O Dispositivo Como Estratégia Narrativa - Cezar Migliorim
O Dispositivo Como Estratégia Narrativa - Cezar Migliorim
O Dispositivo Como Estratégia Narrativa - Cezar Migliorim
Cezar Migliorin
Artista, professor e pesquisador. Realizou os vídeos: Tempo Sul
(2001), Ação e Dispersão (2003) - melhor curta na Mostra Filme
Livre 2004, O esquecimento (2004) e, recentemente, a vídeo-instalação O Traidor.
Como montador de cinema já foi premiado no
RioCine Festival e no Festival de Gramado. É professor da
Universidade Estácio de Sá e doutorando em Comunicação na UFRJ. Publicou
artigos sobre Sérgio Bianchi, Arthur Omar, cinema digital e documentários
contemporâneos.
Nos últimos anos, a noção de dispositivo tem se tornado cada vez mais freqüente
na reflexão teórica em torno de dois campos específicos do audiovisual
contemporâneo: o documentário e as produções ligadas à videocriação. Seu uso
mais freqüente é para se referir à disposição dos elementos constituintes de uma
obra. É nesse sentido que Philippe Dubois, em seu recente livro, Vídeo, Cinema,
Godard (2004) fala do cinema como um "dispositivo modelo", sala escura, silêncio,
espectadores imóveis, etc. O dispositivo, neste sentido, está ligado à técnica em
que as imagens são dispostas ou à técnica que cria as imagens. A utilização que
faço aqui do termo é diferente.
É nas vinte e quatro horas em que cada personagem fica na casa do outro, que
tudo se dá. Mas este tudo caracteriza-se por uma forte aproximação dos dois
mundos ali presentes, do dono da casa e do hóspede, ao mesmo tempo em que
esta aproximação não é articulada por nenhuma ordem pré-existente. Não
procuramos histórias de vida, nem explicações lógico-causais que expliquem o que
vemos, nem que expliquem as opções de quem filma a casa do outro. As imagens
filmadas na casa "invadida", podemos dizer, não se conectam jamais de forma
vertical, não se desdobram umas nas outras, não estabelecem continuidades, não
constroem uma linha. Cada imagem aparece e desaparece apontando sempre para
uma multiplicidade. Em Rua de Mão Dupla, o que vemos é um ao vivo que aponta
para um infinito para frente e um infinito para trás.
Quando a câmera filma um banheiro, uma TV, uma gaveta, é sempre um encontro
que se dá entre os dois universos: o do filmado e o de quem filma. Se na prática do
documentário este encontro é com freqüência enfatizado como uma das
importantes possibilidades do cinema não-ficcional, aqui isto é radicalizado. A
câmera é sempre uma presença de quem filma, ao mesmo tempo em que o filmado
não está na imagem, apenas seus vestígios, suas marcas. Aqui a imagem é
constituída por dois personagens, ambos corporalmente ausentes da imagem. A
criação deste dispositivo impossibilita ao filme buscar profundidade dos
personagens; não há uma verdade a ser investigada, tudo começa e acaba no
encontro promovido pelo filme.
Em Rua de mão dupla filma-se imagens do outro, imagens que não são mais
imagens de algo (uma capa de revista, uma mulher pelada, um cantor na capa de
uma disco), mas pontes entre aquela imagem e seu dono. Desta forma, as imagens
que pertencem aos donos das casas perdem sua conexão única com seu referente
para apontarem também para quem as escolheu, quem as separou e a
possibilidade de aquelas imagens conterem pistas de quem as destacou do mundo.
Acontecimento
O acontecimento não é decifrável, não aponta para o que não está ali, não se
remete a relações que incluam corpos ausentes do encontro que os produziu. A
subversão de Deleuze é dupla em relação à filosofia clássica: subversão das
relações causais. Os acontecimentos não podem se remeter a uma causa única,
nem são desdobramentos ótimos de encontros de causa. Os acontecimentos, sendo
efeitos, são incorporais, constituem um campo de imanência com uma pluralidade
de possibilidades de sentidos. O acontecimento, então, não pode ser explicado ou
compreendido pelos corpos que o produzem; assim como não explicam nenhum
campo fixo que verticalmente, hierarquicamente, explique o efeito.
O que está nos corpos, o que é o corpo, enquanto objeto histórico, não explica sua
potência, não explica a própria possibilidade desejante desses corpos. O que o
corpo pode, entende-se em amplitude de superfície e não em profundidade. É essa
superfície que nos permite ver a multiplicidade de linhas significantes que povoam
um campo. A verticalidade, associada ao método aristotélico de criação de modelos
por exclusão, terá como ideal a produção de uma linha única para o sentido; no
fundo encontra-se a ordem da superfície, no passado a ordem do presente.
Big Brother
Nos Big Brothers, partimos de um olhar totalizante que aposta que tudo pode ser
visto, e é porque tudo pode ser visto que nenhuma verdade deixará de aparecer. A
visibilidade total permite a apreensão de um real pré-existente que se entrega às
câmeras que não deixam zonas de sombra. O dispositivo de Big Brother acredita
que a cena não basta, ou melhor, a construção de um dispositivo onde os
personagens sejam impelidos a uma auto-criação é pouco, e que para isso as
câmeras precisam estar em todos os lugares e a edição deve tapar os buracos que
não se entregam às câmeras com facilidade, privilegiando as tensões, ações, falas,
etc.
No caso de Rua de Mão Dupla, os personagens não estão em um jogo, não serão
excluídos de nada, assim como não se tornarão famosos. Deixamos de assistir ao
surgimento de uma celebridade, faceta que gera interesse em Big Brother e
assistimos a personagens que sabem que suas vidas não mudarão depois do filme.
Não estamos em um jogo de tudo ou nada, como em Big Brother, o que gera maior
possibilidade para dúvidas, perguntas, exposições e o desligamento da necessidade
de gerar uma persona pública a partir do zero. Os personagens de Rua de Mão
Duplasaem da casa alheia com as vidas pouco alteradas, após a experiência; já
em Big Brother, além das transformações pessoais que acompanhamos, os
personagens sabem que suas vidas valem dinheiro, dentro e fora da casa, como
forma de ganhar o prêmio ou como forma de capitalizar a fama. Uma construção de
uma personapública intimamente atrelada ao capitalismo, explicitada
exemplarmente pelo filósofo Peter Pál Pelbart: "Hoje o capital penetra a vida numa
escala nunca vista e a vampiriza. Mas o avesso também é verdadeiro: a própria
vida virou com isso um capital. Pois se as maneiras de ver, de sentir, de pensar, de
perceber, de morar, de vestir, tornam-se objeto de interesse e investimento do
capital, elas passam a ser fonte de valor e podem, elas mesmas, tornar-se um
vetor de valorização." (PELBART, 2003:147) Neste sentido, Big Brother materializa,
com perturbadora precisão e extremismo, outra característica do contemporâneo: o
modo de vida como valor em si, atrelado ao capital, e a indústria das celebridades é
apenas a ponta visível deste imenso iceberg.
Talvez o que possamos apontar como diferença fundamental entre essas duas
narrativas seja o fato de o filme de Cao optar por estar na superfície das coisas e
dos personagens, não procurar desdobramentos ótimos para as pessoas e
situações, não estabelecer conexões de montagem entre as imagens produzidas
pelos personagens e eles próprios. Há um respeito pela lacuna e pelos vazios
deixados por eles. Neste sentido, apesar das semelhanças entre os dispositivos, é
porque há esta opção pela superfície que a possibilidade de acontecimento a partir
do dispositivo aparece diferentemente de Big Brother1.
Documentário - Em tensão com o real
"O sentido do documentário será assim de dever se expor sem parar às pressões de
suas representações coletivas que nós chamamos realidade". (Comolli, 2003:441)
Finalmente, essa intercessão entre imagem e vida trouxe para o senso comum a
idéia de direito de imagem. Idéia curiosa, como coloca Comolli, pois pressupõe que
a imagem exista independente de quem a vê. Ou seja, para que algo seja uma
imagem, é necessário alguém vendo, enquanto que o "direito à imagem" privatiza
para o objeto o efeito de ser visto.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DUBOIS, Philippe. Cinema, vídeo, Godard. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2001.
GABLER, Neal. Vida, o filme. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
LUZ, Rogério. Filme e subjetividade. Rio de Janeiro: Contra Capa/Rios Ambiciosos, 2002.
PELBART, Peter Pál. Vida capital: Ensaios de biopolítica: São Paulo, Iluminuras, 2003.
NOTAS
1 Este trabalho de Cao Guimarães foi originalmente apresentado, na XXV Bienal de São Paulo, em
forma de instalação de vídeo com o nome de Iconografias Metropolitanas.
O diálogo entre uma instalação e um documentário é dos mais importantes temas do audiovisual
contemporâneo; apesar de, nesse artigo, não me deter nessa questão.
2 Dois outros exemplos de filme-dispositivo, a título de ilustração: Time Code, de Mike Fighs -
uma ficção constituída de quatro núcleos narrativos, colocados em movimento ao mesmo tempo.
Cada grupo de técnicos e atores começa sua ação simultaneamente. São quatro câmeras quase
documentando quatro ações simultâneas que, eventualmente, se cruzam. Na tela, dividida em
quatro, o que temos são quatro planos-seqüência, com cerca de uma hora cada. O Resto Nosso de
Cada Dia, de Pablo Lobato e Cristina Maure. Cinco equipes em cinco países diferentes seguem os
catadores de lixo simultaneamente em uma mesma noite.