Texto Encontro 1 Saussure e Foucault, Língua e Discurso

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DOI: https://doi.org/10.18309/ranpoll.v53i2.

1692

Saussure e Foucault, língua e discurso

Saussure and Foucault; language and discourse

Cleudemar Alves Fernandes


Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, Minas Gerais, Brasil

Vanice Sargentini
Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, São Paulo, Brasil

Resumo: O artigo problematiza a noção de língua que perpassa os estudos de


Foucault, mais especialmente nos textos publicados no final dos anos 1960,
com ênfase para A Arqueologia do Saber. Objetiva explicitar e/ou discutir as
implicações do conceito de língua para a edificação de aparatos teóricos e
metodológicos que dão sustentação às suas proposições sobre o discurso.
Tem-se como hipótese que o diálogo com o estruturalismo, que lhe apresenta
a língua como sistema, atua como fundamento para os conceitos de discurso
e práticas discursivas, que lhe serão caros ao longo de vários anos de pesquisa.
No desenvolvimento do artigo, inicialmente apresenta-se a noção de língua
em Ferdinand de Saussure, especificamente no Curso de Linguística Geral, e
posteriormente, faz-se o cotejamento da noção de língua em Foucault e em
Saussure, considerando o desencadeamento dos conceitos de enunciado e de
discurso. Os resultados indicam as aproximações e distanciamentos entre os
dois autores, considerando-se a noção de língua.
Palavras-chave: Saussure; Foucault; Língua; Discurso; Enunciado

Abstract: The article problematizes the notion of language that permeates


Foucault's studies, especially in texts published in the late 1960s, with
emphasis on The Archeology of Knowledge. It aims at explaining and/or
discussing the implications of the concept of language for the construction of
theoretical and methodological apparatuses that support its propositions about
discourse. The hypothesis is that the dialogue with structuralism, which
presents language as a system, acts as a foundation for the concepts of
discourse and discursive practices, which will be important to him over
several years of research. In the development of this article, initially the
notion of language in Ferdinand de Saussure is presented, specifically in the
Course in General Linguistics, and later, the notion of language in Foucault
and in Saussure is compared, considering the development of the statement
and discourse concepts. The results indicate the similarities and differences
between the two authors, considering the notion of language.
Keywords: Saussure; Foucault; Language; Discourse; Statements
Fernandes & Sargentini

1 Introdução

Há, no Brasil, junto à Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Letras e


Linguística (ANPOLL), um Grupo de Estudos (GT) denominado Estudos discursivos
foucaultianos, que reúne pesquisadores de Letras e Linguística em torno do pensamento
do filósofo francês Michel Foucault, atentando para questões concernentes à linguagem
e sua relação com aspectos sociais, históricos, políticos e culturais, o que culmina na
apreensão do discurso como objeto para análise. Grande parte dos membros desse GT
tem em sua vida acadêmica a origem em cursos de letras e de linguística, nos quais a
atenção aos termos língua e linguagem é frequente e central. Considerando que, em seus
escritos, Michel Foucault não atribui centralidade ao conceito de língua, ainda que essa
noção seja produtiva para que ele venha a definir enunciado, o objetivo deste artigo é
problematizar a concepção de língua que perpassa os estudos de Foucault, mais
especialmente nos textos publicados no final dos anos 1960, com ênfase para A
Arqueologia do Saber, com vistas a explicitar e/ou discutir as implicações desse conceito
para a edificação de aparatos teóricos e metodológicos que dão sustentação às suas
proposições sobre o discurso. Temos como hipótese que o diálogo com o estruturalismo,
que lhe apresenta a língua como sistema, atua como fundamento para os conceitos de
discurso e práticas discursivas, que lhe serão caros ao longo de vários anos de pesquisa.
Para o cumprimento de nossa proposta, inicialmente retomaremos a noção de
língua em Ferdinand de Saussure, especificamente no Curso de Linguística Geral, por
ser esta a obra que constituiu referência central para as reflexões alcunhadas de
estruturalismo em vários campos disciplinares. Posteriormente, cotejaremos a noção de
língua em Foucault e em Saussure, considerando o desencadeamento dos conceitos de
enunciado e de discurso. Interessa-nos especialmente o contexto francês dos anos de
1960, momento de uma efervescência intelectual caracterizada por embates
epistemológicos e edificações de campos disciplinares; contexto inclusive de início dos
estudos sobre o discurso, que culminaram na proposição da disciplina acadêmica Análise
do Discurso. Nessa década, há também a emergência do pensamento de Michel Foucault
e sua incidência nos estudos do discurso, em germinação.

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Saussure e Foucault, língua e discurso

2 Da língua em Saussure ao discurso em Foucault

O Curso de Linguística Geral (CLG), de Ferdinand de Saussure, é considerado como obra


central para a edificação da Linguística como uma ciência, ao que se confere a fundação
da Linguística Moderna. Para tal empreendimento, Saussure1 defende a suficiência da
língua para constituir objeto de uma ciência e propõe a exposição de conceitos e métodos
que dão sustentação para o estudo científico desse objeto específico. De suas
considerações para a definição desse objeto, Saussure (1974, p. 17) indaga: “Mas o que é
a língua?”. Em seguida, responde: “é, ao mesmo tempo, um produto social da faculdade
de linguagem e um conjunto de convenções necessárias, adotadas pelo corpo social para
permitir o exercício dessa faculdade nos indivíduos. Tomada em seu todo, a linguagem é
multiforme e heteróclita” (SAUSSURE, 1974, p. 17)
Nessa proposição inicial, a concepção de língua – apresentada como ‘produto
social’, ‘conjunto de convenções necessárias’ –, implica a linguagem, compreendida
como uma faculdade humana, exercitada pelos sujeitos (indivíduos) da língua. Ao atribuir
à linguagem o caráter multiforme e heteróclito, pressupõe-se que o corpo social que adota
o mesmo conjunto de convenções – a língua – é heteróclito, podendo apresentar estilos
e/ou usos da língua de formas diferentes.
Se por um lado, Saussure (1974) considera a “língua [como] um todo por si e um
princípio de classificação” (p. 17); por outro, a linguagem “tem um lado individual e um
lado social, sendo impossível conceber um sem o outro [...] a linguagem implica ao
mesmo tempo um sistema estabelecido e uma evolução” (Ibidem, p. 16). Sendo a língua
o produto social, um ‘sistema estabelecido’, tem-se nesses apontamentos um sistema
binário; ou seja, a presença de dois elementos indissociáveis, que se inter-relacionam. A
presença de pares binários na definição e mesmo estruturação de um objeto, sempre
dependentes entre si, é notada em todo o Curso de Linguística Geral, e caracteriza o
método operacional de Saussure. Esse método será denominado por seus leitores de
estruturalismo, e será tomado como parâmetro para estudiosos na edificação de vários
outros campos disciplinares.

1
Não nos ocuparemos neste artigo da querela em torno da autoria do Curso de Linguística Geral, questão
discutida em Silveira, Sá & Fernandes (2019). Tomaremos o CLG como uma obra que porta um nome de
autor, ao qual faremos as devidas referências.

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Na assunção de que a língua é o objeto de uma ciência, da Linguística, Saussure


faz as seguintes reiterações dos caracteres desse objeto científico:

“Ela é um objeto bem definido no conjunto heteróclito dos fatos da linguagem [...] Ela é
a parte social da linguagem, exterior ao indivíduo, que, por si só, não pode nem criá-la
nem modificá-la” (p. 22).

“A língua constitui uma instituição social [...] A língua é um sistema de signos [...] Pode-
se, então, conceber uma ciência que estude a vida dos signos no seio da vida social” (p.
24).

“O signo deve ser estudado socialmente” (p. 25).

Nessas afirmações, a presença do social é reiterada como condição para a


existência da língua, e configura-se, a nosso ver, como uma das aberturas de Saussure; ou
melhor, do CLG, para estudos outros. Tanto é que Saussure é referência constante entre
pesquisadores e intelectuais na França, nos anos 1960. A propósito, consideramos que
nessa década, no contexto francês, ainda vigorava a afirmação de Saussure de que “a
Linguística tem relações bastante estreitas com outras ciências, que tanto lhe tomam
emprestados como lhe fornecem dados” (SAUSSURE, 1974, p. 13).
Feitas essas considerações, veremos, a seguir, como se dá (se isto ocorre) o
diálogo de Foucault com a concepção de língua elaborada por Saussure, para a
fundamentação dos conceitos de discurso, enunciado e práticas discursivas, conforme
anunciamos em nossa hipótese.
Para o desenvolvimento dessa questão, investigaremos como se dá o olhar de
Michel Foucault para a língua, e, sabendo que a língua em si não constitui objeto de suas
investigações, verificaremos em que medida, ou de que maneira, ela se faz presente na
proposição teórica e metodológica para as análises do discurso e das práticas discursivas
em Foucault, quando da elaboração do método arqueológico, conforme desenhado
especialmente em suas reflexões apresentadas n’A Arqueologia do saber.
Para tal elaboração, Michel Foucault aproxima-se dos estudos linguísticos,
sobretudo, na segunda metade dos anos 1960, ao discutir a noção de episteme em As

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Palavras e as Coisas e dar atenção à linguagem. Na avaliação dessa obra, a crítica lhe
atribuiu o rótulo, visto como desqualificador, de estruturalista, que custou ao filósofo
vários textos de esclarecimentos, como em Estruturalismo e Pós-estruturalismo,
entrevista concedida em 1983.

Enfatizarei inicialmente que, no fundo, no que se refere ao que foi o


estruturalismo, não somente – o que é normal – nenhum dos atores desse
movimento, mas também nenhum daqueles que, por vontade ou à força,
receberam a etiqueta de estruturalista sabiam exatamente do que se tratava.
Certamente, aqueles que aplicavam o método estrutural em domínios muito
precisos, como a linguística, a mitologia comparada, sabiam o que era o
estruturalismo, mas desde que se ultrapassava esses domínios muito precisos,
ninguém sabia ao certo o que isso era. (FOUCAULT, 2000a, DE II, p. 307)...
Nunca fui freudiano, nunca fui marxista e jamais fui estruturalista (Ibidem, p.
312).

Entretanto, se em uma revisão reflexiva sobre seus estudos, M. Foucault recusa o


estruturalismo, não se pode negar que vivera neste ambiente de recepção de Saussure na
França, despertado tardiamente após Segunda Guerra Mundial, e somado a mal-
entendidos cristalizados na ‘(re)descoberta’ do Curso de Linguística Geral (PUECH,
2014). A presença dessa obra de Saussure se faz evidente quando, após a publicação de
As palavras e as coisas, em 1966, Foucault propõe-se a uma produção acadêmica
destinada à explicação da natureza e à definição de seu próprio trabalho. Inicialmente, no
texto intitulado “Resposta a uma questão”, escrito em 1968, expõe o discurso como objeto
de (ou objeto para) suas reflexões: “Estudei alternadamente conjunto de discursos;
caracterizei-os; defini os jogos de regras, de transformações, de limiares, de remanências;
eu os compus entre eles, descrevi os feixes de relações” (FOUCAULT, 2010, p. 5). Essa
explicação ganha mais consistência e maior explanação na obra publicada no ano seguinte
– A Arqueologia do Saber – na qual a língua é referida como um objeto tomado como
condição para o estudo de outro objeto, não linguístico propriamente, o discurso, cuja
existência necessita da língua. Eis então a instauração de um diálogo com conceitos
encontrados no CLG.
Nessa empreitada, Foucault distingue o discurso da língua:

o material que temos a tratar [...] é uma população de acontecimentos no espaço


do discurso em geral. Aparece, assim, o projeto de uma descrição dos
acontecimentos discursivos como horizonte para a busca das unidades que aí
se formam. Essa descrição se distingue facilmente da análise da língua.
Certamente só podemos estabelecer um sistema linguístico (se não o

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construímos artificialmente) utilizando um corpo de enunciados ou uma


coleção de fatos de discurso [...] uma língua constitui sempre um sistema para
enunciados possíveis - um conjunto finito de regras que autoriza um número
infinito de desempenhos (FOUCAULT, 2008, p. 30).

Nesta distinção inicial, a proposta centra-se no projeto de uma descrição e análise


dos acontecimentos discursivos como horizonte para a busca das unidades que se formam,
os enunciados, conforme Foucault explica em páginas posteriores. Essa análise coloca a
língua em oposição a acontecimentos discursivos e distinta do enunciado, conceito a que
serão dedicadas várias páginas d’A Arqueologia do saber. A língua, tal como postulado
por Saussure, é um sistema linguístico; e, na visada foucaultiana, a descrição desse
sistema explicita a utilização de um corpo de enunciados, um sistema de enunciados
possíveis. O desenvolvimento desse projeto voltado para uma analítica dos discursos, em
termos teóricos e metodológicos, se dará em batimento com problemáticas de ordem da
língua, tal como concebida por Saussure. Continuemos com as palavras de Foucault.

Eis a questão que a análise da língua coloca a propósito de qualquer fato de


discurso: segundo que regras um enunciado foi construído e,
consequentemente, segundo que regras outros enunciados semelhantes
poderiam ser construídos? A descrição de acontecimentos do discurso coloca
outra questão bem diferente: como apareceu um determinado enunciado, e não
outro em seu lugar? [...] um enunciado é sempre um acontecimento que nem a
língua nem o sentido podem esgotar inteiramente. Trata-se de um
acontecimento estranho, por certo: inicialmente porque está ligado, de um lado,
a um gesto de escrita ou à articulação de uma palavra, mas, por outro lado, abre
para si mesmo uma existência remanescente no campo de uma memória, ou na
materialidade dos manuscritos, dos livros e de qualquer forma de registro
(Ibidem, p. 30-31).

A proposição foucaultiana toma a concepção de língua designada por Saussure


como sistema de signos; um sistema socialmente elaborado. A língua requer regras
combinatórias para que a produção de enunciados seja possível. Entretanto na análise
discursiva arqueológica, o enunciado, ainda que seja dependente da língua para ter
existência, obedece a regras não linguísticas; ou seja, não se define pelo sistema
linguístico em si, sofre determinação de elementos de outra ordem, exteriores à língua. A
análise de acontecimentos discursivos implica descrever a determinação dos enunciados,
explicitar o que provocou sua emergência para, então, como propõe Foucault, “podermos
apreender outras formas de regularidade, outros tipos de relações” (Ibidem, p. 32). Se as
relações discursivas não são internas à língua, o olhar para a materialidade linguística visa

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à observação de outro objeto, que não a língua propriamente. “Certamente os discursos


são feitos de signos; mas o que fazem é mais que utilizar esses signos para designar coisas.
É esse mais que os torna irredutíveis à língua e ao ato da fala. É esse ‘mais’ que é preciso
fazer aparecer e que é preciso descrever” (Ibidem, p. 55).
A análise proposta por M. Foucault, ao considerar que as relações discursivas não
são internas à língua, ao sistema de signos, requer focalizar o próprio discurso enquanto
prática. Em suas palavras, “gostaria de mostrar, por meio de exemplos precisos, que,
analisando os próprios discursos, vemos se desfazerem os laços aparentemente tão fortes
entre as palavras e as coisas, e destacar-se um conjunto de regras, próprias da prática
discursiva” (Ibidem, p. 54-55). Os apontamentos sobre língua, observados em termos
conceituais, conformam com o que lemos no Curso de Linguística Geral. A propósito da
força desta obra no contexto acadêmico francês, nos anos 1960, podemos reiterar que
“Saussure [...] é onipresente em todos os setores das ciências humanas e sociais e na
filosofia”, conforme assevera Puech (2014, p. 23). Reiteramos também que a língua em
si não é objeto de discussão foucaultiana, mas é tomada como condição para a produção
do discurso, considerado um objeto não linguístico propriamente. Nessa expedição,
Foucault apresenta o enunciado como unidade de análise, e ao conceituá-lo faz um
batimento com caracteres conceituais da língua, dos quais o enunciado se distingue.
Para Foucault, os “enunciados [...], se possuem uma gramaticalidade muito
rigorosa [...], não se trata dos mesmos critérios que permitem, em uma língua natural,
definir uma frase aceitável ou interpretável.” (Ibidem p. 93). Para ele,

É evidente que os enunciados não existem no sentido em que uma língua existe
e, com ela, um conjunto de signos definidos por seus traços oposicionais e suas
regras de utilização; a língua, na verdade, jamais se apresenta em si mesma e
em sua totalidade; só poderia sê-lo de uma forma secundária e pelo expediente
de uma descrição que a tomaria por objeto; os signos que constituem seus
elementos são formas que se impõem aos enunciados e que os regem do
interior. Se não houvesse enunciados, a língua não existiria; mas nenhum
enunciado é indispensável à existência da língua (e podemos sempre supor, em
lugar de qualquer enunciado, um outro enunciado que, nem por isso,
modificaria a língua). A língua só existe a título de sistema de construção para
enunciados possíveis; mas, por outro lado, ela só existe a título de descrição
(mais ou menos exaustiva) obtida a partir de um conjunto de enunciados reais.
Língua e enunciado não estão no mesmo nível de existência; e não podemos
dizer que há enunciados como dizemos que há línguas. Mas basta, então, que
os signos de uma língua constituam um enunciado, uma vez que foram
produzidos (articulados, delineados, fabricados, traçados) de um modo ou de
outro, uma vez que apareceram em um momento do tempo e em um ponto do
espaço, uma vez que a voz que os pronunciou ou o gesto que os moldou lhes

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deram as dimensões de uma existência material? Será que as letras do alfabeto


por mim escritas ao acaso, em uma folha de papel, como exemplo do que não
é um enunciado, será que os caracteres de chumbo utilizados para imprimir os
livros - e não se pode negar sua materialidade que tem espaço e volume -, será
que esses signos, expostos, visíveis, manipuláveis, podem ser razoavelmente
considerados como enunciados? (Ibidem, p. 95-96)

A língua é condição de possibilidade material para os enunciados, sem, contudo,


estarem no mesmo plano de existência. Se os enunciados, como considera Foucault,
aparecem em um momento do tempo, eles têm uma historicidade própria/peculiar; se
aprecem em um ponto do espaço, eles têm um lugar social específico; se são pronunciados
por uma voz, ou moldados por um gesto, há um sujeito do enunciado, conforme podemos
depreender das indagações na citação anterior. Essas especificidades que destacamos são
seguidas de afirmações de que o enunciado não requer uma construção linguística regular,
pois seu modo de existência não é o mesmo que o da língua; esta lhe fornece a base
material, ou seja, uma materialidade inscrita no espaço e no tempo.
Ainda que essas considerações de Foucault pareçam coadunar com a afirmação
saussuriana de que o signo deve ser estudado socialmente, o objeto em foco não é o signo,
é o enunciado, que tem forma peculiar de existência. Se a língua, conforme assinala
Foucault, “só existe a título de sistema de construção para enunciados possíveis”, é porque
ela é um sistema de signos socialmente elaborado, como concebe Saussure. Entretanto,
Foucault assevera que o enunciado “não é nem sintagma, nem regra de construção, nem
forma canônica de sucessão e de permutação, mas sim o que faz com que existam tais
conjuntos de signos e permite que essas regras e essas formas se atualizem” (Ibidem, p.
99). O modo que faz com que os signos existam e se atualizem não é o mesmo que sua
existência em si. Esse modo de fazer existir sofre determinação histórica e social e
correlaciona-se com uma posição sujeito do enunciado, aspectos que configuram uma
função enunciativa e caracterizam o enunciado. A definição de enunciado, por sua vez,
se dá pela função enunciativa, pelo exercício dessa função.
Trazemos novamente as palavras de Michel Foucault para reiterar a caracterização
do enunciado como um objeto distinto do signo e/ou da língua.

O enunciado não é, pois, uma estrutura [...] é uma função de existência que
pertence, exclusivamente, aos signos, e a partir da qual se podem decidir [...]
se eles “fazem sentido” ou não, segundo que regra se sucedem ou se justapõem,
de que são signos, e que espécie de ato se encontra realizado por sua
formulação [...] É essa função que é preciso descrever agora como tal, ou seja,

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em seu exercício, em suas condições, nas regras que a controlam e no campo


em que se realiza (Ibidem, p. 98).

Considerado como função enunciativa, a análise do enunciado visa a descrever o


exercício dessa função, demonstrar suas condições de produção, suas regras de
encadeamento, bem como explicitar o campo em que se realiza. Diferentemente das
regras gramaticais e/ou linguísticas para a produção de frases completas, inclusive
inúmeras frases com as mesmas regras, sendo que os signos e as regras combinatórias são
suficientes para tais construções, o enunciado obedece a um princípio de regularidade sob
determinações históricas. Ademais, “não há enunciado que não suponha outros; não há
nenhum que não tenha, em torno de si, um campo de coexistências, efeitos de série e de
sucessão, uma distribuição de funções e de papéis” (Ibidem, p. 112). Acrescentamos ainda
que o enunciado não obedece a um jogo de significações prévias, é uma prática cujos
acontecimentos se dão sob determinações históricas.
A despeito de todas as diferenciações entre enunciado e signo, discurso e língua,
conforme já assinalamos, a existência do enunciado é completamente dependente da
língua, que lhe fornece a materialidade: “Ela é constitutiva do próprio enunciado: o
enunciado precisa ter uma substância, um suporte, um lugar e uma data. Quando esses
requisitos se modificam, ele próprio muda de identidade.” (Ibidem, p.114). Quanto à
existência material do enunciado, M. Foucault ainda expõe que em uma situação de uma
produção discursiva com tradução simultânea, ou uma informação em três ou mais
línguas diferentes, mudam-se as línguas, mas o enunciado permanece o mesmo; ou seja,
“texto e tradução constituem o mesmo conjunto enunciativo” (Ibidem, p. 117).
A análise do enunciado, tomado como um objeto distinto do signo e/ou da língua,
implica a descrição do nível enunciativo, o que requer “interrogar a linguagem, não na
direção a que ela remete, mas na dimensão que a produz” (Ibidem p. 126). Nas palavras
de Foucault,

o fato de que se pode descrever essa superfície enunciativa prova que o dado
da linguagem não é a simples laceração de um mutismo fundamental; que as
palavras, as frases, as significações, as afirmações, os encadeamentos de
proposições não se apoiam diretamente na noite primeira de um silêncio; mas
que o súbito aparecimento de uma frase, o lampejo do sentido, o brusco índice
da designação surgem sempre no domínio de exercício de uma função
enunciativa [...] Nada há a objetar contra os métodos linguísticos ou as análises
lógicas [...] A análise enunciativa não prescreve para as análises linguísticas
ou lógicas o limite a partir do qual elas deveriam renunciar e reconhecer sua

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impotência; ela não marca a linha que fecha seu domínio; mas se desenrola em
outra direção que as cruza (Ibidem, p. 127-129).

Feitas as ressalvas e distinções entre a análise arqueológica dos discursos e a


análise linguística propriamente, Foucault ainda expõe uma diferenciação entre
enunciado e frase com vistas a apontar objetos mais amplos que ambos compõem: “um
enunciado pertence a uma formação discursiva, como uma frase pertence a um texto [...].
Mas enquanto a regularidade de uma frase é definida pelas leis de uma língua [...] a dos
enunciados é definida pela própria formação discursiva” (Ibidem, p. 132). E a análise de
uma formação discursiva exige a descrição de certo número de enunciados que
apresentem o mesmo princípio de regularidade. Nas palavras de Foucault,

o que se descreveu sob o nome formação discursiva constitui, em sentido


estrito, grupos de enunciados, isto é, conjuntos de performances verbais que
não estão ligadas entre si, no nível das frases, por laços gramaticais (sintáticos
ou semânticos); que não estão ligados entre si, no nível das proposições, por
laços lógicos (de coerência formal ou encadeamentos conceituais); que
tampouco estão ligados, no nível das formulações, por laços psicológicos (seja
a identidade das formas de consciência, a constância das mentalidades, ou a
repetição de um projeto); mas que estão ligados no nível dos enunciados”
(Ibidem, p. 130-131).

O enunciado, na acepção foucaultiana, se diferencia de frase, proposição e ato de


fala, caracterizando-se por ligar-se a outros enunciados e por ocorrer no exercício de uma
função enunciativa. Assim é que os enunciados que compõem uma formação discursiva
obedecem ao mesmo princípio de regularidade: determinação histórica, lugar social,
campo associado, posição sujeito, enfim, constituem práticas discursivas no exercício da
função enunciativa. Tanto é que o discurso, nesse campo de análise, “é uma prática que
tem suas formas próprias de encadeamento e de sucessão” (Ibidem, p. 190-191), e “ao
lado dos métodos de estruturação linguística [...], podia-se estabelecer uma descrição
específica dos enunciados, de sua formação e das regularidades próprias do discurso”
(Ibidem, p. 224).
A importância da linguística em seu modelo estruturalista para a edificação de
outros campos disciplinares, e outras reflexões acadêmicas, entre elas a proposta de
análise de discursos, já havia sido atestada por Michel Foucault em uma conferência
proferida na Universidade da Tunísia, em março de 1968. Intitulada “Linguística e
ciências sociais”, e posteriormente publicada (FOUCAULT, 2000b), essa conferência

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expõe o reconhecimento de que a linguística estrutural tinha atingido alto nível de


cientificidade e servido de modelo para outras ciências sociais e humanas. Ela “acaba de
dar às ciências sociais possibilidades epistemológicas diferentes das que ela lhes oferecia
até então” (FOUCAULT, 2000b, p. 162). Concernente à análise do discurso, Foucault
considera que a linguística “permitiu analisar não somente a linguagem, mas os discursos,
isto é, ela permitiu estudar o que se pode fazer com a linguagem” (Ibidem, p. 166). Não
se trata de a linguística estruturalista ter abordado o discurso como objeto, mas, por sua
estrutura epistemológica própria, e constituindo a língua como o que serve de material,
“fazer aparecer as condições de mudança graças às quais se podem analisar fenômenos
históricos, enfim, realizar ao menos a análise do que se poderia chamar de produções
discursivas” (Ibidem, p. 167), conforme Foucault demonstrou, no ano seguinte (1969), e
perscrutamos, n’A Arqueologia do saber.

3 Os sistemas e as regularidades: a língua e o discurso

Os diálogos de M. Foucault com os pensadores que lhe antecederam levam-no mais a


manter em suspenso as sínteses acabadas do que filiar-se a elas. Isso se dá também em
relação ao pensamento saussuriano. Vimos que em A Arqueologia do saber, Foucault
problematiza, sobre o domínio dos enunciados efetivos, a diferença entre a descrição da
língua e a descrição dos acontecimentos discursivos. A análise linguística se estabelece
em função de um quadro de diferenças (sistema), avaliando “segundo que regras um
enunciado foi construído, e, consequentemente, segundo que regras outros enunciados
semelhantes poderiam ser construídos” (FOUCAULT, 2008, p. 31). Na análise do campo
discursivo, por sua vez, considera-se “compreender o enunciado na estreiteza e
singularidade de sua situação; de determinar as condições de sua existência, de fixar seus
limites da forma mais justa, de estabelecer suas correlações com os outros enunciados”
(Ibidem, p. 31) com os quais se liga ou exclui. Propõe, portanto, não uma análise da
língua, mas um projeto de descrição dos acontecimentos discursivos para buscar as
unidades, objetivando responder como apareceu um determinado enunciado e não outro
em seu lugar.
Com isso já podemos compreender que a natureza da noção de enunciado é
distinta para uma teoria de descrição da língua que busca pautar-se no sistema e para uma

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teoria de descrição dos acontecimentos discursivos que busca estabelecer as regularidades


em um sistema de dispersão. Por isso, voltamos a este ponto: a emergência do enunciado
“é sempre um acontecimento que nem a língua, nem o sentido podem esgotar
inteiramente” (Ibidem, p. 32). O enunciado é singular, mas tem existência remanescente
no campo de uma memória, na materialidade dos manuscritos; está aberto à repetição, à
transformação, e está ligado a situações que provocam a sua emergência num quadro de
enunciados que o precedem e o seguem.
Se para Saussure, o que se busca é descrever a estrutura interna do sistema, para
Foucault, o objetivo é fazer aparecer os conflitos latentes, flagrar as formas de repartição,
descrever a partir dos enunciados um sistema de dispersão.

Chamaremos de regras de formação as condições que estão submetidos os


elementos dessa repartição (objetos, modalidade de enunciação, conceitos,
escolhas temáticas). As regras de formação são condições de existência (mas
também de coexistência, de manutenção, de modificação e de
desaparecimento) em uma dada repartição discursiva (Ibidem, p. 43-44).

Foucault assevera que os objetos que compõem as regras de formação não são
redutíveis à língua ou ao ato de fala. São as práticas discursivas que formam
sistematicamente os objetos de que falam. Assim, esses objetos (ele exemplifica com o
discurso da psicopatologia no século XIX) não preexistem ao discurso, eles são
construídos pelos discursos. Nas práticas discursivas estão envolvidas, então, a
modalidade enunciativa que compreende o emprego da língua e seu sistema, a formação
dos objetos, a formação de conceitos que organizam um campo do discurso e a formação
das escolhas temáticas e teóricas.
Para o filósofo, atrás da fachada visível do sistema, pode-se supor “a rica incerteza
da desordem” (Ibidem, p. 84), onde “estão em jogo a língua e o pensamento, a experiência
empírica e as categorias, o vivido e as necessidades ideais, a contingência dos
acontecimentos e o jogo das coações formais” (Ibidem, p. 84). A língua para Foucault
participa desse sistema maior que não se confunde com a existência dos signos.

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Saussure e Foucault, língua e discurso

4 Conclusão

Propusemos este artigo com a finalidade de averiguar se (e de que maneira) a concepção


de língua perpassa os estudos de Michel Foucault, especificamente nos textos publicados
no final dos anos 1960, com ênfase para A Arqueologia do saber. Nosso objetivo
primordial foi o de explanar as implicações desse conceito no pensamento de Foucault na
elaboração de aparatos teóricos e metodológicos que dão sustentação às suas proposições
sobre o discurso. Em nossa exposição, certificamos nossa hipótese de que o diálogo com
o estruturalismo – que apresenta a língua como sistema, conforme propôs Ferdinand de
Saussure – atuou como fundamento para a concepção dos conceitos de discurso, práticas
discursivas, enunciado, acontecimento discursivo, que constituem objetos da Arqueologia
foucaultiana.
Das aproximações e afastamentos de Foucault com Saussure, ele elabora uma
metodologia de análise de discurso, em batimento com um aparato conceitual, procurando
estabelecer distanciamento do estruturalismo, do método estrutural. Para tal, não opera
pelo binarismo, que coloca dois elementos em relação como condição para a
construção/compreensão/definição/existência de um objeto. Em sua proposta, Foucault
volta-se para um sistema de dispersão, joga com elementos por vezes interligados, por
vezes interdependentes, marcados por descontinuidade; recusa e nega o estruturalismo e,
consequentemente, o rótulo de estruturalista. A propósito, não há uma classificação
precisa e única para o pensamento de M. Foucault. Por vezes, há uma aproximação maior
com a filosofia, outras vezes com a história, etc. Da mesma forma, a tentativa de definir
seu método de análise (o que, aliás, pode ser considerado plural: métodos) sempre incorre
em imprecisões.
Das aproximações, ainda que Foucault não apresente uma conceituação específica
e explícita de língua, ele a perscruta enquanto conceito e objeto, conforme proposta por
Saussure, e elenca predicativos da língua que servem para a proposição de conceitos e
objetos próprios ao campo da análise do discurso; campo atualmente denominado Estudos
discursivos foucaultianos. Dessa feita, considera a língua como condição de possibilidade
material para os enunciados, como um suporte de enunciados; ou seja, uma materialidade
inscrita no espaço e no tempo; afinal, “o enunciado precisa ter uma substância, um
suporte, um lugar e uma data” (FOUCAULT, 2008, p.114).

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Fernandes & Sargentini

Em Saussure, a língua é produto social e a linguagem é multiforme e heteróclita;


em Foucault, a língua é condição material para a produção do discurso, e o discurso é
produzido sob determinações históricas e sociais, marcado por dispersão e
descontinuidade, é heterogêneo. Para Saussure, o signo deve ser estudado socialmente,
pois tem um significado socialmente elaborado; em Foucault, o enunciado se define pelo
exercício de uma função enunciativa sob determinações históricas e sociais, e somente a
materialidade linguística é passível de repetição, o enunciado não se repete; até mesmo
porque, o discurso é concebido como uma prática discursiva e não como um elemento
encerrado em si. Em nosso percurso de leitura, concordamos que o rótulo de estruturalista
não se aplica a Foucault propriamente, mas o estruturalismo serve-lhe para a construção
de um pensamento acadêmico no qual vislumbramos outros métodos de análise.

Contribuição

Claudemar Alves Fernandes: Conceptualização, Investigação, Metodologia, Escrita –


Rascunho original, Escrita – análise e edição; Vanice Sargentini: Conceptualização,
Investigação, Metodologia, Escrita – Rascunho original, Escrita – análise e edição.

Referências

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pensamento. Rio de Janeiro: Forense Universitária. (Ditos & Escritos. v. II), 2000a. p.
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Saussure e Foucault, língua e discurso

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autoria em Ferdinand de Saussure: do percurso intelectual à constituição da obra.
Leitura, v. 1, nº 62, 2019. p. 235-254.

Recebido em: 22 de março de 2022


Aceito em: 23 de maio de 2022
Publicado em agosto de 2022

Claudemar Alves Fernandes Vanice Sargentini


E-mail: [email protected] E-mail: [email protected]
ORCiD: http://orcid.org/0000-0002-2644-4705 ORCiD: https://orcid.org/0000-0002-7760-3075

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