Acompanhamento Terapêutico: Uma Revisão de Literatura
Acompanhamento Terapêutico: Uma Revisão de Literatura
Acompanhamento Terapêutico: Uma Revisão de Literatura
Dossiê
Daniela de Lima Campos; Viviane Neves Legnani; Sandra Francesca Conte de Almeida;
Amanda Cabral dos Santos
* Professora da Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal, Brasília, DF, Brasil. E-mail:
[email protected]
** Psicanalista. Professora-associada da Universidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil. E-mail:
[email protected]
*** Psicanalista. Professora do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília e Professora convidada do
Centro Universitário de Brasília (UniCeub), Brasília, DF, Brasil. E-mail: [email protected]
**** Professora da Faculdade de Ciências e Educação Sena Aires, Valparaíso de Goiás, GO, Brasil. E-mail:
[email protected]
Estilos da Clínica, 2020, V. 25, nº 2, p. 233-245
Distrito Federal – Brasil, a niños de 0 a 3 años y 11 meses de edad con retraso en el desarrollo. En este estudio dos
niños con síndrome de Down, se aplicaron el protocolo IRDI o los indicadores clínicos de riesgo para el desarrollo
infantil y se entrevistó a las madres de los bebés. El propósito del estudio es señalar que las intervenciones
educativas también pueden reproducir con los padres el conocimiento de especialistas del discurso de la ciencia
que, no solo anula el conocimiento de los padres, sino que también eclipsa la posición de sujeto del niño. El estudio
destaca que el psicoanálisis puede presentarse como una contribución conceptual relevante para los profesionales
que trabajan en la educación temprana, sino también en la educación de la primera infancia, ya que los llama a la
actitud de apertura a la escucha, al habla y a las observaciones de las interacciones madre-hijo, de para ubicar la
posición que ocupa el niño en la dinámica materna y familiar, teniendo en cuenta la singularización de los sujetos
pequeños y subvirtiendo la lógica de estandarización, medicalización y patologización.
Palabras-clave: estimulación temprana; psicoanálisis; risco psíquico, IRDI.
O corpo do bebê é constituído por meio de marcas simbólicas que o Outro (representado
inicialmente por quem exerce a função materna) irá imprimir nas diferentes funções orgânicas.
Por conseguinte, os efeitos dessas marcas organizam o funcionamento do corpo e do psiquismo
do infans. O pequeno sujeito, para vir a ser marcado por esse Outro, deve ser idealizado por
ele, imaginariamente, antes mesmo de nascer.
É necessário salientar que essas marcas imaginárias e simbólicas terão forte impacto e irão
imprimir singularidades na parentalidade e, portanto, nas funções orgânicas e simbólicas do
bebê. O olhar idealizador dos pais sobre a criança irá constituí-la subjetivamente e o bebê, nessa
dialética, com suas características e manifestações, como o choro, o se deixar embalar para
dormir, o relaxamento ao ser alimentado e cuidado, etc., também produzirá impactos no
psiquismo dos pais para continuarem a cumprir com suas funções parentais.
Zornig (2010) aponta que a estruturação do corpo/psiquismo é atravessada pelo inconsciente
e pelo desejo dos pais: “a pré-história da criança se inicia na história individual de cada um dos
pais; o desejo de ter um filho reatualiza as fantasias de sua própria infância e do tipo de cuidado
parental que puderam ter” (p. 456). Dessa forma, o encontro dos pais com seu filho recoloca
Estilos da Clínica, 2020, V. 25, nº 2, p. 233-245 235
em cena um encontro com a criança que um dia foram e com a idealização da criança que
poderiam ter sido.
Essa cena familiar, inicialmente desencadeada pela função materna, estará sempre articulada
à função paterna, ou seja , a mãe suficientemente boa “é aquela em que funcionou a função
paterna, cuja marca faz com seja possível desejar o bebê porque algo lhe falta, porque não se
sente completa, e na sua estruturação algo ficou em haver, supostamente preenchível por esse
filho’’ (Bernardino, 2006, p. 32).
A referida autora assinala que antes de falar por si próprio o bebê é falado e desejado e é
necessário, então, que ele se aliene no desejo e nas palavras do Outro para poder ter sua própria
existência simbólica. Assim, a alienação é essencial para a constituição do sujeito, visto que o
bebê é tomado pela mãe como objeto de desejo e desse lugar pode mergulhar no campo de
significantes por ela disponibilizado até conseguir operar a separação do Outro materno. Tal
operação será possível por meio da constatação de que há falta no Outro, o que permitirá ao
infans acolher a própria falta. Essa dupla operação lógica de alienação/separação é essencial
para o bebê não só para se referenciar no tempo, no espaço e socialmente no mundo, como
também para nomear e falar em nome próprio.
Antes de prosseguirmos, é relevante registrar que as funções de parentalidade vão além das
relações de gênero e estão ancoradas em representações psíquicas do que é ser pai e ser mãe
para o casal parental. As funções exercidas pelos pais nem sempre correspondem ao gênero e
também podem ser desempenhadas por pessoas diferentes dos pais biológicos. No entanto, é
primordial que essas funções sejam cumpridas, pois a constituição psíquica da criança exige
que o Outro a sustente como sujeito de desejo. Sendo assim, a função materna e a função
paterna, como sublinha Zornig (2010), são essenciais ao processo de subjetivação. São elas que
abrem espaço para uma criança-sujeito para além do bebê imaginado pelos pais, com uma vida
e futuro próprios.
Podemos nos perguntar sobre tais processos quando as crianças nascem com
comprometimentos de diversos tipos e trazem no corpo a marca da deficiência e da fragilidade
orgânica. Batista (2015) ressalta que essas marcas têm uma “sequela” maior: “a quebra de um
saber natural dos pais diante do filho, o que interfere na relação entre pais e filhos” (p.68).
Nessas circunstâncias, a constituição subjetiva pode ser comprometida quando o filho é visto
apenas como objeto de cuidados. A autora sublinha que a escuta desses pais é essencial, pois
visa resgatar o olhar e o saber parental sobre como lidar com o filho de forma a permitir uma
outra ressignificação sobre o filho real, que tem alguma marca que o destoa do ideal.
Na contemporaneidade, na contramão dos dispositivos de escuta e de suporte aos pais
propostos pela psicanálise, percebe-se que “o meio científico, em geral, prefere ignorar os
efeitos desse não saber, colocando em seu lugar uma série de certezas representadas por quadros
diagnósticos, técnicas, exercícios, medicamentos e treinamentos” (Bernardino, 2007, p. 54). O
efeito dessa postura científica é preocupante quando absorvida pelo campo educativo, pois,
como alerta a autora, “é capaz de privar a criança da dimensão humana essencial, a do desejo”
(p.55).
Nosso estudo tem a finalidade de alertar professores e outros profissionais que atuam na
Educação Precoce, ou mesmo em outros espaços que recebem essas crianças, a respeito das
questões acima apontadas. O cuidado ético, não só com as crianças mas também com os seus
pais, é fundamental para detectar entraves na subjetivação dos bebês e auxiliar os pais para que
se reposicionem no exercício de suas funções parentais. Por outro lado, as intervenções
educativas também podem reproduzir junto aos pais o saber de especialistas advindos do
Estilos da Clínica, 2020, V. 25, nº 2, p. 233-245 236
discurso da ciência, o qual, em muitas circunstâncias, não só anula o saber parental como
também eclipsa o lugar de sujeito da criança. A seguir, ilustraremos as questões discutidas até
aqui com dois fragmentos de caso.
Isa, a mãe de Helena, descreveu sua gravidez como planejada e organizada: “Foi tudo
programadinho, todo mundo foi programado lá em casa. Helena só veio um pouquinho antes.”
Por meio de suas falas, ao longo da entrevista, pôde-se verificar que Helena ocupava um lugar
idealizado na dinâmica familiar, tal como seus irmãos. Lidar com o diagnóstico da filha, cujas
peculiaridades divergiam do ideal familiar, abriu na mãe uma ferida narcísica, provocando
marcas inegáveis na relação com Helena.
Relatou às pesquisadoras que vivenciou momentos de angústia e incertezas desde o dia em
que foi sinalizado, por meio de uma ecografia morfológica, que algo não estava como o
esperado. Os médicos disseram à mãe que não podiam dar certeza sobre a síndrome do bebê.
Tal diagnóstico só seria possível com um exame específico: “eu apenas fiquei sabendo que era
alguma síndrome”, pois o diagnóstico de síndrome de Down foi fechado somente após o
nascimento de Helena.
Assim, as falas de Isa indicam um doloroso processo subjetivo desde a gravidez e como
conseguiu operar a função materna. Relatou que ao contar à sua mãe e à sogra sobre a síndrome
do bebê escutou questionamentos e percebeu reações de ambas: “A minha mãe e a minha sogra
receberam do jeito que muita gente recebe. A minha mãe demorou a aceitar. Perguntou se
havia sido transmitida pelo sangue ou na fecundação. Tivemos que explicar tudo para ela e
para minha sogra”.
Desde aquele momento, o significante conhecimento sobre a síndrome ganha ênfase nas
produções discursivas de Isa. Relatou que pesquisava muito na internet sobre o tema e
participava ativamente de grupos de mães de filhos com síndrome de Down pelas redes sociais.
Após o nascimento da criança, escutava e acatava todas as prescrições médicas e no momento
da entrevista demonstrou entender bem o discurso da ciência, mais especificamente o discurso
desenvolvimentista e cognitivista sobre a síndrome, advindo da neurociência. A posição
calcada no discurso científico foi construída provavelmente em virtude dos acompanhamentos
e aconselhamentos médicos que recebeu ao longo da gestação de Helena.
Isa destacou que durante a gravidez foi indagada por seu médico sobre a possibilidade de
querer induzir o feto a um aborto. Relatou que se sentiu indignada e que sua busca de
conhecimento sobre a síndrome de Down ganhou maior determinação para se contrapor à
posição do médico, da mãe e da sogra.
Em nossa leitura, a busca voraz pelo saber e o repertório científico que Isa construiu
operaram como uma espécie de suplência, aqui referida como uma amarração entre os registros
do real, do simbólico e do imaginário para que pudesse se ver e se reconhecer como mãe de
Helena. Foi o conhecimento adquirido como suposto saber sobre a filha que a estabilizou
subjetivamente para lidar com o discurso da possível morte do bebê, advindo da relação
médico/parturiente, como também de suas relações afetivas e sociais. Sua meta passou a ser
mostrar a todos que Helena poderia se desenvolver plenamente, caso fosse constantemente
estimulada. No entanto, a ferida narcísica e o luto ainda não realizado da filha idealizada faziam
com que ora apostasse no desenvolvimento do bebê ora imergisse na morbidez. Esse
Estilos da Clínica, 2020, V. 25, nº 2, p. 233-245 237
movimento de báscula foi percebido ao longo das observações, no acompanhamento e
atendimento na Educação Precoce.
Por meio do IRDI, como instrumento de observação dos atendimentos de Helena na
Educação Precoce (idade de 4 meses), os quais eram acompanhados ativamente por Isa, foi
possível detectar na interação mãe/bebê a ausência de um dos indicadores da faixa etária entre
0 a 4 meses incompletos:
- O indicador 4 - a mãe propõe algo à criança e aguarda a sua reação.
Mariotto (2009) afirma que esse indicador, do eixo Alternância Presença/Ausência, é
indicativo de uma experiência necessária ao bebê para que este se descubra como sujeito. Trata-
se de experiências da dupla mãe-bebê em que se produz um pequeno vácuo, uma hiância entre
a demanda e a satisfação da criança, operando-se, assim, um intervalo de onde poderá emergir
o desejo no infans.
Com o passar dos meses também foram observados os indicadores da faixa etária dos 4 aos
8 meses incompletos e perceberam-se mais três indicadores ausentes:
Mariotto (2009), ao explicar tais indicadores, aponta que eles são possíveis quando o Outro,
em sua função, se encarrega de interpretar o gesto da criança como um apelo: “traduzir a
linguagem em ação e ação em linguagem”. Dessa forma, o Outro, em sua função de cuidador,
atua como essencial para que haja uma circulação entre o imaginário e o simbólico.
Porém, foi possível observar os indicadores 12 e 13 presentes em um atendimento na
Educação Precoce em que os irmãos de Helena participaram da sessão. Naquele dia, a criança
mostrou-se bem mais comunicativa, demandando aos seus irmãos, os quais lhe deram suporte
e responderam às suas iniciativas e brincadeiras, o que nos pareceu promissor em termos de
minimizar os riscos na constituição subjetiva de Helena.
O acompanhamento da dupla mãe-bebê com o uso do protocolo IRDI teve continuidade na
faixa etária dos 8 aos 12 meses incompletos. A interação mãe-bebê mostrava ausentes três
indicadores:
O indicador 18 faz parte do eixo Função Paterna que, de acordo com Mariotto (2009), é a
entrada do terceiro capaz de balizar o laço entre a criança e seu cuidador e mostra que essa
função exige renúncia às satisfações, além de introduzir o campo da interdição e da diferença.
A autora discute que essa função é capaz de fornecer à criança dispositivos simbólicos
suficientes para que se reconheça como sexuada e possa inscrever-se em uma ordem social de
filiação, bem como separar-se do cuidador e constituir-se como sujeito.
O Caso Bia
Silvia, a mãe de Bia, informou que a gravidez da filha não foi planejada e relatou sobre seu
desejo de não ter mais filhos: “(...) eu engravidei usando DIU. Eita! Foi assim! A gente faz uns
planos, né? Eu não queria mais filho”. Observou-se que ao relatar esse fato não houve um tom
de pesar ou arrependimento e, mesmo quando mencionava as dificuldades de uma gravidez de
risco, não demonstrou o afeto de tristeza. Nessa mãe havia uma percepção da diferença de Bia,
diagnosticada com síndrome de Down, em relação aos irmãos, mas também uma valorização
dos avanços que a criança demostrava em seus ganhos motores.
Segundo o relato materno, uma profissional de saúde do hospital em que Bia ficou internada,
ao ser submetida a uma cirurgia cardíaca logo após o parto, apontou-lhe uma questão
importante. “Uma fonoaudióloga me disse, ainda na UTI, quando Bia recebeu alta, pra eu
criá-la do jeito que eu criei meus meninos quando eram pequenos. Aí não a fiz diferente dos
outros, pois acho igual ou acho que têm crianças que não têm o que a Bia é. Elas (as crianças
com Síndrome de Down) têm um pouco de dificuldade na hora de engolir, têm mais facilidade
de se engasgar, mas é normal isto.... Falam por aí: - bate a comida no liquidificador, sabe? Ah,
não! Esses cuidados extremos! Não precisa disso tudo! Eu não bato nada no liquidificador, é
tudo amassado e ela come sem engasgar!”
É preciso ressaltar outro desdobramento da entrevista em que ficou clara a capacidade crítica
da mãe diante do saber especializado a respeito das crianças com síndrome de Down. Silvia
fazia parte de um grande grupo de mães em uma rede social e se assustou com os cuidados
extremados e padronizados das outras mães: “Porque não precisa disso tudo, minha filha não
consulta com o médico especialista em síndrome de Down! Não! É com o médico do posto, que
é o médico da família! E eu falei: ô minha filha, esse povo é doente, mães que ficam procurando
doença em filho! Eu acho que é por que uma vai na onda da outra. Saí do grupo.”
Percebemos que Silvia ocupava um lugar como mãe que podemos assim resumir: “Uma mãe
que não dá a comida sólida, mas não oferece alimentos líquidos”. Exercia a sua função
reconhecendo a diferença que a síndrome em si carrega, sem contudo atribuir à filha uma
posição deficitária e sendo capaz de realizar uma antecipação imaginária de sujeito ao projetar
o futuro de seu bebê: “(...) quero fazer de tudo para ela ser independente porque não vou estar
aqui para o resto da vida. Então quero fazer o máximo por ela para que possa trabalhar,
Estilos da Clínica, 2020, V. 25, nº 2, p. 233-245 239
estudar, ser independente o máximo possível! Eu quero que ela se sinta como outra pessoa
qualquer e que nunca deixe ninguém diminuí-la como incapaz”.
Sílvia ainda fez uma importante reflexão sobre como as mães idealizam seus filhos e como
sofrem ao longo do processo de desidealização. “Eu acho que na gravidez devem imaginar
muita coisa boa para os filhos... imaginou o filho de um jeito e nunca imaginou ter um filho
com algum problema”.
“Eu não imaginava que ia nascer com síndrome de Down, não! É que o pai dela não é
branco e a minha filha tem os cabelos cacheados e eu também por isso imaginava que ela ia
nascer com os cabelos cacheadinhos e moreninha”.
O primeiro momento de escuta e observação da interação entre Bia e sua mãe aconteceu
quando Bia tinha 6 meses e todos os indicadores IRDI se mostraram presentes, mesmo aqueles
da faixa dos 8 aos 12 meses incompletos.
A mãe relatou que em casa Bia brincava bastante no chão. Porém, quando atendida na
Educação Precoce, ela chorava quando a mãe se ausentava de seu campo visual embora
demonstrasse interesse pelos objetos que segurava. A mãe dizia saber diferenciar os choros de
Bia, conseguindo identificar quando era “manha”. Sílvia participava das sessões de forma
afetuosa, mas ao mesmo tempo não se sentia obrigada a atender a todas as demandas do bebê.
Assim, já colocava pequenas regras e quando Bia chorava, nas sessões de atendimento, pedia
para lhe dizer o que queria ao invés de chorar.
Considerações finais
É importante, para finalizar o relato desta pesquisa, discutir desde uma perspectiva ética o
ideário da prevenção na primeira infância. Mariotto (2009) ressalta o quanto a prevenção está
a serviço das ideologias dominantes que atravessam toda cultura e o quanto a denominação
“prevenção” antecipa um modelo de cidadão desejado conforme/conformado aos ideais do
Estado. Em nossa concepção, o IRDI se apresenta como um importante dispositivo de
desconstrução desse ideal, já que subverte a lógica do controle social e da padronização ao levar
em conta a singularidade dos pequenos sujeitos.
Sabemos que o ideário da medicalização e da patologização incide diretamente na infância.
Percebe-se, a partir da discussão realizada, que os diagnósticos na infância exigem uma leitura
crítica. A aposta em utilizar o IRDI é a de uma “despatologização” diagnóstica, pois sua lógica
é a de deslocar o discurso do diagnóstico para a singularidade do caso a caso e,
consequentemente, para a singularização da relação professor/pais/bebê. Conforme Armiliato
(2014), “o IRDI cumpre a função desmedicalizante justamente por não propor uma correlação
direta entre sinais patognomônicos e diagnóstico” (p. 85).
Parece-nos também útil apontar outros aspectos quando se pretende utilizar um protocolo
como o IRDI para detectar riscos no desenvolvimento infantil: o fato de o professor não se
colocar como um especialista “diagnosticador” e ser instado a “abdicar das metas idealizadas e
Estilos da Clínica, 2020, V. 25, nº 2, p. 233-245 242
grandiosas que inspiram o ato de educar, pois elas negam, acima de tudo, a realidade do desejo
e, por conseguinte, negam também a criança como sujeito”, como sugerem Legnani e Almeida
(2000, p. 107). No que se refere à Educação Precoce, o cuidado com um provável apagamento
do sujeito é fundamental, pois além de o educador ter que se deparar com as vicissitudes do ato
educativo, ele é também convocado, por esse ato, a exercer a função de suporte narcísico para
que o bebê se constitua como sujeito de desejo e não como objeto de gozo do Outro.
A importância do IRDI é sobretudo a de ressignificar o cuidado com as crianças em risco no
desenvolvimento e a atenção às interações mãe-bebê como também atentar para os efeitos dos
saberes científicos na criança e na sua educação. No nosso entendimento, é imperioso que os
profissionais da Educação Precoce, mesmo que não lhes caiba a função de diagnosticar
psicopatologias, tenham clareza acerca dos impasses e dificuldades que podem ocorrer na
constituição do sujeito. Pôde-se observar, por meio dos casos apresentados, como o professor,
alertado por tais questões, é capaz de se abrir para novas maneiras de intervir. Na perspectiva
teórica e metodológica de orientação psicanalítica, a intervenção proposta é oposta à da ordem
da massificação e do discurso psicopedagógico hegemônico que apaga ou desqualifica o saber
dos pais e da família acerca da criança.
Em outras palavras, o que marca o interesse e a importância da aplicação do IRDI na
Educação Precoce, assim como nas creches (Bridon, 2019; Mariotto, 2009) e na educação
infantil (Morillo & Fonseca, 2015), é que os indicadores do instrumento podem alertar para
riscos no desenvolvimento infantil e na constituição psíquica da criança, cumprindo assim uma
função “preditiva”, contudo não determinista desses riscos. Ou seja, sob a ótica da psicanálise,
os processos constitutivos e de desenvolvimento, seus impasses ou entraves pertencem não só
à esfera biológica, mas a um complexo campo simbólico, de natureza linguageira e social. Tal
concepção aponta para a necessidade de atenção em face dos problemas apresentados nos
primórdios da vida, mas não para tomá-los como categóricos para futuros quadro
psicopatológicos ou distúrbios mentais. A ênfase no cuidado e na atenção às dificuldades
apresentadas pelo bebê não deve incidir sobre os deficits, pois sabe-se que isso pode exercer
um papel desubjetivador nas interações da dupla mãe-bebé, impedindo até mesmo o movimento
de antecipação subjetiva de sujeito e sua inscrição no campo simbólico do Outro.
Por fim, é importante ressaltar que nem sempre o trabalho da Educação Precoce será
condição suficiente para fortalecer ou até mesmo estabelecer o laço imprescindível à
constituição subjetiva do bebê, sendo necessário, então, dar continuidade à atenção, à educação
e ao tratamento da criança com impasses no processo de subjetivação e/ou problemas de
desenvolvimento.
Referências
Morillo, H. S., & Fonseca, P. F. (2015). A singularização do laço na educação infantil: por uma
indeterminação necessária. Estilos da Clínica, 20(3), 391-399. doi:
https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v20i3p391-399.
Rabelo, S. (2012). A serviço de que pode estar a detecção precoce do autismo? In M. C. Kupfer,
L. M. Bernardino, & R. M. Mariotto (Orgs.), Psicanálise e ações de prevenção na primeira
infância (pp. 165-174). São Paulo, SP: Escuta.