que exige novas formas de gerenciamento do conhecimento, por meio da
especialização, da formação de enciclopédias, periódicos acadêmicos e novas disciplinas
(BURKER, 2020). A universidade recupera a sua autoridade epistemológica, depois de ser
abalada pela dissociação entre os seus espaços e os movimentos que ocorriam fora de seus
muros. Intelectuais como Immanuel Kant, J. G. Fichte, F. W. J. Schelling, Friedrich
Schleiermacher e Wilhelm von Humboldt são essenciais para a construção desse ideal
universitário. Grandes figuras da intelligentsia germânica se envolveram neste projeto no que
seria, talvez, a mais densa reflexão sobre a universidade (CUNHA, 2007; RUBIÃO, 2013;
RÜEGG, 2004; WELLMON, 2015).
Não somente mudanças epistemológicas, mas institucionais e de práticas acadêmicas
são incorporadas na universidade humboldtiana. Clark (2005), em sua tese, ressalta essas
mudanças por meio da análise da cultura material (ou o que chama de “ferramentas do
74

conhecimento”) das novas universidades alemães, em comparação com o que denomina de


regime acadêmico tradicional.
Para o autor, a crescente burocratização da universidade, o surgimento dos catálogos
de professores (dos formulários, das “cadeiras”, dos dossiês), a expansão dos laboratórios, a
substituição das disputationes pelos seminários de pesquisa, a crítica às autoridades
intelectuais, a expansão do acesso a um mercado de livros, da alfabetização, a busca pela
originalidade e competição entre os professores pelo status de autoridades do conhecimento, o
desencantamento weberiano, aliado ao surgimento de um “carisma profissional” são
marcadores importantes desse modelo universitário (CLARK, 2005).
Na reflexão decolonial, essa universidade que emergia estava preocupada com com
determinados tipos de conhecimento (experimentável, calculável), de racionalidade, a objetiva
e de verdade, a científica (GROSFOGUEL, 2013). Surgiam, assim, os primeiros ventos do
positivismo científico que tornaria-se hegemônico e deslegetimaria qualquer outra forma de
conhecimento como válida, principalmente as cultivadas em espaços atingidos pela fratura
colonial, por grupos sociais considerados “primitivos” e “inferiores”.
Embora associada a figura proeminente do polígrafo Wilhelm von Humboldt, as
reformas universitárias germânicas a partir do final do século XVIII foram coletivamente
gestadas por intelectuais de grande envergadura que se debruçaram sobre o tema a partir do
influxo do Iluminismo (mesmo que de forma crítica a ele, por meio do Romantismo e
Idealismo) e de toda uma epistemologia que, hoje, consideramos fruto da “Modernidade”.
De fato, a crítica de toda autoridade que não fosse a razão, o valor atribuído à
educação como aquele capaz de criar um novo indivíduo, por meio de projeto de valorização
da cultura, notadamente da cultura nacional alemã, que buscava refletir sobre si mesmo, foi
um projeto construído coletivamente.
Por isso as mudanças na universidade alemã, a criação mesmo da Universidade de
Berlim, faz parte de um contexto maior de tensionamento entre a valorização do indivíduo e
da cultura nacional (de uma Prússia agrária, esfacelada em reinos, que buscava uma
identidade nacional), vinculada a uma ideia de humanidade, à formação do indivíduo ou
cultivo de si, muitas vezes utilizado como tradução do termo alemão Bildung26.
26
Importante ressaltar essa nuance da perspectiva alemã. É comum derivar-se, epistemologicamente, a
constituição da Ciência Moderna do pensamento de Kant, junto às reflexões de Bacon, Galileu, Descartes, entre
outros, em torno da valorização de um conhecimento voltado à utilidade, às possibilidades de uso e
instrumentalização desse conhecimento e do alcance da verdade científica objetiva universalizável por meio da
dúvida metódica, da experimentação, da observação, em contraposição à racionalidade contemplativa e a busca
de fins desinteressados e metafísicos (característicos do Medievo). No tocante à elaboração da filosofia alemã,
no entanto, este componente, notadamente individual, vinha acompanhado de uma preocupação com a
vinculação entre indíviduo e o “todo”, isto é, a humanidade, a cultura humana, (que para eles, confundia-se com
75

Isso se espelhou na construção de um novo ideário e de novas instituições


educacionais. Após a derrota para o exército napoleônico esse movimento foi mais intenso. A
Prússia perdeu algumas de suas principais universidades — Halle e Jena — em virtude da
assinatura de um Tratado de Paz com a França napoleônica (TERRA, 2019). Aliás, é
impossível separarar a fundação da Universidade de Berlim (e todas as reformas do sistema
educacional na época) deste contexto maior que envolve as guerras revolucionárias francesas,
bem como a guerra e invasão napoleônica na Prússia. Após 1789, de trinta e cinco
universidades na região germânica, sobraram apenas dezesseis (CHARLE, VERGER, 2012;
ÖSTLING, 2018).
Nesse ínterim, Schelling (1984) publicou um ensaio preconizando a fundação de uma
instituição digna dos novos tempos e Fichte (2005) escreveu os seus “Discursos à Nação
Alemã” como um apelo pela reconstrução da nação através de um programa educativo
universal. Esse debate tinha que enfrentar, necessariamente, a relação entre universidade e
Estado (o prussiano), consubstanciado na seguinte pergunta: a universidade a serviço do
Estado ou da razão?
Kant (1993) já abordava esse envolvimento complexo da universidade com o Estado
por meio do binômio autonomia e heteronomia. Para o filósofo, quem queria colocar-se a
serviço do Estado (funcionário em cargo público) deveria cursar as Faculdades Superiores
(Direito, Teologia e Medicina), onde encontraria um caráter mais utilitária da ciência
almejada; já quem queria colocar-se a serviço da razão, deveria cursar a Faculdade Inferior, a
de Filosofia. Diante das tarefas que assumem, as Faculdades, necessariamente, entram em
conflito.
Assim, o filósofo de Könisberg (1993) dizia que as Faculdades Superiores eram
incapazes de pensar os seus próprios fundamentos, uma vez que atuavam próximas aos
desígnios do Estado, por meio de doutrinas (textos canônicos de Direito, Teologia, Medicina),
cujos fundamentos e autoridade eram externos à própria universidade (heteronomia). Já a
Faculdade Inferior (Filosofia), por não lidar com interesses diretamente vinculados ao Estado,
teria maior autonomia acadêmica (liberdade de cátedra), de investigação e crítica, sem
doutrinas assumidas de antemão e com o único compromisso de fundamentar-se por meio da
razão. À Filosofia, assim, caberia a reflexão sobre o sentido da atividade acadêmica, por meio
de conjecturas e observações em torno dos resultados que as outras Faculdades alcançavam.
De certa forma, Humboldt recupera o debate kantiano. Aliás, segundo Weber (2006, p.
125), “todos os escritos apresentados a Humboldt quando da criação das discussões que

o europeu “civilizado”).
76

culminaram na criação da Universidade de Berlim (1810) — notadamente, os textos de Fichte,


Schleiermacher e Wolf — comungam da mesma motivação”, isto é, se inspiram na abordagem
kantiana da universidade.
Terra (2019, p. 139), sobre este movimento, diz:

Beyme escreve a vários intelectuais consultando-os sobre o espírito que


deveria presidir a nova universidade. Fichte faz uma proposta com o texto
“Plano dedutivo de uma instituição superior de ensino a ser fundada em
Berlim” (1807) e Schleiermacher responde com outra proposta,
“Pensamentos ocasionais sobre universidades no sentido alemão” (1808)
(Fichte, 1964; Schleiermacher, 1964). Após ouvir outros intelectuais além de
Fichte e Schleiermacher, Beyne confia a organização da nova universidade a
Humboldt no fim de 1808. Das propostas apresentadas, a de Schleiermacher
é a que prevalece.

A proposta de Schleiermacher, mais liberal, concedia maior autonomia aos professores


(poderiam ensinar, a partir de metodologia própria, e ter liberdade de cátedra) e deixa ao
Estado apenas o papel de financiador da instituição, enquanto a de Fichte, atrelava a
universidade ao Estado, isto é, como uma totalidade voltada para formar cidadãos para a
comunidade nacional. Para Schleiermacher, no entanto, deveriam existir duas instituições: a
Academia, onde se daria a pesquisa; e a Universidade, onde ocorreria a transmissão do saber.
Quanto à esta divisão Humboldt se opôs, pugnando pela união das duas funções na mesma
instituição (RUBIÃO, 2013).
Ocorre que desde o final do século XVIII, Humboldt (1983) já se preocupava com os
limites de atuação estatal frente aos cidadãos (uma perspectiva que nos remete aos
argumentos do liberalismo clássico). Nesta linha, Humboldt também sustenta em sua proposta
a ideia da Filosofia como faculdade autônoma, dotada de maior liberdade, uma espécie de
guardiã da razão que unifica e sistematiza o saber, expandindo o locus de liberdade acadêmica
para toda prática científica. Diferente da universidade medieval, portanto, em que a filosofia é
uma preparação para as outras ciências (Direito, Teologia e Medicina) e a Teologia é a “mãe
das ciências”, na universidade humboldtiana a Faculdade de Filosofia torna-se, ela mesma,
um local de síntese e crítica em relação às ciências utilitárias.
Humboldt, influenciado por Leibneiz e Herder, propunha a redução ao máximo da
intervenção estatal nos processos educativos, de maneira a deixar ao indivíduo a capacidade
de formar-se (o cultivo de si), em um processo de crescimento orgânico até realizar todas as
suas potencialidades e inclinações, dentro do ideal universalista de Bildung. Assim, ao Estado
caberia apenas garantir as condições exteriores — segurança, interna e externa — para que o
77

indivíduo pudesse se desenvolver em toda a sua originalidade no interior de uma instituição


com independência financeira (ALVES, 2019, HUMBOLDT, 1983).
Existia uma dualidade complexa no pensamento humboldtiano, em torno da ideia de
Bildung. Ao mesmo tempo em que o processo formativo tinha por objeto o aperfeiçoamento
do indivíduo, esse aperfeiçoamento visava a integração do indivíduo ao que há de mais
humano, em geral, em termos morais e culturais.
Em termos de concepções guias, portanto, o novo modelo de universidade gravitava
em torno do princípio maior de liberdade 27, associando-se a alguns princípios mais ou menos
correntes, a saber: a combinação entre ensino e pesquisa, destacando-se essa última como
principal prática universitária, o que a diferenciaria da escola; a liberdade acadêmica (de
cátedra); educação (Bildung) como cultivo de si, no lugar de treinamento (ou adestramento); a
ideia de unidade da ciência e do conhecimento e de formação pelo saber (Bildung durch
Wissenchaft) que eleva o indivíduo à humanidade; a comunidade de estudantes e professores
autônoma, voltada para a originalidade e pesquisa, por meio da construção do próprio
itinerário formativo (ÖSTLING, 2018; RUBIÃO, 2013).
Assim, a universidade humboldtiana seria o local, por excelência, do cultivo da ciência
e da formação de si, permeado pela liberdade e pela solitude, tanto nas aulas, quanto nos
seminários científicos. O Estado poderia se responsabilizar pela nomeação de seus
professores, porém, internamente, a eles seria garantida a liberdade de ensino e de pesquisa,
zelando, também, pela liberdade acadêmica (RÜEGG, 2004). Humboldt argumenta que as
pessoas educadas para serem indivíduos livres, em última análise, seriam melhores cidadãos
do que os homens educados para serem cidadãos, assim como a ciência deixada por sua
própria conta seria mais frutífera do que a ciência supervisionada pelo Estado (SORKIN,
1983).
Em suma, conforme bem afirma Rubião (2013), a universidade humboldtiana seria,
simultaneamente, o local de busca da verdade (autônoma e desinteressada) e o local de
reorganização e síntese do saber — de unificação do saber —, de maneira totalizante e
sistemática, contribuindo para a educação moral da nação e, por conseguinte, da humanidade
(aqui, leia-se, “europeia”). Assim seria feita a passagem da Universitas magistrorum et
scholarium (corporação de mestres e alunos) à universitas scientiarum (reunião de saberes),
isto é, da universidade medieval para a moderna.

27
Sobre o tema da “liberdade acadêmica”, sugerimos a leitura de Rüegg (2004) que demonstra as tensões entre
intelectuais, estudantes e o Estado prussiano em torno deste princípio e como a ideia de liberdade de pesquisa,
ensino e estudo proporcionou certa primazia do modelo humboldtiano em relação ao napoleônico quanto à sua
influência em outras partes do mundo (sua influência é vista, inclusive, na França).
78

A importância do modelo prussiano de universidade se depreende de sua vasta


influência posterior nas reflexões sobre a universidade, bem como das tentativas de replicação
institucional em outros lugares, notadamente em algumas das mais antigas universidades
estadunidenses (GINGRAS, 2003).
Hohendahl (2011) e Östling (2018) chegam a falar no “mito Humboldt” ao lidarem
com a construção de sua imagem, recepção, transmissão e apropriação de suas ideias e
práticas. De fato, ao longo do século XX, o modelo de universidade humboldtiano foi
evocado como precursor de diversos projetos político-educacionais, dos mais conservadores
aos reformistas e progressistas.
Se convencionou associar a universidade humboldtiana com a “universidade de
pesquisa”, em uma perspectiva mais utilitária, instrumental, como se o projeto de Berlim
fosse tão somente fundar uma universidade preocupada com o progresso científico e o
desenvolvimento econômico da nação. Porém, como vimos, nenhum novo conhecimento
deveria estar destituído da reflexividade, de uma preocupação com a unidade do
conhecimento e de educação moral da nação e da humanidade, por meio da realização da
Bildung.
Esta projeção do modelo humboldtiano como aquele que finca as raízes
epistemológicas do cientificismo moderno é objeto constante de crítica pelos teóricos
decoloniais, notadamente no âmbito da colonialidade do saber.
É importante lembrar que o surgimento das ciências humanas e sociais, desde o seu
início, se deram sob a égide do paradigma científico como fundamento de empreitadas
coloniais. Neste processo, disciplinas como antropologia, calcadas no racismo científico (e
epistêmico) e no evolucionismo, confrontaram outros sujeitos e outras epistemologias, os
inserindo em uma hierarquia de valores, os tratando como meros objetos de conhecimento,
isto é, como objetos sobre os quais o conhecimento científico deveria intervir para “salvar”.
A esse discurso salvacionista que considera o conhecimento científico como a única
forma legítima de acesso ao mundo, chamamos de cientificismo, a principal marca herdada da
universidade moderna (GROSFOGUEL, HERNÁNDEZ; VELÁSQUEZ, 2016).

2.3 A universidade napoleônica

O epicentro da Revolução Francesa não iria passar incólume no âmbito educacional. A


França, neste período de grande agitação social, instabilidade política e institucional, de
divisões internas e ameaças externas, buscou refundar o Estado, a partir de novos marcos
políticos, filosóficos e econômicos que influenciariam todo o continente europeu e suas
79

colônias. Neste processo a educação, — de maneira mais ampla, a formação humana — foi
uma questão central que impactou radicalmente a história da universidade.
Em 1789, havia na França 27 universidades. A Assembleia Constituinte, por meio de
leis promulgadas entre 1789 e 1790, colocaram os bens das corporações e congregações nas
mãos do Estado, para serem administrados pelos departamentos (BORRERO CABAL,
2008b).
As universidades se tornaram suspeitas por serem instituições oriundas do Antigo
Regime. Precisavam, assim, serem refundadas ao lado de outros arranjos institucionais, ao
ponto de se tornarem coadjuvantes no arcabouço educacional francês.
Assim que, em lei de 1793, foram criadas as Escolas Centrais (distribuídas em todo o
território) com objetivos formativos ambiciosos, equivalente a instituições de educação
superior: funcionar com um sistema de classes e cátedras, correspondentes a três blocos de
cursos: história natural, desenho e línguas; matemática e ciências físicas e químicas; letras,
historia, política, agricultura e comércio. Porém, foram extintas em 1803. No mesmo ano,
criaram o Museu de História Natural, renomeando o antigo Jardim do Rei e a Escola Central
de Trabalhos Públicos, que depois seria renomeado como Escola Politécnica, responsável pela
formação para a indústria, o exército e a engenharia (CHARLE, VERGER, 2012; BORRERO
CABAL, 2008b).
Em 1794, a Convenção criou a École Normal — que depois se tornaria a Escola
Normal Superior — e, em 1795, um arranjo institucional que ia desde as escolas primárias, e
centrais, passando pelas escolas especiais até a culminância: o Instituto Nacional das Ciências
e das Artes, o qual substituiria as antigas universidades. Também foi fundada a Escola
Nacional de Música, a Biblioteca Nacional (com seus cursos de línguas orientais e serviços
consulares).
Surgiram outras instituições ainda, voltadas para a medicina, para as minas, para a
carreira militar, etc. Impressiona a diversificação e especialização de cada uma delas,
acompanhando o movimento progressivo de especialização das ciências. Fato principal é que
o próprio termo universidade foi extinto, abolido, algo que nunca ocorrera em outro país. Para
Charle e Verger (2012), o que ocorreu na França foi único em relação aos outros modelos,
pela busca da ruptura radical com o passado medieval, o Antigo Regime.
Como dito, as universidades foram extintas sob a alegação de estarem ligadas à velha
aristocracia (CHARLE, VERGER, 2012; CUNHA, 2007; RUBIÃO, 2013). Com o golpe de
Estado de 1799, se instaurou o Consulado, cujo primeiro Cônsul foi Napoleão Bonaparte.
80

Sobre a época, Borrero Cabal (2008b) diz que a situação educativa era confusa e caótica,
tendo em vista o fracasso das Escolas Centrais e a existência frágil da Escola Normal.
O esforço em se criar instituições educativas que dessem conta da formação do
indivíduo — do cidadão —, ao mesmo tempo em que se diferenciassem da velha estrutura
universitária, gerou todo tipo de proposta que se debatiam entre uma educação igualitária,
orgânica e hierarquizada (muito próxima da tradição histórica universitária) ou uma educação
fragmentada em instituições profissionalizantes e pragmáticas.
Como se sabe, ganhou primazia a segunda opção. De fato, sob o governo de Napoleão
Bonaparte, a educação passou a ser pensada e gerida a serviço do Estado (as escolas centrais,
os liceos e a universidade). O Ensino Superior, mais precisamente a Universidade Imperial
(1806), foi reconstruída com três preocupações, sintetizando aqui as ideias de Charle e Verger
(2012) e Cunha (2007): oferecer ao Estado pós-revolucionário quadros burocráticos,
demolindo a universidade antiga como formadora de intelectuais de uma classe em declínio;
controlar a formação de acordo a nova ordem social instituída e obstaculizar o surgimento de
novas corporações profissionais.
Agora, a universidade (o Estado) deteria o monopólio da formação, da diplomação, da
do concurso e da classificação daqueles que seriam autorizados para o exercício de uma
profissão, tendo como ponto centralizador, Paris. Mais ainda, a Universidade Imperial
encabeçaria o ensino e a educação pública em toda a França (BORRERO CABAL, 2008b).
Dessa forma, o termo “universidade” toma um sentido novo, relacionado ao monopólio da
instrução pública, por meio de uma corporação de professores criada e mantida pelo Estado.
Neste sentido, consideramos como uma das principais características da universidade
napoleônica o “estatismo”, isto é, a relação necessária entre universidade e a chancela e
regulamentação estatal. Esta vinculação tornou-se lugar comum e espraiou-se pelo mundo até
os dias atuais28.
Como vimos, as universidades constituídas em processos decoloniais muitas vezes são
criadas e desenvolvem as suas atividades à revelia (às vezes em oposição) ao Estado. Em
certo sentido, muitas se constituem dentro de processos anti-estatais (como a Unitierra e a
Univerisdad Amawtay Wasi, no Equador).
A crítica decolonial permeia esse anti-estatismo ao sublinhar a importância das formas
comunitárias de organização da vida, as quais, não poucas vezes, transcendem as
regulamentações do Estado. Nesse sentido, é possível existir escolas, museus, universidades,
28
Mesmo com a constituição e expansão do mercado de Ensino Superio pelo mundo, as universidades
particulares que surgiram (e surgem), precisam obedecer à regulamentação do Estado e se submeter às suas
determinações.
81

entre outros arranjos institucionais (inclusive não concebidos na lógica Ocidental), desde que
assim sejam considerados pela comunidade que os constitui.
Outrossim, é possível existir uma universidade — a universidade fronteiriça — sem a
obsessão do modelo napoleônico pelo curricularismo, pela segmentação disciplinar, pela
hierarquização dos papéis entre professor e alunos, e pela atribuição de títulos acadêmicos.
Rüegg (2004) considera uma das mais importantes consequências desse processo a
“profissionalização” da carreira universitária. Com a unificação dos Estados, a intensa
burocratização, o professor torna-se uma espécie de servidor público vinculado à burocracia
estatal. Isso pode ser constatado através do papel da Escola Normal Superior francesa,
responsável por formar os professores de ensino superior, de forma a que servissem à
educação pública dentro de uma estrutura hierárquica pré-definida.
Borrero Cabal (2008b) chega a afirmar que não se trata da Universitas magistrorum
et scholarium, cujo prestígio era o saber, mas de um Corps quase militar, imóvel e obediente
aos ditames imperiais, sem missão científica, o que é corroborado por Charle e Verger (2012),
os quais afirmam que o essencial de pesquisa ou inovação se concentra em alguns cursos da
Sorbonne ou do Colégio de França, ou no seio das sociedades eruditas, sendo mesmo a
ciência instrumentalizada a serviço do Estado.
Na universidade de modelo napoleônico, o professor não está envolvido com
investigação científica, mas com a atribuição de títulos e graus de bacharelado e licenciatura.
Rüegg (2004) chega a afirmar que se trata de um modelo submetido a uma estrita disciplina
militar, organizado e controlado por um despotismo esclarecido que governa até o último
detalhe do currículo, a atribuição de graus, a conformação das visões com as doutrinas oficiais
e mesmo os hábitos de seus partícipes.
Darcy Ribeiro (1969, p. 41) apresenta um olhar mais positivo em relação à
universidade napoleônica. Para o antropólogo, “nos quarenta anos seguintes à reforma
napoleônica, a França conheceu o maior período de florescimento intelectual e científico de
sua história”, não ignorando, porém, a tensão entre a racionalização burocrática, o excesso de
formalismo e centralização e a criatividade cultural e inovação.
A autoridade máxima da universidade era o Grand Maître, com poderes ilimitados de
nomear professores, administradores, conselhos acadêmicos, conceder bolsas de estudo,
licenças, redigir Estatutos, etc. Os professores compunham um corpo laico, porém com ethos
que poderia ser remetido ao religioso, ao ponto de o imperador ordenar o celibato do corpo
docente, de forma a que se dedicassem exclusivamente às suas funções acadêmicas (MINOT,
1991; RUBIÃO, 2013).
82

Em sua estrutura acadêmica, a Universidade Imperial tinha as faculdades profissionais


(Direito, Medicina e Teologia) e as faculdades acadêmicas (ciências matemáticas e físicas, e
letras) que atribuíam três graus acadêmicos: o bacharelado, a licença e o doutorado. Nas
faculdades profissionais estava a essência do ensino superior, desde que voltadas para a
utilidade das aplicações práticas. Charle e Verger (2012) demonstram o elitismo da
universidade, bem como as hierarquias sociais que perpassavam o público frequentador
dessas faculdades.
Borrero Cabal (2008b) defende que a universidade napoleônica tinha como meta a
unidade cultural, política e pedagógica da Europa. De fato, Napoleão pensou uma
universidade para todo o território europeu, pensando a educação das massas de maneira
direcionada, política e pedagogicamente. Mesmo não concretizando seu intento geopolítico, o
modelo napoleônico de universidade acabou influenciando na constituição de outras
instituições universitárias, na Espanha, Áustria e no continente latino-americano, isto é, como
um instrumento de planejamento social e direcionamento estatal da educação pública
(RUBIÃO, 2013; RÜEGG, 2004).
2.4 A universidade liberal: o modelo inglês

No início do século XIX, o Reino Unido contaria com uma universidade na Irlanda
(Trinity College), quatro na Escócia (Aberdeen, Edinburgh, Glasgow, St. Andrews), duas na
Inglaterra (Oxford e Cambridge) e nenhuma no País de Gales. Entretanto, poderíamos apenas
falar de “modelo inglês” em um sentido genérico, se ignorarmos que havia uma variedade de
instituições com poucas conexões internas, pelo menos até o final do século XIX. (RÜEGG,
2004).
As principais universidades britânicas — Cambridge e Oxford — ainda mantinham a
estrutura medieval das corporações autônomas. Rüegg (2004) afirma, porém, que essas
instituições logo sentiriam os influxos das reformas universitárias alemães, mesmo com todos
os movimentos de oposição.
De certa, forma, a dupla “Oxbridge” implementaria os valores da universidade
moderna de maneira mais eficiente que na Europa continental, tendo em vista a manutenção
de suas autonomias corporativas e colegiadas em relação às injunções estatais e seriam as
propulsoras da construção do sistema universitário britânico. Porém, isso não se deu de forma
linear, mas em meio a muitas resistências e debates.
Castanho (2002) e Ribeiro (1969), por exemplo, consideram o modelo inglês elitista e
aristocrático, tendo por parâmetro as reflexões do Cardeal Newman (2015) para o qual a
83

universidade teria dois objetivos principais: salvaguardar os valores tradicionais, de forma a


sistematizar o conhecimento de maneira universal; e formar a elite da aristocracia britânica.
Newman (2015) se opunha à profissionalização do saber por parte das universidades,
exigência cada vez maior em uma sociedade que se industrializava. Outrossim, era crítico do
modelo humboldtiano, o que não impediu o influxo deste modelo na transformação das
universidades inglesas (e na criação de outras, como a Universidade de Londres).
A Inglaterra, segundo Ribeiro (1969), possuía, assim, uma formação de alto padrão,
em Cambridge e Oxford, ladeada por formações mais técnicas, específicas e profissionais em
universidades emergentes, o que fundou, historicamente, uma hierarquia de valor entre tais
instituições.
Newman (2015) se preocupava com o que chamava de “educação liberal”, isto é, a
universidade como espaço de ensino, de formação intelectual do indivíduo e de formação do
espírito público, isto é, do gentleman (RUBIÃO, 2013). Em suma, a universidade deveria se
preocupar com uma espécie de “cultura geral”, que possibilitasse a sistematização dos
conhecimentos, o alcance da verdade, na qual o conhecimento seria um fim em si mesmo.
Desta forma, Newman (2015) retoma uma preocupação kantiana, em relação a
universidade, na esteira de uma secularização progressiva da instituição, sem abrir mão, como
Cardeal que era, de atribuir um papel importante à Teologia. Para Rubião (2013), Newman
antecipa um debate que irá marcar o século XX em se tratando de formação universitária: o
conflito entre ciências naturais, especialização e conhecimento utilitário e humanidades
(educação liberal), cultura geral e conhecimento desinteressado29.
O modelo inglês, enraizado neste debate, diferencia-se dos demais em alguns aspectos,
conforme Castanho (2002, p. 36):

1) A universidade é escola, voltada para o ensino, não centro de pesquisa,


interessado na produção de conhecimento. 2) O saber com que a universidade
lida já vem constituído, pronto, não como algo a se construir e avançar. 3) A
universidade, ao ensinar, está prestando um serviço à sociedade: há, portanto,
uma sobreposição entre ensino e extensão; 4) O serviço que a universidade
presta à sociedade é a preparação de sua elite dirigente; 5) Ao mesmo tempo, a
universidade é guardiã dos valores da tradição, sobre os quais assenta a
sociedade.

Com a Revolução Industrial, porém, o modelo inglês se submeteu às demandas


emergentes do modo de produção capitalista. De fato, A literatura especializada atesta que, no
século XIX, mais precisamente no Reino Unido, surgiu, pela primeira vez, o termo “Extensão

29
C. P. Snow (2015), já no século XX, irá retomar esse debate ao abordar as “duas culturas”: ciências x
humanidades.
84

Universitária”, também denominado de “Estudos Extramurais”, enquanto uma nova função da


universidade, voltada para a educação continuada e a educação de adultos, contexto em que
surgiram as “universidades populares” (GOMES; OLIVEIRA, 2020).
O objetivo era de atender às demandas de força de trabalho da Revolução Industrial,
mediante a formação técnica de operários e operárias fora de suas jornadas de trabalho; ativar
mecanismos reformistas e compensatórios de educação em meio ao conflito classista que se
instaurava, bem como a atualização dos conhecimentos daqueles que já haviam passado pela
universidade, ou seja, estender os conhecimentos universitários a um número maior de
estudantes.
Dessa forma, tanto o debate em torno da “educação liberal” nas universidades, de
matiz newmaniana, quanto à ideia inicial de Extensão Universitária podem ser os grandes
legados do modelo inglês, que influenciaram a constituição de universidades em outros
territórios, notadamente nos EUA e na América Latina.
A crítica decolonial ao modelo ingles gira em torno dessas duas contribuições. A
primeira, mais candente, contesta o elitismo característico das universidades. De fato, a
decolonialidade alimenta-se da inserção de grupos sociais invisibilizados, de suas formas de
ver o mundo, seus valores, suas tradições, conhecimentos e práticas (WALSH, 2015, 2017).
A universidade em perspectiva decolonial, neste sentido, abre-se a estes grupos
sociais, para ser povoada, construída, semeada por suas formas de habitar o mundo. Para além
de formar uma elite governante, dentro de uma estrutura estatal, a universidade decolonizada
preconiza a formação do sujeito dentro de uma estrutura de convivencialidade, junto à sua
comunidade e aos seus territórios.
Mesmo as universidades tradicionais que se abriram a grupos sociais marginalizados,
por meio das cotas racias por exemplos, criaram a possibilidade de incorporar a experiência
negra e indígena, não apenas na formulação do conhecimento, mas também na busca de
soluções para os problemas que enfrentamos (BERNARDINO-COSTA, GROSFOGUEL,
2016).
Quanto à Extensão Universitária, a crítica decolonial a atravessa, uma vez que essa
dimensão da universidade, desde o seu início, se pautou por uma perspectiva civilizatória,
salvacionista e colonizadora. Se em seu surgimento, na Inglaterra e EUA, intentou educar
trabalhadores e agricultores de maneira a torna-los mais “civilizados” e “cultos”, ao longo de
sua história passou por diversas fases superpostas: de atividades assistencialista a atividades
induzidas por políticas públicas do Estado.
85

Nogueira (2019) ressalta que a extensão universitária, no entanto, pode ser um


importante instrumento de decolonização da universidade, trazendo a interculturalidade, o
diálogo de saberes e a diversidade político-curricular para dentro de seus muros. Em suma,
por meio da extensão universitária é possível resistir e atuar na desconstrução e na
decolonização do imaginário e na valorização dos saberes locais e regionais do chamado “Sul
Global”.

2.5 A universidade reformista

No início do século XX, um movimento de reforma universitária se espalhou pela


América Latina, tornando-se um importante ator coletivo em uma região ainda dominada por
uma tradicional oligarquia.
Devido a sua importância como um processo que — da Argentina ao México —
ajudou a questionar a estrutura da instituição universitária e repensar suas formas de
organização, entendemos que tal movimento contribuiu para a emergência de um modelo
universitário30, fundado em uma crítica radical da universidade, afinada com as demandas
regionais que emergiam. Nesse sentido, o grito de Córdoba representou a contribuição mais
original da América Latina ao desenho de um esquema universitário próprio, pelo menos até o
surgimento dos primeiros projetos universitários decoloniais do final do século XX.
Em 1918, uma rebelião estudantil teve lugar em uma das mais antigas universidades
latino-americanas: a Universidade de Córdoba. Os estudantes publicaram o “Manifesto
Liminar”, talvez o texto mais analisado em matéria de estudos sobre a universidade na
América Latina.
Em seu início, o Manifesto afirma:

As universidades foram até agora o refúgio secular dos medíocres, a renda


dos ignorantes, a hospitalização certa dos inválidos e, o que é ainda pior, o
local onde todas as formas de tiranizar e de insensibilizar encontraram a
cátedra que as ministrasse. Desse modo, as universidades chegaram a ser o
reflexo dessas sociedades decadentes que teimam em oferecer o triste
espetáculo de uma imobilidade senil (BARROS, et al. [1918] 2017, p. 27)

Analisar, porém, o Movimento de Córdoba isoladamente, como algo restrito aos


muros da universidade, seria um erro grosseiro. Como temos visto, a universidade transborda
relações contraditórias, modificando e sendo modificada pela sociedade em que está inserida.
30
É importante ressaltar que Rubião (2013), considera que um “modelo universitário latino-americano” emergiu
neste momento histórico, mesmo que pouco conhecida no “mundo”, ressaltando como ele não foi referenciado
em obras essenciais para os estudos da universidade como “Révolutions de l’université” de Alain Renaut e “Os
usos da Universidade” de Keer. Creditamos essa invisibilizaçao, também, a certa geopolítica do conhecimento
que privilegia autores e processos sociais localizados no “Norte Global”.
86

Como as universidades latino-americanas de uma forma geral, a Universidade de


Córdoba ainda era o espaço de formação dos herdeiros dos grandes proprietários de terra.
Quando não iam para a Europa se “bacharelar”, os filhos dos estancieiros da região iam para
Córdoba, La Plata, Buenos Aires, Tucumã ou Santa Fé.
Entre as três instituições, porém, a Universidade de Córdoba era a menos afeita às
mudanças modernizantes. De fato, conforme Bellot (2018) atesta, Córdoba permanecia com
características coloniais.
Desde sua origem, foi uma universidade estreitamente vinculada à Igreja Católica, por
meio da Ordem dos Jesuítas. No início do século XX, mesmo com a consolidação de teorias
científicas (física newtoniana, darwinismo) e as mudanças que alteraram o panorama das
universidades na Europa, a Universidade de Córdoba ainda tinha como ponto central de seu
currículo a Teologia, o Direito Canônico e o Direito Público Eclesiástico (BELLOT, 2018;
RUBIÃO, 2013).
Porém, a sociedade argentina passava por mudanças radicais e as universidades
deviam espelhar este fenômeno. Mudanças internacionais nas correlações de forças político-
econômicas, derivadas da Primeira Guerra Mundial; a expansão do capitalismo na América
Latina, com o crescimento do mercado consumidor e da entrada de imigrantes europeus; a
urbanização; a formação de uma classe média urbana, com profissionais liberais e uma
burguesia incipiente, além da constituição de um proletariado urbano, que, juntos, traziam
ideários (socialismo, anarquismo, liberalismo) já estabelecidos no velho Continente foram
fenômenos que atravessaram os muros universitários (BONDY apud BERNHEIM, 2008).
Assim, com as mudanças sociais, uma outra estrutura se erguia, com pressões
coletivas forjadas na nova dinâmica da vida econômica argentina, criando necessidades novas,
como a de uma educação superior ampliada. No Movimento de Córdoba cruzavam-se as mais
diversas correntes de pensamento: liberalismo, anticlericalismo, socialismo, anarquismo,
neoidealismo bergsoniano, entre outras, o que evidencia que não foi um movimento unívoco,
mas controverso, no qual os próprios reformistas entravam em embate e cultivavam objetivos
diversos ao longo do processo (dos mais radicais, aos mais reformistas). (BERNHEIM, 2008).
Artigos e manifestos influenciados pela Internacional Socialista, pela Revolução
Russa, versando sobre desigualdade econômica, democracia, a inserção da classe média nas
instituições de ensino superior surgiram por toda parte. Há dois elementos interrelacionados,
porém, que gostaríamos de destacar e, pensamos, foi impactante para se pensar a universidade
87

desde e para a América Latina: o americanismo e a denúncia do imperialismo 31 que


inspiraram o movimento.
Rubião (2003) cita a lapidar sentença de José Martí que evoca o grito de Córdoba: “a
universidade europeia há de ceder à universidade americana”. Ademais, já no Manifesto de
1918, os jovens de Córdoba deixavam claro o sentimento de estarem vivendo uma “hora
americana” (BARROS, et al. [1918] 2017), isto é, um momento em que se deveria deixar de
respirar ares estrangeiros em prol da construção de uma cultura própria, que não fosse simples
reflexo ou transplante da cultura europeia ou estadunidense.
Essa busca por uma “originalidade latino-americana” era a expressão final, corolário
de da busca por superação de todas as formas de dependência, principalmente em relação a
uma Europa em ocaso, imersa na Primeira Guerra Mundial, e em relação aos Estados Unidos
da América que, com a Doutrina Monroe, tentava espraiar a sua influência por todo o
continente americano.
Tais posicionamentos estão presentes em figuras que se destacaram no movimento
como Roca (que redigiu o Manifesto Liminar), Ingenieros, Gabriel del Mazo, Mella e
Mariátegui (muito evocado, atualmento, como um intelectual decolonial) que a explorou em
suas reflexões em torno da educação e da revolução socialista em articulação com os povos
indígenas (LEHER, 2008).
Intelectuais modernistas como Rubén Dario e José Martí denunciavam o que seria uma
cultura europeia decadente, em prol da constituição de uma identidade próprio para o
continente latino-americano, uma espécie de “nova civilização” (RUBIÃO, 2013) que poderia
surgir a partir de uma “tomada de consciência” inaugural do povo latino-americano.
Por isso, considero o principal valor do modelo que emerge do reformismo cordobiano
o “americanismo”, isto é, a defesa de uma identidade latino-americana e de sua suposta
originalidade no que diz respeito ao encontro de soluções locais para nossas crises específicas.
Este valor é utilizado pelos reformistas como uma expressão de afirmação latino-americana e
de busca de autonomia em relação ao domínio cultural e aos interesses econômicos
estadunidenses e europeus.
Embora represente um avanço em relação à dependência secular que nossa região
sofre em relação aos seus colonizadores, o americanismo da Reforma de Córdoba ainda é
constituído em chave eurocêntrica. Os intelectuais latino-americanos (talvez com exceção de

31
Bergel (2008) destrincha as redes transnacionais da Reforma Universitária e explicita como esse caráter anti-
imperialista e de autoconsciência latino-americana foi impulsionado por agregações políticas e culturais,
propiciada, em parte, por escritores modernistas que reforçaram a construção de intercâmbios em escala
intercontinental.
88

Mariátegui) , na busca pela sua identidade latino-americana, pouco deram atenção as formas
de organização, saber e prática dos assujeitados pela comunidade, notadamente os povos
indígenas e negros escravizados.
De fato, esses sujeitos não participam do movimento reformista, tampouco a eles é
dado o direito de participarem dos debates em torno da universidade. Desta forma, o
americanismo faz parte da retórica de homens brancos, intelectuais de vivência eurocêntrica,
que a partir dos influxos de teorias e movimentos políticos-sociais ocorridos na Europa,
iniciam uma empreitada de modernização das instituições latino-americanas.
De certa maneira, podemos afirmar que o Movimento de Córdoba que se espalhou
pelo continente, foi o grito da elite “criolla” que emergia dos processos de industrialização
incipente da região as quais, entre seus protestos, não combatia radicalmente os processos de
colonização interna e colonialidade inerentes aos seus privilégios.
Nesse sentido, pensamos que a crítica decolonial da universida transcende as
demandas de Córdoba, uma vez que não se prende à busca de uma identidade latino-
americana. Ao contrário, a própria ideia de América foi forjada pelo colonizador, sendo uma
expressão de poder (MIGNOLO, 2007). A decolonialidade investe na práxis de sujeitos e
grupos sociais que, muitas vezes, não se arrogam uma identidade nacional ou continental, mas
uma identidade local, de origem comunitária ou base étnica. Desta forma, não se trata de
defender um americanismo, mas de defender práticas de existências pluriversas, que não
lidam com fronteiras políticas.
Para além do debate anti-imperialista e americanista, a partir do “efeito Córdoba”,
reflexões as mais variadas foram feitas em relação à universidade, algumas de teor já
conhecidas, como o debate em torno da autonomia universitária; outras, inovadoras, como a
questão da educação popular e da importância da extensão universitária para inserção social
da instituição, da popularização da universidade e de sua responsabilidade social. De fato,
como ensina Roca (1978): o grande achado da Reforma de Córdoba foi descobrir que reforma
universitária é o mesmo que reforma social.
Nesse sentido, ainda, Rubião (2013, n.p):

Mas não se tratava — e aqui encontra-se a novidade — de uma


transformação via desenvolvimento da ciência (como numa perspectiva
humboldtiana), nem por meio da formação de uma elite esclarecida (como
no caso do gentleman newmaniano), nem tampouco através de um ensino
superior voltado para as novas profissões (como vinha sendo o caso desde a
Revolução Industrial). A transformação da sociedade, imaginada por
Córdoba, passava por um “projeto de Nação”, do qual a universidade faria
parte, ou seja, havia necessariamente uma sincronia entre “democratização”,
89

“identidade”, “justiça social” etc., no âmbito sócio-político-econômico-


cultural do país (como um todo) e da universidade (como parte integrante).

Bernheim (2008) faz um apanhado dos principais pontos compreendidos pela


Reforma, não obstante as variadas discordâncias internas (fruto das correntes ideológicas
variadas que comporam o movimento), entre os quais cita: autonomia universitária e
financeira (política, de ensino, econômica e administrativa); eleição e participação em seu
corpo diretivo por parte da própria comunidade acadêmica; concursos periódicos para a
seleção de professores, fim das cátedras vitalícias; gratuidade do ensino; reorganização
acadêmica, criação de novas faculdades, modernização dos currículos e dos métodos de
ensino; assistência social aos estudantes e democratização do acesso à universidade;
fortalecimento da função social da universidade por meio da extensão universitária (projeção
da cultura universitária e preocupação com os problemas nacionais).
Neste sentido, os distintos interesses do Movimento de Córdoba abarcaram
preocupações com a organização e governo das universidades, com os problemas vinculados
ao ensino (métodos e currículos) e com a projeção político-cultural da universidade em outros
setores da sociedade, sendo esta última a marca singular da Reforma e a grande contribuição
para as reflexões em torno da instituição universitária.
Tais contribuições, no entanto, devem ser encaradas dentro de um marco histórico
específico: a tradição republicana que já tinha ganhado corpo em terras europeias. Assim, não
obstante a presença de um americanismo e anti-imperialismo ao longo das reinvidicações, a
universidade que emerge da Reforma de Córdoba, e que influenciará a constituição de outras
instituições pela América Latina, ainda é tributária de uma crítica que intenta construir a
autonomia da instituição em relação ao Estado e à Igreja.
Nesse sentido, como dito, representa uma aspiração permanente por autonomia, já
testemunhada em terras europeias, com clara influência de valores forjados na modernidade,
sem uma maior abertura a grupos historicamente alijados do espaço universitário na América
Latina: indígenas, negros, campesinos, ribeirinhos, entre outros.

2.6 EUA: caminhos para a universidade neoliberal

É inescapável recuperar esses “modelos” de universidade, mesmo que de maneira


sucinta como o fazemos, sem se defrontar com a influência desses modelos na constituição da
instituição universitária estadunidense. De fato, atravessada pelo modelo inglês e
humboldtiano, a universidade constituída ao longo da história dos EUA, possui matizes as
90

mais diversas, sendo praticamente impossível alcançar suas minúcias, caso se queira
descrever de maneira mais genérica essa história, risco que aqui assumimos.
As primeiras instituições de Ensino Superior estadunidenses foram fundadas no
século XVII. Charle e Verger (2012) afirmam que, no início, eram uma imitação das
universidades inglesas, o que é corroborado por Rubião (2013) e Rüegg (2004). Baseadas no
modelo dos Colleges residenciais, eram instituições de forte traço religioso, fundadas pelas
comunidades de origem, presididas por Conselhos constituídos por autoridades locais, com
função de formação de ministros religiosos e oficias das colônias. Assim, comunidades
religiosas de presbiterianos, congregacionais, batistas, anglicanos e reformadores holandeses
criaram faculdades afinadas com as suas respectivas demandas.
Se no início, tais Colleges aderiram ao currículo de latim, grego e matemática das
universidades antigas, logo foram influenciados por princípios iluministas. Preceitos
aristotélicos deram lugar à ciência experimental newtoniana e o empirismo, principalmente de
John Locke, o qual tornou-se leitura obrigatória nestas faculdades em meados do século
XVIII (HOELEVER, 2002).
Após a Guerra de Secessão, o rompimento com a Inglaterra exigiu que as instituições
existentes fossem colocadas a serviço da nova nação, isto é, com a missão de inculcar o
ideário republicano nas elites a serem formadas, de maneira a preservar a institucionalidade
do que compreendiam por democracia (basicamente a extensão da capacidade de se organizar,
eleger e votar dos homens brancos e proprietários). Outrossim, as instituições deveriam
investir em formações mais práticas, voltadas para a agricultura e para a mecânica (GEIGER,
2000).
É desta época, conforme Rubião (2013), o evento mais importante para a história das
universidades estadunidenses, até então: o caso Dartmouth College. A controvérsia girava em
torno do conflito judicial — que chegou à Suprema Corte — entre o Estado de New
Hampshire e o Council of Trustees, isto é, o Conselho que tinha por responsabilidade
administrar o College.
A grande questão a ser resolvida era se a instituição era pública, com estatuto
submisso ao Estado ou se era privada, isto é, desvinculada dos interesses das legislaturas. A
decisão, que considerou a instituição de natureza beneficente privada, consolidou um modelo
a ser adotado por quase todas as universidades estadunidenses nas próximas décadas, isto é,
um modelo pautado na cultura filantrópica, alimentado por doações, com certa autonomia
política e econômica em relação aos governos (RUBIÃO, 2013).
91

Apesar da predominância e difusão dos clássicos, as ciências naturais fizeram


incursões nos currículos das faculdades em meados do século XIX, sem que fosse
abandonado é bem verdade, o modelo britânico. Harvard, Yale e Dartmouth fundaram escolas
científicas separadas, instituições politécnicas, escolas militares e liceus agrícolas
introduziram o estudo científico aplicado e a engenharia. Outrossim, as faculdades
tradicionais começaram a oferecer aulas de química, botânica e física como parte uma
definição em expansão de educação das massas (RÜEGG, 2014).
Nesta quadra histórica, a partir de 1850, Harvard seria a precursora de uma reforma
no Ensino Superior estadunidense, a primeira reforma promovida pelo Estado no Ensino
Superior.
Como meio de estimular o desenvolvimento econômico e a modernização, em 1862, o
presidente Abraham Lincoln assinou o LandGrant College Act que distribuiu terras públicas
aos Estados confederados em apoio à criação de universidades públicas que, sem excluir as
disciplinas clássicas, iriam ensinar agricultura e artes mecânicas, ampliando a participação de
trabalhadores e agricultores (RUBIÃO, 2013).
As instituições universitárias se reorganizaram, também, sob a influência do modelo
humboldtiano de pesquisa32, sem ignorar as exigências utilitárias de uma nação que almejava
o desenvolvimento de suas forças produtivas. Rubião (2013) recorda que Charles W. Eliot
passou uma temporada em universidades alemãs, antes de assumir a presidência de Harvard.
Rüegg (2004) relembra que universidades como a de Michigan, já em sua origem, foram
estabelecidade sob o influxo do modelo universitário alemão. De todas, porém, foi a Johns
Hopkins University que se tornou o modelo de universidade de pesquisa estadunidense.
A Johns Hopkins atraiu os melhores alunos com bolsas de pós-graduação, investiu
em aparato de pesquisa, recrutou jovens pesquisadores para as fileiras de seu corpo docente e
estabeleceu o padrão para o doutorado americano (três anos de estudo especializado intensivo,
cujo corolário seria uma tese). Semelhante modelo reproduziu-se em Palo Alto, Califórnia,
com a fundação da Universidade de Stanford em 1887, e em Chicago, por meio do patrocínio
de John D. Rockefeller, com a fundação da Universidade de Chicago.
Tais instituições, dentre outras que surgiram, revolucionaram o ensino superior
americano ao apoiar pesquisas especializadas, criando departamentos, periódicos, sociedades
acadêmicas e editoras universitárias, nutrindo disciplinas cada vez mais especializadas que se
tornaram a espinha dorsal da vida acadêmica estadunidense (JENCKS, RIESMAN, 1968).

32
Shils e Roberts (2004) especificam os elementos do modelo humboldtiano que foram reapropriados pelas
universidades estadunidenses, explicitando ainda aquilo que foi deixado de lado.
92

Ressalte-se, ainda, a grande influência da “ideia de universidade moderna” de


Abraham Flexner, o qual preconizava que a busca pela ciência desinteressada e pela erudição
era o maior objetivo das universidades, excluindo de seu escopo quaisquer outros propósitos
como ensino técnico, profissional ou popular (FLEXNER, 1930). De certa forma, Flexner
tentava aliar modelo britânico e alemão, dando mais ênfase a este último, por causa de sua
capacidade de “produzir” conhecimento.
Porém, a vocação para a “pesquisa desinteressada” jamais suplantou certo
utilitarismo nas instituições de Ensino Superior estadunidenses. Vimos, por exemplo, o
surgimento da extensão universitária no modelo inglês. Entretanto, já na metade do século
XIX, nos EUA, a extensão universitária existia em forma de prestação de serviços, isto é,
extensão cooperativa ou rural, assim reconhecida com a promulgação da Lei Smith Lever, em
1914, responsável pela institucionalização dos programas de extensão dos Colleges agrícolas
estaduais, criando um serviço de extensão cooperado entre Estados e Governo Federal por
meio das universidades Land Grant College. (OLIVEIRA, 2013). Para Scott (2006), aliás,
esse caráter de “serviço público” da universidade é a grande característica da instituição
estadunidense.
Na década de 40 do século XX já há a massificação consolidada do sistema
educacional estadunidense, seja no âmbito da educação secundária, seja no Ensino Superior.
Neste momento, os desafios giram em torno de antigos dilemas (que nos chegam até hoje),
agora acentuados por uma sociedade industrial cada vez mais consolidada: as funções da
universidade se estendiam por diversos caminhos, indo da formação das elites em uma “alta
cultura” científica e humanística, até à formação em conhecimentos instrumentais das massas
para o desenvolvimento de uma força de trabalho qualificada para o mercado (SANTOS,
2004).
Com a expansão das instituições, as universidades de elite procuraram distinguir-se
do setor de massa emergente por meio de admissões, padrões acadêmicos elevados,
complexos e sofisticados de alunos e professores. Assim, à medida que esse processo se
desenrolou nas décadas posteriores, o Ensino Superior estadunidense evoluiria para um
sistema diferenciado de seleção (faculdades de elite de artes liberais e universidades) e setores
de acesso aberto (faculdades comunitárias, universidades municipais, faculdades públicas
regionais e, posteriormente, faculdades com fins lucrativos). (TROW, 2007).
Jaspers (1961), por exemplo, angustiado por essa realidade, tenta reabilitar uma
antiga ideia de universidade, mesmo que temperada por certa posição existencialista, pautada
pela busca da verdade, essencial para a realização das potencialidades do indivíduo, erigindo a
93

educação universitária como aquela que pode assegurar uma liberdade com significado para o
sujeito ir se constituindo existencialmente a partir de sua participação na vida intelectual.
Hutchins (1953), por sua vez, trata da industrialização, da especialização e de seus
efeitos destrutivos para a formação de uma comunidade de pessoas liberalmente formadas,
escrevendo em defesa da discussão informada como método de chegar à verdade nas
humanidades e da liberdade investigativa, bem como criticando o empobrecimento da
universidade que se limita a formar para ocupações profissionais. Assim, a universidade seria
um agente de transformação dos espíritos em um mundo materialista e corrupto, sem senso de
proposta e imerso no relativismo ético.
Harris (1970) denomina não somente Hutchins, mas Irvin Babbitt, Albert Jay Nock,
o já citado Flexner e Alexander Meiklejohn como os “cinco contra-revolucionários” do
Ensino Superior estadunidense. O que os uniria, não obstante pertencerem a diferentes
gerações, seria a crítica comum ao caráter utilitário e operacional do conhecimento cultivado
nas universidades, isto é, voltado para a educação profissional ou para a pesquisa submetida
ao cálculo dos interesses econômicos, industriais e tecnológicos.
Contribuição para o debate, que se distingui das anteriores, consideradas por seus
críticos como manifestações retrógrada de uma educação elitista que não teria mais lugar em
um mundo produtivista, é a perspectiva da Multiversity (Multiversidade), idealidaza por Clark
Keer.
Em 1963, Kerr — que, como muitos intelectuais que escreviam sobre o tema,
participava ativamente da gestão de uma universidade, como reitor — encarava as
transformações da universidade de pesquisa (do modelo humboldtiano) como algo novo.
Novos campi se espalhavam pelas paisagens estadunidenses, o Ensino Superior se
expandia exponencialmente (KEER, 1991). Com isso, as universidades desenvolveram uma
complexa teia de propósitos, que criou tensões crescentes entre os objetivos de utilidade
social e a busca por uma espécie de “pureza” acadêmica. Porém, para Keer (2001) a
universidade de seu país não era Oxford (modelo newmanianno), nem Berlim (modelo
humboldtiano), mas era uma instituição de tipo inédito, uma instituição multidiversa.
Constatava tal multidiversidade nas complexas relações estabelecidas pela
universidade e em suas múltiplas atividades que transcendiam o espaço físico do próprio
campus. A universidade, por meio de seus centros agrícolas, laboratórios, grupos de
investigação, centros de extensão, equipamentos culturais (museus, bibliotecas, etc.) prestava
serviços e, articulando-se com a sociedade civil e com os diferentes níveis de governo,
promovia profissionalização, educação liberal e pesquisa (KEER, 2001).
94

Multidiverso, portanto, porque a instituição universitária seria uma instituição


“pluralista” em vários sentidos, tendo múltiplos propósitos, fomentando vários centros de
poder, atendendo várias “clientelas”, constituindo-se em uma comunidade multifacetada,
marcada por numerosas visões, até conflituosas entre si (de Bom, de Belo e de Verdade),
fornecendo serviços a muitos mercados, “não adorando nenhum único Deus” em sua
existência (KEER, 2001, p. 103). Assim, a multiversidade seria o símbolo da universidade
estadunidense.
Rubião (2013) ressalta que Keer esteve diretamente envolvido nas manifestações
estudantis que chacoalharam a Universidade de Berkeley (Califórnia), do qual era reitor. Sua
reação granjeou-lhe críticas não somente à sua atuação política durante os movimentos de
contestação, mas também às suas reflexões em torno da universidade. Logo, seus críticos
criaram a alcunha de marketversity, sublinhando o que seriam os excessos utilitários de seu
modelo, bem como o conservadorismo de sua proposta, que chegou a denominar a
universidade como “indústria do conhecimento” (KEER, 2001).
Tais críticas vinham de todos os lados. O velho debate entre “profissionalização” e
“cultura geral”, “especialização” e “conhecimento unificado” que já mobilizara tantos
pensadores, emergia nas reflexões de autores mais conservadores, como Leo Strauss e Allan
Bloom, até mais progressitas, como Daniel Bell (1973) e Touraine (1969, 1972). Para Rubião
(2013), porém, a multidiversidade ia muito além do “profissionalismo” e da vinculação com o
mercado, abarcando, também, uma espécie de responsabilidade social, por meio das
prestações de serviços advocatícios e atendimentos médicos gratuitos.
Não obstante as resistências e críticas teóricas a essa associação entre universidade e
mercado, a dimensão econômica, utilitária, mercadológica sempre se impôs na história da
universidade estadunidense. Um país como os Estados Unidos, sem um Ministério da
Educação próprio (ou qualquer aparato burocrático estatal semelhante), deixou esse espaço
ser ocupado pela filantropia e, por conseguinte, pelos interesses privados.
Veblen (1993), no início do século XX 33, já se preocupava com a porosidade das
fronteiras entre academia e o mundo dos negócios. Segundo o autor (1993), as universidades
de pesquisa se contaminaram na época de sua formação no final do século XIX, não apenas
aceitando financiamento de capitalistas, mas também imitando a estrutura administrativa e
adotando os valores da cultura empresarial.
Para Veblen (1993), os interesses da educação e dos negócios são totalmente
divergentes, acreditando que uma universidade genuína seria aquela dedicada ao ideal da
33
A primeira edição de sua obra é de 1918.
95

busca do conhecimento e da verdade desinteressada formada por investigadores participantes


de uma comunidade autônoma (modelo humboldtiano). O autor afirmava que uma instituição
semelhante não existia nos EUA de sua época, uma vez que a ética dos negócios havia sido
incorporada na administração das universidades.
Nessa visão, a universidade é concebida como uma casa de negócios que lida com o
conhecimento comercializável, colocada sob a mão governante de um “capitão da erudição”,
cujo ofício é tornar os meios disponíveis para dar conta da maior produção possível. Assim,
tornando-se uma corporação com grandes fundos, a universidade é avaliada em termos de
investimento e faturamento. Daí a insistência na capacidade empresarial dos chefes
executivos das universidades e, portanto, também a ampla gama de deveres e poderes
empresariais que lhes incumbem nos Conselhos das Universidades (VEBLEN, 1993).
Nesta linha crítica de análise da histórida universitára estadunidense, tem-se também
a investigação de Barrow (1990), já no final do século XX, que expande as considerações de
Veblen (1993). Apresenta, assim, um trabalho complexo, que se debruça sobre o período de
1894 a 1928, fundamentado extensivamente nas teorias marxistas do Estado Moderno.
Em seu estudo, conclui que o controle das grandes fundações educacionais e
conselhos universitários foi uma extensão deliberada (e infeliz) do modelo burocrático
centralizado que passou a ser defendido por um grupo estabelecido de líderes industriais e
seus conselheiros educacionais (Carnegie Foundation, Rockefeller Foundation, General
Education Board, College Entrance Examination Board). Os líderes corporativos (e suas
fundações) influenciaram, portanto, a formação do próprio Ensino Superior estadunidense,
por meio da centralização, financiamento (filantropia) e gestão.
O estudo de Barrow (1990) é uma contribuição que insiste no estudo do fenômeno
educativo de maneira inseparável da compreensão da formação social dentro da qual está
situado. Mais particularmente, sustenta que as tentativas de compreender os propósitos e
estruturas de educação devem lidar com a dinâmica da classe relações nas sociedades
capitalistas e a centralidade do poder, dominação e ideologia.
Evidencia, também, como a autonomia universitária estadunidense é relativa, uma vez
que, desde o princípio, professores responderam à autoridade e poder dos administradores
universitários em termos de cumprimentos técnicos de sua função, abandonando demandas e
possibilidades democráticas muito mais profundas em relação à governança das instituições
educacionais. Talvez aí esteja, inclusive, a semente da crescente proletarização dos
funcionários universitários que se expande mundo afora.
96

Por fim, Barrow (1990) consegue nos mostrar como durante as três primeiras décadas
do século XX — portanto, antes da grande expansão do Ensino Superio nos EUA e no mundo
— a ideologia da classe dominante na América, daqueles que controlavam a recém-criada
estrutura econômica do capitalismo industrial emergente, exerceu uma poderosa influência
sobre Educação.
Essa ideologia, que o autor chama de "ideal corporativo" (BARROW, 1990, p. 30),
insistia que as questões educacionais foram reformuladas como problemas de organização
empresarial e de investimento de capital. Dessa forma, os problemas educacionais passaram a
ser prerrogativas dos empresários, e seus respectivos intelectuais e grupos técnicos-
administrativos.
Uma dimensão deste ideal pode-se constatar na liderança das universidades e
faculdades. Na virada do século, Barrow descobriu que o Ensino Superior estava sendo cada
vez mais governado por um bloco político de banqueiros, industriais e advogados
corporativos. Entre os resultados dessa mudança de poder e controle estava a imposição de
noções de eficiência e produtividade educacional modeladas no modelo corporativo de
organização empresarial.
Se tal movimento já se fazia sentir, de maneira embrionária, no início do século XX,
após a II Guerra Mundial, quando os EUA se consolidaram como potência econômica
geopolítica, tal “ideal corporativo” difundiu-se para todas as regiões do globo sob uma nova
racionalidade: a racionalidade neoliberal. Por isso, consideramos um valor essencial para a
constituição desse modelo o “corporativismo”34.
Há decadas, principalmente a partir dos anos 80, quando se tornou agenda de política
pública em vários países, muito se tem dito e escrito sobre neoliberalismo. De fato, sua
amplitude e complexidade cria dificuldades para um consenso em torno de sua definição. Não
à toa, Laval afirma no prefácio ao livro de Casara (2021, p. 4), que “o significante
‘neoliberalismo’ é usado de tantas maneiras que acaba por se tornar uma espécie de conceito
‘guarda-chuva’, um nome vago e impreciso”. Alguns autores até sugerem que seja um
conceito abandonado por sua imprecisão (DUNN, 2016; LAIDLAW, 2015; VENUGOPAL,
2015). Por isso, antes de avançarmos, é importante delimitarmos do que estamos falando,
quando utilizamos o termo “neoliberalismo”.

34
Corporativismo aqui compreendido como o estabelecimento da racionalidade neoliberal em todas as
dimensões da universidade (ensino, pesquisa, extensão, gestão, etc.). Não confundir com o conceito de
corporate university, surgido nos EUA durante a década de 90, para designar as “universidades” criadas por
empresas para incrementar a formação de seus funcionários
97

Historicamente, muitos consideram o Colóquio Lippmann, realizado em Paris, em


1938, como uma espécie de evento fundador da agenda neoliberal, uma vez que congregou
diversos intelectuais liberais interessados em discutir pautas em comum: a defesa do mercado,
dos mecanismos de preços como forma eficiente de organização da economia, a única
compatível com a liberdade individual; defesa do Estado de Direito; do sistema
representativo; e combate ao “coletivismo” como corolário das políticas do Estado de Bem-
Estar Social (GONZALBO, 2015)35. Nessa perspectiva, que consideramos mais restritiva, o
neoliberalismo é visto como uma “teoria das práticas político-econômicas” (HARVEY, 2008,
p. 12), encarnada na relação pragmática entre Estado e sociedade.
Nesse sentido, e com base em artigo escrito, em 2016, por três economistas vinculados
ao Fundo Monetário Internacional (FMI) (OSTRY, LOUNGANI, FURCERI, 2016), o
neoliberalismo seria uma agenda governamental, na qual seriam adotadas medidas de
incremento da concorrência e de redução do papel (das funções) do Estado, por meio da
desregulamentação e abertura dos mercados. Para este fim, isto é, reduzir a participação do
Estado, as principais estratégias seriam as privatizações e limitações dos gastos do governo
(austeridade), evitando deficits fiscais e buscando manter níveis baixos de endividamento
público.
Por outro lado, há quem veja o neoliberalismo como um fenômeno que ultrapassa as
dimensões da prática governamental/institucional e da lógica político-econômica. Para estes
teóricos, o neoliberalismo tornou-se, à luz do debate aberto por Michel Foucault no final da
década de 70, uma espécie de “razão de mundo” (DARDOT, LAVAL, 2016), que transcende
o significado da mera participação do Estado na economia, valendo hoje como a imposição de
uma lógica do capital sobre toda as esferas da vida, estruturando e ordenando as ações de
governantes e governados. Assim, a chamada “razão neoliberal” estaria norteando a
existência, a partir do cálculo econômico, impondo uma lógica de “empreendedorização” de
todos os aspectos da vida.
Segundo Casara (2021), essa racionalidade é detentora de uma normatividade e de um
imaginário corporativista, cuja premissa é o mercado como modelo ideal de todas as relações
sociais. Dentro desse modelo, toda sociabilidade é marcada pelo imaginário da concorrência
de todos contra todos e da ilimitação de todos os recursos. Nesse sentido, ainda:

Essa sensação de alucinação relacionada ao consumo, a que fica submetido o


indivíduo, se explica em razão da racionalidade neoliberal que contém em si

35
Para compreensão histórica do pensamento neoliberal, suas múltiplas vertentes e dinâmicas, consultar
Mirowski e Plehwe (2009).
98

um princípio de ilimitação. Em outras palavras, se tudo é calculo econômico,


se o homem tende a buscar a maximização diante das alternativas postas à
escolha, e se inexistem limites no meio em que se encontra, há uma
tendência a que toda a sociedade passe a ser regida pela busca da
maximização do capital humano e que todos os obstáculos ao lucro e às
relações mercantis entre indivíduos sejam percebidos como negavidades e
afastados, inclusive aqueles obstáculos tradicionais regidos por códigos
religiosos ou éticos (CASARA, 2021, p. 99).

Dentro desse imperativo, no qual tudo passa a ser regido pela lógica concorrencial, o
Estado e os próprios sujeitos tornam-se, eles mesmos, ativos mercadológicos. O Estado deixa
de ser um ente exógeno ao mercado global, e passa a ser concebido como uma empresa.
Jargões como “modernização” e “governança” tornam-se constantes, sequestrando a própria
noção de “direito” (previdenciário, à saúde, à educação, etc.) e “serviço público”, para os
transformar em bens de consumo (DARDOT, LAVAL, 2016).
Quanto aos sujeitos, são transformados em “empreendedores de si mesmos”, o que os
torna incapazes de sociabilidades que se constituem para além da lógica das vantagens
pessoais e da geração de lucro (CASARA, 2021). Assim, entregues à concorrência infinita, se
veem desconectados de qualquer outra estrura coletiva de pertencimento (principalmente a de
classe), sendo levados a assumir uma responsabilização individual pelas consequências de
suas escolhas, assumindo os riscos dos próprios fracassos ou progressos.
Brown (2016, 2019) traz contribuições relevantes para um debate mais atualizado,
cujo enfoque é a relação entre neoliberalismo e governos autoritários (iliberais) de extrema
direita que chegaram ao governo de inúmeros países nos últimos anos. Segundo Brown
(2019), há um núcleo conservador nos pensamentos de Hayek e Friedmann (e dos ordoliberais
de matriz alemã) que abriram as portas para forças antidemocráticas, de manutenção do status
quo e de ampliação do mercado, em detrimento dos aspectos sociais, que passaram a ser
demonizados.
Como a racionalidade liberal e o corporativismo se espraiam em todos os âmbitos, os
seus efeitos podem ser constatados na educação, notadamente, nas universidades, sendo o
modelo neoliberal de universidade o último grande modelo universitário que se constituiu e
tem se propagado por todo o globo, a partir do Ocidente (SHIN, 2018).
Como vimos, as universidades estadunidenses, desde suas origens, mesmo antes do
pensamento neoliberal sequer se constituir organicamente, estavam associadas a uma ética de
mercado. Na segunda metade do século XX, com a expansão do Ensino Superior e aumento
do número de matrículas em todos os continentes (CHARLE, VERGER, 2012), a crise
progressiva do Estado de Bem-Estar Social, e a maior integração entre entes internacionais,
99

mediante a globalização, o discurso neoliberal foi cada vez mais instrumentalizado como
técnica de gestão pública.
Com a globalização, mercados se ampliaram, redes transnacionais foram estabelecidas
em todos os âmbitos, impactanto a constituição de um mercado global em torno do Ensino
Superior36. O surgimento de tal “espaço transnacional de ensino superior” (MARTINS, 2021)
perpassa pela ideia de desterritorialização das universidades, principalmente das mais
valorizadas, que não mais se limitam aos sistemas nacionais de Ensino Superior, criando
filiais em outros territórios; o aumento da mobilidade estudantil; a criação de rankings globais
de avaliação, tudo dentro de uma lógica concorrencial, isto é, sob a égide de uma
racionalidade neoliberal.
Órgãos supranacionais como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento
Econômico, Banco Mundial, UNESCO, Organização Mundial do Comércio, junto com policy
makers, intelectuais (experts), think tanks e outros agentes, passaram a influenciar as políticas
educacionais nacionais de Ensino Superior, orientando-as segundo a mesma agenda.
Nesse contexto que Giroux (2014) critica o foco do Ensino Superior focado em testes
padronizados e em instrução baseada em habilidades acríticas. Para o educador, o modelo
educacional de hoje está centrado em valores corporativos e na dinâmica do poder, em
detrimento da formação dos alunos em cidadãos engajados e ativos.
Martins (2021) afirma que com a constituição de um espaço transnacional do ensino
superior, um novo vocabulário surgiu para se referir às universidades, o que indica “um novo
espírito” que as guia, em comparação às características institucionais históricas que marcaram
a sua existência. Termos como “sociedade do conhecimento”, “economia do conhecimento”,
“universidade empreendedora”, “universidade de classe mundial” passam a ser difundidas
globalmente por meio de artigos, relatórios institucionais, livros e artigos acadêmicos,
propagando um conjunto de valores e práticas que redefinem o papel das universidades em
âmbito global, uma espécie de colonização neoliberal dos modelos universitários.
Já na década de 60, este “novo espírito” se divisiva, fosse sob os auspícios da Teoria
do Capital Humano (SHULTZ, 1971; CARNOY, 2006), fosse sob o influxo de teorias que
ressaltavam o caráter utilitário e instrumental dos conhecimentos gerados na universidade.
Nesse último sentido, investigadores como Peter Drucker (1969, 1959), Bell (1973), Touraine
(1969, 1972), Castels (1994), cada um a seu modo, sinalizam para a emergência de uma

36
Não somente universidades, mas instituições de outras naturezas se expandiram nos mais diversos arranjos
institucionais, muitas das quais voltadas para a formação profissionalizante (Ex: Community Colleges, nos
Estados Unidos da América; Fachhochschule, na Alemanha; Institut Universitaires de Recherche, na França;
Polytechnics, na Inglaterra) (MARTINS, 2021).
100

sociedade do conhecimento, na qual as universidades tornam-se um fator de produção, por


meio da inovação, para a geração crescimento econômico.
Destacam-se, ainda, neste âmbito teórico, as investigações de Bok (1982, 2013) em
torno do papel da universidade em meio ao ambiente de mercado (marketplace), de Nowotny,
Scott e Gibbons (2001) e Gibbons et. al. (2010), acerca do que chamam “Modo 2” de
produção de conhecimento37, além de Etzkowitz (2008) com a sua teoria da triple hélice, na
qual analisa as relações estabelecidas entre governo, universidade e indústria na dinâmica do
processo econômico.
Crítica muito comum à essa racionalidade neoliberal nas universidades foi
empreendida por Freitag (1995), com clara repercussão, no Brasil, por meios dos estudos de
Chauí (2001). Para ambos, o excesso de racionalidade econômica fez com que a universidade
rompesse com o seu próprio passado, alterando a sua finalidade, historicamente constituída,
de formação do indivíduo, espaço autônomo de síntese e orientação crítica, para um processo
instrumental de realização de objetivos específicos, tendo uma lógica gerencialista, utilitária e
econômica por base.
Em suma, a universidade deixou de ser uma “instituição social”, fundada em dois
princípios — o reconhecimento público de sua legitimidade e atribuições e o princípio de
diferenciação, que lhe dava autonomia frente a outras instituições —, para se tornar apenas
mais uma “organização social”, autoreferente, imersa em uma lógica de competitividade,
gerida qual empresa, sob parâmetros de eficácia, planejamento, gestão, controle e lucro
(CHAUÍ, 2001).
Mais recentemente, à luz do referencial teórico que aqui investigamos, podemos
afirmar que o pensamento decolonial também desenvolve sua crítica ao neoliberalismo e ao
corporativismo, enquanto modelo civilizatório colonizador, cujos pressupostos derivam da
colonialidade (LANDER, 2005).
Segundo Grosfoguel (2008, p. 140):

Nos últimos 510 anos do “sistema-mundo patriarcal/capitalista


colonial/moderno europeu/euro americano”, passamos do “cristianiza-te ou
dou-te um tiro” do século XVI, para o “civiliza-te ou dou-te um tiro” do
século XIX, para o “desenvolve-te ou dou-te um tiro” do século XX, para o

37
Para Gibbons (2010), um dos principais consultores do Banco Mundial, no que diz respeito a assuntos
relativos ao Ensino Superior, e um dos mais recorrentes nos índices de citação (RUBIÃO, 2013), o Modo 2,
representativo de um novo modo de produzir conhecimento, possui como características: a porosidade das
fronteiras entre “pesquisa pura” e “pesquisa aplicada”; a transdisciplinaridade voltada para a resolução de
problemas; a diversidade organizacional, com a perda da hegemonia das universidades na produção do
conhecimento; reflexividade, social accountability, que transcende o mero “julgamento pelos pares”, cedendo
espaço a novos atores (políticos, econômicos, ambientais, etc) no equacionamento dos interesses de pesquisa.
101

recente “neoliberaliza-te ou dou-te um tiro” dos finais do século XX e para o


“democratiza-te ou dou-te um tiro” do início do século XXI.

Nesse sentido, o neoliberalismo é considerado mais uma faceta obscura da


Modernidade/Colonialidade, configurando-se como um modelo fundado em um discurso
universalizador, que se pretende moderno, científico, globalizado, apresentando-se como a
forma mais avançada de sociabilidade humana, cujos pressupostos no que diz respeito às
noções de ser humano, de riqueza, de natureza, de história, de progresso, de conhecimento,
entre outros, são naturalizados e considerados únicos (LANDER, 2005).
Como o pensamento decolonial se insurge contra discursos que monopolizam a noção
de verdade e cosmovisões que se pretendem universalizáveis, a crítica se estende aos mais
diversos aspectos da racionalidade neoliberal.
Coronil (2005, p. 51), por exemplo, preconiza que a globalização neoliberal redefine a
relação entre o Ocidente e seus “outros”, o que leva a uma mudança do eurocentrismo ao que
chama de globocentrismo. Para o antropólogo e historiador venezuelano o globocentrismo
decorre das transformações do eurocentrismo diante da globalização e da dominação
ocidental.
De uma forma mais difusa do que no eurocentrismo, no globocentrismo a
racionalidade neoliberal dissolve entes tradicionais de poder do Ocidente, como os Estados-
Nações, no mercado, criando poderes financeiros e políticos mais concentrados, embora
menos visíveis, uma vez que o mercado se apresenta como uma expressão de liberdade da
ação humana, e não como processo dominador.
Outrossim, como a racionalidade neoliberal contém uma pretensão de universalidade e
de ilimitação, por meio do qual busca a maximização do lucro, da financeirização, da
exploração, condenando tudo que limite a sua cupidez (CASARA, 2021), teóricos decoloniais
como Escobar (2003, 2014), ressaltam o papel de comunidades e movimentos de base étnico-
territorial (comunidades indígenas, de afro-descendentes, campesinos, etc.) em uma “luta
ontológica”, contra um projeto globalizador neoliberal que intenta construir “Um Mundo”, um
Universo38, em detrimento de um “Pluriverso”, com ontologias outras, de onde emergem
outras concepções de mundo.
Se o pensamento decolonial se insurge contra a racionalidade neoliberal, a confronta
também no âmbito da educação, notadamente em suas reflexões e críticas em torno da
universidade neoliberal e de seus valores corporativistas, construindo elementos para que
38
Para Escobar (2014), este “Um Mundo” é o da ontologia moderna, dualista, pois fundada na separação entre
natureza e cultura, mente e corpo, Ocidente e tudo o que não é ocidental. É o mundo povoado por “indivíduos”
que manipulam “objetos” e se movem em “mercados”.
102

possamos compreender quais as concepções em torno da universidade que emergem dessa


crítica.
Antes, porém, de nos debruçarmos sobre essas questões, a serem abordadas na quarta
seção, será necessário iniciarmos a apresentação do “estado da arte” temático, a fim de
situarmos propriamente o que vem sendo produzido sobre a relação entre a universidade e a
crítica decolonial, isto é, explicitando, mesmo que de forma panorâmica, os autores, os
objetos de pesquisa, a abordagem teórica, bem como os resumos dessas investigações39.

3 A CRÍTICA DECOLONIAL À UNIVERSIDADE (TABELAS E EIXOS


TEMÁTICOS)

A universidade é um objeto consagrado de pesquisa, nas mais diversas áreas do


conhecimento (sociologia, filosofia, educação, história, etc.). A partir da década de 50 do
século passado, o volume de pesquisas sobre a universidade cresceu sobremaneira por causa
do impacto da expansão do Ensino Superior em escala global — embora não de maneira
uniforme —, na própria produção acadêmica, ao ponto de constituir uma área específica de
estudos: os “Estudos sobre o Ensino Superior”. (SCHOFER, MEYER, 2005; SAMPAIO,
2019)
Diante disso, fazer um levantamento dos principais trabalhos sobre a universidade,
sem recortes temporais, espaciais, temáticos e sem a utilização de filtros apropriados, pode
gerar dificuldades analíticas e se tornar um inconveniente a qualquer pesquisador.
Sabemos que o “estado da arte” é uma revisão sistemática da literatura sobre um
objeto (ou sujeito) de pesquisa. Constitui-se, assim, em caminho essencial para que o
pesquisador identifique lacunas de conhecimento, bem como oportunidades de pesquisa que
ainda não foram exploradas, o que contribui, por sua vez, para que defina melhor o escopo de
suas pesquisas e delimite, de forma mais precisa, os problemas que irá propor.
É um balanço, portanto, que contribui para evitar a redundância entre pesquisas no
mesmo campo de conhecimento; para identificar quais abordagens metodológicas são as mais
adequadas, ou pelo menos as mais utilizadas, para a pesquisa em questão; quais as teorias ou
categorias teóricas são as mais recorrentes, bem como garante ao pesquisador a familiaridade
com o seu tema de estudo, a capacidade de validar os resultado de sua pesquisa e de ajudar a
constituir o seu subcampo de conhecimento (ROMANOWSKI, ENS, 2006; OLIVEIRA,
RIBEIRO, 2022).

39
Evidentemente, tendo em vista a limitação temporal e o farto corpus documental, as análises das pesquisas
coligidas serão realizadas de forma breve, sem maiores aprofundamentos, servindo apenas de orientação e
sustentação da relevância da presente pesquisa.
103

Como afirmam Oliveira e Ribeiro, sobre esses levantamentos sistemáticos em alguma


área de conhecimento (2022, p.2):
A pesquisa do Estado da Arte não trata somente de um compilamento de
textos e sua sinopse, vai além disso. Há que se saber o que se quer buscar em
um vasto campo de conhecimento, de modo que o levantamento das
produções acadêmicas seja ele mesmo uma forma de construção de um
subcampo de conhecimento que, em nosso caso, reúne pesquisas cujos
aportes teórico-epistemológicos remontam ao pensamento do coletivo de
intelectuais latino-americanos chamado Modernidade-Colonialidade (MC),
uma vez tendo a práxis pedagógica como ênfase

Se falarmos em estudos sobre o Ensino Superior, por exemplo, “saber o que se quer
buscar” representa dificuldades ainda maiores, pois em seu bojo teríamos que inserir uma
variabilidade de instituições, com naturezas, vocações institucionais e tipos de organização
político-jurídicas as mais diversas.
Longe de ignorarmos a diversificação atrelada ao crescimento do Ensino Superior,
também no Brasil (SAMPAIO, 2000), contemplada, aliás, no atual ordenamento jurídico
nacional, na presente pesquisa desejamos delimitar a nossa análise às instituições que são
consideradas universidades em seus respectivos países, a partir de seus próprios critérios
formais.
No caso brasileiro, por exemplo, qualquer instituição, para ser considerada uma
universidade deve ser uma autarquia e possuir como características fundamentais: a
autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial; se pautar
pela indissociabilidade entre o ensino, a pesquisa e a extensão, conforme leitura articulada do
art. 207 da Constituição Federal do Brasil com os arts. 51 a 57 da Lei nº. 9.394/96.
Porém, isto não é o bastante na presente investigação, uma vez que a própria
perspectiva decolonial, como vimos, amplia esta abordagem. Consoante esta perspectiva,
entendemos que devem ser trazidos para o levantamento do estado da arte as análises que
evocam experiências formativas de universidades que não são, necessariamente, reconhecidas
como tais pelo Estado, mas que são reconhecidas por suas comunidades e, por isso, podem ser
abordadas enquanto instituições universitárias.
Entre estas universidades “não oficiais”, com maior ou menor (ou nenhuma)
aproximação e reconhecimento estatal, podemos citar, por exemplo, não somente a Unitierra,
mas a Universidad Intercultural de los Pueblos del Sur40, no México; a Universidade

40
Projeto alternativo de educação não formal, localizado no México, voltado para a população indígena.
104

Amawtai Wasi41, no Equador; a Universidade Popular dos Movimentos Sociais 42, no Brasil; a
Universidade Ixil43, na Guatemala, entre outras.
Por isso, na construção deste estado da arte — assim como no de qualquer outro —
temos que tomar decisões e explicitá-las, seja com relação ao recorte temporal, às fontes
escolhidas, os descritores utilizados, as bases de dados consultadas, os eixos temáticos
delimitados. Somente assim poderemos lançar um “olhar para trás”, analisar caminhos
percorridos, passíveis de serem revisitados em outras pesquisas, de maneira a sistematizar e
organizar o acesso às produções científicas (ROMANOWSKI; ENS, 2006).
Primeiramente temos que circunscrever os descritores que orientarão a nossa busca,
tendo por diretriz a objetivo que nos propomos, isto é, analisar e compreender as contradições
e tensões que emergem das diferentes compreensões e projetos de universidade, a partir dos
movimentos de decolonização desta instituição, encarnados em práxis de sujeitos,
movimentos sociais e grupos étnicos.
Pensamos que os descritores “Universidade” e “Decolonialidade” 44, desde que
articulados, nos proporcionarão os resultados almejados. Desta forma, ao pesquisarmos
artigos, teses e dissertações, à luz dessas categorias correlacionadas, poderemos verificar, até
que ponto, já existe uma produção acadêmica consolidada em torno da crítica decolonial da
instituição universitária, isto é, a constituição de um subcampo de conhecimento (OLIVEIRA,
RIBEIRO, 2022).
De fato, o pensamento decolonial tem contribuído efetivamente para os estudos sobre
a universidade ao longo das últimas décadas, pavimentando uma estrada sinuosa, conectada e
interdependente, expressa em forma de problemáticas novas, de abordagens teóricas
diferenciadas e de olhares e perspectivas inéditas sobre a universidade.
Ademais, a presente tese, em matéria de estudos sobre a universidade se configura,
como uma tentavia de sistematizar, teoricamente, como a decolonialidade pode problematizar
as variadas concepções de universidade e, a partir de sua própria perspectiva, pode projetar
utopias, subjetividades, pedagogias, mundos outros, a partir de um outro ethos universitário
(PALERMO, 2015).

41
A Pluriversidad Intercultural Amawtay Wasi, foi fundada em 2004, na cidade de Quito, no Equador. Constitui-
se como uma proposta de educação superior conquistada pelo movimento indígena do Equador.
42
Nascida no Fórum Social Mundial, em 2003, é um coletivo voltado para articular conhecimentos e o
intercâmbio de experiências entre movimentos sociais.
43
A Universidad Ixil, localizada na Guatemala, busca resgatar e reforçar os saberes ancestrales da comunidade
Maya.
44
Para refinar a construção do estado da arte, utilizaremos, também, o termo “descolonialidade”, empregado por
alguns investigadores (as). Sobre as diferenças estabelecidas entre “decolonialidade” e “descolonialidade”,
consultar a segunda nota de rodapé de Walsh (2013).
105

Assim, tentaremos dar uma sistematização filosófica e uma organização a processos


históricos que já estão sendo efetuados e que podem ser constatados pelo volumoso acervo de
iniciativas universitárias que têm dado visibilidade a grupos sociais e problematizado a
colonialidade enraizada nas práticas acadêmicas. Com isso, pensamos constituir uma fonte de
atualização a outros pesquisadores.
Afim de evitar o risco de dispersão, destacaremos os trabalhos que, além de versarem
sobre decolonialidade (ou descolonialidade) e seus correlatos, também mobilizaram autores e
categorias pertencentes ao “giro decolonial” latino-americano supracitado. Não ignoraremos,
porém, certa literatura de origem africana e europeia, que também tem se debruçado sobre o
Ensino Superior, sem citar necessariamente autores latino-americanos e suas contribuições45.
Outrossim, não evocaremos os trabalhos supracitados (Quadros 1 e 2) que subsidiarão
nossa investigação.
Quanto ao recorte temporal, restringimos o levantamento a partir dos anos 2000,
período no qual, vimos no início, ocorreu um recrudescimento em pesquisas referenciadas
teoricamente pelo pensamento decolonial. Optamos, ademais, por apenas referenciar os
trabalhos, com seus respectivos resumos e conclusões, de forma panorâmica e cronológica
para, ao final, delimitarmos algumas considerações sobre o estado da arte construído.
Nesse quesito, tivemos que depurar as informações: resultados que apenas sugeriam a
presença dos termos “universidade” e “decolonialidade” no corpo dos documentos
encontrados, mesmo que de maneira tangencial, exemplificativa ou figurativa, não entraram
em nosso balanço. Nesse caso, buscamos, manualmente, consultando os resumos de cada
texto, lendo seus objetivos e propostas, a fim de delimitar apenas os achados que se
debruçaram de maneira focalizada em propostas de decolonização da universidade, nos seus
mais variados âmbitos.
Ressaltamos, por fim, que utilizamos bancos de dados nacionais e internacionais
(BDTD, CAPES, ANPED, CORE), os quais integram sistemas institucionais de produção
acadêmcia de artigos, teses e dissertações existentes nas instituições de ensino e pesquisa do
Brasil e de outros países. Com o auxílio destes sistemas informacionais, poderemos ampliar o
alcance da análise do estado conhecimento. Ressaltamos, porém, que será um levantamento

45
Pensamos que ainda está por ser feito um estudo que mapeie as origens africanas da crítica decolonial da
universidade e em qual ponto ela dialoga com a crítica latino-americana. A partir da construção deste estado da
arte, nos parece (ainda como hipótese) que o fenômeno do apartheid foi fundante para esta crítica, bem como o
pensamento de autores pós-coloniais como Frantz Fanon e Aime Cesáire, tendo o maior influxo de pensadores
da Rede, notadamente daqueles com maior inserção acadêmica nos EUA (Mignolo, Grosfoguel, Quijano, por
exemplo), somente na última década.
106

com limitações, tendo em vista que os trabalhados que não foram inseridos nesses repositórios
não serão acessados.

3.1 Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD).

O primeiro banco de dados consultado foi a Biblioteca Digital Brasileira de Teses e


Dissertações (BDTD46), que integra os trabalhos produzidos nas instituições brasileiras de
ensino e pesquisa. É uma base de dados estritamente nacional, voltada para a consolidação
das pesquisas de mestrado e doutorado do país, e que possibilita um panorama a partir desses
limites do tema objeto de interesse.
Ao usarmos os descritores encontramos o total de 956 (novecentos e cinquenta e seis
resultados). Após o refinamento, nos termos supracitados, porém, passamos para 16
(dezesseis resultados, entre teses e dissertações, conforme quadro abaixo:

Quadro 3 – Teses e Dissertações/BDTB

Título Autor Ano Instituição


A inclusão da
diversidade no
ensino superior: um
estudo da
Universidade Federal ALEXANDRE, Suelen de Universidade
2015
da Integração Latino- Pontes Nove de Julho
Americana (Unila)
na perspectiva das
epistemologias
contra-hegemônicas
Pluriversidad
Amawtay Wasi: Universidade
caminhos para a ROSA, Gilnei da 2016 Federal do Rio
Universidade na Grande do Sul
América Latina
Práxis decolonais na ARAÚJO, Olga Brigitte 2017 Universidade de
universidade: a Oliva de Brasília
experiência do
Mestrado
Profissional em
Sustentabilidade
junto a Povos e
Terras Tradicionais

46
Acesso em: http://bdtd.ibict.br/vufind/
107

da Universidade de
Brasília
Movimentos sociais,
universidade e
Universidade
produção de
REGHIM, Mariane Silva 2017 do Estado do
conhecimento: uma
Rio de Janeiro
perspectiva feminista
e decolonial.
Indígenas estudantes
nas graduações da Universidade
DOEBBER, Michele
UFRGS: 2017 Federal do Rio
Barcelos
movimentos de re- Grande do Sul
existência.
Colonialidade do
saber e a dinâmica
Universidade
universitária latino-
Federal da
americana: reflexões GÓES, Virginia Santiago
2018 Integração
desde e com o eixo dos Santos
Latino-
de Fundamentos de
Americana
América Latina da
UNILA
Des/obediência na
de/colonialidade da Universidade
MOURA, Eduardo Junio
formação docente em 2018 Federal de
Santos
arte na América Minas Gerais
Latina.
O pensamento de
Boaventura de Sousa
Universidade
Santos e suas HOMMA, Luana Hanaê
2018 Federal do
contribuições para a Gabriel
ABC
universidade
brasileira.
Descolonização
Universidade
epistêmica na SILVA, Nádia Maria
2018 Federal da
perspectiva negro- Cardoso
Bahia
brasileira
A construção de uma
razão decolonial nos
cursos de direito a
partir do pensamento
Faculdade de
complexo e do
COSTA, Lucas Kaiser 2019 Direito de
pluralismo jurídico e
Vitória
a busca pela
efetivação dos
direitos humanos
fundamentais
Impasses e CRUZ, Denise Gonçalves 2019 Universidade
possibilidades do da Federal de São
pensamento Carlos
decolonial no
108

Ensino Superior: o
caso de uma
universidade
colombiana
A participação da
Extensão
Universitária no
processo de Universidade
NOGUEIRA, Maria das
descolonização do 2019 Federal de
Dores Pimentel
pensamento e Minas Gerais
valorização dos
saberes na América
Latina
Tensões e conflitos
emergentes nas
práticas de
letramentos
acadêmicos em
Universidade
contexto SOUZA, Naiara Cristina
2019 Federal de
intercultural: Santos de
Goiás
construindo
caminhos de
resistência para
ocupar o território do
campo acadêmico.
Tensões subjetivas e
culturais na
experiência
identitária de ser Universidade
TEIXEIRA, Adrielle de
um/a estudante 2020 Federal da
Matos Borges
universitário/a Bahia
negro/a: a
emergência de um
Self Decolonial
Interculturalidade: Universidade
experiências e Federal
BOACIK, Daniela 2021
desafios da/na Tecnológica do
universidade Paraná
Escrita acadêmica
Universidade
insurgente: uma
SOUZA, Gilmara Machado 2021 Estadual de
análise do gênero
Goiás
“carta-artigo”
Fonte: BDTB.
É interessante identificar que as produções stricto sensu, mesmo diante de um recorte
temporal relativamente amplo, que vai do ano 2000 até 2023, tem o seu primeiro registro
109

nesta base de dados apenas em 2015, isto é, cerca de dez anos depois das primeiras incursões
do pensamento decolonial no Brasil47.
Trata-se da dissertação intitulada “A inclusão da diversidade no ensino superior: um
estudo da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila) na perspectiva das
epistemologias contra-hegemônicas”, de autoria de Suelen de Pontes Alexandre, apresentada
no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Nove de Julho.
As produções críticas sobre a universidade em perspectiva decolonial se multiplicaram
na segunda década do século XXI, seguindo a tendência de conjunto de uma maior
disseminação do pensamento decolinial (DIAS, 2021).
Quanto às regiões de origem, temos que, do total de achados (16), Sudeste (43,75%) e
Sul (25%) concentram mais da metade das produções identificadas. A região Nordeste
(12,5%) e Centro-Oeste (18,75%) são menos producentes, sobrepujando apenas a região
Norte que não apresenta nenhum achado. Esse é um dado que reflete a assimetria histórica na
origem e consolidação dos Programas de Pós-Graduação, predominantes nas regiões Sul e
Sudeste, em detrimento das outras, retrato de uma geopolítica do conhecimento interna do
país (DIAS, 2021).
Quanto à natureza institucional (pública e privada), temos uma predominância dos
registros oriundos de universidades públicas (87,5%), em comparação aos oriundos de
instituições privadas (12,5%), o que evidencia e reforça a pujança da pesquisa stricto sensu
nas instituições públicas e a sua maior porosidade, proporcionalmente, às teorizações e práxis
decoloniais.
Quanto ao recorte por sexo, temos uma predominância da autoria feminina (81,25%)
em comparação à masculina (18,75%). Dias (2021) sugere que a proposta transgressora do
pensamento decolinial, a sua inclinação ético-política para o soerguimento de alteridades
obnubiladas pelas Modernidade — incluindo-se a questão racial e de gênero — pode ser um
indicativo para a maior agência e autoria de mulheres.
Analisaremos, posteriormente, o que consideramos serem os eixos temáticos que
norteiam não somente os achados do IBTD, mas das demais bases de dados consultadas.

3.2 Catálogo de Teses e Dissertações da CAPES

47
Segundo Dias (2021), as primeiras incursões do pensamento decolonial no Brasil remontam à aula inaugural
realizada por Nelson Maldonado-Torres, no Programa de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Estudos
Africanos da Universidade Federal da Bahia, em 2005 e ao curso “Pedagogia Decolonial”, ministrado por
Catherine Walsh, em 2007, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
110

O segundo banco de dados consultado foi o Catálogo de Teses e Dissertações da


CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) 48, que também
permite a consulta de resumos de teses e dissertações defendidas junto a programas de pós-
graduação no país.
Ao usarmos os descritores, inicialmente, encontramos o volumoso acervo de
1.324.470 (hum milhão trezentos e vinte e quatro mil quatrocentos e setenta) resultados. Desta
forma, tivemos que selecionar, como “área de concentração” de nossa busca, a área de
educação. A partir desse critério, obtivemos 23.512 (vinte e três mil quinhentos e doze)
resultados
Após o refinamento, dentro dos critérios supracitados, porém, obtivemos 7 (sete)
resultados, entre teses e dissertações, conforme quadro abaixo:

Quadro 4 – Teses e Dissertações/CAPES

Título Autor Ano Instituição


O direito dos povos
indígenas à educação Pontifícia
superior na América Universidade
GAIVIZZO, Soledad Bech 2014
Latina: concepções, Católica do Rio
controvérsias e Grande do Sul
propostas.
A formação docente
para a Educação
Básica nas
Licenciaturas em
Letras Vernáculas e Universidade
SILVA, Aldelice
em Desenho e 2015 Federal da
Nascimento
Plástica da UFBA: o Bahia
currículo na
perspectiva das
relações étnico-
raciais.
Política curricular no
curso de História da
Universidade
UERJ/Maracanã:
PIMENTEL, Fernando Federal do
processos de 2016
Guimarães Estado do Rio
mudança e embates
de Janeiro
na comunidade
universitária

48
Acesso em: https://catalogodeteses.capes.gov.br/catalogo-teses/#!/
111

Colonialidade do
Saber no ensino de
Universidade
Filosofia: um estudo SOUZA, Sulivan Ferreira
2017 do Estado do
em duas de
Pará
Universidades
Públicas de Belém
A Lei 10.639/03 na
formação inicial de Universidade
professores do curso GOMES, Ana Cristina da Federal do
2018
de letras – literatura Costa Estado do Rio
negra brasileira e de Janeiro
africana
A formação docente
a partir de currículos
decoloniais: análise
Universidade
de experiências FUCHS, Henri Luiz 2019
La Salle
instituintes em cursos
de pedagogia na
Abya Yala
Bases
epistemológicas dos
discursos dominantes Universidade
de LEAL, Fernanda 2020 do Estado de
‘internacionalização Santa Catarina
da educação
superior’ no Brasil
Fonte: Catálogo de Teses e Dissertações da CAPES
Realizando a mesma análise quanto aos registros identificados na base de dados do
IBTD, não constatamos grandes mudanças. Aqui também temos o primeiro registro datado do
ano de 2014, seguindo a tendência geral de maior produção stricto sensu em perspectiva
decolonial na segunda década do século XXI.
Quanto à origem geográfica, persiste a predominância da região Sul (42,85%) e
Sudeste (28,57%) em relação às demais. A diferença, no entanto, está na ausência de registros
oriundos da região Centro-Oeste. Desta vez, encontramos um achado da Região Norte
(14,28%), Estado do Pará, e outro da Região Nordeste, na Bahia (14,28%). Embora tais
regiões apresentem resultados menores, sinalizam que possuem produção científicia dentro do
que consideramos um sub-campo de conhecimento sobre as universidades e que resistem
mesmo diante das assimetrias regionais do país49.
Outrossim, do ponto de vista institucional, persiste o predomínio da produção stricto
sensu de universidades públicas (85,71%) em relação às instituições privadas (14,28%), até
49
Mesmo não identificando um volume considerável de produção strictu sensu, encontramos textos de outra
natureza (artigos e resumos expandidos) provenientes destas regiões. Na região Norte, por exemplo, Dias (2021)
apresenta o estado do conhecimento do pensamento decolonial do Norte, com destaque para a Universidade
Federal do Pará. Nos limitamos aqui, porém, às teses e dissertações vinculados a nossa temática.
112

pela consolidação histórica da Pós-Graduação em educação nessas instituições. Embora


tenhamos visto um maior crescimento da rede privada de Ensino Superior no país, esse
aumento nem se traduziu em superioridade no tocante á produção científica.
Quanto ao recorte por sexo, ainda identificamos o predomínio da autoria feminina
(57,14%) em comparação à masculina (42,85%), embora de maneira mais mitigada em
relação à base de dados anterior.

3.3 CORE

O terceiro banco de dados consultado foi o “CORE” 50 que, entre outras


funcionalidades, proporciona o acesso a artigos, teses e dissertações oriundas de repositórios
institucionais existentes ao redor do mundo. Devido a abrangência global, sentimos a
necessidade de utilizarmos, como descritores de pesquisa, os termos “Universidade” e
“Decolonialidade” em outros idiomas, principalmente o inglês e o espanhol.
Em um primeiro momento, ao utilizarmos os descritores em português, inglês e
espanhol, obtivemos o quantitativo de 4.053 (quatro mil e cinquenta e três trabalhos), entre
teses, dissertações e artigos científico. Em nosso refinamento, porém, considerando apenas a
presença de teses e dissertações que focam em propostas de decolonização da universidade,
obtivemos o quantitativo de 23 (vinte e três) achados, entre teses e dissertações, conforme
quadro abaixo:

Quadro 5 – Teses e Dissertações/CORE

Título Autor Ano Instituição


Universidade dos
Movimentos Sociais:
BENZAQUEN, Júlia Universidade de
apostas em saberes, 2012
Figueiredo Coimbra
práticas e sujeitos
descoloniais.
Political Theory for
an Alter-University
Movement:
Decolonial, University of
MEYERHOFF, Eli 2013
Abolitionist Study Minnesota
within, against, and
beyond the
Education Regime
De la reflexión sobre BOLAÑOS, Jorge Marcelo 2015 Universidad
el otro al diálogo y Quishpe Andina Simón
reflexión con el otro Bolívar
50
Acesso em: https://core.ac.uk/
113

em espacios uni-
versitarios. La
experiencia de la
Escuela de
Educación y Cultura
Andina, 1992-2005
The problematic of
method: decolonial
strategies in HUANTE-TZINTZUN, University of
2016
education and Nancy. Utah
chicana/latina
testimonio/plática
Temáticas indígenas
na Educação Física
colombiana: uma
Universidade
análise do discurso BUITRAGO, Edwin
2017 Federal do Rio
do programa de Alexander Canon
Grande do Sul
Licenciatura da
Universidade
Pedagógica Nacional
Monotopos: teoría
tradicional y
eurocentrismo en la
formación
professional del
guitarrista
académico. Aportes PAPPADOPOULOS, Jorge Universidad
para una posible Daniel 2017 Nacional de la
descolonización Plata
cultural y epistémica.
Un estudio de caso
en el primer
conservatorio de la
provincia de Buenos
Aires.
Narrativas femininas
Universidade
Guajajara e SANTANA, Tatiana de
2017 Federal de
Akrãtikatêjê no Oliveira
Santa Catarina
Ensino Superior
Currículo colonizado
y su incidência em la
formación
profesional de los Universidad
SANTILLÁN, Washington
estudiantes de 2017 Nacional Mayor
Rolando Villavicencio
comunicación social de San Marcos
de las universidades
de Guayaquil –
Ecuador
Horizontes para la BAYÓN, María Estefania 2018 Universidad
reformulación de la Molina Autónoma de
114

cooperación
universitaria al
desarrollo desde una
Madrid
perspectiva de
género entre España
y América Latina
Educação
intercultural e o
projeto encontro de JARDIM, Raoni Machado Universidade de
2018
saberes: do giro Moraes Brasília
decolonial ao efetivo
giro epistêmico
La experiencia de
escritura académica
en diálogo con la
tradición oral y la
identidade: un Pontifícia
LÓPEZ, Mónica Elvira
rescate de saberes a 2018 Universidad
Rodríguez
través de estudiantes Javeriana
universitarios
pertenecientes a las
etnias nasa e inga em
Colombia
Bena Ani Axeti
Xobo Meskokeska
Join Yoyoikaibaona: Universidade
Interculturalidad y Federal da
GAMBOA, Jacqueline
Educación Superior 2018 Integração
Mendez
Caso Universidad Latino-
Nacional Americana
Intercultural de la
Amazonia Peruana
Da aldeia à
Universidade: os
estudantes indígenas SANTOS, Maria Santana Universidade de
2018
no diálogo de saberes Ferreira dos Brasília
tradicional e
científico na UFT
An interpretive study
of quality assurance
in Zambian higher Stellenbosch
SIMUKUNGWE, Mudenda 2018
education: University
implications for
teaching and learning
Ideias decoloniais
sobre minha práxis:
Universidade de
autoetnografia de TONIN, Josiane Prescendo 2018
Brasília
uma professora de
inglês
The rise of fallism: AHMED, Abdul Kayum 2019 Columbia
115

#RhodesMustFall
and the Movement to
University
Decolonize the
University
Una mirada crítica a
la implementación de
la Cátedra de
ALZANDRE, Jennys
Estudios
Cecilia Pastrana; Universidad de
Afrocolombianos en 2019
BENITEZ, Soleyd Córdoba
el Programa de
Giovanna Villamil
Ciencias Sociales de
la Universidad de
Córdoba
Indigenous Higher
Education as a Tool
for Decolonization in
the Hemisphere: DROUIN-GAGNÉ, Marie- Concordia
2019
Comparative Eve University
perspective between
decolonial projects in
Ecuador and USA
Olhares do Sul: Universidade
políticas de Federal
FARIAS, Nilson de 2019
internacionalização Tecnológica do
da educação superior Paraná
Un nuevo ideal
pedagógico:
Universitat
elementos para un MACOSSAY, Miguel
2019 Autónoma de
modelo educativo Ángel Rendón
Barcelona
solidário em
educación superior
Cultivating socially
just responsible
citizens in relation to Stellenbosch
TERBLANCHE. Judith 2019
University University
accounting education
in South Africa
Cultivating Justice in
High Education:
simplicity as a California
TRÓCHEZ, Anthony Steve 2019
decolonial University
philosophy na pratice
of liberation
La opción AVILA, Darwin Javier 2019 Universidad
epistemológica de la Saravia Andina Simón
pluriversidad Bolívar
Amawtay Wasi en el
marco de la política
de la educación
superior del Plan
116

Nacional del
Buen Vivir 2013-
2017
Fonte: CORE
Reproduzindo a análise a partir dos critérios supracitados, temos que o primeiro
registro data do ano de 2012, seguindo a tendência geral de maior produção stricto sensu em
perspectiva decolonial na segunda década do século XXI.
Quanto à origem geográfica, dada a perspectiva global do levantamento, sentimos a
necessidade de realizar uma análise por continente, estabelecendo, no caso específico do
continente americano a distinção entre América do Norte e América do Sul, tendo em vista a
pujança científica do primeira e sua posição privilegiada dentro do que o pensamento
decolonial denomina de “Norte Global” (América do Norte e Europa), em contraposição ao
“Sul Global” (América Latina, África, Ásia e Oceania).
Achamos muito sugestiva a predominância de trabalhos originários da América do Sul
(56,52%), seguido da América do Norte (21,73%), Europa (13,04%) e África (8,69%). À
primeira vista, nos revela o quanto o continente sulamericano tem lançado mão do referencial
teórico da decolonialidade, suas propostas, práxis e valores ético-políticos. Talvez uma das
chaves de compreensão deste fenômeno seja o entendimento de que os precursores da
decolonialidade, não obstante a sua atuação fundamental em universidades estadunidenses,
possuem uma ancoragem latino-americana e começaram a se voltar para a análise a partir de
sua região de origem.
Mesmo assim, América do Norte e Europa se destacam em relação ao continente
africano. Em uma pesquisa mais ampla, que levou em conta artigos científicos, identificamos
uma ampla produção acadêmica de origem africana, voltada para a crítica decolonial das
universidades51. Não encontramos, porém, tais artigos como frutos de teses e dissertações
consolidadas em programas de pós-graduação de universidades africanas.
As teses e dissertações oriundas dos EUA e de países europeus revela um outro fato, já
destacado por Grosfoguel (2008): a distinção entre “lugar epistêmico” e “lugar social”.
Partindo dessa distinção, é perfeitamente possível ao sujeito que se situa, socialmente,
em uma posição de subalternidade nas relações de poder, não pensar epistemicamente a partir
51
Pensamos que ainda está por ser feito um estudo que mapeie as origens africanas da crítica decolonial da
universidade e em quem ponto ela dialoga com a crítica latino-americana. A partir de nosso processo de
investigação, nos parece (ainda como hipótese) que o fenômeno do apartheid foi fundante para esta crítica, bem
como protestos que se tornaram marcos históricos no continente como #RhodesMustFall e #FeesMustFall.
Ademais, conjecturamos que pensamento de autores pós-coloniais como Frantz Fanon e Aime Cesáire possuem
maior presença teórica em relação a autores latino-americanos. Quanto aos autores da Rede, destacamos a
presença daqueles com maior inserção acadêmica nos EUA (Mignolo, Grosfoguel, Quijano), principalmente a
partir da última década.
117

dessa condição. Outrossim, um sujeito socialmente privilegiado, pode se colocar em um lugar


epistêmico crítico das relaçãos de subalternização do Outro, o que Mignolo (2003) denomina
de “pensamento fronteiriço débil”. Sabemos ainda, mesmo nos países do Norte Global,
existem sujeitos — principalmente imigrantes e filhos de imigrantes — atravessados pela
colonialidade.
Na perspectiva institucional, persiste, mesmo em âmbito internacional, o predomínio
da produção stricto sensu de universidades públicas (91,30%) em relação às instituições
privadas (8,69%). Nesse caso, porém, as universidades privadas identificadas são
consideradas tradicionais em seus respectivos países (Pontifícia Universidad Javeriana e
Columbia University).
Quanto ao recorte por sexo, identificamos um equilíbrio entre autorias masculinas
(50%) e femininas (50%), levando-se em conta que um dos achados foi realizado em
coautoria feminina.

3.5 Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED)

O quarto banco de dados — ANPED — é fundamental para que possamos analisar o


quanto da produção nacional relacionada à crítica decolonial da universidade, já demonstrado
pelas bases de dados anteriores, tem ecoada nesta que é a principal associação de
pesquisadores em educação do país.
Fundada em 1978, a ANPED, atualmente, congrega pesquisadores, docentes e
discentes de pós-graduação em educação em torno de questões fundamentais para a área.
Trata-se de uma associação que possui 24 Grupos Temáticos (GT’s) que congrega
pesquisadores de áreas especializadas de conhecimento educacional (Sociologia da Educação,
Educação Especial, Didática, etc.), bem como organiza eventos de amplitude nacional e
regional52.
Vimos que pesquisas ancoradas no pensamento decolonial atravessam esses GT’s, se
concentrando mais em alguns do que em outros.
Aqui, no entanto, apesar de utilizarmos os buscadores para um parâmetro inicial,
tivemos dificuldades em identificar todos os trabalhos a partir da utilização dos descritores,
uma vez que para cada evento nacional, há um sítio eletrônico diferente, nem sempre
funcional.

52
No presente levantamento, nosso recorte limita-se às reuniões nacionais da ANPED, para onde, pensamos,
convergem e ganham amplitude as principais temáticas da pesquisa em educação brasileira.
118

Assim, nos sentimos obrigados a analisar — caso a caso — os trabalhos apresentados


nos Grupos de Trabalho, isto é, os artigos e resumos expandidos. Dessa forma, consultando os
trabalhos publicados em cada GT, desde a 23º Reunião Nacional, no ano 2000, obtivemos o
quantitativo de 06 (seis) resumos expandidos, conforme quadro abaixo:

Quadro 6 – Resumos Expandidos/ANPED

Grupo de
Título Autor Local/Ano
Trabalho
Impasses e
possibilidades do
pensamento GT21 –
CRUZ; Denise Gonçalves Educação e
decolonial no Rio de
da; CRUZ, Ana Cristina Relações Étnico-
Ensino Superior: a Janeiro/2019
Juvenal da Raciais
experiência de uma
universidade
colombiana
Reflexões entre as
novas sínteses
teórias e o diálogo SANTOS, Rita Floramar GT21 –
intercientífico na Fernandes dos Pará/2021 Educação e
formação PAES, Luciane Rocha Relações Étnico-
univiversitária dos Raciais
povos Indígenas
Perspectivas negras
na descolonização de GT21 –
GAUDIO, Eduardo Souza; Educação e
currículos em cursos Pará/2021
PASSOS, Joana Célia dos Relações Étnico-
de Pedagogia do Sul
do Brasil Raciais
Muito além do
“punto cero”:
provocação para OLIVEIRA, Luciana GT21 –
uma escrita Ribeiro de Educação e
Pará/2021 Relações Étnico-
acadêmica negra GOMES, Ana Cristina da
sem gambiarras ou Costa Raciais
distanciamentos
epistemológicos
A lei 10.639/03 e a REIS, Diego dos Santos Pará/2021
formação de
professores/as para
educação básica: GT21 –
outras vozes na Educação e
filosofia da Relações Étnico-
educação. Trabalho Raciais
apresentado no GT
21: Educação e
Relações Étnico-
119

Raciais
Mulheres negras e
suas trajetórias no GT21 –
RIBEIRO, Ana Cristina Educação e
Ensino Superior: Pará/2021
Leal Relações Étnico-
breves notas do que
dizem os estudos. Raciais
Fonte: ANPED
A partir de 2009, constatamos o surgimento dos primeiros trabalhos ancorados no
referencial teórico da decolonialidade, isto é, que utilizam as suas categorias, conceitos,
autores, bem como a semântica e o léxico vinculados a esta coletividade de argumentação.
Isto não quer dizer que, antes de 2009, não tivéssemos pesquisas críticas com caráter
decolonizador. Pelo contrário, principalmente nos GT’s de Educação Popular, Educação
Étnico-Racial e de Movimentos Sociais, muitos trabalhos já reproduziam uma espécie de
crítica decolonial, mesmo sem citar propriamente as suas categorias e os seus referenciais
teóricos, partindo da interculturalidade, do pensamento freiriano, e de análises atreladas a
perspectivas pós-coloniais.
Entre estes trabalhos, destacamos as análises de Fleuri (2004) que já abordava os
desafios da universidade em construir os seus conhecimentos junto às classes populares e aos
movimentos sociais.
A partir de 2009, tem-se, porém, a inserção de análises referenciadas pela Rede
M/C/D, mesmo que de uma forma incipiente, em trabalhos vinculados ao grupo GT 03:
“Movimentos Sociais, sujeitos e processos educativos”; GT 06: “Educação Popular” e GT 21:
“Educação e Relações Étnico-Raciais”.
A partir de 2014, trabalhos pontuais em outros GT’s como “Currículo”, “Educação
Ambiental”, “Gênero, Sexualidade e Educação”, “Educação Matemática”, “Educação de
crianças de 0 a 6 anos” e “Educação Ambiental” começaram a surgir tendo o pensamento
decolonial por eixo norteador, bem como, a partir de 2016, alguns trabalhos foram publicados
nas reuniões regionais da ANPED.
Destacamos, ainda, que no âmbito do GT 2, ocorreu um mini-curso intitulado “A
educação com aportes epistemológicos da de(s)colonialidade”, ministrado por Julvan Moreira
de Oliveira, cujo objetivo era “compreender a de(s)colonialidade, assim como o seu
desenvolvimento e características, contribuindo para se pensar outras epistemologias,
ontologias, metodologias, sentimentos e vidas, não eurocêntricos [...]”.
Porém, como demonstra o Quadro 6, identificamos apenas no GT 21: “Educação e
Relações Étnico-Raciais” os artigos que articulam crítica decolonial e universidade.
120

A ANPED, como um dos espaços interinstitucionais mais relevantes para a produção


coletiva de pesquisa e conhecimento sobre a educação do país, revela, à luz desse
levantamento, que o movimento global e nacional crescente de pesquisas no âmbito do
pensamento decolonial tem reverberado de forma lenta e progressiva em em suas estruturas.
Como vimos, os debates decoloniais são esparsos e pontuais em outros GT’s, porém,
no GT 21, mais voltado para questões raciais, o pensamento decolonial tem tido presença
mais orgânica e recorrente. Quanto ao GT 11: “Política da Educação do Ensino Superior”, no
qual costumam se concentrar as pesquisas em torno da universidade, não encontramos
nenhum trabalho com o referencial teórico da decolonialidade, não obstante já termos citado
pesquisas nacionais (teses e dissertações) de fôlego sobre a questão, que poderiam ter
fomentado o debate neste eixo temático.
Em termos apenas conjecturais, talvez esse fenômeno evidencie certo empecilho
colocado entre aqueles que investigam universidade no Brasil, principalmente sob uma
perspectiva marxista, para dialogar com outros eixos teóricos, cujos enfoques matizados por
um culturalismo e pela valorização de análises menos universalizantes podem gerar alguma
resistência.
Temas como Estado e Políticas Públicas; acesso ao Ensino Superior;
internacionalização; formação docente e profissional; avaliação da Educação Superior, como
já vimos, têm sido abordados à luz das contribuições do pensamento decolonial, considerando
que, conforme Castro-Gomez e Grosfoguel (2007), o pensamento decolonial articula, desde o
seu princípio, as dimensões econômicas e culturais (identitárias, discursivas), sem subsumir
uma na outra. Mesmo assim, reconhecemos que, ainda hoje, o debate sobre a relação entre
marxismo e decolonialidade tem gerado uma profusão de reflexões em torno de suas
convergências e divergências.

3.6 Unitierra: um estado da arte.

Por fim, para concluir esta estapa, reunimos, a partir das bases de dados consultadas,
alguns textos que se debruçam sobre a experiência Unitierra, aqui limitados aos estudos que
abordaram a experiência Unitierra no México, isto é, em Oaxaca e em Chiapas, pois
acreditamos que as outras instituições que surgiram posteriormente, inclusive em outros
países, se inspiraram no quefazer de suas coirmãs mexicanas.
Aqui, no entanto, não faremos uma análise detida, a partir dos critérios supracitados,
uma vez que, como vimos, o foco desta tese não é a Unitierra enquanto estudo de caso, mas
121

tão somente enquanto práxis significativa e inspiradora para a crítica decolonial da


universidade.53
Nos quatro bancos de dados consultados (BDTD, CAPES, CORE e ANPED) não
identificamos teses, dissertações sobre esta experiência universitária, de maneira específica.
No CORE, porém, encontramos alguns dados que merecem ser citados.
Alguns trabalhos, como o de Nirgudkar (2008), Brein (2011), Zaldívia (2012),
abordam a Unitierra a partir do pensamento do Ivan Illich, isto é, de sua crítica ao processo
massivo de escolarização da sociedade como instituição centralizadora da educação, que
inspirou o ativista mexicano Gustavo Esteva a fundar a Unitierra e o Centro de Encontros e
Diálogos Interculturais (CEDI), em Oaxaca. O próprio Esteva (2006) descreve alguns
princípios que norteiam a Unitierra, a relação dos alunos com a questão da disciplina, da
liberdade, da amizade e da produção de conhecimento em comunidade.
Carlin (2014) faz uma retomada histórica e uma descrição detalhada dos espaços e
objetos que constituem a Unitierra, a fim de problematizar o que seria o princípio de
autonomia que assume em relação ao Estado mexicano. Outros, como Zaldívia (2009),
Callahan (2012) e Félix (2016), buscam analisar a experiência da Unitierra à luz da
experiência zapatista, os dois primeiros por meio da noção de convivialidade, retirada do
pensamento de Ivan Illich; a segunda, a partir de sua vivência nas escolas zapatistas com as
mulheres indígenas.
A literatura que se debruça sobre a experiência da Unitierra, portanto, transcendem os
textos de “fundo” decolonial. Junto a estes, claro, evocaremos as obras dos estudiosos da
Rede M/C/D que abordaram tal prática universitária (BENZAQUEN, 2012; CARRANZA,
2015; GROSFOGUEL, HERNÁNDEZ, VELÁSQUEZ, 2016; MIGNOLO, 2015; WALSH,
2015), bem como outros artigos, teses e dissertações identificados em outras bases de dados
(GOMES, OLIVEIRA, 2023 ?).

3.7 Eixos Temáticos

Para finalizar esse levantamento do estado da arte, achamos ainda relevante distribuir
os achados por eixos temáticos. Tais eixos emergem dos atravessamentos que perpassam cada
trabalho. Desta forma, cremos conseguir construir uma espécie de caleidoscópio temático em
torno da critica decolonial da universidade a partir desses trabalhos.

53
Ademais, já realizamos, de maneira mais detida, uma análise do estado da arte de artigos científicos, teses e
dissertações que se debruçaram sobre a experiência Unitierra de Chipas e Oaxaca em outro artigo, no qual
utilizamos outras bases de dados. Para maiores informações, consultar Gomes e Oliveira, 2023 ?.
122

A análise panorâmica sobre o que esses investigadores e investigadoras estão


produzindo academicamente nos leva a algumas tendências, no que diz respeito às temáticas
abordadas, conforme gráfico abaixo.

Gráfico 1 – Eixos Temáticos

Universidade e Currículo
7%
8%
27% Universidade e Relações Étnico-
Raciais

17% Projeto de Universidades Outras

Universidade e questões epis-


temológicos/metodológicas

17% 24% Universidade e gestão

Universidade e Movimentos
Sociais

Fonte: Autoria própria, a partir de dados do IBTD, CAPES, CORE e ANPED. Mar./2022.

Aqui percebemos uma predominância da crítica decolonial da universidade que incide


sobre a questão curricular. De fato, como veremos posteriormento, a Rede M/C/D inicia esse
debate no âmbito disciplinar, questionando a constituição da Ciência Moderna —
principalmente das Ciências Sociais universitárias — como um dispositivo vinculado à
dominação colonial.
O eixo temático que também se destaca nas produções coligidas diz respeito à
temática das Relaçõe Étnico-Raciais. E não poderia ser diferente. Como já alinhavado
anteriormente, o pensamento decolonial tem com categoria fundamental para o seu
desenvolvimento teórico a noção de “raça”, fundamental para a crítica decolonial da
Modernidade. Em nosso levantamento, se destacam os trabalhos em torno da questão indígena
e as pesquisas afrocentradas.
123

Destacamos, por fim, as investigações em torno do eixo que denominamos de


“Projetos de Universidades Outras”. Consideramos assim, os trabalhos que se dedicam a
arranjos institucionais-comunitários como a Universidad Ixil, Amawtay Wasi e a Universidad
de la Tierra. Consideramos tais projetos como os mais radicais em termos de crítica
decolonial à universidade eurocêntrica, uma vez que não propõem mudanças focalizadas na
estrutura universitária tradicional (no currículo, na gestão, na metodologia de ensino, etc.),
mas buscam fundar uma universidade desde novos fundamentos, a partir de uma perspectiva
ontológica, epistemológica e ético-política própria.
De qualquer forma, encaramos todos os trabalhos encontrados como tentativas de
construção de uma Universidade Fronteiriça, porosa a novas epistemes, formas de existir e de
atuar no mundo.
Distribuimos, abaixo, os achados por área temática, ressaltando que um trabalho pode
figurar em dois ou mais eixos temáticos. Nestes casos, destacamos o tema predominante de
cada texto a partir de seus principais objetivos.

3.7.1 Universidade e Currículo

Alexandre (2015), em sua dissertação de mestrado, apresenta o que considera


“epistemologias contra-hegemônicas” no Ensino Superior, em contraposição aos modelos
“tradicionais” de universidade. A partir do caso da Universidade de Integração Latino-
Americana (UNILA), analisa a inclusão epistemológica e da diversidade cultural no Ensino
Superior em perspectivas não “ocidentocêntricas”, decoloniais e populares.
Silva (2015) problematiza o currículo dos cursos de Licenciatura em Letras
Vernáculas e Licenciatura em Desenho e Plástica da Universidade Federal da Bahia (UFBA),
tendo como referencial teórico a pedagogia decolonial e o multiculturalismo crítico a fim de
abordar a inserção da educação das relações étnico-raciais e das temáticas sobre cultura afro-
brasileira e africana na formação dos futuros professores da Educação Básica.
A autora conclui pela necessidade de uma formação docente para educação básica
conectada com a realidade que será encontrada pelos futuros profissionais, assentada em uma
proposta curricular que vise ao respeito à heterogeneidade de público e de saberes,
corroborando para diminuir as diversas formas de discriminação e para combater o
preconceito racial (SILVA, 2015).
Pimentel (2016), em sua dissertação, aborda o currículo de História da
UERJ/Maracanã e o identifica como eurocêntrico, privilegiando determinados sujeitos, temas
124

e perspectivas teóricas ao mesmo tempo em que deslegitima, silencia e marginaliza a outros


sujeitos e processos históricos.
Souza (2017) objetivou analisar, a partir da perspectiva da Teoria Decolonial, “como a
tendência eurocêntrica e a colonialidade do saber estão presentes no curso de filosofia da
Universidade do Estado do Pará e da Universidade Federal do Pará, no município de Belém”
(2017, p 9). O pesquisador considera, ao final de sua pesquisa, que “a concepção de filosofia
presente nos cursos pesquisados é a que nega a existência da filosofia latino-americana e está
geopoliticamente a serviço da hegemonia moderna/colonial” (SOUZA, 2012, p. 234). Desta
forma, o autor problematiza a universidade a partir da formação em filosofia que, irmanada
com a Teologia, esteve no início da própria constituição da instituição universitária.
Araújo (2017) realiza um estudo de caso do Mestrado Profissional em
Sustentabilidade junto a Povos e Terras Tradicionais (MESPT), da Universidade de Brasília
(UnB), com o fim de “dar visibilidade às experiências educativas em curso na UnB que
subvertem à lógica da monocultura do conhecimento ocidental eurocêntrico, bem como, o
racismo e elitismo da universidade” (2017, p. 93). Conclui que o MESPT é um curso inovador
do ponto de vista metodológico e político, pela adoção da interculturalidade, do diálogo de
saberes e da interdisciplinaridade.
Buitrago (2017) trata das temáticas indígenas em espaços de formação docente a partir
de uma perspectiva intercultural nos currículos de formação de professores na área da
educação física. Nesse sentido, analisa como as temáticas indígenas são posicionadas no
currículo de
formação docente da Licenciatura em Educação Física da Universidade Pedagógica Nacional
de Bogotá. Destaca o quão importante é, para o processo de formação dos estudantes, a
abordagem e o desenvolvimento das temáticas indígenas no currículo, o que permitiria
assimilar outras formas de conhecimentos e práticas culturais, até o momento, pouco tratadas
pelo universo logicamente estabelecido.
Pappadopoulos (2017) aborda os aspectos centrais da formação profissional acadêmica
em guitarra, mais precisamente do Conservatório da Universidade Nacional de La Plata, para
questionar a formação em música, analisando a sua trajetória de institucionalização e os seus
vínculos com a colonialidade estética. Conclui com uma crítica ao perfil tecnicista e
eurocêntrico da formação musical.
Santillán (2017) desvela como os componentes da educação superior, principalmente o
currículo, se encontram atrelados a uma lógica colonial, que reforçam uma lógica laboral de
125

mercado. Preconiza, assim, a aplicação e inclusão dos saberes ancestrais de nossos povos, a
fim de se incorporar elementos próprios e contextualizados ao currículo.
Gomes (2018), em sua dissertação, intenta investigar qual o impacto da Lei n.
10.639/03 sobre o curso de Letras da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro,
indagando se este curso tem realizada a tarefa de construção antirracista no âmbito da
formação.
O autor conclui que, embora o currículo do curso seja potencialmente indicado para
uma reflexão decolonial, havendo professores sensibilizados para o trabalho com a Lei
10.639/03, não há formação específica para tal, evidenciando o fato de que, mesmo se
tratando de um curso novo, cujo currículo foi reformulado depois do Plano Nacional de
Implementação da Lei 10.639, que aconteceu em 2009, não houve um posicionamento do
Ministério de Educação, enquanto autorizador do curso e avaliador de seu currículo, para que
houvesse a efetiva adequação (GOMES, 2018).
Góes (2018) analisa a conformação do conhecimento moderno na universidade como
marcado pela colonialidade do saber e pela geopolítica do conhecimento, elegendo, como
estudo de caso, o eixo de Fundamentos de América Latina do Ciclo Comum de Estudos da
Unila, concluindo que a estrutura moderna que caracteriza o ensino superior na América
Latina dificulta, em questões administrativas/institucionais, a implementação de propostas
pedagógicas diferenciadas, obstaculizando sua potencialização epistêmica.
Moura (2018) questiona o pensar pelo prisma moderno/colonial refletindo sobre as
possibilidades e impossibilidades de decolonialidade do pensamento artístico/educacional
latino-americano nos cursos/programas de formação, nos currículos e nos processos
formativos para docência em Arte. Preconiza uma desobediência epistêmica que legitima
saberes desde as artes e culturas latino-americanas.
Cruz (2019), sob a ótica da teoria decolonial, constata os impasses e as possibilidades
nos cursos de formação de professores em biologia e relações sociais, com enfoque na
experiência formativa da Universidade Distrital Francisco José de Caldas, na Colômbia.
Analisa, assim, até que ponto a universidade inclui, em seu quadro curricular de formação em
licenciatura em biologia, conteúdos referentes à diversidade étnico-racial e se, em
consequência, tais inclusões modificam e decolonizam a formação dos professores.
Nogueira (2019) se propõe a contribuir para a compreensão de como a extensão pode
resistir e desconstruir a lógica da colonização, colaborando com a decolonização do
pensamento latino-americano e a valorização dos saberes locais e regionais. Problematiza,
assim, a universidade a partir da dimensão extensionista, proponde que a extensão possa abrir
126

caminhos para a presença da diversidade, o diálogo entre saberes tradicionais e acadêmicos e


a interculturalidade na instituição universitária latino-americana.
Alzandre e Benitez (2019) investigam a implantação da Cátedra de Estudos
Afrocolombianos no Programa de Ciências Sociais da Universidade de Córdoba, quanto aos
aspectos de currículo, estratégias didáticas, conteúdos para o ensino e o papel que tem na
formação de licenciados em ciências sociais.
Concluem que a Cátedra de Estudos Afrocolombianos não está incluída no currículo
de maneira eficaz, pois propõe um curso optativo aos estudantes. Ademais, apesar de ter por
base a teoria decolonial, a aprendizagem dos saberes ainda é pautada por uma prática colonial,
que não permite a interculturalidade e cria um vazio de em matéria de inclusão etnoeducativa
no programa (ALZANDRE, BENITEZ, 2019).
Terblanche (2019), apesar de explicitar que utiliza o pragmatismo como abordagem,
junto ao pós-estruturalismo de inspiração foucaultiana, para analisar o contexto universitário
da África do Sul, utiliza o conceito de decolonialidade para verificar o eurocentrismo
orientador dos currículos acadêmicos, bem como a ausência dos princípios aplicados do
“ubuntu”, que hoje inspira o ideal de democracia africana.
Boacik (2021), inserida no campo de investigação da Educação Superior, se propoe
analisar as categorias de pensar e operar interculturalidade, a partir da sociogênese
constitutiva do projeto da UNILA, através de experiências de servidores/as desta
Universidade, bem como compreender a internacionalização da ES no contexto da
modernidade/colonialidade ocidental. Demonstra que a interculturalidade é parte da missão da
UNILA, construída a partir de um projeto distinto da grande maioria das universidades
brasileiras; que a inclusão é parte de seu projeto constitutivo e que procura desenvolver ações
e iniciativas voltadas à interculturalidade potencializando saberes não hegemônicos. O
cotidiano impõe tensionamentos entre projetos e ações, mesmo assim, afirma que a
universidade é um lugar privilegiado para aprofundar vivências de inclusão e respeito as
democracias.

3.7.2 Projetos de Universidades Outras

Rosa (2016) problematiza e questiona perspectivas epistemológicas e racionalidades


vigentes no meio acadêmico, contribuindo para a reflexão em torno da identidade da
universidade latino-americana na contemporaneidade, a sua função e responsabilidade social
Para este fim, apresenta, como objeto de estudo empírico, a Pluriversidad Amawtay Wasi, a
partir da qual critica os processos avaliativos padronizadores que não reconhecem
127

universidades emergentes. Questiona a monocultura do saber científico produzido nas


instituições de educação superior e propõe a criação de espaços plurais de construção de
conhecimento, desde uma perspectiva intercultural e descolonizada, como alternativa para
superar a conjuntura de crises vivenciada pela universidade.
Fuchs (2019) objetiva investigar experiências instituintes de currículos de Pedagogia
em Instituições de Ensino Superior sob a perspectiva decolonial no contexto da América
Latina. Investiga, assim, o currículo da Universidad de Ixil. Conclui que o currículo de
formação decolonial parte dos fundamentos e princípios epistemológicos outros produzidos
por meio de pesquisa participante enraizada na Mãe-Terra. Esse currículo é composto por
uma dinâmica flexível, intercultural que busca a emancipação dos sujeitos por meio da
inter(trans)disciplinaridade possível, através da docência mediadora e partilhada com a
comunidade por meio de metodologias dialógicas e horizontais.
Avila (2019) investiga qual é a epistemologia da Pluriversidad Amawtay Wasi
subjacentes aos seus princípios filosóficos, que tem como origem a cosmovisão andina, e
quais teorias explicam a deslegitimação de suas atividades por meio de critérios avaliativos
impostos por órgãos estatais. Propõe, assim, um paradigma que coincida com as implicações
que o vínculo com a cultura andina mantém com a natureza (pachamama) em contraposição à
ciência moderna, que se pauta pela filosofia da consciência.
Neste eixo temático, podemos inserir também os trabalhos encontrados que abordam a
experiência da Universidad de la Tierra como Nirgudkar (2008), Esteva (2009), Brein (2011),
Zaldívia (2012), Carlin (2014), Callahan (2012) e Félix (2016) uma vez que é uma iniciativa
que preconiza uma universidade a partir de suas próprias propostas, desvinculada de qualquer
intervenção estatal.

3.7.3 Universidade e Movimentos Sociais

Benzaquen (2012) objetiva saber se as Universidades dos Movimentos Sociais são


experiências decoloniais e de emergência emancipatória. Para isso, analisa as práticas, os
sujeitos e os saberes desta instituição, a partir de quatro estudos de caso nesta universidade.
Conclui que a Universidade dos Movimentos Sociais comporta experiências bastante plurais e
experimentais, que trilham o seu percurso ao longo do seu caminhar.
Meyerhoff (2013) analisa como o Ensino Superior pode ser modificado a partir de
dentro da instituição universitária, contra formas correntes de colonialidade, enquanto é
reconstruída a partir das margens e dos marginalizados, opondo a um regime moderno-
colonial de estudo, formas alternativas de experiências comunais, como a do movimento
128

zapatista. Propõe assim, articular um movimento de “alter-universidade” que se contrapõe,


decolonialmente, às perspectivas neoliberais e neoconservadoras de universidade.
Reghim (2017) aborda a relação entre conhecimentos produzidos pelos movimentos
sociais e pela universidade a partir de uma perspectiva feminista e decolonial. Analisa três
revistas acadêmicas e nacionais sobre movimentos sociais e identifica quais tipos de
referências são utilizadas, qual o perfil das autoras e dos autores e quem são as suas e seus
interlocutoras/es. Identifica, por fim, que, no que se tange ao perfil das revistas, tanto na
autoria quanto nas referências, os movimentos sociais ainda aparecem, predominantemente,
enquanto objetos de pesquisa e não enquanto sujeitos de saberes.
São trabalhos, portanto, que situamos dentro da discussão em torno da universidade
como espaço de abertura para a participação de sujeitos historicamente alijados dos espaços
de produção de conhecimento.
Trata-se de um trabalho muito significativo pois a experiência em que nos debruçamos
na presente pesquisa — a Unitierra —, possui a sua origem dentro das dinâmicas de luta e
resistência do movimento zapatista.
Ahmed (2019) estuda o movimento “#RHODESMUSTFALL”, cujo objetivo é
decolonizar a universidade e confrontar o racismo e o patriarcado, tendo como epicentro de
seu acontecimento, a Universidade da Cidade do Cabo. Como parte do processo de
decolonização, afirma que os estudantes negros atribuem sentido às suas experiências em uma
universidade predominantemente branca e de herança marcadamente euro-americana. Analisa
a formação do movimento, bem como a sua ancoragem teórica que perpassou pelo feminismo
negro, pelo pan-africanismo e pela consciência negra, invocando uma desobediência
epistêmica.

3.7.4 Universidade e Relações Étnico-Raciais

Gaivizzo (2014) objetiva investigar como garantir aos povos indígenas a educação
superior nos países que integram a América Latina, levando em consideração que a
institucionalização do marco jurídico internacional ampliou o entendimento sobre o tema e
especificou as formas de materializá-lo na sociedade.
Para isto, a pesquisadora historiciza as variadas formas de concepção da relação entre
povos indígenas e Educação Superior (o racismo epistêmico; o multiculturalismo, em todas as
suas vertentes; os vários interculturalismos) e conclui que houve avanço com a
institucionalização de um marco jurídico internacional para a Educação Superior dos povos
129

indígenas, mesmo com a relação conflituosa para a sua implementação e regulação nos
Estados Nacionais.
Bolaños (2015), em sua dissertação, a partir do debate modernidade/decolonialidade,
aborda a experiência da Escuela de Educación y Cultura Andina (EECA), criado no seio da
Universidade Estatal de Bolívar, no ano de 1992, com o objetivo de ser uma proposta
“insurgente” de educação superior para, com e desde os povos indígenas do Equador. Conclui
que a EECA foi assumida como um pacha (tempo-espaço) de onde se evidencia as tensões
que surgem da construção de um projeto de universidade não convencional, inserida dentro de
um conflito entre a universalidade e a interculturalidade.
Doebber (2017) problematiza a universidade, partindo da presença indígena nos cursos
de graduação da UFRGS, com o objetivo de compreender o estar indígena universitário e
como a instituição universitária lida com essa presença. Conclui que a presença indígena
oferece possibilidades de tensionamento e autorreflexão por parte da universidade, sobre as
suas práticas pedagógicas eurocentradas e o seu papel social colonizador.
Santana (2017) faz uma pesquisa constituída por narrativas de memória de três
discentes Guajajara e da cacica Gavião/ Akrãtikatêjê, sobre as suas experiências enquanto
discentes de cursos de graduação da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará
(UNIFESSPA) a fim de compreender o que o mosaico das narrativas femininas indígenas traz
de elementos para discussão sobre os desafios, a permanência e o protagonismo feminino
indígena na
universidade. Com isto, a autora problematiza a relação do ser, saber, de gênero, trazendo a
discussão da interculturalidade como possibilidade real de diálogo entre saberes e fazeres.
Santana (2017), desta maneira, valoriza as memórias de experiências destas mulheres
na universidade, desvelando os estranhamentos e questionando a suposta realidade harmônica
neste espaço. Outrossim, evoca o protagonismo feminino indígena, no desvelamento dos
inúmeros desafios de diálogos propositivos ainda a serem conquistados nos espaços da
academia.
Silva (2018) busca identificar e analisar perspectivas e práticas de
decolonização/decolonialidade do conhecimento construídas pelos movimentos negros e de
mulheres negras. Para tanto, procura, por um lado, entender as singularidades das
universidades brasileiras e a naturalização da interdição dos corpos e dos pensamentos críticos
das negras e negros na sua história de institucionalização. E por outro lado, busca evidenciar a
agência negra lutando por acesso à universidade contra os poderes da colonialidade brasileira.
Reverte as estruturas de subalternização que calam, desqualificam ou não valorizam as/os
130

intelectuais negras e negros, ao colocar no centro dela, a fala de intelectuais subalternos


negras e negros brasileiros e suas perspectivas epistêmicas decoloniais.
Santos (2018) busca compreender a natureza dos diálogos entre os saberes
acadêmicos, produzidos na Universidade Federal de Tocantins e os saberes tradicionais,
trazidos pelos estudantes indígenas. Ao final do estudo, a autor constata que criar cotas para
indígenas não é suficiente, sendo necessárias políticas que garantam a sua permanência; que
não existe articulação entre os saberes indígenas e os da universidade; que os estudantes
indígenas
não conseguem se integrar às regras atuais da universidade, não se sentem parte
da universidade. Ressaltou, ainda, o despreparo dos professores, os preconceitos sofridos, os
estigmas e a exclusão social da comunidade acadêmica, que levam o indígena a esconder a
sua condição de indígena a fim de evitar discriminações.
López (2018) investiga a tensão entre a experiência de escritura acadêmica em diálogo
com a tradição oral para a constituição da identidade de estudantes universitários pertencentes
às etnias nasa e ingá, na Colômbia, tendo por enfoque o Curso Nivelatorio de Lecto-
Escritura. Se acerca assim dos processos de incorporação do indígena em uma cultura
acadêmica universitária, demonstrando como, através da educação superior, populações
indígenas se fortalecem e recobram o seu valor social e cultural por meio de estratégias de
sobrevivência, resgatando os seus saberes e formas de perceber o mundo por meio da escritura
acadêmica.
Drouin-Gagné (2019) examina, em sua tese de doutorado, o que as universidades
poderiam aprender com os programas e instituições indígenas de Ensino Superior, tendo por
estudo comparativo as universidades do Equador e dos Estados Unidos. A sua análise do
Ensino Superior indígena como ferramenta de decolonização revela os vínculos existentes
entre os processos internacionais de colonização e decolonização e articulações locais de
projetos decoloniais no Ensino Superior.
Cruz e Cruz (2019) analisa o desenvolvimento de políticas de formação de professores
na temática racial no Ensino Superior. Para isto, a autora busca compreender as contribuições
de matrizes africanas e da diáspora negra na estrutura curricular do curso de licenciatura em
biologia da Universidade Distrital Francisco José de Caldas, na Colômbia, apontando
impasses e possibilidades no curso.
Teixeira (2020) as experiências vividas pelos estudantes negros na universidade e as
suas relações com o desenvolvimento psicológico. Para isso, investiga como os estudantes
negros universitários compreendem suas experiências identitárias raciais e a participação das
131

vivências universitárias nesta compreensão; como eles se relacionam com as múltiplas vozes
que participam do seu processo acadêmico-universitário e busca identificar os recursos
simbólicos e sociais utilizados por estudantes negros para enfrentar dificuldades encontradas
nas suas trajetórias universitárias. Elabora um conceito que considera as especificidades de
desenvolvimento da pessoa negra, a saber: o Self Decolonial, isto é, um Self que, sendo
dialógico, emerge quando a pessoa negra, imersa em uma semiosfera marcadamente racista,
acessa, interage e dialoga com discursos e experiências contra-hegemônicos (seja através de
estudos teóricos, seja através do contato com pessoas e contextos), desencadeando novas
configurações subjetivas que levarão à uma nova experiência identitária racial.
Também Santos e Paes (2021) questionam a possibilidade de consolidação das
políticas afirmativas para os povos indígenas alicerçadas em concepções e práxis da
decolonialidade, interculturalidade e do diálogo intercientífico nas universidades públicas, no
afã de se ter uma maior abertura a novas sínteses teóricas e abordagens pedagógicas, assim
como a conhecimentos outros.
Gaudio e Passos (2021) apresentam resultados de sua análise dos processos de
institucionalização da educação das relações étnico-raciais (ERER) nos currículos dos cursos
de Pedagogia de três universidades federais do Sul do Brasil. Para isso, baseiam-se nas
produções do campo das relações raciais e epistemologias negras, bem como nas políticas de
educação para as relações étnico-raciais no Brasil. Constataram a existência de perspectivas
negras decoloniais atuando nos cursos de Pedagogia, protagonizada por uma intelectualidade
negra, sobretudo a atuação de mulheres negras, que formularam propostas práticas e teóricas
voltadas ao campo de formação de professores/as.
Oliveira e Gomes (2021) por meio de suas vivências enquanto estudantes negras de
pós-graduação e identificando que estudantes que optam por trabalhar em suas pesquisas as
questões negras, e propor caminhos epistemológicos outros, que levem em conta referenciais
teóricos e metodológicos enunciadores daquelas produções intelectuais, se deparam com
dificuldades na validação dessas propostas. Relatam, assim, experiências de colonialidade, de
epistemicídio e de sofrimento emocional. Destacam, com base no levantamento das
referências apresentadas em dissertações e teses e na observavação do currículo de seu
programa quantos orientadores/as apresentam bibliografias que contemplem essas temáticas.
Observam que estudantes que buscam as epistemologias negras trabalham produzindo
“gambiarras teóricas” para superar o distanciamento epistemológico dos currículos da pós-
graduação de suas realidades.
132

Ribeiro (2021) apresenta o estado da arte de uma pesquisa que objetiva analisar as
permanências simbólicas e material de mulheres negras cotistas em cursos da área das
ciências exatas na Universidade Federal da Bahia. Por meio das análises dos trabalhos
encontrados, observa a escassez de pesquisa que abordem as trajetórias de mulheres negras na
universidade.

3.7.5 Universidade e questões epistemológicas/metodológicas

Huante-Tzintzun (2016) examina os testemunhos e práticas de oito estudiosas


feministas de origem chicana/latina que trazem à luz os problemas que ocorrem na condução
de pesquisas no espaço acadêmico, a partir do momento que se busca questionar os métodos
de pesquisa. Entre esses problemas destaca: a construção do conhecimento, os modos de
representação, regras de pesquisa, a questão da voz e do fazer-se escutar.
Homma (2018) busca compreender como o pensamento de Boaventura de Sousa
Santos tem se inserido no debate sobre o apagamento epistêmico, tendo como objeto a
universidade, a qual tem papel de destaque na afirmação do pensamento abissal que classifica
o saber científico moderno como o único válido no Brasil. A sua dissertação analisa teses e
dissertações que tratam do pensamento pós-colonial/decolonial, e têm como referencial
teórico o autor. Identifica, assim, contribuições valiosas de Santos tanto no sentido do
diagnóstico das relações de dominação e colonialidade, evidenciando suas diferentes
expressões em diferentes contextos (principalmente no caso luso-brasileiro), quanto de forma
mais propositiva, a partir de sua noção de ecologia de saberes visando um pensamento pós-
abissal.
Jardim (2018) busca colaborar com o fortalecimento da interculturalidade na docência
e na produção de conhecimento no Ensino Superior dentro do âmbito latino-americano.
Problematiza, assim, nesse processo, a posição “dominador-dominado” que os docentes
latino-americanos ocupam dentro da estrutura de produção de conhecimento. A intenção
principal é contribuir para o aperfeiçoamento desse campo de estudos, especialmente pela
evidência dos possíveis intervalos entre o “giro decolonial” e um giro epistêmico efetivo.
Tonin (2018) faz uma “autoetnografia” sobre como a sua identidade docente foi
constituída pelas suas próprias experiências com a Língua Inglesa. Lança um olhar decolonial
a estas experiências a fim de entender a matriz de poder colonial em que está inserida. Desta
forma, visa questionar discursos e crenças estabelecidas, bem como dar voz ao próprio
percurso formativo e acadêmico que construiu, sob os influxos da escola básica, na
constituição de sua subjetividade.
133

Costa (2019) a partir da metodologia da “sociologia das ausências”, de Boaventura de


Sousa Santos, procura verificar de que forma o pensamento complexo e o pluralismo jurídico
poderiam contribuir para a construção de uma razão decolonial nos cursos de direito. Para
isso, se preocupa em analisar o paradigma da modernidade, apresentando sua racionalidade
indolente e a ascensão do fascismo social, observando, ainda, o papel desempenhado pelo
direito e a necessidade de uma transição paradigmática; discute as categorias teóricas da
invisibilidade epistemológica e dos conhecimentos não convencionais em um contexto de
colonialismo e de colonialidade e seus reflexos na educação jurídica no Brasil; e examinar as
perspectivas epistemológicas para a construção de uma razão decolonial nos cursos de direito.
Souza (2019) problematiza como o embate e as tensões entre práticas de letramentos
acadêmicos baseadas em visões eurocêntricas e os conhecimentos trazidos por culturas
subalternizadas, para o contexto acadêmico, podem oferecer caminhos para pensarmos novos
modelos de produção e legitimação de conhecimentos outros, que são negados e
subalternizados pelo contexto acadêmico ocidental hegemônico.
Macossay (2019) apresenta uma monografia em que aprofunda uma proposta
epistêmico-pedagógica acorde a um modelo de educação superior solidária emanado da
necessidade de promover uma educação de um sistema social pós-capitalista, fundamentado
nas características de uma economia social e solidária de matiz decolonial.
Tróchez (2019) aborda, em um dos capítulos de sua tese, o Ensino Superior como um
problema filosófico decolonial. O autor elabora o que denomina de “simplicidade” como um
caminho decolonial para a liberação, mediante uma filosofia e prática educacional que
restaure caminhos para se reaprender a viver na e com a Terra. Para esta filosofia da
educação, se inspira no que chama de “sabedoria dos elementos”, buscando apreender os seus
significados para a existência (terra, água, ar e fogo).
Souza (2021) busca investigar o modo como o gênero artigo científico tem se
deslocado do padrão hegemônico de escrita acadêmica. Inserida no projeto “Decolonialidade
e insurgências nas práticas discursivas acadêmicas: novos modos de produção, registro e
mediação da escrita acadêmica”, objetivo analisar e compreender a organização retórico-
estilística do texto “Uma missiva a seu Ditinho, craque do São Geraldo”, uma carta-artigo
publicada na revista da Associação Brasileira de Pesquisadores/ as Negros/ as. Demonstra,
assim, que a carta-artigo reflete as inquietações (pautas políticas) que regem a comunidade na
qual ele foi produzido, publicado e divulgado. Mostra o papel político que as comunidades
alternativas desempenham ao atentar para o sofrimento dos sujeitos subalternizados, que
134

tentam entrar e sobreviver numa comunidade acadêmica eurocêntrica, principalmente no que


tange à escrita acadêmica.
Reis (2021) discute a importância de decolonizar discursos e práticas, filosóficos e
pedagógicos, na formação docente para a Educação Básica. Considera a relevância das
filosofias africanas e indígenas para a Filosofia da Educação. Problematizar as estruturas de
saber-poder que culminam, pela via de relações epistêmico-políticas e culturais assimétricas,
por legitimar processos de produção de conhecimento exclusivamente eurocentrados, em
detrimento da invalidação epistêmica de práticas, experiências e discursos fundamentados em
perspectivas não-ocidentais.

3.7.6 Universidade e gestão.

Simukungwe (2018) desenvolve um estudo a fim de analisar as estratégias


implementadas de garantia da qualidade para o Ensino Superior na Zâmbia, analisando as
categorias gerenciais influenciadas por políticas neoliberais. Aborda, ainda, as implicações
das suas descobertas para o ensino e a aprendizagem, bem como para os estudos sobre a
decolonização da educação e os efeitos do estudo sobre a decolonialidade na universidade
africana.
Bayón (2018) analisa a política da “Cooperación Universitaria al Desarrollo” a partir
de uma perspectiva da pedagogia feminista decolonial na Espanha em articulação com a
América Latina e o Caribe, sob um ponto de vista teórico e epistemológico. Aborda, por
exemplo, a Política Pública de Desenvolvimento na universidade junto ao enfoque de gênero
de forma a conhecer, estruturar e implementar ações de gestão para descolonizar e
despatriarcalizar a própria universidade.
Gamboa (2018) intenta compreender o contexto que encerra o enfoque intercultural
proposto pela Universidade Nacional Intercultural da Amazônia Peruana (UNIA), a partir de
uma abordagem intercultural e decolonial. Conclui que o enfoque intercultural da
universidade referida reflete uma dualidade de percepção e prática da interculturalidade: por
um lado, a UNIA foi proposta e gestada pelos povos amazônicos, ante a necessidade de
educação profissional universitária; por outro lado, existe a construção da interculturalidade
como o encontro de várias culturas no mesmo espaço, em um campo de disputas constante.
Farias (2019) problematiza a internacionalização da Educação Superior a partir da
perspectiva da decolonialidade. Nesse sentido, reflete sobre outras internacionalizações
possíveis – em uma relação Sul-Sul –, tendo por estudo de caso duas universidades latino-
americanas: Universidade Nacional de Córdoba e UNILA. Como resultado de sua pesquisa,
135

conclui que há um potencial nas políticas e ações investigadas que carregam concepções em
que o Outro é percebido como distinto, com estratégias integracionistas, horizontais e
solidárias.
Leal (2020) sob o pensamento decolonial, traz relevante contribuição para a área de
estudos críticos em internacionalização da educação superior, problematizando a natureza
pretensamente técnica, apolítica e a-histórica das abordagens convencionais. Para isso,
preconiza que a ideia de internacionalização enfatizada pelos discursos político e acadêmico
dominantes encontra-se imersa na matriz cultural do poder colonial e avança sob o alicerce de
um imaginário global que reforça geografias desiguais de poder, de saber e de ser.

3.7 Um Subcampo do conhecimento: a Práxis Decolonial da Universidade (PAREI AQUI)

Analisando os trabalhos supracitados, podemos perceber, que a crítica decolonial da


universidade atravessa múltiplas disciplinas e suas respectivas problemáticas, tanto em nível
nacional, quanto internacional.
São investigações que versam sobre experiências institucionais específicas, validadas
ou não pelo Estado, inspiradas pelo pensamento decolonial, com predominância de
experiências institucionais, seus desafios em matéria de currículos e práticas pedagógicas. Em
menor medida, identificamos trabalhos teóricos sobre o pensamento de algum autor em
específico.
Outros trabalhos, ainda, evocam atividades de ensino, pesquisa e extensão com
potencial crítico decolonizador, tecidos dentro dos aparatos institucionais universitários tidos
por tradicionais. Ressaltamos ainda que as noções estandars de produção e comunicação
acadêmica (artigos científicos) também têm sido problematizadas, ao mesmo tempo em que se
investigam formas disruptivas de comunicação científica.
A cada ano, nos parece, surgem novas temáticas e objetos de investigação, algumas
das quais voltadas para os novos sujeitos (o indígena, o negro, etc.) que vivenciam a
universidade a partir das políticas de cotas raciais e étnicas. Neste sentido, o currículo
acadêmico é o grande campo de enfrentamento do pensamento decolonial, sendo tensionado
desde os primeiros debates produzidos sobre o tema.

CATÁLOGO CAPES
Nesta base de dados, prevalecem também as análises em torno da teoria curricular.
Discute-se até que ponto os currículos específicos de faculdades e instituições encarnam
136

movimentos de decolonialidade e permitem subversões da matriz colonial prevalecente nos


percursos curriculares.
Percebe-se, também, que há a presença do debate em torno de legislações mais amplas
que objetivam alterar currículos, no intento de decolonizá-los ou promover movimentos de
combate ao racismo a partir de intervenções legislativas e jurídicas, em suma, estatais.
Por fim, identificamos as discussões, sempre presentes, relacionadas à pluralidade
epistemológica, à inserção de novos sujeitos do conhecimento em universidades “não
oficiais”, por meio de estudos de casos sobre práxis específicas (como a Universidad Ixil).
Tal estratégia de pesquisa, muito presente dentro deste tema, dialoga diretamente com
a nossa pesquisa, uma vez que acolhe um estudo de caso de uma experiência decolonial de
universidade de forma a tensionar a sua relação com a Modernidade/Colonialidade.

CORE

O CORE, como se pode ver, nos possibilita ter uma visão mais global da relação entre
pensamento decolonial e universidade, evidenciando que o tema atravessa fronteiras
geopolíticas e disciplinares, tocando em questões curriculares, metodológicas, abordando
experiências institucionais e movimentos sociais, entre outros problemas de pesquisa. Isso,
por si só, já revelaria que a presente tese se insere em uma discussão já consolidada em
âmbito transfronteiriço, em múltiplas frentes, podendo contribuir para a construção dessa sub-
área dos estudos sobre a universidade, desde a Pan-Amazônia.
Do nosso levantamento, podemos depreender que as pesquisas teóricas, mesmo em
menor quantidade, são relevantes, pois proporcionam a reflexão sobre categorias como
colonialidade, geopolítica do conhecimento, racismo epistêmico, com abrangência e valor
heurístico. Nessa perspectiva, mais teórica, ressaltamos a parca existência de pesquisas
voltadas para a “história das ideias” de teóricos decoloniais ou de tradições intelectuais que
possam dialogar com o pensamento decolonial. Neste quesito, ressaltamos a investigação de
Ribeiro (2014) sobre o pensamento de Darcy Ribeiro e sua relação com a pesperctiva
decolonial. Tal destaque se dá porque pensamos a presente tese, também, como uma
contribuição para a “história das ideias” decoloniais acerca da universidade.
Por outro lado, a maioria dos trabalhos arrolados estão ancorados em uma práxis
específica. Nesse âmbito, podemos ressaltar as pesquisas e propostas sobre metodologias de
ensino, pesquisa e extensão, esta última em menor medida (FLEURI, 2009; NOGUEIRA,
2019). Destacamos, ainda, as investigações sobre outros sujeitos – indígenas, negros
137

(ARROYO, 2017) – que começaram a fazer parte da paisagem acadêmica nas últimas
décadas, seja no Brasil, seja nos EUA. Para tal, identificamos uma abordagem metodológica
centrada na etnografia ou na auto-etnografia, interessada nas biografias, histórias, seus corpos
e nos efeitos psicológicos da colonialidade sobre tais sujeitos. Metodologicamente, tais
abordagens são operacionalizadas, também, por meio da pesquisa-participante e da análise de
conteúdo de entrevistas.
Entre as práxis elencadas, porém, as que mais absorvem a atenção dos estudos
decoloniais sobre universidade giram em torno da gestão universitária e das políticas públicas
de Ensino Superior, bem como sobre a questão curricular. Isto revela que o pensamento
decolonial não abre mão de, por dentro das instituições universitárias tradicionais, romper
com a matriz colonial enraizada no espaço acadêmico.
Quanto às políticas públicas e à gestão universitária, destacam-se os estudos sobre
universidades recém-criadas (nos moldes considerados tradicionais), cujas propostas são
decoloniais, interculturais e visam promover o encontro de saberes, para além do cultivo do
paradigma científico moderno. Acrescentamos, ainda, a análise de gestão universitária,
voltadas para os padrões de qualificação, de rankeamento, de inserção geopolítica, de relação
com o Estado e com as políticas públicas de promoção de equidade racial.
Sobre o aspecto curricular, discutem-se mudanças ou subversões disciplinares, em
disciplinas específicas (Geografia, Relações Internacionais, Teologia, Artes, entre outras); o
tensionamento de saberes outros e suas inserções em currículos já estabelecidos sob o influxo
da colonialidade; as experiências decoloniais de Programas de Pós-Graduação e de Cursos de
Graduação; bem como a crítica de áreas (como a Filosofia e a História) que ainda parecem
ignorar os saberes não eurocentrados.
Por fim, destacamos os estudos ancorados em movimentos sociais, suas práticas,
conhecimentos e (des) encontros com as universidades “tradicionais”. Neste âmbito, no qual
nos situamos, destacamos as investigações que se debruçam sobre Unitierra, a Universidade
Amawtai Wasi, no Equador; a Universidade Popular dos Movimentos Sociais e os estudos
africanos decorrentes dos protestos estudantis (#RhodesMustFall e #FeeMustFall) que
eclodiram na última década, cujos impactos nos movimentos de decolonização de
universidades africanas e europeias ainda repercutem.
138

Ainda existem muitos outros trabalhos que poderiam ser citados como aportes
relevantes dentro do tema e nunca foi o objetivo deste estado da arte levantar a totalidade das
pesquisas sobre esta abordagem, tampouco fazer uma crítica acurada de cada pesquisa citada.
Pelo contrário, as citamos de forma panorâmica, resumidamente, buscando não interferir nos
conceitos e categorias utilizadas pelos autores, mesmo quando não concordamos com algum
ponto delineado.
Diante deste apanhado de produções teóricas que tem constituído a nossa temática,
podemos afirmar que, nacionalmente e internacionalmente, existe uma farta produção
acadêmica no âmbito da crítica decolonial da universidade que constitui o surgimento de um
subcampo do conhecimento, em se tratando dos estudos sobre universidade, que aqui
denominamos de “práxis decoloniais da universidade”.
Trata-se de um subcampo que abarca múltiplos domínios geográficos (principalmente
localizados na África, na América Latina e na América do Norte) e disciplinares, isto é, é um
debate transnacional que perpassa a antropologia, a sociologia, a teologia, a educação, a
geografia, a administração, entre outras áreas, suplantando limites disciplinares.
Há, portanto, um esforço consolidado para que o giro decolonial transforme as
universidades em suas mais variadas dimensões, desde a mais radical, na qual a própria
natureza da instituição se origina e funciona sob um regime confessadoramente crítico ao
padrão moderno-colonial, até a mais reformista, em que se pensa em mudanças pontuais em
sua estrutura (na gestão, da arquitetura, no currículo, etc.). Maldonado-Torres (2009, p. 683),
sobre esses “giros decoloniais”, diz que o termo:

[...] dá conta do caráter internacional e do significado de formas de


pensamento que se inspiram, simultaneamente, na crise do pensamento e do
projeto de civilização europeu por um lado, e na afirmação de possibilidades
de ser, de poder e de conhecer que superam os limites constituvos da
modernidade eurocêntrica, por outro.

Esse movimento de decolonização da universidade — que se estende globalmente —


incide sobre análises variadas, como vimos, que vão desde experiências institucionais de
ensino, pesquisa e extensão, até estudos sobre o currículo, a didática, as políticas públicas
educacionais, as metodologias de pesquisa, os movimentos sociais, o impacto da inserção de
sujeitos outros no âmbito universitário e a constituição de universidades com propostas
decolonizadoras (indígenas, interculturais, vinculadas a movimentos sociais, etc.)
E não se trata de “teoria”, nos moldes compreendidos pela ciência positiva, como a
busca de uma resposta universal, em abstrato. Ao contrário, como já ressaltado, a
139

decolonialidade constitui-se como “práxis” (WALSH, 2009) ou como uma “relacionalidade”


(MIGNOLO; WALSH, 2018) que busca não apenas a resistência, mas a re-existência, a
redifinição e a ressignificação da relação com o mundo. Daí a importância do “local” na
reflexão que se pretenda decolonial.
Assim, a crítica decolonial da universidade aponta para casos concretos, específicos,
tópicos, até mesmo porque não se propõem ser uma análise generalizável, universalizada, uma
espécie de “lei científica”, ideia matricial ou padrão avaliativo global para a constituição de
universidades, mas um olhar estratégico, vinculado geo-historicamente e biograficamente a
lugares, histórias, coletividades e sujeitos determinados.
Por isso, aqui, não intentamos universalizar a crítica do pensamento decolonial, mas
construir, a partir de suas múltiplas análises, uma ampla paisagem, um pensar, fazer e sentir
em comum, um mural pintado a muitas mãos — exercício proposto pelo pintor colombiano
Adolfo Albán-Achinte (COLECTIVO TRANSDISCIPLINAR, 2018) —, no qual se funda
uma “comunalidade criativa”, na qual nos sentimos, com e a partir dos outros, em uma
comunidade, coparticipantes de uma memória em comum; um grupo entremeado geo-corpo-
politicamente, do qual se origina uma produção socializada e em diálogo constante em torno
das compreensões decoloniais sobre a universidade. Esse diálogo já está sendo realizado, o
debate decolonial extende-se e estabelece alianças de movimentos, autores, ideias e projetos,
forjando caminhos cada vez mais complexos de se descrever.
Neste sentido, esta tese tenta participar desta ampla paisagem, em construção
constante, forjada pela crítica decolonial à universidade, intentando apreender as
compreensões em torno da universidade que emergem das variadas práxis decoloniais. Até o
momento não encontramos uma pesquisa voltada para este esforço sistematizador, de onde
ressai o ineditismo de nossa abordagem.

4 EM BUSCA DA UNIVERSIDADE FRONTEIRIÇA: a Rede


Modernidade/Decolonialidade/Colonialidade (INCOMPLETO E COMENTADO)

Nesta seção, ainda incompleta, iremos analisar, de maneira mais focalizada como a
teoria decolonial pensa a universidade. É, portanto, a seção culminante da tese, em que
nossos esforços estarão voltados para chegar ao alcance de nosso objetivo: compreender
quais as concepções em torno da universidade que emergem da crítica decolonial, e, de
maneira específica, a práxis universitária da Unitierra.
Nesta altura, mobilizaremos o referencial teórico coligido a fim de descrevermos as
convergências, as divergências e considerações que o pensamento decolonial propõem sobre
140

o que tentaremos conceituar como “Universidade Fronteiriça”. A seguir, disponibilizamos


um trecho:

A Rede M/C/D, enquanto “coletividade de argumentação”, isto é, enquanto um


coletivo de intelectuais que passou a compartilhar e realizar as suas investigações a partir de
um acervo conceitual e de um espaço enunciativo em comum, só veio a entretecer as suas
primeiras tramas no final do século XX, não obstante alguns teóricos tenham se conhecido
desde antes da década de 90 (GESCO, 2014). É a partir daí que essa rede vai sendo
constituída por meio de seminários, encontros, diálogos e publicações coletivas.
Resgatar essa genealogia não é tarefa fácil, embora já existam artigos e livros que o
façam de maneira interessante (BALLESTRINI, 2013; ESCOBAR, 2005; GESCO, 2014;
ORTEGA REYNA, 2007; RESTREPO, 2010; ROJAS, 2010; SOTO, 2008) e que
contribuirão para o propósito desta seção, que é mobilizar o referencial teórico da
decolonialidade a fim de descrevermos as convergências, as divergências e considerações que
o pensamento decolonial propõem sobre o que aqui denominaremos de “Universidade
Fronteiriça”.
Em 1998, há um encontro apoiado pelo Conselho Latino-Americano de Ciências
Sociais (CLACSO), realizado na Universidad Central de Venezuela, que reuniu, pela primeira
vez, Edgardo Lander, Arthuro Escobar, Walter Mignolo, Enrique Dussel, Aníbal Quijano e
Fernando Coronil. No mesmo ano, em Binghamton, Nova York, reuniram-se Ramon
Grosfóguel, Agustín Lao-Montes, Enrique Dussel, Walter Mignolo, Aníbal Quijano e
Immanuell Wallerstein a fim de discutirem a herança colonial da América Latina
(BALLESTRIN, 2013; CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGUEL, 2007).
Em 1999, ainda conforme historicizado por Ballestrin (2013), Castro-Gómez e
Grosfoguel (2007), ocorreu na Pontificia Universidad Javeriana, na Colômbia, um simpósio,
organizado por Santiago Castro-Gómez e Oscar Guardiola, que reuniu Walter Mignolo, Edgar
Lander, Fernando Coronil, Aníbal Quijano, Zulma Palermo e Freya Schiwy. Nesse encontro,
estabeleceu-se uma articulação interinstitucional de universidades que será uma constante na
Rede, não obstante as suas críticas teóricas à própria estrutura universitária (Universidad
Javeriana de Bogotá, Duke University, University of North Carolina, Universidad Andina
Simón Bolívar, a qual, depois, se juntam: a Universidade de Berkeley e a Universidade
Nacional Autônoma do México).
Desse encontro surgiram mais duas publicações iniciais: “Pensar (en) los intersticios.
Teoría y práctica de la crítica poscolonial” (1999) e “La reestructuración de las ciencias
141

sociales en América Latina” (2000), ambos editados pelo Instituto de Estudios Sociales y
Culturales Pensar (CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGUEL, 2007).
Nos anos 2000, há uma intensificação de encontros e eventos oficiais da Rede (sete no
total), aos quais acorrem novos intelectuais como Catherine Walsh e Nelson Maldonado-
Torres (BALLESTRIN, 2013). Ao mesmo tempo, a revista Neplanta Views From South54, da
Universidade de Duke, publica um número considerável de artigos assinados pelos autores
supramencionados, como Enrique Dussel, Aníbal Quijano, Edgardo Lander, Walter Mignolo,
Santiago Castro-Gomez, artigos estes que já mencionavam categorias recorrentes no
pensamento decolonial (eurocentrismo, colonialidade do poder, Sistema-Mundo, etc.). Neste
mesmo ano é lançada uma das publicações coletivas mais importantes do coletivo, um marco
inaugural para compartilhamentos teóricos futuros: “A colonialidade do saber: eurocentrismo
e ciencias sociales” (LANDER, 2005).
Ainda no ano 2000, fruto de um encontro organizado por Grosfoguel, em Boston,
correspondente à vigésima quarta edicão do Political Economy of the World-System, no qual
participaram os filósofos colombianos Santiago Castro-Gómez y Oscar Guardiola Rivera, do
Instituto Pensar da Universidad Javeriana, foi publicado o livro “The
Modern/Colonial/Capitalist World-System in the Twentieth Century”, editado por Ramón
Grosfoguel e Ana Margarita Cervantes-Rodríguez (CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGUEL,
2007).
Em 200155, Walter Mignolo organiza, na Universidade de Duke, o encontro intitulado
“Knowledge and the Known”, do qual é fruto um dossiê organizado pela revista Neplanta
Views From South. Neste encontro se fazem presentes o teórico cultural boliviano Javier
Sanjinés e a lingüista norteamericana Catherine Walsh, a qual ainda coordenará um evento em
2002, integrando membros da rede e intelectuais indígenas e afroamericanos do Equador.
Fruto deste encontro foi o livro “Indisciplinar las ciencias sociales. Geopolíticas del
conocimiento y colonialidad del poder”.
Em 2002, em uma palestra intitulada “Worlds and knowledges otherwise”, em
Amsterdam, Escobar (2003) talvez seja o primeiro a tentar dar corpo ao movimento de
constituição da Rede M/C/D, enquanto uma “perspectiva emergente”, um “programa de
investigação” coletivo, ao qual denominará “Programa de Investigação de
Modernidade/Colonialidade”, alimentado por um número crescente de pesquisas, reuniões,

54
Acesso em: https://muse.jhu.edu/issue/1402.
55
A partir daqui, seguimos o roteiro organizado por Castro-Gómez; Grosfoguel, (2007).
142

publicações e outras atividades acadêmicas que giravam em torno de “conceitos


compartilhados”.
Há um terceiro encontro, em 2003, este organizado por Ramón Grosfoguel e José
David
Saldívar em Berkeley (Califórnia), para o qual foi convidado o filósofo Nelson Maldonado-
Torres. Deste evento, destacamos a publicação de “Unsettling Postcoloniality: Coloniality,
Transmodernity and Border Thinking”.
Do quarto encontro, em 2004, também na Universidade de Berkeley, organizado por
Ramón Grosfoguel, Nelson Maldonado-Torres e José David Saldívar, há a publicação de dois
volumes: “Latin@s in the World-System: Decolonization Struggles in the 21st Century US
Empire” (2005), e a obra editada por Ramón Grosfoguel em uma revista acadêmica dirigida
por Immanuel Wallerstein, cujo título é “From Postcolonial Studies to Decolonial Studies”
(2006). Neste momento entabulam relações com o sociólogo português Boaventura de Sousa
Santos e com o filósofo afro-caribenho Lewis Gordon.
No mesmo ano, Arturo Escobar e Walter Mignolo organizam, na Universidade da
Carolina do Norte, um evento intitulado “Teoría crítica y decolonialidad”, do qual sairá um
número da revista Cultural Studies, coordenado por Mignolo e Escobar, cujo título é
“Globalization and Decolonial Thinking”.
Em 2006, o evento intitulado “Mapping the Decolonial Turn”, que dá origem a um
livro homônimo, também aconteceu em Berkeley, sob a organização de Nelson Maldonado-
Torres, e Ramón y José David, com a participação de membros da Associação Filosófica
Caribenha e grupos de intelectuais latino-americanos, afro-americanos e chicanos (CASTRO-
GÓMEZ; GROSFOGUEL, 2007).
A cada encontro, os intelectuais da Rede M/C/D estreitavam seus laços, fortaleciam
suas posições teóricas, ético-políticas e se municiavam para produzirem suas próprias
contribuições individuais.
No final dá década de 2010, por meio de Ballestrin (2013) e Soto (2008), já se pode
identificar as figuras centrais que trouxeram conceitos fundamentais para a Rede M/C/D, isto
é, que geraram o arcabouço teórico que serviu de ponto de partida para os demais membros: o
filósofo argentino Enrique Dussel, o sociólogo peruano Aníbal Quijano e o semiólogo e
teórico cultural argentino Walter Mignolo.
Outrossim, já se identifica um “segundo nível” de integrantes, cujas contribuições,
embora importantes, são derivadas dos aportes iniciais da Rede: Santiago Castro-Gómes,
Arturo Escobar, Edgardo Lander, Fernando Coronil, Nelson Maldonado-Torres, Ramón
143

Grosfoguel, Catherine Walsh, Óscar Rivera, Zulma Palermo, Freya Schiwy, Juliana Flores,
Mónica Espinosa.
A Rede M/C/D, porém, hoje se expandiu sobremaneira, de forma endogâmica
(principalmente por meio do reconhecimento mútuo de seus pares, os quais se citam,
continuamente), muito em virtude, em seu início, da visibilidade proporcionada pelo cenário
acadêmico estadunidense, do qual muitos membros fazem parte, o que se constata pelos
congressos, colóquios, revistas, programas de pós-graduação, criação de instituições
representativas (como universidades), englobando estudiosos de múltiplos lugares e
disciplinas (aqui consideradas formalmente), que subscrevem a perspectiva decolonial e o
estabelecimento de redes institucionais em que circulam seus expoentes, além dos esforços
editoriais que contribuíram para essa consolidação (SILVA, 2018).
Mapear, portanto, esse espraiamento internacional é muito difícil, sem que se incorra
na invisibilização dos coletivos que se multiplicaram. Até porque a história dessa coletividade
ainda está se desenrolando, não sendo possível, pela proximidade dos eventos, precisar o seu
impacto no âmbito intelectual e política, se serão duradouros ou não (RESTREPO, 2010).
Em virtude disso, nossa preocupação é menos com os sujeitos que compõem a rede e
mais com a “coletividade de argumentação”, os conceitos compartilhados e reproduzidos por
ela, os quais são dotados de genealogias próprias e foram se articulando ao longo do tempo,
originando outros conceitos, unificando um modo de tratar o fenômeno da Modernidade. O
fato é que existe uma reivindicacão da denominação “decolonial”, pois muitos investigadores
e autodenominam como tal, bem como as publicações especializadas, não importando a
variedade de temas que abordem (ecologia, feminismo, pedagogia, etc.).
Como ponto de partida, porém, se faz necessário considerar: como reflexão teórica
acadêmica, o pensamento decolonial é recente56, já “nascendo” interinstitucional e
transdisciplinar, sendo muitas as linhas de pensamento evocadas como seus principais
antecedentes, com certas variações de autor para autor.
Reyes (2016), por exemplo, considera como principais antecedentes do pensamento
decolonial a Filosofia da Liberação de Dussel, as análises do Sistema-Mundo propostas por
Wallerstein, os estudos chicanos, pós-coloniais, além do marxismo e feminismo negro e as
das chamadas “epistemologias do Sul”.

56
Para os fins desta tese, conforme ressaltamos na primeira seção, não levaremos em conta a genealogia da
decolonialidade como ela vem sendo constituída por autores da própria Rede. Para Mignolo (2003, 2008) e
Maldonado-Torres (2009), por exemplo, a decolonialidade e o pensamento filosófico decolonial surge há mais
500 (quinhentos) anos, já como contraparte dos processos colonizadores, encarnada nos movimentos de
resistência de indígenas e escravizados, nos movimentos anticoloniais da Ásia e da África, e em uma longa
linhagem de teorias e teóricos críticos (Frantz Fanon, Paulo Freire, Aime Cesáire, etc.).
144

O autor ressalta o papel dos imigrantes, principalmente de origem latina, que se


formaram nos EUA, afirmando “que não é coincidência que quem inicia o giro decolonial
sejam professores de departamentos precisamente de estudos étnicos (das universidades norte-
americanas), como Ramón Grosfoguel e Nelson Maldonado-Torres, entre outros” (REYES,
2016, p. 139). Acrescenta, ainda, que “a competitividade destas universidades e o impacto que
tem a nível global, ajudaram a dar a conhecer as preocupações do giro decolonial” (REYES,
2016, p. 146).
Restrepo (2010) destaca na genealogia do pensamento decolonial a crítica latino-
americana e caribenha ao colonialismo e ao eurocentrismo consubstanciada nos aportes de
Cesáire, Fanon, da Filosofia da Liberação de Dussel, da Teoria da Dependência de Gunder-
Frank, da Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire e da Ação-Participativa do sociólogo Fals
Borda.
Grosfoguel (2006), por sua vez, cita o que chama de “cinco perspectivas decoloniais”
que entraram em diálogo de maneira a integrar a perspectiva decolonizadora: a análise do
Sistema-Mundo (Wallerstein), Colonialidade do Poder (Quijano), Filosofia da Liberação
(Dussel), Pensamento feminista do Terceiro Mundo (Anzaldúa) e Pensamento Fronteiriço
(Mignolo).
O debate amplia-se em Escobar (2003), que expande essa genealogia, conforme
tradução de Ballestrini (2013, p. 99):

Teologia da Libertação desde os sessenta e setenta; os debates na filosofia e


ciência social latino-americana sobre noções como filosofia da libertação e
uma ciência social autônoma (por ex., Enrique Dussel, Rodolfo Kusch,
Orlando Fals Borda, Pablo Gonzáles Casanova, Darcy Ribeiro); a teoria da
dependência; os debates na América Latina sobre a modernidade e pós-
modernidade dos oitenta, seguidos pelas discussões sobre hibridismo na
antropologia, comunicação nos estudos culturais nos noventa; e, nos Estados
Unidos, o grupo latino-americano de estudos subalternos. O grupo
modernidade/colonialidade encontrou inspiração em um amplo número de
fontes, desde as teorias críticas europeias e norte-americanas da
modernidade até o grupo sul-asiático de estudos subalternos, a teoria
feminista chicana, a teoria pós-colonial e a filosofia africana; assim mesmo,
muitos de seus membros operaram em uma perspectiva modificada de
sistema-mundo. Sua principal força orientadora, no entanto, é uma reflexão
continuada sobre a realidade cultural e política latino-americana, incluindo o
conhecimento subalternizado dos grupos explorados e oprimidos (Escobar,
2003, p.53).

Tal variabilidade de fontes denota que não é uma preocupação da decolonialidade, de


uma forma geral, ignorar e desprezar conhecimentos cultivados na Europa ou nos EUA tão
145

somente por sua origem geográfica57. Teorias críticas como o marxismo, a influência
foucaultiana, direta ou indiretamente, por via dos estudos pós-coloniais 58, a própria influência
de teóricos como Levinas no pensamento de Dussel, revelam que o pensamento decolonial
utiliza conhecimentos eurocêntricos, propondo não o desprezo, mas uma ressignificação deles
em chave decolonial, embora isto também seja motivo de conflitos no interior da Rede.
Por isso, a representação de outras correntes teóricas tem se dado de maneira múltipla
entre os decoloniais, no sentido de crítica e debate em torno de suas próprias perspectivas 59, as
quais estão em permanente construção. E essas críticas mútuas, que transcendem questões
conceituais, abarcando posições ético-políticas, para além de configurarem-se como
fragilidade na Rede, tem se tornado uma oportunidade de oxigenação de suas reflexões e
reposicionamentos (SOTO, 2008).
Nesse mesmo teor, afirma Grosfoguel (2013, p. 42):

Primeiramente, gostaria de esclarecer que não existe um grupo de


modernidade/colonialidade, isso é uma ficção. Por favor, escreva como estou
dizendo. É uma grande ficção, não existe tal coisa. O que existe é uma rede,
e é uma rede muito fraca. As pessoas pensam que este é um grupo e que
pensamos da mesma forma. Não, ninguém aqui pensa o mesmo. A rede é
heterogênea e dentro dela há fortes críticas. Alguns eu tornei públicos.

Entre tais discordâncias, podemos citar as críticas de Grosfoguel (2013, 2016, 2018) a
práticas ético-políticas da Rede, mais especificamente a Quijano e Mignolo, os quais são
acusados, por ele, de racismo e extrativismo epistêmico. O intelectual porto-riquenho,
evocando argumentos já utilizados por Cusicanqui (2010), diz que ambos os autores se
utilizam de ideias e reflexões propugnadas por pensadores negros, indígenas, sem atribuir-lhes
a devida autoria, o que iria de encontro aos seus próprios discursos.
Outro ponto de conflito surgiu em 2017, quando das eleições regionais venezuelanas.
Um documento, estilo “Manifesto”, promovido por alguns intelectuais de esquerda, entre os

57
Não obstante seja necessário ressalvar a crítica realizada por Grosfoguel (2013, 2018) em relação a Mignolo,
exatamente nesses termos, o que chama de “populismo epistêmico”.
58
Acreditamos, porém, que entre os principais membros da Rede, ocorreu, ao longo do tempo, diferentes formas
de lidar, seja com o pensamento marxista, seja com a influência de Michel Foucault, na formação do pensamento
decolonial. Nesse sentido, ver Urrego (2018, p. 196), que critica a pretensão dos decoloniais em reclamarem-se
como herdeiros legítimos de uma suposta herança do que há de “mais avançado no pensamento latino-
americano”, uma espécie de metonímia da tradição crítica latino-americana, ponto em que não concordamos: em
nossas leituras não encontramos nada que avalize a ideia de que o giro decolonial pretenda subsumir, avançar,
substituir ou superar propostas críticas latino-americanas anteriores. Na verdade, trata-se, a nosso ver, mais de
entretecer projetos comuns e variados que se unem como crítica à Modernidade, ao capitalismo e aos efeitos da
colonização.
59
Confessamos, porém, que em certos momentos, tais críticas, como veremos, parecem descambar para
acusações pessoais, de caráter ad hominem, o que parece tornar-se o risco de qualquer perspectiva que exige
coerência entre o teorizar e o agir, no caso, uma coerência fundada na práxis decolonial.
146

quais membros da Rede M/C/D, como Boaventura de Souza Santos, Zulma Palermo, Mignolo
e Quijano, foi rechaçado por outros membros, como Grosfoguel e Dussel, gerando um debate
em torno de questões estratégicas de soberania do Estado, Democracia e dos Direitos
Humanos diante da ameaça de nações do Norte Global (EUA) à soberania de outros países60.
Não obstante as diferenças, a “coletividade de argumentação” se impõe,
principalmente em seu caráter conceitual.
De fato, há conceitos recorrentes nas análises decoloniais, alguns dos quais já foram
enunciados na primeira seção, mas que precisam ser analisados com mais detalhe, até para
que possamos compreender a crítica decolonial da universidade.
Antes de tudo, é importante destacar que o pensamento decolonial representa uma
leitura da Modernidade, enquanto fenômeno Ocidental, partindo de um postulado central: a
colonialidade é constitutiva da Modernidade, não derivada. Para os decoloniais, e nisto
herdam concepções já presentes em teóricos pós-coloniais61 como Said (1990), a própria ideia
de Europa e de Modernidade, foi constituída por meio de sua contraface: o colonizado não
europeu.
Tal perspectiva, portanto, se insurge contra uma leitura eurocêntrica, na qual apenas
fenômenos intra-europeus seriam responsáveis pelos processos sociais que culminaram na
Modernidade e dali é apenas exportada, com maior ou menor êxito, para outras geografias do
mundo. Assim, partem da premissa de que tanto a transição do modo de produção feudal para
o capitalismo, o Renascimento, a Reforma Protestante, a emergência do circuito comercial do
Atlântico, dos Estados-Nação, da Ciência Moderna, a Ilustração, a Revolução Industrial e as
Revoluções burguesas se articularam inextricavelmente com as políticas colonialistas
adotadas, a partir do final do século XV (ESCOBAR, 2003; OLIVEIRA; GOMES, 2021).
Isso já está subsumido na ideia de Sistema-Mundo de Wallerstein (1988, 2005a,
2005b), e suas posteriores críticas sobre o universalismo e o papel da “raça” na estruturação
da divisão social do trabalho, cujos estudos foram essenciais para que Quijano desenvolvesse,
posteriormente, o conceito de colonialidade62.

60
É bem verdade que a questão “Venezuela” tem dividido a esquerda de uma forma geral, em seus mais variados
matizes, não sendo uma prerrogativa dos decolonias esse debate acalorado.
61
Uma análise mais detida das convergências e divergências entre o pensamento pós-colonial, subalterno e dos
Estudos Culturais em relação aos decoloniais, que foge ao escopo dessa investigação, é realizada por Restrepo
(2010), além de Castro-Gómez e Grosfoguel (2007).
62
Concordamos com Restrepo (2010) quando diz que a influência de Wallerstein para o desenvolvimento do
pensamento decolonial ainda merece um estudo mais detido, uma vez que alguns posicionamentos atribuídos a
Quijano já estavam nos trabalhos do sociólogo estadunidense. Para Soto (2008), “Sistema-Mundo” é o conceito
de onde partem e se sustentam todos os demais.
147

Segundo Wallerstein, tendo por influência a Teoria da Dependência, o Moderno


Sistema Mundial capitalista pode ser entendido como um conjunto de redes e circuitos
comerciais que surgiram nas expansões coloniais europeias nos séculos XV e XVI. A partir de
então, o capitalismo, dentro de uma estrutura de acumulação primitiva, constituiu-se
globalmente, forjando centros, periferias, relações assimétricas entre os Estados (e Colônias),
criando, pela primeira vez, a própria noção de uma “História Mundial”, criticada,
posteriormente, pela perspectiva decolonial. (WALLERSTEIN, 2005b).
Para Wallerstein, porém, a articulação deste Sistema-Mundo iria além do mero
processo de acumulação originária de capital e a consequente Divisão Social do Trabalho
entre nações subdesenvolvidas e desenvolvidas (criando fornecedores históricos de
commodities e força de trabalho a ser explorada, por um lado, e de produtos manufaturados e
tecnológicos, por outro). Manifestações culturais também estariam presentes nesta
configuração, o que Wallerstein (2005a) chamou de “geocultura”, isto é, componentes
simbólicos, de ordem ideológica, encarnados nas instituições, nos sujeitos, nos discursos
(jurídicos, políticos, filosóficos, etc.) que reforçariam as hierarquias estabelecidas.
Importante ressaltar, ainda, que desde a década de 80, Wallerstein (1988) já
sublinhava como o universalismo (que recebe uma crítica epistemológica bem demarcada a
partir de suas reflexões sobre as Ciências Sociais) e o racismo 63 (além do sexismo) foram
marcadores ideológicos do capitalismo histórico. O que autor chamou de “racismo
institucional” diz respeito à justificação ideológica de uma divisão social hierarquizada da
força de trabalho, isto é, da socialização (e naturalização) de grupos sociais em determinados
papéis de submissão e desigual repartição das riquezas. Nesse contexto, por exemplo, a
negros e indígenas foi destinado os trabalhos forçados, enquanto aos brancos não
proprietários, o trabalho assalariado.
Quijano conheceu e trabalhou com Wallerstein por muitos anos na Universidade do
Estado de Nova York, o que influenciou em demasia a sua própria produção teórica
(CASTRO-GOMES; GROSFOGUEL, 2007). De fato, foi a partir de suas reflexões e debates
em torno da noção de Sistema-Mundo que desenvolveu o conceito de colonialidade.
Ressaltamos antes, porém, o debate aberto por Grosfoguel de que o conceito de
colonialidade não foi “achado” por Quijano, conforme suas palavras:

63
Importante informação, considerando-se que, não poucas vezes, lemos trabalhos que consideram Quijano
como o primeiro teórico que identificou nexos entre a constituição do Sistema-Mundo e a questão racial. Ex:
Orellana (2016)
148

Sempre disse que a palavra "colonialidade" cunhada por Quijano já é dita


por outras pessoas como as feministas chicanas e é uma ideia que já se
encontrava antes nas formulações do pensamento africano (Kwame
Nkhruma) e negro no
Américas (ver Frantz Fanon, Aimé Cesaire, W.E.B. Dubois, Angela Davis,
Sylvia Wynter, Abi Dias Nascimento, Cedric Robinson, etc.) outros termos.
A ideia de “colonialidade”, ou seja, que a raça é um princípio organizador da
lógica da acumulação de capital, economia política e a divisão internacional
do trabalho do sistema capitalista mundial desde o século 16 existe desde faz
muito tempo. Quijano não está na origem esta ideia (GROSFOGUEL, 2013,
p. 43).

Mesmo assim, é de se considerar válido que o conceito “colonialidade” cunhado por


Quijano se tornou, para muitos, a principal categoria do giro decolonial, sob a qual se
congregam todas as demais (GESCO, 2014; ESCOBAR, 2003). Segundo o próprio sociólogo
peruano, o termo foi introduzido em um artigo no início da década de 90, e foi se
reconfigurando desde então até se tornar o conceito compartilhado na Rede M/C/D64:

A colonialidade é um dos elementos constitutivos e específico do padrão de


poder capitalista. É fundado em imposição de uma classificação racial/étnica
da população do mundo como a pedra angular do referido padrão de poder e
opera em cada um dos planos, áreas e dimensões, materiais e subjetivas, da
existência social cotidiana e em escala social. Se origina e mundializa a
partir da América (QUIJANO, 2000, p. 285)

Fica claro, portanto, que a noção de “raça” se torna determinante para a classificação
da população mundial a partir de um espaço provincial que se universaliza: a Europa. Assim,
por meio da classificação racial, o controle global do trabalho, dos seus recursos e produtos
envolve não somente a divisão racial do trabalho, mas criação de novas hierarquias, baseadas
em subjetividades racializadas, ou seja, cria-se uma “diferença colonial” (MIGNOLO, 2003).
Uma crítica muito comum de alguns decoloniais à Wallerstein era a de que
privilegiava as relações econômicas e políticas, às custas de determinações culturais e
ideológicas, que estariam em uma esfera mais superestrutural de análise, além de limitar a sua
“Modernidade” aos tempos da Ilustração65 (DUSSEL, 2001; MIGNOLO, 2003). Nessa
medida, para os decoloniais, o grande avanço da articulação entre Sistema-Mundo e
colonialidade estaria em borrar estas fronteiras, tornando as estratégias simbólicas e
ideológicas, bem como a cosmovisão eurocêntrica, constitutivas da economia política do
Sistema-Mundo capitalista, desde a conquista da América (CASTRO-GÓMEZ;
GROSFOGUEL, 2007).
64
Restrepo (2010) faz um interessante desenvolvimento do conceito de “colonialidade”, como ele foi se
desenvolvendo em artigos seminais do autor sobre o tema.
65
Crítica semelhante é feita à teóricos como Said (1990), que parecem ignorar em suas temporalidades, o papel
da América na constituição do “Ocidente”.
149

Nesse sentido, colonialidade e colonialismo ocorrem de maneira concomitante,


embora não expressam o mesmo fenômeno histórico. Segundo Maldonado-Torres (2007), por
exemplo, o colonialismo moderno é uma relação político-econômica de subordinação entre
colonizador e colonizado, vinculado ao controle da autoridade política, dos recursos
produtivos, do trabalho de uma população, na qual as sedes centrais de poder estão em outra
jurisdição territorial. Já a colonialidade, como vimos, transcende o colonialismo, persistindo
até hoje, mesmo após inúmeros movimentos anticolonialistas, como um padrão de poder
existente nas subjetividades, nos manuais de aprendizagem, na cultura, na auto-imagem dos
povos, nos imaginários, nas formas de ler e interpretar o mundo.
No âmbito epistemológico, essa colonialidade revela-se como eurocentrismo, o qual,
segundo Castro-Gómez e Maldonado (2007, p. 20), é “uma atitude colonial frente ao
conhecimento, que se articula de forma simultânea com o processo das relações centro-
periferia e as hierarquias étnico-raciais”. O eurocentrismo também já estava presente nas
reflexões marxistas de Wallerstein (1988; 2005a) e Amin (1989), de Dussel (2001, 2013), de
teóricos pós-coloniais como Said (1990), o que converge no pensamento decolonial como
crítica a uma razão colonial que hierarquiza sujeitos, tempo e espaço.
Dentro de uma perspectiva eurocêntrica, somente o conhecimento gerado em
sociedades colonizadoras, dentro do Sistema-Mundo Moderno, pode ser considerado o
“conhecimento verdadeiro”, aplicável a todas as sociedades, em todos os tempos e lugares.
Nessa perspectiva há o ponto de vista central (europeu ocidental) e os periféricos, que nada
mais são do que formas incompletas de realização de um ideal moderno. Segundo Quijano
(2000), o eurocentrismo abarca dois mitos: a ideia-imagem da história humana como uma
trajetória ascendente e teleológica que culmina na Europa e o estabelecimento de diferenças
entre europeus e não europeus como diferenças naturais (raciais) e não vinculadas a desiguais
arranjos de poder.
A própria constituição da Ciência Moderna, principalmente das Ciências Sociais, é
uma expressão dessa relação assimétrica de poder. O pensamento decolonial (DUSSEL, 2008;
MIGNOLO, 2004; WALLERSTEIN, 1996, 1999) considera a formação das Ciências Sociais
como parte de um projeto de governamentalidade dos Estados centrais em relação às suas
periferias.
Wallerstein (1999) já nos exortava a refletir sobre as Ciências Sociais, para além da
lógica de organização e controle dos grupos sociais. Said (1990) também ressaltava a relação
entre Ciências Humanas e o colonialismo, notadamente o inglês e o francês. Castro-Gómez
(2000) vai além ao afirmar que as Ciências Sociais criam subjetividades, representações do
150

“outro”, por meio de seus dispositivos de saber/poder. Aliás, mobiliza categorias de Bourdier
e Foucault junto a Quijano para desdobrar a colonialidade em um campo epistemológico,
discursivo — o que chama de “colonialidade do saber” — forjando outro conceito
fundamental para o pensamento decolonial: a hibrys do ponto zero.

Surge então a pergunta: qual é o dispositivo de poder que gera o sistema-


mundo moderno/colonial e que é reproduzido estruturalmente no interior de
cada um dos estados nacionais? Uma possível resposta pode ser encontrada
no conceito de colonialidade do poder sugerido pelo sociólogo peruano
Aníbal Quijano (1999: 99-109). Na opinião de Quijano, a espoliação
colonial é legitimada por um imaginário que estabelece diferenças
incomensuráveis entre o colonizador e o colonizado. As noções de raça e de
cultura operam aqui como um dispositivo taxonômico que gera identidades
opostas. O colonizado aparece assim como o outro da razão, o que justifica o
exercício de um poder disciplinar por parte do colonizador. A maldade, a
barbárie e a incontinência são marcas identitárias do colonizado, enquanto
que a bondade, a civilização e a racionalidade são próprias do colonizador.
Ambas as identidades se encontram em relação de exterioridade e se
excluem mutuamente (CASTRO-GÓMES, 2000, p. 83).

Em sua obra, Castro-Gómez (2005) visualiza as dinâmicas de poder do Vireinato de


Nueva Granada e como os discursos em tornos da pureza racial e da objetividade científica,
contribuirão como regimes produtores de sujeitos, estabelecendo novas e excludentes formas
de saber, bem como classificando e taxotonomizando as populações. Para tal, insurge-se
contra a matematização da realidade (da natureza, do cosmos), como protótipo do pensamento
verdadeiro, tendo por fundamentação Descartes66, mais precisamente, a sua busca pela dúvida
metódica — o ego cogito — como caminho para a universalidade e para o abandono de todas
as incertezas. Sobre isso, diz Soto (2008, p. 28): “a universalidade do conhecimento não podia
estar ligada a pluralidade de espaços e culturas”. Para Castro-Gómez (2005, p. 25), Descartes
funda um novo começo:

Começar tudo de novo significa ter o poder de nomear pela primeira vez o
mundo; de traçar fronteiras para estabelecer quais conhecimentos são
legítimos e quais são ilegítimos, definindo por exemplo, quais
comportamentos são normais e quais são patológicos. Portanto, o ponto zero
é o começo epistemológico absoluto, mas também o é do controle
econômico e social sobre o mundo. Localizar-se no ponto zero equivale a ter
o poder de instituir, representar e construir uma visão sobre o mundo social e
natural reconhecida como legítimo e endossada pelo Estado. É uma
66
Há uma acusação em relação a critica que pensadores decoloniais, principalmente Dussel, fazem à filosofia de
Descartes, de que suas premissas seriam apenas um “espantalho” das ideias cartesianas (CHAMBERS, 2019).
Em nosso caso, ressaltamos que Francis Bacon foi tão importante quanto Descartes no soerguimento das bases
do pensamento moderno, e que se prolongaram, juntamente com Galileu e Newton, nas construções teóricas da
Era Iluminista. Pensamos, porém, que Bacon ainda não recebeu a devidade atenção dos teóricos decoloniais. A
sua importância, aliás, é defendida com grande erudição e farta documentação bibliográfica, por Ernest Cassirer
(1997).
151

representação em que "varões ilustrados" se definem como observadores


neutros e imparciais da realidade”

A hibrys do ponto zero assim, segundo Castro-Gómez (2005), seria este “não-lugar”
epistemológico, em que pensadores europeus se propunham o distanciamento de pré-juizos ou
pontos de referência concretos a fim de construírem um pensamento objetivo a partir de um
ponto neutro de reflexão. O conhecimento científico, portanto, seria o “ponto zero” do
conhecimento, isto é, um conhecimento não situado, ahistórico, capaz de distanciar-se do
mundo a fim de explica-lo a partir de um ponto de vista universal, que se pretende neutro e
absoluto. O giro decolonial se insurge contra essa pretensão de universalidade, notadamente
das Ciências Sociais, por meio da crítica da geopolítica do conhecimento (MIGNOLO, 2003,
2004). Aliás, por meio do conceito de hibrys, emerge uma das principais críticas do
pensamento decolonial às universidades, propondo-se a reestruturação ou mesmo a
refundação destas.
Historicamente, por meio da colonialidade e do eurocentrismo, a vinculação entre
conhecimento e poder ancora-se em determinadas operações cognitivas, que se tornaram
universalizáveis em virtude da expansão do cientificismo europeu: separar o “real” de
maneira dualística (consciência/realidade; razão/emoção; fato/valor; teoria/prática;
parte/conjunto; natureza/cultura; etc.); dividir o mundo em unidades isoladas; converter
diferenças em hierarquias, naturalizando essas representações. Dentro de uma perspectiva da
geopolítica do conhecimento, a avaliação dos saberes, principalmente da produção científica,
passa a ser avaliada segundo essas operações, sob critérios meritocráticos quantificáveis e de
hierarquização dos circuitos de distribuição do conhecimento, criando espaços monolíticos de
enunciação privilegiados, como as instituições universitárias, com base em uma suposta
superioridade epistêmica, cuja base é o racismo epistêmico (GESCO, 2012).
Pensamos já ter ficado claro que colonialidade perpassa a cultura, a economia, a
política, também o simbólico, o epistêmico e o ontológico, ou seja, forma uma
articulação heterárquica, uma rede de múltiplos regimes de poder, hierarquizações e
opressões67 (CASTRO-GÓMEZ, GROSFOGUEL, 2007), a qual exige grande amplitude
analítica que, como vimos, costuma ser reproduzida em três dimensões 68 não estanques,
mas inter-relacionadas: a colonialidade do poder, do saber e do ser.
Essa multidimensionalidade do pensamento decolonial, bem como a fertilidade de
sua expansão conceitual (interculturalidade crítica, diferença colonial, pensamento fronteiriço,
67
Pensamos que, aqui, o giro decolonial encontra-se com as reflexões sobre interseccionalidade (CRENSHAW,
2002, 2006).
68
Em Quijano, porém, o termo colonialidade já abarcava todas essas dimensões (RESTREPO, 2010).
152

pedagogia decolonial, etc.), conforme a coletividade de argumentação se expande, tem feito


com que seja uma perspectiva teórica adotada nos mais diferentes estudos: de gênero,
sexualidade, ecologia, economia política, movimentos sociais, pedagogia, entre outros.
Faz-ze necessário sublinhar, no entanto, como já feito na primeira seção, que o
pensamento decolonial almeja ser mais que uma análise teórica, mas uma postura ético-
política de transformação da realidade. Para isso, não se contenta com a mera crítica
acadêmica, mas com a proposição de uma “atitude decolonial”, frente as hierarquizações e
opressões que denuncia (MALDONADO-TORRES, 2008).
Uma das propostas mais recorrentes nas análises decoloniais ancora-se nas análises
de Dussel, cujas contribuições teóricas convergiram, no final do século, para o pensamento
decolonial, mas que já tinham sido desenvolvidas desde, pelo menos, a década de 70. De fato,
difícil consultar um texto sobre as genealogias possíveis do giro decolonial sem que apareça a
Filosofia da Liberação do filósofo argentino (BALLESTRINI, 2013; ESCOBAR, 2005;
GESCO, 2014; ORTEGA REYNA, 2007; RESTREPO, 2010; ROJAS, 2010; SOTO, 2008).
Dussel (1973, 1974, 1993, 2017) é fundamental como crítico da Modernidade,
contribuindo para que os decoloniais, referenciados em seus estudos, situem a sua origem em
1492, quando das expansões marítimas iniciadas por Portugal e Espanha, bem como
encontrem uma proposta de superação do eurocentrismo em um outro projeto ético-político e
filosófico: a transmodernidade.
Em sua questão sobre se existe uma alteridade e uma exterioridade do “Outro” ao
Sistema-Mundo Moderno Colonial, partindo das reflexões de Levinas, encontra a “vítima” da
Modernidade, isto é, aquele que não é exterior como um puro afora intocado pela
Modernidade, mas como um “Outro” que é constituído como diferença pelo pensamento
hegemônico (BAUTISTA S., 2011). Este Outro torna-se a fonte original do discurso ético,
sendo a sua interpelação uma condição necessária para a recuperação de uma racionalidade
crítica, em detrimento da racionalidade dominadora.
Neste ponto, uma reflexão que será fundamental para o pensamento decolonial se faz
presente: é impossível superar ou mesmo pensar a Modernidade sem se acercar da diferença
colonial que lhe é constitutiva. Ignorar isto é reforçar o que Dussel (1993) chama de “mito da
Modernidade”, isto é, que a Modernidade é um fenômeno autoconstituído, produto de si
mesma, resultada de fenômenos intraeuropeus, o que ocultaria o colonialismo (e a
colonialidade) subjacentes bem como uma falácia, a desenvolvimentista.
153

Uma vez invisibilizada a colonialidade 69 desse processo, a Modernidade aparece com


uma racionalidade interna e progressiva, ocultando a irracionalidade violenta contra o outro,
uma irracionalidade que se oculta sob um discurso salvacionista, redentivo e teleológico, cujo
ponto culminante de desenvolvimento coincide com o sujeito europeu. Aqui, faz-se presente o
“mito sacrificial” da modernidade, o qual pode ser resumida nos seguintes pontos (DUSSEL,
1993): a civilização moderna se autocompreende como superior; essa superiodade cria o
imperativo moral de desenvolver o mais “primitivo”; o modelo de desenvolvimento é o
prescrito pela Europa; caso o “bárbaro” se oponha, a violência civilizadora é justificável; a
Modernidade aparece como salvadora (que retira os sujeiros de sua menoridade); o sacríficio
do “Outro” é inevitável (SOTO, 2008).
Como contraponto ao mito da Modernidade, Dussel (2006) propõem um projeto
político, uma práxis transmoderna, cuja marca é a decolonização da Modernidade. Tal
decolonização não configura um abandono das instituições modernas, ou de seus valores, mas
sua ressignificação, uma reinscrição em sentidos comuns diferentes, em formas de vida não
eurocêntricas. Para isso, há que se tomar em conta a diversidade cosmológica e
epistemológica do mundo e a necessidade do diálogo interepistêmico e intercultural,
questionando a hegemonia do olhar europeu sobre todas as demais culturas.
Por causa das limitações do eurocentrismo, Dussel (2006) diz que há uma infinidade
de culturas e sociedades que coexistem, de maneira conflituosa, com a Modernidade, as quais
foram consideradas bárbaras, primitivas, não modernas, inferiores. O primeiro passo rumo ao
projeto transmoderno é o reconhecimento dessas alteridades culturais negadas, de suas
transformações ao serem atravessas pela Modernidade, de maneira a que sejam realçadas em
sua importância na construção de outros mundos possíveis, por meio de um diálogo simétrico.
Nesse sentido, Dussel (2000) e, por conseguinte, os teóricos da decolonialidade, não
recusa a Modernidade, mas assume as suas conquistas e limitações, preconizando que as
experiências dos grupos sociais que foram inferiorizados podem contribuir para a
humanização dos oprimidos, isto é, daqueles que tiveram, historicamente, a sua humanidade
negada.
Na utopia transmoderna, portanto, funda-se uma outra civilização, nas palavras de
Dussel (2012, p. 17):

69
Dussel faz parte da “coletividade de argumentação” da decolonialidade por dois motivos: serve de
fundamentação teórica para muitos membros da Rede, e, ele mesmo, a partir do início do século XXI, começou a
utilizar conceitos oriundos do giro decolonial, como decolonialidade (DUSSEL, 2000, 2016).
154

A utopia a ser delineada não é algo mais radical e inovador do que uma
modernidade de outro tipo? Não surgirá uma nova civilização transmoderna?
E, portanto, não mais moderna ou capitalista, e tampouco colonialista, nem
eurocêntricos, nem dilapidadora da vida no planeta Terra, fruto não de um
desenvolvimento da modernidade, mas como efeito de uma elaboração que
parte das culturas periféricas dominadas, e desde o início desprezada e
negada pela modernidade; e que, em relação a ela, mantinham certa
exterioridade no horizonte da estrutura do sistema-mundo que a
modernidade dominava e explorava. Essas culturas coloniais da
modernidade tornam-se autoconscientes de seu valor, recuperam, para a sua
libertação, memórias da história de seu passado esquecido, e a partir desse
mesmo passado (em diálogo não fundamentalista com a modernidade),
crescem em direção a um futuro pluriverso planetário, onde não se pode falar
de uma cultura universal e nem mesmo de identidade, senão em um processo
analógico mútuo de afirmação da semelhança e progresso na diferença e
tradução como um esforço para construir a novidade sem dominação. Não
será uma cultura, nem mesmo uma totalidade concreta, mas um mundo
cultural plural com conexões transversais de mútuo enriquecimento. Cada
cultura não perderá sua riqueza, mas a acrescentará à partilha mútua de sua
originalidade com outras culturas. A identidade substantiva dará lugar à
pluralidade analógica na distinção e na pluriversidade transmoderna por
convergência

Na transmodernidade, portanto, há um radical rompimento com os pressupostos


constitutivos da Modernidade: capitalismo, eurocentrismo e colonialidade e a emergência de
uma nova atitude ontológica ante a natureza, o trabalho, a propriedade privada e tudo o que
circunda as relações humanas, tendo como único projeto universal a pluriversalidade.
O pensamento decolonial assume-se transmoderno. Castro-Gómez e Grosfoguel
(2007) claramente se colocam como tributários do pensamento dusseliano. Da mesma forma,
Mignolo (2008, 2010) desenvolverá suas reflexões, tendo como ancoragem as contribuições
de Quijano e Dussel.
Mignolo foi membro do Grupo de Estudos Subalternos Latino-Americano. É
importante ressaltar esse fato, uma vez que o autor, como semiólogo, irá se apropriar da
crítica pós-colonial dos discursos eurocêntricos, notadamente a indiana (Partha Chatterjee,
Dipesh Chakrabarty, Gayatri Chakrabarty Spivak, Ranajit Guha), de maneira a questionar os
seus pressupostos teóricos e assumir uma perspectiva decolonial.
Para Mignolo (2008), o pensamento decolonial afasta-se do Grupo Subalterno em
algumas frentes: primeiro, distancia-se dos seus referenciais teóricos, notadamente da
influência de referencias pós-estruturalistas e pós-modernos (Deleuze, Foucault, Derrida).
Segundo Mignolo, a crítica pós-moderna, apesar de criticar a Modernidade, ainda o faz a
partir de uma perspectiva eurocêntrica; segundo, a perspectiva pós-colonial parte de um
processo histórico específico — a colonização da Ásia e da África dos séculos XVIII e XIX
155

—, praticamente ignorando o impacto global do colonialismo de final do século XV que


iniciou com a invasão/criação da América (BERNARDINO-COSTA; GROSFOGUEL, 2016).
Por isso, o giro decolonial se volta para a práxis latino-americana, seus sujeitos,
grupos sociais e teóricos, reposicionando o continente como essencial para a constituição do
Sistema-Mundo Moderno Colonial. Mignolo compreendeu isso, tendo por influência central
em suas análises tanto a noção de colonialidade, quando a interpretação da histórica e o
projeto transmodernos de Dussel.

[CONTINUA...]

3.1 O pensamento decolonial em torno da universidade (COMENTADO).

Nesta subseção analisaremos o corpus textual delimitado. Iniciaremos por uma


reconstrução da crítica decolonial da universidade a partir das obras inaugurais da Rede,
suas principais preocupações e temáticas (Quadro I), para, a seguir, nos debruçarmos
diretamente sobre as obras que abordam a questão universitária a partir do referencial
teórico da decolonialidade.
Para a abordagem de tais textos adotaremos a leitura analítico-temática
(SEVERINO. 2009), que objetiva apreender as ideias motrizes dos autores, a integralidade
de seus raciocínios, a mensagem que pretendem comunicar, aos quais deve se somar a nossa
interpretação, em que dialogamos com as ideias expressas e refletimos sobre o conteúdo de
seus textos a partir de referências externas ao texto.
Dentro do que nos propomos metodologicamente, por exemplo,
operacionalizaremos a metodologia de leitura analítico-teórica (SEVERINO, 2009) a partir
de uma leitura decolonial, na qual marcadores como “universidade”, “conhecimento”, entre
outros, serão interpretados à luz de uma atitude decolonial.

3.2 A Universidad de la Tierra (COMENTADO)

Nesta subseção traremos o estudo de caso da Universidad de la Tierra, como a práxis


universitária escolhida. Metodologicamente, temos um interessante material bibliográfico
que pode nos dar vislumbres sobre o seu funciomento, valores, influências teóricas e
propostas, inclusive a partir de teóricos decoloniais.
156

Ainda estamos verificando a possibilidade de acesso e uso de documentos gerados


pelo pelo próprio movimento que constrói tal experiência universitária (o movimento
zapatista), bem como entrevista com um de seus principais criadores – Gustavo Esteva – a
fim de colher fontes primárias de investigação da práxis selecionada.
Embora não universalizável, pensamos, como explicado na primeira seção, que a
Unitierra pode nos fornecer importantes chaves de compreensão para os demais projetos
decolonizadores da universidade que são realizados ao redor do planeta.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS (PENDENTE)

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